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Artigos São Paulo / NOVEMBRO 2012 1 Texto para o XXXVII Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU/IICS, no livro “Pesquisas Tributárias – Nova Série – 18 – Questões Controvertidas no Processo Administrativo Fiscal – CARF”, 2012, Centro de Extensão Universitária e Ed. Revista dos Tribunais, p. 368. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira Bruno Fajersztajn Fabiana Carsoni Alves F. da Silva CARF – QUESTÕES CONTROVERTIDAS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL INTRODUÇÃO A organização científica do Simpósio Nacional de Direito Tributário, que se realiza anualmente há trinta e sete anos, sempre primou pela excelência na seleção de temas de importância científica e de interesse da atualidade. É o que volta a ocorrer em 2012 com a formulação de questões relacionadas ao processo administrativo sobre tributos federais, que há mais de oitenta anos vem sendo da competência dos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, unificados a partir de 2009 no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), culminando na instância especial da Câmara Superior de Recursos Fiscais. De se notar que o novo órgão também recebeu a competência para julgamento das contribuições previdenciárias que até então eram da incumbência do Conselho de Recursos da Previdência Social. A existência recente desse novo órgão, a grandeza da sua missão, o necessário aumento no número dos seus conselheiros, muitos dos quais sem anterior experiência judicante ou vindos do Conselho de Recursos da Previdência Social, a sua atuação sob novo regimento interno e em nova

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Texto para o XXXVII Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU/IICS, no livro “Pesquisas Tributárias – Nova Série – 18 – Questões Controvertidas no Processo Administrativo Fiscal – CARF”, 2012, Centro de Extensão Universitária e Ed. Revista dos Tribunais, p. 368.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira Bruno Fajersztajn Fabiana Carsoni Alves F. da Silva

CARF – QUESTÕES CONTROVERTIDAS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL

INTRODUÇÃO A organização científica do Simpósio Nacional de Direito Tributário,

que se realiza anualmente há trinta e sete anos, sempre primou pela excelência na seleção de temas de importância científica e de interesse da atualidade.

É o que volta a ocorrer em 2012 com a formulação de questões

relacionadas ao processo administrativo sobre tributos federais, que há mais de oitenta anos vem sendo da competência dos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, unificados a partir de 2009 no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), culminando na instância especial da Câmara Superior de Recursos Fiscais. De se notar que o novo órgão também recebeu a competência para julgamento das contribuições previdenciárias que até então eram da incumbência do Conselho de Recursos da Previdência Social.

A existência recente desse novo órgão, a grandeza da sua missão, o

necessário aumento no número dos seus conselheiros, muitos dos quais sem anterior experiência judicante ou vindos do Conselho de Recursos da Previdência Social, a sua atuação sob novo regimento interno e em nova

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estrutura de câmaras e turmas, torna extremamente oportuna a realização de um evento como o que o Centro de Extensão Universitária e o Instituto Internacional de Ciências Sociais estão promovendo agora em 2012.

É que o debate dessas questões poderá contribuir para o

aperfeiçoamento da jurisprudência do CARF e da Câmara Superior. Ao menos é o que se pode esperar de escritos e debates sérios e com espírito aberto.

De mais a mais, passamos por período de turbulências derivadas da

proliferação de normas, nem sempre tecnicamente bem elaboradas, e também motivadas pela constante oposição de interesses entre o fisco federal e a sociedade civil engajada em atividades econômicas, oposição esta que se exacerbou nos últimos anos em virtude do próprio crescimento econômico e tecnológico do País e das sempre crescentes necessidades de aumento da arrecadação tributária.

Este cenário nos animou a participar do Simpósio e a escrever em

conjunto o trabalho que ora apresentamos à consideração dos que integrarão as várias comissões do evento e dos leitores do respectivo livro.

Dividimos nossos encargos de modo a que cada um ficasse

incumbido de questões específicas 1, mas declaramos comungar de todos os fundamentos e de todas as conclusões referentes a cada questão.

1. É possível atribuir efeitos modificativos aos Embargos de

Declaração? Mesmo quando apresentados pelo titular da unidade da administração tributária encarregada da liquidação e execução do acórdão?

Antes de enfrentar as duas indagações que compõem esta primeira

questão, cumpre deixar registrado que não há previsão legal expressa para a interposição de embargos de declaração no processo administrativo tributário federal (Decreto n. 70235, de 6.3.1972), nem na lei geral sobre o processo administrativo no âmbito federal (Lei n. 9784, de 29.1.1999), bem como na sua

1 Assim, Ricardo Mariz de Oliveira é responsável pelas questões 1 e 4, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da Silva pelas questões 2 e 3, e Bruno Fajersztajn pelas de n. 5 e 6.

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regulamentação consolidativa das leis sobre o processo fiscal federal (Decreto n. 7574, de 29.9.2011).

Assim, o assunto é disciplinado exclusivamente pelo Regimento

Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), conforme a Portaria n. 256/09, do Ministro da Fazenda, que prevê tal espécie recursal nos art. 64, inciso I, e 65, além de conter disposições esparsas em outros dispositivos.

A validade jurídica da norma regimental fica, portanto, subordinada

ao art. 37 do Decreto n. 70235, o qual determina que o julgamento na segunda instância seja disciplinado pelo regimento interno. É verdade que a amplitude da aplicação desta outorga de competência é limitada, mas, no caso dos embargos declaratórios, encontra suporte em princípios do processo administrativo, proclamados pelo art. 2º da Lei n. 9784, tais como os da finalidade, da motivação, da razoabilidade, da ampla defesa, do contraditório, da segurança jurídica, do interesse público, da eficiência, princípios estes que também estão expressos ou implícitos nos art. 5º, inciso LV, e 37 da Constituição Federal, tudo sem se olvidar do preceito fundamental da economia processual.

Tendo isto em mente, as duas indagações serão respondidas à luz do

Regimento Interno do CARF, que cumpre desde logo ser reproduzido, no que ora é preciso:

“Art. 65 - Cabem embargos de declaração quando o acórdão contiver obscuridade, omissão ou contradição entre a decisão e os seus fundamentos, ou for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se a turma. Parágrafo 1° - Os embargos de declaração poderão ser interpostos, mediante petição fundamentada dirigida ao presidente da Turma, no prazo de cinco dias contado da ciência do acórdão: I - por conselheiro do colegiado; II - pelo contribuinte, responsável ou preposto; III - pelo Procurador da Fazenda Nacional;

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IV - pelos Delegados de Julgamento, nos casos de nulidade de suas decisões; V - pelo titular da unidade da administração tributária encarregada da liquidação e execução do acórdão.”

Passando à primeira indagação, há que se afirmar a possibilidade do

provimento a embargo de declarações com efeitos infringentes, isto é, modificativos da decisão proferida, afirmação esta já enraizada na doutrina processualista e na jurisprudência dos tribunais e do próprio CARF (como antes, na dos Conselhos de Contribuintes), inclusive da sua Câmara Superior de Recursos Fiscais.

Esta possibilidade – na verdade, exigência – existe a despeito da

finalidade primeira dos embargos declaratórios, que é a de integrar a decisão embargada, completando-a com a inserção de adendo destinado a eliminar obscuridade contida na decisão, ou sua omissão, ou sua contradição entre a decisão e os seus fundamentos, ou, ainda, se ela for omissa a propósito de ponto sobre o qual devia ter-se pronunciado. 2

A vocação originária dos embargos de declaração, portanto, não é

proferir uma nova decisão, mas, sim, aperfeiçoar outra decisão que tenha incorrido em alguma das imperfeições listadas nas suas hipóteses de cabimento.

Não obstante, em situações graves a imperfeição pode chegar ao

ponto de demandar uma revisão e, feita esta, requerer a correção do próprio mérito anteriormente resolvido. Isto se dá nos limites em que o erro, percebido pelo próprio julgador (no caso do CARF, pela turma julgadora) que o cometeu:

- incide numa situação de omissão, obscuridade ou contradição na

apreciação de fato ou aplicação do direito devido, a qual se insere perfeitamente nos casos em que cabem os embargos;

2 A integração da decisão embargada não representa uma nova decisão, mas a emissão da mesma decisão com os devidos ajustes, sendo esta a razão pela qual fica suspenso o prazo para a interposição de qualquer outro recurso cabível contra a decisão originária, e motivo pelo qual este outro recurso somente será interposto contra a decisão integrada relativa aos embargos, se ainda couber.

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- e, da consideração do ponto omitido, contraditório ou obscuro, não

haja outra solução a não ser modificar a decisão embargada para que, no provimento dos embargos, não haja contradição entre os seus fundamentos e sua conclusão, caso mantida a primitiva, o que redundaria em hipótese de cabimento de outros embargos declaratórios.

Com razão, a motivação, legalmente requerida para o ato

administrativo e as decisões em processos administrativos, não conseguiria conviver com a contradição que poderia surgir entre a manutenção da decisão embargada e a consideração dos pontos de fato ou de direito omitidos, contraditórios ou obscuros no julgamento anterior.

Enfim, o reconhecimento de efeitos modificativos quando do

julgamento dos embargos pode ser uma necessidade para a normalidade processual, e, conforme as circunstâncias de cada caso, pode ser a única solução razoável e justa para o proferimento da decisão integrativa.

Há um parecer do Professor J. J. Calmon de Passos que esclarece em

profundidade esta questão 3. De acordo com o mestre baiano, na situação em que houver julgamento durante a sessão de debates, se o advogado pedir a palavra para requerer a retificação de alguma obscuridade, dúvida ou contradição, ou o suprimento de alguma omissão na fórmula da decisão que está em vias de se formar, sua intervenção poderá constar da assentada da sessão, mas a fórmula final da sentença consolidará a manifestação jurisdicional numa única decisão, embora tenha contado com a referida interferência do advogado, e ainda que desta tenha resultado modificação na decisão em relação à fórmula decisória que estava para ser proferida.

O mesmo ocorre como os embargos de declaração, com a distinção

de que a intervenção do advogado manifesta-se apenas após a redução da decisão a uma formulação escrita, e a respectiva intimação.

A partir desta ideia inicial, o Professor Calmon de Passos demonstra

que é possível o reexame do mérito, dizendo o seguinte:

3 PASSOS, J. J. Calmon de, parecer não publicado, mas juntado a processos.

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“Recurso sem possibilidade de reexame do que foi decidido descaracteriza-se como meio de impugnação. Pode ser qualquer coisa, menos recurso. Daí soar incoerente dizer-se que os embargos de declaração desautorizam conseqüências que antes de seu oferecimento inexistiam. Reexame sem resultados práticos, impondo-se necessariamente, apesar dele, a manutenção de quanto antes decidido, soa absurdo inaceitável. ..... De que valeria impor-se o dever de eliminar a obscuridade, se ao faze-lo se ficaria compelido a manter o erro de julgamento que teve por causa, precisamente, a obscuridade que se busca eliminar? Nem é menor a exigência no tocante à contradição, antes avulta. E quando se vai para o âmbito da omissão, essa mudança é quase um imperativo, sob pena de se ter interposto um recurso desprovido de utilidade prática. Teríamos, fosse correto o raciocínio, um curioso tipo de recurso que jamais poderia eliminar o gravame que da decisão impugnada resultou para o embargante. Desconhecemos que tipo de lógica ou de racionalidade fundamenta tão flagrante sem-sentido.”

Desse entendimento não dissente José Carlos Barbosa Moreira: 4

“Costuma asseverar-se que a decisão sobre os embargos se limita necessariamente a revelar o verdadeiro conteúdo da decisão embargada e não pode trazer inovação alguma. Formulada em termos absolutos, a afirmação comporta reparos. Na hipótese da obscuridade, realmente, o que faz o novo pronunciamento é só esclarecer o teor do primeiro, dando-lhe a interpretação autêntica. Havendo contradição, ao adaptar ou eliminar alguma das proposições constantes da parte decisória, já a nova decisão altera, em certo aspecto, a anterior. E, quando se trata de suprir omissão, não pode sofrer dúvida que a decisão que acolheu os embargos inova abertamente: é claro, claríssimo, que ela diz mais que a outra. ..... Em tal medida é lícito reconhecer ao julgamento dos embargos efeito modificativo.”

4 MOREIRA, José Carlos Barbosa, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Editora Forense, 7ª ed., vol. V, p. 546.

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Igualmente, Humberto Theodoro Júnior leciona: 5

“Em qualquer caso, a substância do julgado será mantida, visto que os embargos de declaração não visam à reforma do acórdão, ou da sentença. No entanto, será inevitável alguma alteração do conteúdo do julgado, principalmente quando se tiver de eliminar omissão ou contradição. O que, todavia, se impõe ao julgamento dos embargos de declaração é que não se proceda a um novo julgamento da causa, pois a tanto não se destina esse remédio processual. As eventuais novidades introduzidas no decisório primitivo não podem ir além do estritamente necessário à eliminação da obscuridade ou contradição, ou ao suprimento da omissão.”

Por isso mesmo, o Código de Processo Civil, que trata dos embargos

de declaração, chega a ser explícito no art. 463, “in verbis”:

“Art. 463 - Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: ..... II - por meio de embargos de declaração.” (grifos apostos)

Esse dispositivo da lei processual civil tem a virtude de declarar a

possibilidade de se alterar a decisão por meio dos embargos declaratórios, e também a de demonstrar que os dois pronunciamentos se integram numa única decisão, pois alude a que, por meio dos embargos de declaração, altera-se a sentença, mas não diz que se a substitui por outra.

Assim, qualquer decisão de que caiba embargos de declaração pode

ser alterada pelo próprio juiz ou órgão julgador, porém apenas nas hipóteses listadas “numerus clausus” no regimento processual, ou seja, nas hipóteses de obscuridade, contradição ou omissão.

5 THEODORA JÚNIOR, Humberto, “Curso de Direito Processual Civil”., Editora Forense, 21ª ed., vol. I, p. 588.

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É o que vêm reconhecendo nossos tribunais superiores, como se vê por alguns exemplos.

O Supremo Tribunal Federal, 1a Turma, nos embargos de declaração

em recurso extraordinário n. 207927-8-SP, afirmou:

“Embargos declaratórios: admissibilidade e efeitos. Os embargos declaratórios são admissíveis para a correção de premissa equivocada de que haja partido a decisão embargada, atribuindo-se-lhes efeito modificativo quando tal premissa seja influente no resultado do julgamento.”

A 2a Turma do mesmo Supremo Tribunal decidiu o “habeas corpus”

n. 74735-3-PR dizendo:

“CONTRADITÓRIO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - EFEITO MODIFICATIVO. Visando os embargos declaratórios à modificação do provimento embargado, impõe-se, considerado o devido processo legal, a ciência da parte contrária para, querendo, apresentar contra-razões. A inobservância dessa formalidade, porque essencial à valia do julgamento, implica transgressão à garantia constitucional do contraditório e assim, ato de constrangimento passível de ser fulminado na via do habeas-corpus.”

No Superior Tribunal de Justiça, a Corte Especial assim se

pronunciou nos embargos de declaração nos embargos de divergência no recurso especial n. 67495-RJ:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INFRINGÊNCIA. 1. O entendimento pretoriano é no sentido do caráter de integração dos embargos de declaração, apenas sendo-lhes atribuídos efeitos infringentes em casos excepcionais. 2. Embargos rejeitados em parte, com encaminhamento dos autos à Seção competente para conhecimento acerca de matéria remanescente.”

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Ainda no Superior Tribunal de Justiça, sua 1a Seção afirmou nos embargos de declaração nos embargos de divergência no recurso especial n. 19532-SP:

“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. EFEITO MODIFICATIVO. CONTRADIÇÃO. 1. Constatada a contradição entre os termos dos acórdãos, impõe-se o acolhimento dos embargos para corrigi-la, modificando-se o resultado do julgamento. 2. Embargos recebidos para declarar o conhecimento e provimento dos embargos de divergência, fazendo prevalecer a orientação dos paradigmas indicados, e alterar, também, a ementa.”

A mesma 1a Seção, nos embargos de declaração nos embargos de

divergência no recurso especial n. 106306-PR, decidiu:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. EFEITO MODIFICATIVO. 1. Constatada a omissão, impõe-se reconhecer que a decisão objeto dos embargos de divergência realmente se mostra em confronto com os apontados paradigmas e também com o entendimento assentado nas Turmas de Direito Público deste Tribunal, no exame do art. 66 da Lei n. 8383/91, segundo o qual é dado ao contribuinte, nos casos de lançamento por homologação, efetivar, no momento de recolher a contribuição previdenciária, a compensação do ‘pro labore’ com outras contribuições da espécie, independentemente da comprovação de liquidez e certeza do crédito (art. 170 do CTN). 2. Embargos de declaração providos, para, emprestando-lhes efeito modificativo, receber os embargos de divergência, a fim de que prevaleça o entendimento firmado nos acórdãos paradigmas.”

