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Artigos São Paulo / NOVEMBRO 2018 1 Artigo publicado na Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT. Belo Horizonte, ano 16, n. 95, p. 151-184, set./out. 2018. Autor: Fabiana Carsoni Alves F. da Silva NEUTRALIDADE FISCAL DAS AVALIAÇÕES DE ATIVOS E PASSIVOS A VALOR JUSTO: SIMPLES INSTRUMENTO DE POLÍTICA FISCAL? Resumo: O artigo analisa se os dispositivos da Lei n. 12.973, de 13.5.2014, que estabelecem neutralidade fiscal das avaliações de ativos e passivos a valor justo, constituem instrumento de política fiscal, e não mero resultado da aplicação das normas de tributação da renda. O artigo demonstra que a subjetividade inerente às avaliações a valor justo tem o potencial de acarretar incertezas e manipulações, o que é incompatível com a segurança jurídica, a disponibilidade da renda e o princípio da realização da renda. Palavras-chave: valor justo – realização da renda – disponibilidade da renda – segurança jurídica – política fiscal. Sumário: 1 Colocação do tema – 2 A relação entre Direito Tributário e Contabilidade: evolução histórica no Brasil – 3 Avaliação de ativos e passivos a valor justo 4 Os pressupostos fundamentais da tributação da renda – 5 O valor justo e os pressupostos fundamentais da tributação da renda 6 Conclusões – Referências

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Artigo publicado na Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT. Belo Horizonte, ano 16, n. 95, p. 151-184, set./out. 2018.

Autor: Fabiana Carsoni Alves F. da Silva NEUTRALIDADE FISCAL DAS AVALIAÇÕES DE ATIVOS E PASSIVOS A VALOR JUSTO: SIMPLES INSTRUMENTO DE POLÍTICA FISCAL?

Resumo: O artigo analisa se os dispositivos da Lei n. 12.973, de 13.5.2014, que estabelecem neutralidade fiscal das avaliações de ativos e passivos a valor justo, constituem instrumento de política fiscal, e não mero resultado da aplicação das normas de tributação da renda. O artigo demonstra que a subjetividade inerente às avaliações a valor justo tem o potencial de acarretar incertezas e manipulações, o que é incompatível com a segurança jurídica, a disponibilidade da renda e o princípio da realização da renda. Palavras-chave: valor justo – realização da renda – disponibilidade da renda – segurança jurídica – política fiscal. Sumário: 1 Colocação do tema – 2 A relação entre Direito Tributário e Contabilidade: evolução histórica no Brasil – 3 Avaliação de ativos e passivos a valor justo – 4 Os pressupostos fundamentais da tributação da renda – 5 O valor justo e os pressupostos fundamentais da tributação da renda – 6 Conclusões – Referências

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1. Colocação do tema Os novos padrões e normas contábeis determinam a avaliação de

alguns ativos e passivos a seu valor justo, em substituição ao custo histórico. Por este critério, deixam-se de lado os valores praticados em transações perfeitas e acabadas, em troca de valores estimados e esperados em transações não concretizadas.

A Lei n. 12.973, de 13.5.2014, ao adaptar os novos padrões e normas

contábeis à legislação tributária, estabeleceu, como regra, a neutralidade fiscal das mensurações de ativos e passivos a valor justo.

O propósito do presente estudo é identificar se as normas que

conferem neutralidade fiscal a mensurações de ativos e passivos a valor justo constituem mecanismo de política fiscal, ou se derivam dos princípios e regras que orientam a tributação da renda.

Iniciaremos nosso estudo pela análise da relação entre Direito

Tributário e Contabilidade no Brasil. Posteriormente, investigaremos os critérios adotados pela Ciência Contábil para proceder a avaliações de ativos e passivos a valor justo, demonstrando, inclusive por testes empíricos, algumas falhas deste critério de mensuração. Em seguida, investigaremos a compatibilidade destas avaliações com o Direito Tributário. Com isto, estaremos aptos a responder à indagação que intitula o presente estudo.

2. A relação entre Direito Tributário e Contabilidade:

evolução histórica no Brasil A Contabilidade surgiu como mecanismo capaz de mensurar a

riqueza de certo indivíduo, prestando-se, nestas condições, a atender aos interesses de usuários internos das demonstrações financeiras.1 Mas, como o crescente interesse do fisco em tributar a renda, a escrituração mercantil acabou sendo guiada por normas fiscais, servindo, pois, para orientar a tributação. 1 Cf. PINTO, Alexandre Evaristo. “A avaliação a valor justo e a disponibilidade econômica da renda”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 6º volume. São Paulo: Dialética, 2015, p. 13-14.

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De fato, no Brasil, historicamente, a contabilidade sofreu forte

influência da legislação tributária, de forma que as mutações patrimoniais das sociedades, refletidas na contabilidade, atendiam, primordialmente, aos interesses do fisco, não obstante devessem servir, também, e principalmente, aos credores, investidores e acionistas (“stakeholders”). A contabilidade, neste contexto, constituía verdadeiro instrumento de tributação, e não um instrumento de informações para usuários externos das demonstrações financeiras.

A relação entre Contabilidade e Direito e, mais, a influência, quiçá

dominância, do segundo sobre a primeira foram retratadas por Fábio Konder Comparato em estudo divulgado em 1987. Neste estudo, o autor manifestou-se no sentido da total independência do Direito frente à Contabilidade. Mais do que advogar pela total independência, o autor defendeu que a Contabilidade seria subserviente ao Direito, ao afirmar que a normatividade da Contabilidade seria de segundo grau, pois, a seu ver, o contador não poderia, “de forma nenhuma, afastar a qualificação jurídica que resulta da própria lei, sob o arrogante pretexto de que as exigências da ciência contábil são independentes do ditado legislativo”.2

No mesmo estudo, analisando as orientações contábeis em matéria

de arrendamento mercantil, Fábio Konder Comparato criticou, com veemência, a utilização do chamado “princípio da prevalência da substância econômica sobre a forma”, ao afirmar que o contador não “tem legitimidade para julgar, segundo critérios próprios e diversos das regras de direito vigentes, sobre o que pode e o que não pode ser considerado a substância das operações a serem contabilizadas”.3 Segundo o autor, isto seria “arrogar-se um privilégio odioso inadmissível num Estado de Direito: pretender excluir sua atividade profissional do regime da legalidade”.

Em que pese fosse discutível, mesmo àquela época, a total

subserviência da Contabilidade ao Direito, as manifestações de Comparato 2 COMPARATO, Fábio Konder. “O irredentismo da ‘nova contabilidade’ e as operações de ‘leasing’”. Revista de Direito Mercantil, n. 68. São Paulo: RT, out./dez. 1987, p. 51. 3 COMPARATO, Fábio Konder. “O irredentismo da ‘nova contabilidade’ e as operações de ‘leasing’”. Revista de Direito Mercantil, n. 68. São Paulo: RT, out./dez. 1987, p. 56.

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acerca do tema são importantes, na medida em marcam um período em que a Contabilidade, no Brasil, tinha pouca ou nenhuma independência, sofrendo interferências da legislação tributária e também do fisco federal.

Com a edição da Lei n. 6.404, de 15.12.1976, em meio ao

aprimoramento do mercado de capitais brasileiro e do intercâmbio internacional, tentou-se modificar esse cenário. Realmente, a Lei n. 6.404 buscou separar a Contabilidade do Direito Tributário, estabelecendo conceitos, pressupostos e métodos de adoção obrigatória na escrituração mercantil, o que fica comprovado pelo art. 177, parágrafo 2º, em sua redação original, segundo o qual a sociedade deveria observar em registros auxiliares, sem modificação da escrituração mercantil e das demonstrações reguladas na referida lei, as disposições da lei tributária que prescrevessem métodos ou critérios contábeis diferentes.

Para atender ao disposto no art. 177, parágrafo 2º, da Lei n. 6.404,

foi editado o Decreto-lei n. 1.598, de 26.12.1977, o qual buscou adaptar a legislação do imposto de renda da pessoa jurídica (“IRPJ”) à nova contabilidade, estabelecendo ajustes positivos ou negativos no lucro líquido a serem feitos em livros auxiliares de apuração do lucro real (art. 8º, inciso I). Contudo, nesta tentativa de adaptação, a legislação tributária tornou a interferir na contabilidade, impondo que certos registros contábeis fossem efetuados em conformidade com as prescrições da legislação tributária, sob pena de sua inobservância pelo fisco.4

Mas, com a edição das Leis n. 11.638, de 28.12.2007, e 11.941, de

27.5.2009, tal interferência teve fim. A Contabilidade, agora, no Brasil, é uma ciência que se libertou das imposições do fisco ou da legislação tributária. Isto significa dizer que, no estágio atual, o balanço patrimonial tem condições de exprimir, com fidelidade e clareza, a situação patrimonial da empresa, como requer o art. 1188, “caput”, do Código Civil,5 permitindo, com isto, ao menos em tese, sua compreensão, comparação e, também, a tomada mais consciente de decisões. 4 É o caso, por exemplo, da depreciação de bens do ativo imobilizado, à qual faremos referência adiante. 5 “Art. 1.188. O balanço patrimonial deverá exprimir, com fidelidade e clareza, a situação real da empresa e, atendidas as peculiaridades desta, bem como as disposições das leis especiais, indicará, distintamente, o ativo e o passivo”.

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Assim, pode-se dizer que a relação entre Contabilidade e Direito

Tributário, no Brasil, sofreu a seguinte evolução.6 No regime anterior às Leis n. 11.638 e 11.941, o Brasil adotava um

modelo de dependência parcial entre uma e outra ciências. Por este modelo, partia-se do lucro líquido apurado em balanço contábil, fazendo-se os ajustes determinados pela legislação tributária. Apesar disto, durante o período em que vigorou aquele regime, havia grande interferência das normas fiscais sobre a contabilidade. Prova disto é a depreciação, cujos encargos somente eram dedutíveis para fins fiscais quando escriturados na contabilidade em conformidade com as normas editadas pela Receita Federal do Brasil (“RFB”). Via-se, assim, predominantemente, liderança do direito tributário.7

As Leis n. 11.638 e 11.941 representaram um marco histórico da

Contabilidade no Brasil, pois, com elas, tal ciência, verdadeiramente, distanciou-se do Direito Tributário. Para adaptar a tributação a essa nova realidade, a Lei n. 11.941 estabeleceu uma norma de “neutralidade tributária” das novas práticas ou normas contábeis (art. 16 da referida lei), mediante a instituição do chamado Regime Tributário de Transição (“RTT”).

A neutralidade fiscal do RTT seria plena, passando a existir um

modelo de balanço duplo, é dizer, balanços fiscal e contábil? A questão suscitou

6 Para outras considerações sobre essa evolução da legislação e, sobretudo, sobre a nova relação entre o Direito Tributário e a Contabilidade, vide: SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da. “Direito Tributário e Contabilidade: independência e intersecção. A convivência das duas Ciências”. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 132, São Paulo: Thomson Reuters, jan./fev. 2017, p. 211-238. 7 Victor Borges Polizelli apresentou, com esteio na classificação de Lamb, Nobes e Roberts, a seguinte classificação entre a relação do Direito Tributário e da Contabilidade: (i) desconexão (balanço duplo e sem qualquer conexão normativa entre ambas as ciências; (ii) identidade (balanço único e dependência total entre ambas as ciências); (iii) liderança da Contabilidade; (iv) liderança do Direito Tributário; e (v) dominância do Direito Tributário (POLIZELLI, Victor Borges. “Balanço comercial e balanço fiscal: relações entre o Direito Contábil e o Direito Fiscal e o modelo adotado pelo Brasil”. Revista Direito Tributário Atual, n. 24. São Paulo: IBDT e Dialética, 2010, p. 584-608). Para explicar as diferentes fases da relação entre a legislação tributária e a Contabilidade, adotaremos a referida classificação.

