artigosmarizadvogados.com.br/_2017/wp-content/uploads/2018/02/nart.07... · abuso no exercício de...

35
Artigos São Paulo / AGOSTO 2016 1 Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário em Homenagem ao Prof. Gerd Willi Rothmann”, Quartier Latin, São Paulo, 2016, p. 389. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira O INSTITUTO DO “TRUST” NA PERSPECTIVA DO DIREITO BRASILEIRO SUMÁRIO. I Desconfiança e suspeita. Perplexidade ante a possível validade no Brasil. II – O “trust” no direito comparado. III – A validade do “trust” no Brasil. IV – Consequências tributárias no Brasil, de um “trust” no exterior, e outras implicações. V – Obrigação de declarar o “trust” no Brasil. VI – A regularização de capitais brasileiros no exterior. *********************** *********************** I – DESCONFIANÇA E SUSPEITA – PERPLEXIDADE ANTE A POSSÍVEL VALIDADE NO BRASIL O secular instituto jurídico do “trust” aqui entre nós é sempre objeto de desconfianças e suspeitas de que seja ilegal, ou de que seja meio para encobrir crimes e fraudes familiares, fiscais ou contra credores.

Upload: dinhdang

Post on 12-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

1

Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário em Homenagem ao Prof. Gerd Willi Rothmann”, Quartier Latin, São Paulo, 2016, p. 389.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira O INSTITUTO DO “TRUST” NA PERSPECTIVA DO DIREITO BRASILEIRO

SUMÁRIO. I – Desconfiança e suspeita. Perplexidade ante a possível validade no Brasil. II – O “trust” no direito comparado. III – A validade do “trust” no Brasil. IV – Consequências tributárias no Brasil, de um “trust” no exterior, e outras implicações. V – Obrigação de declarar o “trust” no Brasil. VI – A regularização de capitais brasileiros no exterior. *********************** ***********************

I – DESCONFIANÇA E SUSPEITA – PERPLEXIDADE ANTE A POSSÍVEL VALIDADE NO BRASIL O secular instituto jurídico do “trust” aqui entre nós é sempre objeto

de desconfianças e suspeitas de que seja ilegal, ou de que seja meio para encobrir crimes e fraudes familiares, fiscais ou contra credores.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

2

Este é o estado de espírito comum na população brasileira, inclusive ante o fato de que o instituto inexiste em nosso ordenamento jurídico.

Ademais, suas características e seus efeitos patrimoniais são tão

especiais que muitas vezes torna-se difícil aceitar, e mesmo entender, o que ocorre com as pessoas e os bens pertinentes a um “trust”.

Por fim, se algum jurista informa que o “trust” pode ter validade no

Brasil, instala-se na mente de muitos que recebem tal informação uma perplexidade tal que beira à dúvida sobre os conhecimentos de quem assim se pronuncia.

Tudo isto, entretanto, pode ser invertido num processo de

verdadeira “desmistificação” da noção de ilegalidade envolvida na constituição de qualquer “trust”.

Para tanto, é preciso ter em conta que “trusts”, como qualquer outro

instituto do direito, não foram criados para a prática da ilegalidade. Muito pelo contrário, ele surgiu nas cortes do direito anglo-saxônico e visou originalmente efetivar e facilitar sucessões de patrimônios familiares ou a gestão dos mesmos de modo seguro e eficaz, servindo também para a proteção patrimonial contra eventualidades de riscos. Historicamente, sabe-se que foi empregado por minorias perseguidas por regimes totalitários.

Ademais, a sua existência, aceita regularmente fora do Brasil, pode

ser medida pelo fato de haver uma convenção internacional que estabelece os padrões que o regem.

Assim, o seu uso circunstancial para encobrir produtos de crimes ou

outras ilegalidades não desqualifica, em absoluto, a sua validade, do mesmo modo que a utilização de um contrato translativo da propriedade de bens (compra e venda, doação, permuta, etc.), para fugir de credores ou enganar qualquer pessoa, não torna ilegal todo e qualquer negócio jurídico da espécie praticada.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

3

Em tais situações circunstancias pode configurar-se simulação, abuso no exercício de direito, fraude à lei ou a credores, ou outras ilegalidades, mas o direito possui eficazes instrumentos jurídicos para coibir os desvios, quando detectado o uso irregular do ato ou negócio jurídico exorbitante da sua função social.

Quer dizer, o instituto do “trust” não é inválido de per si, embora

inválido possa ser o seu emprego em determinada situação, e, para se chegar à conclusão de invalidade, o que se deve fazer é confrontar as circunstâncias fáticas dessa situação com o ato praticado e os efeitos dele decorrentes.

Neste passo, não existe “trust” regido por norma do direito privado

brasileiro, mas isto não significa que ele não possa existir e produzir efeitos válidos no Brasil, mesmo perante seu ordenamento jurídico e seus tribunais. O que cabe é a detalhada análise de cada caso em particular.

Outrossim, dentre os reflexos de qualquer “trust” no direito do

Brasil estão, ou podem estar, seus efeitos tributários, dado que as relações jurídicas pessoais com conteúdo econômico e patrimonial, regidas pelo direito privado (CTN, art. 109 e 110), podem revelar capacidades contributivas previstas nas leis do País como hipóteses de incidência de tributos devidos a quaisquer das três esferas de poder tributante (União, Estados ou Distrito Federal e Municípios).

Também, é claro, pode se dar efeito inverso, ou seja, as

consequências de um determinado “trust” na órbita privada não envolverem qualquer obrigação tributária no Brasil, e mais, pode não haver obrigação tributária principal, mas haver alguma obrigação acessória.

