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Artigos São Paulo / FEVEREIRO 2019 1 Artigo publicado no livro “Tributação da Economia Digital: Desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas”, FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz Marcelo do Rêgo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2018, p. 881-898. Autor: Ramon Tomazela Santos A COMPETITIVIDADE NO MERCADO GLOBAL E A TENDÊNCIA À MIGRAÇÃO PARA UM SISTEMA DE TRIBUTAÇÃO TERRITORIAL 1. INTRODUÇÃO O presente artigo propõe-se a analisar a atual tendência de migração para um sistema de tributação territorial da renda que vem sendo seguida por países europeus e que está em debate nos Estados Unidos em razão do projeto de reforma tributária aprovado pelo Congresso norte-americano no último dia 20 de dezembro de 2017 e que aguarda sanção pelo Presidente Donald Trump 1 - 2 . Essa inclinação de certos países para um regime de territorialidade parcial na tributação da renda pode ser atribuída não apenas à crescente integração do mercado global na era da “economia digital”, mas também à acirrada competição 1 Tax Cuts and Jobs Act - Conference Agreement. 2 Essa tendência de migração para regimes territoriais de tributação da renda pode ser confirmada pelo fato de que, atualmente, 29 dos 35 países membros da OCDE concedem isenção total ou parcial de imposto de renda para os dividendos provenientes do exterior (Cf. PHUA, Stephen. Putting Territoriality in Its Place: Singapore's Perspective on Tax Competitiveness, Bulletin for International Taxation, v. 71. n. 6a, Amsterdam, IBFD, 2017, p. 53; PWC. Evolution o/Territorial Tax Systems in the OECD, 2003, p. 1-15).

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Artigo publicado no livro “Tributação da Economia Digital: Desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas”, FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz Marcelo do Rêgo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2018, p. 881-898.

Autor: Ramon Tomazela Santos A COMPETITIVIDADE NO MERCADO GLOBAL E A TENDÊNCIA À MIGRAÇÃO PARA UM SISTEMA DE TRIBUTAÇÃO TERRITORIAL

1. INTRODUÇÃO O presente artigo propõe-se a analisar a atual tendência de migração

para um sistema de tributação territorial da renda que vem sendo seguida por países europeus e que está em debate nos Estados Unidos em razão do projeto de reforma tributária aprovado pelo Congresso norte-americano no último dia 20 de dezembro de 2017 e que aguarda sanção pelo Presidente Donald Trump1-2. Essa inclinação de certos países para um regime de territorialidade parcial na tributação da renda pode ser atribuída não apenas à crescente integração do mercado global na era da “economia digital”, mas também à acirrada competição

1 Tax Cuts and Jobs Act - Conference Agreement. 2 Essa tendência de migração para regimes territoriais de tributação da renda pode ser confirmada pelo fato de que, atualmente, 29 dos 35 países membros da OCDE concedem isenção total ou parcial de imposto de renda para os dividendos provenientes do exterior (Cf. PHUA, Stephen. Putting Territoriality in Its Place: Singapore's Perspective on Tax Competitiveness, Bulletin for International Taxation, v. 71. n. 6a, Amsterdam, IBFD, 2017, p. 53; PWC. Evolution o/Territorial Tax Systems in the OECD, 2003, p. 1-15).

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fiscal entre os Estados em busca de arrecadação, sobretudo em um contexto de crise econômico-financeira mundial.

Para tanto, este estudo abordará as principais razões que podem ser

apontadas para a tendência de migração para um regime de tributação territorial da renda, para então examinar os desafios que precisam ser enfrentados pelos Estados para a adaptação de seus sistemas tributários a essa nova experiência internacional, especialmente em relação à necessidade de introdução de conjunto sistemático e orgânico de regras para a determinação da fonte dos rendimentos, de aprimoramento da definição de estabelecimento permanente, bem como de fortalecimento das regras de preços de transferência.

2. A TENDÊNCIA DE MIGRAÇÃO PARA UM MODELO DE

TERRITORIALIDADE Segundo relato de Reuven Avi-Yonah, ao longo da história dos

sistemas tributários os Estados Unidos tradicionalmente guiaram os demais países desenvolvidos na adoção de um regime de tributação universal da renda dos contribuintes, sejam pessoas físicas, sejam pessoas jurídicas. Foi assim que, em 1962, durante o governo do presidente John F. Kennedy, os Estados Unidos editaram as primeiras regras de "Controlled Foreign Corporation (CFC), conhecidas como “Subpart F” e inseridas na Seção 956 (c)(l)(C) do "Internal Revenue Code" norte-americano, que depois se propagaram para diversos países do mundo, como Alemanha (1972), Canadá (1975), Japão (1978), França (1980) e Reino Unido (1984)3.

Entretanto o cenário acima começou a ser alterado entre 1994 e

2006, quando o governo norte-americano adotou medidas para suavizar a rigidez de suas regras de CFC.

Na mesma época, a Corte Europeia de Justiça, no julgamento do caso

“Cadbury Schweppd” (C-196/04), decidiu que as regras de tributação automática dos lucros do exterior apenas podem alcançar operações artificiais, sob pena de violação das liberdades fundamentais em especial o princípio da liberdade de

3 AVI-YONAH, Reuven. International Tax as International Law - An Analysis of the International Tax Regime. New York: Cambridge. University Press, 2007, p. 25.

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estabelecimento4. Com isso, a Corte Europeia de Justiça passou a impor severas limitações à aplicação de regras de CFC, que deveriam alcançar apenas estruturas artificiais utilizadas pelos contribuintes, que não reflitam a realidade econômica e que tenham como único objetivo a obtenção de economia fiscal.

Mais recentemente, a proposta de reforma tributária aprovada pelo

Congresso norte-americano preconiza o retorno a um sistema de territorialidade mitigada, com isenção para os dividendos distribuídos por entidades residentes no exterior5-6.

E, linhas gerais, o plano de reforma tributária aprovado nos Estados

Unidos propõe a redução da alíquota de imposto de renda das pessoas jurídicas de 35% para 21%, juntamente com a mudança para um sistema de tributação territorial e a introdução de um regime especial de tributação para estimular a repatriação de lucros represados no exterior por multinacionais norte-americanas.

