as penas privadas não negociais no código civil de macau

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AS PENAS PRIVADAS NÃO NEGOCIAIS NO CÓDIGO CIVIL DE MACAU António Katchi * Sumário: 1. Introdução 2. Tipos de penas privadas 3. Penas fixadas por lei 3.1. Indemnização independente do dano 3.1.1. A obrigação de indemnizar em geral 3.1.1.1. Significado linguístico e jurídico-positivo da obrigação de indemnizar 3.1.1.2. Processo histórico de diferenciação entre pena e indemnização 3.1.1.3. Fundamento filosófico da obrigação de indemnizar 3.1.1.4. Conteúdo da obrigação de indemnizar 3.1.2. Casos de indemnização independente do dano 3.1.3. Natureza jurídica da indemnização independente do dano 3.1.4. Cumulação com outras penas privadas 3.2. Juro legal materialmente usurário 4. Penas fixadas por sentença judicial 4.1. Sanção pecuniária compulsória 4.1.1. Considerações gerais 4.1.2. Figuras homólogas ou afins no direito comparado 4.1.2.1. Direito francês 4.1.2.2. Direito alemão 4.1.2.3. Direito inglês e americano * Jurista na Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça. 1

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Page 1: As Penas Privadas Não Negociais no Código Civil de Macau

AS PENAS PRIVADAS NÃO NEGOCIAIS NO CÓDIGO CIVIL

DE MACAU António Katchi*

Sumário:

1. Introdução

2. Tipos de penas privadas

3. Penas fixadas por lei 3.1. Indemnização independente do dano

3.1.1. A obrigação de indemnizar em geral 3.1.1.1. Significado linguístico e jurídico-positivo da

obrigação de indemnizar 3.1.1.2. Processo histórico de diferenciação entre pena e

indemnização 3.1.1.3. Fundamento filosófico da obrigação de

indemnizar 3.1.1.4. Conteúdo da obrigação de indemnizar

3.1.2. Casos de indemnização independente do dano 3.1.3. Natureza jurídica da indemnização independente do

dano 3.1.4. Cumulação com outras penas privadas

3.2. Juro legal materialmente usurário

4. Penas fixadas por sentença judicial 4.1. Sanção pecuniária compulsória

4.1.1. Considerações gerais 4.1.2. Figuras homólogas ou afins no direito comparado 4.1.2.1. Direito francês 4.1.2.2. Direito alemão 4.1.2.3. Direito inglês e americano

* Jurista na Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça.

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4.1.2.4. Direito da República Popular da China 4.1.2.5. Direito português

4.1.3. Sanção pecuniária compulsória e “prisão compulsória”

4.1.4. A sanção pecuniária compulsória em Macau 4.1.4.1. Regime jurídico

4.1.4.1.1. Semelhanças com o regime do Código Civil português

4.1.4.1.2. Diferenças em relação ao regime do Código Civil português

4.1.4.2. Natureza jurídica 4.2. Indemnização agravada em relação ao dano

5. As penas privadas e o direito de propriedade privada

5.1. Considerações gerais 5.2. Tutela constitucional do direito de propriedade privada

5.2.1. O regime previsto na Constituição da República portuguesa

5.2.2. O regime actualmente aplicável em Macau 5.3. Princípios constitucionais relativos às penas

5.4. Os princípios constitucionais da justiça e da igualdade 5.5. Apreciação da constitucionalidade das penas privadas e

dos seus regimes jurídicos

1. Introdução

Uma das orientações de política legislativa que se pode

identificar no novo Código Civil de Macau é a promoção daquilo que designaremos de “penas privadas”.

A expressão “penas privadas” não é, obviamente, da nossa autoria. Ela é utilizada, por exemplo, como título de uma obra colectiva dirigida pelos italianos Francesco Busnelli e Cesare Salvi, dedicada precisamente a esse tema.1 E entra também no título de, pelo menos, alguns dos textos que compõem essa obra.2

1 Título original da obra: Le Pene Private. Infelizmente, não tivemos acesso a ela. 2 V.g. Massimo Basile, Le “pene private” nelle associazioni (traduzimos como As “penas

privadas” nas associações); Francesco Busnelli, Verso una riscoperta delle “pene private” ?

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A esta figura também se refere o civilista português António Pinto Monteiro na sua dissertação de doutoramento.3 Eis um pequeno trecho dessa tese:4

“Pode dizer-se que o renovado apelo à pena privada se insere num contexto mais amplo de uma certa privatização da justiça – de que constituem elemento relevante todas as formas de Verbandsstrafen5 e outras medidas de Betriebsjustiz6, e a que também não é alheia a reacção tomada contra os Ladendiebstaelen7-, perante a relativa ineficácia da Justiça estadual (o crescente recurso à arbitragem é também, noutro plano, disso testemunho).”

O apelo à pena privada é, de facto, uma tendência do direito civil dos nossos dias e insere-se, como afirma Pinto Monteiro, num contexto mais amplo de privatização da justiça.

Esta privatização da justiça enquadra-se, por sua vez, no contexto ainda mais amplo das políticas de privatizações: a privatização das actividades económicas, a privatização dos serviços sociais, a privatização de espaços, tanto na Terra como noutros planetas, etc. E, tal como a privatização das empresas é justificada pelos seus responsáveis, beneficiários e apologistas com a alegada ineficiência das empresas públicas, a privatização da justiça é defendida com o argumento de que a justiça pública é morosa e que os tribunais públicos não têm capacidade para resolverem todos os casos que lhes são submetidos.

Nesse amplo e complexo processo que é a privatização da justiça podemos incluir todas as medidas por meio das quais uma entidade pública é substituída por uma entidade privada no quadro da administração da justiça.

A medida mais emblemática, e que mais frequentemente é associada ao fenómeno da privatização da justiça, é a atribuição de competência judicatória ao tribunais arbitrais.

Outra medida é a atribuição a entidades privadas do poder de

(traduzimos como A caminho de uma redescoberta das “penas privadas”?); Cesare Salvi, Risarcimento del danno extracontrattuale e “pena privata” (traduzimos como Ressarcimento do dano extracontratual e “pena privada”). Note-se que estes autores colocam a expressão pena privada entre aspas.

3 Cláusula Penal e Indemnização, Livraria Almedina, Coimbra, 1990. A esta obra tivemos acesso e a ela recorreremos amiúde ao longo deste trabalho.

4 Página 114, nota de rodapé n.º 250. 5 Penas associativas. 6 Justiça de empresa. 7 Furtos em lojas.

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estabelecer penas, traspassando o princípio nulla poene sine lege. Este princípio significa, como se sabe, que só pode ser aplicada uma pena que tenha sido estabelecida pela lei, seja sob a forma de um valor fixo, seja através de uma fórmula de cálculo, seja sob a forma de uma moldura penal. A possibilidade de dois contraentes, por acordo, estipularem uma cláusula penal de natureza punitiva – como se prevê no artigo 799.º/1 do Código Civil de Macau – implica deslegalização, já que permite o estabelecimento de uma pena através de um acto jurídico infralegal, e privatização, porquanto esse acto jurídico infralegal é de natureza privada.

Uma outra medida que podemos integrar no processo de privatização da justiça é a criação de penas em benefício de uma entidade privada.

Ao contrário das indemnizações, o produto da aplicação das penas reverte, em princípio, a favor de uma pessoa colectiva pública, e não a favor do lesado. Assim, as quantias pagas a título de multa ou de coima vão para os cofres públicos, e não para os bolsos dos lesados.8 O trabalho prestado por um recluso no cumprimento de uma pena é-o no quadro de uma relação jurídico-administrativa entre ele e a pessoa colectiva pública responsável pelo estabelecimento prisional ou no quadro de uma relação jurídico-laboral entre ele e uma entidade designada por aquela pessoa colectiva pública, e não no âmbito de uma situação de servidão pessoal perante o ofendido.

Assim sendo, quando se permite que o produto de determinada pena reverta a favor de um particular, como acontece com a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 333.º do Código Civil de Macau, está-se a criar um novo tipo de pena – uma pena que, embora sendo pública quanto ao autor, pois que é fixada pelo tribunal, é privada quanto ao beneficiário, já que o produto da sua aplicação

8 Em Portugal, e certamente noutros países também, começou-se a atribuir aos agentes

policiais uma parte do produto das coimas por eles aplicadas por infracções ao Código da Estrada. Esta medida, que visa incentivar os agentes policiais a aplicar coimas, tornando-os partes pessoalmente interessadas nessa aplicação, é um factor extremamente negativo de corrupção da justiça pública. Se se avançasse mais nesta via, o passo seguinte seria, possivelmente, fazer com que as pessoas condenadas a pena de prisão se tornassem escravas, pelo menos a tempo parcial, dos polícias que as tivessem detido ou dos juízes que as tivessem condenado. E, se houvesse pena de morte, atribuir-se-ia parte da herança do condenado aos polícias que o tivessem apanhado, aos juízes que o tivessem condenado e aos carrascos que o tivessem executado. Pensamos que, se se quer melhorar a situação dos agentes policiais, importa, antes de mais, reconhecer-lhes os mesmos direitos de que gozam – ou devem gozar – os outros trabalhadores, nomeadamente o direito de associação sindical, a liberdade de acção sindical e o direito à greve.

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reverte a favor do lesado. A privatização da justiça, a ser levada até ao extremo, significaria

o retorno à vingança privada como forma de reacção às ofensas. Nessa longa caminhada cruzar-nos-íamos com a Arábia Saudita, que ainda se encontra num estádio de publicização da justiça tão atrasado que o julgamento e a punição de muitos tipos de crime competem ao chefe da família. Nesse país, é pouco provável que os tribunais se queixem de estar “inundados de processos menores”. Mas, felizmente, na generalidade dos países ainda não se chegou a tal ponto de privatização da justiça.

No presente artigo não vamos analisar o problema da privatização da justiça em geral, mas apenas o das penas privadas.

2. Tipos de penas privadas Por penas privadas pretendemos designar todos os meios

punitivos cujo conteúdo concreto seja fixado por entidades privadas ou cuja utilização seja feita em benefício de entidades privadas.

Quando dizemos “meios punitivos”, queremos obviamente afastar todas as formas de simples reparação, como a indemnização pelos danos e a restituição por enriquecimento sem causa, e todos os meios de simples reposição da legalidade ou de defesa dos próprios direitos ou interesses legítimos, como sejam a anulação, declaração de nulidade ou resolução de um negócio jurídico e a excepção do contrato não cumprido. Queremo-nos, pois, referir aos meios que tenham um propósito de castigar o infractor, fazendo com que ele sofra mais do que aquilo que seria necessário para tutelar a situação jurídica do lesado. Ou seja, estamo-nos a referir a verdadeiras penas.

Estas penas podem ser privadas quanto ao autor (poderíamos designá-las por “penas juridicamente privadas”) ou quanto ao beneficiário (poderíamos chamá-las de “penas economicamente privadas”).

Penas privadas quanto ao autor são aquelas que, conquanto abstractamente previstas na lei, são fixadas por entidades privadas. Podem ser fixadas por contrato 9 , como as cláusulas penais

9 Parece-nos que só estas são consideradas por Figueiredo Dias e Costa Andrade como penas privadas, já que estes autores adoptam como critério de distinção entre penas públicas e privadas a relação entre a pessoa sancionada e o poder sancionatório. Para eles, são sanções públicas aquelas em que o “sancionado se apresenta perante o poder sancionatório numa relação de sujeição”, e privadas as que são “fundadas na submissão voluntária dos

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compulsórias e os juros convencionais materialmente usurários; podem ser fixadas por estatutos ou regulamentos de entidades colectivas privadas, como as penas aplicadas no âmbito de pessoas colectivas privadas ou de condomínios ou subcondomínios; ou podem ser fixadas por deliberações de órgãos dessas entidades colectivas, dentro de molduras estabelecidas nos respectivos estatutos ou regulamentos.

Penas privadas quanto ao beneficiário são aquelas cuja aplicação é feita em benefício de entidades privadas. Tratando-se de penas de natureza patrimonial, são privadas quanto ao beneficiário aquelas cujo produto da aplicação reverta a favor do património de entidades privadas. As sanções mencionadas no parágrafo antecedente, além de serem privadas quanto ao autor, também o são quanto ao beneficiário, porquanto o produto da sua aplicação reverte para entidades privadas. Mas também estão previstas no Código Civil de Macau penas que, embora fixadas por entidades públicas, são aplicadas em benefício de entidades privadas: a sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º), que é fixada por sentença judicial; as “indemnizações” independentes de qualquer dano (artigos 996.º/1, 1027.º/1, 1044.º/2 e 1379.º/2), cujas fórmulas de cálculo estão fixadas no próprio Código; a “indemnização” agravada no caso de encrave de um prédio (artigo 1443.º/1), cujo valor é fixado pelo tribunal dentro de um limite prescrito pelo Código (artigo 1443.º/2); e ainda o juro legal (artigo 552.º), cuja taxa é fixada em diploma regulamentar (actualmente está fixada na Ordem Executiva n.º 9/2002, e o seu valor é de 6%).10

Pode parecer estranho que juntemos numa mesma figura duas realidades tão distintas. Realmente, uma pena fixada por uma entidade privada e uma pena aplicada em benefício de uma entidade privada parecem mais duas figuras autónomas do que dois tipos diferentes de

interessados ao poder sancionatório” (Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Direito Penal, lições policopiadas, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996, página 160). Presumimos que a “submissão voluntária” a que aludem estes penalistas se reporte ao momento da fixação da pena, e não ao da sua aplicação, e que, portanto, o “poder sancionatório” que eles mencionam se refira ao poder de fixar a sanção e não ao poder de a aplicar. É que qualquer pena, se não for voluntariamente cumprida pela pessoa sancionada, só poderá ser aplicada se for imposta coactivamente por uma autoridade pública, mesmo que ela tenha sido estipulada por contrato. Por isso, a distinção entre pena pública e pena privada não se pode fazer com base na posição que tem a pessoa sancionada no processo de aplicação da pena, mas apenas com base na posição que ela teve no processo de estipulação da pena.

10 Qualificamos aqui o juro legal de pena, porque o seu valor é fixado sem dependência da taxa de inflação. Aliás, o seu valor actual excede largamente o da taxa de inflação. V. infra, 3.2.

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uma mesma figura. Une-as, todavia, um aspecto comum: ambas implicam a

existência de uma relação jurídica sancionatória privada, ou seja, uma relação jurídica de que ambos os sujeitos são entidades privadas e cujo objecto é uma sanção. O facto de uma pena ser privada quanto ao autor implica que a própria estipulação da pena seja feita no quadro de uma relação jurídica privada, em vez de ser determinada por um acto jurídico-público. O facto de uma pena ser privada quanto ao beneficiário implica que o seu cumprimento se processe no quadro de uma relação jurídica privada, cujo conteúdo é, exactamente, a obrigação de cumprir a pena.

A pena privada reflecte, pois, um fenómeno de privatização das penas, ou de insuficiente publicização das mesmas, enquadrando-se, como diz Pinto Monteiro, no contexto mais amplo de “uma certa privatização da justiça”11 e, como dizemos nós, no contexto ainda mais amplo da privatização da economia.

De qualquer modo, todas as penas privadas previstas no Código Civil são aplicadas em benefício de uma entidade privada, não havendo nenhuma que o seja em favor de uma entidade pública. Ou seja, são todas penas economicamente privadas. Por isso, podemos ver nelas mais este aspecto comum e, desse modo, apresentar como mais unitária a figura que é objecto do presente artigo.

Para fazermos uma classificação das penas privadas previstas no Código Civil de Macau, podemos adoptar como critério a fonte jurídica em que o valor ou fórmula de cálculo da pena é fixada. Com base nesse critério podemos distinguir três tipos:

— as penas privadas legais, cujos valores ou fórmulas de cálculo são fixados na lei (indemnização independente do dano e juro legal materialmente usurário);

— as penas privadas judiciais, cujos valores ou fórmulas de cálculo são fixados em sentença judicial (sanção pecuniária compulsória e indemnização agravada em relação ao dano);

— as penas privadas negociais, cujos valores ou fórmulas de cálculo são fixadas em negócios jurídicos (cláusula penal compulsória, juro convencional materialmente usurário, sanções pecuniárias de condomínio ou subcondomínio, etc.).

No presente trabalho, vamos analisar somente as penas privadas

11 Obra citada, página 114, nota de rodapé n.º 250.

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não negociais, isto é, as penas privadas legais e as penas privadas judiciais. Por outras palavras, vamos restringir o âmbito deste trabalho às penas que são públicas quanto ao autor e privadas quanto ao beneficiário.

3. Penas fixadas por lei 3.1. A indemnização independente do dano 3.1.1. A obrigação de indemnizar em geral 3.1.1.1. Significado linguístico e jurídico-positivo da

obrigação de indemnizar Como é sabido, em português “indemnização” significa “acto ou

efeito de indemnizar”, “indemnizar” significa “tornar indemne” e “indemne” (do latim indemnis) significa “sem dano”. “Indemnização” significa, portanto, “reparação dos danos”.12

Na versão chinesa do Código Civil de Macau, a palavra correspondente a “indemnização” é 損害賠償 sunhai peichang, que literalmente significa “compensação dos danos”.13

As disposições do Código que definem o conteúdo da obrigação de indemnizar não traem, antes corroboram com grande fidelidade, o significado etimológico da palavra “indemnização” e a justeza da sua tradução em chinês como 損害賠償 sunhai peichang. Vejamos as principais dessas disposições:

— artigo 556.º: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”;

— artigo 557.º: “A obrigação de indemnização só existe em

12 O mesmo se diga das palavras cognatas existentes noutras línguas, nomeadamente

indemnity e indemnification em inglês, indemnité e indemnisation em francês, indemnización em espanhol e indennità e indennizo em italiano.

13 Refira-se, a título de curiosidade, que têm estrutura semelhante a esta as expressões correspondentes a “indemnização” noutras línguas não latinas: em inglês, compensation of dammages (expressão provavelmente mais usada que indemnity e indemnification); em alemão, Schadensersatz ou Schadenersatz (Schaden significa “dano” e Ersatz significa “substituto” ou “compensação”); em russo, vozmeshchenie ushcherba (vozmeshchenie significa “compensação”, ushcherb(a) significa “(de) dano”.

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relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”;

— artigo 558.º/1: “O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”;

— artigo 560.º/5: “Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”.14

Se remontarmos à origem histórica da obrigação de indemnização, também veremos claramente o nexo entre ela e o dano.

3.1.1.2. Processo histórico de diferenciação entre pena e

indemnização A principal fonte histórica do direito europeu relativa à matéria

dos danos e da responsabilidade civil é a Lex Aquilia, cuja data precisa se desconhece, mas se situa entre os séculos V e III a.C. 15 Essa lei,

14 Estas disposições correspondem aos artigos 562.º, 563.º, 564.º/1 e 566.º/2 do Código Civil

português. O mesmo entendimento da obrigação de indemnizar observa-se nos códigos civis europeus

que mais influenciaram o Código Civil português e, através deste, o Código Civil de Macau. Assim, o Código Civil alemão (BGB), no seu artigo 249, reza o seguinte: “Quem estiver

obrigado a indemnizar, tem de constituir a situação que existiria, se a circunstância que obriga à reparação se não tivesse verificado. Se houver lugar a indemnização por lesão causada a uma pessoa ou pela danificação de uma coisa, o credor pode exigir, em lugar da própria constituição da situação, o montante pecuniário para ela necessário“. A tradução é nossa. O texto original é: “Wer zum Schadensersatze verpflichtet ist, hat den Zustand herzustellen, der bestehen wuerde, wenn der zum Ersatze verpflichtende Umstand nicht eingetreten waere. Ist wegen Verletzung einer Person oder wegen der Beschaedigung einer Sache Schadensersatz zu leisten, so kann der Glaeubiger statt der Herstellung den dazu erforderlichen Geldbetrag verlangen” (utilizamos “ae” para designar “a” com trema e “ue” para designar “u” com trema).

O Código Civil italiano emprega a expressão “ressarcimento do dano” (risarcimento del danno) em várias disposições (artigos 81, 1218, 1223, etc.) correspondentes a outras tantas dos códigos português e macaense onde se utiliza a palavra “indemnização”.

Indo mais atrás, ao Código Civil francês (o Code Napoléon), também verificamos que as diversas disposições concernentes à responsabilidade delitual (artigos 1382 a 1386) e contratual (artigos 1142 a 1155) contêm sempre palavras como “dano” (dommage) e “reparação” (réparation).