Adentremos, então, na constatação do que seja o “trust” e de quais

são os seus efeitos, sem a menor pretensão de esgotar o assunto, para o que seria necessário o concurso da expertise de juristas de outros países, mas tendo como objetivo único verificar como e porque ele pode valer perante o direito nacional do Brasil, fazendo tal verificação ser acompanhada da alusão a algumas situações concretas, com as quais serão ilustradas as constatações feitas em tese. Inclusive, depois que tivermos fixada a noção de “trust”, poderemos ver, ao final do terceiro segmento, que no Brasil há algo muito parecido com ele.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

4

II – O “TRUST” NO DIREITO COMPARADO O primeiro passo para reconhecer a legalidade dos “trusts” em

caráter geral é ir à fonte multilateral existente no direito internacional, até porque a constatação da disciplina que cada jurisdição nacional lhes dê extravasaria os limites e o escopo destes comentários.

É sabido que a “Hague Conference on Private International Law”

(“Conferência de Haia sobre o Direito Internacional Privado”), da qual o Brasil é membro, tem promovido diversas convenções sobre diversas matérias, das quais cabe aqui destacar a de n. 30, concluída em 1º de julho de 1985, a qual tem um título por si só sugestivo: “Convention on the Law Applicable to Trusts and on their Recognition”.

No preâmbulo já é possível encontrar passagens elucidativas: 1

“The States signatory to the present Convention, Considering that the trust, as developed in courts of equity in common law jurisdictions and adopted with some modifications in other jurisdictions, is a unique legal institution, Desiring to establish common provisions on the law applicable to trusts and to deal with the most important issues concerning the recognition of trusts,”

Quer dizer, a convenção reconhece a legal existência do instituto e

se propõe a estabelecer, a título de sugestão para as legislações nacionais, algumas disposições que sejam comuns e sirvam para a solução das mais importantes questões em torno do reconhecimento dos “trusts”.

1 Os grifos e destaques apostos nos textos aqui transcritos não estão no original, e visam apenas chamar atenção para pontos relevantes ao objetivo perseguido neste estudo.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

5

Nos artigos convencionais vamos encontrar inúmeras normas esclarecedoras, sendo recomendável, a quem se proponha a estudar o tema, que os leia na integralidade. Não obstante, alguns são mais relevantes e precisam ser considerados com atenção:

“Article 2 For the purposes of this Convention, the term ‘trust’ refers to the legal relationships created - inter vivos or on death - by a person, the settlor, when assets have been placed under the control of a trustee for the benefit of a beneficiary or for a specified purpose. A trust has the following characteristics – a) the assets constitute a separate fund and are not a part of the trustee's own estate; b) title to the trust assets stands in the name of the trustee or in the name of another person on behalf of the trustee; c) the trustee has the power and the duty, in respect of which he is accountable, to manage, employ or dispose of the assets in accordance with the terms of the trust and the special duties imposed upon him by law.”

Temos aí estabelecidas as principais características do “trust”,

concebido com uma relação legal criada por uma pessoa (o “settlor”, isto é, o instituidor), em vida ou por algum instrumento válido “causa mortis”, pela qual determinados bens da sua propriedade são colocados sob o controle de outra pessoa (o “trustee”), que pode ser uma pessoa natural ou jurídica, e com as características especiais de que o título de propriedade sobre tais bens é transferido para o nome do “trustee”, ou de quem este indicar, embora constitua um fundo separado do seu patrimônio, em regime similar ao do patrimônio de afetação.

O Artigo 2 também reflete os objetivos do “trust”, que podem ser a

colocação dos ativos sob o controle do “trustee” para o benefício de pessoa ou pessoas indicadas pelo “settlor” como beneficiária ao beneficiárias desses bens, ou para outro motivo qualquer também especificado pelo “trustee”.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

6

O “controle” a que se refere o Artigo 2 não é um simples controle de

um procurador, tutor ou gestor de negócios, mas o do titular do direito de propriedade, que passa a ser do “trustee”, expressamente reconhecido na alínea “b” e confirmado na alínea “c” pela possibilidade que ele tem de gerir e empregar os bens, e mesmo dispor deles. Em síntese, são os atributos da propriedade, reconhecidos como pertencentes ao “trustee”.

É possível antever as consequências patrimoniais e tributárias que

advém dessa relação jurídica para o “settlor” e o “trustee”. O Artigo 2 prossegue dizendo:

“The reservation by the settlor of certain rights and powers, and the fact that the trustee may himself have rights as a beneficiary, are not necessarily inconsistent with the existence of a trust.”

Essa disposição revela a amplitude que o instituto contém,

exatamente para permitir que os objetivos visados com a instituição de um “trust” sejam alcançados de modo consistente com suas características principais.

Em decorrência, a mais comum instituição de um “trust” em favor de

beneficiários indicados pelo “settlor” não impede que ele se indique beneficiário nas condições e circunstâncias determinadas no instrumento de instituição (o “deed”). Assim, também, ele pode reservar certos poderes quanto à gestão do “trustee”, tal como ser consultado previamente a alguma alienação ou aplicação dos bens transferidos a este.

Nesta linha, é comum a figura do “protector”, cuja função pode ser a

de aconselhar o “trustee”, opinar sobre a gestão dos bens e mesmo supervisioná-la, ou seja, uma função de colaboração desinteressada e derivada da confiança nele depositada, ou de simples prestação de serviços, remunerada ou não.