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controvérsias, tendo a PGFN, no Parecer n. 202, de 7.12.2013, ao tratar da isenção de dividendos (art. 10 da Lei n. 9.249), se manifestado no sentido da existência de um balanço duplo. Esta, a rigor, foi a orientação contida na Lei n. 12.973, ao autorizar, sob as condições estabelecidas em lei, a não cobrança de eventuais diferenças de tributo oriundas do pagamento de dividendo em montante superior ao lucro líquido apurado no “balanço fiscal” (art. 72 a 74).8

Contudo, a neutralidade tributária não teve o condão de afastar

efeitos fiscais de determinadas normas contábeis, como é o caso da isenção dos dividendos apurados em balanços elaborados conforme as novas práticas contábeis. Nesse sentido, Luís Eduardo Schoueri afirmou que, no período em que vigorou o RTT, a neutralidade fiscal não era absoluta, o que é comprovado pelo caso dos dividendos, os quais são “calculados a partir do patrimônio da sociedade, apurado em conformidade com as normas contábeis hoje vigentes. (...) A forma como os dividendos se apuram é matéria da legislação societária. Sobre os dividendos assim apurados aplica-se a legislação tributária”.9 Nessas condições, na vigência do RTT, nosso sistema seguiu sendo o de dependência parcial, mas sem a “liderança do direito tributário”, pois, como mencionado acima, a Contabilidade deixou de se submeter às imposições da legislação tributária, ou às interferências da RFB.

Por fim, com a edição da Lei n. 12.973, de 13.5.2014, e, pois, com o

fim do RTT, a despeito da revogação da regra de “neutralidade tributária”, o modelo adotado pelo Brasil continuou sendo o de dependência parcial. A Lei n. 12.973 criou normas de “neutralidade tributária” aplicáveis em situações específicas, por ela disciplinadas de forma expressa, além de ter estabelecido que os novos pronunciamentos contábeis que impliquem alterações de critérios contábeis e, também, alterações na apuração dos tributos, não terão efeitos fiscais até que disciplinados por lei (art. 58). Ou seja, na atualidade, cabe ao contribuinte utilizar o lucro líquido como ponto de partida para a apuração do 8 Nesse sentido, manifestou-se, também, Victor Polizelli (POLIZELLI, Victor Borges. “Balanço comercial e balanço fiscal: relações entre o Direito Contábil e o Direito Fiscal e o modelo adotado pelo Brasil”. Revista Direito Tributário Atual, n. 24. São Paulo: IBDT e Dialética, 2010, p. 584-608). 9 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Juros sobre Capital Próprio: Natureza Jurídica e Forma de Apuração diante da ‘Nova Contabilidade’”. In: LOPES, Alexsandro Broedel; MOSQUERA, Roberto Quiroga. Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e distanciamentos). 3º Volume. São Paulo: Dialética, 2012, p. 191.

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lucro real tributável pelo IRPJ, sendo-lhe permitido efetuar os ajustes estabelecidos na legislação tributária. No entanto, não há “liderança do direito tributário”, tampouco “liderança do direito contábil”.

Verificam-se tanto situações de independência como de intersecção

entre as duas ciências. A Contabilidade, neste novo modelo, como anotaram Alexsandro Broedel e Roberto Quiroga, deixou de ser acessória ao entendimento jurídico, passando a ser independente. Apesar disto, segundo os mesmos autores, na grande maioria dos casos, os tratamentos contábil e jurídico deverão coincidir.10

O modelo de dependência parcial, ou a falta de coincidência plena

entre a Contabilidade e o Direito Tributário, são explicados pelos propósitos distintos a que estas ciências se destinam: enquanto o lucro contábil é determinado com base em princípios, normas e regras próprias, tendo por destinatários os usuários das demonstrações financeiras, isto é, os investidores, os trabalhadores, os financiadores, os fornecedores e outros credores comerciais, os clientes, o Governo e seus departamentos e o público em geral; o lucro fiscal, por outro lado, guia-se pelos princípios e normas do direito fiscal e tem por destinatário, sobretudo, o Estado, mais precisamente a administração tributária.11

Na atualidade, portanto, a Contabilidade e o Direito Tributário

interagem e se relacionam, ora convergindo, ora divergindo, tudo em conformidade com os propósitos, as regras, os princípios e a normas que alicerçam cada uma destas ciências. O modelo de dependência parcial adotado no Brasil, nestas condições, é intermediário, pois não nega nem a autonomia da Contabilidade, nem a autonomia do Direito Tributário para qualificar os fatos econômicos, fazendo-o, cada ciência, segundo seus próprios princípios e valores.12

10 LOPES, Alexsandro Broedel; MOSQUERA, Roberto Quiroga. “Direito contábil – fundamentos conceituais, aspectos da experiência brasileira e implicações”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 79. 11 NABAIS, José Casalta. Direito Fiscal. 8ª edição. Coimbra: Almedina, 2015, p. 521-522. 12 FONSECA, Fernando Daniel de Moura. Normas tributárias e a convergência das regras contábeis internacionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 64-65.

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Assentadas essas premissas históricas e introdutórias, vejamos a relação entre as normas contábeis que disciplinam o valor justo e as normas que autorizam a tributação da renda e dos proventos de qualquer natureza pelo imposto de renda.

3. Avaliação de ativos e passivos a valor justo 3.a Histórico, conceituação e mensuração O processo contábil é caracterizado por três fases, a saber: (a)

reconhecimento, na qual é feita a classificação da ação de natureza econômica, isto é, a definição da natureza do item estudado; (b) mensuração, na qual a ação de natureza econômica tem sua base de mensuração definida (usa-se, por exemplo, o custo histórico ou o valor justo); e (c) evidenciação, na qual é feita a demonstração do processo de reconhecimento e mensuração aos usuários externos das demonstrações financeiras.13

No Brasil, até as mudanças implementadas na Lei n. 6.404 pelas Leis

n. 11.638 e 11.941, a etapa de mensuração estava calcada, como regra, nos princípios do custo histórico e da realização da renda.

O princípio do custo histórico, baseado em uma perspectiva estática,

requer o registro de ativos pelo seu valor original (histórico). Este valor pode ser ajustado, por exemplo, mediante depreciação ou amortização. Pelo princípio da realização, o reconhecimento da receita subordina-se a quatro requisitos, quais sejam: (i) preço objetivamente definido; (ii) completo desenvolvimento das fases relevantes e necessárias para que a entidade atinja o mérito da receita; (iii) aquisição do dinheiro ou da quase certeza de recebê-lo; e (iv) conhecimento dos valores das despesas necessárias à obtenção de tal receita para sua concomitante contabilização.14

13 LOPES, Alexsandro Broedel; MARTINS, Eliseu. Teoria da Contabilidade: uma nova abordagem. São Paulo: Atlas, 2005, p. 52. 14 IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu. “Uma investigação e uma proposição sobre o conceito e o uso do valor justo”. Revista Contabilidade e Finanças, Edição 30 Anos de Doutorado. São Paulo: USP, jun. 2007, p. 15-16.

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As restrições impostas pelo uso dos princípios do custo histórico e da realização traziam consequências indesejadas aos usuários das demonstrações financeiras, em virtude de não retratarem as efetivas mutações no valor de mercado de ativos e passivos. Outro problema vivenciado no Brasil até a adoção das práticas contábeis, como anotaram Sérgio de Iudícibus e Eliseu Martins, era a falta de coerência na metodologia de avaliação de ativos e passivos. Isto porque alguns elementos do ativo ou do passivo deveriam ser trazidos a valor de mercado de forma obrigatória (certos instrumentos financeiros ou ativos biológicos), enquanto, para outros, existia mera faculdade (reavaliação de ativos imobilizados, autorizada pelo art. 182, parágrafo 3º, da Lei n. 6.404, em sua redação original, antes da modificação nele introduzida pela Lei n. 11.638). Pior: no tocante às reavaliações optativas, enquanto algumas empresas as faziam a cada quatro anos, outras as faziam conforme sua conveniência, escolhendo para este fim, em muitos casos, somente parte dos itens do imobilizado.15

Daí os reclamos para a mudança do regime de avaliação de ativos e

passivos. A utilização do valor justo, em substituição ao custo histórico, parte da premissa de que a comparabilidade e a relevância das informações para o usuário são aumentadas, aproximando os registros contábeis da percepção real do mercado a respeito da posição patrimonial e da performance das instituições.16

A avaliação a valor justo consiste na mensuração de ativos e

passivos feita mediante estimativa do preço que se obteria em transação de mercado, ou em transação sem qualquer favorecimento às partes.17 Na ausência 15 IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu. “Uma investigação e uma proposição sobre o conceito e o uso do valor justo”. Revista Contabilidade e Finanças, Edição 30 Anos de Doutorado. São Paulo: USP, jun.2007, p. 15-16. 16 MOURA, Eduardo Gonçalves de; DANTAS, José Alves. “Nível de confiabilidade do valor justo dos instrumentos financeiros nas instituições bancárias brasileiras”. Revista Ambiente Contábil, v. 7, n. 2. Natal: UFRN, jul./ dez. 2015, p. 173. 17 Por qual razão não se diz, apenas, “valor de mercado”, ao invés de “valor justo”? É que nem todo elemento patrimonial possui valor de mercado. Justamente por isto, modelos matemáticos e matriciais extremamente complexos têm sido concebidos com a finalidade de permitir o cálculo do valor justo (Cf.: IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu. “Uma investigação e uma proposição sobre o conceito e o uso do valor justo”. Revista Contabilidade e Finanças, Edição 30 Anos de Doutorado. São Paulo: USP, jun.2007, p. 11).

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de mercado em que se transacione o ativo ou passivo mensurado, o que se têm é apenas um “proxy” de valor justo.18 Trata-se, como se nota, de uma presunção, ou estimativa, cuja evidenciação não depende da efetiva realização dos elementos patrimoniais,19 isto é, não depende de uma troca efetiva no mercado.20

Na Lei n. 6.404, com as alterações promovidas pelas Leis n. 11.638 e

11.941, encontram-se as seguintes diretrizes sobre o uso, a qualificação e o tratamento do valor justo:

– considera-se valor justo: a) das matérias-primas e dos bens

em almoxarifado, o preço pelo qual possam ser repostos, mediante compra no mercado; b) dos bens ou direitos destinados à venda, o preço líquido de realização mediante venda no mercado, deduzidos os impostos e demais despesas necessárias para a venda, e a margem de lucro; c) dos investimentos, o valor líquido pelo qual possam ser alienados a terceiros; d) dos instrumentos financeiros, o valor que pode se obter em um mercado ativo, decorrente de transação não

18 FLORES, Eduardo; BRAUNBECK, Guillermo Oscar. “What is better: to be roughly right or exactly wrong? The role of quantitative methods in financial accounting”. International Journal of Multivariate Data Analysis, v. 1, n. 2, 2017, p. 166. 19 MARTINS, Vinicius Gomes et al. “Mensuração de Ativos Financeiros a Valor Justo: Análise da Relevância da Informação e da Confiabilidade da Mensuração na Perspectiva do Mercado Brasileiro de Capitais”. In: 13º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade, XIII, 2013. São Paulo: USP, 2013. 20 Como a avaliação a valor justo pode provocar aumentos patrimoniais sem que a receita ou a renda estejam realizadas, antes mesmo das Leis n. 11638 e 11941, foram criadas contas no patrimônio líquido utilizadas para o registro dessas mutações, sem trânsito por resultado até sua realização. Realmente, a Lei n. 6404 contempla a figura dos “lucros não realizados”, no patrimônio líquido, utilizada como contrapartida dos ajustes de ativos e passivos a seus respectivos valores justos, somente ocorrendo trânsito pelo resultado quando de sua realização (cf. IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu. “Uma investigação e uma proposição sobre o conceito e o uso do valor justo”. Revista Contabilidade e Finanças, Edição 30 Anos de Doutorado. São Paulo: USP, jun.2007, p. 16). Contudo, na atualidade, muitas avaliações a valor justo são contabilizadas diretamente no resultado, e quando se apura lucro no período, formado por resultados destas avaliações, é comum que se delibere sua distribuição, não obstante a inexistência de realização.

