artigos - marizadvogados.com.brmarizadvogados.com.br/_2017/wp-content/uploads/2018/12/nart.27... ·...

69
Artigos São Paulo / DEZEMBRO 2018 1 Texto conjunto de Ricardo Mariz de Oliveira, Bruno Fajersztajn, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da Silva, e Ramon Tomazela Santos para o 43º Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU - Escola de Direito, publicado no livro Pesquisas Tributárias, Série CEU-Lex/Magister, Porto Alegre, 2018, p. 573. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira Bruno Fajersztajn Fabiana Carsoni Alves F. da Silva Ramon Tomazela Santos TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO Introdução São inequívocas a atualidade e a importância do tema do 43º Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU – Escola de Direito. O mundo está vivendo aquilo que alguns chamam de “Quarta Revolução Industrial”, e a realidade demonstra a ultrapassagem de fronteiras nacionais de modo muito mais fácil do que há algumas décadas, seja para os negócios, seja para o lazer, seja politicamente. Ultrapassam-se as linhas fronteiriças de qualquer agrupamento social ou político, até sem se sair de casa, através das comunicações eletrônicas. Nesta nova realidade, os países não mais podem olvidar que seus agentes econômicos espalham-se pelo mundo, tanto quanto agentes econômicos de outras nações ingressam fortemente nas mais diversas economias nacionais.

Upload: vuongdung

Post on 16-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

1

Texto conjunto de Ricardo Mariz de Oliveira, Bruno Fajersztajn, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da Silva, e Ramon Tomazela Santos para o 43º Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU - Escola de Direito, publicado no livro Pesquisas Tributárias, Série CEU-Lex/Magister, Porto Alegre, 2018, p. 573.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira Bruno Fajersztajn Fabiana Carsoni Alves F. da Silva Ramon Tomazela Santos

TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO

Introdução São inequívocas a atualidade e a importância do tema do 43º

Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU – Escola de Direito. O mundo está vivendo aquilo que alguns chamam de “Quarta

Revolução Industrial”, e a realidade demonstra a ultrapassagem de fronteiras nacionais de modo muito mais fácil do que há algumas décadas, seja para os negócios, seja para o lazer, seja politicamente. Ultrapassam-se as linhas fronteiriças de qualquer agrupamento social ou político, até sem se sair de casa, através das comunicações eletrônicas.

Nesta nova realidade, os países não mais podem olvidar que seus

agentes econômicos espalham-se pelo mundo, tanto quanto agentes econômicos de outras nações ingressam fortemente nas mais diversas economias nacionais.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

2

Pode-se observar que estas quase que perderam suas identidades características, de tal modo estão amalgamadas com fatores econômicos e sociais vindos de fora.

Não há mais, portanto, como ignorar a interação econômica mundial

e, consequentemente, os seus reflexos sobre a tributação. O Brasil caminha neste sentido, embora ainda timidamente para

uma economia que é uma das dez maiores do globo, timidez que talvez se reflita no fato de que, a despeito de tamanha grandeza, ainda seja a vigésima-quarta economia em tamanho de comércio exterior.

Ao lado disso, é significativo que o País não tenha firmado qualquer

acordo comercial relevante desde a criação do Mercosul, como também não se pode ignorar que esse bloco regional não conseguiu se ombrear com outros grandes tratados econômicos existentes fora dele.

Mas, de qualquer modo, o Brasil está caminhando para a integração

mundial, pois pertence ao G20 e está próximo de se tornar membro da OCDE, está se alinhando a negociações internacionais entre os fiscos de vários países e, a partir de 1995, foi aos poucos introduzindo mecanismos tributários que já existiam em outros países.

Neste cenário, o desafio que se apresenta é exatamente o tema deste

evento, pois não é possível ignorar a tributação internacional, porém, ao mesmo tempo, que não se pode olvidar a independência e a soberania do País.

Se protecionismos de toda ordem são hoje, mais do que nunca,

objeto de dissenções teóricas e políticas, a realidade da nossa cultura e dos nossos valores, assim como a de qualquer outra nação, não pode ser deixada de lado, porque ela sempre vai se impor e resistir a corpos que lhe sejam estranhos. Isto é, na nova ordem econômica mundial haverá sempre resistências e conflitos semelhantes aos que ocorreram no pós-guerra entre etnias regionais que foram agrupadas num único ente político.

Particularmente no campo do direito, exigências ou conveniências

da integração econômica mundial encontram barreiras, muitas vezes

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

3

intransponíveis, na ordem constitucional, ou mesmo infraconstitucional, interna, as quais têm necessariamente que ser tratadas segundo os princípios e as regras desse ordenamento, sem modismos ou imitações incompatíveis como ele. Os próprios tratados que o Brasil já firmou ou vier a firmar, embora integrados ao direito internos não imperam ilimitadamente, pois se submetem aos preceitos do Sistema Tributário Nacional que lhes sejam superiores.

1) Considerado o direito interno, é viável a sujeição do Brasil

às regras de direito tributário internacional, emanadas da OCDE, com a chancela do G-20, no âmbito do BEPS (Base Erosion and Profit Shifiting), inclusive na hipótese de constituição de um organismo tributário global (multilateralismo e soberania fiscal)?

Como se sabe, em 15 de outubro de 2015, a Organização para a

Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), com o apoio dos países integrantes do G20, divulgou o resultado final do seu plano de ação contra a erosão das bases tributáveis e a transferência artificial de lucros em operações internacionais, que pretende atualizar o regime tributário internacional ao ambiente corporativo das empresas multinacionais, bem como preservar a arrecadação tributária, a soberania, a neutralidade e a justiça fiscal.

O projeto BEPS parte do pressuposto de que os sistemas tributários

não acompanharam a evolução do ambiente corporativo das empresas multinacionais que atuam em diversas jurisdições, caracterizado pela crescente importância da propriedade intelectual para a agregação de valor, bem como pelo constante desenvolvimento de tecnologias de informação e de comunicação. Segundo a OCDE, a gradativa interação entre os sistemas tributários dos países proporcionou a eliminação ou a redução significativa da carga tributária incidente sobre a renda, de maneira inconsistente com os objetivos de política fiscal dos países e da comunidade internacional1.

Diante disso, as medidas propostas pela OCDE no projeto BEPS

pretendem (i) suprir as lacunas existentes nas leis internas dos Estados, (ii)

1 OCDE. Addressing Base Erosion and Profit Shifting. Paris: OECD, 2013, p. 5.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

4

eliminar as oportunidades de redução da carga tributária e de dupla não-tributação que surgem em razão de assimetrias entre os sistemas tributários dos países, (iii) introduzir alterações que impeçam o uso abusivo dos acordos de bitributação e, por fim, (iv) aumentar a transparência e o acesso às informações dos contribuintes pelos Estados, para permitir o combate tempestivo, adequado e abrangente das operações de planejamento tributário agressivo realizadas pelos contribuintes2.

Assim, no contexto do projeto BEPS, a OCDE procurou identificar as

principais estruturas utilizadas pelas empresas multinacionais para a prática de planejamento tributário em operações internacionais. Como diversas oportunidades de planejamento tributário internacional surgem em razão de assimetrias entre as regras domésticas dos países, ou da interação entre regras domésticas divergentes e os acordos de bitributação, a OCDE considerou, com razão, que apenas uma abordagem coerente, abrangente e coordenada entre os países poderia ajudar a conter o atual problema da erosão das bases tributáveis e da transferência de lucros no cenário internacional3.

Com relação à sujeição do Brasil às propostas apresentadas pela

OCDE no âmbito do Projeto BEPS, há três aspectos preliminares que precisam ser esclarecidos, para evitar confusões em torno do tema.

Em primeiro lugar, é importante destacar que as ações do Projeto

BEPS apresentam diferentes níveis de vinculação para os Estados, a depender da matéria envolvida. Dessa forma, na visão da própria OCDE, os países participantes do Projeto BEPS apenas assumem o compromisso de implantar as medidas que constituem o chamado “padrão mínimo”, que dependem de uma atuação coordenada e multilateral dos Estados. As demais recomendações do Projeto BEPS, que se enquadram nos níveis de “padrão reforçado” ou de “melhores práticas”, não precisam ser necessariamente seguidas pelos Estados, uma vez que a própria OCDE reconhece que tais temas envolvem opções de políticas fiscais, que podem divergir de um país para o outro. A tabela abaixo apresenta os planos de ações do Projeto BEPS divididos por “status”:

2 OCDE. Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting. Paris: OECD, 2013, pp. 7-23. 3 OCDE. Addressing Base Erosion and Profit Shifting. Paris: OECD, 2013, pp. 7-8.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

5

Padrão Mínimo Padrão Reforçado Melhores Práticas

Ação 5 – Práticas fiscais danosas

Ação 7 – Estabelecimento permanente

Ação 2 – Assimetrias em arranjos híbridos

Ação 6 – Prevenção de abuso dos tratados

internacionais

Ação 8 – Preços de transferência para

intangíveis

Ação 3 - Fortalecimento das regras de CFC

Ação 13 – Documentação de preços de transferência

e Declaração País-a-País

Ação 9 – Preços de transferência para riscos e

capitais

Ação 4 – Dedução de juros e outros pagamentos

financeiros Ação 14 – Mecanismos de solução de controvérsias

Ação 10 – Preços de Transferência para outras

operações de alto risco

Ação 12 – Regras de divulgação obrigatória

O esclarecimento acima é importante para deixar claro que as

recomendações feitas pela OCDE nos planos de ação não precisam ser integralmente aceitas pelos países que participaram do Projeto BEPS.

Em segundo lugar, cabe destacar que o Brasil, como um país

membro do G-20, apoiou e participou do Projeto BEPS. Tanto é assim que o art. 5º, inciso VII, da Lei n. 12.649, de 17.5.2012, incluído pela Lei n. 12.995, de 18.6.2014, autorizou formalmente as contribuições financeiras do governo brasileiro para o Projeto BEPS4, o que corrobora o compromisso político assumido pelo Brasil relativo à implantação dos “padrões mínimos” previstos nas ações 5, 6, 13 e 14, o que vem sendo cumprido até o momento. Portanto, a aprovação do Projeto BEPS pelos ministros das finanças dos países do G-20 é um ato eminentemente político, sem vinculação jurídica direta. 4 Veja-se: “Art. 5º. Fica o Poder Executivo autorizado a contribuir para a manutenção dos foros, grupos e iniciativas internacionais abaixo discriminados, nos montantes que venham a ser atribuídos ao Brasil nos orçamentos desses respectivos foros, grupos e iniciativas internacionais, nos limites dos recursos destinados, conforme o caso, ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, à Secretaria da Receita Federal do Brasil - RFB ou à Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, consoante a Lei Orçamentária Anual - LOA: (Redação dada pela Lei n. 12.995, de 2014) (...) VIII - Projeto sobre Erosão de Base de Cálculo e Deslocamento de Lucros - BEPS (Project on Base Erosion and Profit Shifting).”

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

6

Em terceiro lugar, é oportuno mencionar que não há uma

contradição substantiva entre o Projeto BEPS e a política fiscal internacional brasileira, pois o Brasil possui um vasto conjunto de regras internas que visam a neutralizar a erosão de bases tributáveis e a transferência internacional de lucros5. É verdade que inúmeras recomendações apresentadas pela OCDE podem não ser integralmente desejadas sob a perspectiva da política fiscal brasileira atual, como ocorre na área de preços de transferência. Porém, é de se reconhecer que não há uma incompatibilidade estrutural e intransponível entre o Projeto BEPS e a política fiscal unilateral seguida pelo Brasil.

Feitos esses esclarecimentos, é possível responder a indagação a

respeito da possibilidade de sujeição do Brasil às “regras de direito tributário internacional, emanadas da OCDE (...) no âmbito do BEPS”.

A rigor, as propostas apresentadas pela OCDE no âmbito do Projeto

BEPS não constituem “regras de direito tributário internacional”, como sugere a questão proposta pela Comissão Organizadora, pois não constituem regras imperativas de direito internacional público, provenientes de fontes formais ou materiais, como os tratados internacionais, os costumes e os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas6.

Trata-se, na verdade, de um compromisso político, sem efeitos

jurídicos vinculantes no plano do direito internacional público. Sendo assim, o cumprimento do compromisso assumido pelo Brasil no Projeto BEPS depende, em última análise, da sua vontade política de vinculação à sociedade internacional, à luz da dinâmica que rege as relações internacionais7.

5 Na mesma linha, confira-se a posição de Sergio André Rocha: “(...) é possível concluir, com base na pesquisa realizada, que não há uma contradição substantiva entre o Projeto BEPS da OCDE/G-20 e a política fiscal internacional brasileira desenvolvida desde a década de sessenta do século passado”. (ROCHA, Sergio André. Política Fiscal Internacional Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 299). 6 Sobre as fontes do direito internacional público, conferir: ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO, Geraldo Eulálio do Nascimento; e CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 146-161. 7 Para uma análise mais detida, conferir: GOLDSMITH, Jack L.; POSNER, Eric A. The Limits of Internacional Law. New York: Oxford University Press, 2006.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

7

Sabe-se que o princípio da soberania nacional, que rege as relações internacionais desde a Paz de Vestfália, implica a exclusividade do exercício do poder estatal e o dever de não interferência dos demais Estados soberanos. Logo, os Estados independentes têm o direito de regulamentar, autonomamente, as suas regras tributárias, sem interferências externas.

Daí decorre que o cumprimento de um compromisso político

assumido no plano internacional pode variar a depender dos seguintes fatores: (i) coincidência de interesses, o que pode ocorrer nos casos em

que as propostas da OCDE no Projeto BEPS coincidem com os objetivos de política fiscal internacional buscados pelo Brasil;

(ii) coordenação, que pode ocorrer caso o Brasil perceba que pode

alcançar melhores resultados se comportamento de maneira simétrica aos outros Estados que participam do Projeto BEPS;

(iii) cooperação, que pode ocorrer caso o Brasil deixe de agir em

conformidade com o seu interesse fiscal imediato, com o objetivo de atingir melhores resultados a médio ou longo prazo;

(iv) pressão internacional, que pode ocorrer caso outros Estados

economicamente relevantes pressionem o Brasil a seguir políticas fiscais contrárias a seus próprios interesses, por receio de represálias econômicas.

Por fim, quanto à hipótese de constituição de um organismo

tributário global, a resposta à indagação apresentada pela Comissão Organizadora dependerá do grau de competências atribuídas pelos Estados.

Sabe-se que a competência de qualquer organismo internacional

resulta da outorga de atribuições conferidas pelos Estados na sua constituição, por meio de ato pluriestatal convencional. As organizações internacionais são associações originárias de Estados, com competência técnica, científica e econômica, que buscam a cooperação técnica e financeira entre os países.

O art. 1º, inciso I, da Constituição Federal dispõe que a soberania

constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, de modo que a adesão a organismos internacionais se rege pelo princípio da independência nacional. Cabe, assim, ao próprio Brasil definir os termos de sua adesão.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

8

Sendo assim, como os organismos internacionais não constituem um

ordenamento jurídico comunitário, com autêntico caráter supranacional, é certo que as normas e as políticas emanadas de um Organismo Tributário Global somente vinculariam o Brasil nos exatos termos da limitação voluntária de sua própria soberania8, como ocorre no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Resposta: as propostas apresentadas pela OCDE no âmbito do

Projeto BEPS não constituem regras imperativas de direito internacional público, provenientes de fontes formais ou materiais, como os tratados internacionais, os costumes e os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas. Trata-se, na verdade, de um compromisso político, cujo comprimento depende, em última análise, da vontade política do Brasil de se vincular à sociedade internacional. A criação de um Organismo Tributário Global somente vincularia o Brasil nos exatos termos da limitação voluntária de sua própria soberania, como ocorre no âmbito da ONU e da OMC.

2. A tributação em bases universais, que sofre atualmente

revisão, nos países desenvolvidos, para restauração da tributação em bases territoriais é compatível com o direito brasileiro? Em face do ordenamento em vigor, é possível a incidência do imposto de renda sobre lucros não distribuídos por empresas vinculadas no Exterior? E da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido?

O tema desta indagação já tem sido debatido ao longo de mais de

uma década, mais precisamente desde que em 2001 a Lei Complementar n. 104 inseriu o parágrafo 2º no art. 43 do CTN, e a seguir o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 instituiu a chamada “distribuição ficta de lucros”, aplicável

8 Embora alguns autores defendam que o consentimento não deve servir de base para a análise da legitimidade do direito internacional, ainda é cedo no estágio de evolução do direito internacional público contemporâneo para desconectá-lo em absoluto da vontade manifestada pelos Estados (sobre o tema, conferir: LEITE, Filipe Greco de Marco; LESSA, Rafaela Ribeiro Zauli. “O Conceito de Legitimidade Aplicado ao Direito Internacional e suas Instituições”. Filosofia do Direito Internacional. Coord. Thomas da Rosa Bustamente e Fabrício Bertini Pasquot Polido. São Paulo: Almedina, 2018, p. 173).

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

9

às participações de pessoas jurídicas sediadas no Brasil em controladas e coligadas no exterior.

A comunidade jurídica em geral chegou à conclusão de que a

tributação de lucros não distribuídos é incompatível com o Sistema Tributário Nacional (STN) representado pela Constituição de 1988 e pelo CTN, mas o Supremo Tribunal Federal tomou partido em favor da validade parcial do referido art. 74, decidindo três lides9 por critérios que não encontram respaldo jurídico, o que acarretou a necessidade de que a primeira decisão fosse tomada pelo chamado “voto médio”, o qual por si só demonstra que não atendeu ao pensamento de alguma maioria dos ministros.10

Não é este o espaço para entrar nos detalhes dessas decisões,

mesmo porque atualmente o art. 74 está substituído por um conjunto de disposições da Lei n. 1297311, o qual mantém a tributação da disponibilidade ficta dos lucros das controladas e de algumas coligadas, estas quando equiparadas àquelas, ao passo que são submetidas à tributação apenas quando houver efetiva disponibilização de lucros as demais coligadas, assim como as participações em outras pessoas jurídicas não enquadradas nessas duas categorias de empresas investidas.