Outro detalhe importante, existente na convenção, e que está

diretamente ligado ao nosso escopo, está contido no seu Artigo 6, no qual lemos:

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

7

“Article 6 A trust shall be governed by the law chosen by the settlor. The choice must be express or be implied in the terms of the instrument creating or the writing evidencing the trust, interpreted, if necessary, in the light of the circumstances of the case.”

Ou seja, para que passe a existir, o “trust” precisa ser regido por uma

lei nacional escolhida pelo “settlor” e indicada no “deed” (a “governing law”, comum nos contratos internacionais), e, evidentemente, a eleição tem que ser de uma lei que admita a relação jurídica de “trust”.

Em conexão com essa norma existem outras, das quais impende

destacar a seguinte:

“Article 8 The law specified by Article 6 or 7 shall govern the validity of the trust, its construction, its effects, and the administration of the trust. In particular that law shall govern – a) the appointment, resignation and removal of trustees, the capacity to act as a trustee, and the devolution of the office of trustee; b) the rights and duties of trustees among themselves; c) the right of trustees to delegate in whole or in part the discharge of their duties or the exercise of their powers; d) the power of trustees to administer or to dispose of trust assets, to create security interests in the trust assets, or to acquire new assets; e) the powers of investment of trustees; f) restrictions upon the duration of the trust, and upon the power to accumulate the income of the trust; g) the relationships between the trustees and the beneficiaries including the personal liability of the trustees to the beneficiaries;

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

8

h) the variation or termination of the trust; i) the distribution of the trust assets; j) the duty of trustees to account for their administration.”

Os Artigos 6 a 10 estão encartados no Capítulo II da Convenção, que

trata da lei aplicável, e após ele o Capítulo III trata do reconhecimento do “trust”, começando pela seguinte disposição:

“Article 11 A trust created in accordance with the law specified by the preceding Chapter shall be recognised as a trust. Such recognition shall imply, as a minimum, that the trust property constitutes a separate fund, that the trustee may sue and be sued in his capacity as trustee, and that he may appear or act in this capacity before a notary or any person acting in an official capacity. In so far as the law applicable to the trust requires or provides, such recognition shall imply, in particular – a) that personal creditors of the trustee shall have no recourse against the trust assets; b) that the trust assets shall not form part of the trustee's estate upon his insolvency or bankruptcy; c) that the trust assets shall not form part of the matrimonial property of the trustee or his spouse nor part of the trustee's estate upon his death; d) that the trust assets may be recovered when the trustee, in breach of trust, has mingled trust assets with his own property or has alienated trust assets. However, the rights and obligations of any third party holder of the assets shall remain subject to the law determined by the choice of law rules of the forum.”

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

9

Vê-se que o Artigo 11 é um complemento do Artigo 2, pois explicita limites de direitos e obrigações derivados da instituição do “trust” dentro das suas características essenciais e básicas.

Neste sentido, o Artigo 11 até poderia não existir, mas, de qualquer

modo, ele visa deixar evidenciado quando se identifica a existência de um “trust”, e espanca qualquer dúvida que poderia remanescer quanto a que o “settlor” deixa de ser proprietário dos bens transferidos à titularidade do “trustee”, e quanto a que este passa a ser o proprietário em caráter especialíssimo de poder fazer tudo, resguardadas as instruções que tiver recebido, mas não contar os mesmos bens no seu patrimônio pessoal perante familiares, credores e terceiros em geral.

Podemos, portanto, principalmente nós brasileiros, ver que o “trust”

é realmente uma “unique legal institution”, como diz o “considerandum” da convenção.

Em sequência, encontramos o Artigo 12, “in verbis””

“Article 12 Where the trustee desires to register assets, movable or immovable, or documents of title to them, he shall be entitled, in so far as this is not prohibited by or inconsistent with the law of the State where registration is sought, to do so in his capacity as trustee or in such other way that the existence of the trust is disclosed.”

Nota-se aqui o nível de detalhes atingido pela convenção, e a

supremacia da lei eleita para governar o “trust”. Mas, entre outras regras relativas ao reconhecimento e à lei

aplicável, temos a seguinte:

“Article 14 The Convention shall not prevent the application of rules of law more favourable to the recognition of trusts.”

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

10

Dessa regra emana a preocupação em proteger o reconhecimento

dos “trusts”, e de lhes ofertar meios os mais favoráveis possíveis para que sua função seja cumprida.

Esse Artigo 14 está entre as regras gerais, nas quais também

encontramos duas provisões que merecem ser mencionadas, a saber:

“Article 18 The provisions of the Convention may be disregarded when their application would be manifestly incompatible with public policy (ordre public). Article 19 Nothing in the Convention shall prejudice the powers of States in fiscal matters.”

É muito bom notar a qualidade técnica da convenção, revelada no

Artigo 18 ao resguardar normas de ordem pública de legislações nacionais, quando manifestamente contrariadas por qualquer disposição da convenção, e também pelo reconhecimento, no Artigo 19, de que assuntos fiscais estão subordinados à legislação dos Estados, cuja soberania nesta matéria não pode ser afastada por qualquer disposição convencional.

Isto é assim inclusive porque a convenção em comento não é uma

convenção tributária, ou melhor, não tem por objeto o tratamento tributário aos bens e às pessoas envolvidas nos “trusts”, eis que visa apenas as relações jurídicas entre elas, ou seja, as relações jurídicas típicas do direito privado. Neste particular, a norma convencional está em paralelo com a do art. 109 do nosso CTN.