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Outro aspecto foi apreciado pela 1a Seção na ação rescisória n. 372-6-SP:

“Inexiste ofensa à coisa julgada, quando pela via dos embargos declaratórios se altera o ‘decisum’, pela manifesta configuração de ‘erro de fato’, na ocasião de seu proferimento. ..... Embargo de declaração. Efeito modificativo. Aceitabilidade ante o manifesto equívoco do acórdão impugnado, que decidiu a ‘quaestio juris’ fundado em premissa falsa, ... ..... Como se vê, o que houve, na apreciação do recurso ordinário, ‘foi um manifesto erro de julgamento, ou por outra, erro material no exame dos autos, ou, ainda, erro quanto à apreciação dos fatos. O que se entendeu, antes, se tratasse de simples mudança de itinerário, constituía, de fato, numa nova linha dependente de outra concessão. Existiu, pois, erro de fato, remediável pela via dos embargos, consoante assentou a jurisprudência dos Tribunais. Ainda que se tratasse de qualificação jurídica dos fatos, os embargos eram a via adequada (JTA, 93/358). E, no caso, se cuidava efetivamente, de erro quanto a fato relevante, com repercussão sobre a conclusão do julgado. E, nessas hipóteses, a jurisprudência tem admitido a corrigenda pela via dos embargos de esclarecimento, sem violação à lei (ETFR, 151/201; JTA 108/287).”

A 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça também foi na mesma

trilha, nos embargos de declaração no mandado de segurança n. 5189-DF:

“MS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONTRADIÇÃO. ACOLHIMENTO. EFEITO MODIFICATIVO. 1. Evidencia-se como contraditório o acórdão que guarda proposições inconciliáveis, exprimindo juízo equívoco por errônea apreciação dos fatos, consubstanciada no acolhimento de data não devidamente comprovada como marco inicial para contagem de prescrição. 2. Embargos acolhidos - Efeito infringente.”

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O mencionado parecer do Professor J. J. Calmon de Passos foi dado

para instruir contrarrazões a recurso da Fazenda Nacional perante o Superior Tribunal de Justiça, contra decisão da 3a Turma do Tribunal Regional Federal da 1a Região que havia julgado os embargos de declaração na apelação cível n. 96.01.16035-3-DF, e, através do julgamento desses embargos, alterou o mérito do que fora decidido no acórdão embargado. Diz a parte final do voto condutor do respectivo acórdão:

“Contudo, como afirmado, houve equívoco deste Relator, não sendo esse exatamente o pedido formulado pela Embargante que pretende, sim, o refazimento dos balanços a partir de 1989, para ajustá-los à realidade inflacionária, expungindo-os das distorções em cadeia que os macularam. Nessas circunstâncias, impõe-se o acolhimento dos embargos, para que a prestação jurisdicional se faça nos termos em que pleiteada. Por todo o exposto, acolho os embargos e, dando-lhes efeito modificativo e suprindo a omissão existente, nego provimento à apelação e à remessa, confirmando a sentença que julgou procedente o pedido.”

A 2a Turma do Superior Tribunal de Justiça confirmou a decisão do

tribunal regional, ao decidir o recurso especial n. 206368-DF, dizendo na ementa:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. EFEITO MODIFICATIVO. POSSIBILIDADE. SUPRIMENTO DE OMISSÃO OU CORREÇÃO DE CONTRADIÇÃO. 1. Excepcionalmente, podem ser emprestados efeitos modificativos aos embargos de declaração. 2. Quando restabelecida a concatenação lógica entre as premissas da decisão e sua conclusão, através do suprimento de omissão ou da emenda da contradição, impõe-se a modificação do julgado. 3. Recurso especial a que se nega provimento.”

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E na conclusão do acórdão:

“Em sua atual irresignação, a Fazenda alega ofensa aos arts. 535 e 471 do CPC pois, a seu ver, a decisão proferida nos declaratórios foi além do que lhe era permitido. Em primeiro lugar, a teor do art. 535, I e II, do CPC, os embargos declaratórios são cabíveis quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade, contradição ou omissão sobre determinado ponto. Evidentemente, se a corrigenda da contradição ou o suprimento da omissão resulta no restabelecimento da concatenação lógica das premissas da decisão com a sua conclusão, a modificação do julgado se impõe. Sobre isso a jurisprudência já é assente. Não vislumbro, assim, violação ao mencionado dispositivo por ter o acórdão suprido omissão decorrente de inequívoco erro de percepção, ao julgar, pela vez primeira, em desacordo com o pedido e o que fora decidido na sentença submetida ao duplo grau. Violação haveria se fosse suprida omissão incomprovada ou inexistente, que não é o caso dos autos. Demais disso, parece-me inequívoca a ocorrência de ‘error in procedendo’, corrigível mediante embargos declaratórios. Em segundo lugar, a meu ver, não houve nova decisão sobre questão já decidida, vedada pelo art. 471-CPC. Veja-se que o art. 463 permite ao Juiz, embora cumprindo o ofício jurisdicional, alterar a decisão ‘por meio de embargos de declaração’. Na verdade não houve nova decisão, mas, sim, decisão integrativa da anterior, substituindo-a por ter havido omissão gerada por inescusável erro de percepção quanto à pretensão efetivamente deduzida e decidida no primeiro grau.”

Resta dizer que os ensinamentos de Calmon Passos foram adotados

pela corte regional e pelo Superior Tribunal de Justiça. Assim, após extensas remissões feitas pelo parecerista à doutrina e à jurisprudência com que fundamenta as suas afirmações, declarou o tribunal:

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“Podemos, portanto, concluir, com segurança, inexistir ofensa (em tese) à lei federal quando se admitem efeitos modificativos nos embargos de declaração regularmente admitidos, vale dizer: conhecidos por estarem presentes os pressupostos que os autorizam.”

Logo antes das remissões, e até justificando as citações, Calmon de

Passos explicara quais os pressupostos autorizadores dos embargos declaratórios, “in verbis”:

“Essa evidência levou a melhor doutrina, majoritária inclusive, bem como a maioria dos tribunais, ao entendimento de que inexistem prescrições legais obstativas do poder de reforma dos embargos de declaração, sendo perfeitamente compatível com eles a mudança da conclusão a que se havia chegado antes de sua interposição. O que se reclama, sem concessões, é que a reforma seja uma conseqüência inelutável do provimento dos embargos, vale dizer, uma decorrência necessária do fato de se haver eliminado a obscuridade, a contradição ou a omissão. O que se veta, e aqui de modo decisivo, é que, a pretexto de declarar, se promova novo julgamento do que anteriormente foi decidido. E isso é fácil de entender. Conhecendo de embargos ao arrepio da lei, vendo obscuridade onde não existe, contradição onde nada é incoerente, omissão quando nada foi esquecido, conhecendo do recurso nessas circunstâncias, o julgador incide em erro de procedimento, o que fere de invalidade sua decisão.”

Mais adiante, tendo em mente que no processo por ele examinado, e

objeto do seu parecer, o Tribunal Regional Federal havia acolhido e provido embargos de declaração com efeito modificativo da conclusão do acórdão anterior, Calmon de Passos foi incisivo, ao dizer:

“Quanto já foi colocado demonstra que, antes de se haver dado interpretação descabida aos efeitos dos embargos de declaração, o que se fez foi seguir na esteira do pensamento da quase totalidade dos doutrinadores e de torrencial jurisprudência, capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.”

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E prosseguiu com autoridade:

“A reformulação está autorizada por lei. Ela é mais que admissível, ela é obrigatória quando, havendo obscuridade, contradição ou omissão, afastar tais vícios importa em modificação do que foi anteriormente formulado. O que a Fazenda precisava fundamentar era a inexistência da omissão, não a mudança da conclusão por força da reformulação havida. Ocorre que isso era de todo impossível, visto como é de clareza meridiana o equívoco havido e isso ficou bem posto na decisão dos embargos.”

Já quanto à essência do recurso e às hipóteses legais em que cabe,

tendo transcrito o acórdão, nos termos acima também reproduzidos, Calmon de Passos arrematou:

“A decisão nos embargos é de clareza meridiana. Houve omissão por manifesto erro de percepção. O pedido formulado e que deveria ter sido examinado deixou de sê-lo, donde, suprindo a omissão, fez-se o julgamento do que fora omitido, disso resultando, por imposição inelutável, a mudança da conclusão, mudança que, antes de representar uma distorção dos objetivos perseguidos pela lei com os embargos lhe dão plena efetividade.”

Das conclusões finais desse parecer, convém transcrever as

seguintes passagens apropriadas:

“Atribuir-se aos embargos de declaração efeitos modificativos é um imperativo de sua própria natureza recursal. Recurso implica em reexame e reexame a que se obsta venha a modificar o que foi antes decidido deixa, necessariamente, de ser recurso. Nem se saberia como explicar o interesse em sua interposição, caso imutável o quanto impugnado. ..... Vale dizer, os embargos providos modificam o julgado quanto necessário para que a obscuridade deixe de existir, seja eliminada a contradição ou suprida a omissão. .....

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A omissão do julgado ou é voluntária e isso é prevaricação, ou é involuntária, erro de percepção. Por ser erro de percepção, corrige-se por via dos embargos de declaração. ..... O pedido feito ... Inexistindo sua apreciação pelo julgador, que se manifestou sobre matéria diversa, houve erro de percepção e conseqüentemente omissão.”

Registre-se que a jurisprudência é remansosa, assim como a

doutrina é copiosa, mas o parecer de Calmon Passos lança luzes especiais sobre o tema, inclusive ao ser vinculado às decisões proferidas no processo sobre o qual ele opinou.

Portanto, é possível atribuir aos embargos de declaração a

capacidade para produzir efeitos modificativos da decisão embargada. No tocante à segunda indagação desta primeira questão, admitindo-

se a validade da norma regimental que autoriza a interposição dos embargos pelo titular da unidade da administração tributária encarregada da liquidação e execução do acórdão, a conclusão a que se chega é estar esse funcionário em pé de igualdade com todas as demais pessoas habilitadas pela mesma regra a apresentar o recurso.

Não deixa de ser estranho que haja tal autorização, ainda que se

entenda que a referida autoridade de certo modo seja parte no processo, pois ela representa a Secretaria da Receita Federal do Brasil. Ocorre, entretanto, que a Secretaria, por sua vez, tem advogado constituído no processo, a quem também é possível embargar a decisão proferida.

Assim, aparentemente a regra coloca a autoridade fazendária na

mesma situação do contribuinte, que pode apresentar o embargo ao ser intimado, ainda que tenha advogado constituído no processo.

Não obstante, trata-se de igualdade apenas aparente, na medida em

que o Procurador da Fazenda Nacional é sempre intimado do acórdão, momento em que pode interpor os embargos, do mesmo modo que o advogado do

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contribuinte, caso se dê por intimado em nome do seu constituinte, deve apresentar os embargos a partir desse momento.

Sendo assim, o art. 65 do regimento acaba por abrir para o fisco

duas possibilidades de embargos, com dois prazos distintos (de difícil controle quanto ao termo inicial do segundo), contrariamente a uma única oportunidade para o contribuinte.

Este pode ser um ponto de desequilíbrio a ferir a isonomia

processual, salvo se o regimento for interpretado como permitindo os embargos pela autoridade fazendária da repartição de origem apenas se o Procurador da Fazenda Nacional não ter sido intimado do acórdão, caso em que ficariam emparelhadas as oportunidades das duas partes.

Outrossim, é irremediável a quebra da isonomia se o Procurador

tiver apresentado embargos e, após, aquela autoridade apresentar outros embargos, principalmente, mas não apenas, quanto estes tiverem por objeto a mesma omissão, obscuridade ou contrariedade que constituiu o objeto dos embargos da Procuradoria.

Entretanto, não sendo esta a questão proposta pela organização

científica do Simpósio, partindo-se da validade da interposição de embargos de declaração pela autoridade fiscal encarregada do cumprimento do acórdão, não há como negar a possibilidade de que os mesmos também tenham efeitos modificativos, ante todos os fundamentos retro-expostos.

Respostas: (1) Não somente é possível, como é necessário, que os

embargos de declaração acolhidos tenham efeitos modificativos toda vez que a supressão das omissões de fato ou de direito existentes no acórdão embargado, ou de obscuridades ou contradições no mesmo, requerer a modificação da decisão anterior, inclusive a fim de evitar contradição entre os motivos de fato ou de direito revisados e a conclusão do acórdão integrativo, que haveria se mantida a decisão anterior. (2) Pela mesma razão e nas mesmas circunstâncias, admitida a validade e a regularidade da interposição de embargos de declaração pelo titular da unidade da administração tributária encarregada da liquidação e execução do acórdão, seus embargos também podem produzir efeitos modificativos.

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2. Quais os limites para reconhecimento da concomitância

entre processo administrativo e judicial? É necessária a equivalência de pedidos e mesma causa de pedir?

O artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830, de 22.9.1980, diz haver

renúncia à discussão travada pelo sujeito passivo na seara administrativa, uma vez verificada concomitância entre os processos administrativo e judicial.

Realmente, segundo o mencionado dispositivo, “A propositura, pelo

contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto”6.

Com razão o legislador ao estabelecer a aludida regra. Isto porque,

não se pode conceber que um mesmo indivíduo debata a idêntica questão de direito e de fato tanto na esfera administrativa, como na judicial, não só porque isto representaria sobrecarga da máquina estatal, como também, e principalmente, porque esta permissão acabaria, não raro, gerando decisões conflitantes.

Daí a norma legal, com acerto, ter previsto que, existindo

concomitância entre processos administrativo e judicial, o último deverá ter seu curso regular, em detrimento do primeiro7.

A prevalência do processo judicial, e não do administrativo, não é

desmotivada. Na verdade, ela é decorrência do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, eis que, como apontou a Conselheira Sandra Maria Faroni

6 Semelhante regra também foi prevista no Decreto-Lei n. 1737, de 20.12.1979, cujo artigo 1º, parágrafo 2º, prevê que “A propositura, pelo contribuinte, de ação anulatória ou declaratória da nulidade do crédito da Fazenda Nacional importa em renúncia ao direito de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso interposto”. 7 Alinhado à regra do art. 38, parágrafo único, da Lei n. 6830, está o art. 16, inciso V, do Decreto n. 70235, de 6.3.1972. De acordo com este dispositivo, a impugnação deverá mencionar se a matéria impugnada foi, ou não, submetida à apreciação judicial, o que, em última análise, possibilita, quando for o caso, a decretação de renúncia à esfera administrativa.

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no voto condutor do acórdão n. 101-96433, de 8.11.2007, da 1ª Câmara do antigo 1º Conselho de Contribuintes, “cabe exclusivamente ao Poder Judiciário decidir definitivamente, e com obrigatoriedade de observação de suas decisões, sobre qualquer matéria”.

O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se manifestar

sobre a matéria no Recurso Extraordinário n. 234798-RJ, de 16.8.2007, quando o Plenário reconheceu a constitucionalidade do artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830, sob o fundamento de que a renúncia à esfera administrativa não importa ofensa ao direito constitucional de petição, haja vista que este cede frente ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, que consagra a prevalência e a definitividade das decisões judiciais, tendo o Ministro Gilmar Mendes, em voto-vista proferido na ocasião, destacado que:

“Destarte, a renúncia a essa faculdade de recorrer no âmbito administrativo e a automática desistência de eventual recurso interposto é decorrência lógica da própria opção do contribuinte de exercitar sua defesa em conformidade com os meios que se afigurem mais favoráveis a seus interesses. Tem-se aqui fórmula legislativa que busca afastar a redundância da proteção, uma vez que, escolhida a ação judicial, a Administração estará integralmente submetida ao resultado da prestação jurisdicional que lhe for determinada para a composição da lide” – destaque do original.

Pois bem. Não obstante estabeleça a prevalência, nestes casos, do

processo judicial, o artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830 não fornece nenhum dado concreto, nenhum elemento objetivo, de quando se deve reputar ocorrida a concomitância, para os efeitos legais.

Sem dúvida alguma, um critério mínimo, e primeiro, mas não único,

para se aferir a concomitância consiste na identidade de objeto das causas administrativa e judicial.

O termo objeto, conquanto sinônimo de pedido, é empregado neste

trabalho no sentido de “pedido mediato”, o qual corresponde ao bem da vida sobre o qual recai a providência postulada judicial ou administrativamente, e

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que não se confunde com o “pedido imediato”, este consistindo na tutela buscada pelo contribuinte (decisão condenatória, declaratória, constitutiva, etc.).