15 Segundo J. Cretella Júnior, a lei data dos finais do século V a. C. (Curso de Direito Romano, 17ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1994, página 312). Outro especialista na matéria, Brassielo, atribui-lhe a data de 286 a. C (António Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2.º volume, 1ª edição, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986, página 261).

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proposta por um magistrado de nome Aquílio e aprovada por uma assembleia popular (concilium plebis), representou um importante marco no longo processo histórico de despenalização dos delitos meramente civis.

Em Roma distinguiam-se dois tipos de delitos: os delitos privados16 e os delitos públicos.

Inicialmente, eram delitos privados os que atingiam a pessoa ou os bens de um particular e públicos os que atingiam o Estado, dando os primeiros lugar a processos nos tribunais ordinários e os segundos a processos penais perante tribunais especiais. Nos casos de delitos privados, os tribunais podiam condenar o autor do delito a pagar uma certa quantia à vítima, quantia essa que incluía uma multa e uma compensação pelo prejuízo sofrido.17 Tratando-se de delitos públicos, os tribunais podiam condenar o delinquente a “penas corporais (morte, exílio) ou pecuniárias, revertendo estas ao Estado e não à vítima”.18

Gradualmente, o rol de delitos considerados públicos foi-se alargando, passando a abranger vários factos praticados contra os particulares. A Lei das XII Tábuas (Lex duodecim tabularum), aprovada nos finais do século V a. C., incluía entre os delitos públicos, nomeadamente, o assassinato de parentes próximos (parricidium) e o furto (furtum).19 Esta lei, coroando um movimento de luta do povo romano pela tutela dos seus direitos 20 , veio reflectir, assim, uma evolução na diferenciação entre delitos públicos e delitos privados: os primeiros eram aqueles que, por lesarem bem jurídicos especialmente importantes, públicos ou privados, exigiam a intervenção repressiva do Estado; os segundos eram todos os outros. Isto significa que a lesão de bens privados já podia acarretar a aplicação, pelo Estado, de penas

16 Os delitos privados subdividiam-se, por seu turno, em delitos civis e delitos pretorianos. Os

delitos civis eram julgados e punidos, em primeiro lugar, com base no direito civil (jus civile), e, subsidiariamente, com base no direito pretoriano (jus praetorium ou jus honorarium), ao passo que os delitos pretorianos eram julgados e punidos apenas segundo o direito pretoriano. O direito pretoriano tinha um carácter jurisprudencial - era criado pelo pretor através da confirmação, completação ou correcção do direito civil.

17 J. Cretella Júnior, obra citada, página 305. 18 Obra citada, página 303. 19 Ditlev Tamm, Roman Law and European Legal History, 1ª edição, DJ∅F Publishing,

Copenhaga, 1997, página 157. 20 Assim explica J. Cretella Júnior: “A plebe luta novamente por seus direitos, reclamando

uma lei aplicável a todos, menos sujeita ao traço de incerteza que caracterizava o costume (…) Por proposta do tribuno Tarentílio Arsa, em 462, é nomeada uma comissão encarregada de redigir uma lei. É a famosa Lei das XII Tábuas ou Lex duodecim tabutarum, cuja redação é precedida de muita resistência por parte dos patrícios e do senado” (note-se que o segundo “t” em “tabutarum” é uma gralha, deveria ser um “l”).

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que não consistissem em simples quantias pagas à vítima. Tentando resumir a evolução do direito romano em matéria de

responsabilidade por delitos privados, podemos enumerar as seguintes fases:

- a fase da vingança privada não regulamentada: “a vítima de um delito, ou seus parentes, de armas na mão, procura retribuir o mal pelo mal, sem método, sem sistema, sem proporcionalidade”21;

- a fase da vingança privada regulamentada: a retribuição é feita mediante a aplicação da pena de talião (“olho por olho, dente por dente”), começando-se, assim, a esboçar um princípio de proporcionalidade entre a ofensa e o castigo22;

- a fase da composição voluntária: a vítima do delito pode escolher entre a vingança privada regulamentada e a aplicação de uma pena pecuniária fixada pelas partes;

-a fase da composição legal e obrigatória: “a lei fixa certa soma para cada tipo de delito que o autor é obrigado a pagar, submetendo-se a vítima ao quantum fixado”23, surgindo, assim, a ideia de multa24;

- a fase da repressão pelo Estado: o Estado chama a si a responsabilidade de reprimir os delitos.

A Lei das XII Tábuas, atrás mencionada, situa-se no início da fase da composição legal e obrigatória, mas ainda conserva normas próprias das fases anteriores. Por exemplo, ao permitir matar, em acto de vingança privada, quem cometa um furto nocturno (tábua VIII, parágrafo 12)25, está a acolher uma solução típica da fase da vingança privada não regulamentada. Outro exemplo: ao permitir aplicar a pena de talião a quem cometa a ablação de um membro26, está a sancionar uma reacção típica da fase da vingança privada regulamentada.

21 J. Cretella Júnior, obra citada, página 303. 22 A palavra portuguesa “talião” provém do termo latino “talio”, que por sua vez deriva de

“talis”, que significa “tal”. A ideia é “tal delito, tal vingança” (obra citada, página 304). 23 Ibidem 24 É interessante notar que este tipo de punição já se encontrava no código legislativo de

Eshnuna, um antigo reino situado na Mesopotâmia (no território do actual Iraque) e posteriormente conquistado por Hamurabi, 6.º rei da 1ª dinastia da Babilónia (2003-1961 a.C.). Durante muito tempo, o código de leis escritas mais antigo que se conhecia era o de Hamurabi; hoje é o de Eshnuna, no qual aquele se baseou. No código de Eshnuna, mesmo os crimes mais graves, como os de homicídio e de ofensas corporais, eram punidos com penas meramente patrimoniais.

25 Ditlev Tamm, obra citada, página 159. 26 J. Cretella Júnior, obra citada, página 307.

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Como já dissemos, a Lei das XII Tábuas alargou o leque de delitos públicos, neles incluindo alguns actos lesivos de bens jurídicos privados. A transformação de um delito privado num delito público significava, entre outras coisas, que o produto da pena pecuniária passava a reverter para o Estado, ficando a vítima apenas com o direito à reparação do prejuízo. Parece-nos que esta mudança prefigurava também a progressiva abolição das multas privadas, passando os delitos privados a dar lugar, apenas, à compensação dos danos por eles causados.

Esta tendência ainda não era muito perceptível na Lei das XII Tábuas, pois aí ainda se estipulavam, para diversos delitos privados, consequências inequivocamente punitivas. Um exemplo paradigmático de desproporção entre a sanção e o dano era a redução à escravatura cominada para quem fosse apanhado em flagrante delito de furto (tábua VIII, parágrafo 1427). Mesmo as sanções pecuniárias previstas nessa lei prosseguiam claramente um fim punitivo, e não compensatório, pois o seu valor era fixado ne varietur pela própria lei, e não pelo tribunal em função do dano sofrido.

Na Lex Aquilia, a ideia de compensação já começava a ganhar uma certa predominância. Vejam-se as seguintes normas:

— “Se alguém matar ilegalmente um escravo ou uma criada pertencente a outrem ou uma cabeça de gado quadrúpede, deve ser condenado a pagar ao dono o valor mais elevado que o bem tiver atingido no ano anterior” (1.º capítulo)28;

— “Tratando-se de qualquer outra coisa, afora escravos ou gado que tenham sido mortos, se alguém causar dano a outrem, queimando, quebrando ou estragando ilicitamente um bem seu, deve ser condenado a pagar ao dono, no prazo de 30 dias, todo o valor do dano que lhe houver causado” (3.º capítulo).29

27 Ditlev Tamm, obra citada, página 159. 28 Texto original: “Si quis servum servamve alienum alienamve quadrupedemve pecudem

iniuria occiderit, quanti id in eo anno plurimi fuit, tantum aes dare domino damnas esto”. A versão que apresentamos em português resulta da nossa tradução da versão inglesa contida na obra citada de Ditlev Tamm, página 162: “If anyone kills unlawfully a slave or a servant-girl belonging to someone else or a four footed beast of the class of cattle, let him be condemned to pay the owner the highest value that the property had attained in the preceding year.”

29 Texto original: “Ceterarum rerum praeter hominem et pecudem occisos si quis alteri damnum faxit, quod usserit fregerit ruperit iniuria, quanti ea res erit in diebus trigenta proximis, tantum aes domino dare damnas esto.” A versão que apresentamos em português resulta da nossa tradução da versão inglesa constante da obra citada de Ditlev Tamm: “In

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Estes preceitos definiam um novo tipo de delito civil: o damnum injuria datum30, que consistia em causar um dano a um escravo, criada ou coisa alheios. Como salta à vista, aquelas duas disposições não cominavam para este tipo de delito qualquer pena. Impunham ao autor do delito a obrigação de pagar uma certa quantia ao lesado, mas essa quantia não era mais do que a expressão pecuniária do valor do dano que ele lhe infligira. Essa obrigação servia, portanto, e tão-somente, para reparar o dano, e não para castigar o infractor.

Ganhava, assim, forma aquilo que viria a ser chamado de “responsabilidade aquiliana”: uma responsabilidade delitual civil, tendo por efeito a obrigação de compensar o lesado pelo dano resultante de um delito civil.

A evolução posterior do direito continental europeu veio clarificar a separação entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal e consolidar a articulação entre delito civil e responsabilidade civil, por um lado, e entre delito criminal e responsabilidade penal, por outro.

Os delitos civis deixaram de estar sujeitos ao regime do numerus clausus e passaram, portanto, a abranger todos os actos ilícitos danosos. A reacção a esse tipo de delitos compete ao direito civil e consiste na imposição da obrigação de reparar os danos. Testemunho jurídico-positivo desta evolução é o primeiro código civil da Europa, o Código Civil francês (Code Napoléon), cujo artigo 1382 preceitua:

“Qualquer facto humano que cause dano a outrem obriga aquele por cuja culpa o dano ocorreu a repará-lo.”31

Os delitos criminais continuaram sujeitos ao regime do numerus clausus, só abrangendo, por isso, os factos que a própria lei qualifica de crimes. A reacção a esse tipo de delitos cabe ao direito penal e traduz-se na aplicação de penas, as quais prosseguem fins de retribuição pelo mal praticado, prevenção do crime e ressocialização do delinquente, mas não de enriquecimento da vítima à custa do criminoso. Por isso, havendo lugar à aplicação de uma pena pecuniária, o produto dessa aplicação reverte para o Estado.

the case of all other things apart from slaves or cattle that have been killed, if anyone does dammage to another by wrongfully burning, breaking or spoiling his property, let him be condemned to pay to the owner whatever the dammage shall prove to be worth in the next thirty days”.

30 J. Cretella Júnior, obra citada, página 312. 31 A tradução é nossa. O texto original é: “Tout fait quelconque de l′ homme, qui cause à

autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer.”

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É claro que, em virtude do numerus apertus dos delitos civis, todos os delitos criminais, na medida em que produzam dano, também constituem delitos civis, pelo que também podem originar obrigações pecuniárias a favor da vítima; só que essas obrigações não visam punir o criminoso, mas apenas ressarcir a vítima do dano sofrido.

Constatamos, assim, uma progressiva publicização das penas, a qual nos permitiria fazer a seguinte proclamação: ao lesado, a indemnização; ao Estado, a pena.

É claro que esta evolução não foi assim tão linear. Não podemos ignorar, por exemplo, que, nos modos de produção esclavagista e feudal, o não-pagamento de uma dívida podia originar a redução do devedor à escravatura e à servidão, respectivamente, e que o dono do escravo ou senhor do servo era, precisamente, o credor.

Mas depois, com a abolição da servidão feudal, o não-pagamento das dívidas passou a ser punido com a pena de prisão, o que, apesar de ainda ser cruel e injusto, não deixou de constituir um passo em frente no caminho da publicização das penas e da atenuação do desequilíbrio entre credor e devedor.

Essa publicização viria, aliás, a contribuir para a própria abolição da punição dos devedores com penas pessoais. Na verdade, enquanto que a escravização e a redução à servidão dos devedores aproveitava economicamente aos credores, porque estes passavam a poder explorá-los em seu benefício, o encarceramento dos devedores em prisões estatais, pelo contrário, não só não beneficiava os credores, como ainda onerava o Estado e, por essa via, a sociedade no seu conjunto. Não havia, por isso, nenhum interesse económico suficientemente forte que se opusesse à luta dos movimentos humanistas contra a prisão por dívidas. Se esta luta nem sempre vingou, não terá sido, parece-nos, por interesses económicos directos de determinado grupo social32, mas pela influência política do espírito ferozmente repressivo que normalmente acompanha esses interesses.

3.1.1.3. Fundamento filosófico da obrigação de indemnizar Em termos filosóficos, a obrigação de indemnizar alguém pelos

danos a ele causados pode-se fundamentar no valor da justiça, a “estrela polar da ideia de direito”, na bela expressão de Radbruch.

32 A não ser quando a gestão das prisões é concessionada a empresas privadas e a prisão se

torna, assim, um negócio. É o que já se começa a verificar nos Estados Unidos.

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Para sustentarmos esta fundamentação axiológica, poderíamos começar por invocar a concepção de Aristóteles segundo a qual, nas relações entre indivíduos, a justiça reside na igualdade entre as respectivas prestações (justiça comutativa). É certo que não é assim tão fácil extrair daqui o princípio de que quem causa dano a outrem o deve compensar, pois a igualdade referida por Aristóteles também poderia ser conseguida através da aplicação da pena de talião, que é uma forma de retribuição igualitária do dano. Podemos, por isso, considerar que a mera ideia de igualdade entre as partes não é suficiente para impor a obrigação de reparar os danos. Mas ela é suficiente, pelo menos, para ilegitimar a imposição, ao lesante, da obrigação de pagar ao lesado mais do que o valor real do dano, porquanto tal imposição levaria a um enriquecimento do lesado à custa do lesante, o que se traduziria numa nova situação de desigualdade entre as partes. Por outras palavras, tal imposição levaria a uma situação de enriquecimento sem causa.

Consideramos, portanto, que a ideia aristotélica da justiça comutativa pode não ser suficiente para fundamentar a obrigação de indemnizar, mas é suficiente para ilegitimar o enriquecimento sem causa e, por essa via, limitar a obrigação de indemnizar ao valor real do dano.

De grande utilidade para o desenvolvimento histórico do conceito de justiça e para a fundamentação da obrigação de indemnizar nesse valor são as seguintes proclamações de Ulpiano (Ulpianus), famoso jurisconsulto romano:

— “A justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o que lhe é devido”33;

— “São os seguintes os preceitos do direito: viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que lhe pertence.” 34 35

33 Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi. 34 Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. 35 O direito aqui referido por Ulpiano é o direito natural, o qual, para a generalidade dos

jusnaturalistas, e nomeadamente para o próprio Ulpiano, exprime a justiça absoluta. Por isso, os “preceitos do direito” aqui enumerados pretendem ser, exactamente, o resultado de uma dedução normativa feita a partir da ideia de justiça. Para demonstrarmos a identificação que então se fazia entre a justiça e o direito natural, citamos aqui umas frases de Cícero (106-43 a. C.), um dos mais influentes jusnaturalistas romanos, extraídas da sua obra Das Leis (De Legibus): “A lei é a suma razão, inserida na natureza, que ordena as coisas a fazer e proíbe as contrárias. (…). Com efeito, não há senão um só direito, que vincula a sociedade dos homens e que constitui o fundamento de uma única lei, a qual consiste na justa razão, tanto no que impõe como no que proíbe. (…). Não haverá justiça se ela não se fundar na natureza e se, estabelecida apenas na base de um interesse, um outro interesse puder destruí-la. (…). A lei consiste na distinção entre as coisas justas e as

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Destas formulações, a mais frequentemente citada a propósito do conceito de justiça é o último dos “preceitos do direito” – suum cuique tribuere. Ele pode ser utilizado para sustentar a obrigação de indemnizar, pois dele se deduz facilmente que quem tirar algo a outrem lho deve devolver – ou em espécie, ou em equivalente. Além disso, também serve, tal como a ideia aristotélica da justiça comutativa, para limitar o âmbito dessa obrigação, já que constranger o lesante a pagar ao lesado mais do que o valor do dano significaria tirar ao primeiro aquilo que lhe pertence para dar ao segundo algo que não lhe é devido. Nesta função, aliás, o preceito suum cuique tribuere é acompanhado pelo preceito honeste vivere: ambos fundamentam a proibição do enriquecimento sem causa. No entanto, esses preceitos, por si só, não impediriam necessariamente que, em alternativa à indemnização, se aplicasse a pena de talião.

Para fundamentar a rejeição absoluta da pena de talião, o preceito mais importante é o segundo: alterum non laedere. É o ingrediente que faltava na concepção de justiça para, no domínio dos delitos civis, entre duas soluções formalmente igualitárias – a pena de talião e a reparação do dano –, excluir definitivamente a primeira e adoptar definitivamente a segunda. A esta evolução filosófico-jurídica talvez não tenha sido alheia a generosa ideia de misericórdia, proclamada e defendida por muitos cristãos, embora brutalmente ofendida pela própria Igreja.

Da combinação destes preceitos resulta, em suma, a seguinte regra: quem lesar outrem, privando-o de determinado valor que lhe pertence, deve devolver-lhe esse valor, mas não pode, ele próprio, ser lesado em mais do que o estritamente necessário para essa devolução.

Apesar do relevo que se tem dado, e que é justo dar-se, ao preceito suum cuique tribuere como comando fundamental da justiça, é legítimo considerá-lo insuficiente para se determinar, em concreto, o que é justo e o que é injusto. Escutemos aquilo que diz, a este propósito, Cabral de Moncada36:

injustas, expressa em conformidade com a natureza antiquíssima e primordial do mundo, sobre a qual se estabelecem as leis dos homens (…).” Podemos ainda invocar a relação etimológica existente entre as palavras latinas jus (direito) e justitia (justiça), relação que é em geral reconhecida, apesar de subsistirem dúvidas sobre qual de entre essas duas palavras deriva da outra.

36 Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, 2.º volume, Coimbra Editora, página 289.

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“(…) trata-se dum valor puramente formal, susceptível de ser invocado por todos e colocado ao serviço de todos os conteúdos sociais. Há uma justiça capitalista e uma justiça comunista, uma justiça democrática e uma justiça aristocrática, e até uma justiça dos escravos e outra dos senhores. (…). Reduzido o valor formal justiça àquela fórmula já nossa conhecida do “seu a seu dono” e de “a cada um como lhe pertence”, ficaremos sempre sem saber o que afinal devemos fazer, em cada caso, enquanto, com base noutros critérios, não soubermos precisamente o que pertence a cada um no receber, dar ou fazer. Teremos na mão uma medida, mas não sabemos ainda o que vamos medir com ela.”

Neste trecho, o jusfilósofo português refere a necessidade de se recorrer a “outros critérios” para se saber “precisamente o que pertence a cada um no receber, dar ou fazer”. Ora, há uma dupla bem conhecida de filósofos que, apesar de apoucados por Cabral de Moncada, nos dão esses critérios: Karl Marx e Friedrich Engels.

Para eles, o valor da justiça não tem um conteúdo eterno, mas antes um conteúdo historicamente determinado. Assim, ele tem como expressão:

— no modo de produção socialista, o princípio “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho”;

— no modo de produção comunista, o princípio “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”.

É claro que, como a sociedade comunista começará a ser edificada ainda no estádio do socialismo, a sociedade socialista já há-de conter, e irá acumulando, características da sociedade comunista, pelo que, na realização do valor da justiça, já irá atender às necessidades, tanto naturais como civilizacionais, das pessoas, no quadro de um sistema de segurança social cada vez mais abrangente.

Do mesmo modo, como a sociedade socialista tem de começar a ser construída ainda no seio do modo de produção capitalista, uma sociedade capitalista em fase de transição para o socialismo deve dar primazia, na realização da justiça, ao trabalho. Guiando-se por teorias do valor dotadas de fundamento científico (desenvolvidas sucessivamente por Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, e certamente por outros que não conhecemos), e deixando de se subordinar a concepções ideológicas que, “vendo” valor económico jorrar do capital e até de actividades puramente especulativas, atribuem igual legitimidade aos rendimentos do trabalho e aos

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rendimentos do capital, o direito de uma sociedade em fase de transição para o socialismo deverá utilizar o valor do trabalho prestado como critério predominante de concretização do preceito suum cuique tribuere. E deverá, obviamente, considerar a exploração do trabalho alheio como contrária ao honeste vivere, o primeiro dos praecepta juris, segundo Ulpiano.