Enfim, numa síntese das disposições da convenção, no que interessa

para o tema ora abordado, conclui-se que a concepção do “trust” como um legítimo instituto legal, que é único ainda que tenha algumas variantes de jurisdição para jurisdição, demonstra que os bens a ele afetados ficam sob a

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

11

propriedade do “trustee”, embora não participem do seu patrimônio submetido à constrição legal por credores ou a partilhas matrimoniais ou por sucessão.

Como afirma textualmente o Artigo 11 da convenção, em harmonia

com outras disposições particulares, o “trust” por ela reconhecido “shall imply, as a minimum, that the trust property constitutes a separate fund”, o que nos leva a poder afirmar que este mínimo na verdade representa a essência do “trust”, sem a qual ele não existe porque, sem ela, não tem como desempenhar a sua função jurídica. Não é por outra razão que o Artigo 12 relaciona, entre outras características do “trust”, que “title to the trust assets stands in the name of the trustee”.

Este é o “trust” em sua pureza, e tal como ele é aqui considerado,

sem que adentremos em hipóteses, como as de “trusts” revogáveis e outras, nas quais, dependendo da legislação aplicável, possam haver restrições ou dúvidas quanto à extensão e efetividade dos seus efeitos.

III – A VALIDADE DO “TRUST” NO BRASIL A primeira colocação, continuativa do que foi comentado no

primeiro segmento destes comentários, é de que o fato de o direito brasileiro não disciplinar a figura contratual do “trust” não significa “ipso facto” que um “settlor” ou beneficiário de “trust” contraído no exterior esteja em situação ilegal perante a lei brasileira, seja ele um nacional do Brasil, residente dentro ou fora do País, seja um estrangeiro residente no território brasileiro.

Quer dizer, ninguém neste país está impedido de estabelecer um

“trust”, nem precisa ter receio de o fazer ou do que tiver feito. Pelo contrário, tal pessoa pode ser considerada em situação

plenamente legal, desde que tenha obedecido à legislação de regência do respectivo “trust”. Do mesmo modo, um beneficiário residente no Brasil pode estar em situação jurídica absolutamente regular.

Realmente, a legalidade da posição, mesmo de um “settlor” ou

beneficiário aqui residente, decorre de três motivos, ou fundamentos jurídicos.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

12

O primeiro deles é que o Decreto-lei n. 4657, de 4.9.1942 (“Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”), o qual possui, entre outras, algumas normas de direito internacional privado aplicáveis na jurisdição brasileira, estabelece o seguinte: 2

“Art. 8º - Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados. Art. 9º - Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.”

Portanto, quando os bens dos patrimônios do “trust” estiverem no

exterior, as relações jurídicas concernentes a eles serão disciplinadas pelas leis dos países em que estiverem situados, e não pelas leis do Brasil. Isto é assim, na perspectiva do direito brasileiro, em face do art. 8º da Lei de Introdução, e se mantém assim mesmo quando os bens estejam na propriedade de uma pessoa física ou jurídica aqui residente. Portanto, com mais razão quando a propriedade dos bens não caiba a uma pessoa residente no País, não é a nossa lei que se deve aplicar, sendo as relações jurídicas a eles pertinentes regidas pelas leis estrangeiras, que lhes darão validade quando devidamente observadas.

Por outro lado, o contrato de “trust” constituído além das fronteiras

do Brasil está fora da disciplina das leis brasileiras, pois, na perspectiva da norma do art. 9º da nossa Lei de Introdução, e como sua decorrência, ele deve ser regido pela lei do país em que for constituído, sendo até possível a eleição

2 Nessa lei, temos também o seguinte dispositivo: “Art. 10 - A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens. § 1º - A sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do ‘de cujus’. § 2º - A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder”. Todavia, de um modo geral, sem adentrar em situações particulares, a transferência de bens do “trustee” aos beneficiários, mesmo após a morte do “settlor”, não se dá a título de sucessão hereditária, por morte ou ausência, pois o alienante é uma pessoa viva e o “settlor”, ao instituir o “trust”, deve ter observado as garantias da lei brasileira para seus herdeiros, aspectos estes que serão desenvolvidos, inclusive por seus efeitos, ao longo desta exposição.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

13

contratual de uma outra lei, caso admitido pela legislação do país em que o contrato for concluído.

É até possível especular a possibilidade de a assinatura do “deed”

ser feita no Brasil, por todas as partes ou pelo “settlor”, com eleição de lei estrangeira para regulá-lo, mas no plano prático e pragmático é inquestionável que a conclusão do contrato em território estrangeiro seguramente o coloca sob a regência da lei do país em que for formado.

Em consequência, será reconhecido no Brasil um “trust” constituído

no exterior e submetido à lei de outro país, e inclusive poderá ser objeto de apreciação por tribunal brasileiro, o qual, se tiver que se pronunciar sobre o assunto, provavelmente determinará a prova dessa lei, conforme lhe é facultado pelo art. 14 da mesma Lei de Introdução:

“Art. 14 - Não conhecendo a lei estrangeira, poderá o juiz exigir de quem a invoca prova do texto e da vigência.”

O segundo motivo confirmador da validade, perante o direito

brasileiro, do “trust” contratado fora do Brasil por uma pessoa nele residente, é que o direito civil brasileiro consagra o princípio da liberdade de contratar, desde que não sejam feridas normas cogentes de direito público, isto é, normas que são inalteráveis pela vontade das partes. Neste sentido, veja-se os art. 421 e 2035, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro, que dizem:

“Art. 421 - A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 2035 Parágrafo único - Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”

Ou seja, a inexistência de um contrato típico no direito civil do

Brasil, com as características de um “trust”, não significa automaticamente ser

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

14

impossível contratar um negócio com tais características, o qual, se submetido à lei brasileira, seria um contrato inominado ou atípico.