Como observa Cassio Scarpinella Bueno, “Não há maiores

divergências quanto a corresponder o pedido mediato ao bem da vida pretendido pelo autor. Por ‘bem da vida’ deve ser entendida a utilidade pretendida pelo autor no plano do direito material”; por sua vez, o pedido imediato, como destaca o mesmo autor, subdivide-se, para a doutrina processualista clássica, em “’três’ tipos de pedidos ou, mais amplamente, de tutela jurisicional a ser requerida pelo autor: meramente declaratório; constitutivo ou condenatório”8.

A distinção é relevante para efeito da questão ora examinada, uma

vez que poderá haver concomitância mesmo quando inexistir coincidência entre os pedidos imediatos formulados judicial e administrativamente. Já a recíproca não é verdadeira, na medida em que a diversidade de pedidos mediatos das demandas judicial e administrativa fatalmente afasta a aplicação do art. 38, parágrafo único, da Lei n. 6830.

Suponha-se que certo contribuinte ingresse com ação judicial

voltada a obter provimento jurisdicional declaratório (pedido imediato) que lhe assegure o não recolhimento de determinado tributo (pedido mediato), reputado indevido. Neste mesmo exemplo, imagine-se que o contribuinte tenha contra si lavrado auto de infração, voltado à constituição daquele mesmo tributo, o que o leva a apresentar impugnação, requerendo o cancelamento (ou a desconstituição – pedido imediato) do crédito tributário (pedido imediato), sob os mesmos fundamentos que alicerçam a ação proposta perante o Poder Judiciário.

Haverá, na situação acima narrada, concomitância capaz de ensejar

renúncia à esfera administrativa, pelos motivos que serão melhor esclarecidos adiante, bastando, neste momento, dizer que a concomitância ocorrerá, não obstante os pedidos imediatos do processo administrativo e do processo judicial sejam dissonantes. Portanto, este não é um critério seguro para aferição da concomitância.

8 “Código de Processo Civil Interpretado”, Coord. Antonio Carlos Marcato, Editora Atlas, pg. 857/858.

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Deve-se, sempre, verificar a identidade de objeto9, assim entendido,

para efeito deste estudo, o pedido mediato das demandas administrativas e judicial, constatável quando, por exemplo, os processos administrativo e judicial versarem sobre o mesmo crédito tributário, ou sobre o mesmo indébito fiscal. Este é um critério mínimo que, uma vez presente, representa indício da existência de concomitância.

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a aplicação do

artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830, tendo afirmado que, quando o objeto da demanda administrativa for mais amplo do que aquele debatido na esfera judicial, não se pode cogitar de concomitância, para os efeitos do mencionado dispositivo legal. Confira-se, neste sentido, o seguinte trecho da ementa do acórdão proferido pela 1ª Turma no Recurso Especial n. 1.217.352-RS, de 3.3.2011:

“2. Desde as razões recursais, a Fazenda Nacional argumenta que a interposição de ação prevista no caput do art. 38 da Lei de Execuções Fiscais, mandado de segurança, ‘implica renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa’ (fl. 293). 3. O entendimento firmado pelo Tribunal de origem foi no sentido de que a impetração do mandado de segurança 2007.71.10.006958-6 não implicou renúncia à via administrativa, considerando que, apesar de ter se requerido liminarmente a liberação da mercadoria apreendida, no mérito, requereu-se a anulação e a ineficácia do Auto de Infração, que é bem mais amplo do que o simples desembaraço. 4. Assim, não há identidade entre o objeto do processo administrativo e o objeto do processo judicial, capaz de incidir a norma prevista no art. 38 da Lei 6.830/80, pois, apesar de ter a demandante, no processo administrativo, requerido liminarmente a liberação da mercadoria apreendida, no mérito, pleiteou-se também a anulação e a ineficácia do Auto de Infração, que é bem mais amplo do que o simples desembaraço formulado no mandado de segurança.”

9 O termo objeto será empregado, neste trabalho, no sentido de pedido mediato.

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Mas, a todo rigor, a mera identidade do objeto não basta para caracterizar a concomitância entre os processos administrativo e o judicial. É necessário, também, que a causa de pedir, em ambos, seja a mesma, pois nada impede que, em determinadas situações, um mesmo fato (objeto) seja debatido pelo contribuinte sob diferentes (e autônomos) vieses.

Exemplificando para melhor esclarecer o que foi dito, imagine-se

que um contribuinte ingressou com mandado de segurança perante o Poder Judiciário, visando assegurar seu direito líquido e certo de não recolher determinado tributo (objeto), dada a inconstitucionalidade formal de que ele padece (causa de pedir), considerando que sua instituição deveria dar-se mediante a edição de lei complementar, e não por lei ordinária, tendo em vista o disposto no artigo 154, inciso I, da Constituição Federal. Nenhum outro fundamento, neste exemplo hipotético, foi aventado pelo contribuinte, a não ser a inconstitucionalidade formal.

Suponha-se, agora, ainda neste mesmo exemplo, que o contribuinte,

certo da inexigibilidade do tributo que lhe vem sendo cobrado, e que é objeto do mandado de segurança impetrado judicialmente, deixa de recolher a exação, independentemente de liminar, pelo que acaba, contra si, tendo lavrado auto de infração, voltado à constituição de tal crédito tributário (identidade de objeto). Em sua defesa administrativa, o contribuinte esclarece que a exigibilidade do tributo está sendo debatida perante o Poder Judiciário, mas sob um viés constitucional, fundamentando sua impugnação, não em matéria de índole constitucional, e sim legal, apontando ofensa da lei instituidora deste tributo ao disposto no artigo 110 do Código Tributário Nacional (causa de pedir).

Pode-se falar, na situação acima descrita, em concomitância entre

processos administrativo e judicial, capaz de implicar a renúncia à esfera administrativa?

A resposta é negativa. É que, a despeito da identidade de objeto, a causa de pedir do

processo judicial é diversa e, mais, independente da causa de pedir do processo administrativo. Mas, e se, neste caso, houver decisões conflitantes? Não é

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justamente para evitar esta situação indesejada que a regra do artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830 foi criada?

De fato, a citada norma legal visa assegurar, dentre outras coisas,

que uma dada questão seja decidida diferentemente nas esferas judicial e administrativa, até porque, se isto ocorrer, decerto, a solução adotada pelo Poder Judiciário prevalecerá, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Sucede que nenhuma incompatibilidade haverá, na situação

hipotética descrita acima, com a “mens legis” do artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830, se a conclusão for no sentido da inexistência de concomitância entre os processos judicial e o administrativo. Isto porque, no caso aventado, as causas de pedir são diferentes e autônomas, o que significa dizer que uma não depende, nem interfere na outra, podendo uma delas ser acolhida, e a outra não, assim como ambas serem acolhidas, ou rejeitadas, por motivos diversos e também independentes.

Assim é que, em situações desse jaez, não é correto falar-se em

concomitância entre processos judicial e administrativo, pois não há repetição, redundância, da mesma defesa tanto em uma, como em outra esfera, esta, sim, ensejadora da aplicação da norma contida no artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830.

O contribuinte pode, no caso proposto, sagrar-se vencedor na seara

administrativa, mas não na judicial, porque a norma instituidora do tributo em discussão pode ser formalmente constitucional, porém ilegal frente ao artigo 110 do Código Tributário Nacional, sendo certo que a decisão administrativa que cancelar a exigência fiscal, nesta situação, será eficaz, devendo ser cumprida pelas autoridades administrativas.

No acórdão n. 103-20865, de 20.3.2002, da 3ª Câmara do antigo 1º

Conselho de Contribuintes, foi admitida a manutenção da discussão instaurada na esfera administrativa, ante a diversidade da causa de pedir, como seja:

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“DIVERSIDADE DE CAUSAS DE PEDIR – DIREITO À MANIFESTAÇÃO OBRIGATÓRIA NA INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA – Subverte e afronta a legalidade e a ampla defesa a não apreciação pela instância administrativo-julgadora de relação jurídico-tributária em discussão concomitante nas vias administrativa e judicial, mas que na essência do conteúdo material encerra aspectos diversos e diferentes causas de pedir, cujo exame demanda a manifestação da Administração Tributária que detém a competência legal e está melhor aparelhada para aferir a perfectibilidade da subsunção da realidade fática à hipótese abstrata da lei e o respectivo quantum devido, uma vez que a respectiva materialidade não será objeto de apreciação no judiciário”.

O acórdão n. 1401-00357, de 11.11.2010, da 4ª Câmara, 1ª Turma

Ordinária, da 1ª Seção do CARF, sem aludir, expressamente, à causa de pedir, reconheceu que, no lançamento realizado pela autoridade fiscal com vistas a evitar a decadência do crédito tributário, o contribuinte pode aventar questões outras, que não aquela levada à apreciação do Poder Judiciário, como se infere da leitura da ementa reproduzida abaixo:

“Não há falar-se em concomitância quando o contribuinte questiona aspectos da relação tributária formalizada por meio do lançamento para evitar a decadência que não se referem às questões levadas a julgamento perante o Poder Judiciário, mas que influem diretamente na quantificação da obrigação tributária que, ao final do processo judicial, poderá consagrar-se como exigível”

Dessa forma, pode-se dizer que a concomitância existe, fazendo

incidir a norma do artigo 38, parágrafo único da Lei n. 6830, da Lei n. 6830, quando verificada identidade de objeto e de causa de pedir.

Há um pronunciamento da Receita Federal do Brasil, materializado

no Ato Declaratório Normativo COSIT n. 3, de 14.2.1996, que disciplina o “tratamento a ser dispensado ao processo fiscal que esteja tramitando na fase administrativa quando o contribuinte opta pela via administrativa”, do qual se lê o seguinte:

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“a) a propositura pelo contribuinte, contra a Fazenda, de ação judicial - por qualquer modalidade processual, antes ou posteriormente à autuação, com o mesmo objeto, importa a renúncia às instâncias administrativas, ou desistência de eventual recurso interposto ; b) conseqüentemente, quando diferentes os objetos do processo judicial e do processo administrativo, este terá prosseguimento normal no que se relaciona à matéria diferenciada (p.ex., aspectos formais do lançamento, base de cálculo etc.); c) no caso da letra ‘a’, a autoridade dirigente do órgão onde se encontra o processo não conhecerá de eventual petição do contribuinte, proferindo decisão formal, declaratória da definitividade da exigência discutida ou da decisão recorrida,se for o caso, encaminhando o processo para a cobrança do débito, ressalvada a eventual aplicação do disposto no art. l49. do CTN; d) na hipótese da alínea anterior, não se verificando a ressalva ali contida, proceder-se-á a inscrição em dívida ativa, deixando-se de fazê-lo, para aguardar o pronunciamento judicial, somente quando demonstrada a ocorrência do disposto nos incisos II (depósito do montante integral do débito) ou IV (concessão de medida liminar em mandado de segurança), do art. 151. , do CTN; e) é irrelevante, na espécie, que o processo tenha sido extinto, no Judiciário, sem julgamento do mérito (art.267. do CPC)”.

Como se infere de sua leitura, no geral, o Ato Declaratório

Normativo COSIT n. 3 é consentâneo com o que foi dito até aqui no sentido de que a concomitância se caracteriza quando verificada identidade de objeto entre a demanda administrativa e a judicial (alínea “a” do referido ato declaratório) e também quando houver identidade entre as causas de pedir (o ato declaratório não faz referência expressa à causa de pedir, mas destaca, em sua alínea “b”, que a discussão administrativa de questões distintas daquelas objeto da ação judicial não caracteriza renúncia à esfera administrativa, como restou apontado neste estudo).

Um dado importante, destacado pelo Ato Declaratório Normativo

COSIT n. 3, é que pouco importa se a ação judicial foi proposta antes ou depois

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da discussão travada na seara administrativa, já que, tanto numa, como noutra situação, há a repetição, a redundância, que o artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830 visa afastar.

Por outro lado, é questionável a validade da regra prevista na alínea

“e”, segundo a qual há concomitância e, pois, renúncia à esfera administrativa mesmo na hipótese de extinção do processo sem resolução de mérito.

Isso porque, se o processo judicial se encerrou, ou se está em vias de

se encerrar, sem resolução de mérito, a todo rigor, não há qualquer impeditivo de a matéria ser analisada na esfera administrativa, pois sequer há a concomitância a que alude o artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830. Nestes casos, os fundamentos de defesa do contribuinte, porque não apreciados pelo Poder Judiciário, poderão sê-lo pela Administração Pública.

Por outro lado, se a discussão judicial ainda não se encerrou

definitivamente, nem está em vias de sê-lo, a pendência de recurso, ou a previsão legal de sua interposição contra eventual decisão de extinção do processo judicial sem resolução de mérito, torna “sub judice” a matéria defendida pelo contribuinte e, pois, impede repetição, redundância, de discussões nas searas administrativa e judicial, sendo, nestes casos, correta a orientação contida na alínea “e” do Ato Declaratório Normativo COSIT n. 3.

Admitir-se, nestes casos, a manutenção do contencioso

administrativo, até o encerramento da ação judicial, aguardando-se o trânsito em julgado de eventual decisão de extinção, sem resolução de mérito, acarretaria desrespeito ao princípio da celeridade e da razoável duração do processo, erigido à condição de direito fundamental, pelo artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, e consoante o qual “LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (destacou-se).

No mais, se, afinal, prevalecer a decisão que julgar a ação judicial

extinta, sem resolução de mérito, a renúncia à esfera administrativo não comprometerá a ampla defesa e o devido processo legal, de vez que, a todo rigor, e como regra, será permitido ao contribuinte ingressar com nova ação judicial voltada à proteção de seu direito.

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Sobre o assunto, merece destaque o acórdão n. 101-96433, citado

anteriormente, no qual foi afastada a aplicação do Ato Declaratório Normativo COSIT n. 3, não se reconhecendo a concomitância, mesmo diante da extinção do processo judicial sem apreciação de seu mérito. A decisão foi tomada em razão de o processo judicial estar encerrado, ou em vias de sê-lo, por conta da desistência da ação judicial, requerida pelo contribuinte. Decidiu-se, no julgamento, que:

“(...) no caso presente, não há riscos de decisões conflitantes, pois inexistente a concomitância. O mandado de segurança impetrado pela recorrente foi julgado extinto sem julgamento de mérito por força de desistência da parte autora. Como o auto de infração foi lavrado após a extinção do feito, já não havia, naquele momento, qualquer impedimento relativo a concomitância. Não como ocorrer o conflito, eis que o Poder Judiciário não emitiu juízo de mérito. Nessas circunstâncias, não se configura a renúncia à esfera administrativa”.

Esta decisão revela que, na extinção do processo judicial sem

resolução de mérito, nem sempre se estará diante de situação que enseja a aplicação do artigo 38, parágrafo único, da Lei n. 6830. Cada caso concreto deve, portanto, ser analisado isoladamente.

Feitas essas considerações, pode-se dizer que a concomitância existe

uma vez constatada identidade de objeto e de causa de pedir entre os processos judicial e administrativo. A ação judicial, para estes efeitos, pode tanto ter sido proposta antes, como depois do processo administrativo, e sua extinção sem resolução de mérito deverá ser avaliada caso a caso, a fim de se verificar se se trata, ou não, de hipótese de concomitância, para os fins do disposto no artigo 38, parágrafo único, da Lei 6830.

Para arrematar, cite-se a Súmula CARF n. 1, cujos dizeres, embora

nada falem a respeito das hipóteses em que a ação judicial seja julgada extinta, sem resolução de mérito, no mais, confirmam as conclusões aqui tomadas, como se vê abaixo:

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“Importa renúncia às instâncias administrativas a propositura pelo sujeito passivo de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamento de ofício, com o mesmo objeto do processo administrativo, sendo cabível apenas a apreciação, pelo órgão de julgamento administrativo, de matéria distinta da constante do processo judicial”.

Respostas: (1) A concomitância entre o processo judicial e o

processo administrativo resulta caracterizada quando existir identidade entre causa de pedir e objeto (ou pedido mediato), sendo irrelevante, para este fim, se a ação judicial é ou não prévia ao processo administrativo. A extinção do processo judicial, sem resolução de mérito, pode não acarretar renúncia à esfera administrativa, a depender de avaliação em cada caso concreto. (2) Como dito, a concomitância requer identidade de objeto (ou pedido mediato) e de causa de pedir, de forma que um e outro, quando mais amplos do que aqueles discutidos em juízo, podem ser levados à apreciação da Administração Pública.

