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Artigos São Paulo / OUTUBRO 2018 1 Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário 40 anos de Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados”, São Paulo, 2018, p. 265-296. Autor: Silvio José Gazzaneo Júnior Gabriel Miranda Batisti NOVAS PERSPECTIVAS DA TRIBUTAÇÃO DE SERVIÇOS (E INTANGÍVEIS) 1. Contextualização dificuldades na definição do tratamento tributário aplicável a atividades que envolvem serviços e intangíveis No Brasil, a definição do tratamento tributário de uma atividade econômica é, por vezes, uma tarefa desafiadora. Embora a Constituição Federal tenha repartido competências tributárias distintas aos Estados, Municípios e União, as “fronteiras” entre essas competências nem sempre são claras e bem delineadas. Existem diversas situações limítrofes que demandam esforço interpretativo e estimulam a formação de um ambiente conflituoso, não só entre a administração tributária e os contribuintes, mas também entre os próprios entes tributantes. É interessante notar que a própria Constituição prevê a possibilidade de existirem conflitos de competência entre os entes tributantes e, à luz do princípio federativo, elege a lei complementar como mecanismo legislativo apto a dispor sobre a matéria 1 . 1 Art. 146, I

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São Paulo / OUTUBRO 2018

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Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário 40 anos de Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados”, São Paulo, 2018, p. 265-296.

Autor: Silvio José Gazzaneo Júnior Gabriel Miranda Batisti

NOVAS PERSPECTIVAS DA TRIBUTAÇÃO DE SERVIÇOS (E INTANGÍVEIS)

1. Contextualização – dificuldades na definição do tratamento tributário aplicável a atividades que envolvem serviços e intangíveis

No Brasil, a definição do tratamento tributário de uma atividade

econômica é, por vezes, uma tarefa desafiadora. Embora a Constituição Federal tenha repartido competências tributárias distintas aos Estados, Municípios e União, as “fronteiras” entre essas competências nem sempre são claras e bem delineadas.

Existem diversas situações limítrofes que demandam esforço

interpretativo e estimulam a formação de um ambiente conflituoso, não só entre a administração tributária e os contribuintes, mas também entre os próprios entes tributantes.

É interessante notar que a própria Constituição prevê a

possibilidade de existirem conflitos de competência entre os entes tributantes e, à luz do princípio federativo, elege a lei complementar como mecanismo legislativo apto a dispor sobre a matéria1.

1 Art. 146, I

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Como será abordado com mais detalhes adiante, a lei complementar

vem sendo utilizada pela ordem constitucional como mecanismo para dirimir conflitos de competência tributária desde a década de 1960.

No entanto, a legislação complementar não foi suficiente para evitar

situações de conflito entre a União, os Estados e Municípios, sendo comuns as controvérsias a respeito da incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), ou do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre uma mesma atividade.

Isso se deve, em parte, ao fato de que os conceitos historicamente

utilizados na diferenciação de tipos tributários, tais como os conceitos de circulação de mercadoria e de obrigação de dar e fazer, não foram suficientes para responder a todas as questões práticas que passaram a ser enfrentadas, em decorrência da evolução da legislação e das práticas negociais.

Veja-se que, nas últimas décadas, com o avanço da tecnologia e dos

negócios digitais, as atividades baseadas na exploração de bens intangíveis passaram a ter importância cada vez maior, inclusive em volume de receitas, e desafiam os paradigmas e a estrutura do sistema tributário nacional e até mesmo mundial.

O impacto das tecnologias digitais na ordem tributária foi um dos

temas de estudo e debate do projeto Base Erosion and Profit Shifting (BEPS) promovido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em conjunto com os países membros do “G-20”, que propõe a revisão e reformulação das regras que regem o sistema tributário num plano internacional. A despeito disso, ainda hoje se discute o tratamento tributário de atividades como o licenciamento de softwares, sob a perspectiva da dicotomia entre uma obrigação de dar e de fazer, e da caracterização do bem como uma mercadoria.

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Por outro lado, inclusive por razões federativas, o processo legislativo em matéria tributária é, via de regra, lento e difícil, o que impede a evolução da legislação no passo necessário para evitar conflitos e conferir maior grau de segurança jurídica.

Esse cenário se agrava ainda mais com a demora dos tribunais

superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal, em dar uma resposta célere e efetiva a respeito das disputas que exigem sua intervenção, aumentando, dessa forma, a sensação de insegurança.

Nesse contexto, pretende-se através deste estudo identificar os

principais conceitos e fundamentos utilizados para se delimitar a incidência do ISS, ICMS e IPI em situações de conflito, e identificar possíveis perspectivas para a tributação de serviços e intangíveis.

Para isso, será traçado um breve panorama da evolução legislativa

das regras de repartição de competência tributária que regem a interação entre esses tributos, para depois se analisar os principais conceitos e fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal na resolução de conflitos em situações limítrofes, identificando possíveis tendências e perspectivas para o futuro.

2. Considerações sobre conceito jurídico x conceito

econômico de serviços para fins de tributação Como será analisado com maior profundidade adiante, a definição

do conceito de serviços para fins de tributação é o elemento central de diversas situações de conflito de competência tributária relacionadas a intangíveis.

Historicamente, as principais referências conceituais de serviços

para fins de tributação são o conceito jurídico e o conceito econômico. O conceito jurídico decorre da definição de serviços prevista no

Código Civil (de 19162 e 20023), caracterizando-se como uma obrigação de fazer, geralmente associada ao fornecimento de trabalho.

2 Arts. 1.216 e seguintes. 3 Arts. 593 e seguintes.

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Com base nesse conceito, apenas as atividades que consistem efetivamente em obrigações de fazer estariam sujeitas ao ISS, ao passo que outras atividades que não correspondem a operações mercantis, tais como a locação de bens móveis, a exploração de bens intangíveis e a cessão de direitos autorais, não seriam alcançadas pelo ICMS, IPI ou pelo ISS.

Já o conceito econômico baseia-se na diferenciação entre bens

corpóreos/materiais e incorpóreos imateriais, classificando como serviço o “resultado da atividade humana na criação de um bem que não se apresenta sob a forma de bem material”4. Sob a perspectiva desse conceito, o termo serviços tem aplicação residual e alcança as atividades que não constituem transferência de propriedade de bens materiais (bens e produtos tangíveis).

Trata-se, portanto, de um conceito mais abrangente que o conceito

jurídico, que permitiria a incidência do ISS sobre atividades que não consistem em mera obrigação de fazer, tais como a cessão de direitos, locação de bens móveis, entre outras.

Se adotado o conceito econômico, a incidência do ISS seria “residual”

e poderia alcançar, ao menos em tese, todos os fatos que não estivessem na competência dos Estados (ICMS) e da União (IOF), independentemente de se tratar de obrigações de fazer.

A existência desses dois conceitos é o ponto de partida deste estudo,

e um indício das indefinições que se apresentam em relação à delimitação de competências tributárias no Brasil.

3. Panorama legislativo – evolução das regras de repartição

de competência tributária do ISS, ICMS e IPI 3.1. Antes da Constituição Federal de 1988 A delimitação dos campos de incidência do ISS, ICMS e IPI, na forma

em que esses tributos se apresentam atualmente, tem origem na reforma tributária deflagrada pela Emenda Constitucional n. 18/65. 4 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e prática do imposto sobre serviços. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 42.

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A referida emenda constitucional inaugurou um novo sistema

tributário em que a repartição de competências ganhou uma feição mais rígida. Os impostos foram “categorizados” com base em conceitos

econômicos e divididos em: impostos sobre o comércio exterior5, impostos sobre o patrimônio e a renda6, impostos sobre a produção e a circulação7 e impostos especiais8 (de competência da União).

Além disso, foram “criados” novos tributos, dentre eles o ISS, de

competência dos municípios, e o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias (ICM), imposto não cumulativo de competência dos Estados9, inseridos na categoria de impostos sobre a produção e circulação10.

Além do ICM e do ISS, os impostos sobre a produção e circulação

incluíam também o IPI11, o Imposto sobre Serviços de Transporte e Comunicações (salvo os de natureza estritamente municipal) e o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, e sobre Operações Relativas a Títulos e Valores Mobiliários (IOF)12, todos esses de competência da União.

5 Art. 7º. 6 Arts. 8º a 10. 7 Arts. 11 a 15. 8 Arts. 16 e 17. 9 A Emenda Constitucional n. 18/65 instituiu também uma espécie de “adicional” do ICM, a ser cobrado pelos municípios. No entanto, esse “adicional” do ICM, embora previsto inicialmente no Código Tributário Nacional, foi logo revogado pelo Ato Complementar n. 31/66, e excluído da Constituição de 1967. Esse fato reforça a noção de rigidez na repartição de competências tributárias a partir da Emenda Constitucional n. 18/65, na medida em que se afastou a possibilidade de que dois entes tributantes exigissem o mesmo tributo. 10 Em termos gerais, são classificados como “indiretos” os tributos cuja carga deve ser suportada pelo consumidor final dos produtos, ou adquirente dos serviços. 11 A criação do IPI ou imposto que lhe fizesse as vezes é anterior à Emenda Constitucional n. 18/65. Segundo José Roberto Vieira, o imposto teria nascido em 1891, batizado como “Imposto sobre o Consumo” (“Imposto sobre Produtos Industrializados: Uma Águia Garcia Marquiana Entre os Tributos”. Publicado na coletânea: Tributação de Empresas – Curso de Especialização, São Paulo, Quartier Latin e FGV, 2006, p. 157-196. Coordenadores: Eurico Marcos Diniz de Santi, Roberto Quiroga Mosquera e Fernando Aurélio Zilvetti.) 12 Art. 14.

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Por fim, embora alocados em categorias distintas, os impostos

especiais de competência da União previstos na Emenda Constitucional n. 18/65 também eram voltados ao consumo, incidindo sobre a produção, importação e consumo de combustíveis, energia elétrica e minerais13.

O sistema inicialmente concebido na Emenda de 1965 foi

posteriormente ajustado e regulamentado pela legislação superveniente, com destaque para a Constituição Federal de 1967 e respectivas Emendas, a Lei n. 5.172/66 (Código Tributário Nacional) e o Decreto-lei n. 406/68.