É possível, ao menos na quadra atual, que as anteriores decisões do

Supremo Tribunal influenciem a solução de futuros casos, mesmo os submetidos

9 Veja-se ADIN 2558-DF, RE 541090-SC e RE 611586-RS, estes dois meros intérpretes do que foi decidido na ação direta. 10 Mas é sempre interessante consignar que, em virtude do decurso de aproximadamente dez anos entre o início e o final do julgamento da ADIN, seis ministros da corte na data do encerramento do julgamento não votaram, um por se declarar impedido e cinco porque substituíram aqueles que já haviam se retirado; e que, entre os quatro ministros participantes da votação e ainda em exercício naquela data, a decisão então proclamada foi defendida pelo voto de apenas um deles (Joaquim Barbosa), contra os dos outros três, sendo que, da atual composição do STF, apenas esses três ministros votaram, e, paradoxalmente, todos pela inconstitucionalidade total do art. 74 (Celso de Mello, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski); nada menos do que oito ministros atualmente na corte não participaram da votação na ação direta: Gilmar Mendes, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Luiz Fachin e Alexandre de Moraes. 11 Art. 77 em diante.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

10

ao novo regime da Lei n. 12973, mas em qualquer caso a disponibilidade ficta contraria o art. 43 do CTN e, consequentemente, a própria Constituição, pois a disponibilidade da renda reflete, quanto aos tributos sobre a renda, o princípio constitucional da capacidade contributiva.

Com efeito, a disponibilidade (acrescente-se, efetiva) da renda

formadora do acréscimo patrimonial é requisito derivado do princípio constitucional da capacidade contributiva, pois o contribuinte (ou melhor, o quase contribuinte ou o futuro ou virtual contribuinte) que ainda não tenha entrado na real disponibilidade da renda não tem capacidade econômica para recolher o tributo, já que, sem a renda em seu poder, teria que retirar do seu patrimônio preexistente, e não da própria renda, o montante correspondente ao valor a ser recolhido a título de tributos.

Por isso, os referidos tributos somente podem incidir se

acontecerem efetivamente duas circunstâncias: haver acréscimo patrimonial e este ser formado por rendas ou proventos cuja disponibilidade econômica ou jurídica tenha sido adquirida.12

Ademais, a verdade é que, tal como o art. 74 da Medida Provisória n.

2158-35, as atuais normas que prescrevem a incidência sobre lucros não distribuídos sequer encontram guarida no parágrafo 2º do art. 43, que supostamente lhes daria fundamento de validade.

De fato, esse parágrafo apenas determina que a lei estabeleça o

momento e as condições em que se dará a disponibilidade de receitas ou rendimentos oriundos do exterior, com abrangência de toda e qualquer espécie de receita ou rendimento, e se explica porque a aquisição desses ingressos no patrimônio pode ocorrer por inúmeros meios, especialmente por provirem de outras jurisdições e até poderem jamais chegar “materialmente” ao território nacional.

Ou seja, o parágrafo 2º do art. 43 não autorizou que a norma do

“caput” fosse desvirtuada através do artifício da ficção de disponibilidade, pois sua dicção é inequívoca, qual seja, “na hipótese de receita ou de rendimento

12 E não trata de exigir disponibilidade financeira.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

11

oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo”.

Deste modo, se a norma da lei complementar dirige-se a receitas e

rendimentos oriundos do exterior, permitindo uma definição legal específica de quando se considere ocorrida a sua disponibilidade, ela pressupõe necessariamente que haja uma receita ou rendimento com origem no exterior, e, portanto, não acode ao entendimento de que possam ser tributados valores ainda não recebidos porque não distribuídos por suas fontes produtoras, e que, por isto mesmo, não são nem receitas nem rendimentos e, portanto, não podem ser objeto de qualquer cogitação sobre estarem ou não disponíveis.

Outrossim, a norma da lei complementar também não permite a

renda ficta sob o argumento de que a avaliação contábil por equivalência patrimonial, no balanço da investidora, reflete a disponibilidade do lucro, pois esse método determina o registro escritural de valores que, para a investidora, ainda não são oriundos de qualquer lugar, inclusive quando sejam valores mantidos nos patrimônios de outras entidades no exterior. Em outras palavras mais diretas, o método não registra receita ou rendimento a que alude o parágrafo 2º do art. 43 do CTN.

Doutra feita, esse dispositivo do CTN não tem qualquer ligação com

regras do tipo CFC, das quais as normas brasileiras se aproximam mas não se igualam, além de que aquela norma superior não contém o desatino de autorizar a instituição de fato gerador por ficção legal ou presunção absoluta, o que reconhecidamente seria inconstitucional.

Talvez para evitar o obstáculo da ficção, nas discussões sobre a

Medida Provisória n. 2158-35 veio à baila o argumento fazendário de que a renda estaria disponível, tanto que o balanço da pessoa jurídica no Brasil já a registra através do método da equivalência patrimonial, e poderia gerar distribuição de dividendos.

Já vimos como o argumento não se ajusta com o CTN, mas sua

falsidade é evidente, eis que o método da equivalência patrimonial, tal como consta da lei societária (Lei n. 6404) e da legislação tributária (Decreto-lei n. 1598), é mero critério de avaliação do ativo representado pelo investimento na

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

12

controlada ou coligada, assim como outros ativos têm outros critérios de avaliação, mas todos eles sem qualquer efeito na apuração do lucro tributável.

Quanto aos investimentos submetidos ao método de avaliação por

equivalência, este visa refletir a possível participação da pessoa jurídica nos lucros da controlada ou coligada, mas não produz qualquer outro efeito jurídico ou econômico, especialmente não tendo a função nem o poder de atribuir qualquer direito sobre os lucros da investida, e muito menos disponibilidade dos mesmos, tanto quanto, no caso de prejuízo da coligada ou controlada, a redução da conta de investimento não torna a investidora responsável pelo pagamento dos passivos da investida.

É por esta razão que a neutralidade tributária das variações

patrimoniais decorrentes da equivalência patrimonial reflete a realidade de que os lucros “apurados” não pertencem à pessoa jurídica que esteja obrigada ao método, pois ainda pertencem ao patrimônio da coligada ou controlada. Sendo assim, a neutralidade fiscal do método, estatuída expressamente pela lei, no fundo é assim por imposição do princípio da realização (disponibilidade) da renda, o qual, por sua vez, e como já mencionado, promana do princípio constitucional da capacidade contributiva.

O curioso é que, contrariamente ao argumento, quando empregado

para dizer que ele revela disponibilidade, o método expõe exatamente os lucros ainda não disponibilizados, pois, a partir do momento em que eles são distribuídos aos sócios ou acionistas, desaparecem da conta de investimento avaliada por equivalência patrimonial. Nesse momento, em que há, sim, receita e rendimento, o montante dos dividendos percebidos é creditado à conta de investimento e debitado a uma conta caixa ou equivalente, isto é, a conta de investimento é diminuída e a conta caixa ou equivalente é aumentada, sendo que este aumento decorre exatamente de que o lucro da controlada ou coligada foi nesse momento disponibilizado efetivamente para a investidora, cabendo acrescentar que não se trata de mero procedimento contábil formal, pois decorre de disposições legais de cunho material.

Enfim, o método da equivalência patrimonial não reflete

disponibilidade de renda, mas renda futura, ou expectativa de renda, ainda que a contabilidade a registre nos resultados da investidora. A despeito disto, antes da

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

13

efetiva distribuição do lucro da investida, isto é, antes de haver receita ou rendimento, o valor refletido pelo método não passa de renda virtual e escritural da investidora.

Em conclusão, porque ainda não há direito à renda, não há o objeto

da disponibilidade e, por consequência, não há possibilidade de ter ocorrido o fato gerador do IRPJ e da CSL, assim como a investidora não pode ser contribuinte de imposto sobre lucros que ainda pertencem à investida.

Por isso mesmo, a Lei n. 6404, art. 197 e 202, feita em outros

tempos, qualifica as variações positivas da conta de investimento em decorrência da equivalência patrimonial como “lucros não realizados”, e recomenda a sua segregação em reserva específica com esse título, na qual devem permanecer até ocorrer a efetiva realização, isto para que não haja distribuição de dividendos baseados em acréscimo patrimonial meramente escritural, sem efetiva consistência econômica.

Constituída essa reserva, segundo a lei ela somente pode ser

utilizada para pagamento do dividendo obrigatório, porém nada obsta a que não haja o pagamento mesmo desse dividendo, tanto que o inciso II do art. 202 autoriza a diminuição da base de cálculo do dividendo obrigatório ao valor do lucro que tiver sido realizado, desde que a diferença seja lançada à reserva de lucros a realizar, e o inciso III acrescenta que os lucros registrados nessa reserva deverão ser acrescidos ao primeiro dividendo declarado após a realização, ainda assim sob a condição de não terem sido absorvidos por prejuízos supervenientes.

Por tudo isso, também improcede o raciocínio de que há

disponibilidade dos lucros porque o método propicia a distribuição de dividendo obrigatório ou de qualquer outro dividendo aos sócios ou acionistas da investidora, argumento este que, se fosse válido, obviamente não poderia ser generalizado para abarcar situações concretas em que tenha sido constituída a reserva ou não tenham sido distribuídos dividendos.

Mas o argumento é sempre improcedente, mesmo que haja

pagamento de dividendos, porque os fundamentos econômicos e jurídicos do direito privado em torno desta matéria específica são distintos dos que vigem no

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

14

direito tributário. De fato, a decisão da sociedade empresária, de distribuir dividendo obrigatório com base em lucros não realizados, é legalmente possível e certamente, se houver uma boa administração empresarial, será precedida da análise de uma série de fatores econômicos, financeiros, de mercado de capitais, etc., que justifiquem pagar dividendos com recursos financeiros extraídos do patrimônio existente, já que os lucros não realizados não introduziram dinheiro nesse patrimônio, para suportar o pagamento de dividendos. Trata-se de uma decisão societária livre, que pode ser tomada ou não e, de qualquer modo, quando for pela distribuição, os riscos decorrentes (de faltar recursos para as operações, por exemplo) terão sido consciente e voluntariamente assumidos, e a lei privada fornece meios para coibir e punir os excessos.

Com a tributação é diferente, pois, se fosse possível tributar a renda

não realizada, seria o patrimônio, e não a renda, que forneceria os recursos para o recolhimento do tributo, violentando o princípio da capacidade contributiva, além de que o contribuinte não teria a mínima possibilidade de decidir em contrário.

Ademais, a falsidade do argumento desponta da observação de que

duas pessoas jurídicas portadoras de lucros não realizados teriam tratamentos fiscais distintos apenas porque uma decidiu distribuir dividendos e a outra não, quando a essência do fato gerador, em seus elementos constitutivos, é sempre a mesma.

Há mais um ponto a ser analisado, o qual gira em torno do

argumento de que a investidora, quando controladora, tem o poder de controle, em virtude do qual já haveria disponibilidade sobre os lucros da controlada, dado que o efetivo recebimento dos mesmos dependeria exclusivamente da vontade da controladora.

Mas se trata de outro equívoco grave, primeiramente porque o

controlador não dispõe de arbítrio para gerir a entidade ao seu talante, além de que seu poder decisório pode sofrer obstáculos e limitações existentes nas leis das jurisdições em que atuam suas controladas, ou mesmo na lei brasileira. Exatamente por isso, é raríssimo que a totalidade do lucro de um exercício seja distribuído aos sócios ou acionistas, deixando a empresa sem caixa, ou como pouco caixa. Isto não ocorre mesmo nas subsidiárias integrais!

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

15

Entretanto, o relevante é que, enquanto estiverem no patrimônio da

investida, não podem estar simultaneamente no patrimônio da controladora, no qual somente entrarão e produzirão aumento (fato gerador) quando saírem daquele. Esta é a realidade lógica e econômica, que se ajusta à realidade jurídica decorrente das diferentes personalidades jurídicas e das respectivas autonomias patrimoniais.

Outrossim, a respeito da possibilidade de decidir o momento da

distribuição de dividendos, está na esfera da liberdade individual, ínsita ao nosso sistema constitucional, e própria da liberdade de iniciativa privada, de cujas liberdades situa-se paralelamente a liberdade de praticar ou não o fato gerador de qualquer obrigação tributária, a qual, por sua vez, é inerente à natureza dessa espécie de obrigação e a distingue de outras que o indivíduo tenha ou possa ter perante o Poder Público.

Em outras palavras, o fato gerador, conquanto acarrete obrigação

“ex lege”, somente existe a partir de uma ação positiva do contribuinte no exercício da sua liberdade constitucional de gestão da sua propriedade patrimonial.

Portanto, o argumento relacionado ao poder de controle e ao poder

de decidir sobre a distribuição dos lucros de uma controlada é falso, perante a própria noção do que seja o fato gerador de qualquer obrigação tributária.

Ainda a propósito da disponibilidade que estaria caracterizada pelo

reconhecimento contábil dos lucros através do obrigatório método da equivalência patrimonial, é inadmissível a confusão entre tal fato contábil e o conceito de disponibilidade econômica sobre os mesmos.

Com razão, além de todas as considerações anteriores, não se pode

perder de vista que o método da equivalência patrimonial impõe que a contabilidade reconheça por antecipação a possibilidade de a investidora vir a receber os lucros existentes na controlada ou coligada, o que na realidade poderá não ocorrer se em período seguinte eles forem consumidos por prejuízos, ou se a entidade no exterior não efetuar qualquer distribuição de

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

16

dividendos, ou não puder fazê-lo, ainda que parcialmente, por algum impedimento da lei local.

Destarte, em sua inteireza, significado e função, o método contábil

da equivalência patrimonial revela seu caráter meramente estimatório (além de ser estimação transitória) do valor do investimento, o qual, de qualquer modo, nem sequer constitui-se em estimação do verdadeiro valor do investimento, pois é baseado exclusivamente no valor patrimonial contábil da investida, o qual raramente (somente por coincidência acidental) representa o verdadeiro valor da empresa.

Em suma, mesmo que o método da equivalência patrimonial

acarrete a agregação de um novo valor ao patrimônio contabilizado da pessoa jurídica investidora, ele não tem o poder de atribuir a esta qualquer disponibilidade econômica ou jurídica sobre tal valor.

Por tudo isso, a controladora tem o direito de decidir manter os

lucros da controlada no patrimônio desta, e pode decidir assim por razões de necessidade ou conveniência do empreendimento econômico, sem ter que se descapitalizar para pagar tributos sobre esses lucros que sequer adquiriu, ou sem ter que descapitalizar a controlada para transferir parte dos seus recursos a fim de que a controladora os entregue ao fisco brasileiro.

Ainda a propósito do registro dos lucros da investida na

contabilidade da investidora, não é demais repetir que ele não corresponde a um efetivo aumento patrimonial, ao passo que o imposto de renda, assim como a CSL, incide sobre a renda, e não sobre a valorização patrimonial.

Neste sentido, é necessária a percepção das realidades jurídicas

embasadas em distintas realidades fáticas. O fato gerador dos tributos sobre a renda é um acréscimo

patrimonial derivado da renda contida nas receitas ou rendimentos vindos de fora do patrimônio, o que não se confunde com a valorização de itens que já estejam no patrimônio.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

17

Para maior clareza, se, por exemplo, um imóvel passou por grande valorização, seu proprietário pode vendê-lo e realizar expressivo ganho de capital sujeito ao imposto de renda. Portanto, nada impede o proprietário de vender, ou seja, a possibilidade de realizar o ganho está exclusivamente na sua vontade, assim como nada o obriga a vender.

Entretanto, é incabível a cobrança de imposto de renda sobre o

possível ganho de capital antes que este se torne realidade, impossibilidade esta que se manterá mesmo que, por hipótese, a lei passe a determinar, de modo semelhante como faz com a equivalência patrimonial, que a declaração de bens entregue obrigatoriamente em cada ano à Secretaria da Receita Federal do Brasil tenha que mencionar o valor de mercado dos bens do patrimônio do declarante, que seria obrigação semelhante às que as pessoas jurídicas têm de contabilizar a equivalência patrimonial e outras valorizações de bens, e de informá-las ao fisco.

No mesmo exemplo, a valorização do imóvel é evento econômico

que desencadeia a incidência do imposto sobre a propriedade imobiliária, cuja base de cálculo é o valor venal dos bens, e está muito longe da hipótese de incidência do imposto de renda (bem como da CSL), que se constitui na obtenção de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou provento de qualquer natureza, participante de aumento patrimonial líquido no período de apuração.

Ou seja, seria inválida a cobrança do imposto de renda sobre a mera

majoração contábil do valor do investimento, e não sobre renda percebida, porque distorceria o fato gerador desse imposto, identificando-o com os tributos sobre a propriedade. Não é necessário acrescentar que a própria identidade substancial do tributo, numa situação como esta, passaria a ser outra, distinta daquela derivada do seu “nomen juris”.

Ainda retornando à noção de disponibilidade econômica do ganho,

esta não se confunde com a simples valorização do patrimônio, pois essa disponibilidade, abstraindo-se de nuances irrelevantes neste aspecto, sempre foi reconhecida como sendo a renda recebida, além de que, principalmente, tal disponibilidade jamais se confundiu com a simples mais-valia de bens patrimoniais acima dos respectivos custos de aquisição, nem poderia se confundir.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

18

Inclusive as avaliações a mercado, que são obrigatórias na contabilidade em inúmeras situações em que as práticas contábeis avaliam ativos ou passivos a “valores justos”, estão expressamente neutralizadas para efeitos fiscais pela Lei n. 12973, determinando a incidência apenas quando os ganhos se concretizarem em decorrência de vendas e outros eventos reais que representem efetiva disponibilidade da renda.

Pode-se, em resumo, concluir que a disponibilização ficta de lucros é

uma mentira legal incompatível com o Sistema Tributário Nacional, movida apenas por interesses arrecadatórios, distintos das razões pelas quais em outras jurisdições são encontradas normas CFC, diferentes das nossas.