Aplicando estas ideias à obrigação de indemnizar, permitimo-nos dizer que, numa sociedade em fase de transição para o socialismo, a obrigação de indemnizar poderá não existir nos casos de nacionalização, expropriação, requisição ou ocupação de bens, se estes tiverem sido adquiridos através da apropriação gratuita do produto do trabalho alheio. É que, neste caso, esses bens não se considerarão pertença (suum) do dono, mas antes bens dos quais ele se apropriou desonestamente (num inhoneste vivere).

Esta alusão a Marx e Engels serve para dar um exemplo de critérios de densificação do preceito suum cuique tribuere. Como observa Cabral de Moncada, se não se recorrer a algum critério que permita fazer esta densificação, a justiça torna-se um valor puramente formal. Este formalismo axiológico desembocará, por sua vez, no positivismo jurídico, considerando-se o “devido a cada um” simplesmente aquilo que a lei positiva disser que é devido a cada um37. Adoptando-se esta posição, será necessário reconhecer que, de acordo com o direito actual, o “devido a cada um” inclui não apenas aquilo que lhe tenha advindo como rendimento do seu trabalho ou como bem nele sub-rogado, mas também aquilo que lhe tenha advindo a outros títulos, nomeadamente como rendimento do capital ou como bem nele sub-rogado. Mas, se a lei for alterada no sentido de tornar ilegítimos os rendimentos do capital, será forçoso reconhecer, nesse momento,

37 Esta preocupação também é revelada por Paulo Cunha, que alerta para o perigo de a

interpretação daquele preceito redundar num “titularismo positivista”. Mas, para este jusfilósofo português, a chave do problema radica na palavra “vontade” contida na definição de justiça. Diz ele: “(…) não pode olvidar-se que tal atribuição corresponde a uma constante e perpétua vontade, que é a vontade da Iustitia (…), sempre por achar e sempre sublevadora da alma” (Paulo Ferreira da Cunha, Anagnose Jurídica – Releitura de três brocardos de Ulpianus e de outros textos clássicos). Salvo o devido respeito, parece-nos que a ênfase no elemento “vontade” pode ser útil para a definição da justiça subjectiva (justiça como virtude e, portanto, como valor ético), mas não conduz a qualquer avanço sensível na definição da justiça objectiva (justiça como valor jurídico), pois que esta tem de se traduzir sempre em soluções exteriores, não podendo limitar-se a processos interiores. Além disso, mesmo no plano da justiça subjectiva, se se entender que a vontade justa de cada pessoa é formada racionalmente, e não de um modo emotivo, será necessário reconhecer que ela, para ter essa vontade, precisará ainda de, previamente, recorrer a determinados critérios para saber o que é que realmente é devido a cada um.

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que esses rendimentos são ilegítimos e que, portanto, a expropriação desses rendimentos ou dos bens neles sub-rogados não dará lugar a qualquer indemnização. Cohérence oblige… ou, dizendo o mesmo na nossa língua, a coerência a tanto obriga!

Avançando um pouco mais nesta pequena análise do conceito de justiça, fundamento e limite da obrigação de indemnizar, devemos ainda abordar o problema que surge quando se defrontam dois “devidos”. Aqui já não se trata de saber o que é que é devido a cada um, ou por que razão o é, mas de saber o que se faz quando aquilo que é devido a um só lhe pode ser dado se se tirar de outrem algo que também lhe é devido. Formulando este problema em termos mais simples, trata-se da questão de saber como se resolvem os conflitos de direitos.

Esta questão pode-se desdobrar em duas: conflito concreto de direitos e conflito abstracto de direitos.

O primeiro é o que surge em situações concretas de aplicação da lei, quando o exercício de um direito de uma pessoa exige o sacrifício de um direito, idêntico ou diferente, de outra pessoa. Este conflito é regulado pelo artigo 327.º do Código Civil, que consagra os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.

O segundo é aquele com que depara o legislador na elaboração de normas que, para tutelarem determinado direito, têm de restringir outro direito. Até 20 de Dezembro de 1999, este tipo de conflito estava regulado em Macau através do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece, em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias, os importantes princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e salvaguarda do núcleo essencial, subordinando-se, assim, a uma ideia de máxima restrição das restrições aos direitos. Hoje, não há em Macau nenhuma regulação tão clara deste problema, mas deixaremos a questão para o ponto 5.

Os princípios atrás enumerados – necessidade, adequação, proporcionalidade e salvaguarda do núcleo essencial – podem ser vistos como decorrentes da combinação dos preceitos suum cuique tribuere e alterum non laedere: por força do primeiro, tem de se garantir a cada pessoa a possibilidade de gozar e exercer os respectivos direitos em toda a sua plenitude; em virtude do segundo, é preciso impedir o titular do direito de, no exercício desse direito, prejudicar os outros, donde a necessidade de restringir, em certa medida, esse direito; voltando depois a analisar o primeiro preceito já com o conhecimento do segundo, vemos que, mesmo havendo lugar à

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restrição do direito imposta por este, é necessário ainda respeitar esse direito, pelo que a própria restrição também tem de ser restringida – tem de ser reduzida ao mínimo que for necessário para, de forma eficaz e equilibrada, evitar que outras pessoas sejam prejudicadas.

Aqueles quatro princípios representam um importante desenvolvimento na densificação da ideia de justiça e são, por conseguinte, importantes alicerces teóricos para a construção de um sistema justo de reacção jurídica aos delitos. No assunto específico que neste momento nos ocupa – a reacção jurídico-privada aos delitos civis -, eles constituem mais um estribo para se circunscrever essa reacção à reparação dos danos, excluindo-se todas as penas privadas e, nomeadamente, as falsas indemnizações.

3.1.1.4. Conteúdo da obrigação de indemnizar De acordo com a doutrina consagrada no artigo 556.º do Código

Civil de Macau, a obrigação de indemnizar tem por conteúdo o dever de “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Esta norma é igual à que lhe serve de fonte imediata – o artigo 562.º do Código Civil português de 1966. E esta, que também não é original, teve por fonte a primeira parte do artigo 249 do Código Civil alemão.38

Como é sabido, a operação de reconstituição imposta pelo artigo 556.º compreende duas parcelas:

— a reposição daquilo que o lesado tinha à data do evento danoso e que perdeu como consequência desse evento (dano emergente ou damnum emergens);

— a prestação daquilo que o lesado não tinha à data do evento danoso, mas teria entretanto adquirido, se esse evento não tivesse ocorrido (lucro cessante ou lucrum cessans).

É o que, reproduzindo o artigo 564.º/1 do Código Civil português, estabelece o artigo 558.º/1 do Código Civil de Macau:

“O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.”

Fundando-se a obrigação de indemnizar na ideia de justiça e, nomeadamente, no preceito suum cuique tribuere, a eles será

38 Esta disposição está transcrita no ponto 3.1.1.1.

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necessário recorrermos para determinarmos o conteúdo de cada uma das parcelas da obrigação de indemnizar, ou seja, a extensão dos danos emergentes e dos lucros cessantes que realmente devam relevar para efeito da obrigação de indemnizar.

Para ilustrarmos este raciocínio, vamos dar o exemplo da expropriação de uma empresa e da indemnização devida por essa expropriação39, e vamos aceitar que é a própria lei positiva que nos fornece os critérios para determinarmos aquilo que é devido a cada um.

Assim, se a expropriação for feita num quadro jurídico que reconheça a legitimidade dos rendimentos de capital, o valor da indemnização devida aos titulares da empresa deverá incluir, por um lado, todos os investimentos que eles tiverem feito com bens seus, ainda que estes tenham sido obtidos como – ou com - rendimentos de capital, e, por outro lado, todos os lucros que eles iriam auferir até ao fim das suas vidas se a empresa não tivesse sido expropriada. E isto, porque todos esses valores são abrangidos pela expressão “o que lhe é devido”, contida no preceito suum cuique tribuere.

Se, pelo contrário, a expropriação for feita num quadro jurídico que considere ilegítimos os rendimentos de capital, tais valores já não se poderão considerar abrangidos por aquela expressão e, por conseguinte, não deverão ser atendidos na fixação do valor da indemnização. Neste caso, só deverão ser atendidos os investimentos feitos com bens obtidos pelo próprio trabalho, ou por outro meio que a lei eventualmente considere legítimo (ou seja, que considere compatível com o preceito honeste vivere). Uma indemnização em excesso – isto é, uma indemnização que excedesse o valor dos danos emergentes e dos lucros cessantes legítimos - implicaria uma negação da justiça comutativa na relação jurídico-económica entre o expropriante e o expropriado, o que se traduziria num favorecimento do segundo e numa penalização do primeiro. E, como o expropriante é uma entidade pública, cujo património é pertença de todo povo, quem sairia penalizado seria, afinal, todo o povo. Esta penalização de todo o povo em benefício do expropriado colidiria, por sua vez, com a justiça distributiva. Além disso, aquela indemnização em excesso significaria atribuir ao expropriado uma quantia correspondente a rendimentos que recebeu ou viria a receber em violação do preceito honeste vivere,

39 Até agora, temos falado sempre da obrigação de indemnizar por actos danosos ilícitos, mas,

como se sabe, também pode haver lugar a essa obrigação em virtude de actos danosos lícitos, desde que a lei a imponha. A expropriação é um desses actos (artigo 1234.º do Código Civil de Macau).

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interpretado à luz do novo sistema. Significaria, portanto, tutelar uma actividade contrária a um dos mandamentos da justiça.

Refira-se ainda, para terminar esta parte relativa ao conteúdo da obrigação de indemnizar, que, se não for possível a reconstituição natural da situação actual hipotética, ou se essa reconstituição for demasiado onerosa para o devedor, a indemnização deverá ser feita em dinheiro (artigo 560.º/1 e 3). Se a reconstituição natural for possível e não for demasiado onerosa para o devedor, mas não reparar integralmente os danos, é fixada em dinheiro a indemnização correspondente à parte dos danos por ela não coberta (artigo 560.º/2).

3.1.2. Casos de indemnização independente do dano Analisemos as seguintes disposições do Código Civil de Macau

(os sublinhados são nossos):

Artigo 996.º

(Mora do locatário)

1. Constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a metade do montante que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento; se o atraso exceder 30 dias, a indemnização referida é aumentada para o dobro.

2. …

3. Enquanto não forem cumpridas as obrigações a que o n.º 1 se refere, o locador tem direito a recusar o recebimento das rendas ou alugueres seguintes, os quais são considerados em dívida para todos os efeitos.

4. …

Artigo 1027.º

(Indemnização pelo atraso na restituição da coisa)

1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de

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indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.

2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro; à mora do locatário não é aplicável a sanção prevista no artigo 333.º.40

3. Fica salvo o direito do locador à indemnização dos prejuízos excedentes, se os houver.

Artigo 1044.º

(Revogação unilateral por parte do arrendatário)

1. …

2. Salvo estipulação em contrário, o direito à revogação unilateral efectuada nos termos do número anterior dá ao senhorio direito, a título de compensação, a 1 mês de renda; a indemnização nunca pode ser estipulada em montante superior a 2 meses de renda, sob pena de redução a este valor.

Artigo 1379.º

(Pagamento das prestações anuais)

1. …

2. Havendo mora no cumprimento, o proprietário tem o direito a uma indemnização igual a metade do que for devido; se o atraso exceder 45 dias, a indemnização é aumentada para o dobro.

3. …

4. À mora no cumprimento não pode ser aplicada a sanção prevista no artigo 333.º.41

5. …

40 Trata-se da sanção pecuniária compulsória. 41 Idem.

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Nas disposições acima reproduzidas, vemos estatuídas obrigações de “indemnização” cujo montante é independente do valor do dano. Mais: a própria imposição da obrigação de indemnizar, em cada caso concreto, é independente da verificação, nesse caso, de um dano. Não serão, então, estas “indemnizações” verdadeiras penas?

3.1.3. Natureza jurídica da indemnização independente do

dano Vejamos como justificam Antunes Varela e Pires de Lima a

indemnização estatuída no n.º 1 do artigo 1041.º do Código Civil português, análogo ao n.º 1 do artigo 996.º do Código de Macau42:

“Esta indemnização, correspondente à falta de cumprimento pontual da principal obrigação contraída pelo locatário, representa uma forma criteriosa de conciliação entre o interesse do locador ao rendimento periódico do prédio e o interesse, individual e colectivo, da estabilidade da habitação. A solução vale hoje, porém, para todo o instituto da locação (…).”43

Estes egrégios civilistas consideram que a imposição desta indemnização é uma forma “criteriosa” de conciliar os interesses em jogo, mas o facto é que ela quebra completamente o princípio da igualdade, ínsito na ideia de justiça.

Já vimos que a justiça se projecta nas relações bilaterais como igualdade entre as partes, nela se compreendendo a igualdade aritmética entre o valor das prestações realizadas por cada uma (justiça comutativa). A justiça e a igualdade numa relação bilateral implicam, portanto, que nenhuma das partes enriqueça à custa da outra ou empobreça em seu benefício.

Daqui também já deduzimos que a obrigação de indemnizar só deve existir em caso de dano e que deve ter por extensão o valor desse dano, porque, se existir sem o dano ou se o seu valor exceder o do dano, estará a provocar o enriquecimento do credor à custa do devedor, e, se o seu valor ficar aquém do do dano, estará a provocar o

42 Análogo, mas não igual, pois é ainda mais severo. Eis a redacção da norma: “Constituindo-

se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual ao dobro do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento.”

43 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1986, página 399.

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empobrecimento do credor em benefício do devedor. Ora, a norma constante do n.º 1 do artigo 996.º, ao impor uma

obrigação de indemnizar independente de qualquer dano, origina, necessariamente, situações de desequilíbrio entre o locador e o locatário, normalmente em detrimento deste último, pois que é pouco provável que o dano sofrido pelo locador exceda a indemnização imposta. Este desequilíbrio é patente, mesmo que nos atenhamos a uma igualdade fictícia entre o interesse do locador e o interesse do locatário. Se abandonarmos esta ficção e atendermos ao facto de que o interesse do locatário é, normalmente, muito mais vital que o do locador, o desequilíbrio revelar-se-á em toda a sua enormidade.

Podemos, por isso, dizer que a solução adoptada pelo legislador é “criteriosamente” injusta.

Este juízo valorativo é extensivo, com o mesmo fundamento, às obrigações de indemnização estatuídas nas restantes normas supra-reproduzidas.

Perante o exposto, não é difícil responder à questão técnico-jurídica colocada – a de saber se estas “indemnizações” são verdadeiras indemnizações ou se são penas impropriamente chamadas de indemnizações. Se elas são independentes da ocorrência de qualquer dano, não podem ser devidas a título de compensação; são, sim, um presente para o credor e um castigo para o devedor. São, por conseguinte, penas, e não indemnizações. Mais precisamente, são penas privadas, na medida em que o produto da sua aplicação reverte a favor de uma entidade privada.

Estas falsas indemnizações assemelham-se bastante àquilo que o Código Civil designa de sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º). Aliás, no fundo, essas “indemnizações” também são, em princípio, sanções pecuniárias compulsórias: são sanções, como acabámos de ver, são normalmente pagas em dinheiro e têm o mesmo escopo compulsório-punitivo que as sanções reguladas no artigo 333.º. A principal diferença reside no modo de fixação do quantum da pena: no caso das indemnizações independentes do dano, é determinado segundo uma fórmula fixada na lei; no caso da sanção pecuniária compulsória, é fixado pelo tribunal, independentemente de qualquer fórmula ou limite legal. Podemos, por isso, dizer que a indemnização independente do dano é uma sanção pecuniária compulsória legal, ao passo que a figura regulada no artigo 333.º é uma sanção pecuniária compulsória judicial.

Tanto as falsas indemnizações como a sanção pecuniária compulsória podem ser incluídas naquilo que Pinto Monteiro designa

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de meios de coerção privada. Este autor, seguindo uma classificação utilizada por Gerbay e Calvão da Silva, distingue medidas de coerção ofensiva e medidas de coerção defensiva. Nas primeiras inclui a cláusula penal, o sinal, a cláusula resolutiva expressa e os juros de mora agravados. Como só inclui neste rol as sanções estabelecidas pelas próprias partes (penas privadas quanto ao autor), não menciona as falsas indemnizações nem a sanção pecuniária compulsória (que são penas públicas quanto ao autor e privadas quanto ao beneficiário). Reconhece, todavia, que “vários preceitos legais, dispersos pelo Código Civil, revelam, igualmente, uma função sancionatória”. 44 Juntando a esta lista de meios de coerção privada as penas privadas quanto ao beneficiário, poderemos nela incluir as sanções pecuniárias compulsórias legais e judiciais.

Convém esclarecer aqui a relação entre “coerção” (ou “compulsão”) e “punição”.

Apesar de as medidas de coerção acima mencionadas serem normalmente qualificadas de “compulsórias” (v.g. cláusula penal compulsória, sanção pecuniária compulsória), e não de “punitivas”, o seu efeito é primariamente punitivo, só sendo compulsório por derivação. Segundo uma velha máxima, “ninguém pode ser directamente coagido a uma acção” (nemo praecise potest cogi ad factum).

Assim, a compulsão do devedor, se não for uma autocompulsão ditada por um imperativo de consciência que lhe prescreva uma certa conduta como moralmente obrigatória, independente de qualquer interesse (imperativo categórico), será simplesmente determinada pela consciência de que tem interesse em evitar a aplicação da sanção (imperativo hipotético).

No primeiro caso, nem sequer é necessária a estatuição, legal ou convencional, da sanção, pois a conduta é absolutamente independente dela.

No segundo, é a antevisão da punição que, eventualmente, “compelirá” o devedor a comportar-se licitamente, já que a estatuição sancionatória em si dificilmente seria capaz de, qual rajada de vento, arremessar o devedor para tal comportamento.

Vemos, portanto, que a estatuição de qualquer uma das sanções supra mencionadas só é compulsória porque é punitiva.

44 António Pinto Monteiro, obra citada, páginas 109 e 110, nota de rodapé n.º 238.

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Isto não significa, porém, que, em geral, uma estatuição só possa ser compulsória se for punitiva. A imposição da obrigação de indemnizar também poderá ter um efeito compulsório, e tê-lo-á seguramente se essa indemnização for consideravelmente mais onerosa para o devedor que o próprio cumprimento do dever (por exemplo, a perspectiva de ter de pagar a reparação da casa do vizinho pode “compelir” psicologicamente uma pessoa a mandar consertar um cano roto da sua própria casa, pois custar-lhe-á menos mandar fazer esta pequena obra do que pagar a reparação da casa do vizinho).

Por isso, podemos dizer que o efeito compulsório tanto pode derivar de uma estipulação punitiva (cujo efeito imediato é a punibilidade), como de uma estipulação meramente compensatória (cujo efeito imediato é a compensabilidade).

Assim sendo, o que distingue a cláusula penal compulsória da cláusula penal compensatória não é o efeito compulsório da primeira, mas o seu efeito punitivo. Analogamente, o que distingue a sanção prevista no artigo 333.º da obrigação de indemnizar não é o efeito compulsório da primeira, mas o seu efeito punitivo.

Para terminar esta parte, refira-se que, no caso do artigo 996.º, acima reproduzido, o simples incumprimento da pena de “indemnização” pode gerar novas penas de “indemnização”, já que o n.º 3 dá ao credor o direito de recusar as rendas ou alugueres seguintes, considerando-se estes também em atraso e dando este atraso origem a uma nova pena de “indemnização”. É uma punição em espiral.

3.1.4. Cumulação com outras penas privadas Reproduzimos há pouco os artigos 1027.º e 1379.º, que impõem

“indemnizações” independentes de danos. Uma das particularidades desses artigos é proibirem a aplicação, às situações de mora reguladas nesses artigos, da sanção pecuniária compulsória judicial prevista no artigo 333.º (n.º 2 do artigo 1027.º e n.º 4 do artigo 1379.º).