Os méritos das medidas aprovadas pelo Congresso norte-americano

podem ser facilmente identificados. A alta alíquota de imposto de renda das pessoas jurídica cobrada pelos Estados Unidos estimula estratégias de planejamento tributário internacional, de inversão da estrutura societária, de manipulação de preços de transferência e de esquemas para o aproveitamento de crédito de imposto de renda pago no exterior, o que resulta em custos de conformidade extremamente elevados em relação à arrecadação fiscal efetivamente obtida pelo governo norte-americano com os lucros do exterior. Atualmente, os Estados Unidos têm a maior alíquota de imposto de renda 4 Confira-se: “It fallows that, in order to a restriction on the freedom of establishment to be justified on the ground of prevention of abusive practices, the specific objective of such a restriction must be to prevent conduct involving the creation of wholly artificial arrangements which do not reflect economic reality (…)”. (Cadbury Schweppes, C-196/04, EU:C:2006:544, para. 51). 5 US Trump Presidency, 2017 Tax Reform for Economic Growth and American Jobs: The Biggest Individual And Business Tax Cur ln American History (26 April 2017). Disponível em: <http://americansfortaxfairness.org/wp-content/uploads/White-House-One-Pager-on-Trump-Plan.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2017. 6 Budget of the US Government for Fiscal Year 2018 (A New Foundation For American Greatness). Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/sites/whitehouse.gov/files/ omb/budget/fy2018/budget.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2017.

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corporativo entre os países da OCDE, cujas taxas médias de imposto de renda corporativo variam entre 20% e 30%. Assim, a concorrência fiscal pressiona o governo norte-americano a reduzir a sua alíquota atual de 35%7.

À primeira vista, pode parecer que a alíquota de imposto de renda

das pessoas jurídicas cobradas pelos Estados Unidos não é um problema real, pois as multinacionais norte-americanas são capazes de reduzir as suas alíquotas efetivas a níveis muito baixos. Tanto é assim que o próprio gatilho do Projeto BEPS foi a indignação da opinião pública acerca das baixas alíquotas de imposto de renda suportadas pelas multinacionais norte-americanas em pleno cenário de crise econômica, como Apple, Google, GE, Starbucks, entre outros.

Além disso, sabe-se que várias multinacionais de países europeus

suportam uma alíquota de imposto de renda efetiva mais elevada que as multinacionais norte-americanas similares, independentemente do sistema de territorialidade parcial em vigor em países da União Europeia, por meio dos regimes de isenção para os dividendos provenientes do exterior.

No entanto, apesar dos aspectos acima mencionados, é inegável que

a alíquota de imposto de renda das pessoas jurídicas cobrada pelos Estados Unidos afeta o comportamento econômico das multinacionais norte-americanas de forma prejudicial para o crescimento econômico e para o sistema tributário como um todo. Assim, a redução da alíquota de imposto de renda das pessoas jurídicas, combinada com esforços para suprimir lacunas exploradas por contribuintes, parece ser um passo razoável na tentativa de recuperar o sistema tributário dos Estados Unidos, que está no pior dos dois mundos: não arrecada efetivamente com a tributação dos lucros do exterior e, ao mesmo tempo, não se beneficia com os lucros que ficam represados no exterior, que deixam de ser investidos em seu mercado interno.

Neste contexto, percebe-se que o governo norte-americano acredita

que uma mudança para um regime de territorialidade parcial pode reduzir significativamente os problemas causados por estratégias de elisão fiscal internacional, planejamento tributário agressivo, transferência artificial de 7 SANTOS, Ramon Tomazela. US Tax Reform: The Potential Tax Implications for Brazilian Taxpayers, Bulletin for International Taxation, v. 71, n. 6a, Amsterdam, IBFD, 2017, p. 82.

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lucros e inversões de estruturas societárias, além de eliminar os supostos impactos negativos do sistema de tributação em bases universais para a competitividade internacional das multinacionais norte-americanas e para os Estados Unidos, em razão do claro desestímulo à repatriação dos lucros auferidos no exterior.

As principais razões que podem ser apontadas para a tendência de

migração para um regime de tributação territorial da renda são as seguintes: i). a competição fiscal internacional; ii). as operações de inversão da estrutura societária; iii). o impacto negativo para competitividade das empresas no

cenário global; iv). os benefícios socioeconómicos colaterais da repatriação de

lucros. A seguir, passa-se a examinar cada razão indicada acima. 2.1 A competição fiscal internacional A concorrência fiscal internacional é um fenômeno inerente à

coexistência de Estados com sistemas tributários autônomos e distintos no cenário internacional. A globalização e a mobilidade da renda expandiram as oportunidades para a migração dos fatores de produção e o deslocamento do capital, por meio da alocação de empreendimentos em outros Estados8. Os Estados experimentam os efeitos econômicos nocivos da competição fiscal, sobretudo em razão da adoção de práticas para a atração de capitais por Estados estrangeiros.

8 GRECO, Março Aurélio. Crise do imposto sobre a renda na sua feição tradicional. ln: REZENDE, Condorcet (Coord.). Estudos Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 417-431.

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Nesse contexto, para conter o avanço da perda de arrecadação provocada pela competição fiscal, vários Estados passaram a formular políticas tributárias unilaterais para mitigar os efeitos econômicos nocivos decorrentes do deslocamento volátil de investimentos e capitais, dentre as quais se destaca, para os fins do presente estudo, a isenção de impostos de renda sobre lucros e dividendos provenientes de investimentos no exterior.

Além disso, o fato de grupos econômicos multinacionais exercerem

as suas atividades em diferentes jurisdições, como uma unidade econômica integrada, facilitou a transferência de suas sedes para outros Estados soberanos, com sistemas tributários mais atrativos9.

Assim, no atual estágio do desenvolvimento econômico, em que empresas multinacionais apresentam cada vez maior mobilidade e a migração da sede da pessoa jurídica pode proporcionar externalidades positivas, é natural a tendência de retorno à territorialidade mitigada, por meio do relaxamento das regras de CFC e da concessão de isenção de imposto de renda para os lucros e dividendos provenientes de investimentos no exterior10.

2.2 As operações de inversão da estrutura societária Sabe-se que a elevada alíquota de imposto de renda da pessoa

jurídica, combinada com o regime de tributação dos lucros em bases universais, estimula a adoção ele estratégias de planejamento tributário, como a inversão da estrutura societária do grupo econômico, na qual a sociedade matriz (“parent company”) de um grupo econômico com sociedades controladas e subsidiárias no exterior é substituída no topo da cadeia de participações societárias por uma sociedade constituída no exterior, em um país sem regras de CFC.

Essas operações de inversão da estrutura societária tornaram-se um

problema político delicado nos Estados Unidos a partir de 2002, quando a empresa Stanley Works, uma fabricante líder de ferramentas industriais,

9 PHUA, Stephen. Putting Territoriality in Its Place: Singapore’s Perspective on Tax Competitiveness, Bulletin for International Taxation, v. 71. n. 6a, Amsterdam, IBFD, 2017, p. 54. 10 AVI-YONAH, Reuven S. Back to the future? The potential revival of territoriality, Bulletin for International Taxation, v. 62, n. 10, Amsterdam, IBFD, 2008, p. 472.