Tais interesses vêm à tona quando a lei brasileira nega a

computação, na apuração do lucro aqui tributável, dos prejuízos das investidas no exterior, o que representa outra quebra do STN, pois contraria o critério da universalidade do imposto de renda.

Como se sabe esse imposto é obrigatoriamente informado pelos

critérios da generalidade, universalidade e progressividade, segundo a determinação do art. 153, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal.

Esses critérios se interpenetram e se requerem mutuamente para

que sejam efetivos na sua aplicação, e requerem que a totalidade dos fatores positivos e negativos de mutação patrimonial seja incluída na quantificação do aumento ocorrido no patrimônio em período de tempo determinado pela lei. Eles também impedem que haja divisão do patrimônio em parcelas, o que falsearia a sua correta aplicação.

Assim, a proibição legal de deduzir os prejuízos das investidas no

mesmo ano em que apurados por elas, e, em contrapartida, a inclusão dos seus lucros desse mesmo ano na base de tributação, destroem a feição constitucional do imposto de renda, desenhada nos três referidos critérios.

Estas considerações sobre prejuízos são feitas sem prejuízo da

invalidade da tributação de lucros não distribuídos, isto é, não significam que a tributação automática passaria a ser válida se os prejuízos também fossem automaticamente dedutíveis. O que se dá é que a tributação automática dos

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

19

lucros sem a dedução também automática dos prejuízos representa uma segunda inconstitucionalidade, a agravar a primeira.

RESPOSTA – Independentemente de possíveis revisões das leis

dos países desenvolvidos, ou mesmo das normas que atualmente vigem em suas jurisdições, perante o Sistema Tributário Nacional é impossível a incidência do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro sobre lucros não distribuídos efetivamente às pessoas jurídicas sediadas no Brasil, ainda que produzidos por suas controladas ou coligadas no exterior.

3) Os tratados internacionais de cooperação na troca de

informações tributárias em nome da transparência fiscal são compatíveis com o nosso ordenamento jurídico? É atual a cláusula do “tax sparing” nos tratados contra a prevenção de dupla tributação celebrados com o Brasil? O atual conceito de estabelecimento permanente, no novo direito tributário internacional (breve definição do conceito atual), pode ser incorporado pelo ordenamento jurídico nacional?

A questão desdobra-se em três diferentes perguntas relacionadas

aos seguintes temas: (i) intercâmbio de informações no plano internacional; (ii) “tax sparing”; e (iii) conceito de estabelecimento permanente. Analisaremos cada uma delas separadamente pela ordem anunciada na questão.

Intercâmbio de informações no plano internacional

Para compreender se os tratados internacionais dedicados à troca

informações são compatíveis com o nosso ordenamento jurídico, é necessário investigarmos como deve se desenvolver, no Brasil, a atividade de fiscalização em matéria tributária13. Vejamos.

13 Nas linhas que se seguem, faremos referência, em parte, a estudo elaborado em coautoria por Elidie Palma Bifano e Fabiana Carsoni Alves Fernandes da Silva, em que é abordado o tema do sigilo nas arbitragens e os limites da fiscalização em matéria tributária. A íntegra deste estudo pode ser conferida em: BIFANO, Elidie Palma; SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da Silva. “O sigilo na arbitragem e os limites da atuação das autoridades fiscais em procedimentos de fiscalização”. Revista Direito Tributário Atual. Volume 36. São Paulo: Dialética, 2016, p. 155-183.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

20

As autoridades fiscais têm competência para fiscalizar pessoas

naturais ou jurídicas, contribuintes ou não, mesmo que imunes ou isentas, de modo a aferirem a ocorrência do fato gerador, com a conseguinte constituição do crédito tributário mediante lançamento, quando for o caso, em estrito cumprimento à sua atividade vinculada e obrigatória, na forma do art. 142 do CTN.

O dever-poder14 de fiscalização é inerente ao Estado Democrático de

Direito, na medida em que a vigilância que o Estado exerce assegura o cumprimento da ordem constitucional, além de também assegurar, agora em matéria tributária, a arrecadação fiscal, em prol do interesse público.

Esse dever-poder tem respaldo no art. 174, “caput”, da Constituição

Federal, o qual autoriza o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, a exercer, na forma da lei, as funções de fiscalização. Especificamente em matéria fiscal, o pode-dever de fiscalização ainda encontra esteio no art. 145 do texto constitucional, cujo parágrafo 1º, ao dispor sobre a capacidade contributiva do contribuinte e sobre a graduação dos tributos conforme os signos presuntivos de riqueza manifestados pelo contribuinte, estabeleceu que é “facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

14 Sobre o uso e o significado do termo “dever-poder”, Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que os agentes da Administração Pública exercem “função administrativa”, estando adstritos a satisfazer interesses públicos, isto é, interesses da coletividade. Por este motivo, o autor explica que: “Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder -, as prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas como ‘poderes’ ou como ‘poderes-deveres’. Antes se qualificam e melhor se designam como ‘deveres-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 15ª edição, 2003, pp. 62-63).

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

21

O dever-poder de fiscalização na seara tributária está disciplinado no Título IV (“Administração Tributária”), Capítulo I (“Fiscalização”), do CTN, do qual constam as diretrizes da atividade de fiscalizatória.

Para os fins a que se destina este estudo, merece destaque o art. 199

do CTN, em especial o seu parágrafo único, inserido pela Lei Complementar n. 104, de 2001, para regular a cooperação em âmbito internacional no interesse da fiscalização e da arrecadação. Veja-se:

“Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio. Parágrafo único. A Fazenda Pública da União, na forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios, poderá permutar informações com Estados estrangeiros no interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos.”

Antes do parágrafo único do art. 199, o ordenamento jurídico

brasileiro já continha normas disciplinando a cooperação internacional. É o que se verifica, por exemplo, em relação (i) ao art. 16, “caput”, da Lei n. 4131, de 1962, o qual concedeu autorização para o Governo celebrar acordos de cooperação administrativa com países estrangeiros, visando ao intercâmbio de informações de interesse fiscal e cambial que sirvam de base à incidência de tributos; e também (ii) aos art. 4º, inciso IX, da Constituição15 e art. 98 do CTN16, os quais admitem a celebração de tratados e convênio voltados à cooperação internacional em matéria tributária.

Por isso, antes mesmo da inserção do parágrafo único no art. 199 do

CTN, o Brasil já havia firmado diversos acordos com outros Estados para evitar a dupla tributação, dos quais consta dispositivo regulando o intercâmbio bilateral

15 “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...)IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;”. 16 “Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

22

de informações17. No geral, estes acordos estão inspirados – embora não encontrem inteira correlação - na Convenção-Modelo da OCDE, cujo art. 26 disciplina a troca de informações entre Estados18. Também antes daquela data, o Brasil havia firmado convenções aduaneiras que igualmente previam o intercâmbio de informações19.

A troca internacional de informação constitui mecanismo de

assistência administrativa prestada pelos Estados com vistas à satisfação dos pedidos de outros Estados para obtenção de informações que, situando-se fora de seu território, não podem ser diretamente obtidas por meio da prática de atos de autoridade dos Estados solicitantes, sob pena de violação à soberania20.

17 Em meio a outros, cite-se o acordo celebrado entre Brasil e França, cujo art. 26 tem a seguinte redação: “1. As autoridades competentes dos Estados Contratantes trocarão entre si as informações necessárias para aplicar as disposições da presente Convenção e as das leis internas dos Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos pela Convenção na medida em que a tributação nelas previstas for conforme a Convenção. Todas as informações deste modo trocadas serão consideradas secretas e só poderão ser comunicadas às pessoas ou autoridades encarregadas do lançamento ou cobrança dos impostos abrangidos pela presente Convenção. 2. As disposições do parágrafo 1 não poderão, em caso algum, ser interpretadas no sentido de impor a um dos Estados Contratantes a obrigação: a) de tomar medidas administrativas contrárias à sua legislação ou à sua prática administrativa ou às do outro Estado Contratante; b) de fornecer informações que não possam ser obtidas com base na sua própria legislação ou no âmbito da sua prática administrativa normal ou das do outro Estado Contratante; c) de transmitir informações reveladoras de um segredo comercial, industrial, profissional ou de um processo comercial ou informações cuja comunicação seria contrária à ordem pública”. 18 As diferenças entre as disposições do art. 26 da Convenção-Modelo e os dispositivos sobre troca de informações inseridos nos acordos firmados pelo Brasil foram apontadas por Sergio André Rocha. Vide: ROCHA, Sergio André. Troca internacional de informações para fins fiscais. São Paulo: Quartier Latin: 2015, pp. 129-135. 19 Isso foi reconhecido pela RFB na Portaria SRF n. 1825, de 3.9.1998, a qual tratou dos possíveis instrumentos a serem utilizados pelo órgão na troca de informações (convenções aduaneiras, acordos para evitar dupla tributação, cartas rogatórias, canais diplomáticos e assistência de governo estrangeiro autorizada pela lei doméstica). 20 XAVIER, Alberto. “Troca internacional de informações: as novas tendências”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.) Grandes questões atuais de Direito Tributário. Volume 13. São Paulo: Dialética: 2009, p. 9.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

23

Nos últimos anos, acompanhou-se o surgimento de diversos acordos, tratados e convenções dedicados à troca internacional de informação, em meio a debates sobre transparência e sobre aprimoramento de medidas voltadas ao combate à lavagem de dinheiro, ao tráfico de armas e de entorpecentes, ao terrorismo e à evasão fiscal21.

Mas, afinal, esse dever-poder do fisco brasileiro de compartilhar

informações, inclusive no plano internacional, conquanto autorizado em acordos, convenções ou tratados e em dispositivos de nossa legislação, é compatível com o ordenamento jurídico?

A dúvida aparece, fundamentalmente, em razão da norma

estampada no art. 5º da Constituição Federal, cujos incisos X e XII consagram a inviolabilidade da privacidade e do sigilo de comunicações e dados em geral. Confira-se a redação destes dispositivos:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

21 A troca de informações entre países é uma realidade entre nós. Ela já vinha contemplada, há décadas, em acordos para evitar a dupla tributação da renda. Mas, nos últimos anos, os mecanismos voltados à viabilizar a troca foram aprimorados. Exemplo disto é o “Foreign Account Tax Compliance Act (“FATCA”), proposto pelos Estados Unidos da América, com o objetivo de detectar e combater a evasão fiscal e melhorar o cumprimento das regras pelos contribuintes, mediante a concessão de ferramentas administrativas à Receita Federal americana voltadas a detectar e dissuadir os abusos fiscais no exterior . A Convenção Multilateral sobre assistência mútua administrativa em matéria fiscal também é outra demonstração desta realidade de troca internacional de informações. A ação 11 do BEPS (“Base Erosion and Profit Shifting”), na mesma trilha, buscou estabelecer metodologias internacionais para a coleta e a análise de dados sobre fenômenos econômicos da erosão da base tributária e da transferência de lucros, sem prejuízo de propor ações para remediá-los. Estes são apenas alguns exemplos que se somam a outros.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

24

(...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (...)”.

Como se vê, os direitos à privacidade e ao sigilo espraiam do próprio

texto constitucional, quando cuida da intimidade da pessoa, de seus dados e comunicações, limitando a atuação de terceiros e também do Estado, na defesa dos direitos e liberdades individuais de cada cidadão. Estes direitos, nas palavras de Tercio Sampaio Ferraz Junior, “são uma peça fundante da própria cidadania, ao lado de outros direitos fundamentais ali expressos. O sigilo, nesse sentido, tem a ver com a segurança do cidadão, princípio cujo conteúdo valorativo diz respeito à exclusão do arbítrio, não só de parte da sociedade como, sobretudo, do Estado que só pode agir submisso à ordem normativa que o constitui”22.

Desses direitos, decorre outro de particular importância para o

tema ora analisado: o sigilo fiscal, consagrado no art. 198 do CTN, o qual obsta a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades, excetuadas as hipóteses estabelecidas no mesmo dispositivo23. 22 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. “Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado”. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, out./dez. 1992, p. 152. 23 Tamanha é a importância do dever de sigilo fiscal que sua quebra sujeita ao infrator à pena cominada no art. 325 do Código Penal para crime de violação de sigilo profissional (“Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação”), sem prejuízo da configuração de ato de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, inciso III, da Lei n. 8429, de 1992. Para assegurar o sigilo fiscal, a RFB editou a Portaria RFB n. 2344, de 24.3.2011, disciplinando “o acesso a informações protegidas por sigilo fiscal constantes de sistemas informatizados da Secretaria da Receita Federal do Brasil”. Além disto, a Portaria RFB n. 3541, de 7.10.2011, aprovou o “Manual de Sigilo Fiscal”, o qual contém as diretrizes a serem observadas pelos servidores da RFB no desempenho de suas atribuições.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

25

A despeito da proteção conferida pela Constituição Federal e pela

legislação infraconstitucional, os direitos fundamentais à privacidade e ao sigilo não são absolutos, devendo ceder diante do interesse público, do interesse da justiça e do interesse social, como apontou o Ministro Carlos Mário Velloso, na Pet-QO n. 577, de 25.3.1992, julgada em sessão plenária do Supremo Tribunal Federal.

De fato, tais direitos devem ser sopesados à luz dos interesses da

sociedade e do Estado e dos demais valores e direitos proclamados pela Constituição Federal. Tanto é assim que o próprio texto constitucional ressalvou a proteção ao sigilo, por exemplo, nos casos de investigação criminal ou instrução processual penal, sem prescindir de prévia ordem judicial.

O segredo há de ceder, entretanto, conforme reconheceu o Ministro

Carlos Mário Velloso na mesma Pet-QO n. 577, somente na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei. Quer dizer, o segredo não é absoluto, mas sua quebra, ainda que parcial, apenas pode se dar dentro das balizas e dos limites previstos em lei e na Constituição Federal.

A fiscalização promovida pelo Estado é uma das formas pelas quais

a privacidade e o sigilo sofrem temperamentos. Na seara fiscal, a fiscalização ocorre com a finalidade de assegurar o cumprimento da legislação tributária e para garantir a arrecadação, tudo em prol do interesse público, frente ao qual aqueles direitos individuais acabam sendo mitigados.

Contudo, tal temperamento à privacidade e ao sigilo não é irrestrito.

Se fosse assim, os cidadãos e sujeitos passivos estariam expostos a arbítrios e excessos por parte do Estado, na contramão do direito de liberdade e da segurança jurídica, consagrados pela Constituição Federal.

Muito embora não tenha tratado sobre o intercâmbio internacional

de informação, mas, sim, da quebra de sigilo bancário pelas autoridades fiscais, independentemente de prévia autorização judicial, autorizada pela Lei Complementar n. 105, de 10.1.2001, em seu art. 1º, parágrafo 3º, inciso VI,

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

26

combinado com o art. 6º24, o Ministro Celso de Mello, no Recurso Extraordinário n. 389808-PR, julgado em 15.12.2010 pelo Plenário do C. Supremo Tribunal Federal, manifestou preocupação com a quebra de sigilo bancário, dado que as autoridades fiscais não ocupam posição equidistante em relação aos sujeitos passivos das obrigações tributárias. Veja-se o que assentou o Ministro Celso de Mello na ocasião:

“A controvérsia instaurada na presente causa suscita algumas reflexões em torno do tema pertinente ao alcance da norma inscrita no art. 5º, X e XII, da Constituição, que, ao consagrar a tutela jurídica da intimidade (e, também, da privacidade), dispõe que ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas ( ... )’ (grifei) . Esse tema ganha ainda maior relevo, se se considerar o círculo de proteção que o ordenamento constitucional estabeleceu em torno das pessoas, notadamente dos contribuintes do Fisco, objetivando protegê-los contra ações eventualmente arbitrárias praticadas pelos órgãos estatais da administração tributária, o que confere especial importância ao postulado da proteção judicial efetiva, que torna inafastável, em situações como a dos autos, a necessidade de autorização judicial, cabendo ao juiz, e não à administração tributária, a quebra do sigilo bancário. É que os órgãos estatais da administração tributária não guardam, em relação ao contribuinte, posição de equidistância nem dispõem do atributo (apenas inerente à jurisdição) da ‘terzietà’, o que põe em destaque o sentido tutelar da cláusula inscrita no §1º do art. 145 de nossa Lei Fundamental”. (destaques do original).

24 O art. 6º possui a seguinte redação: “Art. 6º. As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente. Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária”.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

27

Em outra passagem de seu voto, o Ministro Celso de Mello afirmou que os deveres-poderes de fiscalização conferidos às autoridades administrativas não são absolutos, encontrando limites nos direitos individuais das pessoas em geral e dos contribuintes em particular (art. 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal), inclusive no direito à privacidade e ao sigilo de informações e dados. Eis o que restou dito a tal respeito:

“Impende reconhecer, desde logo, que não são absolutos - mesmo porque não o são - os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, cabendo assinalar, por relevante, Senhores Ministros, presente o contexto ora em exame, que o Estado, em tema de tributação, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional. (...) O que me parece significativo, no contexto ora em exame, é que a administração tributária, embora podendo muito, não pode tudo, eis que lhe é somente lícito atuar, ‘respeitados os direitos individuais e nos termos da lei’ (CF, art. 145, §1º), consideradas, sob tal perspectiva, e para esse efeito, as limitações decorrentes do próprio sistema constitucional, cuja eficácia restringe, como natural conseqüência da supremacia de que se acham impregnadas as garantias instituídas pela Lei Fundamental, o alcance do poder estatal, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos cidadãos da República. (...) Na realidade, a circunstância de a administração estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes, em particular”. (destaques do original).

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

28

Não obstante as considerações do Ministro Celso Mello no Recurso

Extraordinário n. 389808-PR, em julgamento posterior, concluído em 24.02.2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, revendo sua posição anterior, declarou, por maioria de votos, que a quebra do sigilo bancário em fiscalização procedida pela Administração Tributária não padece de inconstitucionalidade. O entendimento restou assentado no Recurso Extraordinário n. 601314-SP, afetado a repercussão geral.