A existência de contratos inominados era válida na vigência do

Código Civil de 1916, mesmo não havendo nele uma disposição expressa neste sentido, a qual passou a existir com o código de 2002. De fato, a assunção de contratos não regulados especificamente pela lei é admitida expressamente pelo art. 425 da atual codificação, nos seguintes termos:

“Art. 425 – É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.”

Entretanto, a licitude dos contratos atípicos, que está inserida na

liberdade de contratar, fica, por isso, e também pela parte final do art. 425, submetida à condição limitativa constante do art. 421, pois este, como vimos, preceitua que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Em virtude dessa novidade do atual código, o conceito de “função

social do contrato” precisa ser perfeitamente entendido, para que não se confunda com uma imaginária preocupação com deveres sociais difusos e externos ao contrato.

Ocorre que há quem veja aí uma vinculação dos contratos aos

interesses sociais ou públicos que extravasam os interesses individuais das partes contratantes, mas a melhor visão doutrinária do conceito é a que reduz o âmbito da função social do contrato aos estritos limites das partes, em virtude do que a observância da função social é entendida como a observância do escopo que é próprio a cada tipo contratual, no sentido de não ser ele desvirtuado em prejuízo de uma das partes, geralmente a mais fraca na relação negocial. Neste sentido, e em proteção teórica da parte menos poderosa, as chamadas disposições de ordem pública – isto é, aquelas que estão previstas em lei e que não podem ser contrariadas por cláusulas contratuais – atendem à função social do contrato, quando pertinentes a ele.

Entre outras razões para estas afirmações sobre a função social do

contrato, temos o próprio código, quando determina:

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

15

“Art. 122 - São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.”

Ao lado do art. 122, o parágrafo único do art. 2035, retro transcrito,

prescreve que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos pelo mesmo código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos, portanto, vinculando a função social dos contratos aos preceitos de ordem pública.

Não obstante, a “função social do contrato” não pode ser definida

apenas pela observância dos preceitos de ordem pública, embora estes visem assegurar aquela.

Realmente, o conceito é mais amplo, de modo que não apenas

disposições de ordem pública estão envolvidas na “função social do contrato”, mas também o necessário respeito à sua finalidade, ou melhor, a necessária vinculação do seu uso ao fim que lhe é próprio, e que a doutrina identifica como a causa do contrato, isto é, a função que ele deve exercer na relação entre as partes.

Em suma e em outras palavras, a função social do contrato é a

própria função para a qual ele existe no ordenamento jurídico, a qual deve ser respeitada sob pena de nulidade por abuso no exercício do direito de contratá-lo, e, mais, enxerga-se na segurança jurídica emanada do contrato regular, e garantida às respectivas partes, a sua própria função social.

O quanto já foi dito a este respeito não esgota o tema da função

social, mas é suficiente para entendê-la, especialmente no contexto desta análise tendente a demonstrar que a lei civil brasileira assegura a liberdade de contratar, inclusive de assumir contratos que não estejam legalmente tipificados.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

16

Antes mesmo de 2002, ORLANDO GOMES expôs o razão para a necessária validade dos contratos atípicos. Após tratar de alguns tipos contratuais e concluir que cada um exerce uma função específica, explicou: 3

“A fim de que a vida econômica se desenrole mediante esses instrumentos jurídicos, não bastam, contudo, os definidos e disciplinados na lei. Admitem-se arranjos e combinações, dignos de proteção, ampliando-se, assim, imensuravelmente, a esfera dos contratos, com o acréscimo dos chamados contratos atípicos.”

Em suma, a inexistência de tipificação do contrato de “trust” no

direito brasileiro não impede, em tese, que ele seja pactuado mesmo aqui, mas, em concreto, certamente não impede que um residente no Brasil, brasileiro ou não, o contrate fora do território nacional e sob a regência de lei estrangeira.

E o terceiro motivo confirmador da validade, perante o direito

brasileiro, do “trust” contratado fora do Brasil por uma pessoa nele residente, está sediado na garantia individual constitucional inscrita no inciso II do art. 5º da Constituição Federal de 1988, segundo a qual ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, cuja lei, contudo, em qualquer caso, está sujeita aos limites constitucionais gerais. Diz a norma constitucional:

“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ... II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

Esta garantia constitucional é facilmente identificada, no direito

infraconstitucional, com as mencionadas regras do Código Civil relativas à liberdade de contratar e a de contratar contratos atípicos.

3 GOMES, Orlando, “Contratos, Editora Forense, Rio de Janeiro, 10ª ed., 1984, p. 23.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

17

Deste conjunto normativo, formador de três motivos ou fundamentos de validade do “trust”, esta se afirma considerando-se que não existe vedação legal a que uma pessoa sujeita à jurisdição brasileira contrate dentro ou fora do Brasil segundo a lei estrangeira, que a contratação de um “trust” no exterior segundo lei estrangeira não contraria qualquer preceito de ordem pública no Brasil, desde que observados os limites legais para a disposição de patrimônio, e que o contrato contraído no exterior será regido pela lei do país em que for concluído (admitindo-se também a eleição de uma lei nacional não brasileira).