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anunciou seu plano de expatriação para as Bermudas11. Como reação, o Congresso norte-americano promulgou uma regra antielisiva específica12, para coibir as operações de inversão realizadas por motivações de cunho fiscal13.

Entretanto é preciso reconhecer que a maior parte dos países do

mundo ainda não adota regras para prevenir a inversão de estruturas societárias. Assim, a falta de regras contra as operações de inversão, combinada com a ausência de coordenação entre os países para a adoção de um padrão comum para a estruturação das regras de CFC, acaba atraindo as empresas multinacionais para os Estados que não possuem regras de CFC ou aqueles que seguem regras de CFC mais brandas, que alcançam apenas situações abusivas.

Diante disso, percebe-se que a migração para um regime de

tributação parcialmente territorial, com isenção de imposto de renda para os lucros e dividendos provenientes do exterior, pode reduzir significativamente os riscos de operações de inversão.

2.3 O impacto negativo para competitividade das empresas

no cenário global A adoção de um sistema de territorialidade parcial permite que o

Estado da residência estimule as incursões de suas pessoas jurídicas no exterior, reduzindo a sua carga tributária total em caso de repatriação de lucros para as

11 SHAVIRO, Daniel N. Fixing U.S. International Taxation. New York: Oxford University Press, 2014. p. 35. 12 A “regra anti-elisíva especifica”, também chamada de "regra de prevenção", tipifica atos e negócios jurídicos comumente praticados pelos contribuintes para reduzir a carga tributária (Cf. TÔRRES, Heleno Taveira. Medidas contra a evasão e elusão fiscal internacional no direito brasileiro. ln: ALTAMIRANO, Alejandro C. Tôrres e UCKMAR, Victor (Coords.). Impuestos sobre el comercio internacional. Buenos Aires: Ábaco, 2003. p. 924). 13 Na dicção de Reuven Avi-Yonah: “In the US, this can be shown by the trend of inversion transactions, in which US MNEs reincorporated in Bermuda in part to avoid Subpart F. The, trend was stopped by legislation in 2004, but the competitiveness issue continues” (AVI-YONAH, Reuven S. Back to the future? The potential revival of territoriality, Bulletin for International Taxation, v. 62, n. 10, Amsterdam, IBFD, 2008, p. 472).

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sociedades controladoras14 Ao consagrar a neutralidade de importação de capitais, o método da isenção reconhece que os seus contribuintes podem estar atuando no exterior em países com diferentes graus de desenvolvimento e evita que a tributação residual no Estado da residência nivele a carga tributária de contribuintes que não estão em situações similares15. Assim, o sistema de territorialidade parcial pode ser visto como uma forma de apoio às pessoas jurídicas que operam no exterior, contribuindo para a sua competividade no plano internacional16.

Por outro lado, a tributação imediata dos lucros auferidos no

exterior, por meio de regras de tributação em bases universais excessivamente rígidas e abrangentes, coloca as multinacionais de determinado país em uma situação de desvantagem competitiva em comparação com seus concorrentes que adotam um regime de territorialidade parcial17.

O problema da competitividade surge porque a pessoa jurídica que

decide efetuar um investimento produtivo em outro país deverá pagar, às autoridades fiscais locais, o imposto de renda devido com base na alíquota doméstica. Ocorre que, por estar situada em um Estado que adota um regime de tributação automática dos lucros auferidos no exterior como é o caso do Brasil, essa pessoa jurídica deverá recolher o imposto de renda corporativo devido no seu Estado de residência sobre os lucros do exterior, independentemente de

14 LÜDICKE, Jürgen. Exemption and Tax Credit in German Tax Treaties - Policy and Reality. ln: BAKER, Philip e BOBBETT, Catherine (Coords.). Tax Polymath: A Life in International Taxation. Amsterdam: IBFD, 2011. p. 281. 15 PIRES, Manuel. International Juridical Double Taxation of Income. Deventer: Kluwer Law, 1989. p. 176. 16 LÜDICKE, Jürgen, op. cit., p. 281. 17 Reuven Avi-Yonah sintetiza o argumento: “The usual arguments against abolishing deferral are that it will put US multinationals at a competitive disadvantage, that it will lead to inefficient outcomes because less efficient foreign MNEs will obtain projects that should have been owned by more efficient US MNEs, and that it will lead to migration of US MNEs to other countries and to the establishment of new MNEs in other jurisdictions with more favorable tax rules” (AVI-YONAH, Reuven S. Back From de Dead: How to Prevent Transfer Pricing Enforcement, Law & Economics Working Papers n. 85. Michigan: University of Michigan Law School, 2013, p. 3).

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qualquer distribuição, com direito ao desconto de crédito em relação ao imposto de renda pago no exterior, desde que atendidos os requisitos legais18.

De todo modo, cabe pontuar que a principal objeção contra as regras

de CFC, que repousa nos seus efeitos econômicos nocivos para a competitividade das empresas nacionais que atuam no exterior, apenas se verifica nos casos de adoção unilateral. Como exemplo, o problema da rigidez do regime brasileiro de tributação em bases universais, previsto na Lei n. 12.973/2014, reside justamente em sua adoção isolada pelo Brasil, que acaba por prejudicar a expansão das empresas brasileiras que atuam no exterior. Porém, se todos os concorrentes das empresas brasileiras também estivessem sujeitos à tributação residual de seus lucros no Estado de residência da sociedade matriz, o impacto na competitividade voltaria a ficar restrito às diferenças de alíquotas entre os países, que é um problema inerente à soberania dos Estados19.

2.4 Os benefícios socioeconômicos colaterais da repatriação

de lucros A isenção concedida para os lucros e dividendos provenientes do

exterior tem o condão de fomentar o desenvolvimento do mercado interno e o crescimento econômico. Assim, há benefícios socioeconómicos colaterais decorrentes da adoção de um regime de territorialidade parcial, uma vez que o fortalecimento da atividade econômica pode contribuir para a elevação dos níveis de empregos, bem como para o aumento dos salários pagos aos funcionários das multinacionais que atuam no mercado internacional. Aliás, é justamente isso o que espera o Presidente Donald Trump com a sua proposta de reforma tributária recentemente aprovada pelo Congresso norte-americano.

Assim, a potencial perda de arrecadação provocada pelo regime de

territorialidade parcial pode ser compensada com os resultados positivos

18 SCHOUERI, Luís Eduardo. Tributação Internacional das Empresas Nacionais e Desenvolvimento: Novos Rumos?. ln: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (Coord.). Tributação e Desenvolvimento - Homenagem ao Professor Aires Barreto. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 483-484. 19 Sobre o tema, vide: AVI-YONAH, Reuven S. Advanced Introduction to International Tax Law. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2015. p. 94.