A decisão considerou que a quebra do sigilo garante e dá eficácia ao

dever-poder das autoridades de fiscalizar o cumprimento da legislação e a extinção do crédito tributário. Entendeu-se não haver quebra de sigilo bancário, mas mera “transferência” de sigilo da órbita bancária para a fiscal, continuando os respectivos dados excluídos do acesso público, embora na guarda do Poder Público25.

O Ministro Dias Toffoli acrescentou que a autorização de quebra do

sigilo bancário representa confluência entre o “dever fundamental do contribuinte de pagar tributos” e os deveres do fisco de tributar e fiscalizar.

O chamado “dever fundamental de pagar tributos”, defendido pelo

jurista português José Casalta Nabais, assenta-se na premissa de que a tributação é instrumento de realização da ordem econômica, capaz de viabilizar a “justiça distributiva”, traduzida na redistribuição dos rendimentos dos contribuintes para os que não o sejam26, por não manifestarem capacidade contributiva. Ou seja, embora todos sejam destinatários do dever fundamental de pagar

25 A transferência, conquanto admitida pelo STF, não autoriza que as autoridades fiscais deem qualquer destinação aos dados que obtiverem. É vedado, por exemplo, o compartilhamento das informações obtidas com fundamento na autorização dada pelo art. 6º da Lei Complementar n. 105. Esta vedação está estampada no parágrafo único do mesmo art. 6º. Mas os limites da autuação das autoridades fiscais ainda não foram traçados. Discutir-se-á, no Recurso Extraordinário n. 1.055.941-SP, por exemplo, se os dados podem ser compartilhados pela Fazenda Pública com o Ministério Público, independentemente de autorização judicial. 26 Cf. NABAIS, José Casalta. “Solidariedade Social, cidadania e direito fiscal”. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra (Coords). Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 128-129.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

29

impostos, este dever é exercido nos limites da capacidade contributiva, propiciando, assim, a satisfação da solidariedade social.

Além de invocar o chamado “dever fundamental de pagar tributos”,

o Ministro Dias Toffoli também defendeu a validade da quebra do sigilo bancário com base nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil quanto à troca de informações.

Na mesma toada, o Ministro Ricardo Lewandowski, modificando o

entendimento que havia adotado em 2010, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 389808-PR, destacou que sua nova posição considerou a necessidade de fortalecimento dos instrumentos necessários à fiscalização e ao combate de atividades ilícitas, ao afirmar que “o mundo evoluiu e ficou evidenciada a efetiva necessidade de repressão aos crimes como narcotráfico, lavagem de dinheiro e terrorismo, delitos que exigem uma ação mais eficaz do Estado, que precisa ter instrumentos para acessar o sigilo para evitar ações ilícitas”27.

Não nos cabe, neste trabalho, analisar as afirmações dos Ministros

que votaram favoravelmente à constitucionalidade das normas da Lei Complementar n. 105. O que é digno de registro, a propósito destas mesmas afirmações, é o reconhecimento de que o acesso e a troca de informações constituem uma tendência mundial que não pode ser olvidada, nem contornada.

As medidas voltadas à troca de informações são louváveis, tendo em

vista que permitem o aprimoramento da fiscalização tributária e criminal. Contudo, o uso dessas medidas, em qualquer caso, deve ser sopesado à luz de direitos fundamentais, como a liberdade, a privacidade, o direito de petição, o direito de defesa e o sigilo, sob pena de enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.

27 O Ministro Celso de Mello, vencido na ocasião, destacou o caráter “regressista” da nova interpretação da legislação dada pelo Supremo Tribunal Federal, suscetível que ela é de ofender as liberdades fundamentais consagradas no texto constitucional, bem como o regime democrático, mediante atos de autoridade dos agentes estatais, que oprimem os indivíduos, convertendo-se em “instrumento de indiscriminada e ordinária devassa da vida financeira das pessoas em geral” (destaques do original).

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

30

Não à toa, os Ministros do STF que votaram pela constitucionalidade das disposições da Lei Complementar n. 105 manifestaram preocupação com a proteção dos dados colhidos mediante acesso às informações bancárias do sujeito passivo. Foi destacado que a quebra do sigilo deve ocorrer em atenção aos procedimentos previamente descritos e disciplinados por cada Estado e Município, como fez a União Federal por meio do Decreto n. 3724, de 10.01.2001, de modo a impedir arbítrios do fisco.

Com efeito, o Ministro Luís Roberto Barroso afirmou que a obtenção

de informações depende da instauração de processo administrativo devidamente regulamentado por cada ente da federação, em que se assegure, tal como se dá no âmbito da União, nos termos da Lei n. 9784, de 1999, e do Decreto n. 3724, ao menos, as seguintes garantias: “a) a notificação do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos; b) sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico do requerente; c) existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso; d) por fim, estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios”.

Um dos desafios da troca de informações internacional é, sem

dúvida alguma, a garantia do direito à privacidade e dos direitos de petição e de defesa do contribuinte. Ao lado de qualquer regra de transparência que viabilize a cooperação internacional, deve haver também regras gerais de proteção aos contribuintes28.

28 Foi o que defendeu, por exemplo, Xavier Oberson (OBERSON, Xavier. “General Report”. “Exchange of information and cross-border cooperation between tax authorities”. In: Cahiers de Droit Fiscal International. International Fiscal Association, p. 57). A preocupação também foi externada por um dos autores deste trabalho, Ramon Tomazela Santos, em outro estudo (SANTOS, Ramon Tomazela. “A ampliação da troca de informação nos acordos internacionais para evitar a dupla tributação da renda – entre o combate à evasão fiscal e a proteção dos direitos dos contribuintes”. Revista Direito Tributário Atual. Volume 31. São Paulo: Dialética e IBDT, 2014, p. 117-145).

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

31

Mas essa proteção é dificílima. Ainda são poucos – no Brasil e no mundo - os mecanismos voltados a dar efetividade a direitos fundamentais na troca internacional de informação29.

A OCDE já manifestou, em diversas oportunidades, a importância da

referida proteção, indicando, inclusive, os direitos que se deve assegurar aos sujeitos passivos. Como observou Sergio André Rocha, a OCDE segmentou os direitos de sujeitos passivos em processos de troca de informações em três categorias, a saber: a) o direito de notificação, consistente no direito de ser informado do pedido de informação e de seu conteúdo essencial; b) o direito de consulta, consistente na participação do processo de coleta de informações; e c) o direito de intervenção, consistente na possibilidade de recorrente controlar a legitimidade do pedido30. A OCDE também estabelece que ao sujeito passivo devem ser assegurados: (i) seu direito de defesa; (ii) seu direito de não pagar nada além do tributo efetivamente devido; (iii) seu direito à certeza; (iv) seu direito à privacidade; e (v) seu direito à confidencialidade e ao segredo31.

As recomendações da OCDE são fluidas. Os modelos estabelecidos

pela organização não incorporam em sua inteireza, muito menos regulamentam, aqueles direitos. Não por outra razão, na prática, o que se nota, de acordo com Sergio André Rocha, é que na ponderação entre eficácia da troca de informações – que pode ser comprometida pela demora em seu recebimento – e proteção a direitos individuais dos sujeitos passivos, os últimos acabam sendo sacrificados em proveito da primeira. A defesa a direitos fundamentais dá-se nos limites da legislação doméstica e, ainda assim, com a ressalva de que as respectivas garantias não podem tornar a troca de informação ineficaz32. 29 Além da dificuldade na criação de mecanismos que deem efetividade à proteção a direitos fundamentais, situações há em que, estando os direitos e obrigações dos sujeitos passivos estabelecidos na legislação doméstica e, pois, estando regulados na legislação de duas ou mais jurisdições, o sujeito passivo acaba tendo inconvenientes no seu exercício, tendo em vista serem distintas suas disciplinas (Cf. HUANG, Xiaoqing. “Ensuring Taxpayer Rights in the Era of Automatic Exchange of Information: EU Data Protection Rules and Cases”. INTERTAX. Volume 46. Issue 3. The Netherlands: Kluwer Law International BV, 2018, p. 226). 30 ROCHA, Sergio André. Troca internacional de informações para fins fiscais. São Paulo: Quartier Latin: 2015, p. 173. 31 OECD. Taxpayers’ Rights and Obligations - Practice Note. Disponível em: http://www.oecd.org/tax/administration/Taxpayers’_Rights_and_Obligations-Practice_Note.pdf. Acesso em: 4.4.2018. 32 Idem, ibidem.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

32

Isso mostra ser premente e imprescindível o aprimoramento dos

acordos, tratados e convenções e/ou as leis domésticas, estabelecendo mecanismos que assegurem, a um só tempo, a eficácia da troca de informação e a garantia a direitos fundamentais dos contribuintes.

Pouco importa – é importante que se diga – se o intercâmbio ocorre

a pedido (solicitação de um Estado a outro), de forma espontânea (repasse de informações, por um Estado, que se supõem serem de interesse do outro) ou automática (informações transmitidas sistematicamente de um Estado a outro).

Mesmo na troca automática, como observou Ricardo Campos

Padovese, a legislação deve assegurar que o sujeito passivo tenha meios de conhecer as informações a serem intercambiadas, para quais propósitos, por qual forma e sua periodicidade, assegurando também o direito de petição para que o sujeito passivo solicite a retificação ou a complementação da informação33.

Também deve ser assegurado (i) o direito de defesa, quando houver

acusação ou litígio; (ii) a confidencialidade da informação, vedando-se seu compartilhamento, inclusive com outros Estados34; (iii) a não utilização da informação com fins diversos daquele previsto no acordo, convenção ou tratado que respaldar o correspondente intercâmbio; e (iv) observância ao postulado da proporcionalidade, o que significa dizer que o motivo da requisição da informação - limitadora de direitos individuais do sujeito passivo – e o mecanismo para sua obtenção devem ser necessários, adequados e genuínos para atender aos fins a que se destina35_36. 33 PADOVESE, Ricardo Campos. Análise comparativa entre as obrigações assumidas pela República Federativa do Brasil em tratados e convenções internacionais a respeito do intercâmbio de informações em matéria tributária. São Paulo, 2017. 243 f. Trabalho de conclusão de curso (Pós-Graduação em Direito Tributário Internacional) – Instituto Brasileiro de Direito Tributário, São Paulo, 2017, p. 188. 34 Alguns acordos para evitar dupla tributação celebrados pelo Brasil vedam o compartilhamento da informação, como é o caso do acordo celebrado com a Suécia, cujo art. 26 estabelece que: “Todas as informações assim trocadas serão consideradas secretas e só poderão ser comunicadas às autoridades (inclusive, um tribunal) encarregadas do lançamento ou cobrança dos impostos que são objeto da convenção”. 35 Segundo Humberto Ávila, a proporcionalidade, por sua vez, desdobra-se em três aspectos: a) adequação (compatibilidade entre meio e fim); b) necessidade (o meio não

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

33

Outrossim, faz-se necessário que os acordos, tratados e convenções

e/ou as leis domésticas estabeleçam ressalvas, limitações ou mecanismos que garantam a proteção a segredo industrial, negocial, comercial37, bem como ao sigilo profissional38 (art. 197, parágrafo único, do CTN39)40, impedindo também a troca de informação cuja comunicação seja contrária à ordem pública41. pode impingir sacrifício desnecessário, excessivo ou demasiadamente restritivo); e c) proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens obtidas pelo fim devem ser compatíveis com o meio ou com a coerção adotada) (Ávila (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 209-218). 36 Não devem ser admitidas, nesse contexto, as chamadas “fishing expeditions” de caráter aleatório, randômicas, e sem qualquer motivação ou evidência acerca da necessidade ou utilidade da informação (cf. OBERSON, Xavier. “General Report”. “Exchange of information and cross-border cooperation between tax authorities”. In: Cahiers de Droit Fiscal International. International Fiscal Association, p. 33). 37 Ricardo Campos Padovese anota que a OCDE, a ONU e a doutrina internacional dizem que tais limites não são de observância obrigatória, razão pela qual as autoridades têm discricionariedade para atender a pedido de envio de informações, ainda que elas revelem segredo comercial (Idem, p. 189). A afirmação é preocupante. Para evitar danos a direitos dos sujeitos passivos, é fundamental que o Estado receptor tenha normas internas que assegurem a confidencialidade da informação. 38 O sigilo profissional é uma das formas de manifestação dos direitos à privacidade e ao sigilo do indivíduo cujos dados são franqueados a terceiros, nos termos dos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, mas também é uma garantia do direito de liberdade profissional, igualmente consagrado pelo art. 5º, agora inciso XIII. O Código Penal, em seu art. 154, tipifica como crime a violação do segredo profissional. 39 “Art. 197. Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros: (...) Parágrafo único. A obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão”. 40 Para situações de sigilo profissional, Ricardo Campos Padovese defende, com razão, que se garanta ao terceiro intimado o direito de intervenção, de modo a preservar seu direito de sigilo (Idem, p. 191). 41 Essa preocupação está estampada em acordos para evitar dupla tributação celebrados pelo Brasil. Naquele firmado com a Suécia, por exemplo, veda-se o intercâmbio de “informações reveladoras de segredos comerciais, industriais, profissionais ou de processos comerciais ou industriais, ou informações cuja comunicação seja contrária à ordem pública” (art. 26, item 2, “c”).

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

34

Tudo o que se disse nos parágrafos anteriores deve ser

implementado pelos Estados solicitantes e/ou receptores das informações com vistas a minimizar os efeitos oriundos da posição não equidistante que ocupam as autoridades em relação aos sujeitos passivos das obrigações tributárias, conforme destacado pelo Ministro Celso de Mello no voto acima referido. Confere-se, desta maneira, proteção a direitos fundamentais, impedindo-se que seu sacrifício seja absoluto – o que fatalmente encontraria óbice em nosso ordenamento jurídico. Tax sparing

Um dos mecanismos estabelecidos em acordos com vistas a eliminar ou mitigar a dupla tributação da renda consiste na concessão de crédito (“tax credit”).

Os créditos destinados a aliviar a dupla tributação da renda podem

ser calculados a partir o imposto efetivamente pago no exterior, ou por meio da atribuição de um crédito presumido (“matching credit”) ou fictício (“tax sparing”).

No “matching credit”, o Estado da residência concede um crédito

correspondente a um montante fixo geralmente superior à tributação máxima permitida no Estado da fonte. Por sua vez, o “tax sparing” consiste na concessão de crédito, pelo Estado da residência, correspondente ao montante máximo do imposto que o Estado da fonte poderia ter cobrado do não residente, conforme os limites que lhe foram outorgados pelo acordo, mas que deixou de cobrar em razão de benefícios previstos em sua lei interna. Ou seja, o “tax sparing”, diferentemente do “matching credit”, só gera um benefício aos contribuintes se o Estado da fonte decidir, unilateralmente, reduzir seus tributos abaixo do nível máximo autorizado pelo acordo42.

Diante do teor da pergunta a ser respondida, concentremo-nos no

“tax sparing”.

42 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Tax sparing: uma reconsideração da reconsideração”. Revista Direito Tributário Atual. Volume 26. São Paulo: Dialética e IBDT, 2011, p. 96-97.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

35

O “tax sparing” é tradicionalmente considerado como um instrumento de auxílio de países desenvolvidos a países em desenvolvimento, concedido com vistas a fomentar as atividades dos últimos. O “tax sparing” funciona como uma espécie de “moeda de troca” em negociações de acordos de bitributação, já que a concessão do referido crédito para os países em desenvolvimento tem como contrapartida a obtenção de benefícios em proveito dos países desenvolvidos, a exemplo da redução dos níveis tributação na fonte sobre dividendos, juros e royalties, ou regras menos abrangentes para a caracterização de estabelecimentos permanentes43.

Entre as décadas de 1960 e 1970, diversos acordos de bitributação

celebrados entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento estabeleceram cláusulas de “tax sparing” como forma de prestar auxílio aos últimos países na promoção de atividades industriais, científicas e comerciais em seu território. Mas a aceitação desta metodologia de alívio da dupla tributação da renda nem sempre foi unanimidade entre os países desenvolvidos. Os Estados Unidos, por exemplo, desde a década de 1950, rejeitam a inserção desta cláusula em seus acordos. Tanto é assim que, no acordo firmado entre aquele país e o Paquistão, em 1957, o Senado norte-americano recusou a adoção do “tax sparing”, não se tendo notícia de seu uso em acordos posteriores44. O OCDE, na mesma trilha, não tem recomendado a utilização de cláusulas dessa natureza.

Com efeito, a política do “tax sparing” há anos vem sendo criticada

pela OCDE. Entende-se, como destacou Alberto Xavier, que os países devem ser neutros no que tange às decisões de investimento, em homenagem ao princípio da igualdade. Afirma-se também que não há prova da eficácia do estímulo em relação às decisões de investimento. Outra preocupação apontada diz respeito às possíveis práticas abusivas, derivadas do uso de cláusulas de “tax sparing”, tendentes a atingir economia fiscal45. Tais apontamentos e preocupações foram

43 SILVA, Natalie Matos. As cláusulas de tax sparing e matching credit nos acordos de bitributação. São Paulo, 2013. 147 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Direito Econômico, Financeiro e Tributário). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 39. 44 Idem, p. 48. 45 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 757.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

36

registrados em relatório publicado pela OCDE em 1998, denominado “Tax sparing: a reconsideration”46.

A política adotada pelo Brasil entre 1960 e 1970 foi a de inserir

cláusulas de “tax sparing” em seus acordos para evitar dupla tributação da renda. Esta política atendia ao propósito de fomentar a atração de investimentos ao país47. Como destacou Luís Eduardo Schoueri, não era aceitável para um país em desenvolvimento, como o Brasil, que a única consequência de um acordo de bitributação fosse a redução do nível de tributação no país (Estado da fonte), mas o aumento da tributação no Estado da residência (por exemplo, em razão da redução de “tax credit”). Por isto, noticia o autor, naquele período o Brasil não se dispunha a assinar um acordo com um país desenvolvido se não contemplasse cláusulas de “tax sparing” ou “matching credit”48.