Antes de terminar este segmento, convém deixar claro que não pode

haver confusão entre um “trust” regularmente instituído no exterior e as situações de simulação (“sham”) ou de interposição fraudulenta de terceiros.

Não pode haver essa confusão desde que, quando da instituição por

pessoa sujeita às leis do Brasil, tenham sido respeitas as eventuais restrições à transferência não onerosa de bens, existentes nessas leis, isto é, desde que o “settlor” tenha observado as normas brasileiras que se apliquem a ele e à sua situação concreta naquele momento (sobre isto, veja-se o próximo segmento).

A rigor, nem se precisaria estar afastando qualquer confusão a este

respeito, mas não custa deixar claro que o “trustee” não é alguém que simplesmente empresta seu nome para uso por terceiro, quer dizer, ele não é a “figura de palha” da doutrina civilista, nem o “testa-de-ferro” ou “laranja” como se diz na linguagem vulgar, ou “titular de fato” como se pode falar em linguagem mais sofisticada. Ao contrário, ele é verdadeiramente dono das coisas transferidas para o patrimônio constitutivo do “trust”.

Igualmente, portanto, não há a situação de simulação referida no

inciso I do parágrafo 1º do art. 167 do Código Civil Brasileiro ao definir esse vício dos negócios jurídicos, simplesmente porque as partes querem efetivamente a transferência da propriedade para o “trustee” e agem consistentemente com a função para que esse contrato existe no direito que o rege.

Destarte, como se dá com qualquer negócio jurídico, poderia haver

simulação se a transmissão da propriedade ao “trustee” não fosse efetiva, vindo

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

18

a se desfazer após a superação da razão para que o “trust” fosse constituído. Realmente, o comportamento das partes, desconforme à causa do contrato, é característica da simulação, e o desfazimento dele é o principal indício desse vício jurídico. Esta seria uma das hipóteses, referidas no primeiro segmento destes comentários, em que o “trust” seria circunstancialmente inválido, e certamente é a razão pela qual, mesmo em países que admitem o “trust”, há barreiras para aquele que tiver cláusula de revogabilidade.

Acrescente-se, também, que uma pessoa sujeita à jurisdição

brasileira, porque aqui reside, pode perfeitamente assumir a posição não somente de “settlor” ou de beneficiária de um “trust” fora do País, mas também pode ser o respectivo “trustee”, com todas as consequências inerentes a cada uma dessas figuras.

Por fim, nesta parte, cabe dizer que, embora a lei reguladora do

“trust” seja estrangeira e seja ela que define os direitos e as obrigações das pessoas com ele envolvidas, e, embora o instituto do “trust” não tenha correspondência no direito brasileiro, ele sequer pode suscitar estranheza, pois temos aqui um instituto semelhante, que é o fideicomisso, regido pelos art. 1954 a 1960 do Código Civil.

De acordo com as normas constantes desses artigos, a pessoa pode

testar bens em favor de herdeiro ou legatário (nesta circunstância denominado “fideicomissário”) ainda não concebido e que não tenha nascido até a morte do testador, sendo que, com a morte do testador, os bens passam para a propriedade de uma pessoa por ele indicada, que é proprietário fiduciário (propriedade restrita e resolúvel) da herança ou legado até que ocorra o evento estabelecido no testamento, quando os bens passam para a propriedade do fideicomissário.

A alusão ao instituto do fideicomisso é oportuna para consignar que

a posição das pessoas em relação a um “trust” (“trustee”, “settlor” ou beneficiária) e aos respectivos bens, no que diz respeito a direitos de propriedade, não é avessa ao direito do Brasil, não havendo, portanto, motivo para qualquer incompreensão relativamente ao “trust”, depois de terem sido assentadas as bases para a sua validade. Nem deve haver incompreensão quanto

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

19

à propriedade do “trustee”, a qual corresponde à propriedade fiduciária, restrita e resolúvel do proprietário fiduciário.

Em suma, mesmo o Brasil não sendo signatário da referida

convenção de Haia, as diretrizes que ela traça podem e devem ser aceitas como regras jurídicas válidas fora do seu território e da sua legislação, inclusive quando aplicáveis a pessoas sujeitas à sua jurisdição e que tenham alguma implicação com as mesmas.

IV – CONSEQUÊNCIAS TRIBUTÁRIAS NO BRASIL, DE UM “TRUST” NO EXTERIOR, E OUTRAS IMPLICAÇÕES Das considerações feitas anteriormente, resulta a conclusão (norma

individual) de que é lícita a contratação do “trust” por pessoa jurisdicionada ao Brasil, a qual poderá ter sido o “settlor”, assim como pode ser legal a situação de um beneficiário aqui residente, e resulta também que os direitos e as obrigações de todos emanam da lei que disciplinar o “trust” e do respectivo “deed”.

Indubitavelmente, o efeito mais significativo do “trust” é a

titularidade do “trustee” sobre os bens a ele transferidos, o que, consequentemente, significa a inexistência de direitos reais do “settlor” e dos beneficiários sobre tais bens.

Sobre isto, pode-se querer objetar que a propriedade atribuída ao

“trustee” tem natureza fiduciária, ou contem traços de propriedade fiduciária, como também se pode afirmar que os beneficiários têm um vínculo indireto com a propriedade dos bens do “trust”.

Todavia, é inequívoco que a titularidade é do “trustee” e somente ele

pode gerir os bens, utilizá-los ou mesmo aliená-los, ainda que segundo instruções estabelecidas no “deed” e sempre no interesse do “trust”, e não em seu interesse pessoal.