Perante estas normas, formulamos a seguinte pergunta: a proibição delas constante é uma excepção à regra geral de cumulatividade entre indemnização e sanção pecuniária compulsória judicial, expressa no artigo 333.º/1, ou, pelo contrário, a revelação de um princípio geral de não-cumulatividade entre sanções pecuniárias compulsórias, ou, mais latamente, de não-cumulatividade entre penas privadas cujo beneficiário seja o mesmo?

Esta última solução parece-nos a menos má, pois evita a

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aplicação cumulativa de sanções de objectivo coincidente. Ela parece também encontrar um certo apoio no n.º 4 do artigo

333.º, que proíbe a cumulação da sanção pecuniária compulsória judicial com uma cláusula penal compulsória estabelecida com os mesmos fins. Note-se que a sanção imposta pela cláusula penal compulsória, se for pecuniária, também é um tipo de sanção pecuniária compulsória - é uma sanção pecuniária compulsória contratual. Isto significa que aquilo que o n.º 4 do artigo 333.º proíbe é mais uma forma de cumulação de sanções pecuniárias compulsórias, e, portanto, mais uma forma de cumulação de penas privadas.

Apesar deste esteio, não ousamos afirmar que o Código contenha um princípio geral de exclusão da cumulatividade entre sanções pecuniárias compulsórias ou entre penas privadas. Preferimos deixar a questão em aberto.

Não deixamos, todavia, de realçar que, se a opção do legislador reflectir um princípio geral de não-cumulatividade, ela confirma a natureza punitiva da “indemnização” prevista nas disposições em análise, pois só essa natureza justificaria a proibição da cumulação. As simples compensações não precludem nunca a aplicação de penas, como se pode depreender do n.º 1 do artigo 333.º, da primeira parte do n.º 3 do artigo 799.º e da interpretação a contrario sensu do n.º 2 do artigo 800.º.

3.2. Juro legal materialmente usurário O juro, seja legal, seja convencional, pode ter duas finalidades ou

efeitos: uma finalidade ou efeito compensatório e uma finalidade ou efeito punitivo.

Como é lógico, o juro só é estritamente compensatório se o seu valor for igual ao do dano. Nesse caso, o juro será um modo de indemnizar o credor, e não um modo de este enriquecer à custa do devedor. Não será, portanto, um juro real, mas um juro meramente nominal, e estará certamente fora do alvo das críticas que, ao longo da história, os cristãos, os muçulmanos e os comunistas justificadamente dirigiram contra o juro.

Se, pelo contrário, o juro for de valor superior ao do dano, resultará no enriquecimento do credor à custa do devedor e, correlativamente, no empobrecimento deste em benefício daquele. Para este, o juro representará, pois, uma pena.

Foi assim que, na Idade Média, os legistas da escola de Bolonha

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fizeram uma distinção entre “interesse” e “juro” (usurae). O primeiro, consistindo na simples reparação do dano causado ao credor pela mora do devedor, era considerado legítimo. O segundo, originando um lucro para o credor, era tido por ilegítimo.45 Hoje, porém, o termo “juro” é utilizado para designar ambas as figuras.

Uma das funções do juro é a de indemnização pela mora no cumprimento de obrigações pecuniárias. Assim dispõe o n.º 1 do artigo 795.º:

“Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.”

Trata-se dos juros de mora (ou juros moratórios). E qual é o seu montante? A isso responde o n.º 2 do mesmo artigo:

“Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal.”

Esta disposição reflecte, aliás, a regra geral constante do artigo 552.º/1, segundo a qual “os juros (…) estipulados sem determinação de taxa são fixados por portaria do Chefe do Executivo.”

Estes juros valem como montante mínimo da indemnização, e não como montante ne varietur, pois o n.º 3 do artigo 795.º diz o seguinte:

“Pode, no entanto, o credor provar que a mora lhe causou dano consideravelmente superior aos juros referidos no número anterior e exigir a indemnização suplementar correspondente.”

Se, pelo contrário, o valor do dano se quedar aquém do juro, a “indemnização” devida será, mesmo assim, o juro. Mas a parte desse juro que excede o valor do dano é uma pena, e não uma indemnização.

O valor do dano emergente da mora no cumprimento de uma obrigação pecuniária coincide, regra geral, com o valor real que o montante em dívida perdeu em consequência da inflação. Por isso, para ter um efeito meramente compensatório, a taxa de juro deveria, em princípio, coincidir com a taxa de inflação.

Para tanto, seria necessário que, por um lado, a taxa de juro legal fosse fixada periodicamente com valor equivalente ao da taxa de inflação prevista para o período correspondente (não haveria, portanto, juro legal real), e, por outro lado, que a taxa de juro convencional só pudesse exceder a taxa de juro legal na medida do estritamente

45 António Pinto Monteiro, obra citada, página 374.

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necessário para compensar danos não cobertos pela taxa legal (v.g. desvalorização cambial lesiva para o credor). Ora, nada disto acontece.

Quanto ao juro legal, o valor da sua taxa era anteriormente de 9,5% (artigo 1.º da Portaria n.º 330/95/M, de 26 de Dezembro). Quando este valor foi fixado, em 1995, a taxa de inflação rondava os 9%46, pelo que a taxa de juro legal real era de apenas 0,5%. Mas, nos anos seguintes, a taxa de inflação caiu a pique, tendo chegado aos 0,2% em 199847. Depois disso caiu em ainda mais, passando a ser ligeiramente negativa. Esta situação, aliada à variação cambial positiva da pataca, tem favorecido amplamente os credores de juros, nomeadamente as instituições de crédito, ao mesmo tempo que tem penalizado fortemente os devedores de juros, em especial os trabalhadores, cujos salários têm estado muito longe de aumentar 9,5% ao ano.

Recentemente, foi publicada uma ordem executiva que reduziu o valor da taxa de juro legal para 6%. Trata-se da Ordem Executiva n.º 9/2002, publicada em 1 de Abril de 2002. Este diploma, publicado no Dia das Mentiras, é, realmente, de uma fiabilidade algo questionável, já que assume uma forma jurídica inadequada. O artigo 552.º/1 do Código Civil manda fixar a taxa de juro legal por meio de portaria. Ora, não há nenhuma lei que tenha, explícita ou implicitamente, mandado interpretar as referências às portarias como referências a ordens executivas. Assim, se se entender que a interpretação sistemática e actualista de tais referências exige a substituição de “portaria” por algum outro tipo de diploma, essa substituição deverá ser feita, em nosso entender, a favor da figura do regulamento administrativo, e não da ordem executiva. É que a portaria constituía, no quadro do sistema de actos jurídico-públicos vigente à data da aprovação do Código Civil, a categoria mais elevada de regulamento administrativo. Dentro do sistema de actos jurídico-públicos instituído após a Reunificação, esse lugar (isto é, o lugar cimeiro na hierarquia dos actos regulamentares) passou a ser ocupado pelo regulamento administrativo, o que é testemunhado, nomeadamente, pelo facto de a sua aprovação ter de ser precedida de consulta ao Conselho Executivo (artigo 58.º da Lei Básica). Assim sendo, a ordem executiva - que, pela sua designação, deveria constituir uma modalidade de acto político ou de acto administrativo, mas não de regulamento

46 Índice de preços no consumidor, Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, 1998,

página 49. 47 Idem, página 17.

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administrativo - situa-se necessariamente num escalão inferior ao do regulamento administrativo; logo, situa-se também num escalão inferior ao da portaria, não podendo nem substituí-la nem revogá-la, alterá-la ou suspendê-la.

Em todo o caso, quer se considere que a taxa de juro legal hoje vigente é de 9,5% ou de 6%, ela é certamente muito superior à taxa de inflação e à taxa de aumento salarial. Ela faculta aos credores um enriquecimento sem causa à custa dos devedores, sendo, por isso, materialmente usurária. Para os devedores, é uma verdadeira pena.

O que se disse dos juros de mora é extensivo, mutatis mutandis, aos juros emergentes dos contratos de mútuo. É claro que, se o mutuante for uma instituição de crédito, esta, para não sofrer danos com a sua actividade, tem de cobrar juros de taxa superior à da inflação, de modo a pagar os custos do seu próprio serviço (salários, preço dos equipamentos, etc.). Mas, se o juro exceder o valor estritamente necessário para o autofinanciamento do serviço de mútuo, ele estará a provocar um enriquecimento sem causa do mutuante à custa do mutuário, representando, para este, não o mero reembolso do valor real da quantia mutuada acrescido do pagamento do serviço de mútuo, como seria justo, mas uma autêntica pena. E uma pena cuja causa terá sido um acto lícito – a contracção do empréstimo -, e não um acto ilícito, como por exemplo um furto. Comparem-se, no entanto, as penas devidas por empréstimos e as penas devidas por furtos…

Perante o exposto, concluímos que a norma que fixa a taxa de juro legal colide frontalmente com o princípio da justiça: quebra a justiça comutativa (igualdade de prestações) na relação jurídico-económica entre o credor e o devedor; autoriza o credor a inhoneste vivere à custa do devedor, apropriando-se do respectivo suum, o que implica laedere este último; e viola, por conseguinte, o princípio da proibição do enriquecimento sem causa.

Ora, como o princípio da proibição do enriquecimento sem causa está consagrado no Código Civil (artigo 467.º), que foi aprovado por decreto-lei, enquanto que aquela taxa foi aprovada por uma simples ordem executiva, pode-se afirmar, sem dificuldade, que a disposição que fixa essa taxa é ilegal, tal como, aliás, a portaria que ela veio substituir

4. Penas fixadas por sentença judicial 4.1. Sanção pecuniária compulsória

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4.1.1. Considerações gerais Vamos agora falar da sanção que no Código Civil é denominada

“sanção pecuniária compulsória” (em chinês, 強迫性金錢處罰 qiangpoxing jinqian chufa).

Trata-se de uma sanção aplicada pelo tribunal, cujo conteúdo é definido no n.º 1 do artigo 333.º (o itálico é nosso):

“O tribunal, em acréscimo à condenação do devedor no cumprimento da prestação a que o credor tenha contratualmente direito, à cominação de pôr termo à violação de direitos absolutos ou à condenação na obrigação de indemnizar, pode, a requerimento do titular do direito violado, condenar o devedor a pagar ao ofendido uma quantia pecuniária por cada dia, semana ou mês de atraso culposo no cumprimento da decisão ou por cada infracção culposa, conforme se mostre mais conveniente às circunstâncias do caso; a culpa no atraso do cumprimento presume-se.”

Esta figura tem por fonte imediata a sua homónima portuguesa, que está prevista e regulada no artigo 829.º-A do Código Civil português vigente. Como este artigo só foi introduzido nesse Código em 1983, através do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, e este diploma nunca foi estendido a Macau, o texto do Código Civil português que aqui vigorava nunca chegou a conter aquela disposição. A sanção pecuniária compulsória do tipo previsto no artigo 333.º do Código Civil de Macau só foi introduzida no ordenamento jurídico do território com a entrada em vigor desse Código, no dia 1 de Novembro de 1999.

A introdução da sanção pecuniária compulsória no direito português ocorreu na sequência de estudos e propostas feitas por Rui de Alarcão e por Mota Pinto.48 Este último era, aliás, o Vice-Primeiro-Ministro do Governo que aprovou o citado Decreto-Lei.

Esses dois autores inspiraram-se sobretudo na figura francesa da astreinte (“adstrição”), mas também tiveram em conta figuras afins existentes noutros ordenamentos.

Mota Pinto, numa das suas obras49, apresenta três modelos de “medidas de coerção indirecta”: o francês, o alemão e o anglo-americano. A esses acrescentamos um quarto – o da República Popular da China.

48 Pinto Monteiro, obra citada, página 111. 49 Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra Editora,

1993, página 186.

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Vamos, pois, ver em traços gerais cada um destes quatro modelos e, depois, os regimes jurídicos da sanção pecuniária compulsória em Portugal e em Macau.

4.1.2. Figuras homólogas ou afins no direito comparado 4.1.2.1. Direito francês A astreinte, a que há pouco fizemos referência, é uma medida

coercitiva pela qual um tribunal condena o devedor de uma obrigação, em especial quando se trate de uma obrigação de fazer que apresente um carácter pessoal, a pagar ao credor uma soma relativamente elevada por cada dia (ou semana, ou mês) de atraso no cumprimento daquela obrigação. 50 O tribunal pode aplicar esta sanção mesmo oficiosamente.51

Esta figura surgiu na prática jurisprudencial dos tribunais franceses no século XIX, mas, como não tinha cobertura legal, “era decretada, de início, como se fosse uma indemnização, a fim de evitar os protestos e as objecções radicadas no facto de constituir uma prática ilegal”, relata Pinto Monteiro52.

“Aos poucos, contudo” - prossegue o autor – “ela foi deixando a descoberto a sua verdadeira face e a jurisprudência ganhando coragem na afirmação da sua autonomia em face da indemnização”.53

A figura ganhou consagração legal em 1972, através da lei de 5 de Julho desse ano, tendo posteriormente sido adoptada na Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Suíça, Suécia e Itália.54

4.1.2.2. Direito alemão Como explica Mota Pinto, os artigos 888 e 890 do Código do

Processo Civil alemão “estabelecem, para as obrigações de facto positivo infungível e para as obrigações de prestação de facto negativo, que o tribunal deve declarar, a requerimento do credor, estar o devedor obrigado ao cumprimento do acto ou à omissão sob a ameaça

50 Jean Carbonnier, Droit Civil, tomo 4 (Les Obligations), Presses Universitaires de France,

Paris, 1994, página 582. 51 Idem, página 583. 52 Pinto Monteiro, obra citada, página 118. 53 Ibidem. 54 Idem, página 120.

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de uma sanção pecuniária (Zwangsgeld; Ordnungsgeld) ou sob a ameaça de prisão (Zwangshaft; Ordnungshaft)”.

O modelo alemão difere do francês em quatro aspectos: — é mais restrito quanto ao âmbito de infracções visado, pois

que se limita a punir o incumprimento de obrigações de facto positivo infungível ou de facto negativo;

— é mais amplo quanto ao âmbito de sanções que comporta, porquanto, além da sanção pecuniária, inclui uma sanção privativa da liberdade;

— é mais publicístico quanto ao beneficiário da pena, na medida em que o produto da sua aplicação reverte integralmente para o Estado, ao passo que no sistema francês reverte para a contraparte;

— é mais privatístico quanto à iniciativa, porquanto a aplicação da sanção depende do requerimento do credor, enquanto que no sistema francês pode ser feita oficiosamente.

— Sistema semelhante ao alemão existe na Áustria. 4.1.2.3. Direito inglês e americano O terceiro modelo apresentado por Mota Pinto “é o sistema

anglo-americano do contempt of court (“desprezo pelo tribunal”)”. Se o obrigado, tendo sido condenado à execução específica de

uma obrigação de conteúdo positivo (specific performance) ou a uma abstenção ou inibição (injunction), não acatar essa decisão, pode a contraparte (o credor da obrigação ou o titular do direito lesado) requerer ao juiz que o obrigado inadimplente seja declarado incurso em contempt of court e, consequentemente, condenado a prisão e/ou ao pagamento de uma multa.

O modelo anglo-americano compartilha com o alemão as seguintes características:

— compreende a sanção de prisão, além da multa; — a sanção só pode ser aplicada a requerimento do credor, não o

podendo ser por iniciativa do próprio tribunal; — o produto da aplicação da sanção reverte para o Estado, e não

para a contraparte. Estes modelos divergem, contudo, no leque de infracções que

abrangem. Ambos sancionam o incumprimento de obrigações de conteúdo negativo, mas diferem em relação ao incumprimento de obrigações de conteúdo positivo.

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Assim, o modelo alemão só contempla as obrigações de facto infungível, deixando de fora as obrigações de facto fungível e as obrigações de dare, ao passo que o modelo anglo-americano é aplicável a qualquer obrigação em cuja execução específica o devedor tenha sido condenado.

Esta diferença coenvolve uma outra, relativa ao modo de articulação entre a execução específica e a sanção compulsória: enquanto que no sistema alemão a sanção compulsória serve precisamente, e apenas, para os casos em que está vedado ao credor o caminho da execução específica (por se tratar de uma obrigação de facto infungível), no sistema anglo-americano ela pressupõe e complementa uma ordem judicial de execução específica, servindo de punição pelo seu incumprimento.

4.1.2.4. Direito da República Popular da China A lei que contém os “Princípios Gerais de Direito Civil da

República Popular da China” (中華人民共和國民法通則 Zhonghua Renmin Gongheguo Minfa Tongze), aprovada no dia 12 de Abril de 1986, contém duas disposições referentes a punições aplicáveis a ilícitos civis.

Vejamo-las: — artigo 110: “Os cidadãos ou pessoas colectivas que incorram

em responsabilidade civil serão também responsabilizados administrativamente sempre que tal seja considerado necessário (…)”55;

— artigo 134, último parágrafo: “O tribunal popular, ao julgar casos civis, (…) pode dirigir ao réu uma admoestação ou ordenar-lhe que assine uma declaração de arrependimento (…); também pode condená-lo ao pagamento de uma multa ou a detenção, nos termos da lei.”56

A leitura desta lei e, em particular, das normas acima reproduzidas leva-nos a fazer algumas observações.

Em primeiro lugar, a lei chinesa permite que ilícitos meramente civis sejam judicialmente punidos com uma pena privativa de

55 A tradução e o sublinhado são nossos. A redacção original é: “對承擔民事責任的公民、法人需要追究行政責任的,應當追究行政責任 (…).”

56 A tradução e os sublinhados são nossos. A redacção original é: “人民法院審理民事案件,除适用上述規定外,還可以予以訓誡、責令具結悔過 (…),并可以依照法律規定處以罰款、拘留。”

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liberdade: a detenção (拘留 juliu). Neste aspecto é idêntica ao direito americano, inglês, alemão e austríaco.

Em segundo lugar, a lei chinesa também admite sanções como a admoestação (訓誡 xunjie) e a assinatura de uma declaração de arrependimento (具結悔過 jujie huiguo), o que não se verifica nos outros ordenamentos analisados.

Em terceiro lugar, a lei chinesa permite que a responsabilidade civil origine responsabilidade administrativa. Neste ponto, também difere dos ordenamentos jurídicos ocidentais e é incompatível com dois princípios neles consagrados:

— por um lado, o princípio da separação de poderes, porquanto é aos tribunais que cabe, em geral, dirimir os litígios e, em particular, apreciar os ilícitos civis, determinar a responsabilidade civil e fixar as respectivas consequências;

— por outro lado, o princípio da legalidade da administração, pois os ilícitos civis beneficiam do regime do numerus apertus e, portanto, se as entidades administrativas pudessem, à sua discrição, aplicar-lhes sanções administrativas, a sua actividade sancionatória deixaria de ter um âmbito claramente definido pela lei.

Em quarto lugar, as sanções previstas nesta lei são triplamente públicas: quer quanto ao autor (pois, tal como nos sistemas ocidentais, são aplicadas por entidades públicas), quer quanto ao beneficiário (pois, tal como nos sistemas alemão e anglo-americano, o produto da sua aplicação reverte a favor do Estado), quer ainda quanto à iniciativa (já que, tal como no sistema francês, a sua aplicação pode ser feita independentemente de requerimento do credor). É o que nos parece resultar da leitura das normas acima reproduzidas. Aquelas sanções não são, portanto, de nenhum modo, penas privadas, ao contrário do que sucede na França e, como veremos, em Macau.

Em quinto lugar, estas sanções aparecem legalmente enquadradas no âmbito da responsabilidade civil.

As normas acima transcritas encontram-se no capítulo VI do diploma em análise, que tem como epígrafe “Responsabilidade civil” (民事責任 Minshi zeren). Parece, portanto, não se fazer a distinção, presente noutros ordenamentos, entre a responsabilidade civil propriamente dita, que tem como pressuposto a verificação de um dano, como medida o valor do dano e como consequência a obrigação de reparar o dano, e os chamados “meios de coerção indirecta”, cujo funcionamento é independente de qualquer dano.

