dias de índio

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4 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 3/2/2009 5 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 3/2/2009 CAPA O Dez! foi ao Fórum Social Mundial, em Belém, para contar histórias de quem vive na região pan-amazônica Dias de VITOR PAMPLONA [email protected] Sobre redes vazias, a lona azul produz uma luz celeste nas barracas do acampamento indígena do 9º Fórum Social Mundial, erguido tal qual um alojamento militar. Ao meio-dia, seus ocupantes enfileiram-se em busca de comida. Arroz, feijoada, farofa e macarrão para o almoço. No espaço destinado aos índios pela organização do Fórum que agitou Belém [PA] na semana passada, ouve-se mais o barulho de talheres do que de vozes. Convidados para ser os rostos da devastação da floresta, poucos se arriscam a exibir pinturas e adereços fora da programação oficial, que os recrutou para meia dúzia de atos simbólicos. Os que se aventuram fora do acampamento têm olhares não familiarizados com a Babilônia em que se transformaram as universidades paraenses. As pequenas cidades da Amazônia estão no mapa cotidiano de quase todos. O que não está são as multidões, os flashes e a exploração do exotismo. Bente Tembé, 20, mora na aldeia sede da etnia tembé, do tronco tupi-guarani, no alto rio Guamá. Vai ao menos cinco dias da semana à cidade de Capitão Poço, no nordeste do Pará, onde trabalha como digitador da Associação dos Grupos Indígenas das Aldeias Sede e Ituaçu [Agidasi]. O convite para o FSM chegou no e-mail da associação. Os índios receberam ajuda de custo para o transporte – a viagem foi de barco – e tiveram que gastar só R$ 2,50 por pessoa, que dava um branco para administrar o dinheiro e teve desvio. Agora nós estamos cuidando disso”, diz Aiteti. PROMESSAS – Uma das principais bandeiras do FSM, a preservação da Amazônia e dos povos habitantes da floresta é assunto repetido à náusea pelos líderes indígenas. Para os índios sem função de liderança, no entanto, soam como um disco arranhado. Wyery, 26, da aldeia Tekwahau, veio para o Fórum com os dois filhos pequenos, Aupyahu, um menino de três anos, e Dary, uma menina de dois – os nomes significam “homem novo” e “lua”. “Já falamos muito de desmatamento. A gente é quem mais sofre com isso”, diz com absoluta impaciência. A mulher, seis anos mais nova, pronuncia o nome indígena, incompreensível numa primeira audição, e diz que prefere ser chamada de Edileusa. Divide os dias entre a escola, a produção de farinha e de artesanato. Aiteti, Bente e Wyrahu, os três tembés, indicam estar próximos da mesma indagação após terem participado de encontros para debater formas de impedir a livre atuação de madeireiros e garimpeiros nas reservas . “O que mais ouvimos, no Fórum e em outras conferências, é falatório. Não acontece nada, só promessas”, constata Aiteti. Bente completa: “Isso aqui não vai pra frente, não”. Céticos sobre os resultados do Fórum, os tembés têm outra razão para participar do evento. “Aqui, longe da tribo, estamos todos solteiros”, diz Wyrahu. Com promessas de amor suspensas, os três somem, calmamente rumo à multidão. “O que mais ouvimos é falatório. Não acontece nada, só promessas” Aiteti Tembé, 16, da tribo Tembé, no Pará direito ao alojamento e três refeições diárias. Os tembés do nordeste paraense têm ainda outra aldeia, a Ipidho. Nas três, Bente conta que vivem cerca de 400 pessoas. Ter um emprego formal é exceção na tribo: “Nossas principais atividades são a caça e a pesca”. Wyrahu Tembé, 19, cabelos descoloridos como os de um surfista, acrescenta: “E tem as danças e tradições, pintura, artesanato”. Em todas as aldeias, há uma escola de ensino médio que funciona regularmente, segundo eles. Depois disso, quem quiser continuar estudando vai para a cidade. Aiteti Tembé, 16, tem tudo planejado: vai entrar para a faculdade de direito. “Quero ser advogado porque nossa aldeia recebe recursos e não tem quem administre”. Mensalmente, a associação ganha R$ 50 mil da Fundação Nacional de Saúde [Funasa]. O dinheiro é para manutenção do carro, combustível, remédios e alimentação. “Contratamos FOTOS ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE 1– Aiteti, 16, da tribo Tembé; 2 – Edleusa, 20, da tribo Tecuahan; 3– Marcha na abertura do Fórum Social; 4– Wyrahu-Tembé, 19; 5 – Índios da tribo Asurini no campus da Universidade Federal do Pará; 6– Representante da tribo Asurini; 7– Apresentação de índio Asurini; 8– Marcha no primeiro dia do evento Padre condena capitalismo Conservar a floresta amazônica e proteger as comunidades indígenas será impossível enquanto o desenvolvimento econômico for orientado pelo capitalismo. É o que pensa o padre alemão Paulo Suess, assessor teológico do Conselho Indianista Missionário [Cimi], instituição que na Igreja Católica tem o mesmo papel da Fundação Nacional do Índio [Funai] no governo federal. Suess, que hoje mora em São Paulo, mudou-se para a Amazônia no fim dos anos 1960. O tempo em que viveu na floresta trouxe uma certeza: “O capitalismo depende da expansão. E se expandir para onde? A única terra disponível é a dos índios”. No período de floresta, lutou contra a exploração de bauxita por garimpeiros. A paisagem, diz o padre, lembrava a Macondo descrita por Gabriel Garcia Marquez em Cem Anos de Solidão. “Uma terra arrasada, cheia de buracos, completamente abandonada”. Convidado para o lançamento da campanha “Povos Indígenas da Amazônia – presente e futuro da humanidade” no FSM, o presidente da Funai, Márcio Augusto Meira, não compareceu, assim como outros representantes do poder público. A ausência foi interpretada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica [Coica] como desinteresse. “Estamos desapontados. A idéia era discutir nosso papel nisso”, disse Marcos Apurinã, da Coica. A Funai tem apostado em projetos de desenvolvimento sustentável, nos quais os índios produzem e vendem castanha-do-pará , animais e produtos agrícolas. Padre Suess é cético: “Autossustentável é como a tortura. Você vai retirando, retirando, e só para antes da vítima morrer”. Seus argumentos: “O metro cúbico de madeira custa R$ 30 para ser retirado e é vendido por até R$ 3 mil. Que madeireiro não vai querer? É como acertar na loteria”. 1 2 3 4 5 6 7 8 índio