A partir da reforma tributária iniciada com a Emenda Constitucional

n. 18/65, os campos de incidência do ICMS, ISS e IPI foram se amoldando essencialmente a partir da competência:

• dos Estados, para exigirem o ICM sobre operações de

circulação de mercadorias (bem corpóreo destinado à comercialização);

• da União, para exigir o IPI sobre operações com produtos

industrializados, ou seja, mercadorias submetidas a processo que altere a sua natureza, finalidade ou as aperfeiçoe para o consumo14; e

• dos Municípios, para exigirem o ISS, sobre a prestação de

serviços de qualquer natureza, definidos em lei complementar, e não compreendidos na competência dos Estados e da União (IOF, transportes e comunicação).

A nova ordem constitucional tributária, embora autorizasse a

incidência cumulativa do IPI e do ICM, vedou expressamente essa possibilidade com relação ao ICM e ao ISS, vedação essa que pode ser interpretada como extensiva ao IPI.

13 Art. 16. 14 Art. 46, parágrafo único, do Código Tributário Nacional.

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A instituição dessa regra excludente de competências tornou o “relacionamento” entre os tributos conflituoso, no que se refere à definição do tratamento tributário de atividades mistas ou híbridas, ou seja, aquelas que envolvem, ao mesmo tempo, um serviço (fazer ou atividade humana) e o fornecimento de materiais ou mercadorias.

Da mesma forma, surgiram conflitos também entre o ISS e o IPI,

tendo em vista que, diante do conceito amplo de industrialização adotado na legislação do tributo federal, certas atividades previstas na lista de serviços tributáveis pelo ISS vieram a coincidir com atividades/processos industriais, especialmente nos casos de industrialização por encomenda15.

A própria Emenda Constitucional n. 18/65 anteviu a possibilidade

de conflitos na interação entre o ISS e o ICM, e determinou que fossem estabelecidos, em lei complementar, os critérios necessários para distinguir as atividades sujeitas a um ou outro tributo16.

A Constituição Federal de 1967, por sua vez, incluiu dispositivo17

mais abrangente, mantido nas alterações constitucionais posteriores, que elege a lei complementar como instrumento normativo apto para dispor sobre conflitos de competência entre os entes tributantes.

Nesse contexto, a regulamentação inicial do ISS e do ICM, incluindo

os critérios para diferenciação entre os tributos, foi estabelecida no Código Tributário Nacional (anterior à Constituição de 1967). As regras previstas no Código Tributário Nacional autorizavam a incidência cumulativa do ISS e do

15 A industrialização por encomenda é uma operação regulamentada pela legislação do IPI e do ICMS, na qual um “industrializador” realiza uma etapa do (ou todo o) processo industrial de um determinado produto em favor de um terceiro contratante, utilizando-se dos materiais e insumos fornecidos por esse terceiro. Se a atividade/processo industrial também configurar prestação de serviço tributada pelo ISS, poderá haver conflito. 16 Art. 15, parágrafo único. 17 Art. 19, § 1º.

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ICM sobre uma mesma atividade (atividade mista) e regulamentavam a interação entre os tributos com base em critérios quantitativos.

Nas atividades mistas (serviço com fornecimento de mercadorias e

vice-versa), propôs-se a incidência cumulativa dos tributos, cada um adotando como base de cálculo o valor correspondente a 50% do total da operação. Como exceção, haveria incidência apenas do ISS caso o componente serviço fosse o objeto essencial da atividade e representasse 75% ou mais da receita média mensal das atividades18.

Vale destacar que, dentre as atividades sujeitas ao ISS, o Código

Tributário Nacional previa, de maneira expressa, a locação de bens móveis, e posteriormente atividades de jogos e diversões públicas19.

No entanto, essa regulamentação não se consolidou, e foi

posteriormente revogada pelo Decreto-lei n. 406/68, que passou a ser o instrumento normativo dedicado a dispor sobre a interação entre esses tributos, inclusive nas hipóteses de conflito de competência.

O Decreto-lei n. 406/68, ao dispor a respeito da diferenciação entre

os tributos, instituiu um critério que privilegiou a incidência do ISS, determinando que a incidência do imposto municipal excluísse a incidência dos demais impostos sobre o consumo (ICM e IPI)20.

Estabeleceu-se a regra geral de que o imposto estadual não incidiria

na saída de mercadorias do estabelecimento de prestador de serviços sujeitos ao ISS (previstos em lista), quando utilizadas na prestação dos serviços. Em caráter excepcional, a incidência do ICM seria possível quando a própria lista de serviços autorizasse a cobrança sobre os materiais utilizados na prestação do serviço21.

É interessante notar que, na redação original do Decreto-lei n.

406/68, o rol de serviços tributáveis pelo ISS era formado, quase que 18 Arts. 53, § 3º, e 71, § 2º, do Código Tributário Nacional. 19 Art. 71, § 1º, II e IV, do Código Tributário Nacional. 20 Art. 8º, § 1º. 21 Art. 1º, § 3º.

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integralmente, por atividades de cunho profissional, porém incluía as atividades de locação de espaço em bens móveis e venda de bilhetes de loterias22.

Com as alterações promovidas pelo Decreto-lei n. 834/69 e pela Lei

Complementar n. 56/87, foram incluídas na lista de serviços outras atividades controversas, tais como a distribuição de filmes e videotapes23, arrendamento mercantil24 e serviços de planos de saúde25.

Nota-se, portanto, que desde a edição do Decreto-lei n. 406/68, a

legislação não definia, como serviços tributáveis pelo ISS, apenas atividades profissionais ou que correspondessem essencialmente a uma obrigação de fazer, conforme o conceito da legislação civil.

Por outro lado, o Decreto-lei n. 406/68 não trouxe referências

expressivas a respeito do tratamento a ser conferido aos bens intangíveis. Na lista de serviços original e em suas alterações posteriores, a

atividade que mais se aproximava da exploração de direitos autorais ou de propriedade intelectual (intangíveis) era justamente a distribuição de filmes cinematográficos.

Afora isso, outra regra que versava sobre direitos autorais

autorizava as empresas produtoras de discos fonográficos a descontar, do valor do ICM devido sobre a venda de discos, o valor comprovadamente pago aos artistas a título de direito autoral26.

3.2. Após a Constituição de 1988 A Constituição de 1988 trouxe alterações importantes nas regras de

repartição de competências tributárias, porém manteve a estrutura básica relativa ao ISS, IPI e ICM.

22 Item XVIII – “Locação de espaços em bens móveis”; Item XXIX – “Venda de bilhetes de loterias”. 23 Item 63 da lista de serviços prevista no Decreto-lei n. 834/69. 24 Item 79 da lista de serviços prevista na Lei Complementar n. 56/87. 25 Item 6 da lista de serviços prevista na Lei Complementar n. 56/87. 26 Art. 3º, § 4º.

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As principais alterações ocorreram justamente no campo do tributo

estadual, que absorveu os impostos federais sobre a prestação de serviços de transporte intermunicipal e interestadual, e sobre a prestação de serviços de comunicação, passando a se chamar “ICMS”.

Adicionalmente, o ICMS passou a incidir, juntamente com os

impostos de importação e exportação, sobre operações com combustíveis, energia elétrica e minerais, ocupando a competência anteriormente atribuída aos impostos especiais de competência da União.

Com as alterações em sua estrutura e seu escopo de incidência, o

ICMS passou a ser regulamentado pela própria Constituição e pelo Convênio ICMS n. 66/8827, posteriormente substituído pela Lei Complementar n. 87/96.

Por outro lado, o IPI e o ISS mantiveram, em termos gerais, a mesma

regulamentação. O Decreto-lei n. 406/68 foi recepcionado pela Constituição Federal

de 1988 e se manteve como a principal norma regulamentar do ISS até a edição da Lei Complementar n. 116/2003.

Da mesma forma, as principais normas regulamentares do IPI –

Código Tributário Nacional e Lei n. 4.502/64, com alterações promovidas pelo Decreto-lei n. 34/66 – mantêm-se vigentes até os dias atuais.

O Convênio ICMS n. 66/88, a Lei Complementar n. 87/96 e a Lei

Complementar n. 116/2003 mantiveram o critério definidor da incidência do ISS ou do ICMS em atividades mistas previsto no Decreto-lei n. 406/68, privilegiando a incidência do tributo municipal, nas hipóteses de fornecimento de mercadorias juntamente com a prestação de serviços sujeitos ao ISS, ressalvadas as hipóteses em que a própria lista de serviços autoriza a incidência do ICMS sobre os materiais28. 27 O Convênio ICMS n. 66/88 foi editado com base no art. 34, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988. 28 Art. 2º, VIII, do Convênio ICMS n. 66/88, art. 1º, § 2º, da Lei Complementar n. 116/2003 e art. 2º, IV e V, da Lei Complementar n. 87/96.

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Por outro lado, a lista de serviços instituída pela Lei Complementar

n. 116/2003 contemplou um número maior de atividades que não se limitavam a uma obrigação de fazer pura, inclusive atividades relacionadas à exploração de bens intangíveis, tais como o licenciamento de uso de softwares, a cessão de direito de uso de marcas e sinais de propaganda e a concessão de franquias.

Mais recentemente, a Lei Complementar n. 157/2016 promoveu

novas alterações na legislação do ISS, inclusive alterações na lista de serviços com o objetivo de atualizá-la às práticas negociais atuais, cada vez mais “intangíveis”.

A Lei Complementar n. 157/2016 incluiu na lista de serviços a

atividade de disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos audiovisuais29 (que envolve a cessão de uso de bens intangíveis), e também a atividade de cessão de espaço em cemitérios para sepultamento (obrigação de dar)30.

Além disso, acrescentou outras atividades baseadas em tecnologias

digitais, e alterou a redação dos itens 13.05 e 14.05 da lista de serviços da Lei Complementar n. 116/2003, que se referem a atividades identificadas como hipóteses típicas de industrialização por encomenda, ajustando, dessa forma, a legislação ao entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal, como será visto adiante.

Portanto, sobre o ponto de vista estritamente legislativo, desde a

Emenda Constitucional n. 18/65 até os dias atuais, o conceito de prestação de serviços para fins de incidência do ISS se aproxima mais do conceito econômico do que do conceito jurídico.

Todavia, a mera análise da legislação não permite concluir que o

conceito econômico seja efetivamente aceito em nosso ordenamento, pois as atividades que destoam do conceito jurídico de serviços, ainda que previstas na lista de serviços sujeitos ao ISS, são frequentemente questionadas. Vejamos, então, os parâmetros utilizados pelo Supremo Tribunal Federal ao analisar essas e outras discussões relacionadas à tributação de serviços e intangíveis. 29 Item 1.09. 30 Item 25.01.