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obtidos em longo prazo, assim como ocorre na maior parte dos casos de renúncia fiscal por meio de isenções.

Nessa linha, a cobrança de imposto de renda da pessoa jurídica

sobre os lucros auferidos no exterior, por meio de um regime de tributação em bases universais, pode resultar em efeitos adversos para economia, como a retenção dos lucros no Estado estrangeiro, sem distribuição aos sócios ou acionistas da entidade estrangeira. Logo, a adoção de um regime de territorialidade parcial pode evitar que a lei tributária crie distorções na gestão financeira da sociedade, estimulando a retenção de lucros acima do ponto de equilíbrio para o reinvestimento dos resultados na atividade empresarial.

Daí se dizer que a retenção de lucros no exterior, apenas para evitar

a cobrança de imposto de renda sobre os valores repatriados, pode afetar a chamada alocação ótima de recursos financeiros, pois, como os lucros permanecem no âmbito da sociedade no exterior, os sócios ou acionistas não podem utilizar os dividendos recebidos para outras finalidades econômicas. Segundo Joseph E. Stiglitz, a retenção de lucros no âmbito da pessoa jurídica pode diminuir a eficiência econômica das empresas, tendo em vista que os seus administradores terão uma grande quantidade de recursos financeiros retidos, o que exigirá menos eficiência na administração e nas decisões empresariais20.

3. OS PROBLEMAS DA MIGRAÇÃO PARA UM REGIME DE

TERRITORIALIDADE PARCIAL De acordo com Reuven Avi-Yonah, a migração para um regime de

territorialidade parcial pode estimular ainda mais o uso de estratégias para a transferência artificial de lucros para o exterior, que poderão ser posteriormente repatriados sem incidência de imposto de renda. Para o autor, o maior desestímulo à adoção de expedientes para a alocação artificial de lucros no exterior advém da dificuldade de repatriar os recursos para o investidor, justamente em razão da incidência de imposto de renda sobre os dividendos distribuídos. Dessa forma, caso a lei tributária passe a conceder isenção para os lucros e dividendos provenientes do exterior, as empresas multinacionais terão um incentivo econômico ainda maior para transferir lucros ou atividades para 20 STIGLITZ, Joseph E. Economics of the Public Sector. 3th edition. New York/London: WW. Norton, 2000. p. 663.

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outros Estados, pois será possível repatriar os resultados auferidos no exterior sem tributação no país de origem do investimento21.

Logo, a migração para um sistema de tributação territorial requer o

fortalecimento das regras de determinação da fonte para certos tipos de rendimento, o aperfeiçoamento da definição de estabelecimento permanente, bem como o endurecimento das regras sobre preços de transferência22, como será demonstrado a seguir.

3.1 Ausência de conjunto sistemático e orgânico de regras

para a determinação da fonte dos rendimentos Em linhas gerais, a fonte do rendimento corresponde a um critério

adotado pelo país para determinar o alcance da lei tributária a partir de um elemento de conexão objetivo. Enquanto o critério da residência está fundado em elemento de conexão subjetivo, o critério da fonte baseia-se em aspecto objetivo, atrelado à própria situação tributável.

No âmbito da doutrina, a fonte do rendimento pode ser analisada a

partir de dois aspectos distintos: fonte de produção e fonte de pagamento23. A fonte de produção da renda tem índole econômica, sendo

identificada a partir do nexo causal entre o substrato econômico e o fato que o determina. Assim, o conceito de fonte de produção refere-se ao local (limite territorial) em que o rendimento foi efetivamente gerado, alcançando os resultados produzidos ou derivados de atividade exercida no território de 21 AVI-YONAH, Reuven S. Back to the future? The potential revival of territoriality, Bulletin for International Taxation, v. 62, n. 10, Amsterdam, IBFD, 2008, p. 473. Na mesma linha: AVI-YONAH, Reuven S.; MAZZONI, Gianluca. The Trump Tax Reform Plan: Implications for Europe, Bulletin for International Taxation, v. 71, n. 6a, Amsterdam, IBFD, 2017, p. 11. 22 Segundo Reuven Avi-Yonah: "This trend has its attendant problems as well. The main argument against the US dividend exemption proposal is that, Like any move in the direction of territoriality, it puts more pressure on the source rules and on transfer pricing' (AVI-YONAH, Reuven S., op. cit., p. 413). 23 TAVOLARO, Agostinho Toffoli. Tributação Internacional: Elementos de Conexão. ln: SOUZA,. Arivaldo Santos de et al. (Coords.). Direito Tributário: Estudos Avançados em Homenagem a Edvaldo Brito. São Paulo: Adas, 2014. p. 186-188.

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determinado Estado. Logo, a fonte de produção demarca o local de ocorrência do fato jurídico que produziu o rendimento a ser tributado24.

Por outro lado, a fonte de pagamento estabelece conexão com o Estado de onde provêm os recursos financeiros utilizados para o pagamento do rendimento. Como os recursos necessários para o pagamento do rendimento devido ao não residente devem ser extraídos do patrimônio de um titular, esse critério estabelece a conexão entre o rendimento e o Estado competente para a sua tributação a partir da localização da fonte de pagamento25.

Embora os dois elementos, por vezes, possam estabelecer conexão

objetiva com o mesmo Estado, não é raro que a fonte de produção e a fonte de pagamento estejam localizadas em jurisdições distintas. Além disso, nada impede que um mesmo ordenamento jurídico adote diferentes elementos de conexão, de acordo com as circunstâncias. Assim, o Estado poderá adotar, simultaneamente, o critério da residência, com o objetivo de tributar todos os residentes, independentemente da localização, da condição jurídica ou da nacionalidade da fonte do rendimento, bem como o critério da fonte, para alcançar os rendimentos produzidos (fonte de produção) ou pagos (fonte de pagamento) por fonte local, independentemente da residência do seu beneficiário.

Vale registrar, ainda, que a definição da fonte do rendimento deve

ser objeto de análise casuística por parte do intérprete, a partir do exame de cada situação concreta à luz da legislação interna do país. Isso porque o Estado pode deixar de adotar um critério único e uniforme para todas as classes de rendimentos passíveis de imposição fiscal.

No Direito interno brasileiro, o artigo 43, parágrafo 1º, do Código

Tributário Nacional (CTN) outorga ampla margem de liberdade ao legislador ordinário, ao estabelecer que a incidência do imposto de renda “independe da

24 ROTHMANN, Gerd Willi. Tributação Internacional sem Sujeito Passivo: uma Nova Modalidade do Imposto de Renda sobre Ganhos de Capital?. Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2006. v. 13, p. 108-109. 25 SCHOUERI, Luís Eduardo. Princípios no Direito Tributário Internacional: Territorialidade, Fonte e Universalidade. In: FERRAZ, Roberto (Coord.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo Quartier Latin, 2005. p. 336-337.