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Cobertura do Fórum Social Mundial de 2009 para o Caderno Dez!, suplemento do jornal A Tarde

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Page 1: Dias de índio

4 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 3/2/2009 5| CADERNO DEZ! |SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 3/2/2009

C A PA ❚ O Dez!foi ao FórumSocial Mundial,em Belém, paracontar históriasde quem vivena regiãopan-amazônica

Dias de

VITOR PAMPLONAv p a m p l o n a @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

Sobre redes vazias, a lona azulproduz uma luz celeste nasbarracas do acampamentoindígena do 9º Fórum SocialMundial, erguido tal qual umalojamento militar. Aomeio-dia, seus ocupantesenfileiram-se em busca decomida. Arroz, feijoada, farofae macarrão para o almoço. Noespaço destinado aos índiospela organização do Fórumque agitou Belém [PA] nasemana passada, ouve-se maiso barulho de talheres do quede vozes.

Convidados para ser osrostos da devastação dafloresta, poucos se arriscam aexibir pinturas e adereços forada programação oficial, que osrecrutou para meia dúzia deatos simbólicos. Os que seaventuram fora doacampamento têm olharesnão familiarizados com aBabilônia em que setransformaram asuniversidades paraenses. Aspequenas cidades daAmazônia estão no mapacotidiano de quase todos. Oque não está são as multidões,os flashes e a exploração doexotismo.

Bente Tembé, 20, mora naaldeia sede da etnia tembé,do tronco tupi-guarani, noalto rio Guamá. Vai aomenos cinco dias da semanaà cidade de Capitão Poço, nonordeste do Pará, ondetrabalha como digitador daAssociação dos GruposIndígenas das Aldeias Sede eItuaçu [Agidasi]. O convitepara o FSM chegou no e-mailda associação.

Os índios receberam ajudade custo para o transporte –a viagem foi de barco – etiveram que gastar sóR$ 2,50 por pessoa, que dava

um branco para administraro dinheiro e teve desvio.Agora nós estamos cuidandodisso”, diz Aiteti.

PROMESSAS – Uma dasprincipais bandeiras do FSM, apreservação da Amazônia edos povos habitantes dafloresta é assunto repetido ànáusea pelos líderes indígenas.Para os índios sem função deliderança, no entanto, soamcomo um disco arranhado.

Wyery, 26, da aldeiaTekwahau, veio para o Fórumcom os dois filhos pequenos,Aupyahu, um menino de trêsanos, e Dary, uma menina dedois – os nomes significam“homem novo” e “lua”. “Jáfalamos muito dedesmatamento. A gente équem mais sofre com isso”, dizcom absoluta impaciência.