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4. Panorama jurisprudencial 4.1. Conflitos ICMS/IPI X ISS Como visto anteriormente, desde a edição do Decreto-lei n. 406/68,

a regra geral aplicável a atividades mistas – aquelas tratadas como serviços sujeitos ao ISS e que envolvem ao mesmo tempo o fornecimento de produtos/mercadorias – é que prevalece a incidência do ISS, em caráter excludente da incidência do ICMS/IPI. Em situações excepcionais, a legislação regulamentar do ISS poderá autorizar a incidência do IPI/ICMS sobre os produtos fornecidos.

O critério legislativo, no entanto, não é suficiente para dirimir todas

as possibilidades de conflito. Em muitos casos, faz-se necessária uma análise a respeito da

essência/substância objeto da contratação entre as partes, com o objetivo de identificar se predomina o caráter de operação mercantil (compra e venda de mercadorias), ou de prestação de serviços (obrigação de fazer) que envolve o fornecimento de materiais, visto que essa análise irá determinar a incidência do ICMS/IPI ou ISS.

Esse tipo de análise pode assumir certo nível de complexidade, de

acordo com a natureza das atividades e o modelo de negócios adotados, sendo certo que o advento tecnológico incorporou dificuldades técnicas quanto aos próprios fatos analisados.

Dentre os casos já analisados pelo Supremo Tribunal Federal,

merece destaque a decisão proferida em sede cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.389, na qual se discutia o tratamento a ser conferido às atividades de composição gráfica em embalagens produzidas sob encomenda.

A ação foi proposta pela Associação Brasileira de Embalagem

(ABRE), que pleiteava o reconhecimento de que as atividades de composição gráfica, quando inseridas no processo produtivo de embalagens, não estariam sujeitas ao ISS, mas apenas ao ICMS/IPI.

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A autora argumenta que, embora a composição gráfica esteja

prevista no item 13.05 da lista de serviços da Lei Complementar n. 116/2003, essas atividades não poderiam ser tributadas pelo ISS quando correspondessem a uma etapa do processo produtivo de embalagens, como ocorre na industrialização por encomenda. Nesse sentido, argumentou que a incidência do ISS (e não do ICMS/IPI) geraria uma distorção no fluxo de créditos do ICMS/IPI ao longo da cadeia produtiva.

A medida cautelar foi julgada em 03.02.2011, e prevaleceu o

entendimento manifestado no voto do Ministro Relator Joaquim Barbosa, no sentido de que não incidiria o ISS sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subsequente de industrialização ou de circulação de mercadoria.

O voto proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa faz um apanhado

interessante de precedentes em que o Supremo Tribunal Federal analisou situações de conflito de competência entre o ISS e o IPI/ICMS, e faz referência, inclusive, à decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 176.626, que tratou da incidência do ICMS sobre softwares, e será analisado com mais detalhes adiante.

A partir desse apanhado, o voto do Ministro Joaquim Barbosa

destaca inicialmente que a jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal a respeito da mesma matéria determinava a incidência do ISS ou do ICMS/IPI a partir de um critério relativo às características dos bens/produtos31.

De acordo com esse critério, se os bens são colocados

indistintamente no comércio, dotados de características e qualidade quase uniformes, sofreriam incidência do ICMS estadual. Por outro lado, se elaborados “por encomenda e segundo especificações singulares”, haveria incidência do ISS.

Esse critério, relativo às características do bem/produto, serve de

referência para a definição do tratamento tributário de operações mistas e continua pertinente para os conflitos que se restringem à incidência do ICMS ou do ISS.

31 Recursos Extraordinários n. 94.939, 102.599 e 111.566.

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Contudo, para os conflitos que envolvem também o IPI, como é o

caso das hipóteses de industrialização por encomenda, a decisão proferida em sede cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.389 adotou um critério distinto, segundo o qual o tratamento da atividade deve ser definido a partir da função dessa atividade no ciclo produtivo, independentemente de ser elaborado por encomenda ou com base em especificações do cliente.

Nesse sentido, entendeu-se que as embalagens personalizadas

destinadas à integração ou utilização em processo produtivo ou na comercialização de outros bens e produtos assume a característica de insumo, e estaria sujeita apenas ao ICMS e ao IPI.

Esse posicionamento do Supremo Tribunal Federal corrobora a

corrente doutrinária segundo a qual a própria essência do negócio jurídico seria suficiente para eliminar o conflito de competências entre o IPI e o ISS, mediante a verificação se aquela determinada atividade está destinada ao consumo do próprio encomendante (serviço), ou se está inserida no ciclo de produção (operação com produto industrializado). Ou seja, para dirimir o conflito de competência, o intérprete deve se valer das próprias premissas utilizadas pelo constituinte para definir as competências tributárias.

Ao se posicionar nesse sentido, Hélio Barthem Neto32 é enfático ao

dispor que a produção em escala industrial não pode ser considerada um serviço, para fins de incidência do ISS, de competência municipal, bem como é vedado que um serviço específico e alheio a um ciclo de produção seja considerado industrialização, para fins de incidência do IPI, de competência da União. Haveria, neste caso, nítida invasão de competência entre os referidos entes políticos.

É importante notar que a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.

4.389 seria julgada em conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.413, que tinha um objeto mais amplo do que o da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.389, e versava sobre outros produtos da atividade de composição gráfica como o fornecimento de bulas, etiquetas, adesivos, manuais, rótulos, entre outros. 32 BARTHEM NETO, Hélio. “Lei Complementar n. 116/03 Conflitos de incidência entre o ISS e o IPI”. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 123, São Paulo: Dialética, dezembro/2005, p. 31-46.

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No entanto, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.

4.413 foi adiado após voto-vista da Ministra Ellen Gracie, que concordou com a conclusão descrita acima com relação à produção de embalagens, mas ressalvou a aplicação dessa conclusão para outros produtos da atividade de composição gráfica.

Não obstante, o entendimento manifestado com relação a

embalagens foi unânime e deve ser visto como uma referência importante em situações de conflito. Tanto assim, que a Lei Complementar n. 157/2016 alterou a redação do item da lista de serviços que trata dos serviços de composição gráfica (13.05) para prever a incidência do ICMS nas hipóteses em que os produtos são destinados a comercialização ou industrialização.

Por fim, deve se ressaltar que a matéria também será analisada sob

a sistemática da repercussão geral no julgamento do Recurso Extraordinário n. 882.461.

4.2. Definição de serviços – Critério obrigação de dar x fazer Em linhas gerais, o alcance da expressão “serviços de qualquer

natureza”, utilizada pelo texto constitucional para fins de outorga da competência tributária, sempre foi controvertido.

De um lado, alguns juristas sustentam que a acepção econômica é a

mais adequada, de forma que toda atividade humana que não se apresenta sob a forma material pode ser definida como serviço. Em última instância, essa acepção autoriza a incidência do imposto sobre hipóteses de cessão de direitos, locação de bens móveis e, a bem da verdade, sobre praticamente todos os negócios jurídicos que não possam ser configurados como operações mercantis puras. Conforme destacado anteriormente, aparentemente essa foi a intenção original do legislador.

Por outro lado, a acepção jurídica do termo serviço está

essencialmente vinculada à existência de um negócio jurídico mediante o qual uma pessoa se obriga a fazer algo em troca de uma determinada retribuição. Esta relação jurídica, a saber, a prestação de serviço, está regulada pelo Código Civil, entre seus arts. 593 e 609, sob o capítulo “Da Prestação de Serviço”.

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Como se sabe, o direito das obrigações visa tutelar as relações

jurídicas decorrentes das inúmeras projeções da autonomia privada, principalmente na esfera patrimonial. Nesse sentido, a obrigação pode ser entendida como dever ou ainda dívida, na medida em que uma determinada pessoa se obriga a satisfazer uma prestação em proveito de outra. Essa prestação, que pode ser uma ação ou omissão, é justamente o objeto da obrigação.

Para a doutrina civil, são basicamente três os modos de conduta

humana que podem constituir objeto da obrigação: dar, fazer ou não fazer. Não há dúvida de que a natureza jurídica da prestação de serviços é uma obrigação de fazer, ou seja, a prestação de atividade lícita, não vedada pela lei, oriunda da energia humana aproveitada por outrem, nos termos do já citado art. 594 do Código Civil.

Definidas as duas correntes, inicialmente o Supremo Tribunal

Federal se posicionou no sentido de que o ISS poderia incidir sobre qualquer atividade economicamente enquadrada no conceito de serviço33. Privilegiou-se, nesse primeiro momento, a acepção econômica de serviço.

No entanto, em 01.10.2000, por ocasião do julgamento do Recurso

Extraordinário n. 116.121, o Supremo Tribunal Federal voltou a apreciar a questão. Nessa oportunidade, declarou-se a inconstitucionalidade da cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, sob o fundamento de que serviço, para fins de incidência do ISS, deve ser considerado em sua acepção jurídica (civil). A partir dessa decisão, inúmeras outras foram proferidas pelos tribunais brasileiros acerca da não incidência do ISS sobre a locação de bens móveis. Nesse contexto, o Presidente da República, por ocasião da análise do projeto de lei que deu origem à Lei Complementar n. 116/2003, vetou o subitem 3.01 da lista de serviços a ela anexa, sob a justificativa de que o Supremo Tribunal Federal já havia declarado a inconstitucionalidade de tal exação. A partir dessa decisão, balizou-se o entendimento de que somente as obrigações de fazer, desde que previstas em Lei Complementar, poderão ser tributadas pelo imposto municipal. 33 Recurso Extraordinário n. 100.779/SP, Rel. Min. Oscar Corrêa, 27.08.1984; Recurso Extraordinário n. 112.947/SP, Rel. Min. Carlos Madeira, 19.06.1987; e Recurso Extraordinário n. 115.103/SP, Rel. Min. Oscar Corrêa, 22.03.1988.

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Passados nove anos dessa decisão, o Supremo Tribunal Federal

voltou a enfrentar questão semelhante ao avaliar a incidência do ISS sobre o leasing financeiro34. Nesse caso, a argumentação dispensada pelos contribuintes estava essencialmente fundamentada na comprovação da inexistência de obrigação de fazer nos contratos de arrendamento mercantil, de forma a equiparar o tratamento jurídico ao das locações.