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denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção”. Assim, o legislador ordinário tem liberdade para eleger os elementos de conexão que servirão para vincular determinados rendimentos ao território nacional.

Entretanto, salvo em situações específicas, o Brasil não adota regras

claras para a determinação da fonte dos rendimentos, o que pode suscitar dúvidas em casos concretos. Como exemplo, imagine-se que uma pessoa jurídica domiciliada no Brasil receba rendimentos oriundos de licença de uso de marca para residentes no exterior. Caso a fonte do rendimento esteja no Brasil, o valor recebido por essa pessoa jurídica deve ser oferecido à incidência do IRPJ e da CSLL regularmente, segundo o regime de competência. Por outro lado, caso a fonte do rendimento esteja no exterior, o valor recebido por essa pessoa jurídica deve ser oferecido à incidência do IRPJ e da CSLL apenas em 31 de dezembro de cada ano-calendário.

Nesse sentido, o artigo 25 da Lei n. 9.249/95 determina que os

lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior devem ser computados na determinação do lucro real por ocasião do levantamento do balanço de 31 de dezembro de cada ano. Veja-se:

“Art. 25. Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano”. (Destaques do autor)

Como se pode antever, a dificuldade que surge, no exemplo

apresentado acima, consiste saber se o valor recebido pela pessoa jurídica no Brasil, em razão do pagamento de royalty por um residente em outro Estado soberano, em decorrência de contrato de licença de uso de marca, pode ser considerado um rendimento auferido no exterior. Essa dificuldade surge justamente em razão da ausência de regra clara determinando a fonte do rendimento.

A expressão "rendimento auferido no exterior" parece indicar que a

fonte de produção da renda deve estar localizada em outro Estado. Assim, para fins de aplicação do artigo 25 da Lei n. 9.249/95, é insuficiente que a mera fonte de pagamento esteja no exterior.

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Apenas para que fique claro o raciocínio, imagine-se que uma pessoa

jurídica no Brasil possua um data center no País e decida disponibilizá-lo para uma pessoa não residente para o armazenamento e processamento de dados, por acesso remoto. O valor da remuneração recebida por essa pessoa jurídica no Brasil será desembolsado por uma fonte de pagamento localizada no exterior, mas a fonte econômica de produção da renda que corresponde à infraestrutura para armazenamento e processamento de dados, está localizada no Brasil. Assim, esse rendimento deverá ser tributado pelo regime de competência, pois não se enquadra na hip6tese normativa do artigo 25 da Lei n. 9.249/95. Por outro lado, no mesmo exemplo acima, caso a pessoa jurídica no Brasil disponibilize para um não residente um data center localizado no exterior, o valor da remuneração poderá ser considerado um rendimento auferido no exterior26.

Note-se que essa interpretação foi adotada pela Coordenação do

Sistema de Tributação (COSIT) nas razões de decidir da Solução de Consulta COSIT n. 94, de 3 de abril de 2014, da qual se transcreve a seguinte passagem:

“Isso posto, torna-se claro que a legislação pertinente à matéria analisada não elegeu o local da fonte pagadora como critério para a caracterização da origem do lucro. Tanto é verdade que nos casos de exportação de mercadoria e de prestação direta de serviço no exterior, o pagamento efetuado como contrapartida, mesmo sendo proveniente do exterior, não enseja hipótese de obrigatoriedade de apuração do lucro real”. (Destaques do autor.)

A bem da verdade, a localização da exata fonte de produção da

renda é um tema extremamente controvertido, tanto entre economistas, quanto entre juristas.

26 O exemplo acima pretende apenas distinguir os conceitos de fonte de produção e fonte de pagamento, motivo pelo qual a sua estrutura foi simplificada. Porém, em casos concretos, pode existir ampla divergência a respeito da natureza jurídica da atividade de disponibilização de data center desenvolvida pela pessoa jurídica no Brasil (Cf. XAVIER, Alberto. Da Tributação dos Rendimentos Pagos a Titulares de Data Center Residentes no Exterior, Revista Dialética de Direito Tributário n. 234, São Paulo, Saraiva, 2015, p. 7-14).

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Em caráter geral, é possível dizer que a fonte de produção dos royalties devidos pela licença de uso de marca está localizada no Estado de desenvolvimento e registro da propriedade intelectual, por se tratar de remuneração do ativo intangível desenvolvido. Afinal, é o criador da marca que suporta os riscos da sua desvalorização, os custos de sua manutenção, os investimentos para sua divulgação, bem como os gastos para a sua proteção, contribuindo, assim, para a geração da renda. Assim, a origem da renda relativa ao uso da marta está localizada no Estado em que a marca foi desenvolvida e registrada, especialmente porque, sem o desenvolvimento da marca, sequer existiria a possibilidade de licenciamento27.

Nessa linha, nos países estrangeiros que licenciam a marca, o

rendimento que surge está relacionado à exploração de atividade econômica mediante o uso da marca (i.e., venda de bens ou prestação de serviços com a marca licenciada). Esse rendimento tem natureza de lucro ou resultado de atividade econômica, que não se confunde propriamente com o royalty que remunera o uso da marca. Sem dúvida, o royalty a ser pago para a pessoa jurídica no Brasil será retirado dos valores recebidos com essa atividade econômica desenvolvida pelas empresas sediadas no exterior, mas a sua fonte de produção econômica está relacionada ao Brasil.

Note-se que o fato de a marca licenciada também estar registrada no

Estado onde está sendo explorada comercialmente por terceiros não altera o raciocínio acima, pois o critério decisivo, sob o ponto de vista da fonte de produção, é onde a marca foi desenvolvida. Do contrário, bastaria alterar o país de registro da marca para alterar a sua fonte de produção, o que não condiz com a ideia de identificar a origem da renda e a sua pertinência econômica.

27 Confira-se o entendimento de Eric Kemmeren: "The cause of the royalty income received is the creation of the intellectual property. Especially with respect to royalty income, the overwhelming relevance of the intellectual element in the production of income is obvious. The state where the intellectual element is found is the state of origin of the royalty income. Through exploitation o/ the intangible, the producer of the intangible creates income. The user of the intangible does not produce the royalty income, at least not predominantly. He only uses the intellectual element of someone else producing another item of income, for example, business income if he uses the intangible in his own enterprise" (KEMMEREN, Eric C. C. M. Principie of Origin in Tax Conventions - A Rethinking of Models. Dongen: Pijnenburg Vormgevers/Kemmeren, 2001. p. 452).