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compulsória realizada entre partes independentes; e, na ausência de um mercado ativo para um determinado instrumento financeiro: (i) o valor que se pode obter em um mercado ativo com a negociação de outro instrumento financeiro de natureza, prazo e risco similares; (ii) o valor presente líquido dos fluxos de caixa futuros para instrumentos financeiros de natureza, prazo e risco similares; ou (iii) o valor obtido por meio de modelos matemático-estatísticos de precificação de instrumentos financeiros (art. 183, parágrafo 1º);

– as aplicações em instrumentos financeiros, inclusive

derivativos, e em direitos e títulos de créditos, classificados no ativo circulante ou no realizável a longo prazo, devem ser avaliadas pelo seu valor justo, quando se tratar de aplicações destinadas à negociação ou disponíveis para venda (art. 183, inciso I, “a”);

– as contrapartidas de aumentos ou diminuições de valor

atribuídos a elementos do ativo e do passivo, em decorrência da sua avaliação a valor justo devem ser classificadas como ajustes de avaliação patrimonial, no patrimônio líquido, enquanto não computadas no resultado do exercício em obediência ao regime de competência, nos casos previstos na Lei n. 6404 ou em normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (art. 182, parágrafo 3º).

São diversos os pronunciamentos do Comitê de Pronunciamentos

Contábeis21 que determinam o uso e disciplinam a forma de contabilização do

21 O Comitê de Pronunciamentos Contábeis foi criado pela Resolução CFC n. 1055, de 7.10.2005, com o objetivo de “estudo, o preparo e a emissão de Pronunciamentos Técnicos sobre procedimentos de Contabilidade e a divulgação de informações dessa natureza, para permitir a emissão de normas pela entidade reguladora brasileira, visando à centralização e uniformização do seu processo de produção, levando sempre em conta a convergência da Contabilidade Brasileira aos padrões internacionais”. A autonomia do CPC para emitir normas contábeis, inclusive normas aplicáveis às companhias abertas, decorre do art. 10-A da Lei n. 6385, de 1976, a qual autoriza a

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valor justo. São exemplos disto: (i) o CPC 29 determina a mensuração a valor justo de ativos biológicos (tanto no reconhecimento inicial, como ao final de cada período) e de produtos agrícolas colhidos de ativos biológicos (no momento da colheita); (ii) o CPC 38 determina a mensuração a valor justo de ativos e passivos financeiros classificados como mantidos para negociação, devendo a contrapartida ser lançada no resultado no período, e não em patrimônio líquido (conta de ajustes de avaliação patrimonial), como estabelece o art. 182, parágrafo 3º, da Lei n. 6404; (iii) o CPC 28 determina que a entidade pode, a seu critério, mensurar propriedades para investimento a valor justo, contabilizando sua contrapartida no resultado do exercício, e não em patrimônio líquido (conta de ajustes de avaliação patrimonial).

Esse não é o espaço para analisarmos se os pronunciamentos

contábeis cumprem ou extrapolam os limites dados pela Lei n. 6.404, com as alterações das Leis n. 11.638 e 11.941, quanto ao uso das avaliações a valor justo e seu reconhecimento contábil. Conquanto não faltem manifestações de profissionais das áreas contábil e jurídica22 questionando a validade de algumas CVM e o Banco Central a celebrarem convênio com entidade da classe contábil com esse propósito. Cabe à CVM e ao Banco Central emitirem atos normativos encampando, ou não, os pronunciamentos do CPC. Para as companhias fechadas ou sociedades de grande porte, aplicam-se as normas expedidas pelo CFC, nos termos do art. 177, parágrafo 6º, da Lei n. 6404 e do art. 3º da Lei n. 11.638 (Sobre o tema, vide: LOPES, Alexsandro Broedel; MOSQUERA, Roberto Quiroga. “Direito contábil – Fundamentos conceituais, aspectos da experiência brasileira e implicações”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 63-68). 22 Eliseu Martins, por exemplo, critica o uso do valor justo para ativos biológicos destinados a mero uso, e não a venda (MARTINS, Eliseu. “Ensaio sobre a evolução do uso e das características do valor justo”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 145). Alexandre Evaristo Pinto também denunciou o exagero de certas normas contábeis sobre o valor justo (PINTO, Alexandre Evaristo. “A avaliação a valor justo e a disponibilidade econômica da renda”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 6º volume. São Paulo: Dialética, 2015, p. 31). João Francisco Bianco, por sua vez, constatou que: “No que diz respeito aos elementos do passivo, não há previsão na Lei n. 6.404 de avaliação a valor justo. Estes deverão ser avaliados sempre pelo seu valor atualizado até a data do balanço. (...) A despeito disso, o Pronunciamento Técnico CPC 46, emitido pelo Comitê de

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normas do CPC, para os fins deste estudo, cabe-nos apenas analisar como os pronunciamentos contábeis conceituam e como mensuram o valor justo. Para isto, existe um pronunciamento contábil específico ao qual nos ateremos. Trata-se do Pronunciamento CPC 46, cujo propósito consiste, em linhas gerais, em definir valor justo e estabelecer a forma de sua mensuração e divulgação.23 Investiguemos suas disposições.

O item 9 do CPC 46 define valor justo como “o preço que seria

recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração”.

A mensuração do valor justo leva em consideração certas

características do ativo ou passivo, dentre elas: (a) a condição e a localização do ativo; e (b) restrições, se houver, para a venda ou o uso do ativo (item 11 do CPC 46). Também para efeito de mensuração do valor justo, presume-se que o ativo ou o passivo seja trocado em uma transação não forçada entre participantes do mercado para a venda do ativo ou a transferência do passivo na data de mensuração nas condições atuais de mercado (item 15 do CPC 46). Para isto, presume-se que a transação para a venda do ativo ou transferência do passivo ocorre: (a) no mercado principal para o ativo ou passivo, isto é, no mercado com o maior volume e nível de atividade para o ativo ou passivo; ou (b) na ausência de mercado principal, no mercado mais vantajoso para o ativo ou passivo, é dizer, no mercado que maximiza o valor que seria recebido para vender o ativo ou que minimiza o valor que seria pago para transferir o passivo, após levar em consideração os custos de transação e os custos de transporte.

Pronunciamentos Contábeis, admite a possibilidade de elementos do passivo serem avaliados a valor justo” (BIANCO, João Francisco. “O conceito de valor justo e seus reflexos tributários”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 5º volume. São Paulo: Dialética, 2014, p. 162). 23 COMITÊ DE PRONUNCIAMENTOS CONTÁBEIS. Pronunciamento Técnico CPC 46: Mensuração do Valor Justo. Brasília: Comitê de Pronunciamentos Contábeis. Disponível em: <http://static.cpc.mediagroup. com.br/Documentos/395_CPC_46_rev%2006.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2017.

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Segundo o item 20 do CPC, embora a entidade deva ser capaz de acessar o mercado (principal ou mais vantajoso), ela não precisa ser capaz de vender o ativo ou de transferir o passivo na data de mensuração para que possa definir o valor justo com base no preço desse mercado. Isto porque a avaliação a valor justo é estimada, presumida, e não realizada em troca efetivamente verificada no mercado. Outrossim, ainda que não haja mercado observável para o fornecimento de informações de preços em relação à venda de um ativo ou à transferência de um passivo na data de mensuração, na definição do valor justo, deve-se presumir que uma transação ocorra naquela data, considerada do ponto de vista de um participante do mercado que detenha o ativo ou deva o passivo. Essa transação presumida estabelece uma base para a estimativa do preço para a venda do ativo ou para a transferência do passivo (item 21 do CPC).

As descrições feitas até aqui, todas elas baseadas nas orientações do

CPC 46, revelam que as avaliações a valor justo, invariavelmente, envolvem estimativas e subjetivismo.24 No tocante à segunda característica ora apontada, pode-se dizer que há diferentes graus de subjetividade. E esta gradação pode pôr em risco a fidedignidade das informações prestadas aos “stakeholders”. A confiabilidade da informação é o atributo que garante aos usuários uma mensagem livre de erro e de vieses e que representa com fidedignidade o que se pretende informar.25 Daí sua importância para os retratos que a contabilidade quer exprimir nas demonstrações financeiras.

Com o intuito de aumentar a confiabilidade e consistência do

processo de mensuração e conseguinte divulgação, o CPC 46 determina que se utilize a chamada “hierarquia do valor justo”, pela qual o valor justo é divulgado, conforme o caso, de acordo com três diferentes níveis de confiabilidade, a saber:

24 Dentre as três principais novidades introduzidas pelas novas normas e padrões contábeis, situa-se o chamado “subjetivismo responsável”, ao lado da primazia da essência econômica sobre a forma e da visão prospectiva. Sobre o tema, vide: SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da. “Direito Tributário e Contabilidade: independência e intersecção. A convivência das duas Ciências”. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 132, São Paulo: Thomson Reuters, jan./fev. 2017, p. 211-238. 25 LAUX, Christian; LEUZ, Christian. “Did Fair-Value Accounting Contribute to the Financial Crisis?” Journal of Economic Perspetives, v. 24, n. 1, 2010, p. 93-118. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=1575374>. Acesso em: 15 nov. 2017.

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Nível 1; Nível 2 e Nível 3, sendo que, quanto maior o nível de hierarquia, menor é o grau de confiança.26 Vejamos no que consiste cada um destes níveis.

As informações de “Nível 1” são aquelas que apuram preços cotados

– e não ajustados – em mercados ativos para ativos ou passivos idênticos a que a entidade possa ter acesso na data de mensuração. Esta métrica de avaliação oferece a evidência mais confiável do valor justo (item 77 do CPC 46).

De acordo com o item 78 do CPC 46, uma informação de Nível 1 está

disponível para muitos ativos financeiros e passivos financeiros, alguns dos quais podem ser trocados em múltiplos mercados ativos (por exemplo, em diferentes bolsas). Portanto, a ênfase no Nível 1 está em determinar ambas as opções: (a)o mercado principal para o ativo ou passivo ou, na ausência de um mercado principal, o mercado mais vantajoso para o ativo ou passivo; e (b) se a entidade pode realizar uma transação com o ativo ou passivo pelo preço nesse mercado na data de mensuração.