Naquela oportunidade, por 10 votos a 1, o Tribunal decidiu pela

constitucionalidade da exação. Algumas manifestações foram mais profundas e chegaram, inclusive, a sugerir que o Supremo Tribunal Federal estava superando as premissas estabelecidas em 2000.

O Ministro Eros Grau, então relator, consignou que a Constituição

faz referência a serviços de qualquer natureza, não havendo necessidade, portanto, que esse serviço tenha natureza jurídica de obrigação de fazer.

O Ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, acompanhou esse

entendimento, acrescentando que o conceito de serviço não deve decorrer de uma obrigação de fazer, pura e simplesmente. Para fundamentar seu raciocínio, o Ministro faz uma análise da legislação que trata das relações de consumo – Código de Defesa do Consumidor, concluindo que não há conceito incontroverso ou imutável de serviço.

O Ministro Cezar Peluso asseverou com convicção plena que

interpretar o ordenamento vigente com a aplicação de concepções adequadas à simplicidade do Império Romano, em que todas as obrigações se resumiam em dar, fazer e não fazer é um erro. Na sua visão, existem atividades complexas, que não se resumem nessa classificação obrigacional.

A partir desse julgamento, exsurgiu a preocupação de que o

Supremo Tribunal Federal estava privilegiando outros aspectos para definir a incidência do ISS: a atividade deve estar na lista de serviços, ainda que não seja típica obrigação de fazer; não se pode tomar por base apenas o conceito de obrigação de fazer e obrigação de dar, visto que são simplistas e ultrapassados para os dias atuais.

34 Recursos Extraordinários n. 592.905 e 547.245, julgados em 02.12.2009.

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A preocupação, todavia, não se justificou. Primeiro porque a leitura atenta dos acórdãos denota que os

fundamentos utilizados pelos ministros partiram de um mesmo ponto: arrendamento é atividade complexa e autônoma, que caracteriza serviço em razão da preponderância das obrigações de fazer em detrimento das obrigações de dar.

Ratifica esse entendimento o fato de o julgamento ter definido que o

ISS deve incidir apenas sobre o leasing financeiro e sobre o lease-back, por se tratar de atividades complexas, cuja natureza jurídica não pode ser totalmente definida pela dicotomia existente entre as obrigações de dar e fazer35. Segundo o Supremo Tribunal Federal, essas modalidades de leasing envolvem obrigações de dar e – cumulativamente – obrigações de fazer, motivo pelo qual o pressuposto de incidência do ISS estaria configurado.

Do voto do Ministro Eros Grau, extrai-se: no leasing financeiro,

prepondera o fator financiamento, enquanto no leasing operacional sobreleva o aspecto locação. Assim como: financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir. E também: atividade que não se exerce senão mediante prestação de considerável parcela de serviços diversificados, [...] serviços esses insuscetíveis de ser absorvidos pela subjacente operação de locação de bens, a qual, de sua vez, obviamente, não gera obrigação de dar.

Do voto do Ministro Ricardo Lewandowski extrai-se: leasing é um

contrato complexo, em que predomina a prestação de serviço e, como tal, é tributável pelo ISS. Do voto do Ministro Carlos Britto, extrai-se: não há dúvida de que a obtenção de financiamento para a compra de um bem, por exemplo, um automóvel, implica disponibilizar um crédito, que é fazer um crédito, portanto, a obrigação de fazer.

35 De outra sorte, nesse mesmo julgamento, o Ministro Eros Grau consignou que no leasing operacional prepondera, em sua essência, a obrigação de dar, tal qual uma locação.

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Com efeito, a análise crítica da decisão revela que realmente houve uma tentativa de superação da jurisprudência firmada em 2000, notadamente nos votos dos Ministros Joaquim Barbosa e Cezar Peluso. No entanto, as razões de decidir pela tributação do ISS sobre os contratos de leasing, em sua essência, estão fundamentadas na preponderância da obrigação de fazer nessa modalidade contratual.

Além disso, contemporaneamente à decisão do leasing, tramitava

perante o Supremo Tribunal Federal a Proposta de Súmula Vinculante 3536, que posteriormente viria se tornar a Súmula Vinculante n. 31, donde se extrai, da manifestação do Ministro Joaquim Barbosa, que ela estava sendo “proposta” justamente para ratificar o entendimento consolidado no julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121.

Com a publicação da Proposta de Súmula Vinculante 35 no Diário de

Justiça, abriu-se a oportunidade para os “interessados” se manifestarem sobre o teor do verbete proposto. Nesse particular, todas as manifestações fizeram referência expressa ao fato de que, com o julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121, o Supremo Tribunal Federal definiu que somente podem ser tributadas pelo ISS as atividades que possuam natureza jurídica de obrigações de fazer.

Uma vez aprovada a adequação da proposta, ela foi posta a

julgamento em 04.02.2010, quando então foi definido o seu verbete: É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.

Ora, a aprovação da Súmula Vinculante, proposta justamente pelo

Ministro Joaquim Barbosa, ratificou o entendimento de que o Supremo Tribunal Federal não havia mudado sua interpretação quanto ao conceito de serviço para fins de incidência do ISS. O que ocorreu é que no caso do leasing, o tribunal havia entendido a configuração de obrigações de fazer, aptas a ensejar a tributação.

36 É importante destacar que a Proposta de Súmula Vinculante foi “protocolada” em 14.04.2009, ou seja, antes mesmo do julgamento dos recursos extraordinários 592.905 e 547.245, que analisaram a incidência do ISS sobre o leasing.

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A partir de 2010, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma série de decisões aplicando a Súmula Vinculante 31:

– AI 622.421-AgR/MG, de 06.04.2010, Ministro Joaquim

Barbosa; – AI 758.697-AgR/RJ, de 06.04.2010, Ministro Joaquim Barbosa; – RE 626.706/SP, de 08.09.2010, Ministro Gilmar Mendes; – AI 623.226-AgR/RJ, de 01.02.2011, Ministro Marco Aurélio37; – AI 588.891-AgR/DF, de 21.08.2012, Ministro Dias Toffoli; – AI 854.553-ED/MG, de 28.08.2012, Ministro Joaquim

Barbosa38; – RE 405.578-AgR/MG, de 26.02.2013, Ministro Teori Zavascki; – RE 602.295/RJ, de 07.04.2015, Ministro Roberto Barroso. Este último acórdão, de relatoria do Ministro Roberto Barroso,

merece especial atenção, pois ratifica a conclusão alcançada neste estudo:

“Segundo entendimento desta Corte, o poder de tributar municipal não pode alterar o conceito de serviço consagrado pelo direito privado, consoante prevê o art. 110 do Código Tributário Nacional. Ademais, não há que se falar na superação do entendimento da

37 Na espécie, o imposto conforme a própria nomenclatura, considerado o figurino constitucional, pressupõe a prestação de serviços e não o contrato de locação. Em face do texto da Carta Federal, não se tem como assentar a incidência do tributo na espécie, porque falta o núcleo dessa incidência, que são os serviços. Observem-se os institutos em vigor tal como se contêm na legislação de regência. As definições de locação de serviços e locação de móveis vêm-nos do Código Civil. 38 Conforme orientação consolidada da SV 31, é inconstitucional a incidência do ISS sobre operação de locação de bens móveis. Ainda que o fato em exame fosse interpretado como cessão de direito, a mesma orientação apontada na SV 31 seria aplicável.

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Súmula Vinculante n. 31 pelo advento da edição da Lei Complementar n. 116/2003. É certo que a Lei Complementar n. 116/2003 revogou a lista de serviço da legislação anterior e estabeleceu um novo rol de materialidades para o imposto. Na lista atual, a locação de bens móveis seria o item 3.01 (Locação de bens móveis) da lista de serviços tributáveis. Entretanto, a intenção do legislador não se confirmou por força do veto presidencial, que foi motivado pela orientação jurisprudencial desta Corte. [...] Também não merece prosperar o argumento de que há fortes indícios da superação do entendimento deste Tribunal a respeito da matéria em exame, uma vez que a jurisprudência permanece afirmando que não incide ISS sobre locação de bens móveis e que a Constituição não concede aos entes municipais da federação a competência para alterar a definição e o alcance de conceitos de Direito Privado para fins de instituição do tributo”.

Com base nessas manifestações, os aplicadores do direito,

especialmente os que militam com o ISS, apreenderam que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que somente as obrigações de fazer estão sujeitas à incidência do imposto municipal. Todavia, em setembro de 2016, o órgão plenário do Supremo Tribunal Federal voltou a apreciar essa questão no julgamento do Recurso Extraordinário n. 651.703, quando analisou a incidência do ISS sobre as atividades desempenhadas pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde. O Tribunal, por maioria de votos, entendeu que essa atividade está sujeita à incidência do imposto municipal.

O ponto que merece atenção, todavia, não é o resultado do

julgamento propriamente dito (e este estudo não tem como objetivo avaliar a atividade “plano de saúde”), mas sim a fundamentação utilizada pelo Ministro Relator Luiz Fux para concluir pela incidência do ISS. Segundo o relator, o conceito constitucional de prestação de serviços de qualquer natureza não é aquele assimilado na lei ordinária. A partir dessa premissa, o Ministro Relator propõe a superação da jurisprudência até então firmada, no bojo do Recurso Extraordinário n. 116.121, julgado em 11.10.2000.

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Embora seja digno de preocupação, o posicionamento adotado pelo Ministro Luiz Fux remete obrigatoriamente aos julgamentos ocorridos em 2009, já relatados, nos quais o Supremo Tribunal Federal avaliou a incidência do ISS sobre o leasing financeiro.

Em seu voto, o relator contempla diversos fundamentos para

justificar a incidência do ISS. O primeiro deles consiste em sustentar que o Supremo Tribunal

Federal havia firmado o entendimento de que o art. 110 do Código Tributário Nacional confere interpretação inconcebível e literal de que a norma constitucional deveria ser interpretada à luz de preceitos do direito civil. Assim o faz citando os votos dos Ministros Eros Grau e Joaquim Barbosa, proferidos nos Recursos Extraordinários n. 547.245 e 592.905 (leasing).

É bem verdade que os votos proferidos por esses dois ministros, em

especial o proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa, têm por objetivo afastar a aplicação do art. 110 do Código Tributário Nacional para encampar a aceitação – com ressalvas – da acepção econômica do conceito de serviço.