3. Tendo em vista o artigo 62-A, “caput” e §1º, do RICARF,

quando deve haver o sobrestamento dos recursos pelo CARF e quando deve ser aplicada a decisão proferida pelo STF? Deve o CARF aplicar a decisão do STF que decida matéria de mérito já reconhecida como de repercussão geral, ainda que tal julgamento não tenha ocorrido com referência expressa à sistemática do artigo 543-B do CPC? (Ex. RE interposto antes da Lei 11.418/2006)

O Regime Interno do CARF contém uma importante norma acerca

do processamento e julgamento de recursos versando sobre matérias submetidas ao Supremo Tribunal Federal para apreciação de sua repercussão geral, na forma do art. 543-B do Código de Processo Civil. Veja-se o que diz o art. 62-A do Regimento Interno, em especial seu parágrafo primeiro:

“Artigo 62-A. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática prevista pelos artigos 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF.

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§ 1º Ficarão sobrestados os julgamentos dos recursos sempre que o STF também sobrestar o julgamento dos recursos extraordinários da mesma matéria, até que seja proferida decisão nos termos do art. 543-B. § 2º O sobrestamento de que trata o § 1º será feito de ofício pelo relator ou por provocação das partes” – destacou-se.

Como se pode observar, o art. 62-A, parágrafo primeiro, autoriza a

suspensão dos feitos administrativos quando houver sobrestamento, pelo STF, dos recursos extraordinários que tratem da matéria debatida em múltiplos casos de idêntico teor, até que seja proferida decisão na forma do art. 543-B do CPC. Ou seja, nos termos do aludido dispositivo, são dois os requisitos autorizadores da suspensão de recursos no âmbito do CARF: (i) sobrestamento de recursos pendentes de apreciação, pelo STF, o qual (ii) deverá perdurar, no mínimo, enquanto não proferida decisão reconhecendo, ou não, a repercussão geral da matéria debatida10.

Não obstante os requisitos para o referido sobrestamento

estivessem dispostos no art. 62-A, parágrafo primeiro, dúvidas surgiram em sua aplicação, na medida em que muitos conselheiros não sabiam se a norma regimental deveria ser aplicada somente quando o STF tivesse expressamente determinado o sobrestamento de outros feitos versando sobre idêntica questão de direito, ou se, por exemplo, bastava o reconhecimento da repercussão geral da matéria.

Por conta disso, acabou sendo editada a Portaria CARF n. 1, de

3.1.2012, a qual, visando sanar as dúvidas relacionadas à aplicação do art. 62-A do Regimento Interno, dispôs, dentre outras coisas, que:

10 Diz-se no mínimo enquanto não proferida a decisão reconhecendo, ou não, a repercussão geral, porque, se esta for declarada, a todo rigor, para que a norma regimental cumpra sua finalidade, o recurso sob apreciação do CARF deverá ficar suspenso até que o STF analise, em definitivo, o mérito da questão; por outro lado, não reconhecida a repercussão geral, a todo rigor, não haverá motivos para que o processo continue sobrestado no CARF após a decisão do STF acerca da repercussão.

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“Art. 1º. Determinar a observação dos procedimentos dispostos nesta portaria, para realização do sobrestamento do julgamento de recursos em tramitação no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, em processos referentes a matérias de sua competência em que o Supremo Tribunal Federal – STF tenha determinado o sobrestamento de Recursos Extraordinários – RE, até que tenha transitado em julgado a respectiva decisão, nos termo do artigo 543-B da Lei n. 5869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil. Parágrafo único. O procedimento de sobrestamento de que trata o caput somente será aplicado a casos em que tiver comprovadamente sido determinado pelo Supremo Tribunal Federal – STF o sobrestamento de processos relativos à matéria recorrida, independentemente da existência de repercussão geral reconhecida para o caso” – destacou-se. “Art. 3º. Proferida decisão definitiva pelo Supremo Tribunal Federal – STF, nos termos do caput do art. 1º, as Secretarias de Câmara deverão realizar a movimentação dos processos que se encontrem na atividade SOBRESTADO para os respectivos conselheiros relatores na atividade RELATAR. (...)”.

Como se vê, a Portaria CARF n. 1, ao padronizar o procedimento a

ser adotado no âmbito do CARF, para efeito de sobrestamento de recursos, estabeleceu que deve ser comprovado o sobrestamento, pelo STF, de processos envolvendo matéria submetida à apreciação do CARF, assim como determinou ser irrelevante o fato de o STF ainda não ter se pronunciado sobre a existência de repercussão geral, bastando, para os efeitos do art. 62-A, que esta Corte tenha recebido recursos representativos de controvérsia para análise de sua repercussão geral.

A Portaria CARF n. 1 parece estar de acordo com a literalidade do

art. 62-A do Regimento Interno do CARF. Isto porque este dispositivo somente admite o sobrestamento, pelo CARF, quando o STF tiver determinado a suspensão de recursos extraordinários cujo objeto seja idêntico àquele submetido à apreciação desta Corte. Daí ter algum sentido lógico a exigência da Portaria CARF n. 1 de comprovação do sobrestamento de recursos pelo STF.

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Ocorre que a interpretação literal do art. 62-A, parágrafo único, com a qual, repita-se, a Portaria CARF n. 1 está em sintonia, denota inconsistências. É que, se o STF já tiver reconhecido a repercussão geral da matéria, ainda assim o CARF não estará autorizado a sobrestar os recursos submetidos à sua apreciação, se o STF não tiver, expressamente, determinado a suspensão de recursos extraordinários. Ora, não há nenhuma razão, para, nestas situações, o CARF deixar de sobrestar os recursos que lhe forem afetos.

Além disto, tal como redigido, o art. 62-A, parágrafo único,

contempla norma, senão inócua, de difícil aplicação. É que, no mais das vezes, o STF não decreta, de maneira expressa, o

sobrestamento de recursos. E ele não o deixa de fazer à toa. Na verdade, a suspensão de recursos extraordinários é imediata, sendo ínsita ao instituto previsto no art. 543-B do CPC.

Com efeito, pela sistemática do art. 543-B do CPC, o sobrestamento

dos recursos, quando submetida a questão ao STF para análise da repercussão geral, é automática, em decorrência lógica da finalidade deste instituto, que é a de evitar a subida, ao STF, de recursos relativos a matéria sob apreciação deste Tribunal11.

Nestas situações, tanto é automática a suspensão dos feitos em que

se discute a mesma matéria sob apreciação do STF, que o artigo 543-B, parágrafo

11 Corrobora essa afirmação o seguinte esclarecimento, extraído do glossário jurídico do STF: “Repercussão Geral é um instrumento processual inserido na Constituição Federal de 1988, por meio da Emenda Constitucional 45, conhecida como a “Reforma do Judiciário”. O objetivo desta ferramenta é possibilitar que o Supremo Tribunal Federal selecione os Recursos Extraordinários que irá analisar, de acordo com critérios de relevância jurídica, política, social ou econômica. O uso desse filtro recursal resulta numa diminuição do número de processos encaminhados à Suprema Corte” (in http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=R&id=451. Informação extraída em 5.3.2012). Em igual sentido, Humberto Theodoro Júnior assevera que “Foi, sem dúvida, a necessidade de controlar e reduzir o sempre crescente e intolerável volume de recursos da espécie que passou a assoberbar o Supremo Tribunal a ponto de comprometer o bom desempenho de sua missão de Corte Constitucional, que inspirou e justificou a reforma operada pela EC n. 45”, pela qual se introduziu o instituto da repercussão geral (in “Curso de Direito Processual Civil”, Editora Forense, 47ª edição, 2007, pg. 716).

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1º, do CPC diz competir ao Tribunal de origem, havendo multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, selecionar casos representativos desta controvérsia, devendo os demais, desde logo, ficar sobrestados, como seja:

“Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo. 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte (...)”.

O Regimento Interno do STF confirma essa afirmação, na medida em

que não autoriza a apreciação, pelo Tribunal de origem, em sede de juízo de admissibilidade, de recursos envolvendo a mesma controvérsia submetida à análise do STF, enquanto não decidido se a matéria oferece, ou não, repercussão geral. Confira-se a redação do art. 328-A, “caput”, do Regimento Interno do STF:

“Art. 328-A. Nos casos previstos no art. 543-B, caput, do Código de Processo Civil, o Tribunal de origem não emitirá juízo de admissibilidade sobre os recursos extraordinários já sobrestados, nem sobre os que venham a ser interpostos, até que o Supremo Tribunal Federal decida os que tenham sido selecionados nos termos do § 1º daquele artigo”.

Como é possível notar, tanto o CPC, como o Regimento Interno do

STF, dão mostras de que, uma vez selecionados recursos representativos da controvérsia, os demais versando sobre a mesma questão deverão, necessariamente, ficar sobrestados12. Não fosse assim, haveria um desvirtuamento da finalidade da norma legal, que, como dito, é evitar o acúmulo, no STF, de processos envolvendo idêntica discussão. 12 Se, porventura, algum Tribunal de origem, diverso daquele que selecionou os recursos representativos da controvérsia, deixar de sobrestar os recursos extraordinários tratando de idêntica questão, processando-os em sede de juízo de admissibilidade, estes recursos, ainda assim, terão seu curso suspenso, quando submetidos à apreciação do STF, suspensão esta que perdurará, no mínimo, até que seja examinado se a matéria oferece, ou não, repercussão geral.

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Por isso, ao autorizar que o CARF suspenda recursos de sua alçada

somente quando o STF determinar o sobrestamento de recursos extraordinários, o art. 62-A, parágrafo primeiro, do Regimento Interno do CARF acabou trazendo regra de difícil, quiçá impossível, aplicação, pois este sobrestamento, como visto, é automático, quando ao STF couber decidir, a partir da seleção de um ou mais recursos representativos da controvérsia, se a matéria oferece, ou não, repercussão geral.

A exigência de comprovação, feita pela Portaria CARF n. 1, do

sobrestamento de recursos extraordinários pelo STF, a princípio, poderia fazer algum sentido nas situações em que a matéria levada a julgamento perante o STF não se encontrar sob o rito do citado art. 543-B do CPC. Isto porque, nestes casos, a suspensão das demais causas de idêntica natureza não é automática, dependendo, isto sim, de determinação judicial neste sentido.

Foi o que aconteceu, por exemplo, da Ação Declaratória de

Constitucionalidade n. 18, na qual foi deferida medida cautelar, como vistas a “suspender o julgamento das demandas que envolvam a aplicação do art. 3º, § 2º, inciso I, da Lei n. 9.718/98”, mais precisamente das demandas que envolvam discussão acerca da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS.

Veja-se, no entanto, que o art. 62-A do CARF nada fala sobre os casos

não apreciados sob o rito do art. 543-B do CPC, como acima mencionado. Muito pelo contrário: ele é enfático ao aludir à sistemática deste dispositivo legal.

Daí concluir-se que o art. 62-A cuida do sobrestamento de feitos sob

apreciação do CARF quando a controvérsia estiver submetida à análise do STF, para fins de verificação da existência de repercussão geral. É este o alcance do art. 62-A13. 13 Nada impede, contudo, que o curso de processos administrativos fiscais seja sobrestado em situações diversas daquela tratada no art. 543-B do CPC, por força de decisão do próprio STF. É o que admite, por exemplo, o art. 12-F, parágrafo 1º, da Lei n. 9868, de 10.11.1999, ao dizer que aquela Corte poderá conceder medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade por omissão, com vistas à “suspensão da aplicação da lei ou do ato normativo questionado, no caso de omissão parcial, bem como na suspensão de processos judiciais ou de procedimentos administrativos, ou ainda em outra providência a ser fixada pelo Tribunal” (destacou-se).

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E quanto ao art. 62-A somente admitir o sobrestamento de feitos

quando o STF tiver determinado a suspensão de recursos extraordinários? Esta norma é válida?

Em primeiro lugar, há que se dizer que o regimento interno do CARF

não é baixado por lei, mas, sim, por portaria do Ministro de Estado da Fazenda14. Nem por isto, logicamente, o regimento interno pode contrariar a lei, ou a Constituição Federal.

Mas, a princípio, não nos parece que o art. 62-A conflite com alguma

norma legal ou constitucional. Este dispositivo regimental, segundo se nos afigura, é válido, porquanto delimita o âmbito de atuação dos conselheiros do CARF, dentro dos limites da lei.

Não obstante isto, em termos pragmáticos, a aplicação deste

dispositivo é bastante difícil, tendo em vista que o STF, via de regra, não determina, de maneira expressa, o sobrestamento de recursos extraordinários, já que, em função da sistemática prevista no art. 543-B do CPC, este sobrestamento é automático.

Por tal razão, a norma do art. 62-A merece críticas, uma vez que o

sobrestamento de recursos no CARF deveria ocorrer mesmo quando o STF, em julgamento sob o rito do art. 543-B do CPC, não tivesse expressamente determinado a suspensão de casos idênticos.

Este procedimento, aliás, é consentâneo com o princípio da

eficiência, que deve pautar a atuação da Administração Pública, inclusive no âmbito fazendário, conforme dispõem o artigo 37, “caput”, da Constituição Federal, e o artigo 2º, “caput”, da Lei n. 9784, de 29.1.1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, e cujas disposições são aplicáveis subsidiariamente ao processo administrativo de

14 De acordo com o art. 37 do Decreto n. 70235, “Art. 37. O julgamento no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais far-se-á conforme dispuser o regimento interno”.

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natureza tributária15. Confira-se, abaixo, a redação destes dispositivos, com destaques apostos:

Constituição Federal “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)”. Lei n. 9784 “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.

Pelo princípio da eficiência, busca-se otimizar a prestação do serviço

público, de modo a atingir resultados satisfatórios ao interesse da coletividade e dos administrados. Pode-se dizer, então, que uma decorrência deste postulado é o princípio da economia processual, segundo o qual a prestação jurisdicional deve ser empreendida de maneira eficiente, isto é, com o menor uso possível de atividades ou atos processuais.

Marcos Vinícius Neder e Maria Teresa Martínez López compartilham

deste entendimento, consoante se infere do seguinte excerto, extraído da obra “Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado” (Editora Dialética, São Paulo, 2002, pg. 61):

“Assim, a Administração deve dotar os procedimentos por ela regulados de simplicidade razoável, visando garantir, no dizer de Egon Bockmann, um processo célere, simples, econômico e efetivo em alcançar resultados propostos.

15 Já foi dito neste artigo que o Decreto n. 7574, de 29.9.2011, regulamentando o processo de determinação e exigência de créditos tributários da União e o processo de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal a respeito de matérias administradas pela Receita Federal do Brasil, confirmou que a Lei n. 9784 tem aplicação subsidiária a estes processos, ao faz alusão e incluir em seu texto diversas normas legais contidas nesta lei.

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Diante de tais observações, é possível se inferir a ligação entre o princípio da eficiência e o princípio da economia processual, eis que este último ‘preconiza o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais’”.

Assim, seja pelo princípio da eficiência, seja pelo princípio da

economia processual, não há motivo para obstar-se o sobrestamento de recursos no CARF, quando o STF, em julgamento sob o rito do art. 543-B do CPC, não tiver expressamente determinado a suspensão de casos idênticos.

Uma possível objeção a esse raciocínio poderia ser levantada frente

ao princípio da celeridade, ainda mais em função do que dispõe o artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, para o qual “LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (destacou-se).

Realmente, poder-se-ia argumentar que seria atentatório à

celeridade e à razoável duração do processo administrativo, preconizadas pelo aludido dispositivo constitucional, o sobrestamento de demandas na seara administrativa, até o desate da questão no STF.

Contudo, trata-se, na espécie, de conflito na aplicação de princípios

de estatura constitucional, o qual, uma vez verificado, impõe que se sopese um e outro princípio, de modo a fixar-se a prevalência de um, em detrimento do outro.

Neste conflito, o princípio da eficiência, parece-nos, se sobrepõe ao

princípio da celeridade e da razoável duração do processo. Ora, é bastante razoável que se aguarde a palavra final do órgão a quem compete a uniformização da interpretação de questões de índole constitucional, evitando-se, assim, decisões conflitantes e, pois, o manejo de futuras ações judiciais tendentes à anulação de decisões proferidas administrativamente, fato que, não há dúvidas, causaria o indesejável abarrotamento do já comprometido sistema judiciário brasileiro.

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Note-se que, em tese, esses princípios, por si só, autorizariam o sobrestamento dos feitos sob análise do CARF, independentemente da regra estatuída no art. 62-A do Regimento Interno do CARF, razão pela qual, se a matéria aguardasse, perante o STF, análise acerca da existência de repercussão geral, ainda que não existisse decisão expressa determinando o sobrestamento de processos versando sobre idêntica questão, o CARF estaria autorizado a suspender os recursos pendentes de apreciação.