A partir deste elemento caraterístico central, algumas

consequências tributárias ocorrem ou não ocorrem no Brasil.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

20

A primeira é que nem “settlor” nem beneficiários adquirem direito sobre rendas dos bens do “trust”, e muito menos disponibilidade sobre elas, motivo pelo qual não se estabelece relação jurídica tributária entre eles e o fisco federal brasileiro a título de imposto de renda.

Neste sentido, e sem alterar a consequência de inexistência de fato

gerador no Brasil, em que o “settlor” e os beneficiários sejam sujeitos passivos, pouco importa que as mesmas rendas sejam tributadas em qualquer outro país do mundo, nem se o contribuinte de impostos fora do Brasil é o “trustee” ou quem as respectivas leis determinarem. Também não afeta a inexistência de relação jurídica tributária o fato de tais impostos serem ou não pagos pelo “trustee” a débito dos fundos do “trust”.

Entretanto, é possível haver incidência do imposto de renda no

Brasil se o “trustee” for aqui residente, porque é ele o proprietário dos bens e o titular da disponibilidade jurídica das respectivas rendas (CTN, art. 45), sejam elas adquiridas dentro ou fora do País.

Também é possível haver incidência do imposto de renda no Brasil

se o “trustee” for residente no exterior, mas empregar os recursos financeiros do “trust” em nosso país, por exemplo, se negociar em Bolsa no Brasil ações de pessoas jurídicas brasileiras ou se adquirir imóveis que frutifiquem alugueis ou que venham a produzir ganho de capital em posterior alienação. 4

4 Esta hipótese é teórica, pois em geral os bens de “trusts” estão localizados fora do Brasil. Entretanto se o “trustee” fizer aplicação de recursos do “trust” em nosso território, as rendas por eles produzidas serão sujeitas à incidência do imposto de renda brasileiro, independentemente de se discutir sobre a possibilidade de o patrimônio do “trustee” estar aqui aplicado, face ao art. 8º da Lei de Introdução, que poderia suscitar dúvidas sobre a validade do “trust” nestas circunstâncias, dado que, segundo esse dispositivo legal, as relações pertinentes aos bens são regidas pelas leis dos países em que situados. Esta ressalva não significa afirmar que o “trust” não possa ter por objeto bens existentes no Brasil, pois, além de o contrato estar regulado por lei estrangeira (art. 9º da Lei de Introdução), a transferência gratuita da propriedade ao “trustee” é possível mesmo no Brasil, como é possível para qualquer pessoa. Ou seja, tanto se pode ver essa transferência como qualquer doação com encargo, como se pode tratá-la como parte de um contrato atípico para o direito brasileiro, mas tipificado na lei estrangeira que o reger.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

21

Neste último caso, porque é ele o proprietário dos bens e o titular da disponibilidade jurídica das respectivas rendas (CTN, art. 45), haverá incidência da tributação brasileira como ocorre com relação a todo e qualquer residente no exterior, seja a cobrança através de retenção na fonte ou por recolhimento através de procurador, mas sempre o contribuinte será o “trustee”.

Neste passo, os beneficiários somente passam a ter alguma relação

jurídica tributária quando receberem os benefícios do “trust”, os quais tanto podem ser rendas periódicas quanto a entrega da propriedade dos bens, feita pelo “trustee” no encerramento do contrato ou durante a sua vigência.

Quando isto ocorre, os beneficiários podem ser sujeitos a alguma

incidência tributária fora do Brasil, a ser verificada concretamente em cada caso, mas no Brasil a incidência não será do imposto de renda, por não se tratar de aquisição de renda e, sim, de transferência patrimonial a título gratuito.

Por evidente, se futuramente os bens recebidos do “trust” gerarem

rendas para as pessoas que eram beneficiárias e se tornaram proprietárias, tais rendas serão sujeitas à incidência do imposto de renda brasileiro sobre os respectivos titulares aqui residentes, ainda que sejam rendas adquiridas fora do Brasil.

Já na recepção de rendas periódicas do “trust” ou na entrega, por

este, dos próprios bens que o compunham, a respectiva natureza jurídica é de aquisição gratuita e não onerosa, caracterizando-se o que conhecemos em doutrina como “transferências patrimoniais” ou “transferências de capital”, as quais estão fora do campo de incidência do imposto de renda.

Todavia, pela mesma razão, pode haver incidência do imposto sobre

a transmissão não onerosa da propriedade, do “trustee” para cada beneficiário. Esse imposto incide tanto quanto, na anterior transferência da

propriedade dos bens pelo “settlor” ao “trustee”, quando da instituição do “trust”, aquele pode se sujeitar ao imposto sobre doações. Isto é assim, ainda que o “settlor” reserve alguns direitos para si, em sua órbita de relação com o “trustee” e com a administração do “trust”, pois na substância do contrato que transfere a propriedade há uma doação com encargo.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

22

Nesse ato, não havendo ganho de capital, mas verdadeira perda, não

há incidência de imposto de renda, embora em algumas circunstâncias a lei estabeleça uma presunção de renda, a qual, contudo, é absolutamente inconstitucional, além de ser contrária ao art. 43 do CTN.

Mas o detalhe a ser observado quando da transferência de bens pelo

“trustee” aos beneficiários, é que ele tem aproximação com o imposto sobre a transmissão “causa mortis”, nos casos em que a instituição do “trust” tenha visado a sucessão hereditária e a instrução dada ao “trustee” tenha sido a de entrega quando da morte do “settlor”, aos herdeiros destes.