A informação chamada de Nível 1 é aquela que revela maior

fidedignidade. Contudo, mesmo esta avaliação não está indene a subjetivismo e, também, a distorções. Imagine-se, por exemplo, uma pessoa jurídica que transacione uma “commodity” listada em diversas bolsas de valores e de mercadorias, sejam locais, sejam internacionais. Imagine-se também que essa mesma pessoa jurídica, no dia a dia de suas atividades, transacione suas “commodities” em diferentes localidades, todas elas com suas próprias bolsas de valores e de mercadorias e, de conseguinte, com preços díspares da mesma “commodity”. Como escolher o mercado ativo, especialmente se as transações da pessoa jurídica para essa ou para aquela localidade não forem constantes, regulares, isto é, se não for possível estabelecer uma relação porcentual segura de vendas para esse ou para aquele mercado ativo? Mesmo que uma situação desta natureza não seja suficiente para retirar a confiabilidade da avaliação a valor justo da “commodity”, certamente ela expõe que o valor justo, ainda que de Nível 1, é estimado, e nunca certo, além de envolver julgamentos subjetivos, de

26 MOURA, Eduardo Gonçalves de; DANTAS, José Alves. “Nível de confiabilidade do valor justo dos instrumentos financeiros nas instituições bancárias brasileiras”. Revista Ambiente Contábil, v. 7, n. 2. Natal: UFRN, jul./dez. 2015, p. 173.

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forma que sua mensuração pode levar a valores incompatíveis com o preço efetivamente praticado na transação.

Outra hipótese em que a informação de Nível 1 pode acarretar

distorções é aquela em que ações avaliadas a valor justo, embora cotadas em bolsas, possuem baixíssima liquidez. A falta de liquidez não só dificulta a venda da ação, como também sua precificação, a qual fica sujeita a oscilações significativas – e não representativas de verdadeiro valor de mercado em uma transação não forçada – toda vez que ocorrem grandes transações com estes papéis no mercado bolsístico.

Como se vê, muito embora as avaliações de Nível 1 sejam

consideradas mais confiáveis, ainda assim, é natural que elas retratem informações não condizentes com as transações efetivamente praticadas e concluídas pela pessoa jurídica. E essa discrepância pode ser em menor ou menor grau, a depender das circunstâncias de cada caso. Isto ocorre porque, como dito, toda e qualquer avaliação a valor justo é estimada, refletindo expectativas sobre o futuro, e não fatos concretos e realizados.

Por sua vez, as informações de Nível 2 são aquelas observáveis para

o ativo ou passivo, quando não for possível a utilização dos critérios do Nível 1. Algumas calibrações nos preços de ativos e passivos são necessárias neste nível, como ajustes de quantidade, efeitos geográficos em custos logísticos e certas características dos produtos.27 Com efeito, as informações de Nível 2, diferentemente daquelas de Nível 1, são passíveis de ajustes. Trata-se de avaliação menos confiável, se comparada à anterior, por envolver maior subjetivismo, casuísmo e ajustes, mas que, para o CPC, não afeta a fidedignidade da informação.

São exemplos de informações de Nível 2: (a) preços cotados para

ativos ou passivos similares em mercados ativos; (b) preços cotados para ativos ou passivos idênticos ou similares em mercados que não sejam ativos; (c)

27 FLORES, Eduardo; BRAUNBECK, Guillermo Oscar. “What is better: to be roughly right or exactly wrong? The role of quantitative methods in financial accounting”. International Journal of Multivariate Data Analysis, v. 1, n. 2, 2017, p. 170.

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informações, exceto preços cotados, que sejam observáveis para o ativo ou passivo, como, por exemplo: (i) taxas de juros e curvas de rendimento observáveis em intervalos comumente cotados; (ii) volatilidades implícitas; e (iii) “spreads” de crédito; e (d) informações corroboradas pelo mercado (item 82 do CPC 46).

As informações de Nível 3 são os chamados “dados não observáveis”

para o ativo ou passivo. Deve-se utilizar esta avaliação quando dados observáveis relevantes não estejam disponíveis, isto é, quando houver pouca ou nenhuma atividade de mercado para o ativo ou passivo na data de mensuração. Os dados não observáveis refletem as premissas que os participantes do mercado utilizariam ao precificar o ativo ou o passivo. A entidade deve desenvolver dados não observáveis utilizando as melhores informações disponíveis nas circunstâncias. Ao desenvolver dados não observáveis, a entidade pode começar com seus próprios dados, mas deve ajustar esses dados se informações disponíveis indicarem que outros participantes do mercado utilizariam dados diferentes ou se houver algo específico para a entidade que não estiver disponível para outros participantes do mercado (por exemplo, uma sinergia específica da entidade). De acordo com o CPC 46, dados não observáveis desenvolvidos da forma descrita atingem o objetivo de mensuração do valor justo (itens 87 e 89 do CPC 46). Como é fácil perceber, o chamado Nível 3 é o critério de mensuração mais subjetivo.28

O modelo de valor justo, como se vê, afasta-se do princípio da

realização, fincando-se em critérios estimados, subjetivos e incertos. A subjetividade e a incerteza, por serem inerentes a esta metodologia, podem produzir efeitos danosos, especialmente se sua adoção for irresponsável.

28 É interessante notar que, havendo um grande número de situações em que as condições típicas de um mercado ativo não são verificáveis, ou não existem, como transações envolvendo intangíveis, desenvolveu-se uma área de estudos na qual há interseção entre economia, finanças, contabilidade e estatísticas, denominada “valuation”, utilizada na busca de evidências que permitam a verificação do valor justo de ativos e passivos desta natureza (cf. FLORES, Eduardo; BRAUNBECK, Guillermo Oscar. “What is better: to be roughly right or exactly wrong? The role of quantitative methods in financial accounting”. International Journal of Multivariate Data Analysis, v. 1, n. 2, 2017, p. 166).

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3.b. As experiências brasileira e internacional Conforme mencionado no tópico anterior, o uso dos princípios do

custo histórico e da realização traziam consequências indesejadas aos usuários das demonstrações, em virtude de não retratarem as efetivas mutações no valor de mercado de ativos e passivos. Neste contexto, o valor justo aparece como uma importante ferramenta destinada a melhor dimensionar a situação patrimonial das empresas e, assim, prover informações mais fidedignas aos “stakeholders” de modo a auxiliá-los no processo de tomada de decisões.

Como afirma Nelson Carvalho, “O principal papel – na verdade o

mais nobre objetivo – das demonstrações financeiras no mundo corporativo (...) é informar sobre o futuro esperado à luz do passado realizado”.29 O autor prossegue dizendo que “só se tomam decisões econômicas sobre o futuro; para este fim, o passado é dado, concluído, e sobre ele podem caber interpretações, mas jamais interpretações que advenham de análise de alternativas visando resultados distintos dos que os já alcançados”.30

O olhar dos usuários da contabilidade é preditivo, ou seja, recai

sobre o futuro, tendo em vista que, para a tomada de suas decisões, estes usuários fazem análises de risco, investigam fluxos de caixa esperados, examinam a capacidade de geração de lucros, etc. Por isto é que, para eles, a demonstração financeira que apenas registra informações históricas, e que porventura contém superavaliações de passivos ou subavaliações de ativos, não fornece informações úteis, fidedignas e, pois, necessárias e suficientes para seu processo decisório.31

29 CARVALHO, Nelson. “Essência x Forma na contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 374. 30 CARVALHO, Nelson. “Essência x Forma na contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 372. 31 Cf. SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da. “Direito Tributário e Contabilidade: independência e intersecção. A convivência das duas Ciências”. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 132. São Paulo: Thomson Reuters, jan./fev. 2017, p. 222.

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Contudo, como a avaliação de passivos e ativos requer que se façam projeções e valorações sobre o futuro, naturalmente, verifica-se perda de objetividade frente a um conceito puramente estático, ou baseado no custo histórico.32 E o uso da metodologia do valor justo não implica, apenas, a perda de objetividade. A mensuração a valor justo trouxe – e ainda traz – uma série de problemas, tanto pelo subjetivismo e incerteza que carrega, como pelas manipulações e uso indevido que viabiliza.

Veja-se a encruzilhada em que a Contabilidade se colocou: o

princípio do custo histórico oferece pouco espaço para manipulação, mas seu uso irrestrito é criticado por não prover informações de caráter relevante. Já o valor justo apresenta avaliações que permitem ao “stakeholder” melhor compreender a situação patrimonial da empresa. No entanto, nas avaliações a valor justo, há grande maleabilidade para manipulações, o que se apresenta em maior ou menor escala, conforme a chamada hierarquia de valor analisada anteriormente. De fato, enquanto as avaliações de Nível 1 abrem pouco espaço para manipulação e, geralmente, fornecem informações confiáveis, as avaliações de Nível 2 permitem certa dose de discricionariedade, dose essa sensivelmente ampliada nas avaliações de Nível 3.33

Como a expansão do uso do valor justo está levando à atribuição de

valor a muitos ativos e passivos sem mercado ativo, acaba-se utilizando técnicas que estão sujeitas a significativos erros e manipulações.34 Com efeito, à vista da subjetividade e da incerteza inerentes às avaliações a valor justo, notadamente àquelas classificadas nos Níveis 2 e 3, problemas atrelados a seu uso vêm, sistematicamente, sendo registrados, inclusive em escândalos financeiros. 32 PÉREZ, Juan José Zornoza; MORENO, Andrés Baéz. “Modelos comparados de relación entre normas contables y normas fiscales em la imposición sobre el beneficio de las empresas”. In: RODRÍGUEZ, Julio Roberto Piza; PÉREZ, Pedro Enrique Sarmiento. El Impuesto sobre la Renta y Complementarios – Consideraciones Teóricas y Prácticas. 2ª edição. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, p. 468. 33 LAUX, Christian; LEUZ, Christian. “Did Fair-Value Accounting Contribute to the Financial Crisis?” Journal of Economic Perspetives, v. 24, n. 1, 2010, p. 93-118. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=1575374>. Acesso em: 15 nov. 2017. 34 MARTINS, Eliseu. “Ensaio sobre a evolução do uso e das características do valor justo”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 144.

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Um caso emblemático, envolvendo manipulações decorrentes do

mau uso do valor justo, que marcou o noticiário internacional, é o da empresa Enron. A Enron prometeu a seus investidores que seus ganhos cresceriam 15% (quinze por cento) ao ano. Este objetivo foi alcançado mediante manipulações na avaliação de ativos a valor justo de Nível 3. O encorajamento para manipular e, pois, para inflar os valores de projetos e negócios deu-se não só para atender às promessas feitas aos investidores, mas também para assegurar a executivos da empresa bônus e opções de compra de ações, lastreados em uma porcentagem do valor justo de ativos. O oportunismo e a desonestidade nas avaliações a valor justo acabaram criando estimativas irreais, provendo informações enganosas a investidores e outros usuários das demonstrações financeiras e, afinal, ocasionando o colapso da Enron.35

O caso Enron, embora extremo, bem ilustra que as avaliações a valor

justo permitem o gerenciamento de resultados e a manipulação das informações contábeis, especialmente nas mensurações classificadas no Nível 3, na contramão do propósito da Ciência Contábil de retratar, da forma a mais fidedigna possível, a situação da empresa para que os usuários das demonstrações financeiras possam usá-la, interpretá-la, compará-la e, assim, tomarem suas decisões.