A mulher, seis anos maisnova, pronuncia o nomeindígena, incompreensívelnuma primeira audição, e dizque prefere ser chamada deEdileusa. Divide os dias entre aescola, a produção de farinhae de artesanato.

Aiteti, Bente e Wyrahu, ostrês tembés, indicam estarpróximos da mesmaindagação após teremparticipado de encontros paradebater formas de impedir alivre atuação de madeireiros egarimpeiros nas reservas . “Oque mais ouvimos, no Fórum eem outras conferências, éfalatório. Não acontece nada,só promessas”, constata Aiteti.Bente completa: “Isso aquinão vai pra frente, não”.

Céticos sobre os resultadosdo Fórum, os tembés têmoutra razão para participar doevento. “Aqui, longe da tribo,estamos todos solteiros”, dizWyrahu. Com promessas deamor suspensas, os trêssomem, calmamente rumo àmultidão.

❛“O que maisouvimos éfalatório. Nãoacontece nada,só promessas”

Aiteti Tembé, 16, da triboTembé, no Pará ❚

direito ao alojamento e trêsrefeições diárias. Os tembésdo nordeste paraense têmainda outra aldeia, a Ipidho.Nas três, Bente conta quevivem cerca de 400 pessoas.Ter um emprego formal éexceção na tribo: “Nossasprincipais atividades são acaça e a pesca”. WyrahuTembé, 19, cabelosdescoloridos como os de umsurfista, acrescenta: “E temas danças e tradições,pintura, artesanato”.

Em todas as aldeias, háuma escola de ensino médioque funciona regularmente,segundo eles. Depois disso,quem quiser continuarestudando vai para a cidade.Aiteti Tembé, 16, tem tudoplanejado: vai entrar para afaculdade de direito. “Queroser advogado porque nossaaldeia recebe recursos e nãotem quem administre”.Mensalmente, a associaçãoganha R$ 50 mil daFundação Nacional de Saúde[Funasa]. O dinheiro é paramanutenção do carro,combustível, remédios ealimentação. “Contratamos

FOTOS ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE

1 – Aiteti, 16, da tribo Tembé;

2 – Edleusa, 20, da tribo Tecuahan;

3 – Marcha na abertura do Fórum Social;

4 – Wyrahu-Tembé, 19;

5 – Índios da tribo Asurini no campus da

Universidade Federal do Pará;

6 – Representante da tribo Asurini;

7 – Apresentação de índio Asurini;

8 – Marcha no primeiro dia do evento

P a d recondenacapitalismoConservar a floresta amazônicae proteger as comunidadesindígenas será impossívelenquanto o desenvolvimentoeconômico for orientado pelocapitalismo. É o que pensa opadre alemão Paulo Suess,assessor teológico do ConselhoIndianista Missionário [Cimi],instituição que na IgrejaCatólica tem o mesmo papel daFundação Nacional do Índio[Funai] no governo federal.

Suess, que hoje mora emSão Paulo, mudou-se para aAmazônia no fim dos anos1960. O tempo em que viveuna floresta trouxe uma certeza:“O capitalismo depende daexpansão. E se expandir paraonde? A única terra disponívelé a dos índios”. No período defloresta, lutou contra aexploração de bauxita porgarimpeiros. A paisagem, diz opadre, lembrava a Macondodescrita por Gabriel GarciaMarquez em Cem Anos deSolidão. “Uma terra arrasada,cheia de buracos,completamente abandonada”.Convidado para o lançamentoda campanha “Povos Indígenasda Amazônia – presente efuturo da humanidade” noFSM, o presidente da Funai,Márcio Augusto Meira, nãocompareceu, assim comooutros representantes dopoder público. A ausência foiinterpretada pela Coordenaçãodas Organizações Indígenas daBacia Amazônica [Coica] comodesinteresse. “Estamosdesapontados. A idéia eradiscutir nosso papel nisso”,disse Marcos Apurinã, da Coica.A Funai tem apostado emprojetos de desenvolvimentosustentável, nos quais os índiosproduzem e vendemcastanha-do-pará , animais eprodutos agrícolas. Padre Suessé cético: “Autossustentável écomo a tortura. Você vairetirando, retirando, e só paraantes da vítima morrer”. Seusargumentos: “O metro cúbicode madeira custa R$ 30 paraser retirado e é vendido poraté R$ 3 mil. Que madeireironão vai querer? É como acertarna loteria”.

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