Em que pese muitos acordos celebrados pelo Brasil contemplem a

cláusula de “tax sparing”, nos acordos mais recentes, o que se nota é algo diferente. Como também noticia Luís Eduardo Schoueri, nos acordos posteriores a 2002 firmados pelo país, não há cláusulas de “tax sparing” ou “matching credit”. O motivo? Provavelmente, os negociadores acreditaram que os investimentos não ocorreriam em um único sentido – o que se espera na celebração de acordo entre país desenvolvido e país em desenvolvimento. Além disto, viu-se também, nos últimos anos, um crescimento da importância de

46 São questionáveis as preocupações apontadas no estudo da OCDE por uma série de motivos, dentre eles a falta de evidência empírica conclusiva a propósito destas preocupações. Sobre o tema, vide: SCHOUERI, Luís Eduardo. “Tax sparing: uma reconsideração da reconsideração”. Revista Direito Tributário Atual. Volume 26. São Paulo: Dialética e IBDT, 2011, p. 93-108; SILVA, Natalie Matos. As cláusulas de tax sparing e matching credit nos acordos de bitributação. São Paulo, 2013. 147 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Direito Econômico, Financeiro e Tributário). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 47 A postura brasileira adotada à época quanto ao uso do “tax sparing” em seus acordos é apontada como uma das razões para a não existência, até os dias atuais, de acordo para evitar a dupla tributação da renda com os Estados Unidos. 48 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Contribuição à história dos acordos de bitributação: a experiência brasileira”. Revista Direito Tributário Atual. Volume 22. São Paulo: Dialética e IBDT, 2008, p. 274-275.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

37

empresas brasileiras no cenário econômico mundial, o que pode ter contribuído para a política de negociação mais recente de tratados49.

A despeito disso, não é possível afirmar que o Brasil abandonou sua

tradicional política de inclusão de cláusula de “tax sparing” em acordos para evitar dupla tributação da renda.

A política brasileira de adoção da cláusula de “tax sparing”, mais do

que refletida em diversos acordos, foi manifestada de forma expressa pelo país na seção “Position of non-member countries” dos Comentários ao artigo 23 da Convenção Modelo da OCDE50.

Outra demonstração da política brasileira pode ser verificada nas

negociações que culminaram na denúncia do acordo celebrado entre Brasil e Alemanha. Aponta-se que uma das razões da revogação tem origem no pleito do último país de exclusão da cláusula de “tax sparing” do acordo, sob o argumento de que o primeiro país não mais poderia ser considerado um país em desenvolvimento. O pleito não foi aceito pelo Brasil51. Conquanto muitos tenham sido os motivos para a denúncia do referido acordo, sendo talvez o principal deles a divergência entre os países na interpretação de suas cláusulas do acordo, o “tax sparing”, como relatado, figurou ao lado dos demais motivos. A denúncia acabou efetivada em 2005.

Outro exemplo emblemático envolve as posições antagônicas do

Brasil e dos Estados Unidos em relação ao “tax sparing”, o que desde 1967 entrava a efetiva conclusão de um acordo de bitributação entre os dois países. De um lado, os Estados Unidos consideram que o “tax sparing” é um mecanismo ineficiente para a introdução de política fiscal voltada ao desenvolvimento econômico, na medida em que encoraja a repatriação dos resultados dos investimentos apenas para aproveitar o incentivo fiscal, ao invés de promover o

49 Idem, p. 277. 50 Cf. SILVA, Natalie Matos. As cláusulas de tax sparing e matching credit nos acordos de bitributação. São Paulo, 2013. 147 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Direito Econômico, Financeiro e Tributário). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 105. 51 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Tax sparing: uma reconsideração da reconsideração”. Revista Direito Tributário Atual. Volume 26. São Paulo: Dialética e IBDT, 2011, p. 103.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

38

reinvestimento dos resultados no país onde a riqueza foi gerada. De outro lado, o Brasil defende que a cláusula de “tax sparing” é necessária para a preservação do seu poder de tributar, a fim de que as isenções ou reduções de impostos concedidas pelo governo brasileiro representem um benefício efetivo para o investidor, em vez de mera transferência do poder de tributar do Estado brasileiro para o outro Estado contratante52.

Assim, é possível afirmar que a política do Brasil não segue as

manifestações da OCDE acerca da adoção das cláusulas de “tax sparing”, o que não deve ser condenado, muito menos desincentivado, pois, como destacou Schoueri, aquelas cláusulas não devem ser encaradas como meros instrumentos de auxílio de países desenvolvidos a países em desenvolvimento. Trata-se de mecanismo que apenas afirma, e confirma, a competência do Estado da fonte para tributar o rendimento, a quem é dado decidir, unilateralmente, por sua eventual não tributação (no todo ou em parte). Enquanto mecanismo que assegura a competência do Estado da fonte, o “tax sparing” pode ser utilizado até mesmo entre países desenvolvidos se lhes parecer apropriado no contexto de sua política fiscal53. Estabelecimento permanente

Para analisar o conceito de estabelecimento permanente dado pela OCDE, faremos referência, nas linhas que se seguem, a estudo de João Francisco Bianco, em que o autor aborda as diretrizes contidas na Convenção Modelo da OCDE e, também, o tratamento do tema perante a legislação tributária brasileira54. Vejamos.

52 SANTOS, Ramon Tomazela. “O Procedimento de Negociação dos Acordos de Bitributação”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 236. São Paulo: Dialética, 2015, pp. 133-134. 53 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Tax sparing: uma reconsideração da reconsideração”. Revista Direito Tributário Atual. Volume 26. São Paulo: Dialética e IBDT, 2011, p. 108. 54 A íntegra deste estudo pode ser conferida em: BIANCO, João Francisco. “O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do Direito Tributário. 9º volume. São Paulo: Dialética, 2005, p. 298-313.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

39

Na Convenção Modelo da OCDE55, encontram-se dois tipos de estabelecimentos permanentes, a saber: (a) o estabelecimento permanente material, em que o exercício no exterior de uma atividade empresarial é realizado através de meios materiais organizados diretamente pelo agente econômico; e (b) o estabelecimento permanente pessoal, em que a presença no exterior do empreendedor, para a realização de sua atividade empresarial, não é feita de forma direta, mas por intermédio de um agente ou representante.

O estabelecimento permanente material está definido no artigo 5º,

parágrafos 1º a 4º, do Modelo de Convenção. O parágrafo 1º do artigo conceitua o estabelecimento permanente como "um local fixo de negócios, mediante o qual uma empresa realiza, no todo ou em parte, sua atividade". Os parágrafos 2º a 4º, por sua vez, propõem uma lista exemplificativa do que pode e do que não pode ser caracterizado como um estabelecimento permanente material (enumerações positiva e negativa)56.

Os referidos dispositivos do Modelo de Convenção da OCDE revelam

que o estabelecimento permanente material possui como traços característicos: a) o funcionamento do estabelecimento permanente como um local de negócios, ou seja, um espaço físico determinado, onde estão localizados os bens e equipamentos necessários ao desenvolvimento da atividade da empresa; b) o local de negócios deve ser fixo ou estável; c) deve haver uma relação de pertinência entre esse local fixo de negócios e a atividade desenvolvida pela empresa sediada no exterior, constitutiva de seu objeto social; e d) o estabelecimento deve deter capacidade de produzir rendimentos, dispondo de independência e autonomia para gerar receitas57_58. 55 OECD. Articles of the OECD Model Tax Convention on Income and Capital [as they read on 22 July 2010]. Disponível em: http://www.oecd.org/ctp/treaties/47213736.pdf. Acesso em: 18.10.2017. 56 BIANCO, João Francisco. “O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do Direito Tributário. 9º volume. São Paulo: Dialética, 2005, p. 300-301. 57 O parágrafo 4º do art. 5º enumera instalações de negócios que não dispõem de autonomia suficiente para gerar rendimentos de per si, constituindo locais onde são desenvolvidas atividades meramente auxiliares da empresa sediada no exterior. As referidas exceções ao estabelecimento permanente, como explicou Alberto Xavier, estão baseadas na teoria da realização, pois as instalações ou os depósitos mencionados no parágrafo 4º não têm caráter produtivo direto, já que a geração de lucros e

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

40

Por sua vez, o estabelecimento permanente pessoal está definido nos

parágrafos 5º e 6º do art. 5º da Convenção Modelo da OCDE, segundo os quais há estabelecimento permanente quando a empresa não residente contrata um agente que, por força do contrato, detenha poderes especiais de representação. A principal característica do estabelecimento permanente pessoal é a existência - entre a empresa não residente e o agente - de um vínculo contratual estável de representação, amplo o suficiente a ponto de ser dispensável a presença física da empresa não residente no país da sede do agente, caracterizando-se mesmo sem a existência de instalações materiais no país.

A Convenção Modelo da OCDE também estabelece que somente o

agente dependente da empresa não residente pode ser qualificado como um estabelecimento permanente pessoal.

O agente dependente, definido no parágrafo 5º do art. 5º, figura

como representante da empresa não residente, sendo competente para operar em nome e por conta da empresa representada, exercendo os poderes que lhe foram atribuídos para a conclusão de negócios com terceiros, relacionados com as atividades da empresa não residente, o que faz de modo repetido e habitual59.

Já o agente independente, definido no parágrafo 6º do art. 5º, ainda

que detenha plenos poderes de representação, não pode ser caracterizado como um estabelecimento permanente pessoal se for independente, jurídica e economicamente, assumindo todos os riscos do desenvolvimento de sua atividade de representação, e atuando no exercício regular das suas atividades rendimentos não lhes é imputada diretamente (XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 634). 58 BIANCO, João Francisco. “O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do Direito Tributário. 9º volume. São Paulo: Dialética, 2005, p. 301-302. 59 A lista do parágrafo 4º do artigo 5º de atividades auxiliares ou preparatórias que não caracterizam a existência do estabelecimento permanente material, aplica-se igualmente ao estabelecimento permanente pessoal, conforme esclarece o parágrafo 5º. Isso quer dizer que um agente dependente, que tenha poderes de representação somente para a contratação das atividades auxiliares listadas - como a locação de um depósito ou o despacho de mercadorias em estoque nesse depósito para clientes -, não configura um estabelecimento permanente pessoal.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

41

sociais, sem exclusividade e sem sujeição a orientações detalhadas da empresa não residente60.

Em que pese o conteúdo do parágrafo 6º do art. 5º da Convenção

Modelo, e a distinção entre agente dependente e independente acima vista, o requisito da independência foi abrandado com a edição da Convenção Multilateral da OCDE, não mais se exigindo autoridade do comissário para a conclusão de contratos em nome do comitente. Vejamos.

Na Convenção Multilateral dedicada a implementar, em tratados

bilaterais, medidas que previnam a erosão da base tributável e a realocação de lucros, editada pela OCDE, em conformidade com a Ação n. 15 do BEPS, foram adotadas algumas propostas relativas à readequação do conceito de estabelecimento permanente61. Tais alterações tiveram como finalidade, apenas, evitar abusos praticados pelas partes com o propósito de impedir a caracterização do estabelecimento permanente, em linha com as sugestões da Ação n. 7 do BEPS (“Preventing the Artificial Avoidance of Permanent Status”). A Convenção Multilateral trouxe as seguintes alterações ao conceito de estabelecimento permanente62:

60 BIANCO, João Francisco. “O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do Direito Tributário. 9º volume. São Paulo: Dialética, 2005, p. 303-304. 61 Ainda a respeito do estabelecimento permanente, há mais uma disposição na Convenção Multilateral, a qual, contudo, não modifica tal conceito. Trata-se do seu art. 10, o qual contempla uma cláusula antiabuso, direcionada a estabelecimentos permanentes situados em terceiros Estados, cujos lucros estão sujeitos à baixa tributação. Diz o art. 10 que, em situações triangulares, caso o contribuinte no Estado da residência obtenha rendimentos no Estado da fonte, que sejam atribuídos a estabelecimento permanente localizado em um terceiro Estado, cujo acordo de bitributação celebrado com o Estado da residência do contribuinte consagra o método da isenção, a aplicação do benefício do tratado internacional para esses rendimentos será negada caso a tributação no país do estabelecimento permanente seja inferior a 60% da carga tributária que seria cobrada pelo Estado da residência caso o estabelecimento permanente estivesse localizado em sua jurisdição (cf. ROCHA, Sergio André; SANTOS, Ramon Tomazela. A Convenção Multilateral da OCDE e a Ação 15 do Projeto BEPS. Artigo inédito ainda não publicado). 62 ROCHA, Sergio André; SANTOS, Ramon Tomazela. A Convenção Multilateral da OCDE e a Ação 15 do Projeto BEPS. Artigo inédito ainda não publicado.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

42

a) para os contratos de comissão ou estratégias similares, deixou-se de exigir o requisito “independência” na conclusão de contratos em nome do comitente, previsto no art. 5º, parágrafo 6º, da Convenção Modelo, podendo o comissário enquadrar-se como representante da empresa no exterior, para fins de caracterização do estabelecimento permanente, ainda que realize a compra ou a venda de bens em próprio nome, às expensas e em proveito do comitente (art. 12 da Convenção Multilateral);

b) foram feitas alterações na lista negativa de atividades antes

consideradas meramente auxiliares e preparatórias e, pois, insuficientes à caracterização de estabelecimento permanente com o objetivo de restringir o alcance do artigo 5º, parágrafo 4º, da Convenção Modelo, o qual acabava permitindo a realização de planejamentos tributários por (i) empresas que vendem produtos pela internet, mas que precisam manter o estoque físico de produtos em jurisdições estratégicas, para que a entrega ocorra em tempo hábil; ou (ii) empresas que atuam ostensivamente na coleta de informações; tentou-se, assim, timidamente, resolver parte dos problemas oriundos da economia digital (art. 13 da Convenção Multilateral);

c) nova forma de contagem de prazo aplicável às situações em que

há fragmentação de contratos entre diferentes contribuintes, ocorrida com o propósito de evitar o atingimento dos prazos exigidos pela Convenção Modelo da OCDE para a caracterização do estabelecimento permanente no Estado da fonte, como é o caso, por exemplo, do prazo de 12 (doze) meses aplicável aos canteiros de construção ou de montagem, na forma do art. 5º, parágrafo 3º (art. 14 da Convenção Multilateral); e

d) definição de pessoa intimamente relacionada à empresa (“person

closely related to an enterprise”), a qual se destina a evitar que as novas regras sejam contornadas mediante a utilização de estruturas de planejamento tributário com partes relacionadas. (art. 15 da Convenção Multilateral).

Por fim, antes de arrematarmos esse ponto do estudo, é importante

dizer que, configurado um estabelecimento permanente nos termos da Convenção Modelo da OCDE, o lucro do estabelecimento permanente deverá ser tributado como uma empresa independente e autônoma, devendo-lhe, pois, ser

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

43

imputados receitas, custos e despesas (art. 7º da Convenção Modelo). Quer dizer, tributar-se-á a renda líquida, e não o rendimento bruto63.

Feitos esses esclarecimentos sobre a Convenção Modelo da OCDE,

bem assim sobre as novidades introduzidas pela Convenção Multilateral, vejamos o que diz a legislação tributária brasileira sobre o tema.

A legislação tributária brasileira não contém uma definição de

estabelecimento permanente64_65. No entanto, há normas prevendo a incidência do imposto em três hipóteses que se pode considerar enquadradas no conceito de estabelecimento permanente visto acima, a saber: a) filiais, sucursais, agências ou representações de empresas estrangeiras que funcionem no país (art. 147, inciso II, do Regulamento do Imposto de Renda de 1999 - Decreto n. 3000, de 26.3.1999 – RIR/99); b) contratos de comissão firmados entre

63 Após reformas em 2010, a Convenção Modelo da OCDE passou a prever que a atribuição de lucros deve ser feita de forma assemelhada a princípios subjacentes às diretrizes internacionais de preços de transferência, devendo ser verificados funções, ativos e riscos. Este modelo, contudo, não foi adotado pelo Brasil nos acordos do qual é signatário (cf. PRZEPIORKA, Michell. “Estabelecimento permanente à brasileira”. Revista Direito Tributário Internacional Atual. Volume 2. São Paulo: IBDT, 2017, p. 148). 64 Aqui, novamente é feita referência ao estudo de João Francisco Bianco, em que o autor aborda o conceito de estabelecimento permanente na Convenção Modelo da OCDE e seu tratamento perante a legislação tributária brasileira. A íntegra deste estudo pode ser conferida em: BIANCO, João Francisco. “O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do Direito Tributário. 9º volume. São Paulo: Dialética, 2005, p. 298-313. Para outras considerações do autor sobre o estabelecimento permanente no Brasil, vide: BIANCO, João Francisco. “Análise de caso de tributação de estabelecimento permanente”. Revista Fórum de Direito Tributário. Volume 85. Belo Horizonte: RFDT, jan./fev. 2017, p. 63-68. 65 Sobre o assunto, vide: ROCHA, Sergio André. “Estabelecimento permanente pessoal ‘à brasileira’: tributação de lucros auferidos através de comissários, mandatários e representantes”. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 213. São Paulo: Dialética, p. 153-162; CALIENDO, Paulo. Estabelecimento permanente em Direito Tributário Internacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005; LOBO, Diana Piatti de Barros. “Breves anotações sobre o conceito de estabelecimento permanente no Direito Tributário brasileiro”. Revista de Direito Tributário Internacional, n. 9. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 51-77; e PRZEPIORKA, Michell. “Estabelecimento permanente à brasileira”. Revista Direito Tributário Internacional Atual. Volume 2. São Paulo: IBDT, 2017, p. 141-166.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

44

comitente no exterior e comissário no Brasil (art. 147, inciso III, do rir/99); e c) venda direta no Brasil, realizada por não residente, por meio de agente ou representante residente ou domiciliado no país (art. 539 do RIR/99).