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Dessa forma, como os valores recebidos pela pessoa jurídica no Brasil remuneram o direito de utilizar uma marca que foi desenvolvida e registrada no País, é possível dizer que a sua fonte de produção está situada no território nacional, independentemente da sua utilização e do registro adicional realizado nos outros Estados estrangeiros.

Portanto a produção do elemento intelectual é o aspecto

predominante na origem do royalty. Isso não impede, porém, o reconhecimento de que a utilização da marca contribui para a produção da renda, por se tratar de um fenômeno econômico que não pode ser isolado e destacado. A fonte de produção predominante está no Estado onde a marca foi desenvolvida e o seu titular suporta os riscos da sua desvalorização, os custos de sua manutenção, os investimentos para sua divulgação, bem como os gastos para a sua proteção, como mencionado acima.

Seja como for, é possível reconhecer que, economicamente, o

mercado também contribui para a obtenção da renda, o que causa controvérsias doutrinárias em relação ao tema. Segundo Reuven Avi-Yonah, é comumente aceita a ideia de que parte dos rendimentos relativos aos royalties deve ser alocada ao Estado onde a marca ou á patente foi desenvolvida, em adição ao mercado onde o produto final foi vendido28.

O próprio autor menciona que os Estados Unidos atribuem, em suas

leis domésticas, a fonte de produção do royalty ao país onde o intangível foi utilizado, mas pondera que isso decorre de um pleito das empresas farmacêuticas norte-americanas, que desenvolviam as pesquisas de medicamentos nos Estados Unidos e depois vendiam seus produtos ao redor do mundo. Caso a fonte de produção do royalty fosse alocada aos Estados Unidos (onde o remédio foi desenvolvido), as empresas farmacêuticas norte-americanas não poderiam aproveitar o crédito do imposto de renda pago no exterior sobre esse rendimento29.

Ao contrário dos Estados Unidos, o direito positivo brasileiro não

consagrou um conjunto sistemático ,e orgânico de regras para a determinação 28 AVI-YONAH, Reuven. International Tax as International Law -An Analysis of the International Tax Regime. New York: Cambridge University Press. 2007, p. 44-45. 29 AVI-YONAH, op. cit.

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da fonte dos rendimentos, o que exige uma análise de cada caso concreto, à luz de suas características econômicas e das regras brasileiras que tratam da tributação de tais rendimentos30. Em vista disso inúmeras dificuldades podem surgir na determinação da fonte de um rendimento, de modo que a adoção de um regime territorial (amplo. ou mitigado) de tributação depende da concepção, pelo legislador, de um conjunto sistemático e orgânico de regras para a determinação da fonte dos rendimentos.

3.2. Aprimoramento do conceito de estabelecimento

permanente ou a adoção de medidas substitutivas Outra providência importante, para os países que migram para

regimes territoriais, envolve o fortalecimento das regras de estabelecimento permanente, para evitar que o seu mercado interno seja explorado por empresas multinacionais na condição de Estado da fonte, sem o pagamento de imposto de renda, em razão da ausência de nexo sob a perspectiva das regras atuais. Essa medida é necessária para a proteção da arrecadação fiscal, bem como para evitar que as próprias subsidiárias ou controladas no exterior exerçam atividades ou desenvolvam negócios no Estado da sociedade matriz sem a superação do parâmetro necessário para a caracterização de um estabelecimento permanente.

Neste ponto, as medidas previstas na Convenção Multilateral do

Projeto BEPS parecem insuficientes para a efetiva proteção das bases tributáveis de um Estado que migrou para um: regime de territorialidade parcial. Isso porque as alterações propostas na definição de estabelecimento permanente limitam-se a combater as estratégias de planejamento tributário comumente utilizadas pelos contribuintes para impedir a sua caracterização em casos concretos, por meio de: (i) contratos de comissão ou estratégias similares; (ii) utilização das isenções (i.e. lista negativa) previstas para atividades específicas; e (iii)'a divisão de contratos entre diferentes contribuintes para evitar o período de tempo exigido para a caracterização do estabelecimento permanente no Estado da fonte31.

30 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 269. 31 STORCK, Alfred; ZEILER, Alexander. Beyond the OECD Update 2014: Changes to the Concepts of Permanent Establishments in the Light of the BEPS Discussion. ln: LAND, Michael et al. (Coords.). The OECD Model Convention and its Update 2014. Vienna: Linde, 2015. p. 242-268.

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Em razão do escopo limitado da Convenção Multilateral e do

insucesso da Ação 1 do Projeto BEPS, os países vêm adotando medidas unilaterais descoordenadas para evitar a manipulação do conceito de estabelecimento permanente, tais como o “Diverted Profits Tax”, no Reino Unido e na Austrália, bem como o “Equalization Levy”, na Índia, que pretendem tributar a renda gerada mediante a exploração dos seus mercados locais, sem a necessidade de um teste de "presença econômica significativa", tal como ocorre com o conceito de estabelecimento permanente.

No Brasil, a noção de estabelecimento permanente é utilizada de

forma limitada, alcançando, basicamente, as vendas diretas realizadas no Brasil por empresas estrangeiras, por meio de agente, representante ou comissário residente no País32. As medidas defensivas para a tributação da renda gerada pela exploração do mercado brasileiro envolvem, fundamentalmente, a exigência de IRRF sobre os rendimentos de prestação de serviços, bem como a previsão de que filiais, sucursais, agências ou representações de pessoas jurídicas domiciliadas no exterior serão equiparadas às pessoas jurídicas sediadas no País para fins de tributação. Assim, a migração para um regime de tributação territorial dependeria do fortalecimento do sistema tributário brasileiro e de sua política de tributação de não residentes.

3.3 O fortalecimento das regras de preços de transferência O terceiro problema que surge na migração para um regime de

territorialidade (total ou parcial) reside na necessidade de fortalecimento das regras de preços de transferência.

Como se sabe, a sistemática que rege o controle de preços de

transferência tem o propósito de evitar a erosão das bases tributáveis e a transferência artificial de lucros por meio de operações internacionais entre empresas associadas.

32 BIANCO, João Francisco. O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2005. v. 9, p. 298-313.

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No cenário internacional, o controle de preços de transferência com base no “padrão arm’s length”33 está consagrado nos mais de 3.000 acordos de bitributação atualmente existentes, baseados na Convenção Modelo da OCDE. O artigo 9º da Convenção Modelo da OCDE permite a realização de ajustes no lucro tributável da pessoa jurídica em razão de transações realizadas entre empresas associadas, para a sua adequação ao lucro que teria sido apurado caso a transação tivesse ocorrido entre partes independentes.