Conquanto razoável sustentar, à luz dos princípios da eficiência e da

economia processual, o sobrestamento de feitos no CARF nestas situações, o fato é que, consoante outrora afirmado, o regimento interno deste tribunal administrativo é baixado, não por lei, mas por portaria do Ministro de Estado da Fazenda, sendo certo que esta, ao aprovar o Regimento Interno do CARF (Portaria n. 256, de 22.6.2009), delimitou as atribuições deste órgão no que atine ao sobrestamento de feitos, o qual deve se dar, na infeliz redação do art. 62-A, somente quando o STF tiver determinado a suspensão de recursos extraordinários, por conta da sistemática do art. 543-B do CPC, o que veio, afinal, a ser corroborado pela Portaria CARF n. 1.

Dessa forma, a despeito de censurável, quer porque destoa dos

princípios da eficiência e da economia processual, quer porque o art. 543-B do CPC não exige o sobrestamento de recursos, de maneira expressa, pelo STF, a orientação do art. 62-A do Regimento Interno do CARF, corroborada pela Portaria CARF n. 1, é no sentido de que a suspensão dos recursos pendentes de apreciação perante este órgão, quando a matéria aguardar, perante o STF, análise acerca da existência de repercussão geral, somente é possível quando esta Corte tiver determinado de maneira expressa o sobrestamento de processos versando sobre idêntica questão.

Pois bem. Quanto à aplicação, pelo CARF, de decisão do STF, o art.

26-A do Decreto n. 70235, de 6.3.1972, autoriza que isto ocorra quando o tratado, o acordo internacional, a lei ou o ato normativo tenham sido declarados inconstitucionais por decisão definitiva plenária do STF, seja ela em controle difuso, ou concentrado de constitucionalidade. Veja-se o que diz o art. 26-A a este respeito, além de outras hipóteses nele previstas, que igualmente autorizam o afastamento da lei, tratado ou acordo:

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“Art. 26-A. No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade. (...) § 6º O disposto no caput deste artigo não se aplica aos casos de tratado, acordo internacional, lei ou ato normativo: I – que já tenha sido declarado inconstitucional por decisão definitiva plenária do Supremo Tribunal Federal; II – que fundamente crédito tributário objeto de: a) dispensa legal de constituição ou de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, na forma dos arts. 18 e 19 da Lei n. 10.522, de 19 de julho de 2002; b) súmula da Advocacia-Geral da União, na forma do art. 43 da Lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993; ou c) pareceres do Advogado-Geral da União aprovados pelo Presidente da República, na forma do art. 40 da Lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993”.

O Regimento Interno do CARF, em seu art. 62, repete a norma

contida no art. 26-A do Decreto n. 70235 acerca da aplicação, pelo CARF, de decisão do STF a respeito da inconstitucionalidade de tratado, acordo internacional, lei ou ato normativo.

O art. 62-A, reproduzido no início desta resposta, ainda acrescenta

que as decisões definitivas de mérito proferidas tanto pelo STF, como pelo Superior Tribunal de Justiça, na sistemática prevista, respectivamente, pelos artigos 543-B e 543-C (rito atinente aos recursos repetitivos de índole infraconstitucional), ambos do CPC, devem ser adotadas pelo CARF.

Assim, pode-se dizer que, ainda que a matéria sob discussão não

tenha tido sua repercussão geral reconhecida, por exemplo, porque não submetida ao rito do art. 543-B do CPC, caberá ao CARF subsumir-se ao quanto

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decidido pelo STF, quando a decisão por ele tomada for definitiva e emanada de seu órgão Pleno, por força do que prevê o art. 26-A, parágrafo 6º, inciso I, do Decreto n. 70235.

Essas disposições regimentais são corretas, não só porque

consentâneas com os princípios da eficiência e da economia processual, outrora mencionados, como também porque partem da premissa de que, reconhecida a inconstitucionalidade de determinada norma legal pelo STF, mesmo que em controle difuso de constitucionalidade, deixa de existir a presunção de validade de que as normas são dotadas quando editadas, motivos não havendo, de conseguinte, para que o tribunal administrativo persista, insista, na aplicação de disposição sabidamente dissonante da ordem constitucional.

Respostas: (1) A orientação do art. 62-A do Regimento Interno do

CARF é no sentido de que a suspensão dos recursos pendentes de apreciação perante este órgão, quando a matéria aguardar, perante o STF, análise acerca da existência de repercussão geral, somente é possível quando o STF tiver determinado de maneira expressa o sobrestamento de processos versando sobre idêntica questão. Esta orientação merece duras críticas, tanto porque está em desacordo com os princípios da eficiência e da economia processual, como em razão de o art. 543-B do CPC não exigir o sobrestamento de recursos, de maneira expressa, pelo STF. Ainda assim, sendo o regimento interno do CARF baixado por portaria do Ministro de Estado da Fazenda, o art. 62-A é válido, porque delimita o âmbito de atuação dos conselheiros, dentro dos limites da lei. (2) Mesmo que a matéria em debate não tenha tido sua repercussão geral reconhecida, por exemplo, porque não submetida ao rito do art. 543-B do CPC, caberá ao CARF subsumir-se ao quanto decidido pelo STF, quando a decisão por ele tomada for definitiva e emanada de seu órgão Pleno.

4. Até que momento é possível a apresentação de provas no

processo administrativo fiscal? Qual o limite da utilização das presunções como meio de prova?

A primeira indagação desta quarta questão tem norma legal a seu

respeito, conforme o art. 16 do Decreto n. 70235, a saber:

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“Art. 16 - A impugnação mencionará: ..... III - os motivos de fato e de direito em que se fundamenta, os pontos de discordância e as razões e provas que possuir; IV - as diligências, ou perícias que o impugnante pretenda sejam efetuadas, expostos os motivos que as justifiquem, com a formulação dos quesitos referentes aos exames desejados, assim como, no caso de perícia, o nome, o endereço e a qualificação profissional do seu perito. V - se a matéria impugnada foi submetida à apreciação judicial, devendo ser juntada cópia da petição.”

Além disso, particularmente quanto à prova documental, e de modo

coerente com o “caput”, o art. 16 prossegue:

“Parágrafo 4º - A prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o impugnante fazê-lo em outro momento processual, a menos que: a) fique demonstrada a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo de força maior; b) refira-se a fato ou a direito superveniente: c) destine-se a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidas aos autos. Parágrafo 5º - A juntada de documentos após a impugnação deverá ser requerida à autoridade julgadora, mediante petição em que se demonstre, com fundamentos, a ocorrência de uma das condições previstas nas alíneas do parágrafo anterior. Parágrafo 6º - Caso já tenha sido proferida a decisão, os documentos apresentados permanecerão nos autos para, se for interposto recurso, serem apreciados pela autoridade julgadora de segunda instância.”

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Porém, tais disposições legais dizem respeito ao impugnante do lançamento, e não ao autor deste, para o qual a regra está no art. 9º, que, condizentemente com o dever de ofício da autoridade fiscal e as características pertinentes ao lançamento, conforme o art. 142 do CTN, preceitua:

“Art. 9º - A exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade isolada serão formalizados em autos de infração ou notificações de lançamento, distintos para cada tributo ou penalidade, os quais deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito. Parágrafo 1º - Os autos de infração e as notificações de lançamento de que trata o ‘caput’ deste artigo, formalizados em relação ao mesmo sujeito passivo, podem ser objeto de um único processo, quando a comprovação dos ilícitos depender dos mesmos elementos de prova.”

Não vem ao caso adentrar aqui na questão do ônus da prova,

bastando ficarmos na regra geral de que incumbe ao agente lançador comprovar cabalmente os fatos sobre os quais assenta o seu lançamento, e ao sujeito passivo compete a comprovação dos fatos que alegar ao se opor ao lançamento, ou das contraprovas às provas dos fatos trazidos no lançamento.

Neste sentido, as regras legais acima transcritas visam a colocação

dos limites da lide logo na sua abertura, de modo a tornar o andamento do processo célere e eficiente.

Ademais, são regras que não ferem o direito constitucional do

acusado à ampla defesa e ao contraditório, mas que também asseguram a lisura de procedimento das partes, isto no sentido de impedir que qualquer delas esconda provas para confundir o adversário ou para induzi-lo à linha de defesa que possa vir a ser prejudicada pela conservação de provas e sua apresentação apenas em momento mais propício àquele que maliciosamente as tiver retido em seu poder.

Na generalidade dos casos, a jurisprudência administrativa tem

aplicado tais normas com correção e tempero, pois, por um lado, somente tem

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admitido juntada de provas posteriores à impugnação, pelas autoridades fiscais, mediante abertura de vista ao contribuinte, para se manifestar sobre elas, e, por outro lado, em nome do princípio da verdade material que preside o lançamento tributário e o processo administrativo, tem admitido a juntada de documentos pelos acusados mesmo em fases da instância recursal, assim como tem determinado a realização de diligências sobre fatos ou circunstâncias a respeito dos quais não tenha havido anterior prova adequada.

Neste sentido, mesmo indo além dos rígidos limites da norma do art.

16 do Decreto n. 70235, pode-se sustentar com segurança que a apresentação de provas em qualquer fase do processo, caso necessárias a demonstrar a verdade de fatos relevantes conforme o desenrolar das várias etapas processuais, e desde que não seja praticada com o intuito de obter qualquer vantagem maliciosa, deve ser aceita como imperativo da consecução do objeto maior das regras processuais, que é instrumentalizar a correta aplicação das normas substantivas pertinentes ao crédito tributário em discussão.

Pode-se mesmo afirmar que a mencionada postura jurisprudencial

não representa oposição aos frios limites contidos no art. 16, mas sua aplicação “cum grano salis”, e com fundamento em princípios que são superiores às simples normas particulares, até mesmo porque iluminam a sua interpretação e aplicação.

No tocante à questão do limite para a utilização das presunções

como meio de prova, deve-se primeiramente registrar que se trata de matéria que se constituiu no tema do IX Simpósio Nacional de Direito Tributário do então denominado Centro de Estudos de Extensão Universitária, do qual participou um dos autores deste trabalho. 16

O tempo decorrido desde então – aquele simpósio foi realizado em

outubro de 1984 – não alterou o entendimento que se tinha na época, dado que estava embasado em sólidos e imutáveis fundamentos do Sistema Tributário Nacional, mesmo antes do atual regime constitucional.

16 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de, “Caderno de Pesquisas Tributárias n. 9 – Presunções no Direito Tributário”, coordenação de MARTINS, Ives Gandra da Silva, coedição do Centro de Estudos de Extensão Universitária e da Editora Resenha Tributária, p. 275.

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Essencialmente, pode-se afirmar seguramente que nenhum

lançamento pode ser feito com base em mera suspeita (“praesumptio hominis”), pois, até como foi visto na resposta à indagação precedente, o auditor fiscal deve comprovar cabalmente os fatos objetivados no lançamento tributário, isto é, os fatos sobre os quais aplica a lei de modo a exigir o crédito tributário que se ajuste aos mesmos.

Destarte, suspeitas exigem aprofundamento das investigações até a

obtenção de prova adequada dos fatos necessários a justificar a exigência tributária, ou, ao contrário, determinar a não efetivação do lançamento. A jurisprudência do CARF, inclusive da Câmara Superior de Recursos Fiscais, assim como dos anteriores Conselhos de Contribuintes, não titubeia a este respeito.

Evidentemente, sem necessidade de maiores considerações,

distinguem-se das meras presunções do homem as presunções legais, isto é, aquelas previstas em normas jurídicas que, a partir de determinado fato conhecido, autoriza a conclusão da ocorrência de um fato desconhecido, cuja ocorrência é logicamente possível perante o fato conhecido.

Nestes casos, contudo, a prova ainda precisa ser efetuada, não do

fato ignorado, mas do fato que esteja previsto em lei para desencadear a presunção da ocorrência do fato não comprovado. Em outras palavras, não é admissível mera suspeita daquele fato descrito na lei e autorizador da presunção legal.

Também não há dúvidas quanto a isto, assim como não se discute a

validade jurídica da presunção legal, desde que seja relativa e mero meio de prova da ocorrência do fato gerador ou da formação da sua base de cálculo, portanto, com possibilidade de prova contrária.

O que nosso ordenamento jurídico-constitucional não admite é a

presunção absoluta (ou a ficção) da ocorrência do fato gerador ou dos elementos que o constituem, ou da sua base de cálculo.

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Mesmo perante estes pressupostos básicos, é admissível a chamada “prova indiciária”, que precisa ser adequadamente compreendida para se poder, depois, determinar os limites da sua aplicação.

A prova indiciária somente pode ser aceita quando não haja

possibilidade de prova material, motivo pelo qual ela se justifica principalmente (mas não apenas) quando se discutem aspectos subjetivos das partes de um ato ou negócio jurídico, como, por exemplo, quando está envolvida a possibilidade da ocorrência de simulação.

Nestes casos, a prova é feita pela existência de indícios (dificilmente

apenas um indício é suficiente) que se acumulem de modo consistente e convergente no sentido da conclusão de que algo ocorreu, ou que a ocorrência tem verdadeiramente esta ou aquela faceta real.

A jurisprudência administrativa federal tem aplicado os indícios

com razoável correção, podendo-se mesmo dizer que tem se valido de diversos tipos de indícios, variáveis de caso para caso, embora alguns tenham presença quase permanente (para não dizer mais, isto é, para não dizer que há sua presença em todos os casos), como, por exemplo, o cancelamento do ato ou negócio simulado ou o desfazimento indireto dos seus efeitos.

Doutrina interessante também tem tratado do tema, e tem sido

acolhida e adotada pela jurisprudência do CARF (como antes, a dos Conselhos de Contribuintes) e da Câmara Superior de Recursos Fiscais.

Embora muito próximos das presunções, os indícios não e

confundem com elas, porque estas exigem a comprovação de um fato previsto em lei, o qual acarreta a “prova legal” de outro fato cuja existência é logicamente possível perante o fato comprovado. Por isso mesmo, a prova legal inverte o ônus da prova em desfavor daquele contra o qual atua a presunção.

Já os indícios são meios indiretos de convencimento do julgador, de

que um fato tenha ocorrido, isto é, são fatos comprovados que, mesmo não previstos em lei, convencem o julgador de que ocorreu outro fato determinado, ou que existiu com tais ou quais características ou motivações.

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Destarte, no emprego dos indícios não há o fenômeno próprio da simulação “juris tantum”, que é a obrigação de a parte contra a qual ela opera provar que a presunção, embora teoricamente correta e conducente à prova precária do fato incomprovado, “in casu”, concretamente, não é verdadeira porque outra verdade também é possível perante o fato presuntivo, e esta outra corresponde à realidade.

No caso de utilização de indícios, a parte contra o qual eles atuam

também pode demonstrar uma realidade distinta daquela a que os indícios podem conduzir, mas não se dá propriamente inversão do ônus da prova, até porque os indícios são aceitos pelo julgador sem a força probante dos fatos presuntivos que estão na origem das presunções legais, sendo mais elementos considerados no seu raciocínio de apreensão dos fatos.

Enfim, havendo presunção, o fato descrito na hipótese de incidência

da norma autorizadora da presunção precisa ser provado, ao passo que os indícios, cujas existências também precisam ser comprovadas, são empregados num contexto de circunstâncias fáticas levadas em conta no processo mental de raciocínio do julgador, o qual não pode, nem tem como, ser cerceado.

No raciocínio em torno de indícios há o emprego de processo lógico-

dedutivo, o que também ocorre com as presunções legais. Mas esse processo não caracteriza nem o indício nem a presunção, porque, afinal, corresponde ao processo de subsunção de quaisquer fatos do mundo às hipóteses de incidência de quaisquer normas jurídicas que a eles se refiram.

Todavia, a distinção que qualifica os indícios é a sua não previsão

em lei, quer dizer, não há norma jurídica que os descreva como hipóteses de incidência (antecedentes normativos) a gerar este ou aquele comando legal (consequentes normativos), mas eles estão no mundo real e, por meio deles, o julgador deduz que outro fato ocorreu, ou ocorreu com determinadas circunstâncias objetivas ou subjetivas.

Também se distinguem os indícios das meras suspeitas, pois estas

são elucubrações não fundadas em fatos efetivos e demonstrados, motivo pelo qual se incompatibilizam com as exigências básicas da incidência tributária, contidas no princípio da legalidade, com seu desdobramento para a tipicidade,

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as quais se manifestam na descrição que o art. 142 do CTN dá para o lançamento, que é, primeiramente, “o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente” ao crédito tributário que visa constituir.

Indícios, entretanto, cuja ocorrência tenha sido devidamente

verificada, assim como as presunções, podem conduzir à ocorrência do fato gerador.