No entanto, o que o Ministro Luiz Fux deixa de observar é que o

conteúdo jurídico da decisão proferida no caso do leasing atribuiu a este contrato a preponderância da obrigação de fazer em detrimento da obrigação de dar, justificando, por essa razão, a incidência do tributo municipal. Ademais, é importante destacar que o relator sequer menciona a existência e recorrente aplicabilidade da Súmula Vinculante 31.

Com efeito, o ministro relator optou por avaliar a incidência do ISS

sobre os planos de saúde a partir de uma perspectiva diferente, muito mais voltada à interpretação da competência tributária do que mediante a avaliação da materialidade do “serviço” posto a julgamento.

Prova maior disso são suas digressões sobre a possibilidade de o

julgador constitucional utilizar uma cognição ampla para interpretar o alcance da competência tributária (pluralismo metodológico). Embora o relator sustente se tratar da interpretação econômica do direito propriamente dita, ele assume que a norma constitucional, enquanto despida de conceitos constitucionais

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próprios, deve ser depurada de uma forma irrestrita, com vistas a identificar o conteúdo teleológico da tributação pretendida pelo contribuinte, mediante uma apreciação axiológica baseada nos princípios da igualdade, capacidade contributiva e solidariedade.

O Ministro Luiz Fux também sustenta que o art. 110 do Código

Tributário Nacional não veicula norma de interpretação constitucional, pois não se pode impor ao intérprete constitucional uma limitação encampada por uma norma infraconstitucional. Em última instância, sua conclusão é no sentido de que, embora o conceito de serviço definido pelo direito civil seja relevante para fins de interpretação da norma de competência, ele não é necessariamente o único que deve ser levado em consideração para identificar o alcance da tributação.

Nesse particular, tomamos a liberdade de discordar do Ministro Luiz

Fux quanto à amplitude do malfadado art. 110 do Código Tributário Nacional, uma vez que ele deixa de considerar que se trata de uma norma direcionada ao legislador infraconstitucional, evitando que ele, ao estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, exceda o limite outorgado pelo constituinte. Ao contrário da conclusão alcançada pelo relator, referido dispositivo é uma verdadeira homenagem à vontade do constituinte, e não uma limitação à interpretação da norma constitucional.

Embora este estudo tenha como objetivo avaliar a posição do

Supremo Tribunal Federal sobre o conceito de serviço, não pode passar despercebido que o Ministro Relator Luiz Fux promoveu drástica mudança em seu modo de pensar, especialmente quanto ao art. 110 do Código Tributário Nacional e ao conceito empregado pelo constituinte à expressão serviços de qualquer natureza.

Isso porque no julgamento do Recurso Especial n. 1.044.239,

realizado em 2008, no qual se avaliou a incidência do ISS sobre os contratos de franquia, este mesmo relator adotou posicionamento manifestamente oposto ao apresentado em 2016. De seu voto, perante o Superior Tribunal de Justiça, extrai-se (os destaques são nossos):

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1. O ISS na sua configuração constitucional incide sobre uma prestação de serviço, cujo conceito pressuposto pela Carta Magna eclipsa ad substantia obligatio in faciendo, inconfundível com a denominada obrigação de dar. 2. Outrossim, a Constituição utiliza os conceitos de direito no seu sentido próprio, com que implícita a norma do artigo 110, do CTN, que interdita a alteração da categorização dos institutos. 3. Consectariamente, qualificar como serviço a atividade que não ostenta essa categoria jurídica implica em violação bifronte ao preceito constitucional, porquanto o texto maior a utiliza não só no sentido próprio, como também o faz para o fim de repartição tributária-constitucional (RE 116121/SP). [...] 5. A dicção constitucional, como evidente, não autoriza que a lei complementar inclua no seu bojo atividade que não represente serviço e, a fortiori, obrigação de fazer, porque a isso corresponderia franquear a modificação de competência tributária por lei complementar, com violação do pacto federativo, inalterável sequer pelo poder constituinte, posto blindado por cláusula pétrea. 6. O conceito pressuposto pela Constituição Federal de serviço e de obrigação de fazer corresponde àquele emprestado pela teoria geral do direito, segundo o qual o objeto da prestação é uma conduta do obrigado, que em nada se assemelha ao dare, cujo antecedente necessário é o repasse a outrem de um bem preexistente, a qualquer título, consoante a homogeneidade da doutrina nacional e alienígena, quer de Direito Privado, quer de Direito Público. [...] Desta sorte, excluídas as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, e de comunicação, hipóteses de incidência do ICMS (artigo 155, II, da CF/88), a tributação pelo

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ISS contempla a prestação de serviços de qualquer natureza definidos em lei complementar. Ocorre que o âmbito semântico dos veículos linguísticos adotados pela Constituição, para traduzir o conteúdo de suas regras de competências tributárias impositivas, não pode ficar ao alvedrio de quem recebe a outorga de competência”.

Feito esse esclarecimento de fato, o “ataque” ao art. 110 do Código

Tributário Nacional não é novidade perante o Supremo Tribunal Federal, considerando que o julgamento realizado em 2000 também contrapunha esse dispositivo ao conteúdo semântico da expressão serviços de qualquer natureza, previsto no texto constitucional. Prevaleceu, naquela oportunidade, que essa expressão deve ser apreendida como um contraponto lógico e semântico aos serviços submetidos à incidência do ICMS, quais sejam, transporte intermunicipal e de comunicação.

Neste caso julgado em 2016, é evidente que a superação do conceito

jurídico de serviço é sugerida pelo relator, ao dispor que essa mudança de interpretação já havia ocorrido em 2009, no julgamento do leasing. Não há como negar isso.

No entanto, o que se deixou de observar é que o julgamento do

leasing (2009) não acatou a acepção econômica de serviço, mas apenas entendeu que nesta atividade – leasing – há prevalência de uma obrigação de fazer. Ora, se a essência do julgamento do leasing sufraga a prevalência do fazer, então ela é a prova irrefutável de que a dicotomia entre as obrigações de dar e fazer ainda foi considerada para determinação da incidência do ISS.

É bem verdade que o Ministro Roberto Barroso aceita, ainda que de

forma parcial, os fundamentos utilizados pelo Ministro Luiz Fux para concluir pela superação da interpretação adotada no julgamento da locação de bens móveis.

De toda forma, essas duas manifestações não são suficientes para

concluir que a tese definida em 2000, ratificada pela edição de uma súmula vinculante e de uma repercussão geral simplesmente deixou de existir. Isso fica evidente quando se analisa o teor dos votos proferidos pelos demais ministros

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do Supremo Tribunal Federal, inclusive do voto proferido pelo Ministro Roberto Barroso, os quais, em última instância, revelam que novamente se identificou a existência de obrigação de fazer nos serviços desempenhados pelas administradoras de planos de saúde.

O ponto de partida dessa conclusão é justamente a fundamentação

utilizada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná para determinar a incidência do tributo39. Para este tribunal, é extremamente forçada a exclusão da atividade do impetrante do conceito de obrigação de fazer, sendo inevitável a associação entre o serviço da operadora dos planos de saúde com a atividade de intermediação.

Retomando aos votos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, do

voto do Ministro Marco Aurélio, fazendo referência ao julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121, extrai-se: considero ter o Plenário, na oportunidade, apenas assentado ser indispensável levar em conta, em especial nos negócios jurídicos complexos, o conjunto de atos praticados para extrair a essencialidade da prestação. Ainda mais importante: Isso explica a razão de o verbete vinculante n. 31 permanecer eficaz até os dias de hoje, orientando a jurisprudência deste Tribunal mesmo após o exame dos recursos extraordinários n. 547.245 e 592.905. Justifica também o fato de o Plenário, no julgamento do extraordinário de n. 626.706/SP, relator o ministro Gilmar Mendes, repercussão geral reconhecida, acórdão publicado no Diário da Justiça de 23 de setembro de 2010, ter reafirmado a não incidência do Imposto Sobre Serviços na locação de bens móveis, considerada a ausência de obrigação de fazer.

Do voto do Ministro Edson Fachin, extrai-se: o núcleo do contrato

entre operadora de planos de saúde e os seus clientes é a disponibilidade, ao usuário contratante, da rede credenciada e a garantia da cobertura dos infortúnios previstos no contrato, e não uma prestação de dar.

Do voto do Ministro Roberto Barroso, extrai-se: não apenas os

contratos cuja obrigação de fazer está claramente especificada e identificada imediatamente ou que se enquadrem na definição do artigo 594 do Código Civil, mas também outros tipos [de] contratos escondem uma prestação de serviços

39 Apelação Cível n. 594.774-8.

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especial, como é o caso, ao meu ver, dos contratos de prestação de serviços de saúde. Ademais: no caso, tanto a atividade-meio quanto a atividade-fim são obrigações de fazer: as operadoras de planos de saúde, como bem salientou a Procuradoria-Geral da República, tem obrigação [de] fornecer os serviços dispostos na cobertura contratual, a serem realizadas por terceiros, mediante o pagamento de mensalidades.

Ainda sobre o Ministro Roberto Barroso, é importante rememorar

que ele advogou pelos municípios de Itajaí e Caçador no julgamento do leasing em 2009 e, naquela oportunidade, durante sua sustentação oral, ciente do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, asseverou40 (os destaques são nossos):

“Arrendamento mercantil é sim serviço, tanto na acepção contemporânea de serviço (oferta de uma utilidade), quanto na acepção tradicional (prestação de uma obrigação de fazer). Porque no contrato de leasing, a obrigação consiste em obter o bem desejado e em administrar o financiamento e, portanto, claramente existe a prestação de serviço, diferentemente do que se passa na locação de bens móveis. Portanto, no plano conceitual, leasing é serviço, leasing não se equipara à locação de bens móveis”. [...] O Supremo entendeu, por 6 a 5, que não cabia a cobrança de ISS sobre operações de locação de bens móveis, e o ponto de vista defendido pelo Ministro Marco Aurélio foi no sentido de que na locação de bens móveis não existe, diretamente, disse V.Sa., esforço humano. O Ministro Celso de Mello, que também acompanhou o ministro relator, sustentou que não havia na locação de bens móveis obrigação de fazer e consequentemente entendeu que não poderia haver a cobrança de ISS porque na visão de sua excelência sem obrigação de fazer não haveria serviço. [...]