As discussões em torno do uso inadequado das avaliações a valor

justo permeou, também, a crise financeira de 2008. Muito embora as instituições financeiras norte-americanas criticassem a metodologia de valor justo, na medida em que o mercado de ativos nem sempre fornece dados precisos a serem retratados contabilmente,36 durante a crise financeira, a SEC norte-americana 35 Tudo isso foi relatado e explicado em estudo específico sobre a matéria: BENSTON, George J. Fair-value accounting: “Fair-value accounting: A cautionary tale from Enron”. Journal of Accounting and Public Policy, v. 25, n. 4, 2006, p. 465-484. 36 O que se justifica, para os bancos, em razão de duas importantes limitações: (i) subjetividade na estimativa de valor; e (ii) volatilidade do valor de ativos em curto prazo devido a variáveis macroeconômicas (cf. MENDES, Carlos Jorge Fontaínhas; FREIRE, Fátima de Souza. A governança corporativa e manipulação da informação contábil: mensuração a valor justo nos bancos comerciais. In: Revista Contemporânea de Contabilidade, v. 11, n. 23. Florianópolis: UFSC, maio/ago. 2014, p. 59-60. Disponível em: <http://dx.doi. org/10.5007/2175-8069.2014v11n23p53>. Acesso em: 19 nov. 2017).

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(“Securities and Exchange Commission”) incentivou o uso do valor justo, exigindo que as instituições financeiras explicassem e demonstrassem o critério utilizado em sua apuração. à época, grupos de proteção de investidores manifestaram preocupação de que os registros pudessem ser feitos de forma excessiva e inadequadamente otimista, induzindo os investidores em erro. Por outro lado, os defensores dessas divulgações insistiam que os benefícios dessas informações superariam os riscos de eventuais abusos.37

Apesar de o tema das manipulações do valor justo terem

circundado, também, a crise financeira eclodida nos Estados Unidos em 2008, há testes empíricos demonstrando haver poucas razões para acreditar que este fator foi realmente importante para os problemas dos bancos norte-americanos àquela época, dado que os valores justos desempenham papel limitado nas demonstrações de resultados dos bancos, exceto daqueles com grandes volumes de vendas.38 Seja como for, é interessante notar que, também na crise de 2008, a temática da confiabilidade da mensuração a valor justo tornou a ser colocada em debate.

No Brasil, há testes empíricos relacionados ao uso da mensuração a

valor justo, nos quais foram examinadas a confiabilidade e relevância das informações oriundas deste critério. Alguns estudos, embora não atestem manipulações, expõem o subjetivismo empregado em parte das avaliações, especialmente pela adoção, em maior ou menor medida, dos Níveis 2 e 3 na hierarquia de valor. No entanto, em geral, os estudos não negam a relevância das informações retratadas pelas empresas ao mercado. Veja-se.

37 GRIFFIN, Jeremy Brian. “The effects of uncertainty and disclosure on audit’s fair value materiality decisions”. Journal of Accounting Research, Volume 52, Issue 5. Chicago: The Accounting Research Center at the University of Chicago Booth School of Business, December 2014, p. 1174. Disponível em: <DOI: 10.1111/1475-679X.12059>. Acesso em: 20 nov. 2017. 38 LAUX, Christian; LEUZ, Christian. “Did Fair-Value Accounting Contribute to the Financial Crisis?” Journal of Economic Perspetives, v. 24, n. 1, 2010, p. 93-118. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=1575374>. Acesso em: 15 nov. 2017

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Em estudo que analisou o grau de confiabilidade do valor justo de instrumentos financeiros de 34 (trinta e quatro) instituições bancárias cujas ações estão listadas na BM&FBovespa, para o período de 2010 a 2012, revelou-se que a maior parte das mensurações a valor justo dos ativos financeiros dessas entidades era classificada no Nível 1, o que, de acordo com a mesma pesquisa, vinha apresentando crescimento ano a ano. Por outro lado, no caso dos passivos financeiros, a maior parte era classificada no Nível 2 da hierarquia, tendo sido verificado um movimento de redução da proporção dos passivos classificados no Nível 1. A combinação desses resultados revelou, no estudo apresentado, que a mensuração do valor justo dos ativos financeiros por parte das instituições bancárias brasileiras é mais confiável se comparada à dos passivos financeiros.39 Apesar disto, o estudo não negou a relevância das informações apresentadas pelas instituições avaliadas.

Em estudo envolvendo empresas que promoveram a avaliação a

valor justo de ativos biológicos em 2013, e cujas ações eram cotadas na BM&FBovespa, revelou-se que a avaliação de Nível 3 era a mais utilizada,40 não obstante seja a mais subjetiva e sujeita a maiores falhas, como dito anteriormente.

Em estudo envolvendo empresas não financeiras listadas na Bolsa

de Valores de São Paulo (BM&FBovespa), abrangendo informações do quarto trimestre de 2010, todos os trimestres de 2011 e o primeiro trimestre de 2012, concluiu-se que: a) mensuração a valor justo dos títulos de curto aproximou a informação contábil de sua realidade econômica, isto é, demonstrou que estas informações podem ser consideradas relevantes; b) no que se refere à confiabilidade na mensuração dos títulos de curto prazo, as evidências encontradas demonstraram que tal mensuração é considerada pelo mercado 39 MOURA, Eduardo Gonçalves de; DANTAS, José Alves. “Nível de confiabilidade do valor justo dos instrumentos financeiros nas instituições bancárias brasileiras”. Revista Ambiente Contábil, v. 7, n. 2. Natal: UFRN, jul./dez. 2015, p. 187. 40 SANTOS, Antônio Francisco et al. “Análise da Hierarquia do Valor Justo na Mensuração de Ativos Biológicos das Empresas Listadas na BM&BOVESPA no Ano de 2013”. In: 12º Congresso USP de Iniciação Científica em Contabilidade, XII, 2015. São Paulo: USP, 2015. Disponível em: <http://www.congressousp.fipecafi. org/anais/artigos152015/148.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2017.

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como conservadora, o que não interferiu na confiabilidade e na relevância dessas informações para o mercado; c) por sua vez, os títulos de longo prazo não foram considerados relevantes para o mercado, o que possivelmente se explica em razão de sua mensuração ser considerada como não confiável, ou em quantidade pouco representativa.41

Há, ainda, evidências empíricas demonstrando que a ausência de

controle ou fiscalização pode levar à escolha das avaliações que comportem maior discricionariedade. De fato, em testes envolvendo instituições financeiras de 125 (cento e vinte e cinco) países, entre 2008 e 2012, revelou-se que a governança corporativa exerce influência significativa na escolha dos critérios de avaliação dos ativos a valor justo, pois, quanto mais eficientes as ações de fiscalização, maior é o número de ativos avaliados no Nível 1. Isto indica que boas práticas de governança corporativa reduzem o gerenciamento de resultado no processo de mensuração dos ativos a valor justo,42 mas também indica que a falta de controle e fiscalização dá espaço para incerteza e subjetivismo em excesso.

A menção a estudos brasileiros e internacionais feita acima, longe de

esgotar as evidências empíricas acerca do uso do valor justo na mensuração de ativos e passivos, demonstra que este critério, conquanto possa fornecer informações de caráter relevante – talvez melhores do que aquelas baseadas unicamente no princípio do custo histórico – traz certo grau de incerteza e subjetivismo, dado estar lastreado em estimativas, e não em fatos concretos, ocorridos e realizados.

41 MARTINS, Vinicius Gomes et al. “Mensuração de Ativos Financeiros a Valor Justo: Análise da Relevância da Informação e da Confiabilidade da Mensuração na Perspectiva do Mercado Brasileiro de Capitais”. In: 13º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade, XIII, 2013. São Paulo: USP, 2013. 42 MENDES, Carlos Jorge Fontaínhas; FREIRE, Fátima de Souza. A governança corporativa e manipulação da informação contábil: mensuração a valor justo nos bancos comerciais. In: Revista Contemporânea de Contabilidade, v. 11, n. 23. Florianópolis: UFSC, maio/ago. 2014, p. 70. Disponível em: <http://dx.doi. org/10.5007/2175-8069.2014v11n23p53>. Acesso em: 19 nov. 2017.

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Com efeito, a avaliação a valor justo está baseada no futuro – calculado e estimado conforme métricas quantitativas de avaliação, com maior ou menor espaço para discricionariedade. Para fornecer informações consideradas úteis à tomada de decisão, mensurando-se ativos e passivos a valor justo, arca-se com um preço: só se pode estimar o futuro.43

É nobre o objetivo da mensuração a valor justo de assegurar uma

aproximação da realidade econômica maior do que a adoção do modelo da realização.44

Ocorre que, como apontado por Eliseu Martins, o problema que existe nos dias de hoje é que “(...) há uma tendência de se querer normas contábeis que, apesar de baseadas em modelos com tentativas mais sérias de evidenciação da realidade, produzem fortes emoções...”.45 Apesar disto, como costuma afirmar o Professor Alexsandro Broedel Lopes em suas aulas na Universidade de São Paulo, do ponto de vista contábil, “é melhor estar aproximadamente certo do que certamente errado”.46-47

A essa altura do nosso estudo, faz-se necessário verificar se as

estimativas de valor que produzem resultados “aproximadamente certos”, nas palavras de Alexsandro Broedel Lopes, ou “fortes emoções”, nas palavras de Eliseu Martins, podem servir de base para a tributação da renda. 43 Cf. FLORES, Eduardo; BRAUNBECK, Guillermo Oscar. “What is better: to be roughly right or exactly wrong? The role of quantitative methods in financial accounting”. International Journal of Multivariate Data Analysis, v. 1, n. 2, 2017, p. 171. 44 FONSECA, Fernando Daniel de Moura. Normas tributárias e a convergência das regras contábeis internacionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 87. 45 MARTINS, Eliseu. “Ensaio sobre a evolução do uso e das características do valor justo”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 144. 46 FONSECA, Fernando Daniel de Moura. Normas tributárias e a convergência das regras contábeis internacionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 87. 47 Essa também é a conclusão de Eduardo Flores e Guillermo Oscar Braunbeck em estudo que adota – em forma de questionamento – a mesma frase acima reproduzida (FLORES, Eduardo; BRAUNBECK, Guillermo Oscar. “What is better: to be roughly right or exactly wrong? The role of quantitative methods in financial accounting”. International Journal of Multivariate Data Analysis, v. 1, n. 2, 2017, p. 162-172).

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4. Os pressupostos fundamentais da tributação da renda 4.a A segurança jurídica como pilar do Sistema Tributário

Nacional A segurança jurídica é, sem dúvida alguma, um pilar do Sistema

Tributário Nacional. São diversos os dispositivos, tanto na Constituição Federal, como no Código Tributário Nacional (“CTN”), que colocam a segurança jurídica como elemento indissociável da tributação.

De fato, no âmbito tributário, a segurança jurídica e a proteção da

confiança se materializam, dentre outros, na legalidade formal e material, consagradas nos art. 5º e 150, inciso I, da Constituição, e reforçadas pela exclusividade da lei que concede subsídio, isenção ou outro benefício fiscal (art. 150, parágrafo 6º, da Constituição); legalidade esta minuciosamente explicitada pelo art. 97 do CTN; e confirmada e reconfirmada pela proibição de analogia (art. 108, parágrafo 1º, do CTN); pela rejeição da interpretação econômica; pelo caráter estritamente vinculado dos atos administrativos de cobrança dos tributos (art. 3º e 142 do CTN); desenvolvem-se, ainda, na proibição da surpresa e da imprevisibilidade, o que se dá por meio da vedação constitucional à irretroatividade do direito em geral (art. 5º, inciso XXXVI), do Direito Penal (art. 5º, inciso XL) e do Direito Tributário em especial (art. 150, inciso III, “a”); no princípio da anterioridade e da espera nonagesimal (art. 150, inciso III, “b” e “c”). Finalmente, a proteção da confiança é complementada, no plano constitucional, com a vedação do confisco (art. 150, inciso IV) e a observância da capacidade econômica (art. 145, parágrafo 1º).48

Heleno Taveira Torres afirma haver um “princípio da segurança

jurídica tributária”, o qual, em uma proposta funcional, pode ser entendido como “princípio-garantia constitucional que tem por finalidade proteger direitos decorrentes das expectativas de confiança legítima na criação ou aplicação das

48 DERZI, Misabel Machado. “Mutações, complexidade, tipo e conceito, sob o signo da segurança e da proteção da confiança”. In: TORRES, Heleno Taveira (Org.). Tratado de Direito Constitucional e Tributário: Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 275.