Talvez um exemplo, amplamente conhecido, sirva para explicar a

noção de indício, exemplo este contido no célebre julgamento do Rei Salomão sobre a disputa de duas mulheres que afirmavam, cada uma delas, ser a mãe de uma criança, e ambas requeriam do tribunal a entrega da criança a si. Não sabemos se Salomão suspeitava qual delas era a mentirosa, mas, tendo ou não alguma suspeita, sua justiça exigia o aprofundamento da investigação segundo as diretrizes que, embora pudessem ser mais simples do que as dos atuais processos, correspondiam ao devido processo legal da sua jurisdição.

Claramente, não havia uma presunção legal à disposição do rei, nem

prova material da maternidade, o que o levou a empregar o estratagema de afirmar que dividiria a criança em duas partes e entregaria metade para cada mulher.

A reação das duas partes revelou qual era a verdadeira mãe, pois

esta, por óbvio, não desejaria a execução da sentença. Assim, na ausência de qualquer comprovação da real maternidade, esta exsurgiu do indício de que nenhuma mãe verdadeira quer a morte do seu filho. Ao lado desse indício capital, o comportamento desinteressado (ou interessado egoisticamente na meia-vitória que teria) da outra mulher também serviu de indício da improcedência do que ela alegava, completando-se o conjunto indiciário suficiente ao pronunciamento da decisão.

Portanto, por este exemplo não somente compreendemos o que

sejam os indícios, mas também podemos extrair dele os limites para a utilização dos indícios no processo decisório.

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Realmente, o primeiro limite (requisito) é não haver prova material para o fato cuja ocorrência o indício permita deduzir, muito menos prova contrária, e o segundo é a convergência lógica do conjunto indiciário no sentido do fato de cuja existência o julgador fica convencido.

O limite (requisito) da inexistência de prova material tem aparecido,

e muitas vezes tem sido negligenciado, em processos administrativos cujos órgãos julgadores persistem em adotar indevidamente certos indícios que não são apropriados para a solução do caso “sub judice”.

Isto pode acontecer porque é da essência do conceito de indício, e da

sua função no contexto probatório, a sua variabilidade, sob dois aspectos. O primeiro é que os indícios podem afirmar ou infirmar

determinado fato ou circunstância, como, por exemplo, podem levar à convicção da existência de simulação ou da sua ausência. Isto é assim porque, como provas e meios de convencimento, eles podem conduzir à conclusão positiva ou negativa, não sendo possível admiti-los apenas para a produção de um determinado resultado aprioristicamente desejado ou previsto.

Este aspecto particular é comum a todos os meios de prova, além de

que, sendo os indícios instrumentos da mente, não podem cercear a liberdade desta, isto é, ao serem invocados por uma parte para o seu objetivo, podem resultar em conclusão radicalmente contrária ao pretendido por ela, e acabar por beneficiar a parte adversária.

Ao juiz, cabe ser honesto consigo mesmo, trazendo à lume, na sua

decisão, a convicção a que chegou no seu íntimo. O segundo aspecto peculiar aos indícios, quanto à sua variabilidade,

consiste em que um fato ou uma circunstância pode ser indício para a conclusão de determinada lide, e ser absolutamente írrito em outra. Isto é assim em virtude da própria logicidade que deve haver entre o indício e a dedução que dele pode ser extraída.

Em decorrência disso, certas circunstâncias fáticas, que em

determinado caso conduzem à conclusão de ter havido uma montagem de

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negócios meramente artificial – tal como a sequência de ocorrências em curto espaço de tempo –, em outro caso pode indicar exatamente o inverso, como ocorre com os negócios jurídicos complexos ou sucessivos, em que uns dependem de outros para a produção de um efetivo resultado negocial somente possível ao final e através do seu conjunto.

Pois bem, voltando à questão do inadequado uso de um fato ou de

uma circunstância a título de indício, é o que tem sido observado em alguns processos administrativos cujos julgamentos embasaram-se em algumas circunstâncias fáticas para chegar à conclusão que elas, representando, segundo a jurisprudência, indícios da real intenção das partes de um negócio realizado, necessariamente devem ser adotadas para a determinação da vontade das partes do negócio que esteja em julgamento. Ora, isto pode ser aceitável em alguns processos, conforme seus fatos concretos, mas pode não ser cabível perante os fatos de outros processos, e é absolutamente descabido se houver uma prova material contrária à suposição que eles podem formar, como, por exemplo, se houver um contrato em que as partes tenham declarado os motivos para realizarem o respectivo negócio, e seu comportamento posterior é plenamente compatível com a declaração feita e a causa do negócio jurídico praticado.

É como se, nos dias de hoje, algum juiz quisesse decidir uma disputa

igual à do processo do Rei Salomão de modo semelhante ao adotado por ele, ou seja, mediante o emprego de alguns indícios e abandonando a prova efetiva da maternidade, tecnicamente possível em nosso tempo e apresentada por uma das partes, ou se o juiz preferir os indícios e negar a realização da prova técnica.

Respostas: (1) Além das hipóteses contidas no art. 16 do Decreto n.

70235, e desde que não tenha havido retenção maliciosa de prova em detrimento da lisura processual e em prejuízo da parte adversa, deve ser aceita a apresentação de provas em qualquer fase do processo, caso necessárias a demonstrar a verdade de fatos relevantes, o que se constitui em imperativo da consecução do objeto maior das normas processuais, que é instrumentalizar a correta aplicação das normas substantivas pertinentes ao crédito tributário em discussão. (2) Os limites para a utilização de presunção, como meio de prova da ocorrência do fato gerador ou da formação da sua base de cálculo, estão contidos na presunção legal relativa, portanto, a prevista em lei e com possibilidade de

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prova contrária. No caso de presunção “juris tantum”, a ocorrência do fato presuntivo precisa ser cabalmente provada. Nosso ordenamento jurídico-constitucional não admite a presunção absoluta (ou a ficção) da ocorrência do fato gerador ou dos elementos que o constituem, ou da sua base de cálculo, tanto quanto o lançamento não pode ser baseado em mera suspeita (“praesumptio hominis”). Porém, a prova indiciária, mediante conjunto de indícios logicamente convergentes para a dedução da existência de determinado fato, faz parte do processo mental do julgador e pode ser empregada quando não haja ou não seja possível prova material do fato deduzido.

5. Tendo a parte impugnado o item do lançamento, pode o

julgador dar provimento ao seu recurso por fundamento jurídico diverso do alegado?

Como regra, os limites da lide no processo administrativo fiscal se

perfazem a partir de dois atos, iniciando-se com auto de infração, no qual o fisco tem o dever de motivar o lançamento17 e indicar os fundamentos jurídicos que o suportam, e completando-se com a impugnação, na qual o contribuinte deve indicar os fundamentos jurídicos de defesa.

Por isso que o Decreto n. 70235, ao regulamentar o assunto,

estabelece em seu art. 10 que o auto de infração deve conter “III - a descrição do fato;” e “IV - a disposição legal infringida e a penalidade aplicável”. E o art. 16, inciso III, ao tratar da impugnação, determina que o contribuinte deve expor “os motivos de fato e de direito em que se fundamenta, os pontos de discordância e as razões e provas que possuir”. E mais, com o intuito de preservar a ordem e a lisura processual, o art. 17 do mesmo Decreto n. 70235, dispõe que “considerar-se-á não impugnada a matéria que não tenha sido expressamente contestada pelo impugnante”.

Essa é a regra geral, que tem objetivo de impedir que a matéria “sub

judice” seja alterada ao longo do processo, evitando a deturpação do curso regular do processo.

17 Vide maiores detalhes sobre a motivação mais adiante.

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Contudo, a regra geral não pode ser levada às últimas consequências, a ponto de contrariar a finalidade última do processo administrativo. Veja-se.

A base de tudo no direito tributário é o princípio da legalidade,

consagrado nos art. 5º, inciso II, e 150, inciso I, de nossa Constituição, e segundo o qual não pode haver tributo sem lei que o tenha instituído.

Com fundamento nesse princípio basilar, o Código Tributário

Nacional estabelece em seu art. 9718 que somente lei pode instituir ou majorar tributos, cabendo-lhe também a definição do fato gerador da obrigação tributária, a fixação de alíquotas, a cominação de penalidades e a definição das hipóteses de exclusão, extinção e suspensão do crédito tributário.

Daí se concluir que a obrigação tributária sempre decorre de lei, o

que também é confirmado pela análise conjunta dos art. 113 do Código Tributário Nacional, segundo o qual a obrigação tributária “surge com a ocorrência do fato gerador” e 114, que define o fato gerador como “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”.

Sendo decorrente da lei, conforme acima exposto, uma vez

verificada a hipótese legalmente qualificada como passível de incidência tributária, a obrigação deve ser constituída por autoridade fiscal competente mediante “atividade plenamente vinculada”, conforme estabelece o art. 3º daquele mesmo Código.

A constituição do crédito se dá por meio do lançamento, que é

definido no art. 142 como “o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria

18 “Art. 97. Somente a lei pode estabelecer: I - a instituição de tributos, ou a sua extinção; II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65; III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo; IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65; V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas; VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.”

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tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.” E para arrematar, o parágrafo único desse dispositivo repete que “atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.

Todas essas disposições são de conhecimento geral, mas a sua

repetição no presente caso se presta a confirmar que a obrigação tributária decorre da lei e surge com a ocorrência do fato gerador, independentemente da vontade do fisco e mesmo do contribuinte19.

Esta característica da obrigação tributária, de ser “ex lege”, impõe a

necessidade de que o lançamento seja objeto de revisão, a fim permitir a exata aplicação da lei ao caso concreto, evitando que seja exigido tributo além dos limites legais.

Esta é, enfim, a função precípua do processo administrativo fiscal:

controlar a legalidade do lançamento, com vistas à aplicação efetiva da legislação tributária às situações concretas.

Daí advém uma peculiaridade do processo administrativo fiscal em

relação ao processo civil em geral. Como sua finalidade última é controlar a legalidade do lançamento, de modo que por meio dele a obrigação tributária seja formalizada dentro dos estritos limites da lei, a busca desse objetivo final impede o apego excessivo a formalismos (princípio do formalismo moderado) e determina a busca incessante da verdade dos fatos (princípio da verdade material).

Nesse contexto, embora via de regra os limites da lide se perfaçam

no momento da impugnação, com base nos fundamentos jurídicos expostos na defesa, à luz dos fundamentos que motivam o lançamento, a busca da correta aplicação da lei ao caso concreto não impede que, em determinadas situações, o lançamento seja cancelado com base em outros fundamentos não apresentados pelo contribuinte na impugnação.

19 Claro que a vontade do contribuinte se manifesta em relação à prática da situação definida em lei como passível de incidência, mas uma vez praticada, é devido o tributo, com base na lei, independentemente da vontade de qualquer interessado.

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Se o objetivo último do processo administrativo fiscal é determinar

a correta aplicação da lei aos fatos ocorridos, não faz sentido deixar de lado esse desiderato tão somente pelo fato de que um determinado fundamento jurídico não foi suscitado pelo contribuinte em sua impugnação.

Não se deve perder de vista que o processo, em si mesmo, não tem

utilidade, pois é sempre vinculado a uma determinada finalidade. Por definição, ele é meio para se atingir algum fim, como bem apontou Luiz Henrique de Barros Arruda20 ao ensinar que “processo, por definição, significa conjunto de atos, fatos e operações que se sucedem coordenadamente num sistema como meio de alcançar um fim”. (grifos do original)

Se o fim do processo fiscal é buscar a correta aplicação da lei, não faz

sentido deixar de aplicá-la a determinado caso concreto apenas porque o contribuinte não invocou determinado fundamento jurídico em sua impugnação.

Para ilustrar essa conclusão, vale analisar o seguinte exemplo:

imagine-se que determinado contribuinte foi autuado por deduzir indevidamente determinada despesa, para fins de apuração do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro (CSL), sob a alegação de que não se trata de despesa necessária, nos termos do art. 47 da Lei n. 4506, de 30.11.1964. Imagine-se também que esse mesmo contribuinte tenha se insurgido contra a autuação, sustentando tratar-se de despesa necessária e, portanto, dedutível. Depois, quando o processo é submetido ao CARF, a Turma competente para julgar o recurso interposto acaba por reconhecer que a despesa não seria, em tese, necessária, mas possui entendimento pacífico no sentido de que a regra prevista no art. 47 da Lei n. 4506 não se aplica para fins de apuração da CSL.

No exemplo acima, verifica-se que o lançamento da CSL não possui

fundamento legal, eis que a legislação que fundamentou a autuação não se aplica à citada contribuição. Faz sentido manter o lançamento e exigir a contribuição sabidamente indevida apenas porque o fundamento adequado não foi utilizado pelo contribuinte em sua impugnação? Mesmo reconhecendo a ilegalidade do

20 ARRUDA, Luiz Henrique Barros, “Processo Administrativo Fiscal” Ed. Resenha Tributária, São Paulo, p. 1.

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lançamento, deve a Turma manter a exigência fiscal apenas porque o contribuinte não suscitou aquele fundamento jurídico?

Parece que não. Se a obrigação é “ex lege” não é correto condicionar

a exigência de tributo à menção deste ou daquele fundamento jurídico na impugnação.

Veja-se também que, no caso da questão colocada (e também no

exemplo acima), o contribuinte não aceitou a exigência fiscal e apresentou impugnação, tendo apenas deixado de invocar determinado fundamento jurídico tido como relevante.

Se tivesse deixado de apresentar defesa, no prazo legal, admitir-se-

ia a ocorrência de preclusão, aplicando-se o art. 17 do Decreto n. 70235, acima transcrito. O crédito tributário, então, poderia ser objeto de cobrança pelo fisco, com base no art. 21 do mesmo decreto, que assim dispõe: “Não sendo cumprida nem impugnada a exigência, a autoridade preparadora declarará a revelia, permanecendo o processo no órgão preparador, pelo prazo de trinta dias, para cobrança amigável”.

Mas nos casos em que o contribuinte se insurge contra a exigência

fiscal, impugnando-a, não se pode considerar preclusa a matéria “sub judice”. Ademais, no caso em estudo, poderia ser invocada uma das máximas

mais conhecidas em direito processual, qual seja: “da mihi factum, dabo tibi jus”, em português: “dá-me o fato que te darei o Direito”.

Sempre se entendeu que o juiz, quando provocado, deve decidir de

acordo com o seu livre conhecimento e segundo o ordenamento como um todo, não estando adstrito aos fundamentos jurídicos invocados pela partes no processo. O Código de Processo Civil positivou a brocado no art. 131 segundo o qual “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento”.

Se é assim no processo civil em geral, não pode ser diferente em

relação ao processo administrativo fiscal, ainda mais porque, como visto, sua

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finalidade última é controlar a legalidade do lançamento, que é atividade plenamente vinculada.

Confirma essas conclusões o entendimento exposto no acórdão n.

101-93671, de 7.11.2001, da 1ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes, de cujo voto condutor, elaborado pelo ex-Conselheiro Sebastião Rodrigues Cabral, merecem destaque os seguintes trechos, inclusive pelas citações de doutrina e jurisprudência, as quais subscrevemos:

“(...) Quanto a afirmação de que a Recorrente não contestou expressamente ‘eventual desvantagem pela não aplicação integral do Parecer Normativo n. 33/78’, com vistas à aplicação do disposto no artigo 17 do Decreto n. 70235, de 1972, com nova redação dada pelo artigo 1º da Lei n. 8748, de 1993, e artigo 67 da Lei n. 9532, de 1997, ao que parece, os dignos Diligenciantes entendem como matéria não impugnada simples argumento de defesa não expendido. É mais que evidente a matéria não impugnada tratada na Lei diz respeito à eventual parcela do crédito tributário exigido com a qual a Contribuinte não discorda e, eventualmente, até se dispõe a pagar. Ou seja, nos casos em que o Auto de Infração descreve e capitula diversas irregularidades e exige tributo sobre as mesmas, o Contribuinte, a seu critério, pode contestar todas as acusações ou contestar apenas parte delas e proceder ao pagamento da parte com a qual concorda. Somente nestes casos tem aplicação a preclusão estabelecida no referido artigo 17. A propósito do tema, convém trazer à colação, dentre outras, recente decisão proferida pela C. 7ª Câmara deste E. Primeiro Conselho de Contribuintes, através do Acórdão n. 107-06.311, de 20/06/2001, a qual, sem dúvida, elucidará a questão, in verbis:

‘PREQUESTIONAMENTO — O prequestionamento, como pressuposto para interposição de recurso no processo administrativo fiscal, em que prevalece o princípio da verdade real, ocorre com a impugnação da matéria tributária constante do lançamento, cumprindo ao julgador dirimir o litígio em face do Direito aplicável’.