40 Transcrição livre da sua sustentação oral, disponível em sua plataforma do Youtube: <https://www.youtube.com/watch?v=yG0ZmZzVtaY>.

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Pois é preciso dizer aqui que, no caso do arrendamento mercantil, no caso do leasing, nenhuma dessas duas teses é prejudicial à constatação de ser devido o ISS, porque aqui há prestação de obrigação de fazer e há prestação humana no sentido de obtenção do bem e no sentido de administração do financiamento. [...] Mas os tribunais tanto quanto possível devem preservar uma certa coerência na jurisprudência. Direito é integridade, dizia Ronald Dworkin. [...] A tese central aqui sustentada e penso que demonstrada: leasing é serviço, leasing não se confunde com locação de bens móveis”.

Ao que tudo indica, em 2016, no julgamento dos planos de saúde, na

função de juiz da corte constitucional, o Ministro Roberto Barroso alterou seu discurso para possivelmente apresentar sua convicção pessoal sobre o assunto. De todo modo, é interessante avaliar a forma com que os municípios optaram por definir a natureza jurídica do arrendamento mercantil (obrigação de fazer) e a ressalva de seu então procurador no sentido de que direito é integridade. Retomando a análise do acórdão, do voto do Ministro Teori Zavascki, extrai-se que ele faz referência ao seu voto-vista proferido no julgamento dos embargos de declaração opostos no julgamento do Recurso Especial n. 227.293/RJ, no qual prevaleceu o entendimento de que as operadoras de planos de saúde realizam serviços de intermediação. Por sua vez, do seu voto-vista, proferido no Superior Tribunal de Justiça, extrai-se: Do ponto de vista prático, a prestação do serviço médico em favor do titular do plano (fato gerador do tributo) é formada, assim, de dois conjuntos de atividades indissociáveis, mas desenvolvidas por pessoas distintas e em diferentes momentos. Uma desenvolvida diretamente pela embargante, consistente da organização das atividades indispensáveis à colocação dos serviços de saúde à disposição do beneficiário, mediante a realização dos serviços de seleção e de credenciamento dos profissionais e estabelecimentos, a elaboração e comercialização das várias modalidades de planos, a cobrança das mensalidades, o repasse dos valores aos profissionais de saúde etc.

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Do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, extrai-se: penso que os planos de saúde se destinam a prestar um serviço a seus clientes, que consiste exatamente na intermediação dos serviços médicos prestados por terceiros, e esse serviço constitui base de cálculo do tributo.

Os Ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes não participaram do

julgamento. Já os Ministros Rosa Weber, Dias Toffoli e Cármen Lúcia apenas acompanharam o relator, sem maiores considerações quanto aos fundamentos utilizados para definir a tributação do ISS sobre os planos de saúde.

Ora, a contraposição desses votos revela que não é possível concluir,

apressadamente, que a acepção jurídica do conceito de serviços definida em 2000, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121, foi superada pelo Supremo Tribunal Federal. Os votos proferidos pelos ministros denotam que, à margem da fundamentação utilizada pelo Ministro Luiz Fux, as atividades desempenhadas pelos planos de saúdem têm natureza jurídica de obrigações de fazer.

Ratifica essa percepção o fato de os Ministros do Supremo Tribunal

Federal, com exceção do Ministro Marco Aurélio, simplesmente terem ignorado a existência da Súmula Vinculante 31 e sua reiterada aplicação pelos próprios ministros que acompanharam o relator Luiz Fux. Aliás, a qualidade “vinculante” desta súmula denota que se trata de uma orientação sedimentada, que ostenta uma imperatividade diferenciada e que deve ser aplicada pelos demais tribunais.

A interpretação crítica do julgamento dos planos de saúde – Recurso

Extraordinário 651.703 – revela que o Supremo Tribunal Federal está propondo uma nova tendência de interpretação do Direito Tributário, cada vez mais ampliativa e afastada do positivismo jurídico. Com efeito, em vez de enfrentar a materialidade da atividade “plano de saúde”, o relator Luiz Fux optou por apresentar uma nova percepção da outorga de competências definidas pelo constituinte, tendo, nessa jornada, sacrificado o conteúdo jurídico do art. 110 do Código Tributário Nacional.

Essa nova tendência, todavia, não deve ser encarada como uma

superação propriamente dita, pois ela contempla incongruências que ainda não foram enfrentadas a contento pelo seu propositor como, por exemplo, a correta

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interpretação do art. 110 do Código Tributário Nacional ou ainda a manutenção da dicotomia entre obrigações de dar e fazer para fins de avaliação da [frise-se] competência tributária entre o ICMS e ISS. Ora, se a contraposição entre obrigações de dar e fazer é relevante para esses dois tributos sobre o consumo, com fundamento nos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional, então por que razão ela não é para definição do conceito de serviço, quando na verdade se trata da mesma questão constitucional, isto é, a definição de competência tributária?

Na opinião destes autores, ainda existe uma carga de subjetividade

nas análises do Supremo Tribunal Federal acerca da caracterização de uma atividade como serviço sujeito ao ISS, e várias questões a serem equalizadas.

De todo modo, a diferenciação entre uma obrigação de dar e fazer é

critério essencial nessa análise e reconhecido nos precedentes acima, que nos fornecem os seguintes parâmetros:

i) o ISS não incide sobre a locação de bens móveis, atividade

caracterizada por uma obrigação de dar pura, referente a bens móveis tangíveis;

ii) o ISS incide sobre as atividades de leasing e planos de saúde,

nas quais, embora a prevalência do componente obrigação de fazer tenha sido questionada, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a utilidade oferecida pelo prestador de serviços ao cliente decorre essencialmente de obrigações de fazer – manutenção e acesso a uma rede de cobertura para serviços de saúde (planos de saúde), e aquisição de um bem e gerenciamento do contrato de financiamento (leasing);

ii.1) nesses casos, o Supremo Tribunal Federal ratificou a

necessidade de um “componente” obrigação de fazer para que a atividade seja caracterizada como um serviço tributável.

Por outro lado, ainda que o conceito econômico de serviços encontre

resistência na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não há uma orientação definitiva a respeito da interpretação que será conferida às

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atividades relativas à cessão (obrigação de dar) de bens imateriais ou intangíveis, como a propriedade intelectual.

4.3. Tributação de intangíveis Anteriormente à Lei Complementar n. 116/2003, a legislação do ISS

não contemplava, no rol de serviços sujeitos ao imposto, atividades diretamente relacionadas à exploração de bens intangíveis.

As primeiras discussões que ganharam destaque envolvendo a

tributação de bens intangíveis se referiam à possibilidade de caracterizar esses bens como mercadorias para fins de incidência do ICMS.

No julgamento do Recurso Extraordinário n. 176.626-3, o Supremo

Tribunal Federal analisou a natureza jurídica dos softwares, e firmou o entendimento de que a propriedade intelectual que lhe é subjacente não se confunde com a uma mercadoria, motivo pelo qual o licenciamento do uso dessa propriedade não é operação sujeita ao ICMS.

No entanto, a decisão adotou uma interpretação que distinguia os

softwares (e as respectivas licenças de uso) da mídia (corpus mechanicum) em que são gravados, e entendeu que seria possível a incidência do ICMS sobre as operações de comercialização de softwares padronizados (“de prateleira”) gravados em meio físico e postos em circulação.

A incidência do ICMS seria possível apenas sobre o corpus

mechanicum, que corresponde, de fato, a um bem tangível. Porém, como o valor do produto – corpus mechanicum com software gravado – decorre essencialmente do seu componente intangível (a utilidade relativa ao software), a decisão deu margem para incertezas e interpretações no sentido de que seria possível a incidência do ICMS sobre o valor total do produto (mídia e software).

O entendimento manifestado no Recurso Extraordinário n. 176.626-

3 serviu de fundamento para a decisão proferida no Recurso Extraordinário n. 179.560-3, em que se discutia a incidência do ICMS sobre a “comercialização de obras cinematográficas gravadas em videocassete”. Chama a atenção, nesse precedente, o fato de que, ao contrário do licenciamento de software, a atividade

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de “gravação e distribuição de filmes e ‘videotapes’” estava expressamente prevista na lista de serviços sujeitos ao ISS, prevista no Decreto-lei n. 406/68 (item 63).

A despeito disso, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a

“distribuição” de filmes estaria sujeita ao ISS apenas nas hipóteses em que o fornecimento das fitas de vídeo (corpus mechanicum) fosse vinculado ou acessório ao serviço de gravação. Valendo-se do entendimento manifestado no Recurso Extraordinário n. 176.626-3, o tribunal entendeu que a comercialização dos filmes ao público geral estaria sujeita ao ICMS, porém não diferenciou expressamente o corpus mechanicum, do bem intangível que lhe agrega valor, permitindo, em tese, a incidência do ICMS sobre o valor total da operação.

A tese da incidência do ICMS sobre a comercialização de filmes

gravados em videocassete se consolidou no Supremo Tribunal Federal, e culminou na edição da Súmula 662: “é legítima a incidência do ICMS na comercialização de exemplares de obras cinematográficas, gravados em fitas de videocassete”. Logo após a consolidação do entendimento que autoriza a incidência do ICMS sobre a comercialização de softwares “de prateleira” e filmes gravados em mídia física, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se posicionar a respeito da incidência do imposto nos casos em que os softwares são transmitidos eletronicamente (por meio de download), no julgamento da Ação

Direta de Inconstitucionalidade n. 1.945-MT. O julgamento liminar da ação iniciou-se em 19.04.1999, porém, só

foi concluído em 26.05.2010, quando a composição do tribunal já era totalmente diferente da inicial.

Em uma decisão bastante controvertida, prevaleceu o entendimento manifestado pelo Ministro Nelson Jobim, no sentido de que seria possível a incidência do ICMS sobre software ainda que transferido por via eletrônica.

O voto do Ministro Nelson Jobim, reproduzido pelo Ministro Dias

Toffoli, relativiza a vinculação entre a incidência do ICMS ao corpus mechanicum em que gravado, dando margem à cobrança do imposto sobre bens incorpóreos.

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“Ora, se o fato de ser bem incorpóreo fosse ressalva à incidência do ICMS, não poderia ser cobrado o imposto também da aquisição de programa de computador de prateleira. É que, nesse caso, o que se está adquirindo não é o disquete, o CD, o DVD, a caixa ou o livreto de manual, mas também e principalmente a mercadoria virtual gravada no instrumento de transmissão. Portanto, se o argumento é de que bem incorpóreo não pode ser objeto da incidência do ICMS, o argumento valeria também para o caso de bens incorpóreos vendidos por meio de bens materiais”.