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normas tributárias, mediante certeza jurídica, estabilidade do ordenamento ou efetividade de direitos e liberdades fundamentais”.49

Segundo o jurista, para garantir a função de certeza do núcleo

funcional da segurança jurídica e, assim, para controlar a complexidade, assegurar a clareza e a preservação de expectativas legítimas, o sistema constitucional tributário deve procurar reduzir, permanentemente, a indeterminação de suas regras, mediante, por exemplo, ações e procedimentos que confiram certeza aos conteúdos das competências.50

Humberto Ávila também entende existir segurança jurídico-

tributária, conceituando-a como uma norma-princípio que exige do Legislativo, do Executivo e do Judiciário a adoção de comportamentos que contribuam para existência de um elevado estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, em benefício dos contribuintes.51

Só há confiabilidade e calculabilidade quando há objetividade. Logo,

a perda de objetividade é incompatível com a tributação, pois no Direito Tributário, como explica Humberto Ávila, “(...) espera-se algum grau de objetividade. (...) no Direito, nós procuramos evitar o capricho e a arbitrariedade (...)”.52 A objetividade é alcançada, dentre outras formas, pela perspectiva retrospectiva da tributação, de acordo com os requisitos constitucionais e legais para a apuração de determinado fato gerador.53

49 TORRES, Heleno Taveira. “Segurança Jurídica em Matéria Tributária”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Pesquisas Tributárias – Segurança Jurídica em Matéria Tributária. 4ª ed. Porto Alegre: Coedição CEU, IICS e LexMagister, 2016, p. 86. 50 TORRES, Heleno Taveira. “Segurança Jurídica em Matéria Tributária”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Pesquisas Tributárias – Segurança Jurídica em Matéria Tributária. 4ª ed. Porto Alegre: Coedição CEU, IICS e LexMagister, 2016, p. 84. 51 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 300. 52 ÁVILA, Humberto. Palestra Inaugural do XXXIX Simpósio de Direito Tributário do CEU/IICS – Aspectos polêmicos do imposto de renda e proventos de qualquer natureza. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Aspectos polêmicos do imposto de Renda e proventos de qualquer natureza. Porto Alegre: Coedição Pesquisas Tributárias – Série CEU – Lex Magister, n. 2, 2014, p. 21. 53 Cf. ÁVILA, Humberto. Palestra Inaugural do XXXIX Simpósio de Direito Tributário do CEU/IICS – Aspectos polêmicos do imposto de renda e proventos de qualquer natureza.

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Não se admite, pois, que a tributação recaia sobre fatos não

concretizados, ou que a tributação esteja baseada em visão prospectiva da realidade, isto é, sobre expectativas ou estimativas, muito menos que a tributação esteja lastreada em avaliações envoltas por subjetivismo. A tributação só se dá sobre fatos ocorridos e objetivamente capturados, é dizer, a tributação alcança a situação econômica – reveladora de capacidade contributiva – ocorrida no presente imediato ou, então, que se iniciou no passado e foi concluída no exato instante da ocorrência do fato gerador (art. 116 do CTN).

Ao lado do que se viu até aqui, no campo da tributação sobre a

renda, a segurança jurídica também se manifesta por normas e princípios específicos. Com efeito, buscando assegurar confiabilidade, calculabilidade, certeza jurídica e objetividade, o legislador ordinário somente admitiu a incidência de imposto sobre a renda cuja disponibilidade esteja adquirida em caráter definitivo e incondicional, isto é, a renda realizada, e não esperada ou estimada. Vejamos no que isto consiste.

4.b A disponibilidade econômica ou jurídica da renda O art. 43 do CTN estabelece que o imposto sobre a renda e

proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da referida renda, ou dos referidos proventos de qualquer natureza.

A ideia de disponibilidade da renda, enquanto elemento temporal do

imposto de renda, não nasceu com o CTN. Bulhões Pedreira explicou que a expressão “disponibilidade jurídica” surgiu na legislação do imposto de renda com a edição do Decreto-lei n. 4.178, de 1942, cujo art. 23, parágrafo único, determinou que todos os rendimentos que estivessem “juridicamente à disposição do beneficiário” deveriam compor a base de cálculo do imposto. Este dispositivo, segundo o autor, consolidou a jurisprudência firmada em meados da década de 1930, a qual considerava como percebidos os rendimentos creditados por pessoa jurídica em favor do beneficiário no momento do crédito, mesmo que In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Aspectos polêmicos do imposto de Renda e proventos de qualquer natureza. Porto Alegre: Coedição Pesquisas Tributárias – Série CEU – Lex Magister, n. 2, 2014, p. 22.

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ainda não pagos em moeda, mas desde que se encontrassem à disposição do beneficiário, em condições de serem recebidos.54

O CTN, além de repetir a norma do art. 23, parágrafo único, do

Decreto-lei n. 4.178, acrescentou que o imposto de renda é devido somente no momento da aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica.

Há grande debate doutrinário sobre o significado de disponibilidade

econômica e de disponibilidade jurídica da renda. Não nos alongaremos neste debate, registrando apenas que, para nós, tinha razão Alcides Jorge Costa quando dizia que a incessante busca pelo que seja “econômica” ou “jurídica” não é de todo relevante, pois o que importa, para efeito de tributação, é identificar se existe disponibilidade.55

Foi como também se posicionou João Francisco Bianco, quem, com

apoio em Luciano Amaro, afirmou que a discussão acerca da disponibilidade econômica ou jurídica é terminológica, e não conceitual.56 Segundo Bianco, o “caput” do art. 43 do CTN concede uma autorização ao legislador ordinário para definir o momento da ocorrência do fato gerador do imposto, sendo fundamental, em qualquer caso, que o direito ao recebimento da renda esteja adquirido, acrescido ou incorporado ao patrimônio do contribuinte.57 Ou seja, é necessário identificar se a renda está disponível ao seu titular, se está integrada a seu patrimônio, e nada mais. Pouco importa se a renda é oriunda de atos lícitos ou não, porque o fato gerador ocorre independentemente da validade jurídica dos atos praticados (art. 118, inciso I, do CTN). Esta é a disponibilidade requerida pelo art. 43 do CTN.

54 BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. Imposto sobre a Renda – Pessoas Jurídicas. Volume 1. Rio de Janeiro: Justec, 1979, p. 197-198. 55 COSTA, Alcides Jorge. “Imposto sobre a renda: a aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica como seu fato gerador. Limite de sua incidência”. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; COSTA, Sérgio de Freitas (Coord.). Diálogos póstumos com Alcides Jorge Costa. São Paulo: IBDT, 2017, p. 235. 56 AMARO, Luciano. “Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Fato gerador do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza. São Paulo: Resenha Tributária e CEEU, 1986, p. 392. 57 BIANCO, João Francisco. Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética, 2007, p. 49.

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Há algo mais a dizer sobre o art. 43 do CTN: ao requerer que a disponibilidade da renda, seja ela econômica ou jurídica, esteja adquirida pelo contribuinte, o dispositivo não admite a tributação de acréscimos potenciais, é dizer, de acréscimos não realizados,58 muito menos estimados. Com efeito, a expressão “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica”, empregada pelo “caput” do art. 43, traduz a ideia de que a renda não efetiva, virtual, não pode ser tributada, porque sobre estes fatos não há certeza, confiança, objetividade e calculabilidade necessárias e suficientes para autorizar a tributação, exigindo-se, portanto, a efetiva realização do acréscimo patrimonial para que possa haver incidência tributária.

4.c O princípio da realização da renda A renda realizada é a renda certa, efetiva, concreta e separada.

Edwin R. Seligman explicou, em exemplo didático sobre o significado de renda realizada, que, em uma fazenda, os bezerros nascidos constituem renda, já que estão realizados e separados. Por outro lado, se na mesma fazenda houver árvores não cortadas, o bosque terá incremento de valor, mas não haverá renda realizada, pois, para tanto, faz-se necessário o corte da árvore, é dizer, a separação ou a realização do ganho.59

58 Em que pese existir certo consenso quanto ao art. 43 do CTN prescrever o princípio da realização da renda, Brandão Machado, em dura crítica ao dispositivo, afirmou que: “já se fala hoje, correntemente, em princípio da realização, assim como de outros dois, o princípio da renda líquida e o da capacidade contributiva, como princípios fundamentais na tributação da renda. O texto do artigo 43 do Código desconhece tais princípios” (MACHADO, Brandão. “Breve Exame Crítico do art. 43 do CTN”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Estudos sobre o Imposto de Renda (em memória de Henry Tilbery). São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p. 123-124). Ricardo Maitto da Silveira também afirmou que o art. 43 do CTN não concebeu o princípio da realização da renda, cabendo sua adoção, se for o caso, pela legislação ordinária (SILVEIRA, Ricardo Maitto da. “O princípio da realização da renda no Direito Tributário Brasileiro”. Revista Direito Tributário Atual, vol. 21. São Paulo: Dialética e IBDT, 2007, p. 317-344). 59 SELIGMAN, Edwin R. apud ZILVETI, Fernando Aurelio. “O princípio da realização da renda”. SCHOUERI, Luís Eduardo (Coord.). Direito Tributário. Homenagem a Alcides Jorge Costa. Vol. I. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 315.

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Para estar realizada, a renda não precisa ser recebida em moeda ou outro meio de pagamento. A renda realizada corresponde, nas palavras de Ricardo Mariz de Oliveira, “a novo direito definitivamente adquirido, ainda que a termo, portanto, ainda que não traduzido em moeda recebida, mas que já esteja disponível para uso, gozo e disposição”.60

Estar disponível para uso, gozo e disposição é estar separado, ou

concretizado.61 Assim, meros incrementos de valor não são renda realizada, mas sim aptidão para adquirir renda ou, como advertiram Geraldo Ataliba e Cleber Giardino, aparência de riqueza, a qual é meramente potencial, nominal e escritural, não efetiva.62

Bulhões Pedreira, em lições que se encaixam com perfeição na

temática ora debatida, afirmou que o lucro potencial, verificado quando o valor do ativo no mercado excede o seu custo histórico, antes de uma troca no mercado, não é um lucro efetivo e, portanto, não acresce ao patrimônio do titular do ativo. Para ser efetivo, o lucro deve ser realizado. O autor esclareceu que, a despeito das divergências, a opinião predominante sobre a realização é no sentido de que ela requer: (i) que o lucro potencial se converta em direito que acresça ao patrimônio; (ii) que essa conversão ocorra mediante troca de mercado; (iii) que o titular do lucro tenha cumprido as obrigações ou prestações que para ele nascem da referida troca; e (iv) que os direitos recebidos na troca sejam mensuráveis e líquidos, não bastando, por exemplo, a permuta de ativos, pois sua realização em dinheiro, ou em outros direitos líquidos, requer nova troca no mercado.63 60 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Incorporação de ações no Direito Tributário: conferência de bens, permuta, dação em pagamento e outros negócios jurídicos. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 98. 61 Nas palavras de Fernando Aurelio Zilveti, a realização corresponde à concretização (ZILVETI, Fernando Aurelio. “O princípio da realização da renda”. SCHOUERI, Luís Eduardo (Coord.). Direito Tributário. Homenagem a Alcides Jorge Costa. Vol. I. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 327). 62 ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cleber. “Imposto de Renda – Capacidade Contributiva – Aparência de Riqueza – Riqueza Fictícia – ‘Renda’ Escritural – Intributabilidade de Correções Monetárias”. Revista de Direito Tributário, n. 38. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 140-163. 63 BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. Imposto sobre a Renda – Pessoas Jurídicas. Volume 1. Rio de Janeiro: Justec, 1979, p. 278-281.