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No voto condutor do v. Acórdão, o insigne Conselheiro-Relator Carlos Alberto Gonçalves Nunes, fundamenta, de modo claro e inatacável, tal decisão, ipsis litteris:

‘Em primeiro lugar cabe consignar que se trata de matéria prequestionada. A autuada impugnou a exigência com os argumentos de fato e de direito ao seu alcance. O que importa é que se insurgiu contra a exigência. Questionou-a desde a impugnação; logo prequestionou-a. E, assim, trouxe-a ao conhecimento do Conselho de Contribuintes, através do recurso de fls. 1.020 a 1.028, especialmente às fls. 1.025 a 1.033. Antônio da Silva Cabral, em sua consagrada obra ‘Processo Administrativo Fiscal’, Ed. Saraiva, 1993, págs. 270/271, dá magistral lição sobre o tema. Por outro lado, cumpre ao julgador, notadamente se tratando de interpretação e aplicação do Direito Público, mais precisamente do Direito Tributário, aplicar o Direito ao fato. ‘Dá-me o fato e dar-te-ei o Direito (Da mihi factum, dabo tibi jus)’. A atividade de lançamento é regrada, de modo que, não havendo fundamento legal para a exigência não há obrigação tributária, e não havendo obrigação tributária, não há crédito tributário a ser lançado. E se o foi, é insubsistente o esforço do autuante e da repartição fiscal.’

Como ressaltado no voto supra, em se tratando de interpretação e aplicação do Direito Tributário, o julgador há que ter uma preocupação ainda maior de aplicar o Direito ao fato, na medida em que a tributação é ex lege, ou seja, submete-se ao princípio da legalidade cerrada, de modo que é vedada qualquer exigência tributária que não tenha respaldo legal. E sem dúvida, cabe ao julgador, em última instância, verificar e sentenciar se a autoridade fiscal aplicou corretamente ao caso concreto. A propósito do tema, mais uma vez reportamo-nos aos ensinamentos de Antônio da Silva Cabral, na obra citada, fls., 365/366, ad litteram:

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‘O estudo do direito e o trabalho de interpretação da norma só tem um objetivo para o julgador: saber aplicar corretamente a norma ao caso concreto. As leis são como armas: poderão ser usadas contra quem não sabe manejá-las. O homem que simplesmente estudasse a lei seria um diletante, mas nunca um jurista. Direito é vida. Ao juiz caberá comparar uma norma abstrata com um caso concreto, e esta é tarefa que só se aprende com a vida.’ (fls. 365)

‘A decisão, no campo do processo fiscal, corresponde à sentença do juiz. Em ambos os casos o que se visa é a prestação jurisdicional, objeto da relação jurídica processual. ..................................................omissis................................ Assim como a sentença, a decisão administrativa pode ser injusta. A melhor forma para o julgador se sentir em paz com sua consciência é seguir o princípio que Aristóteles formulou em sua Ética a Nicômano: é justo tudo aquilo que está de acordo com a lei. Ao juiz não compete fazer as leis, nem revogá-las. Se a lei é injusta, não cabe a ele tal julgamento, pois sua função não está em julgar a lei, mas dizer qual a lei que se aplica ao caso concreto. Toda decisão com pretensões a uma apreciação corretiva da lei deve ser deixada de lado.’ (fls. 366)

(...) Por outro lado, não se pode olvidar que para decidir, com precisão e segurança, qual a lei que se aplica ao caso concreto, o julgador não pode ficar adstrito ao fundamentos de direito invocados pela partes (Fisco e Contribuinte), devendo se ater, especialmente aos fatos e circunstâncias constantes do processo, estes sim indicarão, de modo seguro, se a lei fundamentadora da exigência se aplica aos fatos descritos no Auto de Infração. Ou seja, no campo do Direito Tributário, em especial, o julgador deve perseguir a verdade material, tendo em vista o princípio da legalidade cerrada a que se submete a obrigação tributária.

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Este aliás, é o entendimento manso e pacífico dos Conselhos de Contribuintes, consoante nos dão conta as ementas do Acórdãos a seguir: ‘NORMAS PROCESSUAIS — NULIDADE DE DECISÃO RECORRIDA — PRELIMINAR — O julgador não está obrigado a decidir questão posta ao seu exame de acordo unicamente com os fundamentos jurídicos pleiteados pelas partes. ...’ (Ac. 2° CC 202-12.467, de 12/09/2000) (...) De tudo que foi exposto até aqui, resta claro que a interpretação e aplicação do Direto Tributário, deve levar em conta, acima de tudo, a subsunção do fato à norma invocada, sob pena de proceder-se a lançamentos contra legis, o que é vedado pelos dispositivos constitucionais e demais atos legais que regem o Processo Administrativo Fiscal.”(tudo conforme o original)

Também não cabe uma possível alegação de que, ao cancelar

determinada exigência com base em fundamento não exposto na impugnação, a decisão seria “extra petita”.

Para que fosse considerada como tal, a decisão deveria julgar algo

que não está sendo discutido no processo, ou seja, que não é objeto de controvérsia. Mas no caso em questão, diferente disso, a decisão que determinada o cancelamento da autuação, ainda que por fundamento jurídico diverso daquele alegado pelo contribuinte, não deixa de analisar a validade da exigência fiscal, o que representa justamente o objeto do processo.

Sobre o tema, vale registrar mais uma passagem do voto condutor

do acórdão n. 101-93671:

“(...) Para finalizar estas considerações preliminares, faremos breve abordagem sobre a manifesta preocupação dos dignos diligenciantes em evitar um julgamento ultra-petita ou extra-petita.” (...)

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“De qualquer modo, considero oportuno tecer algumas considerações acerca do julgamento ultra-petita ou extra-petita, para esclarecer e tranqüilizar os dignos Auditores-Fiscais. Para tanto, valho-me, mais uma vez, das lições de Antônio da Silva Cabral, na obra acima citada, págs. 399/400, in verbis:

‘Decisões citra, extra ou ultra-petita - Em direito processual civil o juiz deverá pronunciar-se estritamente sobre o pedido do autor e manter-se dentro dos limites desse pedido. ....................................................omissis .................................. Em se tratando de obrigação tributária, mais uma vez cabe lembrar que a vontade humana pouco conta, já que o nascimento da obrigação está relacionado com a ocorrência do fato gerador, que, por sua vez, depende de lei. O que importa, pois, é o cumprimento da lei e não o fato de o contribuinte concordar ou com a exigência. Mais ainda. Se o fisco tem ciência de a exigência não é cabível, não pode proceder a cobrança desta. Considerações desta ordem permitem chegar à conclusão de que, em direito processual fiscal, é possível cogitar-se de decisão extra-petita. Se, por exemplo, o contribuinte que o julgador suspenda o julgamento do processo, que é decorrente, até que seja apreciado o processo principal, nada impede que o julgador, sabendo ser indevida a tributação no processo decorrente, dê ganho de causa ao sujeito passivo. Em segundo lugar, o processo civil é um meio de as partes litigantes se dirigirem a um terceiro, o juiz, que irá decidir qual delas está com a razão. No processo fiscal o julgador singular ou o Conselho de Contribuintes são órgãos do sujeito ativo, que têm a obrigação de não exigir nada além do que a lei permite. É um caso curioso porque o Estado pratica um ato administrativo, que é o lançamento, mas, ao mesmo tempo, atua como autoridade que controla a legalidade desse ato administrativo. O julgador de 1º grau, inclusive é autoridade lançadora.

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Na Exposição de Motivos n. 53, de 16.02.1972, o então Ministro da Fazenda, ao submeter o texto do Decreto n. 70.235/72 ao Presidente da República, afirmou. ‘É importante lembrar que, mesmo não havendo impugnação, a repartição fará a conferência e revisão da exigência fiscal, especialmente quanto às questões de direito.’ Este tema foi objeto de pronunciamento por parte da CSRF, no Ac. CSRF/01-0.299, de 7-7-1983, em cuja ementa se lê: ‘Não é nula a decisão extra petita proferida. a favor do contribuinte, no processo administrativo tributário, que integra a função e é instrumento de controle da legalidade do lançamento, nos casos em que esteja devidamente fundamentada e demonstre a equivocada aplicação da lei ao caso concreto.’ (Grifos do originall)

Em suma, é válida a decisão que cancela determinada exigência

fiscal reconhecidamente ilegal, ainda que com base em fundamentos não invocados pelo contribuinte.

Outrossim, a Lei n. 9784, ao tratar do processo administrativo

federal em geral, aplicável subsidiariamente ao processo fiscal21, estabeleceu, em seu art. 2º, que “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. E o seu parágrafo único ainda prevê que “Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; (...) VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados; XII

21 A jurisprudência sempre reconheceu a aplicação da Lei n. 9784 no processo fiscal. Mas após a edição do Decreto n. 7574, de 29.9.2011, o qual regulamentou e consolidou a legislação referente ao processo administrativo fiscal, restou eliminada qualquer dúvida a respeito, eis que diversas regras previstas na citada lei foram citadas como fundamento legal para os comandos do mencionado Decreto.

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- impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados; XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.

O dispositivo contém inúmeros comandos que confirmam a tese ora

defendida. A exploração de cada um deles tornaria demasiadamente longo o presente estudo. Mas de um modo geral, pode-se dizer que as regras previstas na Lei n. 9784 visam prestigiar a finalidade do processo administrativo e a preservação da lei, dos direitos dos cidadãos e do interesse público.

Tais preceitos estão em prefeita sintonia com os princípios e

objetivos do processo fiscal. A atuação conforme a lei e o Direito impõe ao julgador o cancelamento de determinada exigência mesmo com base em fundamento jurídico não apontado pelo contribuinte. Trata-se de medida que atende ao interesse público, eis que evita a cobrança indevida de tributos, em respeito aos direitos dos cidadãos, que não podem ter seu patrimônio subtraído pelo Estado sem o devido respaldo em lei, sob pena de confisco, vedado pela Constituição22 .

Interessante também notar que cancelamento da exigência fiscal,

em tal situação, acaba por prestigiar os princípios da eficiência e da economia processual, eis que tal medida evita a instauração de litígio judicial, o qual é custoso para o contribuinte e também ao Erário, que tem gastos com seus procuradores e com a movimentação do Poder Judiciário, além de evitar a condenação da Fazenda Pública ao pagamento de verbas de sucumbência.

Resposta: Embora via de regra os limites da lide se perfaçam no

momento da impugnação, a busca da correta aplicação da lei ao caso concreto não impede que, em determinadas situações, o lançamento seja cancelado com base em outros fundamentos não apresentados pelo contribuinte em sua defesa. Em tais casos, é acertada a aplicação do brocardo “da mihi factum, dabo tibi jus”, válido em processo civil de modo geral e também no processo administrativo fiscal, cuja finalidade última é o controle da legalidade do lançamento, que é ato vinculado, desprovido de discricionariedade, eis que decorre de obrigação de natureza “ex lege”.

22 Art. 150, inciso IV.

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6. Até que ponto pode o julgador ajustar o lançamento?

Pode manter o lançamento com base em motivação diversa da constante no Termo de Verificação Fiscal? O erro na capitulação legal enseja a nulidade do lançamento?

A resposta anterior afirma que o julgador pode cancelar

determinada exigência fiscal com base em fundamento jurídico que não tenha sido suscitado oportunamente pelo contribuinte, inclusive para dar efetividade ao processo administrativo fiscal.

Essa afirmação poderia sugerir que o mesmo poderia ser dito

quanto à possibilidade de o julgador ajustar o lançamento ou mantê-lo com base em motivação diversa daquela constante no Termo de Verificação Fiscal (TVF). Nessa linha, partindo-se do pressuposto de que o objetivo do processo fiscal é controlar a legalidade do lançamento, à primeira vista, poder-se-ia concluir como válido o aperfeiçoamento do lançamento pelo órgão julgador ou a sua manutenção por fundamentos não contidos no TVF.

Todavia, uma análise criteriosa do tema, baseada na ponderação dos

princípios que regem o ato administrativo e o processo administrativo fiscal, bem como pautada na legislação que regula a atividade do julgador, leva à conclusão diferente e sem que com isso se verifique contradição com o quanto exposto na resposta anterior.

Com efeito, a aplicação dos referidos princípios e regras conduz à

conclusão de que o auto de infração, para ser juridicamente válido, deve conter em si todos os elementos de fato e de direito que justificam a respectiva exigência fiscal, não podendo sofrer modificação ao longo do processo, sob pena de se desvirtuar a ordem regular do processo e se prejudicar o direito à ampla defesa e ao contraditório.

Realmente, há vários fundamentos jurídicos que explicam porque a

fundamentação de fato e direito do auto de infração não pode ser alterada no curso do processo.

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O primeiro deles é que todo ato administrativo deve ser motivado, o que encontra seu esteio remoto no art. 37 da Constituição Federal, o qual determina que a Administração Pública obedecerá aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.

O segundo fundamento também está na Constituição, no art. 5º,

inciso LV, ao garantir que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Ademais, a Lei n. 9784, que rege o processo administrativo em geral,

exprime os referidos comandos constitucionais mencionando expressamente os princípios da motivação, da ampla defesa e do contraditório, ao prescrever no art. 2º que “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. 23

Evidentemente que o contraditório, parte inerente da ampla defesa,

somente pode ser estabelecido enquanto se contrapõem os fundamentos legais e factuais do auto de infração e aqueles que o impugnante traz para os autos, o que

23 Essa lei em muitos dispositivos se reporta à motivação dos vários atos administrativos praticados no processo, e tem um capítulo especial (capítulo XII) intitulado “Da Motivação”, no qual consta o seguinte: “Art. 50 - Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V - decidam recursos administrativos; VI - decorram de reexame de ofício; VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo. Parágrafo 1º - A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato. Parágrafo 2º - Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados. Parágrafo 3º - A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.”

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impede qualquer mudança nas teses e nos fatos que o auto de infração suscitou para o debate.

Em outras palavras, se o ato administrativo de lançamento deve ser

motivado, ele é atacável, entre outras possibilidades, se o seu fundamento não estiver correto.

Não é à toa, portanto, que o Decreto n. 70235, no já citado art. 10,

exige que o auto de infração contenha “obrigatoriamente”, entre outros requisitos, “III - a descrição do fato; IV - a disposição legal infringida e a penalidade aplicável”. E o art. 11, ao tratar da notificação do autuado, impõe o dever de que nela conste a disposição legal infringida.

Somente assim, como lhe é exigido pelo art. 16, inciso III, o

contribuinte pode incluir em sua impugnação “os motivos de fato e de direito em que se fundamenta, os pontos de discordância e as razões e provas que possuir”.

À toda evidência que os motivos de fato e de direito que

fundamentam a impugnação são motivos em relação ao fato e ao direito constantes do lançamento fiscal, assim como os pontos de discordância do contribuinte são relativos aos fatos e ao direito alegados pela autoridade lançadora.

De mais a mais, em matéria de lançamento tributário, a motivação

encontra fundamento específico no art. 142, ao estabelecer que a atividade de lançamento é vinculada à lei e inclui a verificação da ocorrência do fato gerador e a determinação da matéria tributável, o que, claramente, impõe a devida fundamentação da exigência fiscal.

Nesse contexto, se houvesse espaço para se ajustar o lançamento,

para inclusão de novos fatos e fundamentos jurídicos, a ordem regular do processo estaria prejudicada.

Admitir inovação desse tipo significa reconhecer que, antes dela, o

auto de infração não continha a devida motivação e, logo, não era válido, pois contrário às regras acima mencionadas.

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Até porque a defesa do contribuinte, tal como originalmente elaborada, inclusive em observância ao art. 16, inciso III, acima citado, restaria prejudicada, pois elaborada sem levar em consideração a nova motivação.

E mesmo que se admitisse a apresentação de nova defesa no curso

do processo face aos novos argumentos, logicamente que ao menos uma etapa processual já teria sido cumprida sem a discussão do tema, implicando assim supressão de instâncias, e ofensa ao contraditório e à ampla defesa.

De fato, se a decisão de primeira instância pudesse aperfeiçoar o

auto de infração, ou mesmo mantê-lo com base em fundamentos inéditos, contra essa decisão caberia apenas recurso voluntário, atualmente submetido ao CARF, e o contribuinte perderia uma instância de discussão em claro prejuízo ao seu direito de defesa. Pior ainda se a inovação ocorresse já no CARF, pois caberia apenas recurso à Câmara Superior e isto se houvesse decisão divergente hábil a justificar tal recurso.

A questão da supressão de instância, em casos de inovação do feito

não passou despercebida pela jurisprudência, como se vê pela ementa do acórdão n. 103-21409, de 17.10.2003, da 3ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes:

“PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL – INOVAÇÃO – SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA – DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO – Tendo a autoridade julgadora de primeira instância aduzido fundamentos novos ao lançamento, caracteriza-se inovação. Nos limites da inovação, os argumentos trazidos no recurso voluntário devem ser conhecidos pela autoridade julgadora para que se evite supressão de instância e se garanta isonomicamente o duplo grau de jurisdição, mediante novo julgamento.”