Constou, ainda, na ementa da decisão, redigida pelo Ministro Gilmar

Mendes:

“8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados [...] Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis”.

Contudo, embora essa decisão tenha implicado em um aparente

“rompimento” com o corpus mechanicum, ela não permite concluir que houve a superação do conceito histórico de mercadoria como bem tangível.

Veja-se que não se trata de uma decisão definitiva de mérito, mas

sim de uma liminar, que teve votação bastante apertada (5 x 4). O voto derradeiro, proferido pelo então Ministro Cesar Peluso, ressalvou expressamente que não se pode confundir mercadoria com direitos relativos à propriedade intelectual, e afirmou que o ICMS não recai sobre o licenciamento de obras.

Embora seja possível concluir, por inferência lógica, que a decisão

admite a possibilidade de que um bem intangível seja considerado mercadoria para fins de incidência do ICMS (já que pode circular por meio eletrônico), a menção do Ministro Cesar Peluso ao termo licenciamento traz dúvidas acerca da

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consistência do entendimento, pois a disponibilidade de um software, ainda que padronizado (“de prateleira”), é transmitida, em regra, por meio de licenciamento.

Ademais, para que seja possível a incidência do ICMS sobre a

transmissão eletrônica de softwares e outros bens intangíveis, existem outras questões que precisam ser melhor enfrentadas, como a necessidade de regulamentação por meio de lei complementar e a definição de quais tipos de bens incorpóreos poderiam ser considerados mercadorias para fins de incidência do ICMS.

Com relação à primeira questão, é interessante notar que, ao final do

ano de 2015, o Estado de São Paulo promoveu alterações em sua legislação, visando implementar a cobrança do ICMS sobre a transferência eletrônica de softwares, jogos eletrônicos e outros bens digitais, antes limitada às hipóteses em que os bens eram comercializados em mídia física (corpus mechanicum)41.

No entanto, logo no início do ano de 2016, o próprio Estado voltou

atrás e suspendeu a cobrança do ICMS nas transferências eletrônicas (download e streaming), “até que fique definido o local de ocorrência do fato gerador para determinação do estabelecimento responsável pelo pagamento do imposto”42.

Como se pode observar, o próprio Estado, a despeito de seus

interesses arrecadatórios, reconheceu a necessidade de regulamentação da cobrança.

Não é necessário muito esforço para se constatar que a sistemática

do ICMS é projetada para a circulação de bens tangíveis, sendo que a necessidade de regulamentação diversa decorre justamente da mobilidade e volatilidade características dos bens intangíveis. Além da definição do local de ocorrência do fato gerador e do responsável, a incidência do ICMS enfrenta outros obstáculos de ordem operacional, principalmente com relação à fiscalização do imposto.

41 Decreto n. 61.522, de 29 de setembro de 2015. 42 Decreto n. 61.791, de 11 de janeiro de 2016.

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A legislação em referência é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.576, que poderá trazer novas e melhores referências com relação à tributação de bens intangíveis.

Sob a perspectiva do ISS, desde a vigência da Lei Complementar n.

116/2003, com a inclusão de atividades relacionadas à exploração de bens intangíveis na lista de serviços sujeitos ao imposto, surgiram novas discussões e algumas já foram submetidas à apreciação do Supremo Tribunal Federal, porém ainda não foram decididas de maneira definitiva.

No julgamento da Reclamação n. 8.623-AgR, de 22.02.2011, o

Supremo Tribunal Federal avaliou a tributação dos contratos de cessão de direito de uso e de licença de marcas. A ação foi proposta com base no fundamento de que a incidência do ISS afrontaria a orientação emanada no julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121.

No entanto, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal acompanhou o

voto do Ministro Gilmar Mendes no sentido de que a cessão do direito de uso de marca não pode ser considerada locação de bem móvel, mas serviço autônomo especificamente previsto na Lei Complementar 116/2003. A decisão não trouxe uma análise aprofundada a respeito da natureza da atividade e da sua sujeição ao ISS, limitando-se a diferenciar a atividade de cessão do direito de uso de marca da locação de bens móveis, para afastar a pretensão do contribuinte.

A despeito disso, o precedente pode ser visto como um indício de

que o Supremo Tribunal Federal não se baseará, ao menos exclusivamente, na aplicação da Súmula Vinculante n. 31 para analisar a tributação das atividades relacionadas à cessão de direitos ou de bens intangíveis, tais como o licenciamento de software e a exploração de franquias.

Tomando-se como referência a interpretação adotada pelo Tribunal

no julgamento do leasing e dos planos de saúde, não se pode descartar a possibilidade de que nossa Corte Constitucional venha a interpretar que a utilidade disponibilizada aos clientes contratantes de franquias, contratos de utilização de marca ou software configuram obrigações de fazer desempenhadas pelo prestador, que poderiam caracterizar a prestação de serviços.

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Veja-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral das discussões a respeito da incidência do ISS sobre software personalizado (Recurso Extraordinário n. 688.223) e franquia (Recurso Extraordinário n. 603.136), ainda pendentes de julgamento.

Nesse contexto, ainda existe uma indefinição com relação ao

tratamento aplicável às atividades relacionadas à exploração de bens intangíveis, quando desvinculados de mídia física (corpus mechanicum).

No cenário atual, com base nas duas principais referências

jurisprudenciais identificadas até o momento – a decisão proferida em medida liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.945 e a decisão proferida na Reclamação n. 8.623 – tem-se que: (i) para fins de incidência do ISS, a cessão de direitos relativos a bem intangível não se equipara a uma obrigação de dar bem tangível; e (ii) é possível a incidência do ICMS sobre um bem incorpóreo, desde que esse bem se caracterize como uma mercadoria.

Caso essas tendências se confirmem, os critérios apontados na

decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.389 – bens padronizados e disponibilizados indistintamente no mercado x bens personalizados, elaborados sob encomenda – certamente serão pertinentes e necessários para a delimitação do conceito de mercadoria e, também, serviços.

5. Conclusão 5.1. Conceito jurídico, conceito econômico e a inexistência de

um conceito bem definido (conceito jabuticaba?) Como mencionado anteriormente, desde a sua criação, o núcleo do

ISS permanece o mesmo. Trata-se do “imposto sobre serviços de qualquer natureza”, exceto os serviços compreendidos na competência da União e dos Estados.

A Constituição de 1967 acrescentou a esse núcleo a expressão

“definidos em lei complementar”, e todas as normas regulamentares do ISS sempre previram a incidência do imposto sobre atividades que não configuram mera obrigação de fazer.

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Com efeito, até mesmo autores como Aires Barreto, defensor

ferrenho do conceito jurídico de serviços para o ISS, reconhece que o imposto (assim como o ICM) nasceu sob a inspiração do Imposto Europeu sobre o Valor Agregado (IVA), que adota o conceito econômico de serviços. De acordo com o referido autor, a adoção do conceito econômico pela Emenda Constitucional n. 18/65 seria inclusive o motivo para a inclusão da expressão “definidos em lei complementar” na definição do ISS, que se mantém até os dias atuais43.

Sob essa perspectiva, a adoção do conceito econômico não violaria o

disposto no art. 110 do Código Tributário Nacional44, uma vez que a abrangência do termo serviços estaria sendo delineada pela própria Constituição. Se aceito esse entendimento, não seria a lei tributária (complementar) que estaria ampliando o conceito de serviços do Código Civil, mas sim a própria Constituição, que estaria adotando um significado específico, pertinente ao direito tributário.

Por outro lado, quando o constituinte dispõe sobre competência

tributária que esteja inserida na órbita do direito privado, assim o faz à luz do conceito da lei ordinária que está em vigor naquele momento. Caso contrário, estar-se-ia admitindo que a lei ordinária, eventualmente refletindo a realidade futura, teria o condão de alterar a própria Constituição Federal.

Sob essa perspectiva jurídica de serviço, o termo “definidos em lei

complementar” tem o propósito de assegurar que a cobrança do imposto recaia sobre serviços predefinidos, e não o de autorizar a lei complementar a dispor livremente sobre quais atividades consistirão em serviços tributáveis.

Em termos estritamente práticos, a adoção do conceito econômico

poderia ser mais vantajosa, pois facilitaria o preenchimento de eventuais lacunas. Com a competência “residual” do ISS, a alteração da lista de serviços já

43 ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 103. 44 “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

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seria, ao menos em tese, suficiente para se definir a tributação de atividades vinculadas à exploração de bens intangíveis, assim como as novas atividades e estruturas de negócio que desafiam os modelos preconcebidos de obrigação de dar e obrigação de fazer. Os ajustes na legislação tributária e a inclusão de atividades na lista de serviços do ISS demandariam apenas alterações na lei complementar.

Por outro lado, enquanto prevalecer o posicionamento de que

serviço é definido pelo seu conceito jurídico, existirão lacunas com relação a atividades relacionadas a bens intangíveis e outras atividades que não caracterizam operações mercantis nem obrigações de fazer puras.

Nesse caso, o suprimento dessas lacunas demanda alterações na

Constituição, como, por exemplo, a criação de um imposto sobre a exploração de bens intangíveis e outras utilidades que não se inserem nas esferas de competência dos Estados, Municípios e da União.

Ocorre que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal aponta

que o conceito econômico não foi ressuscitado, especialmente se considerada a manutenção da Súmula Vinculante n. 31. Mas, ao mesmo tempo, não há uma referência clara de que o tribunal está confortável em aceitar o conceito jurídico de serviço, visto que autoriza, sob certas circunstâncias, a incidência do ISS sobre atividades que não correspondem a obrigações de fazer puras.

O que se nota é que o Supremo Tribunal Federal não demonstra em

seus julgamentos uma coerência técnica pelos conceitos jurídicos postos em análise e suas decisões são fortemente influenciadas por pressões extrajurídicas incidentais. Com isso, o tribunal adota critérios próprios para cada caso, não oferece referências conceituais claras e estáveis, e contribui para a formação de conceitos tributários híbridos (jabuticaba?).

Vide a esse respeito, a evolução jurisprudencial da discussão relativa

à incidência do ICMS sobre o licenciamento de softwares. No Recurso Extraordinário n. 176.626, autorizou-se a incidência do

imposto sobre a mídia física, considerando-se a sua segregação do componente intangível. No entanto, quando os fundamentos da decisão analisam as

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características do software, há margem para interpretações de que o bem intangível, se padronizado e colocado em circulação (“de prateleira”), poderia ser tributado.