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Esta impressão é confirmada pelo artigo 106 da mesma lei, que diz em que situações é que uma pessoa incorre em responsabilidade civil. Eis o artigo:

“Um cidadão ou uma pessoa colectiva que viole um contrato ou que falte ao cumprimento de outras obrigações incorre em responsabilidade civil. Um cidadão ou pessoa colectiva que viole culposamente a propriedade do Estado, a propriedade de uma colectividade ou a propriedade ou integridade física de outra pessoa incorre em responsabilidade civil.Um cidadão pode incorrer em responsabilidade civil independentemente de culpa, se a lei assim o determinar.” 57 No segundo parágrafo, relativo à violação de direitos absolutos (direitos reais e direitos de personalidade), há, na versão chinesa, uma referência quase explícita ao dano: ela manifesta-se na utilização da palavra 侵害 qinhai (acima traduzida como “violar”), cujo segundo carácter (害 hai) significa “prejudicar” ou “dano” (損害 sunhai).

Pelo contrário, no primeiro parágrafo, concernente a relações obrigacionais, não há qualquer referência, nem explícita nem implícita, a danos.

Isto parece-nos ser demonstrativo de que a “responsabilidade civil” da lei chinesa não tem como pressuposto indispensável a verificação de um dano, nem tem como finalidade única a reparação de um dano.

Esta diferença entre o sistema chinês e os sistemas anteriormente analisados poderia parecer apenas uma questão de nome. Com efeito, os chamados “meios de coerção indirecta” existentes nos sistemas ocidentais, embora autonomizados pela lei e pela doutrina em relação à responsabilidade civil, são sempre formas de efectivação da responsabilidade civil, na medida em que representam reacções jurídicas a ilícitos meramente civis. São, portanto, formas não compensatórias de efectivação da responsabilidade civil, contidas em sistemas de responsabilidade civil que já postergaram a sua natureza puramente reparatória.

57 A tradução e o sublinhado são nossos. A redacção original é: “公民、法人違反合同或者不履行其他義務的,應當承擔民事責任。 公民、法人由于過錯侵害國家的、集体的財產,侵害他人財產,人身的,應當承擔民事責任。

沒有過錯,但法律規定應當承擔民事責任的,應當承擔民事責任。”

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Só que a autonomização dos chamados “meios de coerção indirecta” em relação à responsabilidade civil pode ter a vantagem de deixar mais clara a seguinte garantia: a possibilidade, que há na responsabilidade civil, de se prescindir da culpa não pode ser estendida aos tais “meios de coerção indirecta”, porque estes são penas e, como tal, estão sujeitos ao princípio nulla poena sine culpa. Ora, a lei chinesa, nas disposições em que prevê a possibilidade de uma pessoa que cometeu uma infracção civil vir a sofrer a aplicação de uma sanção administrativa (artigo 110) ou de uma sanção judicial de multa ou de prisão (artigo 134), só condiciona a aplicação dessas sanções à verificação da própria responsabilidade civil, além da discrição da entidade sancionadora. E, como já vimos, a responsabilidade civil não depende necessariamente de culpa (artigo 106, último parágrafo).

Isto significa que este diploma não oferece garantias suficientes de que as medidas punitivas previstas nos artigos 110 e 134 não possam ser aplicadas sem estar comprovada a culpa do infractor. De qualquer modo, como não conhecemos o sistema jurídico chinês no seu conjunto, não ousamos afirmar que essa garantia não exista – pode ser que esteja consagrada em outro diploma. Aliás, o artigo 134, na parte em que se refere às penas de multa e de prisão, diz explicitamente que o tribunal as pode decretar “nos termos da lei”. Parece estar a aludir a uma legislação complementar.

Em suma, e tendo em conta o diploma que acabámos de analisar, o sistema da República Popular da China parece ir ainda mais longe que o anglo-americano na amplitude com que admite a aplicação de penas pecuniárias ou prisionais a infracções meramente civis. Nenhum desses sistemas restringe o âmbito das infracções civis puníveis, mas o sistema anglo-americano condiciona a aplicação dessas penas à desobediência a uma anterior sentença judicial, ao passo que a lei chinesa que estudámos nem sequer tal condicionamento estabelece. Além disso, o sistema chinês permite a responsabilização administrativa fundada em responsabilidade civil, enquanto que o sistema anglo-americano, tanto quanto saibamos, não prevê tal responsabilização.

4.1.2.5. Direito português O Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, aditou ao Código Civil

a seguinte disposição (o sublinhado é nosso):

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Artigo 829.º-A (Sanção pecuniária compulsória)

1. Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.

2. A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.

3. O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.

4. Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.

Este artigo prevê dois tipos de penas privadas quanto ao

beneficiário: uma sanção pecuniária compulsória judicial (n.ºs 1 a 3) e uma sanção pecuniária compulsória legal, mais precisamente um juro legal sancionatório (n.º 4).

Da segunda não falaremos agora, porque lhes são extensivas as considerações já tecidas a propósito do juro legal materialmente usurário (ponto 3.2.). Efectivamente, o juro previsto no n.º 4 do artigo acima reproduzido acresce ao juro compensatório devido pela mora, pelo que se configura como uma verdadeira pena. É, por conseguinte, materialmente usurário.

Vamos analisar apenas a sanção pecuniária compulsória judicial. Em primeiro lugar, esta sanção é, como o nome revela,

exclusivamente pecuniária, não podendo nunca consistir noutro tipo de pena. Não pode, nomeadamente, consistir na pena de prisão. Neste aspecto, o sistema português, subordinado ao princípio constitucional da mínima restrição da liberdade, assemelha-se ao francês e distingue-se dos sistemas alemão, anglo-americano e da República Popular da China.

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Em segundo lugar, esta sanção só pode ser aplicada no caso de incumprimento de obrigações de facto infungível, nisto se aproximando do sistema alemão. Esta prudente demarcação não foi adoptada pelo Código Civil de Macau.

O que justifica a demarcação deste âmbito? As obrigações de facto infungível são exactamente as que não

podem ser objecto de execução específica. Com efeito, a execução específica, para não bulir com a liberdade pessoal do devedor, não pode consistir em coagir directamente o devedor a praticar determinado facto (recorde-se a já citada máxima nemo praecise potest cogi ad factum), devendo antes traduzir-se na prestação do facto por outrem à custa do património do devedor (execução sub-rogatória). Ora, se o facto é infungível, a substituição do devedor por outrem na sua prática não é possível, o que significa que a via da execução específica fica vedada. Por isso mesmo, o legislador entendeu necessário criar, para esse caso, um mecanismo de coerção indirecta, traduzido na imposição de uma sanção pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação ou por cada infracção.

A delimitação deste âmbito era imprescindível para compatibilizar a sanção pecuniária compulsória com o princípio constitucional da necessidade, segundo o qual as restrições de direitos, liberdades e garantias, ou de direitos de natureza análoga a eles, devem “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (artigo 18.º/2, extensivo aos direitos de natureza análoga por força do artigo 17.º). Reconhecendo o facto óbvio de que as disposições que estabelecem penas patrimoniais (como a sanção pecuniária compulsória) são normas restritivas do direito de propriedade, e aceitando a premissa de que o direito de propriedade é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, como é normalmente propugnado pela doutrina, não podia o legislador deixar de atender ao artigo 18.º/2, e ao princípio da necessidade nele contido, na regulamentação da sanção pecuniária compulsória. De qualquer modo, parece-nos que a própria existência da sanção prevista no artigo 829.º-A já infringe, por si só, o princípio da necessidade, pois que, para a tutela que ela pretende dar aos bens jurídicos do credor que eventualmente tenham sido lesados, são suficientes os meios que já estavam previstos no Código, em especial a indemnização pelos danos causados (artigo 798.º) e a excepção de não cumprimento do contrato (artigo 428.º).

Em terceiro lugar, a sanção não pode ser aplicada no caso de a obrigação em falta exigir especiais qualidades científicas ou artísticas

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do obrigado. Compreende-se esta excepção: as actividades científicas e artísticas têm de ser espontâneas, quer por respeito pela liberdade de criação científica e artística do obrigado, quer para garantia da própria qualidade da prestação, se vier a ser realizada. Vejamos as palavras de Pinto Monteiro:

“Terá pretendido o legislador, com esta limitação, exceptuar os casos em que a personalidade do devedor seria particularmente tocada, com possíveis reflexos negativos, de vária ordem, se a criação intelectual, no domínio literário, artístico ou científico – dependente, em larga medida, de condições subjectivas, impossíveis de controlar – pudesse ficar sujeita a qualquer tipo de coerção.”58

Esta exclusão era, por isso, necessária para, por um lado, se evitar a violação da liberdade de criação intelectual (artigo 42.º da Constituição) e, por outro lado, se garantir a observância do princípio da adequação, aplicável à restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º/2 da Constituição) e de direitos análogos (artigo 17.º). Segundo este princípio, as restrições devem consistir apenas no que for adequado à prossecução dos seus próprios fins.59 Em quarto lugar, o artigo 829.º-A aplica-se a um conjunto não tipificado de incumprimento de obrigações. Isto significa que os pressupostos da aplicação da sanção pecuniária compulsória, em vez de estarem fixados na lei, são fixados pela fonte jurídica da obrigação incumprida, a qual pode muito bem ser um simples contrato ou até um negócio jurídico unilateral. Isto colide com o princípio da tipicidade das infracções puníveis. Veja-se o artigo 29.º/1 da Constituição:

“Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não sejam fixados em lei anterior.”

Esta disposição, segundo o seu teor literal, refere-se apenas às infracções criminais. Aliás, a epígrafe do artigo 29.º é “Aplicação da lei criminal”.

No entanto, os seus princípios são extensivos a todo o direito sancionatório, pois o fundamento desses princípios não é, certamente, o facto de a lei criminal se chamar lei criminal, mas sim o facto de ela, através da cominação de sanções, permitir a privação, total ou parcial,

58 Pinto Monteiro, obra citada, 125. 59 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4ª edição, Livraria Almedina,

Coimbra, 1989, página 487.

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de determinados direitos fundamentais. Ou seja, a sua ratio é a defesa dos direitos fundamentais susceptíveis de serem prejudicados pela aplicação de penas.

Ora, esses direitos tanto podem ser prejudicados pela aplicação de penas criminais, como pela aplicação de penas não criminais. Por exemplo, a multa, que é uma sanção criminal, a coima, que é uma sanção contra-ordenacional, e a sanção pecuniária compulsória, que é uma sanção civil, atingem todas, e do mesmo modo, o direito de propriedade. O facto de a infracção geradora da primeira se qualificar de crime, a infracção geradora da segunda se qualificar de contra-ordenação e a infracção geradora da terceira ser o simples incumprimento de uma obrigação civil é irrelevante para o direito de propriedade do infractor. Por isso, o princípio nullum crimen sine lege deve-se considerar extensivo a todos os tipos de infracções puníveis.

A negação dessa extensão redundaria no esvaziamento do próprio princípio e na negação de um princípio com ela conexo – o princípio nulla poene sine lege.

Com efeito, se um juiz, atendendo a que o incumprimento de uma determinada obrigação contratual não está tipificado como crime no Código Penal, não lhe aplicar a pena de multa, mas, com base no artigo 829.º-A do Código Civil, lhe aplicar uma sanção pecuniária compulsória, o princípio nullum crimen sine lege ficará reduzido a uma simples questão de nome: o que terá sucedido é simplesmente que, perante uma conduta que não se subsume a qualquer tipo legal de infracção razoavelmente delimitado, o juiz se terá recusado a chamá-la de crime e a puni-la com uma multa, mas a terá reconhecido como pressuposto para a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória e lhe terá aplicado essa sanção. Isto significa também, obviamente, negar o princípio nulla poena sine lege, de que falaremos daqui a pouco.

Um outro argumento que podemos aduzir para demonstrarmos que a não tipificação legal dos pressupostos da aplicação da sanção pecuniária compulsória é inconstitucional é o facto de todas as restrições de direitos, liberdades e garantias, incluindo as restrições sem intuito punitivo, estarem subordinadas ao princípio da reserva de lei.

De acordo com este princípio, essas restrições só são válidas se constarem de leis – de leis que o sejam simultaneamente em sentido

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material (artigo 18.º/3 60 ) e em sentido formal (artigo 168.º/1, b), segundo o texto de 1982, e 165.º/1, b), segundo o texto actual, datado de 199761).

O princípio da reserva de lei é extensivo aos direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º). Entre esses direitos de natureza análoga conta-se, reconhecidamente, o direito de propriedade62, em virtude de se tratar de um direito cujo exercício se traduz numa liberdade perante o Estado e perante terceiros, tal como sucede com os direitos, liberdades e garantias, e não na obtenção de uma prestação do Estado ou de terceiro, como acontece com a generalidade dos direitos económicos, sociais e culturais.

O artigo 829.º-A do Código Civil, na medida em que permite ao juiz atacar o direito de propriedade do devedor com base em pressupostos não fixados em lei, está a violar o princípio constitucional da reserva de lei. É, por isso, materialmente inconstitucional.

É óbvio que este juízo não se pode estender à obrigação de indemnizar. As infracções susceptíveis de acarretarem a obrigação de indemnizar também estão sujeitas ao princípio do numerus apertus. Só que essa obrigação, como já vimos, é uma derivação da justiça comutativa - e, portanto, do princípio da igualdade. Estando historicamente superada a pena de talião, a obrigação de indemnizar é a única forma de repor a justiça comutativa, quando esta é quebrada por um acto danoso. É, por isso mesmo, um mecanismo indispensável de tutela jurídica do direito da parte lesada. Sendo uma consequência necessária de princípios e direitos fundamentais, ela não pode ficar subordinada ao regime do numerus clausus. O que interessa é que a indemnização imposta seja uma verdadeira indemnização, ou seja, que o seu valor se cinja ao valor do próprio dano.

Em quinto lugar, e tal como nos restantes sistemas analisados, a sanção pecuniária compulsória não está sujeita a qualquer moldura legal que fixe os limites mínimo e máximo, ou pelo menos o máximo, entre os quais o tribunal poderia determinar, em concreto, o valor da

60 “As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e

abstracto (…)”. 61 “1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes

matérias, salvo autorização ao Governo: … b) Direitos, liberdades e garantias”. 62 A extensão do regime dos direitos, liberdades e garantias ao direito de propriedade só vale

para os casos em que a propriedade seja verdadeiramente um direito, e não um privilégio. Sobre isto, ver infra, ponto 5.2.1.

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sanção. Esta ausência de limites legais ofende, em nosso entender, o princípio da legalidade das penas (nulla poene sine lege), consagrado no n.º 3 do artigo 29.º da Constituição63.

Já vimos que, embora o artigo 29.º tenha como epígrafe “Aplicação da lei criminal”, os seus princípios são extensivos a todo o direito sancionatório, já que a sua ratio está na defesa de direitos fundamentais que tanto podem ser prejudicados por sanções criminais como por sanções não criminais. Por exemplo, as multas cominadas pelo Código Penal e a sanção pecuniária compulsória prevista no Código Civil têm, em relação ao direito de propriedade, o mesmo efeito: através da sua imposição, o tribunal subtrai ao património do devedor determinado valor, forçando-o a privar-se do direito de propriedade sobre determinados bens. Se assim é, por que razão haverá a multa de estar sujeita a um limite legal, mas não a sanção pecuniária compulsória?

Além disso, o princípio da legalidade, como já vimos, é aplicável a todas as formas de restrição de direitos, liberdades e garantias e de direitos de natureza análoga, até mesmo às formas não sancionatórias de restrição. Ele também é, por isso, aplicável à sanção pecuniária compulsória. Assim sendo, é num acto legislativo - material e formalmente legislativo - que têm de ser definidos os elementos essenciais da sanção pecuniária compulsória, incluindo os seus limites.

Com base no exposto, consideramos que o artigo 829.º-A é materialmente inconstitucional, na parte em que não fixa qualquer limite máximo para a sanção. E, aplicando a esta figura mais um dos brocardos de Feuerbach – nullum crimen sine poena legali -, podemos dizer que, não fixando limites ao seu valor, o artigo 829.º-A torna inoperante a sanção que ele próprio institui. A menos que o juiz desrespeite a Constituição, claro.

Em sexto lugar, a sanção só pode ser aplicada quando haja simples mora no cumprimento, não podendo ser aplicada em situações de incumprimento definitivo. Vejamos, de novo, a explicação de Pinto Monteiro:

“(…) a sanção pecuniária compulsória só será estabelecida se puder cumprir a sua função de meio compulsório. Tal não acontecerá perante situações de inadimplemento definitivo ou de impossibilidade de cumprimento, pelo que só em caso de mora ela é susceptível de ser

63 Este preceito diz: “Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não

estejam expressamente cominadas em lei anterior.”

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aplicada. Limitação esta que, apesar de não estar expressa na lei, decorre da própria ratio da figura. Pelos mesmos motivos, a sanção pecuniária compulsória deixará de ser devida a partir do momento em que se impossibilite o cumprimento da prestação, seja qual for a causa (imputável ou não ao devedor) dessa impossibilidade.”64

Esta limitação é imposta pelo princípio constitucional da adequação, ao qual se têm de subordinar as restrições de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º/2) ou de direitos de natureza análoga (artigo 17.º).

Em sétimo lugar, a sanção só pode ser aplicada a requerimento do credor. É uma solução idêntica à consagrada no direito alemão, inglês e americano, e diferente da do sistema francês, onde o tribunal pode aplicar a astreinte oficiosamente.

Em oitavo lugar, o produto da sanção é repartido em partes iguais, ficando metade para o credor e metade para o Estado. É uma solução intermédia entre a solução do sistema francês, que atribui o produto ao credor, e a do sistema anglo-americano, que o atribui ao Estado. Podemos, por isso, dizer que a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A do Código Civil português é, quanto ao beneficiário, uma pena semi-pública, ou semi-privada, e não uma pena privada.

De qualquer modo, na medida em que atribui uma parte da receita ao credor, está a permitir que este se locuplete à custa do devedor, o que ofende o princípio da proibição do enriquecimento sem causa e contraria, por consequência, o princípio da justiça comutativa e os já citados preceitos honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere.

Em nono lugar, e para terminar, o artigo 829.º-A é formal e organicamente inconstitucional, porquanto a regulação de matérias relativas a direitos, liberdades e garantias, ou de direitos de natureza análoga, era, e é, da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização legislativa ao Governo. Assim dispunha o já referido artigo 168.º/1, b) do texto constitucional então vigente, datado de 1982 (correspondente ao artigo 165.º/1, b) do texto actual, datado de 1997). Essa norma é extensiva aos direitos de natureza análoga, incluindo o direito de propriedade, em virtude do já referido artigo 17.º.

Estas regras organicamente inconstitucionais não afectam as normas cujo conteúdo seja favorável a um direito fundamental, pois o

64 Pinto Monteiro, obra citada, páginas 125 e 126.

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artigo 16.º/1 da Constituição afirma que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”. Isto significa que as leis (incluindo os decretos-leis) podem acrescentar ou ampliar os direitos fundamentais consignados na Constituição (é a chamada “cláusula aberta dos direitos fundamentais”); o que não podem é restringi-los, excepto nos casos previstos na própria Constituição.

Ora, o artigo 829.º-A, como já vimos, contém normas restritivas do direito de propriedade, e foi enxertado no Código Civil através de um decreto-lei que não se fundou em qualquer autorização legislativa da Assembleia da República. Não havendo esta autorização, a norma que enxertou o artigo 829.º-A no Código Civil só poderia ter sido aprovada por lei da Assembleia da República. Como foi aprovada por decreto-lei do Governo, é formal e organicamente inconstitucional, o mesmo se passando com o próprio artigo 829.º-A do Código Civil, já que faz parte integrante daquela norma.

4.1.3. Sanção pecuniária compulsória e prisão compulsória Analisámos atrás cinco modelos de penas civis judiciais e vimos

que há entre eles algumas diferenças. De entre essas diferenças, a mais sonante é, na nossa perspectiva, a que se refere ao tipo de penas civis admissíveis. Com base nesse critério, agrupamos esses modelos em dois sistemas sancionatórios civis:

— o sistema sancionatório civil meramente patrimonial, em que as infracções civis só são puníveis com sanções de carácter patrimonial, nomeadamente pecuniário, excluindo-se as penas privativas da liberdade (é o sistema existente no direito francês, português e macaense);

— o sistema sancionatório civil patrimonial e prisional, em que as infracções civis tanto podem ser punidas com sanções patrimoniais como com penas privativas da liberdade (é o sistema que vigora na Alemanha, na Áustria, na Inglaterra, nos Estados Unidos e na República Popular da China).

A prisão pelo incumprimento de obrigações civis era uma sanção típica do capitalismo primitivo. Ela tinha vindo substituir a redução à servidão, pena que, no modo de produção feudal, era generalizadamente aplicada aos camponeses endividados.