No tocante às filiais, sucursais, agências ou representações, a

equiparação legal do art. 147, inciso II, faz com que seu lucro seja apurado e tributado de acordo com as mesmas regras aplicáveis às pessoas jurídicas sediadas no país.

No contrato de comissão, estando o comitente no exterior, os ganhos

por ele auferidos com as operações realizadas por seus comissários no Brasil devem ser apurados conforme as regras aplicáveis à pessoa jurídica, por força da equiparação prevista no art. 147, inciso III, do RIR/99. O lucro auferido pelo comitente no exterior - que remete mercadorias em consignação a comissário, mandatário, representante ou agente no Brasil, para que estes as vendam por sua conta e ordem - deve ser calculado comparando-se o preço de venda da mercadoria no Brasil e o valor relativo à sua importação, podendo ser deduzidas as despesas da operação que correrem por conta do comitente no exterior, inclusive as relativas à remuneração dos intermediários, nos termos do art. 398 do RIR/99. A tributação do lucro do comitente deve obedecer às normas aplicáveis às pessoas jurídicas. Mas, caso não seja feita a apuração em separado dos lucros do comitente, estes serão objeto de arbitramento, na forma prevista no artigo 530, inciso V, do RIR/9966.

No que tange aos lucros auferidos em função de vendas faturadas

diretamente ao comprador, feitas pela empresa estrangeira, mas por meio de agentes ou representantes no Brasil, sua tributação deve ocorrer quando o agente ou representante tiver poderes para obrigar contratualmente o vendedor para com o adquirente, no Brasil, ou por intermédio de filial, sucursal ou agência do vendedor no País (art. 539 do RIR/99). Neste caso, o arbitramento do rendimento tributável é mandatório, devendo obedecer aos critérios do art. 532 do RIR/99.

66 BIANCO, João Francisco. “O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do Direito Tributário. 9º volume. São Paulo: Dialética, 2005, p. 309.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

45

A tributação no Brasil dos rendimentos da empresa não residente não é autorizada quando a atuação do agente ou representante tenha se limitado à intermediação de negócios, obtenção ou encaminhamento de pedidos ou propostas, ou outros atos necessários à mediação comercial, ainda que esses serviços sejam retribuídos com comissões ou outras formas de remuneração, desde que o agente ou representante não tenha poderes para obrigar contratualmente o vendedor (art. 539, parágrafo único, inciso II, do RIR/99).

O fato de o vendedor participar do capital social da empresa

brasileira que desempenhe as funções de agente ou representante no país não implica atribuição de poderes à empresa para obrigar o vendedor. Logo, nestas situações, não estará autorizada a tributação, no Brasil, dos rendimentos do vendedor situado no exterior (art. 539, parágrafo único, inciso III, do RIR/99). Ainda, o fato de o representante legal ou procurador do vendedor eventualmente assinar, no Brasil, contrato em nome do vendedor não é suficiente para determinar o arbitramento (art. 539, parágrafo único, inciso IV, do RIR/99).

A partir das definições acima apresentadas, pode-se afirmar que, de

um modo geral, há compatibilidade entre a legislação brasileira e a Convenção Modelo da OCDE no que tange ao conceito de estabelecimento permanente.

Como esclareceu João Francisco Bianco, os conceitos de

estabelecimento permanente material, da Convenção Modelo da OCDE, como local fixo de negócios, que desenvolve uma atividade relacionada com a matriz no exterior e que tenha capacidade independente de gerar negócios; e de estabelecimento permanente pessoal, também da Convenção Modelo da OCDE, como o agente ou representante dependente que tenha poderes para obrigar a empresa estrangeira na contratação de operações com terceiros no Brasil, são compatíveis com a legislação interna tributária brasileira.

Isso porque, prossegue o mesmo autor, as filiais, sucursais, agências

ou representações de que trata o artigo 147, inciso II, do RIR/99, enquadram-se no conceito de estabelecimento permanente material, como instalação fixa de negócios. Por sua vez, os comissários como os agentes ou representantes dependentes, com poderes para obrigar o vendedor estrangeiro, enquadram-se no conceito de estabelecimento permanente pessoal.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

46

Logo, no tocante à caracterização do estabelecimento permanente,

nossa legislação, em geral, apresenta adequação com os tratados internacionais67, embora não discipline o tema de forma idêntica ao disposto do artigo 5º da Convenção Modelo da OCDE.

As possíveis discrepâncias quanto à caracterização do

estabelecimento permanente apresentam-se no seguinte plano: a) a Convenção Modelo da OCDE exige habitualidade ao tratar do estabelecimento permanente pessoal, condição não requerida pelo art. 398 do RIR/99 no tocante aos contratos de comissão; e b) a Convenção Modelo da OCDE é mais abrangente quando comparada ao art. 398 do RIR/99, uma vez que abarca transações com serviços, intangíveis, etc., e não apenas com mercadorias, como faz aquele dispositivo68_69.

Também pode haver incompatibilidade no tocante à apuração do

lucro tributável quando for caracterizada a presença de estabelecimento permanente, notadamente quanto à obrigação criada pela lei brasileira, na hipótese do art. 539 do RIR/99, de arbitramento do lucro.

67 BIANCO, João Francisco Bianco. “O estabelecimento permanente na legislação do imposto de renda”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do Direito Tributário. 9º volume. São Paulo: Dialética, 2005, p. 312. 68 Cf. ROCHA, Sergio André. “Estabelecimento permanente pessoal ‘à brasileira’: tributação de lucros auferidos através de comissários, mandatários e representantes”. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 213. São Paulo: Dialética, p. 153-162; e LOBO, Diana Piatti de Barros. “Breves anotações sobre o conceito de estabelecimento permanente no Direito Tributário brasileiro”. Revista de Direito Tributário Internacional, n. 9. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 51-77. 69 Outra possível incompatibilidade estava em que a Convenção Modelo da OCDE requeria que o agente ou comissário possuísse vínculo de dependência, o que não é exigido pelos art. 398, 399 e 539 do RIR/99 (cf. ROCHA, Sergio André. “Estabelecimento permanente pessoal ‘à brasileira’: tributação de lucros auferidos através de comissários, mandatários e representantes”. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 213. São Paulo: Dialética, p. 162). Contudo, como descrito acima, a Convenção Multilateral não mais exige autoridade do comissário para a conclusão de negócios em nome do comitente.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

47

Nos casos de discrepância, ou de incompatibilidade, o Brasil não estará autorizado a exercer sua competência tributária, enquanto Estado de fonte, se o acordo do qual for signatário não qualificar a situação de fato como estabelecimento permanente, ainda que a lei brasileira autorize a tributação em hipóteses dessa natureza. Quer dizer, a lei doméstica não pode determinar que se tributem rendimentos provenientes de situação de fato para a qual o Estado de fonte não foi autorizado a exercer competência tributária, segundo as disposições do tratado aplicável à hipótese. Prevalece, nestes casos, o disposto no acordo, por força do art. 98 do CTN. Nem pode o Brasil, mesmo quando caracterizado o estabelecimento permanente, de forma mandatória, arbitrar o lucro apurado.

Por fim, no tocante às inovações implementadas pela Convenção

Multilateral da OCDE há dois esclarecimentos a fazer. O primeiro é que suas disposições, a rigor, não modificam as conclusões anteriores. O segundo é que o Brasil não é signatário da citada convenção. A política do Brasil consistirá em incorporar, bilateralmente, as sugestões da Convenção Multilateral aos seus acordos para evitar dupla tributação da renda. Foi o que se deu, em 21.7.2017, quando da assinatura do Protocolo de emenda à convenção entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina destinada a evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda70, o qual adotou parte das sugestões contidas no texto da Convenção Multilateral da OCDE.

Resposta: A cooperação internacional para troca de

informações foi autorizada pelos art. 4º, inciso IX, da Constituição, art. 16, “caput”, da Lei n. 4131/62, art. 98 e 199, parágrafo único, do CTN, estando disciplinada em tratados, acordos e convenções do qual o Brasil é signatário. Muito embora a troca internacional de informações, do ponto de vista teórico, seja legítima, na prática, ela pode ocasionar ofensa a diretos fundamentais, notadamente se não houver rígidos controles sobre os mecanismos de troca, uso e armazenamento das informações e sobre os procedimentos necessários a assegurar a confidencialidade e o sigilo dos dados obtidos, bem como assegurar a ciência do contribuinte interessado e o exercício do seu direito de petição e de defesa, quando necessário. De

70 O referido protocolo ainda aguarda aprovação do Congresso Nacional.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

48

igual forma, é fundamental que a requisição da informação e os meios de sua obtenção não atentem contra o postulado da proporcionalidade, impingindo sacrifício demasiado e incompatível com os fins a que se destina.

A política do Brasil não segue as manifestações da OCDE acerca

da adoção das cláusulas de “tax sparing”, o que não deve ser condenado, muito menos desincentivado. As referidas cláusulas apenas afirmam a competência do Estado da fonte para tributar o rendimento, a quem é dado decidir, unilateralmente, por sua eventual não tributação (no todo ou em parte). Enquanto mecanismo que assegura a competência do Estado da fonte, o “tax sparing” pode ser utilizado até mesmo entre países desenvolvidos - e não somente entre estes e países em desenvolvimento - se lhes parecer apropriado no contexto de sua política fiscal.

No tocante à caracterização do estabelecimento permanente,

nossa legislação, em geral, é compatível com os tratados internacionais, embora não discipline o tema de forma idêntica ao disposto do artigo 5º da Convenção Modelo da OCDE. Há, no entanto, alguns distanciamentos na caracterização daquele conceito e também na apuração do lucro tributável quando o Estado da fonte tiver autorização para exercer sua competência tributária. Nos casos de discrepância, ou de incompatibilidade, o Brasil não estará autorizado a exercer sua competência tributária, enquanto Estado de fonte, se o acordo do qual for signatário não qualificar a situação de fato como estabelecimento permanente, ainda que a lei brasileira autorize a tributação em hipóteses dessa natureza. Quer dizer, a lei doméstica não pode determinar que se tributem rendimentos provenientes de situação de fato para a qual o Estado de fonte não foi autorizado a exercer competência tributária, segundo as disposições do tratado aplicável à hipótese. Prevalece, nestes casos, o disposto no acordo, por força do art. 98 do CTN. Nem pode o Brasil, mesmo quando caracterizado o estabelecimento permanente, de forma mandatória, arbitrar o lucro apurado.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

49

4) Qual é a juridicidade de margens pré-determinadas de lucro no controle dos preços de transferência? É aplicável no Brasil o artigo 107 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) sobre preços de transferência, quando muitos Estados falseiam a concorrência, mediante acordos secretos? Deve ser preservado o “arm’s length principle”?

As margens predeterminadas de lucros, utilizadas na Lei n. 9.430, de

27.12.1996, para o controle de preços de transferência no Brasil, são válidas na medida em que conduzam a um resultado de mercado (“arm’s length”), que seja compatível com as regras de discriminação de competências, com o conceito de renda e com o princípio da capacidade contributiva.

Assim, como o preço de mercado representa um espectro

(intervalo), e não um único número exato, as margens predeterminadas de lucro previstas na Lei n. 9.430 apenas serão incompatíveis com o sistema tributário brasileiro caso não reflitam, no caso concreto, o preço que terceiros independentes pactuariam em condições normais de mercado71.

Sabe-se que o legislador procurou privilegiar a praticabilidade no

controle de preços de transferência72. Por isso, os métodos objetivos previstos na Lei n. 9.430 estão baseados na fixação de margens predeterminadas de lucro, na estipulação de zonas de segurança (“safe harbours”) e no estabelecimento de restrições à comparabilidade livre, como forma de reduzir a subjetividade e a incerteza na aplicação do direito.

Neste contexto, as margens predeterminadas constituem um meio

instrumental para alcançar uma meta política de eficiência administrativa, que serve para racionalizar as complexidades existentes no sistema tributário brasileiro73. As margens predeterminadas de lucros otimizam a aplicação das regras de preços de transferência, aliando coerência às políticas de eficiência e

71 Para uma análise mais detida, conferir: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 834-856. 72 GREGORIO, Ricardo Marozzi. Preços de Transferência – Arm’s Length e Praticabilidade. Série Doutrina Tributária Vol. V. São Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 306-3320. 73 Sobre a praticabilidade em matéria tributária, vide: ROCHA, Eduardo Morais da. Teoria Institucional da Praticabilidade Tributária. São Paulo: Noeses, 2016, pp. 420-421.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

50

de economicidade. Dessa forma, ao empregar margens predeterminadas de lucros, o legislador utilizou um mecanismo redutor de complexidade, que, a um só tempo, facilita o cumprimento da norma jurídica pelo contribuinte e potencializa a sua fiscalização pela Administração Tributária.

Entretanto, como mencionado acima, a validade das margens

predeterminas depende de sua conformidade com o preço que terceiros independentes pactuariam em condições normais de mercado, sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva e do conceito de renda.

Com relação à segunda indagação, o artigo 107 do Tratado de

Funcionamento da União Europeia (TFUE) trata dos auxílios de Estado concedidos no âmbito do direito comunitário Europeu. Veja-se:

“1. Salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções”.

A questão colocada pela Comissão Organizadora surge em razão dos

recentes “tax rulings” questionados pela Comissão da União Europeia em sede de procedimento de infração nos casos Apple (2017/1283), Starbucks (017/502), Fiat (2016/2326) e lucros excedentários Belgas (2016/1699), que atualmente aguardam julgamento pela Corte Europeia de Justiça.

Porém, independentemente da acirrada discussão existente no

direito comunitário europeu, o dispositivo legal acima não pode ser aplicado no Brasil, pelas razões que serão examinadas a seguir.

Em primeiro lugar, o artigo 107 do TFUE apenas vincula os países

europeus, de modo que o Brasil jamais poderia invocar esse dispositivo do direito europeu para regulamentar as relações jurídicas que ocorrem no País.

Em segundo lugar, as regras de auxílios de Estado visam a proteger

a concorrência e o livre mercado dentro da União Europeia. Assim, partindo do pressuposto de que não há harmonização da tributação direta no mercado

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

51

europeu, o que causa um problema de disparidade, a União Europeia entendeu que a concessão de incentivos fiscais ou financeiros pelo Estado poderia agravar ainda mais esse problema, comprometendo o livre mercado.

Ora, isso não ocorre sob a perspectiva do Brasil, que não integra um

bloco comunitário e pode conceder incentivos fiscais, com a observância apenas dos limites impostos pelo seu próprio ordenamento jurídico.

Em terceiro lugar, especificamente em relação à interação entre as

regras de preços de transferência e os auxílios de Estado, é importante lembrar que o Brasil não concede “acordos prévios de preços de transferência” (“advance pricing agreements”) nos moldes praticados pelos países europeus, o que afasta a possibilidade de caracterização dos requisitos exigidos no artigo 107 do TFUE, em especial a existência de uma vantagem seletiva, que se afaste do regime regular de tributação. Na verdade, o procedimento de revisão de margens previsto no art. 20 da Lei n. 9.430, de 27.12.1996, no art. 45 da Instrução Normativa RFB n. 1.312, de 28.12.2012, e na Portaria MF n. 222, de 24.9.2008, visam apenas afastar as distorções causadas pelas margens fixas de lucro adotadas no Brasil, alinhando, assim, ao padrão “arm’s length”.

Em quarto lugar, ainda que a margem de lucro exigida no Brasil para

fins de controle de preços de transferência pudesse ser alterada pelo Ministro da Fazenda para um percentual inferior ao padrão “arm’s length”, o que poderia caracterizar um incentivo fiscal, a verdade é que a legislação brasileira de defesa de concorrência não dispõe de instrumentos específicos para combater os efeitos concorrenciais negativos de incentivos fiscais74.

Assim, os incentivos fiscais apenas poderão ser combatidos como

condutas restritivas da concorrência quando restar comprovada a prática de infração à ordem econômica disciplinada na Lei n. 8.884, de 11.6.1994, que tenha por objeto ou possa produzir os seguintes efeitos: (i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência e a livre iniciativa; (ii) dominar

74 SILVEIRA, Rodrigo Maito. Tributação e Concorrência. Série Doutrina Tributária Vol. IV. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 431.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

52

mercado relevante de bens e serviços; (iii) aumentar arbitrariamente os lucros; (iv) exercer de forma abusiva posição dominante75.

Sem a comprovação de infração à ordem econômica, a redução das

margens de preços de transferência por ato do Ministro da Fazenda deverá ser considerada plenamente válida, independentemente dos potenciais efeitos negativos para a livre iniciativa e a livre concorrência no Brasil.

Por fim, com relação a ultima indagação, não há dúvida de que as

regras brasileiras de preços de transferência devem preservar o padrão “arm’s length”, que deflui diretamente do princípio da igualdade76.

Os tributos com finalidade fiscal devem ser instituídos em

conformidade com princípio da capacidade contributiva, que deve ser a medida de comparação entre contribuintes77. As regras de controle de preços de transferência, a pretexto de evitar manipulações, não podem alterar a dimensão real do fato gerador da obrigação tributária.

Com a utilização de margens predeterminadas, o legislador optou

pela adoção de um critério de igualdade geral, mediante a consideração de percentuais de lucro presumidamente presentes na maior parte das operações realizadas em determinados seguimentos econômicos. Ocorre que, justamente por considerar elementos presentes na maior parte dos casos, o parâmetro de referência para a avaliação das margens predeterminadas continua sendo os fatos do caso concreto, sem abandono do princípio da capacidade contributiva.