Já no Recurso Extraordinário n. 179.560, decidiu-se que o ICMS

incidiria sobre o valor global de “obras cinematográficas gravadas em videocassete”, compreendendo tanto a mídia física, como o bem intangível, com fundamento no entendimento manifestado na decisão proferida no Recurso Extraordinário n. 176.626.

Ocorre que a decisão do Recurso Extraordinário n. 176.626 não

apresenta uma justificativa que diferencie o componente intangível do software “de prateleira” e das obras cinematográficas que justifique a incidência do ICMS sobre essas últimas (e não sobre o componente intangível), e ainda assim ignora a segregação entre o corpus mechanicum e o bem intangível estabelecida no Recurso Extraordinário n. 176.626, afirmando que esse precedente autorizaria a incidência do ICMS sobre o valor global do produto.

Ou seja, a partir de um equívoco conceitual ou uma incoerência na

fundamentação do Recurso Extraordinário n. 179.560, a incidência do ICMS passou a ser admitida sobre o valor do componente intangível de obras de propriedade intelectual gravadas em mídia física e postas em circulação.

Por fim, a decisão liminar proferida na Ação Direta de

Inconstitucionalidade n. 1945 aparentemente afasta/releva/mitiga a necessidade do corpus mechanicum para incidência do ICMS, tomando como premissa a incidência do imposto sobre o componente intangível, o qual, até então, só seria tributável por circular por meio do corpus mechanicum.

Em uma análise fria, a partir da autorização da incidência do ICMS

sobre o corpus mechanicum (Recurso Extraordinário n. 176.626), e sem um enfrentamento claro, direto e coeso do conceito de mercadoria como bem tangível, ou da caracterização de um bem intangível (propriedade intelectual) como mercadoria para fins de tributação, autorizou-se a incidência do ICMS sobre um bem intangível e incorpóreo. Houve aparentemente uma mutação do conceito de mercadoria sem que tenha havido um enfrentamento técnico e conceitual satisfatório.

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A falta de critérios de decidir claros e estáveis obriga o tribunal a

analisar cada tese individualmente, em julgamentos com alto nível de subjetividade, e sujeitos a pressões extrajurídicas do momento, principalmente de ordem arrecadatória.

Ao mesmo tempo, a inexistência de conceitos claros e estáveis

parece contribuir para a disseminação de interpretações demasiadamente amplas sobre os arquétipos tributários originais, visando projetá-los sobre potenciais lacunas. Em outras palavras, a insegurança a respeito dos conceitos parece incentivar o uso de interpretações como instrumento de preenchimento de lacunas tributárias, em detrimento de soluções legislativas concisas.

O próprio fato de que o conceito econômico vem ganhando força

ultimamente parece ter relação com a dificuldade do Supremo Tribunal Federal em lidar com as questões relacionadas à tributação de bens intangíveis e das novas atividades e modelos de negócio baseados na tecnologia digital.

No entanto, essa dificuldade em confrontar as atividades voltadas à

tecnologia com os arquétipos tributários concebidos pela Constituição não autoriza o tribunal a deformar a ordem jurídica vigente. Uma vez editada a Súmula Vinculante n. 31 e firmada a jurisprudência que afasta a aplicação do conceito econômico de serviços, voltar atrás nesse posicionamento implicaria em uma grave incoerência e violação à estabilidade das decisões do Supremo Tribunal Federal e à segurança jurídica.

Não se está afirmando que a interpretação dinâmica do texto

constitucional45 não seja aplicável em determinadas hipóteses, tampouco que ela não seja necessária ao processo hermenêutico, mas sim que ela não deve ser utilizada como premissa para alargar a competência tributária, desvirtuando conceitos jurídicos estáveis, para sanar situações futuras, que não estavam previstas no momento da promulgação da lei maior.

45 O objetivo deste trabalho é não contrapor os conceitos de interpretação estática e dinâmica da Constituição Federal, cujo estudo, na visão destes autores, é um dos assuntos mais tormentosos na seara constitucional.

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Não se pode deturpar o conceito empregado pelo constituinte a pretexto de equalizar a tributação de novas tecnologias. Uma coisa é permitir que a interpretação constitucional possa se adaptar às mudanças sociais; outra coisa é mudar o conceito da Constituição para trazer reflexos onde ela não tinha em uma típica hipótese de abuso hermenêutico.

O limite dessa instabilidade jurisprudencial deve ser o da outorga de

competências tributárias e, em última instância, a preservação da segurança jurídica. Embora a evolução tecnológica seja ilimitada e exponencial, o “Direito Tributário se alicerça sobre premissas conceituais rígidas, cuja observância oferece ao administrado segurança jurídica. A relativização dos conceitos devidamente sedimentados para uma adaptação à evolução tecnológica pode causar distorções graves no sistema jurídico, impondo a relativização de conceitos até então considerados sedimentados”46.

Esse tipo de problema é inevitável e a discussão é verdadeiramente

legítima. Veja-se que com o advento das vendas não presenciais (internet, telemarketing), houve a necessidade de edição da Emenda Constitucional n. 87/2015 para atualizar a repartição de receita do ICMS.

Nesses casos, embora tenha reconhecido o cenário desfavorável

para alguns Estados em razão do avanço tecnológico dos meios de consumo, o Supremo Tribunal Federal47 foi enfático ao sustentar que a opção do constituinte originário deve ser observada, pois a correção da engenharia constitucional de repartição de competências tributárias somente pode ocorrer legitimamente mediante manifestação do constituinte reformador, por meio da promulgação de emendas constitucionais.

A atuação do Supremo Tribunal Federal nesses casos merece

aplausos, pois coibiu o desvirtuamento da ordem constitucional, e, com isso, contribuiu para que a solução jurídica mais correta fosse alcançada, que é justamente a alteração na Constituição por meio do competente processo legislativo, adequando-a às novas realidades negociais. Não seria razoável nem 46 BARTHEM NETO, Hélio. Novos desafios da tributação do software no Brasil sob as perspectivas do ICMS e do ISS – do Corpus Mechanicum ao Cloud Computing. 2016. 154 f. 47 Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 4.628 e 4.713.

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desejável que, devido às distorções arrecadatórias provocadas pelo aumento das vendas não presenciais, as regras estruturais do ICMS previstas na Constituição fossem alteradas por meio de interpretações ou iniciativas unilaterais de alguns Estados.

5.2. Crítica às instituições e perspectivas futuras Não é algo novo o descontentamento com o sistema tributário

brasileiro, frequentemente criticado pela sua complexidade, ineficiência, pelo alto nível de burocracia e insegurança, entre outros fatores que proporcionam um sistema injusto, repleto de distorções e visto como um verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento econômico e social.

A dificuldade de se definir o tratamento tributário de uma atividade

é um sintoma da grave insegurança jurídica vislumbrada em nosso sistema tributário e um fator que contribui para o nível (exorbitante) de litigiosidade em matéria tributária no país, além de elevar os custos da administração tributária, da justiça e do empreendedorismo.

Se não são poucas as críticas à nossa legislação e à nossa política

fiscal, grande parte dos problemas e críticas se referem aos tributos sobre o consumo, que são o foco principal de muitas das propostas de reforma em discussão atualmente.

Como visto acima, a estrutura fundamental de nosso sistema

constitucional tributário foi concebida na década de 1960, assim como as regras estruturais do sistema, previstas no Código Tributário Nacional.

No entanto, passados mais de 50 anos, a ordem jurídica tributária se

demonstra instável. As alterações e ajustes realizados ao longo do tempo, inclusive pela Constituição vigente, pouco ou nada contribuíram para o amadurecimento e otimização de nosso sistema. O que se observa é um aumento constante na complexidade, insegurança e ineficiência.

Em nossa opinião, a decadência do sistema se deve à atuação

insatisfatória das instituições que representam as três esferas de poder.

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Em linhas gerais, os tribunais demoram para apreciar as questões que lhes são colocadas, não decidem com o zelo conceitual necessário e não oferecem referências claras para orientar os contribuintes e a administração tributária. Os precedentes do Supremo Tribunal Federal abordados ao longo deste estudo demonstram que o tribunal não consolida conceitos claros e objetivos e centraliza as decisões em matéria tributária, conferindo as soluções individualizadas, sujeitas a alto grau de subjetivismo.

Um exemplo claro disso, como mencionado acima, é o caso da

jurisprudência do software. O tribunal demorou cerca de 11 anos para concluir o julgamento de uma medida liminar, que resultou em uma decisão com fundamentação dúbia, e, passados cerca de 7 anos, ainda não conferiu uma solução definitiva à questão.

É inconcebível que, após 50 anos e sem que tenha ocorrido uma

alteração estrutural na Constituição ou na legislação, o tribunal não tenha definido um conceito claro e objetivo de serviços, pondo em risco não só a interpretação coerente dos limites constitucionais para incidência do ICMS e do ISS, mas também de outros tributos que se valem desse conceito em suas hipóteses de incidência.

Por outro lado, o Poder Legislativo não cumpre seu papel de

atualizar a legislação no tempo adequado e com o zelo técnico (jurídico) necessário, de forma a trazer segurança aos contribuintes e à própria administração tributária.

Já sob a perspectiva do Poder Executivo, a segurança e a

estabilidade jurídica também são frequentemente suplantadas por interesses e pressões extrajurídicas, principalmente arrecadatórias, que estimulam a litigiosidade, e aumentam os custos da administração e da justiça. Prova maior disso é a evidente disputa entre Estados e Municípios pela tributação sobre o download de softwares.

As instituições, em si, não zelam pela segurança ou estabilidade das

relações jurídicas, criando um sistema injusto e cheio de distorções.

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Nesse contexto, não há dúvidas de que é fundamental a reformulação de nosso sistema tributário, idealmente por meio de uma reforma estrutural e abrangente, ou, na impossibilidade de uma reformulação abrangente, que sejam feitos ajustes estruturais de forma direcionada aos principais problemas de cada tributo.

De todo modo, a reforma da legislação tributária não terá a

efetividade necessária se não houver uma mudança ampla de mentalidade em toda a sociedade e uma mudança de comportamento nas instituições, que lhes permita cumprir o seu papel de maneira eficiente e coerente.