Ocorre que as regras de preços de transferência baseadas nas

diretrizes da OCDE apresentam diversas falhas estruturais que dificultam a migração para um regime territorial. Em apertada síntese, é possível elencar os seguintes problemas:

i). falta de operações comparáveis para a identificação do preço

parâmetro; ii). inexistência de um único resultado correto, tendo em vista

que o resultado “arm’s length” compreende uma faixa, que admite oscilações;

iii). elevados custos de conformidade e de fiscalização (v.g., o

custo para encontrar operações comparáveis é mais caro do que o ganho da transação);

iv). aumento da complexidade e sofisticação das operações

internacionais (v.g., dificuldade de aplicação da análise funcional para operações na economia digital);

33 ,Optou-se pela .expressão “padrão arm's length”, no lugar de “princípio arm's length”, em razão da ausência de natureza principiológica direta no “arm's length”, que deflui do princípio da igualdade. (Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. O Arm's Length como Princípio ou como Standard Jurídico. In: SCHOUERI, Luís Eduardo e BIANCO, João Francisco (Coords.). Estudos de Direito Tributário em Homenagem ao Professor Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 216; ROTHMANN, Gerd Willi. Standard Jurídico. LIMONGI FRANÇA, Rubens (Coord.). Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 7, p. 500-501).

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v). vulnerabilidade das regras atuais em face das estratégias de transferência de lucros envolvendo ativos intangíveis e a assunção contratual de riscos;

vi). ausência de precisão e segurança jurídica para os

investidores, tendo em vista que os resultados das aplicações das regras de preços de transferência são imprevisíveis e os valores das autuações fiscais apenas aumentam;

vii). ineficiência dos métodos para capturar sinergias e outros

resultados decorrentes da integração de entidades em um grupo econômico internacional;

viii). multinacionais atuam de forma integrada, desenvolvendo uma

única atividade econômica, o que afasta a lógica de tentar estabelecer um critério de comparação com partes independentes;

ix). inexistência de coordenação efetiva entre os países para

alinhar os resultados de preços de transferência (v.g., procedimento amigável, acordos prévios de preços de transferência e “tax rulings”);

x). altos custos envolvidos nos acordos prévios de preços de

transferência bilaterais ou multilaterais; xi). falta de alinhamento entre as regras atuais de preços de

transferência e o rápido desenvolvimento do ambiente de negócios (a realidade econômica mudou desde 1917, quando o “padrão arm's lenght” foi concebido);

xii). inexistência de uma abordagem sólida para a identificação da

criação de valor tal como proposto pela OCDE no âmbito do Projeto BEPS;

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xiii). o grau de complexidade do “arm's length” e das análises funcionais exigidas chegou a um patamar que beira a irracionalidade.

Diante de todos os problemas apontados acima, percebe-se que há

um severo obstáculo à migração para um regime territorial, pois seria possível manipular as regras de preços de transferência para permitir que determinada renda seja gerada no exterior e, posteriormente, repatriar esse lucro para o país de residência do investidor sem tributação em virtude da isenção de imposto de renda para os lucros e dividendos auferidos no exterior.

Neste cenário, as regras de tributação automática dos lucros do

exterior servem justamente para escorar as regras de preços de transferência, capturando os lucros deslocados artificialmente para outros países, por meio de operações que não foram adequadamente valoradas segundo os métodos previstos nas regras domésticas de preços de transferência34.

No Brasil, as regras de preços de transferência introduzidas pela Lei

n. 9.430/96 não apresentam as mesmas falhas estruturais das regras de preços de transferência baseadas nas Diretrizes da OCDE, em virtude da adoção de um regime distinto de controle.

De fato, as regras de preços de transferência foram introduzidas no

sistema tributário brasileiro com o objetivo de controlar a manipulação de preços em transações realizadas com pessoas físicas ou pessoas jurídicas vinculadas ou residentes em jurisdição com tributação favorecida ou em regime fiscal privilegiado, evitando-se, com isso, o superfaturamento nas operações de importação, bem como o subfaturamento nas operações de exportação.

A grande diferença da lei brasileira, em comparação com a prática

internacional, reside no fato de que os métodos objetivos previstos na Lei n. 9.430/96 estão baseados na fixação de margens predeterminadas de lucro, na estipulação de zonas de segurança (“safe harbours") e no estabelecimento de restrições à comparabilidade livre, como forma de reduzir a subjetividade e a incerteza na aplicação do Direito. Até mesmo nos métodos comparativos, como o 34 AVI-YONAH, Reuven S. Advanced Introduction to International Tax Law. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2015. p. 33.

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PIC e o PCI nas operações de importação, bem como o PVEx e o PECEX nas operações de exportação, o legislador tributário estabeleceu diversas restrições para diminuir a amostra de preços comparáveis e o grau de subjetividade do aplicador do Direito35.

Ocorre que, apesar de a Lei n. 9.430/96 não apresentar as mesmas

vulnerabilidades das regras de preços de transferência da OCDE, devido ao uso de margens de lucro predeterminadas, as regras de preços de transferência brasileiras podem facilmente resultar em dupla tributação, uma vez que o outro país pode deixar de fazer o ajuste correlativo quando o ajuste fiscal determinado pela lei brasileira não corresponder ao “padrão arm’s length”.

Isso ocorre porque o ajuste correlativo apenas é realizado na

hipótese em que o Estado comprova o desvio ao "padrão arm's length". Tanto é assim que o Brasil não reproduz em seus acordos de bitributação o parágrafo 2º do artigo 9º da Convenção Modelo da OCDE, que prevê a realização do ajuste correlativo de preços de transferência para eliminar a dupla tributação econômica da renda36. Como se sabe, o artigo 9º prevê dois níveis distintos de ajustes: (i) o primeiro ajuste no lucro é realizado para que a transação entre as empresas associadas reflita o valor de mercado ("primary adjustment”); (ii) o segundo ajuste no lucro é realizado pelo Estado de residência do beneficiário, para eliminar a dupla tributação econômica do lucro ajustado no primeiro Estado (“correlative adjustment”).

Essa omissão do parágrafo 2º do artigo 9º da Convenção Modelo da

OCDE, nos acordos de bitributação celebrados pelo Brasil, decorre das particularidades das regras brasileiras de preços de transferência, que, na maior parte dos métodos, utilizam margens predeterminadas de lucro e não preveem a possibilidade de realização do ajuste correlativos.

35 GREGORIO, Ricardo Marozzi. Restrições da Comparabilidade, Margens Predeterminadas e Liberdade da Escolha de Métodos. ln: SCHOUERI, Luís Eduardo (Coord.). Tributos e Preços de Transferência. São Paulo: Dialética, 2013. v. 4, p. 354-355. 36 OKUMA, Alessandra. As Convenções para Evitar Dupla Tributação e Elisão Fiscal e os Meios de Solução de Controvérsia. TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. v. IV, p. 421.