A confirmar o acima exposto, também deve ser trazido à baila o art.

146 do Código Tributário Nacional24, que torna o critério jurídico do lançamento tão relevante a ponto de impedir que a alteração daquele que tiver sido adotado no lançamento seja aplicada ao mesmo fato gerador.

24“Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”

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A redação pouco precisa do art. 146 já ensejou muita discussão a

respeito da sua exata extensão. Para parte da doutrina, o dispositivo tem por finalidade preservar a segurança jurídica e, como tal, protege o contribuinte contra qualquer alteração do lançamento, seja em virtude de erro, ou em razão de mudança de interpretação do fisco a respeito da legislação e ainda aos casos em que a legislação autoriza a utilização de mais de um critério válido para o lançamento 25.

Por outro lado, há quem defenda aplicação mais restrita do art. 146,

de modo que ele somente protegeria o contribuinte contra a mudança de entendimento a respeito de determinada matéria e naqueles casos em que há mais de um critério válido para se proceder ao lançamento. Para os que assim entendem, eventuais erros cometidos pelo fisco no lançamento não estariam protegidos pelo art. 146 e poderiam ser objeto de novo lançamento ou lançamento complementar, desde que respeitado o direito de defesa26.

Não vem ao caso entrar na celeuma neste momento, bastando

apontar que, independentemente da exata extensão que se deva dar ao art. 146, nas hipóteses em que ele for aplicável, não caberá inovação do lançamento, o que apenas reforça aquilo que vem sendo defendido neste trabalho.

É que o critério jurídico do lançamento, seja qual ele for, é parte

integrante da sua motivação e como tal não pode ser modificado posteriormente à sua formalização, nos termos do art. 146, confirmando tudo o que já foi exposto.

Vale também registrar que o art. 146 foi invocado pelo acórdão n.

101-97278, de 22.2.2000, da 1ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes, para fundamentar decisão que refutou a pretensão de inovação do lançamento no curso do processo. Confira-se: 25Vide referência e comentários de AMARO, Luciano da Silva às lições de Alberto Xavier e Rubens Gomes de Sousa, em seu “Direito Tributário Brasileiro”, Ed. Saraiva, 16ª Edição, páginas 377 a 382. 26 Vide comentários de LIMA, Marcos Vinícius Neder de e LOPEZ, Maria Teresa Martínez, em “Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado”, Ed. Dialética, 3ª Edição, p. 284/285.

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“LANÇAMENTO – MODIFICAÇÃO DOS CRITÉRIOS JURÍDICOS – VEDAÇÃO. O disposto no art. 146 do CTN veda à administração tributária introduzir modificações, benéficas ou não ao contribuinte, em lançamentos inteiros, perfeitos e acabados, em homenagem à certeza e segurança das relações jurídicas”.

Segundo essa decisão, o art. 146 teria como finalidade preservar a

certeza e a segurança das relações e impediria então que a autoridade julgadora modificasse o lançamento já perfeito e acabado. Parece ter acolhido a primeira linha acima descrita27.

Em suma, nosso ordenamento jurídico pertinente ao processo

administrativo não admite a mudança dos fundamentos do auto de infração, ou qualquer ajuste que implique alteração na sua motivação original.

Mas não é só. A análise das normas que regulam o processo administrativo fiscal,

notadamente aquelas que estabelecem as atribuições e competências das autoridades julgadoras, confirmam a conclusão acima.

Ocorre que a atividade do julgador administrativo, a despeito de

suas peculiaridades, é função pública que deve ser exercida dentro dos preceitos legalmente estabelecidos. Logo, o julgador deve atuar nos limites da competência que a lei lhe atribui.

Cabe então verificar o que a lei diz a respeito, tendo por ponto de

partida que a competência para lançar é privativa da autoridade fiscal, consoante o art. 142 do CTN..

Para contextualizar o estudo, deve-se registrar que, no passado, o

julgamento em primeira instância na esfera administrativa federal era realizado singularmente, por autoridades integrantes do mesmo órgão responsável pela

27De qualquer forma, no que tange à ponderação referente à modificação benéfica ao contribuinte, tida como vedada pelo acórdão transcrito, ela merece reflexão à luz da questão n. 5 e da finalidade última do processo administrativo fiscal.

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lavratura dos autos de infração. Em princípio (isto é, sem considerar o acima exposto quanto aos limites da lide), no passado, o julgador possuía competência para lançar.

Mas esse quadro foi alterado após a edição da Lei n. 8748, de

9.12.1993, que em o seu art. 2º previu a criação de “dezoito Delegacias da Receita Federal especializadas nas atividades concernentes ao julgamento de processos relativos a tributos e contribuições federais administrados pela Secretaria da Receita Federal, sendo de competência dos respectivos Delegados o julgamento, em primeira instância, daqueles processos”. (destaques nossos).

A Lei n. 8748 foi um avanço, pois criou, dentro da estrutura da então

Secretaria da Receita Federal, um novo órgão, a Delegacia da Receita Federal de Julgamento (DRJ), independente das demais Delegacias da Receita Federal e sem qualquer relação de subordinação aos demais órgãos de fiscalização, responsáveis pela lavratura dos autos de infração.

Essa alteração resultou em um salto considerável de qualidade nos

julgamentos em primeira instância, que passaram a ser proferidos por órgãos colegiados, embora não paritários, e deixaram de ser meras confirmações e repetições dos argumentos contidos nos autos de infração.

Pois bem. A partir da Lei n. 8748, as DRJ passaram a ter competência

exclusiva de julgar e, como tal, não possuem competência para proceder ao lançamento propriamente dito.

Coerentemente com isso, a mesma Lei n. 8748 adicionou o parágrafo

3º ao art. 18, que trata da realização de diligência, estabelecendo que “quando, em exames posteriores, diligências ou perícias, realizados no curso do processo, forem verificadas incorreções, omissões ou inexatidões de que resultem agravamento da exigência inicial, inovação ou alteração da fundamentação legal da exigência, será lavrado auto de infração ou emitida notificação de lançamento complementar, devolvendo-se, ao sujeito passivo, prazo para impugnação no concernente à matéria modificada”. (destacamos).

Repare-se que a lei determina que deve ser lavrado novo auto de

infração ou que se emitida notificação de lançamento complementar, o que não pode ser procedido pela autoridade julgadora, que não possui competência para tanto.

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Por sua vez, e respeitando as normas legais acima descritas, o Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal do Brasil, aprovado pela Portaria MF n. 125, de 4.3.200928, em seu art. 212, estabelece que a competência das Delegacias de Julgamento restringe-se ao julgamento dos processos a ela submetidos. Veja-se:

“Art. 212. Às Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento - DRJ, órgãos com jurisdição nacional, compete, especificamente, julgar, em primeira instância, processos administrativos fiscais: I - de determinação e exigência de créditos tributários, inclusive devidos a outras entidades e fundos, e de penalidades; II - relativos a exigência de direitos antidumping, compensatórios e de salvaguardas comerciais; e III - de manifestação de inconformidade do sujeito passivo contra apreciações das autoridades competentes relativos à restituição, compensação, ressarcimento, reembolso, imunidade, suspensão, isenção e à redução de alíquotas de tributos e contribuições.”

Como se vê, a competência das DRJ foi determinada de forma

taxativa nos itens I a III do art. 212, acima transcrito. Naquele dispositivo, está claro que a tais órgãos cabe apenas julgar, inexistindo qualquer regra estabelecendo competência às autoridades julgadoras para lançar, ou para aperfeiçoar o trabalho fiscal já concluído.

De igual maneira, em segunda instância administrativa, a

competência dos Conselhos de Contribuintes, e do atual CARF, sempre se limitou ao julgamento dos recursos29, inexistindo qualquer regra prevendo competência referente ao lançamento. 28 Mesmo os regimentos internos anteriores continham disposições semelhantes. 29 O Decreto n. 70235, com redação dada pela Lei n. 11941, de 27.5.2009, prevê que “o julgamento no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais far-se-á conforme dispuser o regimento interno”. E o Regimento Interno do CARF somente atribui aos julgadores competência para julgar, por exemplo, no art. 1º quando diz que tal órgão “tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil”. (detacamos)

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Se compete às DRJ e ao CARF apenas julgar, não cabe a tais órgãos

ajustar o lançamento a ponto de aperfeiçoá-lo, ou mesmo manter determinada exigência fiscal com base em fundamentos jurídicos diferentes daqueles utilizados pela fiscalização, pois isto equivaleria a lançar, o que não lhes compete.

E não se deve esquecer que os atos processuais praticados por

autoridade incompetente são nulos nos termos do art. 59, inciso I, do Decreto n. 7023530, o que impede que autoridades julgadoras extrapolem a sua competência legal. Vale ainda destacar que o já citado art. 10, do mesmo decreto, estabelece claramente que o auto de infração “será lavrado por servidor competente”.

A jurisprudência administrativa é torrencial no sentido de que não

cabe ao julgador refazer o lançamento, dada a falta de competência legal, como se depreende das seguintes precedentes escolhidos dentre tantos outros no mesmo sentido:

- acórdão n. 101-93621, de 20.9.2001, da 1ª Câmara do 1º

Conselho de Contribuintes:

“PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL – ALTERAÇÃO DO LANÇAMENTO EM JULGAMENTO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA: A competência atribuída às Delegacias da Receita Federal de Julgamento, nos termos do artigo 2º da Lei n. 8748/93, não contempla a função de lançamento tributário, nos termos do artigo 142 do C.T.N., de modo que ao alterar o lançamento impugnado sob outra fundamentação legal, dá-se, na realidade, um novo lançamento, cuja competência, no âmbito da Secretaria da Receita Federal, é dos Delegados da Receita Federal.”

- acórdão n. 108-05421, de 16.10.1998, da 8ª Câmara:

“(...) a alteração da fundamentação legal equivale a novo lançamento, o que não se inclui entre as competências da autoridade julgadora.”

30 “Art. 59. São nulos: I - os atos e termos lavrados por pessoa incompetente;”

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Essa também sempre foi a posição da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, conforme se verifica no acórdão n. CSRF/01-02922, de 8.5.2000, que assim julgou:

“descabe ao Conselho de Contribuintes, através de diligência, reabrir o processo de fiscalização para apuração de novos fatos que alterariam os fundamentos do lançamento e os limites da lide”;

Se não compete ao julgador refazer o lançamento, cabe-lhe apenas

analisar a validade jurídica do auto de infração pronto e acabado, tal como ele foi elaborado pela autoridade competente.

Assim, não pode o julgador determinar a modificação da acusação

fiscal, nem pode o julgador pretender convalidá-la com base em fundamentos legais não utilizados pelo fisco quando da lavratura do auto de infração, pois tais atividades equivaleriam a refazer o lançamento, o que não lhe compete.

Portanto, os únicos ajustes que podem ser feitos pela autoridade

julgadora são aqueles inerentes à função de decidir, como por exemplo, determinar retificação de erros materiais e equívocos de cálculo ou impor o cancelamento do auto de infração ou de parte dele.

A esta altura, cabe novamente destacar que a posição que

assumimos na resposta à presente questão não é contraditória com a resposta dada à questão n. 5.

Lá, por todos os fundamentos expostos, reconhecemos que o

julgador pode decidir com base em fundamentação jurídica não necessariamente suscitada pelo impugnante.

Já na resposta à presente questão, a inovação do fundamento do

lançamento, além de confirmar que antes dela o lançamento era desprovido da correta motivação (nulo, portanto), implica prejuízo aos direitos à ampla defesa e ao contraditório, que são direitos fundamentais que não podem ser tolhidos no Estado de Direito.

Enfim, não há contradição entre as respostas.

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Quanto à questão do erro na capitulação legal do auto de infração e

a possibilidade de ele ensejar nulidade do lançamento, deve-se levar em conta o quanto já foi dito em relação à motivação do ato administrativo no qual consiste o lançamento.

Tendo em vista o princípio da legalidade, que rege qualquer

atividade da Administração Pública, a capitulação legal de qualquer ato administrativo, logo, também do auto de infração, é parte fundamental da motivação do ato, sem a qual não se pode considerar verdadeiramente motivado o lançamento. Consequentemente, não pode o contribuinte exercer plenamente seu direito de defesa e ao contraditório.

Logo, o erro de capitulação torna desmotivado e, portanto, nulo o

auto de infração. Como já tido, não é à toa que nos termos do art. 10 do Decreto n.

70235, o auto de infração “conterá obrigatoriamente: (...) III – a descrição do fato; IV - a disposição legal infringida”. O mesmo quanto ao art. 11, o qual, ao tratar da notificação do autuado, impõe o dever de que nela conste a disposição legal infringida.

A regra contida nesses dispositivos visa garantir que o contribuinte

autuado tenha amplo conhecimento da infração que o fisco lhe imputou, bem como quanto ao dispositivo legal supostamente infringido, permitindo assim que o autuado exerça regularmente os direitos à ampla defesa e ao contraditório, constitucionalmente assegurados.

Também não é à toa que o art. 59, inciso II, do Decreto n. 70235,

reconhece como nulos os despachos e decisões “proferidos (...) com preterição do direito de defesa”.

Assim, a todo rigor, eventual erro na capitulação legal seria

suficiente para a decretação da nulidade do auto de infração eis que, sem a devida fundamentação, o contribuinte não pode exercer plenamente o direito de defesa.

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A jurisprudência já reconheceu a nulidade de autos de infração por erro na capitulação legal. Confira-se, em caráter meramente exemplificativo, o que entendeu a o acórdão n. 2402-01023, de 7.7.2010, da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara do CARF:

“ERRO NA CAPITULAÇÃO LEGAL DA MULTA APLICADA, NULIDADE, VÍCIO MATERIAL, É nulo o lançamento efetuado quando o fiscal autuante aplicar aos fatos multa com base em dispositivo legal que não se identifica com a infração cometida,”

Contudo, deve-se ter em mente que em geral a jurisprudência

administrativa somente declara a nulidade por erro de capitulação quando este dificulte ou impeça o contribuinte de compreender a acusação fiscal que lhe está sendo imputada, implicando assim prejuízo ao pleno exercício do direito de defesa. Por outro lado, quando o fisco comete eventual equívoco na capitulação da autuação, mas ainda assim descreve com clareza e precisão quais são as infrações cometidas, muitos acórdãos consideram que não há que se falar em nulidade.

Esse entendimento, contudo, deve ter limite nos erros

evidentemente formais facilmente perceptíveis dentro de uma fundamentação legal desenvolvida correta e coerentemente pelo autor do procedimento fiscal, e não quando este dá como fundamento legal dispositivo absolutamente inaplicável, ou contrário ao que alega, ou disposições gerais que requerem o complemento de normas especiais não arroladas no lançamento 31.

A não ser assim, o contribuinte não pode se defender, pois terá que

vasculhar o ordenamento jurídico total e imaginar quais regras poderiam ter sido utilizadas pelo fiscal, na verdade, portanto, fazendo o trabalho que a lei atribui a este.

31 Por exemplo, há autos de infração que glosam a dedutibilidade de um determinada despesa, mas alude apenas a disposições genéricas, como a que declara que o lucro real é o lucro líquido ajustado conforme as disposições da lei tributária e a que determina o acréscimo ao lucro líquido de valores que a lei fiscal declara indedutíveis.

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Igualmente, se não fosse assim, a exigência legal de descrição dos fatos já seria suficiente para validar o lançamento, sendo despicienda a outra exigência feita pela lei, de menção dos dispositivos infringidos.

Portanto, é preciso muito cuidado na consideração desta questão, e

seriedade no trabalho fiscal, com a rigorosa observância das prescrições da lei. Respostas: (1) O julgador não pode aperfeiçoar ou ajustar o

lançamento, sob pena de reconhecimento de que, originalmente, ele era desprovido da necessária motivação. Além disso, a mudança de motivação no curso do processo representa perturbação da ordem processual, em prejuízo ao direito de defesa, além de contrariar, eventualmente, o art. 146 do Código Tributário Nacional. Ademais, as normas legais que regulam a atividade dos julgadores administrativos não lhes atribuem competência para lançar, mas apenas para julgar. Portanto, os únicos ajustes que podem ser feitos pela autoridade julgadora são aqueles inerentes à função de decidir, isto é, determinar retificação de erros materiais e de cálculo ou o cancelamento do auto de infração, ou ainda parte dele. (2) Da mesma forma e pelos mesmos fundamentos, não pode o julgador manter a autuação com base em motivação não contemplada originalmente na autuação.