O posterior desenvolvimento do movimento operário e da luta pelos direitos do homem, adentro da sociedade capitalista, veio a repercutir-se indelevelmente no seu direito sancionatório. Uma das

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conquistas desse processo foi a adopção do princípio da máxima restrição das penas e medidas de segurança como elemento basilar dos sistemas sancionatórios contemporâneos.

A prisão por dívidas não podia deixar de estar na mira dos que pugnavam por essa “deflação” do direito sancionatório, e o repúdio que tal pena lhes merecia viria a reflectir-se, ainda que de forma tortuosa e minimalista, no artigo 11.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos:

“Ninguém pode ser aprisionado pela única razão de que não está em situação de executar uma obrigação contratual.”

Dizemos que este artigo exprime aquele repúdio de uma forma tortuosa, porque, em vez de dizer “por não executar”, diz “pela única razão de que não está em situação de executar” (em inglês, “merely on the ground of inability to fulfil”). Uma interpretação literal deste preceito permitiria prender um devedor insolvente e inadimplente com a alegação de que esse aprisionamento não seria motivado apenas pela sua insolvência, mas pelo facto de, além de estar insolvente, não ter pago a dívida. Ou seja, parece que a única preocupação daquela norma é garantir que a aplicação da pena de prisão resulte de um facto - o incumprimento - e não de uma mera situação – a incapacidade de cumprir. Mas isso seria uma garantia tão caricatamente diminuta que ousamos afirmar que tal interpretação seria absurda e contrária às finalidades do Pacto. Pensamos que a norma deve ser lida como se dissesse o seguinte:

“Ninguém pode ser aprisionado por não executar uma obrigação contratual, se não estiver em situação de a cumprir.”

Esta solução é, ainda assim, minimalista, porque só contempla a hipótese de o devedor não cumprir a obrigação por não poder. Isto significa que a norma mantém a possibilidade de se aprisionarem os devedores que, podendo cumprir, não cumpram.

Já sabemos que existem outros meios, menos sacrificantes para o devedor, de se tutelar o direito do credor, com igual ou maior eficácia ou, pelo menos, com a eficácia suficiente:

— meios não punitivos, como a indemnização, a excepção de não-cumprimento do contrato e a resolução do contrato (acompanhada da restituição do que já houver sido prestado pelo credor); e

— meios punitivos de natureza patrimonial, como aqueles que temos estado a analisar neste trabalho.

Por isso, julgamos que o artigo 11.º do Pacto ainda deixa muito a desejar em termos de defesa da liberdade e da justiça.

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Um perigo especial que oferece a prisão pelo incumprimento de obrigações contratuais ou por delitos civis é o facto de eles beneficiarem do regime do numerus apertus. Ou seja, nem as obrigações contratuais nem os delitos civis estão sujeitos ao princípio da tipicidade, ao contrário do que sucede com os delitos criminais, incluindo os que são punidos apenas com multa. Isto significa que, em termos de conjunto, as condutas puníveis com pena de prisão deixam de estar sujeitas ao princípio da tipicidade.

Quanto à sanção pecuniária compulsória, embora seja, em princípio, menos gravosa para o devedor, pode revelar-se, na prática, uma pena tão agressiva como a prisão por dívidas. Na verdade, uma sanção pecuniária compulsória cujo montante obrigue o devedor a trabalhar como um autêntico escravo durante anos a fio acabará por ter um efeito tão limitativo da sua liberdade pessoal como uma pena de prisão.

4.1.4. A sanção pecuniária compulsória em Macau 4.1.4.1. Regime jurídico 4.1.4.1.1. Semelhanças com o regime do Código Civil

português Conforme já foi referido, o Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de

Junho, que, através do aditamento do artigo 829.º-A, introduziu a sanção pecuniária compulsória no Código Civil português, não foi estendido a Macau, pelo que o texto do Código Civil português que então vigorava em Macau, e que continuou a vigorar até 31 de Outubro de 1999, nunca chegou a conter aquela figura.

No decurso dos trabalhos de reforma do direito civil de Macau, encetados em 1997 e coordenados por Luís Miguel Urbano, o Governo do Território ouviu dos chamados “sectores económicos” (já fortemente representados na Assembleia Legislativa) a pretensão de verem consagrados na lei meios mais eficazes de compulsão dos devedores ao pagamento das dívidas. O Governo decidiu satisfazer essa pretensão através da introdução, no Código Civil de Macau, da figura da sanção pecuniária compulsória.

Essa sanção encontra-se regulada no artigo 333.º, que a seguir reproduzimos. Para facilitar a sua comparação com a disposição homóloga do Código Civil português, voltamos a reproduzir o artigo

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829.º-A desse Código. Código Civil português Código Civil de Macau Livro II, título I, capítulo I

(“Cumprimento e não cumprimento das obrigações”), secção III (“Realização coactiva da prestação”), subsecção II (“Execução específica”)

Livro I, título II, subtítulo

IV (“Do exercício e tutela dos direitos”), capítulo I (“Disposições gerais”)

Artigo 829.º-A (Sanção pecuniária

compulsória)

Artigo 333.º (Sanção pecuniária

compulsória) 1. Nas obrigações de

prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.

1. O tribunal, em acréscimo à condenação do devedor no cumprimento da prestação a que o credor tenha contratualmente direito, à cominação de pôr termo à violação de direitos absolutos ou à condenação na obrigação de indemnizar, pode, a requerimento do titular do direito violado, condenar o devedor a pagar ao ofendido uma quantia pecuniária por cada dia, semana ou mês de atraso culposo no cumprimento ou por cada infracção culposa, conforme se mostre mais conveniente às circunstâncias do caso; a culpa no atraso do cumprimento presume-se.

2. A sanção pecuniária compulsória não pode ser estabelecida para o período anterior ao trânsito em julgado da sentença que a ordene, nem para o período anterior à liquidação da indemnização,

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salvo se o devedor for condenado por ter interposto recurso com fins meramente dilatórios, caso em que a aplicação da sanção é reportada à data da notificação da decisão que a tenha cominado.

2. A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.

3. A sanção pecuniária compulsória só será cominada quando o tribunal a considere justificada e será fixada segundo a equidade, atendendo à condição económica do devedor, à gravidade da infracção e à sua adequação às finalidades de compulsão ao cumprimento.

3. O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.

4. (refere-se a outra matéria)

4. Não é aplicável a sanção pecuniária compulsória nos casos em que tenha sido estabelecida uma cláusula penal compulsória com os mesmos fins, ou nas decisões em que se condene o devedor no cumprimento de uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, que exija especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, a que o credor tenha contratualmente direito.

O direito de Macau, à semelhança do direito português, só admite

a punição de infracções civis com sanções de natureza patrimonial, e nunca com penas privativas da liberdade. Nisto se assemelha também

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ao sistema francês, contrastando com os sistemas anglo-americano, alemão e da República Popular da China.

Comparando a regulamentação da sanção pecuniária compulsória em ambos os ordenamentos – português e macaense -, podemos detectar, como é natural, semelhanças e diferenças. Comecemos pelas semelhanças.

A primeira semelhança é a necessidade de requerimento do credor. É o que se passa no direito inglês, americano, alemão e austríaco.

A segunda semelhança radica no facto de não haver lugar à aplicação da sanção, quando o devedor seja condenado no cumprimento de uma prestação de facto infungível que exija especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado.

Esta exclusão justifica-se, por um lado, pelo respeito devido à liberdade de criação artística ou científica do obrigado (artigo 42.º da Constituição da República Portuguesa, que vigorava em Macau aquando da elaboração, aprovação e entrada em vigor do Código Civil de Macau) e, por outro lado, pelo princípio da adequação, ao qual se deve subordinar toda e qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º/2 da mesma Constituição) ou de direitos de natureza análoga (artigo 17.º). Entre estes últimos conta-se o direito de propriedade, que é agredido pela sanção pecuniária compulsória.

O princípio da adequação determina que as restrições consistam unicamente no que for adequado à prossecução dos seus próprios fins.65 Neste caso, o fim da restrição (ou seja, da sanção pecuniária compulsória) é a protecção da posição jurídica do credor. Consequentemente, a sanção não deve exceder aquilo que for adequado a essa protecção. Ora, se a prestação exigir especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, a tentativa de o compelir a realizá-la dificilmente resultará num trabalho onde essas qualidades estejam realmente aproveitadas.

A terceira semelhança é a aplicabilidade da sanção a um conjunto não tipificado de infracções. Não é a própria lei que define, de um modo preciso e suficientemente delimitado, os pressupostos da aplicação da pena. Basta ver o à-vontade com que o n.º 1 do artigo 333.º do Código Civil de Macau diz “prestação a que o credor tenha contratualmente direito”. O Código permite que a conduta em que a infracção se traduz tenha o seu conteúdo concreto determinado por um

65 Gomes Canotilho, obra e página citadas.

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simples contrato. Ou seja, permite que seja um contrato a definir os pressupostos da aplicação da sanção.

Como já vimos a propósito do artigo 829.º-A/1 do Código Civil português, esta insuficiente delimitação legal do âmbito de aplicação da sanção pecuniária compulsória traspassa o princípio da tipicidade das infracções puníveis.

Vejamos as seguintes normas:

Constituição da República Portuguesa

Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

29.º/1: “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.”

15.º/1, 1.º período: “Ninguém será condenado por actos ou omissões que não constituam um acto delituoso, segundo o direito nacional ou internacional, no momento em que forem cometidos.”

29.º/3: “Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.”

29.º/4: “Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.”

15.º/1, 2.º e 3.º períodos: “Do mesmo modo não será aplicada nenhuma pena mais grave do que era aplicável no momento em que a infracção foi cometida. Se posteriormente a esta infracção a lei prevê a aplicação de uma pena mais ligeira, o delinquente deve beneficiar da alteração.”

Já vimos que a letra do artigo 29.º da Constituição portuguesa

refere somente as penas criminais. Mas também já justificámos a

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extensão do princípio nullum crimen sine lege às infracções não criminais e, nomeadamente, às infracções puníveis com a sanção pecuniária compulsória. Os argumentos então invocados foram estes:

— a ratio de todo o artigo 29.º da Constituição portuguesa, incluindo o seu n.º 1, é a protecção dos direitos fundamentais prejudicados pela aplicação de penas (liberdade ambulatória, liberdade de escolha da profissão, direito de propriedade, etc.); ora, esse prejuízo tanto pode ser causado por penas criminais como por penas não criminais, podendo penas de diversos ramos do direito afectar exactamente os mesmos direitos fundamentais, do mesmo modo e na mesma medida (por exemplo, a multa, que é uma sanção criminal, a coima, que é uma sanção administrativa, e a sanção pecuniária compulsória, que é uma sanção civil, atingem todas, de igual modo, o direito de propriedade, e podem todas atingi-lo na mesma medida);

— o princípio da legalidade é aplicável a todas as formas de restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º/3) ou de direitos de natureza análoga (artigo 17.º), vinculando, portanto, quer as punições criminais, quer as punições não criminais, quer, ainda, as formas não punitivas de restrição de direitos.

Com base nisto, podemos dizer que o artigo 333.º/1 está inquinado de inconstitucionalidade material originária.

Porém, como a Constituição da República Portuguesa já não está em vigor em Macau, temos de recorrer à Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos para aferirmos a validade jurídica daquela disposição.

A Lei Básica dispõe, no primeiro parágrafo do artigo 29.º, o seguinte:

“Nenhum residente de Macau pode ser punido criminalmente senão em virtude de lei em vigor que, no momento da correspondente conduta, declare expressamente criminosa e punível a sua acção.”

O Pacto contém uma norma de teor idêntico no 1.º período do n.º 1 do artigo 15.º, acima reproduzido.

Ambas as disposições enunciam o princípio da tipicidade das infracções criminais, e em termos semelhantes aos do artigo 29.º/1 da Constituição portuguesa.

Além de a redacção ser semelhante, a ratio é, segundo cremos, a

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mesma. Por isso, aquilo que dissemos sobre a extensão do artigo 29.º/1 da Constituição portuguesa às infracções não criminais serve também para aquelas duas disposições. Pensamos, por conseguinte, que continua a vigorar na ordem jurídica de Macau um princípio fundamental de tipicidade das infracções puníveis – um princípio que não se circunscreve ao direito criminal.

Assim sendo, o artigo 333.º/1 do Código Civil de Macau, pelo mesmo motivo que violava o artigo 29.º/1 da Constituição portuguesa, viola igualmente o artigo 29.º da Lei Básica e o artigo 15.º/1 do Pacto.

A quarta semelhança é a ausência de uma moldura legal dentro da qual o valor da sanção deva, em cada caso concreto, ser fixado. Esta ausência ofende, como já dissemos a propósito do artigo 829.º-A do Código Civil português, o princípio nulla poene sine lege.

Este princípio está expressamente enunciado no artigo 29.º/3 da Constituição da República Portuguesa. Também decorre logicamente do artigo 15.º/1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Da desconformidade com o artigo 29.º/3 já falámos a propósito do artigo 829.º-A do Código Civil português. O que então dissemos é extensivo ao artigo 333.º do Código Civil de Macau e permite-nos dizer que este artigo está ferido de inconstitucionalidade material originária, na medida em que não fixa qualquer limite ao valor da sanção pecuniária compulsória.

O problema é que a Constituição da República Portuguesa já não está em vigor em Macau e a lei constitucional que lhe sucedeu no território – a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau – não contém, no seu próprio texto, nenhuma garantia semelhante à do artigo 29º/3 da Constituição portuguesa.

No entanto, ela decorre logicamente do 2.º período do artigo 15.º/1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Com efeito, dizer que não se pode aplicar uma pena mais grave que aquela que era aplicável no momento em que foi cometida a infracção equivale a dizer que não se pode ultrapassar o limite que estava anteriormente estabelecido, em termos gerais e abstractos, para o valor dessa pena. Isto pressupõe, obviamente, a existência de um limite máximo fixado em termos gerais e abstractos. Pressupõe, por isso, a existência de uma moldura penal fixada normativamente. Aliás, se olharmos para o artigo 29.º da Constituição portuguesa, vemos que o preceito que nele corresponde ao 2.º período do artigo 15.º/1 do Pacto – o n.º 4 - vem imediatamente a seguir à disposição que enuncia o princípio nulla poene sine lege, que é o n.º 3. Esta sequência não é fortuita, antes

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traduz uma sequência lógica. Podemos, pois, afirmar que o princípio nulla poene sine lege

continua a ser um princípio fundamental do direito de Macau, prevalecendo sobre as leis ordinárias e tornando inválida qualquer norma delas constante que o contrarie.

A versão portuguesa do artigo 15.º/1 do Pacto poderia dar-nos a ideia de que ela se refere, não apenas a crimes e a sanções criminais, mas a infracções em geral e a sanções em geral, pois utiliza expressões como “acto delituoso” e “infracção” em vez da palavra “crime”. Parece, portanto, que o seu teor literal seria mais abrangente que o do artigo 29.º/3 da Constituição portuguesa. Isto tornaria claríssima a desconformidade do artigo 333.º do Código Civil com o artigo 15.º/1 do Pacto.

Contudo, a versão inglesa, que tem valor autêntico66, refere-se especificamente, e apenas, a infracções criminais. No primeiro período, ela diz: “No one shall be held guilty of any criminal offence on account of any act or omission which did not constitute a criminal offence (…)”. No segundo período, onde em português se diz “no momento em que a infracção foi cometida”, em inglês diz-se “at the time when the criminal offence was committed”. Curiosamente, na última frase, onde a versão inglesa diz “offender”, a versão portuguesa emprega o termo “delinquente”, que embora possa ter o sentido geral de “transgressor” ou “infractor”, é mais correntemente utilizado para designar autores de crimes.

Baseando-nos na versão inglesa, podemos, assim, dizer que a disposição em análise tem, na sua letra, o mesmo âmbito que o artigo 29.º da Constituição portuguesa. Ela suscita, portanto, o mesmo problema de interpretação.

Parece-nos que a ratio do artigo 15.º/1 do Pacto é, tal como a do artigo 29.º da Constituição portuguesa, a defesa de direitos fundamentais que possam ser afectados pela aplicação de determinada sanção. Pouco importa que a infracção a sancionar seja qualificada pelo direito interno de Macau como “crime”, “contra-ordenação”, “infracção disciplinar”, “delito civil” ou “violação de contrato”. O que interessa é saber se a consequência para ela imposta, por lei, acto administrativo, sentença judicial ou negócio jurídico, viola ou não um

66 Tal como a versão chinesa, mas ao contrário da versão portuguesa (artigo 53.º/1 do próprio

Pacto).

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direito fundamental. Desde que o faça, estará sob o âmbito de protecção normativa do artigo 15.º/1 do Pacto.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos prevalece, como se sabe, sobre o Código Civil. Esta prevalência resulta, quer do artigo 1.º/3 do próprio Código Civil, que diz que “as convenções internacionais aplicáveis em Macau prevalecem sobre as leis ordinárias”, quer do segundo parágrafo do artigo 40.º da Lei Básica, que diz que as restrições aos direitos e liberdades não podem contrariar o sobredito Pacto.67

Isto legitima-nos a dizer que o artigo 333.º do Código Civil de Macau é materialmente ilegal, por violação do artigo 15.º/1 do Pacto.

Esta ilegalidade refere-se especificamente à parte em que esse artigo não submete o valor da sanção pecuniária compulsória a qualquer limite legal. Mas esse vício, como já dissemos em relação ao artigo 829.º-A do Código Civil português, torna inoperante a própria figura da sanção pecuniária compulsória, pois deve-se estender a esta sanção o princípio nullum crimen sine poena legali.

A quinta semelhança é o facto de a sanção só ser aplicável quando o obrigado esteja em mora no cumprimento, não podendo ser aplicada quando já se esteja perante uma situação de incumprimento definitivo. No artigo 333.º do Código Civil de Macau, podemos ver esse intuito limitativo no seguinte:

— o n.º 1 só se refere ao atraso no cumprimento, nada dizendo sobre o incumprimento;

— o n.º 3 diz que o tribunal só deverá cominar a sanção quando a considerar justificada;

— o mesmo n.º 3 diz que o tribunal, ao aplicar a sanção, deverá atender “à sua adequação às finalidades de compulsão ao cumprimento” (princípio da adequação).

Isto significa que, a partir do momento em que a mora se converta em incumprimento definitivo, ou a partir do momento em que o cumprimento se torne impossível, o incumprimento deixa de ser punível com a sanção pecuniária compulsória. Por isso, os dias que tiverem decorrido depois daquele momento não poderão ser contados para a determinação do valor total da sanção.

67 É esta a interpretação lógica que fazemos do confuso artigo 40.º da Lei Básica, tentando fugir ao círculo vicioso em que a letra do preceito obriga o intérprete a embrenhar-se. Sobre este preceito, ver ponto 5.2.2.

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4.1.4.1.2. Diferenças em relação ao regime do Código Civil português

Vejamos agora as diferenças. A primeira diferença é a inserção sistemática: no Código

português, o artigo 829.º-A aparece no capítulo relativo ao cumprimento das obrigações, ao passo que o artigo 333.º do Código de Macau se situa no subtítulo referente ao exercício e tutela de direitos.

O motivo desta diferente localização detecta-se logo na leitura do n.º 1 de um e de outro artigos: no Código português, a sanção pecuniária compulsória só é cominada para o caso de incumprimento de uma obrigação, enquanto que no Código de Macau ela também é prevista para o caso de violação de um direito absoluto (por exemplo, um direito real ou um direito de personalidade). A diferente localização é, pois, motivada, pela diferença de âmbito.

A segunda diferença é, precisamente, o âmbito de aplicação da sanção.

No Código português, o âmbito de aplicação é objecto de uma tripla delimitação:

— primeiro, a sanção só é aplicável no caso de incumprimento de obrigações, não podendo, por isso, ser aplicada a outros tipos de infracções civis;

— segundo, de entre as obrigações, a sanção só é aplicável às obrigações de facto infungível, servindo, exactamente, para compensar a impossibilidade de essas obrigações serem cumpridas através de execução sub-rogatória;

— terceiro, de entre as obrigações de facto infungível, a sanção só é aplicável às que não exijam do devedor especiais qualidades científicas ou artísticas.