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Em estudo aprofundado sobre o princípio da realização da renda,

Victor Polizelli defendeu a existência de quatro elementos fundamentais do referido princípio, comumente apresentados pelas doutrinas contábil e tributária, a saber: nas relações jurídicas sinalagmáticas, “o cumprimento da obrigação (1º elemento) gera direitos que acrescem ao patrimônio (2º elemento), desde que sua troca no mercado seja certa (3º elemento) e que tais direitos sejam mensuráveis, líquidos e certos (4º elemento)”.64

Alcides Jorge Costa destacou que, “quando se fala em aquisição de

disponibilidade de renda deve-se entender aquisição de renda que pode ser empregada, aproveitada, utilizada, etc.”.65 Desta afirmação, resulta, segundo o autor, uma importante constatação: afasta-se a “tributação da renda virtual ou ainda não realizada. Assim, a valorização de imóveis não pode ser tributada senão quando a renda dela decorrente possa ser utilizada, empregada, etc., o que só acontece quando ela deixa de ser virtual e se torna efetiva, como numa alienação de imóvel”.66 Ou seja, avaliações de ativos segundo seu valor de mercado não autorizam a tributação, porque não há acréscimo patrimonial realizado.

Em outro estudo sobre a tributação da renda, Alcides Jorge Costa

invocou a praticabilidade como um dos fundamentos da incidência do imposto somente no momento da realização do acréscimo patrimonial. Realmente, o jurista afirmou que, por praticabilidade, é comum que as legislações interpretem o conceito de renda considerando fluxos de riqueza, ingressos monetários ou em espécie, ou seja, é comum que a tributação obedeça ao princípio da realização da

64 POLIZELLI, Victor Borges. O Princípio da Realização da Renda – Reconhecimento de Receitas e Despesas para fins do IRPJ. Série Doutrina Tributária, v. VII. São Paulo: IBDT/Quartier Latin, 2012, p. 362. 65 COSTA, Alcides Jorge. “Imposto sobre a renda: a aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica como seu fato gerador. Limite de sua incidência”. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; COSTA, Sérgio de Freitas (Coord.). Diálogos póstumos com Alcides Jorge Costa. São Paulo: IBDT, 2017, p. 233. 66 COSTA, Alcides Jorge. “Imposto sobre a renda: a aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica como seu fato gerador. Limite de sua incidência”. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; COSTA, Sérgio de Freitas (Coords.). Diálogos póstumos com Alcides Jorge Costa. São Paulo: IBDT, 2017, p. 233.

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renda.67 O autor acrescentou que, também por força da praticabilidade, de um modo geral, “exclui-se da tributação o valor do consumo de serviços de produção própria ou do uso de bens próprios, embora haja países onde o valor locativo da casa própria é somado à renda tributável”.68

Praticabilidade, ou não, o fato é que, no Brasil, por força do art. 43

do CTN, a renda potencial não é passível de tributação. Isso significa dizer que o art. 43 do CTN admite a tributação pelo

imposto de renda dos acréscimos patrimoniais identificados em determinado período, desde que estes acréscimos sejam reais, efetivos, isto é, desde que sejam realizados, porque a renda virtual, imputada, ou não realizada em transação de mercado, é “quase renda”, ou seja, é renda cuja disponibilidade não está adquirida, pelo que não se completa, nestes casos, a hipótese de incidência do imposto.

Com isso, é possível afirmar que os acréscimos estimados, ainda não

concretizados, não são necessários e suficientes para a ocorrência do fato gerador. Se assim não fosse, o imposto seria, não sobre a renda, mas sobre o patrimônio. E isto se explica, também, pelo princípio da capacidade contributiva.

Como ensina Ricardo Mariz de Oliveira, o princípio da realização da

renda tem estatura constitucional, representando a concretização do princípio da capacidade contributiva.69 Pela capacidade contributiva, requer-se, conforme defendido pelo autor, que o tributo seja subtraído da materialidade econômica do imposto. Quer dizer, o imposto de renda só pode ser subtraído da renda, mas não de qualquer renda, e sim da renda realizada, para que dela se retire o

67 COSTA, Alcides Jorge. “Conceito de renda tributável”. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; COSTA, Sérgio de Freitas (Coords.). Diálogos póstumos com Alcides Jorge Costa. São Paulo: IBDT, 2017, p. 52. 68 COSTA, Alcides Jorge. “Conceito de renda tributável”. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; COSTA, Sérgio de Freitas (Coords.). Diálogos póstumos com Alcides Jorge Costa. São Paulo: IBDT, 2017, p. 52-53. 69 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Incorporação de ações no Direito Tributário: conferência de bens, permuta, dação em pagamento e outros negócios jurídicos. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 105.

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imposto a ser pago.70 Não fosse assim, o tributo incidiria não sobre a renda, mas sobre o patrimônio, já que o contribuinte teria que dele dispor para pagar o tributo.71

Na mesma direção, Victor Polizelli sustenta que o princípio da

realização está vinculado à capacidade contributiva, o que significa dizer que a renda, enquanto elemento caracterizador desta capacidade, deve estar realizada, “de modo a impedir que a tributação atinja eventos econômicos incompletos ou incertos, e também evitar que a tributação comprometa o patrimônio”.72

Klaus Tipke defendeu que “o princípio da capacidade contributiva é

um progresso perante uma tributação arbitrária, sem princípios, perante uma tributação segundo o oportunismo político, perante um pragmatismo ou fiscalismo ilimitado”.73 E, demonstrando que a disponibilidade de renda é a mais pura manifestação da capacidade contributiva, arrematou dizendo que, segundo o referido princípio, “todos devem pagar impostos segundo o montante da renda disponível para o pagamento de impostos”.74

Portanto, a renda estimada, ou esperada, é “quase renda”, não sendo

passível de tributação por não atender aos princípios da realização e da capacidade contributiva, que espraiam do art. 43 do CTN.

70 Fernando Aurelio Zilveti manifestou-se, igualmente, no sentido de que “(...) como qualquer tributo somente pode ser pago com a renda (...), para exigir-se um tributo do cidadão sem ferir sua capacidade contributiva, é preciso observar o princípio da realização da renda” (ZILVETI, Fernando Aurelio. Princípios de Direito Tributário e a capacidade contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 245). 71 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. “Regime tributário da compra vantajosa – questões fundamentais”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 4º volume. São Paulo: Dialética, 2013, p. 254. 72 POLIZELLI, Victor Borges. O Princípio da Realização da Renda – Reconhecimento de Receitas e Despesas para fins do IRPJ. Série Doutrina Tributária, v. VII. São Paulo: IBDT/Quartier Latin, 2012, p. 351. 73 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e o princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 30-31. 74 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e o princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 31.

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5 O valor justo e os pressupostos fundamentais da tributação da renda

5.a A incompatibilidade das normas de tributação da renda

com os retratos estimados fornecidos pela Contabilidade No tópico 3 deste estudo, viu-se que a avaliações a valor justo são

estimadas, distanciando-se do princípio da realização, com o qual o princípio do custo histórico se relaciona. Viu-se também que a mensuração a valor justo está calcada na subjetividade, a qual aparece em maior ou menor escala, conforme a chamada hierarquia de valor justo (Níveis 1, 2 e 3), o que pode colocar em dúvida a confiabilidade das informações retratadas nas demonstrações financeiras. A subjetividade, consoante revelam dados empíricos, não raro, é empregada também na própria escolha do nível de avalição: substituem-se – às vezes por conveniência – avaliações em nível mais confiável por nível menos confiável. A subjetividade, assim como a falta de objetividade e de certeza, acabam abrindo espaço para manipulações e, pois, para o uso inadequado dessa forma de mensuração.

Por isso é que, dadas as incertezas que essa metodologia de

avaliação carrega, as mensurações a valor justo que afetam o resultado da pessoa jurídica deveriam, sempre que possível, integrar a reserva de lucros a realizar, sem sua distribuição aos acionistas, antes de sua efetiva realização, nos termos do art. 197 da Lei n. 6.404.

Qualquer que seja sua forma de contabilização, o que se pode

afirmar é que, por esse critério de avaliação de ativos e passivos, não há lastro objetivo e definitivo, mas, sim, mensuração passível de desvios, o que revela a inexistência de efetiva aquisição, ou realização.75

À vista dessas considerações, tem-se que a avaliação a valor justo

não se coaduna com os pressupostos fundamentais da tributação da renda, elencados no tópico 4. O subjetivismo, a falta de objetividade e de certeza e a avaliação meramente estimada contrapõem-se à segurança, à calculabilidade, à 75 SILVA, Fabio Pereira da; FLORES, Eduardo. “Lucro contábil versus lucro real: aproximações e distanciamentos”. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 243. São Paulo: Dialética, dez./2015, p. 46.

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certeza jurídica e à objetividade que norteiam a tributação, inclusive da renda, sobre a qual o imposto somente incide se houver aquisição de disponibilidade, é dizer, se houver realização, na forma do art. 43 do CTN.

Portanto, a tributação não aceita o acréscimo potencial e, portanto,

não aceita mensurações a valor justo. Não à toa, a Lei n. 12.973, em diversos dispositivos, neutralizou fiscalmente os efeitos destas mensurações, o que se prova, dentre outros, pelos art. 13 a 19, segundo os quais os ganhos e perdas decorrentes de avaliação a valor justo somente integram o lucro real à medida que o ativo for realizado, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa, ou quando o passivo for liquidado ou baixado, em observância ao princípio da realização da renda, contido no art. 43 do CTN.

Mas essa conclusão não é acolhida por todos os estudiosos do tema.

Alexandre Evaristo Pinto, por exemplo, afirma que as avaliações a valor justo refletem uma riqueza econômica, ainda não realizada, o que significa dizer, no seu entender, que os ajustes a valor justo refletem renda. O autor, reconhecendo que, nos termos do art. 43 do CTN, a tributação da renda só pode ocorrer quando ela estiver disponível, é dizer, quando puder ser aproveitada, empregada ou utilizada, considera haver acréscimo patrimonial tributável nas avaliações a valor justo quando o contribuinte puder aproveitá-lo, por exemplo, para a tomada de empréstimos, ou para a emissão de títulos de dívida ou de ações. É que, nestes casos, para o autor, há aproveitamento econômico do acréscimo patrimonial experimentado pelo contribuinte.76

Alexandre Evaristo foi além, afirmando que antes das inovações das

Leis n. 11.638 e 11.941, o ordenamento jurídico já reconhecia que os ganhos oriundos de avaliações a valor justo representam renda, autorizando sua tributação antes da realização efetiva. É o caso da Medida Provisória n. 2.158-35, de 24.8.2001, cujo art. 30 admite que as variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações do contribuinte, em função da taxa de câmbio, sejam

76 PINTO, Alexandre Evaristo. “A avaliação a valor justo e a disponibilidade econômica da renda”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 6º volume. São Paulo: Dialética, 2015, p. 41-42.