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Além disso, as regras de preços de transferência previstas na Lei n. 9.430/96 podem tributar excessivamente determinadas transações e tributar insuficientemente outras, tendo em vista que as margens de lucro predeterminadas exigidas pelo método aplicável podem ser maiores ou menores do que os lucros obtidos pelos contribuintes.

Diante disso, contata-se que o problema das regras brasileiras não

está na utilização das margens predeterminadas de lucros, que eliminam diversos problemas encontrados nas diretrizes da OCDE de preços de transferência, mas, sim, na impossibilidade de produção de prova em contrário pelo contribuinte, o que dificulta a sua compatibilização com o artigo 9º dos acordos de bitributação baseados na Convenção Modelo da OCDE.

Dessa forma, para que a Lei n. 9.430/96 fosse plenamente

compatível com os acordos de bitributação celebrados pelo Brasil, o legislador tributário deveria ter permitido que o contribuinte comprovasse que o ajuste previsto nas margens predeterminadas não deve ser aplicado ao caso concreto, tendo em vista que as operações contratadas observaram as condições normais de mercado para aquele ramo de atividade. É dizer, o contribuinte deveria ter a faculdade de comprovar que a operação comercial ou financeira foi firmada em condições idênticas àquelas praticadas por partes não relacionadas em condições análogas de acordo .com o tipo de atividade exercida pela pessoa jurídica.

Neste contexto, é possível listar as deficiências da Lei n. 9.430/96: i). impossibilidade de produção de prova em contrário pelo

contribuinte, que não consegue comprovar que a operação comercial ou financeira praticada observa o padrão de mercado;

ii). escassez na variedade de margens de lucro, que deveriam

captar as especificidades de cada segmento econômico; iii). elevado risco de dupla tributação econômica nas operações

internacionais;

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iv). não aplicação das regras de preços de transferência para os pagamentos de royalties e de remuneração pela prestação de assistência técnica, científica ou administrativa, que estão sujeitos a restrições quantitativas para a dedução das respectivas despesas;

v). ausência de ajuste correlativo de preços de transferência para

evitar a dupla tributação econômica da renda nas operações internacionais;

vi). não utilização do procedimento amigável para a realização de

ajustes correlativos ou para resolver conflitos na área de preços de transferência;

vii). falta de celebração de acordos prévios de preços de

transferência com os contribuintes e com outros Estados contratantes;

viii). limitações estruturais dos métodos brasileiros de preços de

transferência, que não se amoldam ou não capturam determinados tipos de operações específicas; como aplicações financeiras, vendas de participações societárias, contratos de garantia, transferências de intangíveis, entre outras operações.

Com tais anotações, conclui-se que tanto as regras de preços de

transferência baseadas nas diretrizes da OCDE, quanto as regras brasileiras de preços de transferência previstas na Lei n. 9.430/96 apresentam diversas falhas estruturais, o que dificulta significativamente o processo de migração para um regime de tributação territorial da renda.

4. CONCLUSÕES Como visto no presente estudo, as principais razões apontadas para

a tendência de migração para um regime de tributação territorial da renda envolvem: a competição fiscal internacional e os seus impactos na tributação da renda; as operações de planejamento tributário agressivo e, em especial, as

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operações de inversão da estrutura societária; o impacto negativo das regras de tributação automática dos lucros do exterior para a competitividade das empresas no cenário global; os benefícios socioeconômicos colaterais da repatriação de lucros.

Ocorre que a migração para um regime de territorialidade parcial

pode estimular ainda mais o uso de estratégias para a transferência artificial de lucros para o exterior, que poderão ser posteriormente repatriados sem a incidência de imposto de renda.

O maior desestímulo à adoção de estratégias de alocação artificial de

lucros no exterior deriva da dificuldade de repatriar os recursos para o investidor, justamente em razão da incidência de imposto de renda sobre os dividendos distribuídos. Dessa forma, caso a lei tributária passe a conceder isenção para os lucros e dividendos provenientes do exterior, as empresas multinacionais terão um incentivo econômico ainda maior para transferir lucros ou atividades para outros Estados, pois será possível repatriar os resultados auferidos em outros países sem tributação residual no país de origem do investimento.

Por essa razão, a migração para um sistema de tributação territorial

requer o fortalecimento das regras de determinação da fonte dos rendimentos, o aprimoramento do conceito de estabelecimento permanente ou de regras congêneres, bem como o endurecimento regras de preços de transferência.

O problema é que, tanto no Brasil, quanto na maior parte dos países

do mundo, não há conjunto sistemático e orgânico de regras para a determinação da fonte dos rendimentos. A localização da exata fonte de produção da renda é um tema extremamente controvertido, tanto entre economistas, quanto entre juristas, de modo que cabe ao legislador de cada Estado estabelecer um conjunto coerente de regras para disciplinar o tema. Antes disso, a migração para um regime de tributação territorial pode ser extremamente arriscada, ainda que apenas os lucros e dividendos provenientes do exterior sejam alcançados pela isenção.

Da mesma forma, o conceito de estabelecimento permanente tem se

mostrado insuficiente para a proteção do mercado doméstico, sobretudo em

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razão dos inúmeros avanços nos modelos de negócio adotados na economia digital.

Com relação aos preços de transferência, o fortalecimento de tais

regras é essencial para a migração para um regime de tributação territorial da renda. Do contrário, será possível manipular as regras de preços de transferência para permitir que determinada renda seja gerada no exterior e, posteriormente, repatriar esse lucro para o país de residência do investidor sem tributação, em virtude da isenção para os lucros provenientes do exterior.

Neste ponto, o problema é que as regras internacionais de preços de

transferência, baseadas nas diretrizes da OCDE, apresentam diversas falhas estruturais, que não foram resolvidas pelas Ações 8, 9 e 10 do Projeto BEPS, que pretenderam alinhar os resultados das regras de preços de transferência com a criação de valor. Esse aspecto corrobora o perigo envolvido na migração para um sistema de tributação territorial.

De modo semelhante, no caso das regras brasileiras de preços de

transferência, apesar do uso de margens predeterminadas de lucros, as regras de tributação em bases universais previstas na Lei n. 12.973/2014 servem justamente para escorar as regras de preços de transferência, capturando os lucros deslocados para o exterior, principalmente quando o lucro total obtido na operação ultrapassa a margem de lucro exigida pela lei brasileira.

Por fim, as regras da Lei n. 12.973/2014 também suprem as

limitações estruturais dos métodos brasileiros de preços de transferência, que não se amoldam ou não capturam determinados tipos de operações específicas. Daí a dificuldade de migração do Brasil para um regime de tributação territorial da renda, com isenção de imposto de renda para os lucros e dividendos provenientes de participações societárias no exterior.