O âmbito de aplicação traçado no Código de Macau é diferente nos seguintes aspectos:

— além do incumprimento de obrigações, abrange a violação de direitos absolutos;

— em matéria de obrigações, não faz qualquer distinção em função do tipo de prestação, abrangendo, além das obrigações de prestação de facto infungível, as obrigações de prestação de facto fungível, as obrigações de entrega de coisa certa e as obrigações de entrega de quantia certa, só excluindo, como vimos, as obrigações de prestação de facto infungível que

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exijam especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado;

— faz, contudo, uma distinção em função da fonte da obrigação, uma vez que só contempla as obrigações emergentes de um contrato ou de um facto originador de responsabilidade civil, deixando de fora as obrigações resultantes de outras fontes, nomeadamente os negócios jurídicos unilaterais, o enriquecimento sem causa e a gestão de negócios, sem prejuízo de abranger as obrigações de indemnização que estas fontes possam, indirectamente, originar.

A terceira diferença concerne ao momento da condenação na sanção.

O artigo 829.º-A do Código Civil português não diz em que momento é que pode ser feita essa condenação. É claro que, se ela pressupõe a certeza jurídica de que o destinatário da sanção está vinculado a cumprir determinada obrigação, ele não pode ser condenado na sanção antes de ser condenado, em acção declarativa, no cumprimento da própria obrigação. Há, portanto, um marco temporal antes do qual a condenação na sanção não pode ser efectuada. Mas, depois desse marco, a condenação pode ocorrer em qualquer momento, desde que o obrigado ainda se encontre em mora no cumprimento da obrigação.

No Código Civil de Macau, pelo contrário, o artigo 333.º/1 fixa um momento para a condenação na sanção: é o momento em que o destinatário da sanção é condenado, em acção declarativa, a adoptar a conduta necessária para não sofrer aquela sanção. Essa conduta consiste, consoante os casos, em cumprir a prestação a que o credor tenha contratualmente direito, pôr termo à violação de um direito absoluto do lesado ou indemnizar o credor.

O autor desta norma, Miguel Urbano, afirma claramente, na sua nota justificativa, que “a sanção pecuniária compulsória (…) poderá (…) ser arbitrada pelo tribunal na sentença condenatória (…)”.68

Se o credor não aproveitar a acção declarativa para requerer a condenação do obrigado na sanção pecuniária compulsória, ou se a requerer mas o tribunal não a cominar, não poderá vir a requerê-la depois, em acção autónoma. O que então poderá fazer é intentar uma acção executiva.

68 Luís Miguel Urbano, “Breve nota justificativa”, em Código Civil (versão portuguesa),

Imprensa Oficial de Macau, 1999, página XXIV.

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Ou seja, a condenação na sanção pecuniária compulsória visa tornar menos provável a necessidade de o credor propor uma segunda acção judicial.

Se for mesmo necessária uma segunda acção judicial, mais vale que esta seja a acção executiva, e isto por duas razões:

— por uma razão de tutela efectiva do interesse do credor, dado que o interesse do credor (ou, pelo menos, o interesse digno de tutela legal) não é a imposição de sanções ao devedor, mas o cumprimento da obrigação em falta ou o respeito pelo direito absoluto que estiver a ser violado;

— por uma razão de economia processual, visto que, se a segunda acção for intentada com o pedido de cominação de uma sanção pecuniária compulsória mas o juiz se recusar a cominá-la, ou se esta for cominada mas não for suficiente para convencer o obrigado a cumprir o disposto na sentença da primeira acção, o credor ainda terá de propor uma terceira acção judicial – a acção executiva – para, finalmente, obter a satisfação da sua pretensão.

A quarta diferença prende-se com a questão da culpa. O artigo 829.º-A do Código Civil português não indica

expressamente a culpa do devedor pelo atraso no cumprimento como pressuposto da aplicação da sanção pecuniária compulsória, ao passo que o artigo 333.º/1 do Código Civil de Macau indica-a expressamente, através da expressão “atraso culposo”.

Mas esta maior exigência da lei de Macau é meramente aparente. Com efeito, na aplicação do artigo 829.º-A do Código Civil

português, não pode deixar de ser observado o princípio nulla poena sine culpa. Este princípio, embora não esteja expressamente formulado na Constituição, “deduz-se da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º) e do direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1)”, como diz José de Sousa e Brito.69 Este fundamento permite-nos dizer que aquele princípio não é exclusivo do direito penal, onde está mais arraigado, mas comum a todo o direito sancionatório. Por isso, também se aplica à sanção pecuniária compulsória, apesar de o artigo 829.º-A não o mencionar.

Em matéria de culpa, o Código Civil de Macau não só não é mais exigente que o português, como o é menos, já que afirma, na parte

69 “A lei penal na Constituição”, em Estudos sobre a Constituição, 2.º volume, Livraria

Petrony, 1978, página 199.

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final do n.º 1, que a culpa do obrigado se presume. Esta presunção de culpa colide frontalmente com o princípio da

presunção da inocência, consignado nas seguintes normas: — artigo 32.º/2 da Constituição da República Portuguesa: “Todo

o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo possível compatível com as garantias de defesa”;

— artigo 29.º, 2.º parágrafo, da Lei Básica: “Quando um residente de Macau for acusado da prática de crime, tem o direito de ser julgado no mais curto prazo possível pelo tribunal judicial, devendo presumir-se inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação pelo tribunal”;

— artigo 14.º/2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: “Qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.

Mais uma vez deparamos com o problema de o teor literal das normas só compreender as infracções criminais. E, mais uma vez, mergulhamos na sua ratio para as estendermos a todo o tipo de infracções susceptíveis de acarretarem a aplicação de uma pena. A ratio das normas acima reproduzidas é a defesa da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais, que tanto podem ser afectados pela presunção de culpa em infracções criminais como em infracções não criminais.

Por isso, consideramos que o artigo 333.º/1, na parte em que diz que a culpa no atraso se presume, contraria as três normas acima transcritas.

A quinta diferença radica no facto de o artigo 829.º-A/1 do Código Civil português dizer que o tribunal “deve” aplicar a sanção, ao passo que o artigo 333.º/1 do Código Civil de Macau dizer que ele “pode” aplicá-la. Isto significa que, mesmo estando reunidos todos os pressupostos da aplicação da sanção, o tribunal pode decidir não aplicá-la, e o credor não poderá acusá-lo de estar a violar a lei.

A sexta diferença consiste no facto de o artigo 333.º do Código Civil de Macau, no seu n.º 4, dizer que “não é aplicável a sanção pecuniária compulsória nos casos em que tenha sido estabelecida uma cláusula penal compulsória com os mesmos fins”. Isto compreende-se: a cláusula penal compulsória também é um tipo de sanção pecuniária compulsória, só que, em vez de ser judicial, é contratual. Seria excessivo cumularem-se contra uma mesma pessoa, e numa mesma

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situação, duas sanções pecuniárias com o mesmo fim e com o mesmo beneficiário.

A regra do n.º 4 não existe no Código Civil português, porque este não contempla a figura da cláusula penal compulsória. Neste Código, a cláusula penal tem por objecto a fixação do “montante da indemnização exigível” (artigo 810.º/1). Ou seja, tem uma finalidade meramente compensatória.

Além de estar excluída no caso de ter sido estipulada uma cláusula penal compulsória, a sanção pecuniária compulsória também não pode ser aplicada ao locatário por mora no pagamento da renda (artigo 996.º/5) nem ao usufrutuário por mora no pagamento da prestação anual (artigo 1379.º/4). Isto justifica-se pelo facto de lhes ser cominada directamente pela lei uma outra sanção civil e com o mesmo beneficiário: uma indemnização independente do dano, que já analisámos no ponto 3.1.2.

A sétima diferença refere-se aos critérios a que o juiz deverá obedecer na fixação do valor da sanção. O Código Civil português alude apenas a “critérios de razoabilidade” (artigo 333.º/2), nada mais dizendo sobre o assunto. O Código Civil de Macau é mais elaborado neste aspecto, pois manda expressamente atender à condição económica do devedor, à gravidade da infracção e à adequação da sanção às finalidades de compulsão ao cumprimento (artigo 333.º/3).

Note-se bem que a existência de critérios para a fixação em concreto do valor da sanção não afasta a necessidade de haver um limite máximo legal para esse valor. No Código Penal também existem critérios de fixação da pena e nem por isso deixam de existir molduras penais. Aqueles critérios servem, precisamente, para o juiz, dentro de uma moldura penal abstracta, determinar a pena a aplicar no caso concreto.

Lembre-se, aliás, que o próprio autor da norma, Miguel Urbano, se afirma consciente “dos riscos que podem resultar de uma utilização abusiva deste mecanismo”.70 Este mecanismo é, obviamente, a sanção pecuniária compulsória.

A oitava diferença tem a ver com o beneficiário do produto da aplicação da sanção pecuniária compulsória. Enquanto que no direito português essa receita é dividida, em partes iguais, entre o credor e o Estado (artigo 829.º-A/3), no direito de Macau ela reverte

70 Obra citada, página XXIV.

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integralmente para o ofendido (artigo 333.º/1, na parte em que diz “pagar ao ofendido”). É, como já vimos, a solução do direito francês. Isto significa que, enquanto que em Portugal a sanção pecuniária compulsória é uma pena semi-pública, em Macau ela é uma pena privada.

A atribuição do produto da sanção ao credor implica o enriquecimento deste à custa do obrigado e, correlativamente, um empobrecimento deste em benefício daquele. Traduz-se, por isso, num enriquecimento sem causa, violando directamente os preceitos alterum non laedere e suum cuique tribuere e o princípio da justiça comutativa.71

4.1.4.2. Natureza jurídica A sanção pecuniária compulsória do direito de Macau e do

direito português tem por fonte principal, como vimos, a astreinte do direito francês. Vejamos como o civilista francês Jean Carbonnier descreve o espírito desta figura:“O espírito da instituição não é reparar o prejuízo causado pela falta de execução pontual; ela não se confunde, em princípio, com as indemnizações moratórias. O seu fim é levar o devedor a cumprir pelo receio de ser esmagado sob uma condenação pecuniária indefinidamente crescente.”72

E vejamos agora como é que Miguel Urbano, coordenador do projecto do Código Civil de Macau e autor do artigo 333.º desse Código, descreve o espírito da sanção pecuniária compulsória aí prevista:

“Trata-se pois de um mecanismo dirigido a vergar a resistência oferecida pelos devedores ao cumprimento atempado das decisões judiciais que os condenem a efectuar ou abster-se de certa conduta, com o fito de, através do receio de um mal maior, os pressionar a cumprirem o que devem ou de os pressionar a não praticarem de novo certa infracção.”73

Estas duas citações revelam claramente a finalidade da figura que

71 Ver 3.1.1.3. 72 Jean Carbonnier, obra citada, página 582. A tradução e o sublinhado são nossos. A versão

original é: “L′esprit de l′institution n′est pas de réparer le préjudice causé par le défaut d′éxecution ponctuelle; elle ne se confond pas, en principe, avec les dommages-intérêts moratoires. Son but est d′amener le débiteur à s′éxecuter par crainte d′être écrasé sous une condamnation indéfiniment croissante.”

73 Luís Miguel Urbano, obra citada, página XXV. Os sublinhados são nossos.

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estamos a analisar: obrigar o devedor a cumprir por medo de ser punido com “um mal maior”.

Em rigor, essa figura tem duas finalidades: uma finalidade punitiva, na medida em que pretende punir o devedor pela infracção praticada, e uma finalidade compulsória, pois também pretende compelir psicologicamente o devedor a fazer aquilo que for necessário para não ser castigado. A compulsão psicológica do devedor deriva, evidentemente, da antevisão da consequência negativa que lhe acarretará o incumprimento da decisão judicial.

Estas duas finalidades estão presentes em qualquer pena. Correspondem àquilo que na doutrina penalista costuma ser designado, respectivamente, por “fim retributivo” e “fim de prevenção especial”. A sanção pecuniária compulsória é, portanto, uma pena.

Esta pena é, quanto à entidade que a fixa, uma pena pública, mais precisamente uma pena judicial. Mas, atendendo ao beneficiário da sua aplicação, ela é uma pena privada.

Dizemos, por isso, que a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 333.º é uma pena privada judicial. É “uma”, mas não é a única, como vamos ver já a seguir.

4.2. Indemnização agravada em relação ao dano Olhemos agora para o artigo 1443.º:

Artigo 1443.º (Encrave voluntário)

1. O proprietário que, sem justo motivo, provocar o encrave absoluto ou relativo do prédio só pode constituir a servidão 74 mediante o pagamento de indemnização agravada.

2. A indemnização agravada é fixada, de harmonia com a culpa do proprietário, até ao triplo da que normalmente seria devida.

No ponto 3.1. analisámos a figura da indemnização independente do dano e vimos que se tratava de uma falsa indemnização. Agora vemos aqui um outro tipo de falsa indemnização: a indemnização

74 Trata-se da servidão legal de passagem.

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agravada em relação ao dano. Neste segundo tipo de falsa indemnização, a obrigação de

indemnizar já não surge independentemente da ocorrência de um dano, pois o n.º 2 estabelece como limite máximo do seu valor o triplo da indemnização “que normalmente seria devida”. Ora, a indemnização “que normalmente seria devida” é exactamente aquela cujo montante corresponde ao valor do dano (artigos 556.º a 558.º). Por isso, se o dano for zero, o limite da indemnização prevista no artigo 1443.º também será zero. Mas se, pelo contrário, o valor do dano for superior a zero, a indemnização poderá ultrapassá-lo, podendo chegar até ao triplo dele. O valor do dano condiciona, neste caso, o limite máximo da indemnização que o tribunal pode arbitrar, mas não o montante concreto que ele vai fixar, uma vez que esse montante é fixado de harmonia com a culpa do autor do encrave. Na parte em que excede o dano, essa “indemnização” é, portanto, uma pena. Note-se, aliás, que a graduação em função da culpa do infractor é típica do direito penal.

Pires de Lima e Antunes Varela, em comentário à disposição correspondente do Código Civil português – o artigo 1552.º 75 -, utilizam mais uma vez o adjectivo “criterioso” para justificarem esta solução. Explicam que ela, inspirada no artigo 561.º do Código Civil brasileiro, representou uma forma de evitar a total desprotecção do autor do encrave e de atender aos interesses gerais da economia, pois a doutrina dominante defendia, para este caso, a negação pura e simples do direito de constituição coerciva da servidão de passagem76.

Nós, pela nossa parte, embora reconheçamos que a indemnização agravada é uma solução mais razoável que a propugnada pela doutrina dominante em 1966, entendemos que ela ainda contende com os ditames da justiça, porquanto provoca um empobrecimento do dono do prédio dominante em benefício do dono do prédio serviente e, correlativamente, um locupletamento deste em detrimento do primeiro. Por outro lado, não é uma verdadeira indemnização, mas uma pena, pois o seu valor excede o do dano.

Tal como a indemnização independente do dano, também a indemnização agravada em relação ao dano pode ser considerada um tipo de sanção pecuniária compulsória. E é uma sanção pecuniária

75 Correspondente, mas não igual, pois fixa como limite o dobro da indemnização que

normalmente seria devida, e não o triplo. 76 Obra citada, volume III, páginas 640 e 641.

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compulsória ainda mais próxima da figura regulada no artigo 333.º, porquanto o seu valor também é fixado pelo tribunal, e não pela lei. Também é, por isso, uma sanção pecuniária compulsória judicial. Só que há uma diferença: o valor da indemnização agravada está sujeito a um limite legal, ao passo que o da sanção prevista no artigo 333.º não.

Podemos, assim, distinguir no Código Civil dois tipos de sanções pecuniárias compulsórias judiciais: a indemnização agravada em relação ao dano, de valor sujeito a limite legal, e a sanção regulada no artigo 333.º, de valor não sujeito a limite legal.

5. As penas privadas e o direito de propriedade privada 5.1. Considerações gerais Todas as penas privadas previstas no Código Civil implicam para

o devedor a perda de um determinado valor patrimonial e, por essa via, a privação do seu direito de propriedade, ou de outro direito patrimonial, sobre certo bem ou conjunto de bens.

Assim sendo, as disposições que instituem essas penas têm por efeito a subtracção das situações nelas visadas ao âmbito da protecção normativa conferida pelo direito de propriedade privada. Ou seja, aquelas disposições são normas restritivas do direito de propriedade.

Importa, por isso, verificar se essas normas cumprem ou não as condições juridicamente impostas à restrição do direito de propriedade. O incumprimento destas condições determinaria a invalidade jurídica daquelas normas.

Para fazermos essa verificação temos de saber, antes de mais, quais são essas condições, ou seja, qual é o regime constitucional de tutela do direito de propriedade privada vigente em Macau.

5.2. Tutela constitucional do direito de propriedade privada 5.2.1. O regime previsto na Constituição da República

Portuguesa Vamos analisar este problema primeiro à luz da Constituição da

República Portuguesa, atendendo a que era a lei fundamental de Macau aquando da elaboração, aprovação e entrada em vigor do Código Civil.

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O direito de propriedade privada está consignado no artigo 62.º/1 da Constituição, que diz o seguinte:

“A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.”

Este artigo insere-se no capítulo I (“Direitos e deveres económicos”) do título III (“Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”) da Constituição. Esta inserção pode levar a crer que o direito de propriedade privada está sujeito ao regime constitucional dos direitos económicos, sociais e culturais.

Este regime caracteriza-se fundamentalmente pelo facto de a determinação da medida dos direitos e a efectivação destes dependerem de legislação infraconstitucional, a qual é feita com base nas possibilidades económicas do Estado e na vontade política dos seus órgãos.

A outra grande categoria de direitos fundamentais – a dos direitos, liberdades e garantias – beneficia de um regime mais protector, o qual compreende, em especial, as seguintes regras:

Artigo 18.º (Força jurídica)

1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Neste artigo podemos ver a consagração dos seguintes princípios77:

— o princípio da aplicabilidade directa (artigo 18.º/1, 1ª parte); — o princípio da vinculação das entidades públicas e privadas

77 Sobre estes princípios, v. Gomes Canotilho, obra citada, páginas 483 a 491.

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(artigo 18.º/1, 2ª parte); — o princípio da exigência de autorização constitucional

expressa para a restrição (artigo 18.º/2, 1ª parte); — o princípio da proibição do excesso na restrição (artigo

18.º/2, 2ª parte), o qual compreende os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade;

— o princípio da legalidade das restrições (artigo 18.º/2 e 3); — o princípio da generalidade e abstracção da lei restritiva

(artigo 18.º/3, 1ª parte); — o princípio da não-retroactividade da lei restritiva (artigo

18.º/3, 2ª parte); — o princípio da salvaguarda do núcleo essencial do direito

restringido (artigo 18.º/3, 3ª parte). Este regime é aplicável, naturalmente, aos direitos enunciados no

título II da Constituição – que são, exactamente, os direitos, liberdades e garantias. Mas, além disso, são também aplicáveis aos direitos que, embora não estando enunciados no título II, possuam uma natureza análoga àqueles que dele constam. É o que diz o artigo 17.º:

“O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.”

E que direitos é que se podem considerar de natureza análoga aos do título II?

A Constituição, recorde-se, foi elaborada entre Abril de 1975 e Abril de 1976, durante um processo revolucionário em que as amplas massas de trabalhadores e estudantes foram desmantelando as diversas estruturas do regime fascista, derrubado no dia 25 de Abril de 1974, derrotaram as tentativas de instauração de uma nova ditadura, fascista ou estalinista, e impuseram como base da nova ordem político-jurídica as ideias de democracia, liberdade e socialismo.

No espírito democrático e revolucionário que inspirou a Constituição, todos os direitos deviam ser respeitados até ao mais elevado grau possível. Aqueles que não custassem dinheiro e cujo exercício fosse possível mesmo numa sociedade pobre deviam ser garantidos desde o incício, só podendo ser restringidos na medida do estritamente necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Aqueles que custassem dinheiro e cujo exercício dependesse, por isso, do desenvolvimento económico da sociedade deveriam ir sendo realizados progressivamente, de acordo com as possibilidades económicas que a sociedade fosse tendo em cada momento.

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Neste contexto, atendendo ao princípio da máxima protecção possível dos direitos fundamentais, deveremos considerar de natureza análoga aos direitos enunciados no título II todos aqueles aos quais seja possível, quer em termos lógico-jurídicos, quer em termos económicos, aplicar o regime dos direitos, liberdades e garantias.