Assim, a padronização de margens de lucros, justificada com base na

praticabilidade, não pode ser concebida como uma permissão para a 75 SILVEIRA, Rodrigo Maito. Tributação e Concorrência. Série Doutrina Tributária Vol. IV. São Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 150-151. 76 Como aponta Luís Eduardo Schoueri: “(...) o ‘princípio arm’s length não tem, ele mesmo, natureza principiológica. Não é ele, pois, que entra em conflito, em eventual ponderação, mas sim o princípio que o inspira”. (SCHOUERI, Luís Eduardo. “O Arm’s Length como Princípio ou como Standard Jurídico”. Estudos de Direito Tributário em Homenagem ao Professor Gerd Willi Rothmann. Coord. Luís Eduardo Schoueri e João Francisco Bianco. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 216). 77 ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 2ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 198.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

53

desconsideração da capacidade contributiva concreta e para a tributação de materialidade que não se conforme ao conceito de renda, motivo pelo qual as regras brasileiras de preços de transferência devem preservar o padrão de mercado (“arm’s length”), como corolário do princípio da igualdade.

Resposta: as margens predeterminadas de lucro previstas na

Lei n. 9.430 serão incompatíveis com princípio da capacidade contributiva e com o conceito de renda caso não reflitam, na situação concreta, o preço que terceiros independentes pactuariam em condições normais de mercado. O artigo 107 do TFUE não pode ser aplicado no ordenamento jurídico brasileiro, por se tratar de direito primário da União Europeia, direcionado à preservação da concorrência em um contexto de livre mercado, o que se afasta da realidade do Brasil. A padronização de margens de lucros, justificada com base na praticabilidade, não pode ser concebida como uma permissão para a desconsideração da capacidade contributiva concreta, motivo pelo qual as regras brasileiras de preços de transferência devem preservar o padrão “arm’s length”.

5) Quais os limites da desconsideração pela administração

tributária de atos e negócios jurídicos praticados pelos contribuintes? Em que medida a Resolução de 5.12.2017 da União Européia quanto aos 17 países que integram a lista negra de paraísos fiscais é compatível com a legislação brasileira?

O tema já foi objeto de extensa produção doutrinária78, à qual nos

reportamos, a fim de que esse ponto da questão fique restrito ao absolutamente essencial. 78 Há realmente um enorme acervo doutrinário a respeito do tema, valendo citar, apenas a título de exemplo, o texto dos autores do presente estudo para o XXXIX Simpósio Nacional de Direito Tributário organizado pelo IICS/CEU, publicado em “Pesquisas Tributárias – Série CEU-Lex/Magister, n. 03 – Grupos Econômicos”, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, São Paulo 2015, p. 79 (4ª questão). O tema também foi tratado na sexta questão do XXXVI Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária, e respectivo livro “Pesquisas Tributárias – Nova Série”, co-edição do Centro de Extensão Universitária e da Ed. Saraiva, n. 17, 2011, p. 331. Antes ainda, o tema foi discutido no texto sobre “Norma Antielisão no Direito Constitucional Brasileiro” para o livro do XXVIII Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

54

Assim, nos limites da resposta à questão apresentada neste item,

cabe apenas pontuar que os limites para a desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados pelos contribuintes estão previstos na Constituição Federal de 1988 (CF/88) e no Código Tributário Nacional (CTN).

Em se tratando o tributo de modalidade de intervenção estatal na

esfera de liberdades dos contribuintes (especialmente nos direitos à propriedade privada e ao livre exercício de atividade econômica), essa intervenção deve ser limitada à legalidade, estatuída em geral no art. 5º, inciso II, da Constituição, e em especial no art. 150, inciso I, em matéria de tributos.

Além disso, como determina o inciso LIV do mesmo art. 5º, “ninguém

será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, devendo ainda ser observado o direito à ampla defesa, em processo judicial ou administrativo, previsto no inciso LV do art. 5º, em caso de qualquer pretensão fiscal de desconsideração de atos ou negócios praticados por contribuintes.

Lembre-se que a CF reserva à lei complementar, nos termos de seu

art. 146, inciso III, a competência para editar normas gerais em matéria tributária, o que foi feito pelo CTN, aprovado em 25.10.1966 como lei ordinária, mas recebido como lei complementar na ordem constitucional de 1988.

O CTN, por sua vez, ao tratar do tema, contém disposições que

circunscrevem com clareza os limites à imposição de tributos por parte das Administrações Tributárias. Além de consagrar a legalidade estrita nos art. 3º, 97, 116, 142, dentre outros, o que impõe o dever de que a fiscalização atue nos limites da legislação posta, o CTN ainda veda o emprego de analogia para a exigência de tributo não previsto em lei no parágrafo 1º do art. 108.

Assim, não há, no sistema jurídico, qualquer espaço para tributação

fora dos parâmetros expressamente previstos em lei. Consequentemente, Extensão Universitária “Direito Tributário e Reforma do Sistema – Pesquisas Tributárias - Nova Série – 9”, co-edição do Centro de Extensão Universitária e da Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 67, este último de autoria apenas do subscritor Ricardo Mariz de Oliveira. Recomenda-se também a consulta às contribuições dos demais autores dos livros editados por ocasião dos Simpósios.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

55

qualquer desconsideração de atos ou negócios por parte do fisco somente é possível se houver lei que assim determine.

É evidente que todo esse arcabouço, que limita o poder do Estado

face aos indivíduos e empresas, não serve de amparo para a prática de atos ilícitos com o intuito de evitar o pagamento de tributos. Por isso o CTN também oferece às autoridades fiscais meios para desconsiderar, de ofício, para fins de tributação os atos ou negócios praticados de modo ilícito. Com efeito, o art. 149 dá ao fisco a prerrogativa de rever o lançamento em procedimento de ofício, dentre outras hipóteses “quando se comprove falsidade (...) quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória”, ou ainda “quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação”.

No termos do CTN, portanto, a desconsideração de atos ou negócios

pelo fisco pode e deve ocorrer nos casos de falsidade, dolo, fraude ou simulação. Trata-se tal prerrogativa de importante instrumento legal de controle da validade dos atos praticados pelos contribuintes, posto que, pelo CTN, o fisco está autorizado a desconsiderar os atos com tais vícios, de ofício, e sem a necessidade de intervenção judicial. Evidentemente que ao contribuinte é garantido o direito à ampla defesa e o devido processo legal, em caso de acusações dessa natureza.

As prerrogativas do fisco para a desconsideração de atos ou

negócios estendem-se para todas as hipóteses em que os atos praticados estejam eivados de vícios jurídicos que os invalidem. Tais vícios podem resultar da aplicação de quaisquer normas jurídicas cujo descumprimento tenha o condão de invalidar os atos.

As disposições mais fundamentais a esse respeito estão no Código

Civil (especialmente art. 166, 167 e seguintes, além dos art. 186 e 187, os quais tratam de simulação, fraude à lei e abuso no exercício de direito). De fato, uma vez invalidado o ato ou negócio no plano do Direito Privado, eles não mais terão validade para suportar os efeitos jurídicos deles decorrentes e, dessa forma, não poderão resultar em economia tributária.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

56

Por fim, é necessário destacar que o art. 116, parágrafo único, do CTN, introduzido pela Lei Complementar n. 104, de 10.1.2001, em nada alterou o cenário legislativo acima descrito. Há grande controvérsia em torno da exata extensão do dispositivo, o qual, para parte da doutrina, teria autorizado o fisco a desconsiderar atos praticados com o intuito exclusivo de evitar a ocorrência da obrigação tributária79.

Contudo, a posição majoritária na doutrina, a qual adotamos neste

estudo, reconhece que o dispositivo não alterou substancialmente o ordenamento, eis que se valeu do termo “dissimular”, que nada mais representa do que uma modalidade de simulação, já contemplada no art. 149, acima referido80.

Além disso, o próprio parágrafo único do art. 116 condiciona a sua

aplicação à regulamentação, por lei, dos procedimentos de desconsideração nele contemplados, o que significa que a norma em questão, seja qual for o seu conteúdo, tem eficácia limitada, a qual está condicionada à edição de lei. Considerando que até o momento não foi editada lei nesse sentido, o parágrafo único do art. 116 simplesmente não pode ser aplicado.

Desta feita, o fisco somente pode desconsiderar atos eivados de

vícios jurídicos de existência ou de validade, vícios estes que estão previstos na

79 Vide a respeito: TORRES, Ricardo Lobo. A Chamada ‘Interpretação Econômica do Direito Tributário’, a Lei Complementar 104 e os Limites Atuais do Planejamento Tributário. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar n. 104. São Paulo: Dialética. 2001. p. 233. E também GRECO, Marco Aurélio. Constitucionalidade do Parágrafo Único do Art. 116 do CTN. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar n. 104. São Paulo: Dialética. 2001. p. 181. 80 Vide: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. A Elisão Fiscal Ante a Lei n. 104. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar n. 104. São Paulo: Dialética. 2001. p. 247. E ainda: DERZI, Misabel Abreu Machado. Desconsideração dos Atos e Negócios Jurídicos Dissimulados, Segundo a Lei Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar n. 104. São Paulo: Dialética. 2001. p. 207. E também COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva. 2009. pp. 178-185.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

57

legislação em vigor, notadamente no Código Civil, podendo ainda a fiscalização proceder à desconsideração nos demais casos de fraude, dolo ou simulação.

No que se refere à segunda parte da questão apresentada, é

necessário tecer algumas considerações sobre a Resolução de 5.12.2017. A referida resolução foi emitida pelo Conselho Europeu, órgão da

União Européia que tem por função definir as orientações e prioridades políticas gerais do referido bloco de países.

Também chamado simplesmente de Conselho, o órgão é formado

pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados-Membros. Dentre as prioridades políticas definidas pelo Conselho, incluiu-se o combate à prática de operações com o objetivo de reduzir a carga tributária, a partir de estruturas internacionais que explorem inconsistências entre legislações de diferentes países, o que se convencionou chamar de erosão da base tributária.

O combate à erosão da base tributária está inserido no já tratado

projeto BEPS, que comporta todos os países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), além de muitas outras jurisdições, inclusive o Brasil, em um esforço conjunto para o combate da erosão internacional da base tributária.

Pois bem. O Conselho Europeu editou a Resolução de 5.12.2017

adotando, de forma padronizada e uniforme, para todos os membros da Comunidade, uma lista de jurisdições classificadas como “não cooperantes” em matéria fiscal.

Essa lista de países, definida a partir de critérios que serão

abordados adiante, autoriza que os membros da União Européia adotem certas medidas tributárias destinadas a impedir que a implementação de estruturas em tais jurisdições possam gerar a erosão da base tributária. Tais medidas são chamadas, na terminologia das resoluções editadas pelo Conselho Europeu, de “medidas defensivas” ou “medidas protetivas”.

A fim de analisar a compatibilidade da referida Resolução com o

ordenamento jurídico brasileiro, é necessário verificar quais são os critérios

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

58

utilizados pelo Conselho Europeu para a eleição das jurisdições e quais as medidas protetivas recomendadas, comparando-as com o sistema brasileiro.

A Resolução de 5.12.2017 tem como base os critérios definidos pelo

Conselho Europeu em outra Resolução, datada de 8.11.201681. Os critérios estabelecidos para a inclusão de jurisdições na lista são basicamente três: transparência, tributação justa e implantação de medidas contra a erosão da base tributária82.

81 http://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-14166-2016-INIT/en/pdf. 82 Confira-se o texto da resolução: “1. Tax transparency criteria. Criteria that a jurisdiction should fulfil in order to be considered compliant on tax transparency: 1.1. Initial criterion with respect to the OECD Automatic Exchange of Information (AEOI) standard (the Common Reporting Standard – CRS): the jurisdiction, should have committed to and started the legislative process to implement effectively the CRS, with first exchanges in 2018 (with respect to the year 2017) at the latest and have arrangements in place to be able to exchange information with all Member States, by the end of 2017, either by signing the Multilateral Competent Authority Agreement (MCAA) or through bilateral agreements; Future criterion with respect to the CRS as from 2018: the jurisdiction, should possess at least a ´Largely Compliant´ rating by the Global Forum with respect to the AEOI CRS, and 1.2. the jurisdiction should possess at least a “Largely Compliant” rating by the Global Forum with respect to the OECD Exchange of Information on Request (EOIR) standard, with due regard to the fast track procedure, and 1.3. (for sovereign states) the jurisdiction should have either: i) ratified, agreed to ratify, be in the process of ratifying, or committed to the entry into force, within a reasonable time frame, of the OECD Multilateral Convention on Mutual Administrative Assistance (MCMAA) in Tax Matters, as amended, or ii) a network of exchange arrangements in force by 31 December 2018 which is sufficiently broad to cover all Member States, effectively allowing both EOIR and AEOI; (for non-sovereign jurisdictions) the jurisdiction should either: i) participate in the MCMAA, as amended, which is either already in force or expected to enter into force for them within a reasonable timeframe, or ii) have a network of exchange arrangements in force, or have taken the necessary steps to bring such exchange agreements into force within a reasonable timeframe, which is sufficiently broad to cover all Member States, allowing both EOIR and AEOI. 1.4. Future criterion: in view of the initiative for future global exchange of beneficial ownership information, the aspect of beneficial ownership will be incorporated at a later stage as a fourth transparency criterion for screening. Until 30 June 2019, the following exception should apply: – A jurisdiction could be regarded as compliant on tax transparency, if it fulfils at least two of the criteria 1.1, 1.2 or 1.3. This exception does not apply to the jurisdictions which are rated N’on Compliant ‘on criterion 1.2 or which have not obtained at least ‘Largely Compliant’ rating on that criterion by 30 June 2018. Countries and jurisdictions

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

59

A transparência diz respeito à implantação de sistemas de troca de

informações. Pretende-se que as jurisdições implementem sistema de troca automática de informações e de acordo com o padrão da OCDE.

Para o presente estudo, não convém abordar as condições

especificamente exigidas, bastando pontuar que o Conselho Europeu pretende que as jurisdições tenham adotado ou estejam em processo de adoção de sistemas de troca automática de informações de acordo com os padrões da OCDE, também chamado de Common Reporting Standard – CRS. Assim, uma determinada jurisdição poderá ser incluída na lista se não estiver apta a trocar informações no formato definido pela OCDE.

O segundo critério para a identificação de jurisdições a serem

incluídas na lista diz respeito a um sistema jurídico que contemple uma tributação justa83. Com base nele, as jurisdições não podem adotar práticas que venham a ser consideradas como nocivas de acordo com os critérios definidos em Resolução de 1.12.1997. Já na resolução de 199784, definem-se como as praticas nocivas as seguintes:

(1) concessão de vantagens fiscais apenas para não residentes ou em relação a transações com não residentes;

(2) concessão de vantagens que não se aplicam a transações no mercado doméstico, de modo que elas não impactem a tributação nacional;

which will feature in the list of non-cooperative jurisdictions currently being prepared by the OECD and G20 members will be considered for inclusion in the EU list, regardless of whether they have been selected for the screening exercise”. 83 Veja-se: 2. Fair taxation. Criteria that a jurisdiction should fulfil in order to be considered compliant on fair taxation: 2.1. the jurisdiction should have no preferential tax measures that could be regarded as harmful according to the criteria set out in the Resolution of the Council and the Representatives of the Governments of the Member States, meeting within the Council of 1 December 1997 on a code of conduct for business taxation, and 2.2. The jurisdiction should not facilitate offshore structures or arrangements aimed at attracting profits which do not reflect real economic activity in the jurisdiction. 84https://publications.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/87eed594-621f-428e-aff9-48f4d4fc6ebc/language-en

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

60

(3) concessão de vantagens sem necessidade de demonstração da existência de atividade econômica efetiva (substância);

(4) quando as regras de determinação do lucro referente às atividades desenvolvidas por empresas de um grupo multinacional não se coadunam com os princípios internacionalmente aceitos, especialmente com as regras acordadas no âmbito da OCDE; e

(5) quando as medidas fiscais não são dotadas de transparência, tais como nos casos em que normas legais podem ser flexibilizadas por autoridades administrativas de forma não transparente.

Em linha com tais condições, o item 2.2 da Resolução de 2016, acima

transcrito, prescreve que a jurisdição analisada não deve favorecer estruturas offshore ou arranjos destinados a atrair lucros que não correspondam ao desenvolvimento de atividade econômica efetiva naquela localidade.

Por fim, o terceiro critério está no item 3 da Resolução de 2016 e diz

respeito à adoção de medidas que busquem, em um padrão mínimo, o combate à erosão da base tributária85.

Basicamente, o que se pretende é que as jurisdições tenham

implementado um padrão mínimo de regras anti erosão da base tributária, dentre as medidas objeto de consenso pela OCDE. As autoridades europeias avaliarão as medidas adotadas nas jurisdições e emitirão um parecer a respeito. Caso esse parecer não seja positivo, a jurisdição poderá ser incluída na lista.

Pois bem. A partir desses critérios é que foi divulgada, em

5.12.201786, a lista de jurisdições que não atendem aos requisitos brevemente descritos acima. 85 Confira-se: “3. Implementation of anti-BEPS measures. 3.1. Initial criterion that a jurisdiction should fulfil in order to be considered compliant as regards the implementation of anti-BEPS measures: - the jurisdiction, should commit, by the end of 2017, to the agreed OECD anti-BEPS minimum standards and their consistent implementation. 3.2. Future criterion that a jurisdiction should fulfil in order to be considered compliant as regards the implementation of anti-BEPS measures (to be applied once the reviews by the Inclusive Framework of the agreed minimum standards are completed): - the jurisdiction should receive a positive assessment for the effective implementation of the agreed OECD anti-BEPS minimum standards”. 86 http://www.consilium.europa.eu/media/31945/st15429en17.pdf

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

61

É interessante verificar que, no referido documento, consta a

justificativa específica para a inclusão de cada uma das jurisdições, com o apontamento dos itens que foram considerados não atendidos, o que demonstra a existência de transparência nos procedimentos adotados. Por fim, consta ainda uma declaração do Conselho no sentido de encorajar as jurisdições incluídas na lista para discutir medidas que poderiam ser adotadas pelos respectivos governos com o intuito de que futuramente elas possam ser excluídas.

Uma vez incluídas na lista, as transações com as referidas

jurisdições poderão estar sujeitas às chamadas medidas defensivas ou protetivas. Essas medidas, segundo a resolução, ocorrerão no que se denominou esfera tributária e esfera não tributária. No primeiro caso, as medidas são adotadas no âmbito de cada Estado Membro e no segundo as medidas serão tomadas no âmbito da própria União Europeia.