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consideradas, para efeito de determinação da base de cálculo do imposto de renda, segundo o regime de competência.77

No entanto, a renda, em todos os casos acima narrados, não pode ser

aproveitada, empregada ou utilizada. Em que pese a mensuração a valor justo revele a “stakeholders” um potencial de adquirir renda - por vezes suficiente para a tomada de empréstimos, ou emissão de títulos – essa riqueza é estimada, sujeitando-se a oscilações. Assim é que, se para credores, investidores e clientes a informação acerca desse potencial de riqueza é bastante para encorajá-los a se engajarem em determinadas operações, para o fisco, por outro lado, tal informação não é necessária e suficiente para a tributação, nos termos e para os efeitos do art. 114 do CTN, na medida em que o imposto de renda só incide sobre fatos concretos, completos e acabados, não recaindo sobre a renda que tem aptidão para ser aproveitada, empregada ou utilizada, mas da qual nada pode ser subtraído para o adimplemento da obrigação tributária, em virtude de sua disponibilidade não estar adquirida em caráter definitivo, isto é, em virtude de a riqueza não estar materializa, realizada.

No tocante ao art. 30 da Medida Provisória n. 2.158-35, referido por

Alexandre Evaristo, há que se dizer que este dispositivo legal não diz – e nem poderia dizer – que a tributação recai sobre ganhos potenciais, ou gráficos, ainda não concretizados. Pelo contrário: o dispositivo reconhece que a tributação das variações cambiais, em regra, somente deve ocorrer no momento da liquidação dos respectivos direitos e obrigações,78 em conformidade com o princípio da realização da renda. A tributação dos ganhos e perdas segundo o regime de competência é opcional, dependendo de manifestação de vontade neste sentido.

77 PINTO, Alexandre Evaristo. “A avaliação a valor justo e a disponibilidade econômica da renda”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 6º volume. São Paulo: Dialética, 2015, p. 42. 78 Outros dispositivos da legislação fiscal demonstram que a tributação não pode recair sobre variações meramente gráficas, não realizadas. É o caso do art. 32 da Lei n. 11.051, de 29.12.2004, de acordo com o qual os ganhos verificados em operações financeiras sujeitas a liquidação futura são tributáveis apenas no momento da liquidação dos respectivos contratos.

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Quer dizer, não se admite a incidência do imposto de renda antes da liquidação, exceto por opção, “sob pena de haver tributação sobre receitas fictícias, porquanto, em razão das oscilações da moeda estrangeira, tais receitas podem não ser realizadas”, conforme destacado pelo Ministro Francisco Falcão no Recurso Especial n. 872.492/RJ, julgado em 26.11.2006 pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em que foi analisada a incidência da contribuição ao PIS (“Programa de Integração Social”) e da COFINS (“Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social”) sobre receitas de variação cambial.79

Em síntese, a mensuração a valor justo não se compatibiliza com os

pressupostos fundamentais da tributação sobre a renda, impondo-se sua neutralização para fins fiscais, como acertadamente fizeram diversos dispositivos da Lei n. 12.973.

5.b Situações em que a lei tributária não poderia ter

autorizado, como autorizou, a tributação de avaliações a valor justo, antes da efetiva realização da renda

Consoante visto acima, há incompatibilidade das normas de

mensuração a valor justo com os pressupostos fundamentais da tributação da renda. Diante desta incompatibilidade, o legislador não poderia ter determinado, como determinou, o oferecimento à tributação de ganhos e perdas oriundos das referidas avaliações em situações em que não ocorre realização da renda.

É o caso, por exemplo, da tributação de avaliações a valor justo pela

simples falta de controle e registro em subconta.80 Ora, este dado é insuficiente para revelar renda disponível e realizada e, também, incapaz de revelar capacidade contributiva. Logo, a formalidade legal não é fundamento suficiente para autorizar a tributação da renda potencial, ou “quase renda”.

79 No mesmo sentido, cite-se também: AgRg no REsp 962.698/RS, 1ª Turma, de 29.04.2011, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima; REsp 898.372/CE, 1ª Turma, de 28.05.2007, Relator Ministro José Delgado; e REsp n. 640.059/CE, 2ª Turma, de 5.8.2004, Relator Ministro Franciulli Netto. 80 Há diversas normas nesse sentido, dentre elas as seguintes: art. 13, parágrafo 3º, 14, parágrafo 2º, 17, parágrafo 2º, e 18, parágrafo 1º.

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Também não poderia o legislador, na subscrição de capital mediante a conferência de bens avaliados a valor justo, impor que a pessoa jurídica ofereça à tributação o respectivo ganho ou perda, nos 5 (cinco) anos-calendário subsequentes à subscrição, e à razão de 1/60 (um sessenta avos), no mínimo, para cada mês do período de apuração, na hipótese de o bem não sujeito a realização por depreciação, amortização ou exaustão não ser alienado, baixado ou utilizado na integralização do capital de outra pessoa jurídica naquele período (art. 17, parágrafo 1º, inciso III, e art. 18, inciso III, da Lei n. 12.973).

O dispositivo não contempla hipótese de diferimento da tributação,

mas, sim, de tributação de renda ainda não realizada. Para compreender essa afirmação, é importante que se diga que, no

ato de subscrição de capital, não há realização da renda. É que, como explica Victor Polizelli, a realização não se opera em “situações de continuidade”, é dizer, em operações de troca, permuta ou substituição, a exemplo de integralização ou redução de capital.81 Isto é assim, porque, nestas operações, os eventos são meramente permutativos, não constituindo verdadeiras mutações patrimoniais, isto é, mutações definitivas e realizadas, que acrescem ou decrescem o patrimônio.

Na mutação patrimonial, o patrimônio é modificado, mediante

acréscimo ou decréscimo, ao passo que, na permutação patrimonial, não há alteração no patrimônio, nem para mais, nem para menos, mantendo-se identidade de valor.82 Nos movimentos de permutação patrimonial, como explica Ricardo Mariz de Oliveira, o patrimônio “fica imutável, pois os respectivos valores são apenas transferidos de um lugar (de uma conta contábil dentro da demonstração patrimonial) para outro (para outra conta contábil da mesma demonstração patrimonial)”.83

81 POLIZELLI, Victor Borges. O Princípio da Realização da Renda – Reconhecimento de Receitas e Despesas para fins do IRPJ. Série Doutrina Tributária, v. VII. São Paulo: IBDT/Quartier Latin, 2012, p. 367. 82 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 83-84. 83 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 84.

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Apesar de a conferência de bens a valor justo em subscrição de capital constituir alienação e, pois, cumprir um dos requisitos necessários à realização da renda (troca de mercado), tal operação não é suficiente para transformar o ganho potencial, virtual, em ganho efetivo, realizado, dado tratar-se de mera “situação de continuidade”, ou mera “permutação patrimonial”, insuficiente para caracterizar a aquisição definitiva da disponibilidade da renda, como exigido pelo art. 43 do CTN.84

Daí que o parágrafo 1º, inciso III, do art. 17 e o inciso III do art. 18,

ao estabelecerem a tributação do valor justo nos 5 (cinco) anos subsequentes à subscrição, não contemplam hipótese de diferimento. Diferimento haveria se, no ato de subscrição, a renda estivesse realizada. No entanto, como visto, isto não ocorre em “situações de continuidade”. Sendo assim, o parágrafo 1º, inciso III, do art. 17 e o inciso III do art. 18, na verdade, determinam que o contribuinte tribute a renda potencial, ou “quase renda”, após 5 (cinco) anos da subscrição, mesmo sem sua efetiva realização.

Portanto, o parágrafo 1º, inciso III, do art. 17 e o inciso III do art. 18

ferem o art. 43 do CTN, ao determinarem a tributação das avaliações a valor justo antes de sua efetiva realização, isto é, em operação meramente permutativa. Também ferem o art. 43 do CTN, por não refletirem a tributação de renda realizada, os dispositivos da Lei n. 12.973 que determinam a tributação de avaliações a valor justo quando não houver o respectivo controle em subconta.

6. Conclusões A avaliação de ativos e passivos a valor justo fornece estimativas

sobre o futuro, o que faz com o propósito de retratar informações úteis ou relevantes aos usuários das demonstrações financeiras, em substituição aos princípios da realização e do custo histórico, considerados insuficientes para atingir aquele desiderato.

84 Nesse sentido, vide, por exemplo, ED no REsp n. 1.027.799-CE, 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de 11.11.2008. O tema, contudo, é controvertido na jurisprudência, havendo decisões do STJ em sentido contrário. É o demonstra, em detalhes, Ricardo Mariz de Oliveira (in OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Incorporação de ações no Direito Tributário: conferência de bens, permuta, dação em pagamento e outros negócios jurídicos. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 74-81).

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Ocorre que a mensuração a valor justo, diferentemente do custo

histórico, envolve subjetivismo, o qual pode aparecer em maior ou menor escala, conforme a chamada hierarquia de valor justo (Níveis 1, 2 e 3), colocando em dúvida, em alguns casos, a confiabilidade das informações retratadas nas demonstrações financeiras. A subjetividade, assim como a falta de objetividade e de certeza, acabam abrindo espaço para manipulações e, pois, para o uso inadequado dessa forma de mensuração. Ainda assim, de um modo geral, profissionais da área contábil vêm defendendo que a mensuração a valor justo, a despeito de suas falhas, atinge o propósito de fornecer informações úteis aos usuários das demonstrações financeiras.

Se, por um lado, as mensurações a valor justo são úteis e relevantes

a “stakeholders”, atendendo, assim, ao objetivo da Ciência Contábil de prover-lhes informações necessárias e suficientes à tomada de decisões, por outro lado, para o Direito Tributário, as estimativas de valor que produzem resultados “aproximadamente certos”, nas palavras de Alexsandro Broedel Lopes, ou “fortes emoções”, nas palavras de Eliseu Martins, em hipótese alguma podem servir de base para a tributação da renda.

Isso porque a tributação da renda pressupõe certeza, confiabilidade,

segurança e objetividade. Não se tributa a renda estimada, mas a renda disponível e realizada. Estimativas geram expectativas; mas expectativas não geram tributação. Firmadas essas premissas, pode-se responder à indagação que intitula o presente estudo dizendo que a neutralidade fiscal das avaliações a valor justo não constitui instrumento de política fiscal. A neutralidade fiscal é imposição da segurança jurídica, a qual requer que a tributação da renda ocorra somente quando presentes os atributos da confiabilidade, certeza, calculabilidade e objetividade, todos eles aferíveis apenas quando a renda estiver disponível e realizada, na forma do art. 43 do CTN.

Por isso, andou bem o legislador ao neutralizar fiscalmente, em

dispositivos da Lei n. 12.973, as avaliações a valor justo. Contudo, não poderia o legislador impor a tributação de ativos e passivos mensurados a valor justo por ausência de controle em subconta, ou na conferência de bens em subscrição de capital, sob as condições nele descritas, de vez que estas situações não se amoldam aos pressupostos fundamentais da tributação da renda, analisados neste estudo.