O traço essencial dos direitos, liberdades e garantias é o facto de o seu exercício consistir numa actuação do próprio titular e não na obtenção de uma prestação do Estado ou de terceiros. Muitos deles até pressupõem a não-intervenção do Estado e de terceiros.

O traço essencial dos direitos económicos, sociais e culturais é, pelo contrário, o facto de o seu exercício consistir na obtenção de uma prestação do Estado ou de terceiro. O seu exercício pressupõe, portanto, necessariamente, uma actuação do Estado ou de terceiro.

É a auto-suficiência do titular no exercício dos direitos, liberdades e garantias que permite a aplicação a esses direitos de um regime amplamente garantístico, composto pelos princípios acima enumerados.

É a dependência económica em que se encontra o titular no exercício dos direitos económicos, sociais e culturais, com o custo económico que este exercício acarreta para o Estado ou para terceiros, que justifica a aplicação a esses direitos de um regime menos garantístico, onde estão ausentes, nomeadamente, o princípio da aplicabilidade directa, o princípio da vinculação de todas as entidades públicas e privadas e os princípios atinentes à restrição dos direitos.

Ora, o direito constitucional de propriedade privada, tutelando os direitos subjectivos patrimoniais que o titular tenha adquirido por modo legítimo, é, em princípio, exercitável independentemente de qualquer prestação do Estado ou de terceiro. O que o exercício desse direito constitucional pressupõe da parte do Estado e de terceiros é que não expropriem a pessoa de nenhum dos direitos patrimoniais que ela adquiriu legitimamente e que se abstenham de actos que lhe possam impedir ou perturbar o exercício de tais direitos.

Por conseguinte, é possível, quer em termos lógico-jurídicos, quer em termos económicos, aplicar ao direito de propriedade privada o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias.

Assim sendo, podemos considerar o direito de propriedade privada como um direito de natureza análoga aos direitos enunciados no título II da Constituição e aplicar-lhe, nomeadamente, o artigo 18.º, atrás reproduzido.

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Mesmo que assim não fosse, o direito de propriedade privada sempre beneficiaria de alguns dos princípios consignados nesse artigo, e isto por força das seguintes disposições:

Artigo 16.º/2 da

Constituição portuguesa

“Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

Artigo 17.º da Declaração Universal dos

Direitos do Homem

1. Toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade.

2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.

Artigo 29.º/2 da Declaração

Universal dos Direitos do

Homem

No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades, ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é parte integrante da Constituição portuguesa, por força da recepção que dela faz o artigo 16.º/2.

Consequentemente, também tem valor constitucional o artigo 29.º/2 da Declaração, o qual subordina a restrição de todos os direitos nela consignados aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade.

Ora, o conjunto de direitos fundamentais ao qual o artigo 29.º/2 se refere inclui o direito de propriedade privada, enunciado no artigo 17.º da mesma Declaração.

Por conseguinte, mesmo que não se lhe estendesse o artigo 18.º da Constituição, as restrições a esse direito estariam, ainda assim, subordinadas aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, por via do artigo 29.º/2 da Declaração.

Note-se, no entanto, que todas estas considerações se referem apenas à propriedade privada como direito, e não à propriedade privada como privilégio.

Os direitos regem-se pelos princípios da universalidade (artigo

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12.º) e igualdade (artigo 13.º). Os privilégios são a própria negação destes princípios.

Por isso, a propriedade privada como direito só pode abranger os tipos de bens susceptíveis de serem objecto de apropriação privada por todas as pessoas e em condições de igualdade.

Os tipos de bens que, em virtude de condições naturais, tecnológicas, económicas ou jurídicas, só possam ser objecto de apropriação privada por algumas pessoas não entram naquele âmbito, pelo que a propriedade privada sobre tais bens é um privilégio, e não um direito. Estão neste caso, em particular, os meios de produção de média ou grande envergadura e os prédios de grande dimensão.

Se se pretendesse transformar a propriedade privada sobre esses bens num autêntico direito, seria necessário atribuí-la em contitularidade a todas as pessoas e em condições de absoluta igualdade. Só que, nessa situação, o que se obteria já não seria uma propriedade privada, mas uma propriedade colectiva. Isto demonstra que, em relação àquele tipo de bens, a propriedade privada só pode existir como privilégio; para passar de privilégio a direito, a propriedade terá de passar de privada a colectiva.

Em suma, diremos o seguinte: -o direito de propriedade privada, quando seja um verdadeiro

direito, e não um privilégio, beneficia do regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias;

-quando seja um privilégio, a propriedade privada não goza do regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias, nem tão-pouco do regime dos direitos económicos, sociais e culturais, ou seja, não goza de nenhum dos regimes constitucionais de direitos fundamentais.

Neste nosso trabalho, só temos analisado a propriedade privada como direito, e é o que continuaremos a fazer nos pontos seguintes.

5.2.2. O regime actualmente aplicável em Macau Como já não vigora em Macau a Constituição da República

Portuguesa, temos de procurar na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e no direito internacional as normas e princípios fundamentais aplicáveis ao direito de propriedade privada.

Vejamos as seguintes normas da Lei Básica:

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Artigo 6.º

O direito à propriedade privada é protegido por lei na Região Administrativa Especial de Macau.

Artigo 40.º As disposições, que sejam aplicáveis a Macau, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, bem como das convenções internacionais de trabalho, continuam a vigorar e são aplicadas mediante leis da Região Administrativa Especial de Macau.

Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei. Tais restrições não podem contrariar o disposto no parágrafo anterior deste artigo.

A Lei Básica não é grandemente esclarecedora em relação ao

regime de protecção do direito de propriedade privada. Não precisava, obviamente, de estabelecer para ele um regime específico, mas deveria ter estabelecido um regime geral de protecção dos direitos fundamentais que lhe fosse aplicável. Mas não o fez.

O artigo 6.º diz que o direito de propriedade privada é “protegido por lei”. Ao dizer isto, parece ficar desprovido de aplicabilidade directa, fazendo com que, em vez de ser a lei ordinária a ter de se subordinar àquele direito, seja aquele direito a ficar subordinado à lei ordinária.

E a que parâmetros deve obedecer a lei ordinária para não restringir em excesso o direito de propriedade privada?

A disposição da Lei Básica que mais de perto toca no problema da restrição dos direitos fundamentais é o artigo 40.º.

Esta disposição diz que os casos em que a restrição pode ser feita têm de ser indicados em lei. É a formulação do princípio da legalidade. Mas, comparando esta formulação com o conteúdo que o princípio da legalidade tem na Constituição portuguesa, detectamos a seguinte diferença: a Constituição portuguesa afirma que só podem ser restringidos os direitos que a própria Constituição expressamente diz que podem ser restringidos, e não quaisquer direitos, ao passo que a Lei Básica não estabelece tal exigência.

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Além de dizer ao legislador que só ele é que pode restringir os direitos fundamentais e que, para fazer essa restrição, tem de utilizar a forma jurídica de acto legislativo, a lei fundamental de um território também lhe deve fornecer critérios materiais relativamente precisos para o orientar na restrição de direitos fundamentais e para impedir que ele cometa excessos nessa restrição.

Ora, o artigo 40.º da Lei Básica não fornece tais critérios. A 2ª parte do 2.º parágrafo desse artigo diz que as restrições de direitos fundamentais não podem contrariar o disposto no 1.º parágrafo do mesmo artigo. Mas aquilo que esse 1.º parágrafo diz é que as convenções internacionais aí referidas continuam a vigorar em Macau e “são aplicadas mediante leis da Região Administrativa Especial de Macau”. Literalmente, isto significa que é à própria lei ordinária de Macau que cabe definir os parâmetros dentro dos quais ela mesma irá restringir os direitos fundamentais. A exigência formulada na 2ª parte do 2.º parágrafo do artigo 40.º parece-nos, portanto, totalmente oca.

Poderíamos, todavia, conceber uma outra interpretação do artigo 40.º. Vejamos o que sobre ele diz Eduardo Cabrita:

“(…) a previsão de que os direitos previstos nos Pactos sobre Direitos Humanos ou nas Convenções da OIT são aplicadas mediante leis da RAEM não representa uma condicionante à aplicação dos Pactos, apenas uma obrigação para a RAEM de proceder à regulamentação dos referidos direitos.”78

Poderíamos, realmente, admitir que o 1.º parágrafo, ao dizer que as convenções internacionais nele referidas “se aplicam mediante leis da Região Administrativa Especial de Macau”, não pretenderia privar de aplicabilidade directa as normas daquelas convenções que fossem exequíveis por si mesmas, mas sim impor aos órgãos legislativos de Macau a obrigação de tornar exequíveis os direitos que constassem de normas não exequíveis por si mesmas.

Interpretando o 1.º parágrafo deste modo, então deveríamos concluir que a 2ª parte do 2.º parágrafo do artigo 40.º tem por efeito obrigar o legislador de Macau a observar as ditas convenções como limites ao seu poder de restrição de direitos fundamentais.

Com esta interpretação do artigo 40.º, algo divergente da letra do

78 Eduardo Cabrita, “Limites de natureza internacional e constitucional à autonomia da

RAEM”, em Perspectivas do Direito, volume III, n.º 5, Gabinete para a Tradução Jurídica, Macau, 1998, páginas 106 (versão portuguesa) e 135 (versão chinesa).

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preceito, já teríamos de reconhecer algum conteúdo útil à 2ª parte do seu 2.º parágrafo. Isto significaria que o legislador, ao restringir direitos fundamentais, não poderia nunca vir a fazer com que a amplitude desses direitos fosse inferior à que é garantida pelas supra-referidas convenções internacionais.

Esta interpretação pouco nos ajuda na definição dos limites à restrição legal do direito de propriedade privada, porquanto aquelas convenções internacionais não tutelam com clareza este direito.

Também não nos parece minimamente útil, para a questão que agora nos ocupa, a profissão de fé que a Lei Básica faz no modo de produção capitalista e na economia de mercado (artigo 5.º). Como já dissemos, a figura de que curamos é o direito de propriedade privada, imbuído dos justos princípios da universalidade e da igualdade, não são privilégios constituídos por uma pessoa através da expropriação de outras.

Há, no entanto, um princípio muito importante da Lei Básica que nos pode valer: o princípio da continuidade do sistema jurídico de Macau, revelado nos artigos 5.º, 18.º, 138.º e 145.º.

Este princípio significa que os valores, princípios e regras fundamentais que estruturavam o ordenamento jurídico de Macau antes da Reunificação continuam a vigorar em Macau depois dessa data, na medida em que não contrariem a Lei Básica. Eles foram objecto de recepção material por parte da Lei Básica.

Com base neste princípio, podemos dizer que o direito constitucional que deixou de vigorar em Macau é apenas aquele que seja contrário à Lei Básica. O direito constitucional previamente vigente que se encontre para além da Lei Básica, e que não colida com ela, continua a vigorar, complementando-a e suprindo as suas insuficiências.

Assim sendo, continuam a pertencer à ordem jurídica de Macau as normas e os princípios constantes do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.

Também continua a vigorar em Macau a Declaração Universal dos Direitos do Homem. E continua a vigorar a dois títulos:

— como parte integrante do direito constitucional previamente vigente em Macau, atendendo à recepção que faz da dita Declaração o artigo 16.º/2 da Constituição portuguesa;

— como expressão do direito internacional geral ou comum, positivando um “mínimo ético” universal que todos devem respeitar.

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Como já vimos, esta Declaração contém um preceito – o artigo 29.º/2 – que subordina a restrição dos direitos nela elencados – incluindo o direito de propriedade privada - aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade.

De todo o exposto concluímos que os parâmetros jurídicos pelos quais se deve reger hoje o legislador de Macau na edição de normas que possam contender com o direito de propriedade privada são os mesmos que vigoravam antes de 20 de Dezembro de 1999.

5.3. Princípios constitucionais relativos às penas Como é óbvio, as disposições do Código Civil referentes às

penas privadas não precisam apenas de se conformar com as normas e princípios constitucionais aplicáveis à generalidade das restrições do direito de propriedade privada. Têm também de se conformar com as normas e princípios constitucionais especificamente referentes às penas.

Quando analisámos a figura da sanção pecuniária compulsória, referimos vários princípios constitucionais relativos às penas.79 Vimos então que os preceitos que os consignam só aludem expressamente às infracções e penas de natureza criminal; mas também concluímos que eles, em virtude da sua ratio, são extensivos às infracções e penas de natureza não criminal.

Os princípios que então referimos são: — o princípio da tipicidade das infracções puníveis (resultante

de uma interpretação extensiva dos artigos 29.º/1 da Constituição portuguesa, 29.º da Lei Básica e 15.º/1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos);

— o princípio da legalidade das penas (resultante de uma interpretação extensiva dos artigos 29.º/3 da Constituição portuguesa e 15.º/1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos);

— o princípio da culpa (deduzido da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade);

— o princípio da presunção da inocência (decorrente de uma interpretação extensiva dos artigos 32.º/2 da Constituição portuguesa, 29.º/2 da Lei Básica e 14.º/2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).

79 V. supra, 4.1.2.

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Os primeiros dois princípios são expressões particulares do princípio geral da reserva de lei, ao qual estão submetidas todas as restrições de direitos, liberdades e garantias ou de direitos de natureza análoga.

A reserva de lei abrange, por um lado, a definição dos pressupostos da restrição do direito e, por outro, a forma e a medida da restrição desse direito.

A primeira componente do princípio geral da reserva de lei reflecte-se na área das penas através do princípio da tipicidade das infracções puníveis, pois estas infracções são os pressupostos da aplicação das penas.

A segunda componente do mesmo princípio reflecte-se na área das penas através do princípio da legalidade da pena, já que a pena é a forma da restrição do direito e a medida da pena é a medida da restrição do direito.

Isto significa que, mesmo que não fizéssemos uma interpretação extensiva dos preceitos acima mencionados, teríamos fundamento suficiente para aplicarmos a todas as penas o princípio da tipicidade das infracções puníveis e o princípio da legalidade das penas.

Os princípios da culpa e da presunção da inocência, pelo contrário, são específicos do direito sancionatório.

5.4. Os princípios constitucionais da justiça e da igualdade Além de deverem obediência às normas e princípios

constitucionais concernentes à restrição do direito de propriedade privada e às normas e princípios constitucionais relativos às penas, as penas privadas também se devem conformar com os princípios constitucionais mais gerais. Destes destacamos dois, de que já falámos a propósito da obrigação de indemnizar80: a justiça (artigo 1.º da Constituição portuguesa) e a igualdade (artigos 13.º da Constituição portuguesa e 25.º da Lei Básica).

A ideia de justiça compreende, de acordo com a análise que desse conceito fez Aristóteles, a justiça comutativa (igualdade aritmética entre as prestações de ambas as partes numa relação bilateral) e a justiça distributiva (repartição social dos bens em proporção com o mérito de cada pessoa).

80 V. supra, 3.1.1.3.

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Esta ideia recebeu depois outras formulações historicamente importantes, de que já destacámos os praecepta juris de Ulpiano: honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere.

Da formulação aristotélica da justiça comutativa e dos preceitos de Ulpiano brota imediatamente a proibição do enriquecimento sem causa.

A ideia de igualdade filia-se na ideia de justiça. Aliás, ambas as ideias quase se identificam. O próprio Aristóteles dizia: “O justo é o igual.”

A justiça comutativa significa, exactamente, a igualdade absoluta numa relação bilateral. Neste caso, e como também dizia Aristóteles, não haverá que ponderar o mérito nem as qualidades de nenhuma das partes na relação. A igualdade é puramente aritmética.

A justiça distributiva, por seu turno, consiste em tratar de modo igual situações iguais e de modo diferente situações diferentes, de acordo com a medida da diferença. Ela contém, portanto, uma ideia de proporcionalidade, e é nesta ideia de proporcionalidade que radica a diferença entre a igualdade e aquilo que Marx chamava de “igualitarismo primitivo de quartel”.

Isto significa que uma pena privada que viole o princípio da justiça estará a violar também, ipso facto, o princípio da igualdade.

5.5. Apreciação da constitucionalidade das penas privadas e

dos seus regimes jurídicos Encontrados os princípios estruturantes do regime constitucional

de tutela do direito de propriedade privada vigente em Macau, vamos agora ver se as penas privadas de que falámos estão ou não instituídas e reguladas em conformidade com os ditos princípios.

Na verdade, a maior parte destas questões já foi tratada aquando da análise de cada uma das penas. Por isso, bastar-nos-á agora sistematizar e sintetizar as considerações então expendidas. Para tanto apresentamos o seguinte quadro:

Indemnização independente do dano

Juro legal materialmente usurário

Sanção pecuniária compulsória

Indemnização agravada em relação ao dano

Tipicidade das infracções puníveis

Sim: as infracções são as condutas tipificadas nos artigos 996.º/1, 1027.º/1, 1044. º/1 e 1379.º.

Não Não Sim: a infracção é a conduta tipificada no artigo 1443.º/1.

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Legalidade das penas

Sim, porque a fórmula de cálculo está fixada no Código Civil, que foi aprovado por decreto-lei.

Legalidade material – sim, porque a taxa de juro está fixada em acto normativo. Legalidade formal – não, porque o acto normativo em que a taxa está fixada é uma ordem executiva, que é um acto regulamentar.

Não, porque a lei não fixa nem os valores, nem a fórmula de cálculo, nem os limites.

Sim, porque o Código fixa o limite máximo.

Culpa

A culpa não é exigida expressamente, mas também não é afastado o princípio geral da exigência de culpa.

Se a obrigação de pagar o juro for devida a mora do devedor, depende da culpa deste (787.º). Se a obrigação de pagar o juro derivar directamente de um contrato de mútuo, não depende da culpa do mutuário (artigo 1072.º).

Sim Sim

Presunção da inocência

Sim No caso da mora no cumprimento de uma obrigação, presume-se a culpa do devedor (artigo 788.º/1).

Presume-se culposo o atraso do devedor (artigo 333.º/1, in fine).

Sim

Necessidade, adequação e proporcionalidade

Não. Bastaria aplicar as regras gerais sobre mora no cumprimento.

Não. A taxa de juro legal deveria ser igual à taxa de inflação, sem prejuízo da indemnização pelos danos excedentes ou da remuneração pelo custos de funcionamento das instituições de crédito.

Necessidade: não, pois os meios anteriormente existentes já tutelavam suficientemente o credor. Adequação: sim, na medida em que o valor da sanção deve atender à adequação desta às finalidades de compulsão ao cumprimento (artigo 333.º/3). Proporcionalidade: sim, na medida em que o valor deve atender à gravidade da infracção (artigo 333.º/3).

Não. Bastaria aplicar as regras gerais sobre responsabilidade civil.

Salvaguarda do núcleo essencial

Sim Sim Sim Sim

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Justiça comutativa e proibição do enriquecimento sem causa

Não Não Não Não

Justiça distributiva

Não Não Sim, na medida em que o valor da sanção deve atender à condição económica do devedor e à gravidade da infracção (artigo 333.º/3).

Sim, mas apenas na medida em que o valor da sanção deve atender à culpa do infractor (artigo 1443.º/2).

Da observação deste quadro podemos extrair duas conclusões. A primeira conclusão é a de que todas as penas privadas

analisadas, sem excepção, estão inquinadas, nalgum ponto do seu regime, por alguma inconstitucionalidade.

A segunda conclusão é a de que todas as penas privadas analisadas violam os princípios constitucionais da necessidade e da justiça comutativa. E esta conclusão é muito importante, porquanto a violação destes dois princípios não resulta apenas do regime jurídico que foi adoptado por este Código Civil. Ela resulta, sim, da própria essência de cada uma das penas privadas quanto ao beneficiário.

Estas penas, exactamente por consistirem na atribuição de um benefício ao credor em detrimento do devedor, não podem deixar de provocar uma quebra na igualdade que deveria existir entre ambas as partes. Ofendem, portanto, necessariamente, o princípio da justiça comutativa. O que o regime jurídico adoptado pelo legislador pode fazer variar são a frequência e o grau dessa violação, mas não a violação em si.

Como a injustiça não é necessária para tutelar os direitos dos credores, as penas privadas, sendo necessariamente injustas, também são forçosamente desnecessárias.

Estas apreciações são extensivas às penas privadas que não analisámos neste trabalho – as penas privadas convencionais.

Em conclusão, todas as penas privadas são inconstitucionais.