As medidas tributárias, em particular, subdividem-se em medidas

administrativas e medidas de tributação efetivamente87. Confira-se: Na área administrativa, os Membros da União Europeia deverão

monitorar, com maior atenção, as operações com as jurisdições listadas e ainda passarão a fiscalizar com maior intensidade os contribuintes que mantenham transações ou detenham estruturas em tais jurisdições.

Já as medidas de tributação envolvem, basicamente: regras de indedutibilidade de custos e despesas, aplicação das regras CFC para a tributação de lucros de 87 B. DEFENSIVE MEASURES IN TAX AREA. B.1. To ensure co-ordinated action, Member States should apply at least one of the following administrative measures in tax area: a) Reinforced monitoring of certain transactions; b) Increased audit risks for taxpayers benefiting from the regimes at stake; c) Increased audit risks for taxpayers using structures or arrangements involving these jurisdictions. B.2. Without prejudice to the respective spheres of competence of the Member States to apply additional measures, defensive measures of legislative nature in tax area that could be applied by the Member States are: a) Non-deductibility of costs; b) Controlled Foreign Company (CFC) rules; c) Withholding tax measures; d) Limitation of participation exemption; e) Switch-over rule; f) Reversal of the burden of proof; g) Special documentation requirements; h) Mandatory disclosure by tax intermediaries of specific tax schemes with respect to cross-border arrangements.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

62

controladas no exterior, medidas de retenção na fonte, limitação das regras de “participation exemption”, cláusulas “switch-over”88 (cláusula de transição do método da isenção para o método do crédito em reação aos rendimentos provenientes de tais países), inversão do ônus da prova, imposição de regras mais rígidas em relação à documentação de suporte das operações e estruturas, e imposição de dever de prestar informações por terceiros.

Feitas essas considerações sobre o sistema da União Europeia, resta

tecer comentários sobre sua compatibilidade com a legislação brasileira. De início, deve-se consignar que tais disposições não possuem

aplicação no Brasil. Todas as diretrizes são aplicadas aos membros da União Europeia e não afetam o Brasil, seja pelo conteúdo das disposições, claramente destinadas apenas aos membros daquele grupo, seja pelo fato de que aqueles países não possuem jurisdição sobre o Brasil.

Por outro lado, o Brasil não consta na lista, evidenciando que nosso

país tem adotado as práticas tidas pela União Europeia como mínimas no combate à erosão da base tributária.

Registre-se que, a nosso sentir, caso houvesse a internalização

daquelas regras, por meio de modificações no sistema jurídico brasileiro, notadamente por meio de lei ordinária, ou por meio de acordos internacionais devidamente aprovados e referendados pelo Congresso Nacional, as referidas diretrizes da União Europeia em geral poderiam ser aplicadas no Brasil, feitas apenas algumas ressalvas, face aos princípios e regras em vigor em nosso ordenamento jurídico.

Não é vedado aos Estados listar as jurisdições e regimes que não

adotam padrões mínimos de combate à erosão da base tributária ou que oferecem baixa tributação, a fim de que as transações a elas relacionadas sejam objeto de determinadas medidas protetivas.

88 Trata-se da transição de normas que preveem o método da isenção de rendimentos provenientes de fontes situadas no exterior para o método de tributação com concessão de crédito.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

63

Contudo, algumas medidas poderiam dar ensejo a discussões. Poderia haver controvérsia acerca da validade de regras que simplesmente impedem a dedução de despesas, face ao conceito constitucional de renda e ao princípio da capacidade contributiva, embora também existam manifestações no sentido de que normas desse tipo seriam válidas quando se revestirem de caráter anti-abusivo.

Por outro lado, respeitados os princípios constitucionais e regras

brevemente tratados na parte preambular desta resposta, e observados os limites da razoabilidade89 e proporcionalidade90, poder-se-ia admitir o estabelecimento de hipóteses específicas de retenção na fonte, ou ainda afastar a aplicação de certos benefícios ou deduções fiscais, e criar regras mais rígidas de controle ou emissão de obrigações acessórias.

No que diz respeito à troca automática de informações, é fato que,

no Brasil, o STF já reconheceu não haver violação ao direito à intimidade e ao sigilo de dados na legislação que permite ao fisco obter informações sobre as movimentações financeiras de contribuintes junto a instituições financeiras, mesmo sem autorização judicial (RE 601314/SP, de 24.2.2016, do Pleno). Contudo, esse precedente não analisou o tema na perspectiva e na extensão da troca automática de informações entre países. Sobre o tema, confira-se a resposta n. 3.

Seja como for, como dito, as regras europeias, tais como definidas

nas resoluções anteriormente tratadas, não foram incorporadas ao sistema jurídico brasileiro. Ainda assim, o Brasil adota seus próprios critérios para listar jurisdições sujeitas a medidas protetivas. Nesse caso, resta apenas comparar os 89 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. São Paulo: Saraiva. 2009. pp. 255-256. Vide ainda: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Do Amálgama Entre a Razoabilidade e a Proporcionalidade na Doutrina e na Jurisprudência Brasileiras e Seu Fundamento no Devido Processo Legal Substantivo. In: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional. Liberdade de Fumar Privacidade Estado Direitos Humanos e Outros Temas. São Paulo: Manole. 2007.pp. 37-46. 90 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios - Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 7ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 160-173. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2005. pp. 392-402.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

64

critérios europeus com a legislação nacional, exercício que, a todo rigor, possui finalidade essencialmente acadêmica.

No Brasil, há basicamente duas classificações que justificam a

adoção de medidas que se assemelham às chamadas medidas protetivas acima tratadas.

A primeira classificação é a de países com tributação favorecida (ou

paraísos fiscais), definidos no art. 24 da Lei n. 9430, de 27.12.1997, como “(...) país que não tribute a renda ou que a tribute a alíquota máxima inferior a vinte por cento (...)” ou ainda “(...) aquele cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não residentes”.

Comparando-se a definição de país com tributação favorecida da

legislação nacional com as resoluções da Comunidade Europeia, o que se verifica é que a norma brasileira contempla um percentual mínimo de tributação de 20%, sendo mais objetiva em relação ao padrão europeu, que não estabelece percentuais fixos, mas sim parâmetros abertos, como visto.

Esse percentual de 20% poderá ser reduzido ou restabelecido pelo

Poder Executivo, nos termos do art. 24-B da Lei n. 9430/96, introduzido pela Lei n. 11727, de 23.6.2008. Com base nessa prerrogativa, o percentual de 20% foi reduzido para 17% pela Portaria MF n. 488, de 28.11.2014, mas apenas para os países, dependências e regimes que estejam alinhados com os padrões internacionais de transparência fiscal. Em outras palavras, o Brasil não considera países com tributação favorecida aqueles que tributem a renda entre 17% e 20%, mas que adotem padrões internacionais de transparência.

Por sua vez, o art. 1º da Instrução Normativa RFB n. 1530, de

19.12.2014, com redação dada pela Instrução Normativa RFB n. 1560, de 20.4.2015, definiu alinhamento com padrões internacionais de transparência fiscal como sendo aqueles que tiverem assinado convenção ou acordo com cláusula específica para troca de informações para fins tributários com o Brasil, ou que tenham concluído negociação para tal assinatura e estiverem

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

65

comprometidos com os critérios definidos em fóruns internacionais de combate à evasão fiscal de que o Brasil faça parte.

Na Europa, adotou-se uma definição mais aberta, vinculada a ideias

como a de tributação justa, as quais estão relacionadas com a concessão de vantagens específicas que impliquem redução da tributação, como exposto acima. Enquanto o Brasil adota percentuais mínimos de tributação, a Europa prevê regras mais fluidas, baseadas na ideia de tributação justa.

O parágrafo 4º do art. 24 inclui também como hipótese de países

com tributação favorecida aqueles cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, ou à sua titularidade e à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não residentes.

Nesse caso, o paralelo a ser feito com o sistema da Europa diz

respeito ao requisito de transparência previsto na Resolução do Conselho Europeu de 2016. Nota-se maior rigidez no sistema europeu, para o qual a transparência deve ser ampla, com a troca automática de informações nos padrões da OCDE. A norma brasileira, diferentemente, somente autoriza a caracterização como país com tributação favorecida caso a jurisdição imponha sigilo quanto à composição societária ou quanto à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos, o que significa um alcance mais restrito do que aquele que se verifica no padrão europeu.

Na legislação brasileira, a questão da troca de informações foi

considerada relevante apenas para fins de autorização de redução do percentual de 20% para 17%, como visto acima.

A lista brasileira de paraísos fiscais é definida na Instrução

Normativa RFB n. 1037, de 4.6.2010, com alterações pelas instruções n. 1045, de 23.6.2010, n. 1474, de 18.6. 2014, n. 1658, de 13.9. 2016, n. 1683, de 29.12. 2016, n. 1773, de 21.12.2017, quando houve exclusões e adições na lista.

Veja-se que a divulgação de uma lista oficial pela Administração

Tributária contribui para a promoção da praticabilidade e para a preservação da transparência no campo do Direito Tributário, concretizando o princípio da

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

66

segurança jurídica. Isso porque a Instrução Normativa RFB n. 1037 esclarece o âmbito de aplicação das leis que fazem alusão às jurisdições com tributação favorecida, consagrando valores como a inteligibilidade, a confiabilidade e a previsibilidade.

Essa lista tem sido considerada pelo próprio fisco como taxativa, de

modo que apenas as jurisdições lá relacionadas é que estão submetidas às medidas protetivas tratadas adiante.

Faz sentido que assim seja, eis que a aplicação das regras em

questão a partir dos critérios acima descritos requer o pleno conhecimento dos sistemas tributários de outros países, não sendo razoável impor tal ônus aos contribuintes. A edição das listas, nesse contexto, configura verdadeira condição de aplicabilidade91 das regras protetivas, conferindo eficácia técnica92 aos art. 24 e 24-A da Lei n. 9430.

Nesse aspecto, verifica-se semelhança com o sistema europeu, pois

ambos adotam como prática apresentar as jurisdições em listas, garantindo segurança jurídica para a imposição das medidas necessárias.

A outra figura existente na legislação brasileira é a do regime fiscal

privilegiado, prevista no art. 24-A da Lei n. 9430, introduzido pela Lei n. 11727. Tal disposição contempla alguns regimes específicos, concedidos em relação a determinadas estruturas em particular, mesmo que a jurisdição como um todo tribute a renda acima dos 20%93. Se algum regime em particular implicar a tributação da renda a alíquota inferior ao mesmo percentual, estar-se-á diante de regime fiscal privilegiado. 91 Vide nesse sentido a Solução de Consulta n. 143, de 12.6.2000, da Superintendência da 8ª Região Fiscal da Receita Federal, que ao tratar da lista de jurisdições ou dependências com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, considerou que a edição de ato administrativo concretizando o critério legal seria condição de aplicabilidade da norma jurídica, para que as suas disposições possam ser cumpridas pelo contribuinte. 92 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 5ª Edição. São Paulo: Atlas. 2007. pp. 199-203. 93 O percentual também foi reduzido para 17% para dependências e regimes que estejam alinhados com os padrões internacionais de transparência fiscal, nos termos da Portaria MF n. 488.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

67

No caso dos regimes fiscais privilegiados, nota-se a adoção dos

mesmos critérios para a definição do nível de tributação e de acesso a informações identificados na definição legal de países de tributação favorecida.

Há, porém, na definição do art. 24-A maior atenção a vantagens

concedidas a não residentes ou a transações no exterior, notadamente quando se considera regime fiscal privilegiado a concessão de vantagens a não residentes sem substância ou quando se concede a tributação favorecida sobre resultados auferidos fora da jurisdição. Nesses casos, verifica-se maior aproximação com o conceito europeu, embora também com peculiaridades.

A lista de regimes fiscais privilegiados, contida na Instrução

Normativa RFB n. 1037, também é tida como taxativa. Se é assim com os países de tributação favorecida, para os quais o critério legal é mais objetivo, com mais razão deve ser nos regimes fiscais privilegiados, em que os critérios legais comportam um maior grau de subjetivismo, exigindo ainda mais conhecimento pelos contribuintes da legislação de outros países.

Em suma, os critérios para a identificação dos países com tributação

favorecida ou dos regimes fiscais privilegiados são sensivelmente diferentes daqueles utilizados pela União Européia. Embora com objetivos e inspirações semelhantes, a Europa adota conceitos mais abertos, como o de tributação justa e critérios mais rígidos relativos à transparência quando se compara com o que vige no Brasil.

A adoção de padrões mais abertos, como ocorre na Europa, permite

que sejam feitas adaptações e atualizações, sem a necessidade de edição de novas leis. Confere-se maior dinamismo ao sistema. Além disso, os conceitos mais abertos podem ser mais eficazes no combate a possíveis contornos à legislação. De outra parte, perde-se em objetividade e praticidade, eis que cada situação deve ser analisada de acordo com suas peculiaridades e circunstâncias. Trata-se, também nesse caso, da clássica dicotomia entre praticidade/eficiência/segurança e justiça/igualdade.

Feitos esses comentários, resta abordar as chamadas “medidas

protetivas” em vigor no Brasil.

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

68

Em nosso país, para os países com tributação favorecida, estão previstas as seguintes medidas: (a) tributação na fonte à alíquota de 25% sobre as remessas a tais países (Lei n. 9779/99, art. 9o); (b) aplicação de regras de preços de transferência, com limitação da dedução de custos e despesas nas importações de bens ou serviços e a imposição de receitas mínimas para as exportações (Lei n. 9430/96, art. 18 a 24); (c) aplicação das regras de subcapitalização, com a limitação da dedutibilidade de juros pagos a tais jurisdições, a partir de determinados níveis de endividamento (Lei n. 12249, de 11.6.2010, art. 25); (d) dedutibilidade de qualquer despesa condicionada (i) à identificação do efetivo beneficiário da entidade no exterior; (ii) comprovação da capacidade operacional do beneficiário realizar a operação que gerou a despesas; e (iii) comprovação documental do pagamento do preço respectivo e do recebimento dos bens e direitos ou da utilização de serviço (Lei n. 12249/10, art. 26); e (e) vedação à aplicação de determinados regimes especiais de tributação de lucros no exterior, nos termos da Lei n. 12973, como a possibilidade de consolidação de resultados (art. 78, inciso II), a tributação das coligadas apenas no momento da disponibilização (art. 81, incisos I e II), e a postergação de pagamento do IRPJ e da CSL na forma do art. 90 e 91. As referidas restrições são aplicáveis a uma categoria especificamente criada na Lei n. 12973, que é o regime de subtributação, definido no seu art. 84, inciso III, como aquele que submete a pessoa jurídica no exterior à alíquota nominal inferior a 20%.

No caso dos regimes fiscais privilegiados, as medidas são as

mesmas, com exceção da tributação na fonte à alíquota de 25%, a qual é prevista apenas para os países com tributação favorecida (vide Solução de Consulta COSIT n. 575, de 20.12.2017).

Comparando as medidas acima listadas, previstas na legislação

brasileira, com as diretrizes da Comunidade Europeia, verifica-se que todas as medidas adotadas pelo Brasil estão contempladas nas hipóteses aventadas nas resoluções europeias acima analisadas.

O legislador nacional não adota todas as medidas enumeradas como

possíveis na Europa. Por exemplo, a recomendação de se considerar totalmente indedutíveis os custos e despesas vinculados a operações praticadas com jurisdições listadas não foi encampada, tendo a legislação brasileira optado por condicionar a dedutibilidade ao cumprimento de regras mais rígidas, como a

Artigos

São Paulo / DEZEMBRO 2018

69

comprovação da capacidade operacional, identificação do beneficiário efetivo e a comprovação do pagamento (Lei n. 12249/10, art. 26).

É interessante verificar que, no padrão europeu, a aplicação de

regras CFC é uma das medidas protetivas indicadas. No Brasil, tais regras são aplicadas a qualquer resultado auferido por controladas no exterior e não como medida de combate à erosão da base tributável94. A medida protetiva no Brasil diz respeito apenas à restrição ao direito de consolidação de resultados auferidos em diferentes jurisdições, e no que tange à postergação do pagamento do IRPJ e da CSL, como visto (Lei n. 12973/14, art. 78, inciso II, e art. 90 e 91).

O Brasil também deixou de adotar regras como a inversão do ônus

da prova, swicth over e a obrigação de divulgação das operações por terceiros prestadores de serviços e intermediários, como é previsto nas resoluções da União Europeia.

Em suma, mesmo não tendo encampado todas as medidas

protetivas, grande parte das recomendações contidas nas resoluções do Conselho da União Europeia já vem sendo implementada pelo Brasil.

Resposta: A desconsideração por parte da autoridade fiscal de

atos ou negócios praticados pelo contribuinte está submetida à legalidade estrita, ao devido processo legal, e ao direito à ampla defesa, constitucionalmente garantidos. Além disso, tal desconsideração somente é cabível nas hipóteses de dolo fraude e simulação, conforme dispõe o art. 149 do CTN, e nas demais situações em que o fisco comprovar a prática de atos viciados, segundo as respectivas normas de regência, e que dessa forma não sejam hábeis a surtir os respectivos efeitos. A Resolução de 5.12.2017 não é aplicável no Brasil, por ausência de norma no sistema nacional que assim estabeleça. De qualquer modo, os critérios utilizados na Europa para a inclusão de jurisdições na lista de paraísos fiscais são diferentes daqueles adotados no Brasil. Já quanto às medidas protetivas, aquelas adotadas em nosso país estão inseridas entre aquelas sugeridas nas resoluções editadas no âmbito da Comunidade Europeia, embora o Brasil as tenha adotado apenas parcialmente. 94 Essa é, aliás, uma das críticas que a doutrina sempre fez de nossa legislação, que adota regras tipicamente antielsivas para tributar quaisquer situações. Vide nesse sentido: Transparência Fiscal Internacional. São Paulo: Dialética, 2005.