Mesmo sendo assim, entretanto, a rigor a sucessão não é hereditária

no sentido da incidência do imposto “causa mortis”, pois juridicamente a titularidade dos bens não era mais do “de cujus” e nem no respectivo inventário os referidos bens devem ser objeto de partilha. Em outras palavras, há muito os bens deixaram de ser do “de cujus”, por esta razão não fazendo parte do seu espólio.

Realmente, a ocorrência será de transferência não onerosa, pelo

“trustee” aos beneficiários, e estes poderão ser sujeitos à incidência do imposto sobre doações. 5

Ao lado destes aspectos do direito tributário, também há

implicações perante o direito civil quando da instituição do “trust”, as quais precisam ser analisadas individualmente, bastando aqui dizer, a título meramente exemplificativo, que, havendo transferência gratuita de propriedade pelo “settlor” ao “trustee”, há necessidade de observância do limite dos bens disponíveis, ou de guarda da proteção de interesses de herdeiros legítimos e de credores.

5 Todas as referências aqui feitas ao ITCMD baseiam-se na distribuição constitucional de competências tributárias, sem adentrar em especificidades existentes na legislação de cada Estado, nem nas discussões sobre a inexistência de lei complementar relativa a esse imposto, ou sobre o Estado competente ou a respeito da incidência sobre doações ocorridas fora do Brasil, de bens existentes no exterior.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

23

V – OBRIGAÇÃO DE DECLARAR DE DECLARAR O “TRUST” NO BRASIL

Como já observado anteriormente, mesmo não havendo obrigação

tributária principal, pode haver obrigação tributária acessória, bem como pode haver outros deveres formais fora do direito tributário.

Assim, embora o “settlor” e os beneficiários não sofram qualquer

incidência tributária no Brasil enquanto os bens permanecerem na propriedade do “trustee” e não lhes sejam transferidos por este, cumpre verificar se estão obrigados a declará-los ao fisco brasileiro ou a alguma outra autoridade pública.

Mesmo para leigos em direito – e muitos leigos que instituíram

“trusts” no exterior são os que mais se inquietam a este respeito – despontam logo as declarações de rendimentos, inclusive a declaração de bens que a integra, e as declarações anuais ou trimestrais ao Banco Central do Brasil. Mas, olvidado por muitos, também há o SISCOSERV.

Ante tudo quanto está dito anteriormente, e perante a legislação e as

regulamentações em vigor em junho de 2016, não há obrigação de os beneficiários de um ‘trust” declararem esta condição ao fisco ou outros órgãos brasileiros, ao passo que a posição do “settlor” pode variar, embora, a partir da transferência dos bens para o “trustee”, ele também nada tenha a declarar.

A situação dos beneficiários é mais simples e muito nítida, pois eles

não são e nunca foram donos dos bens do “trust”, sendo sua posição, quando muito, de expectativa de direito a ser adquirido futuramente, muito parecida com a dos legatários antes do falecimento do testador.

Ademais, muitas vezes os beneficiários sequer sabem que o são, pois

é comum que o “trustee” esteja vinculado à cláusula do “deed” que vede a ele dar a conhecer aos beneficiários esta condição. Tal ignorância dos beneficiários, quanto à possibilidade de algum dia virem a receber bens do “trustee”, também existe nas sucessões testamentárias, e há muitas razões para isto, de interesse e do exclusivo direito do “settlor” ou do testador, tal como, por exemplo, evitar complicações familiares ou mesmo deixar maior liberdade para o “settlor” ou o testador alterar os beneficiários ou revogar o testamento.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

24

Deste modo, nenhuma dúvida existe quanto aos beneficiários, até o

momento em que recebam bens a eles entregues pelo “trutee”, quando se instaura uma nova situação patrimonial na qual eles, investidos na condição de proprietários, ficam, sim, sujeitos a cumprir as obrigações instrumentais, inclusive de declarações, que sejam previstas na legislação.

Pouco interessa, e em nada afeta esta disciplina, o fato de que em

outras jurisdições o “trustee”, instituições financeiras ou outros órgãos ou entidades, tenham que informar seus governos sobre quem sejam os beneficiários de um “trust”, e mesmo que haja troca de informações entre os governos desses países e o governo brasileiro.

Os beneficiários, nessas situações são usualmente chamados

“beneficial owners”, e nós podemos dar a eles a denominação de “beneficiários finais” (no exterior há a figura do “last beneficial owner”), “beneficiários efetivos” ou qualquer outra. 6

Tais exigências e denominações não alteram a titularidade do

“trustee” sobre os bens a ele transferidos. Pelo contrário, elas decorrem exatamente de que o “beneficial owner” não é o proprietário, pois, se o fosse, seria ele o titular dos bens, das contas, dos registros, etc.

No tocante ao “settlor”, poderá nem sequer estar identificado ou

informado como “beneficial owner” ou instituidor, e, de qualquer modo, também nada tem a declarar no Brasil após ter entregue bens da sua propriedade para o “trustee”.

6 Temos hipóteses correspondentes no Brasil, como se lê em vários dispositivos da Instrução Normativa RFB n. 1634, relativa aos registros no CPNJ, que mencionam a obrigação da identificação de “beneficiários efetivos” em algumas hipóteses. E temos, no art. 26 da Lei 12249, de 11.6.2010, a vedação à dedutibilidade de despesas de juros perante pessoas jurídicas situadas em paraísos fiscais quando, além de outras condições, não houver identificação do “efetivo beneficiário”, o qual para esse fim é imprecisamente definido como “a pessoa física ou jurídica não constituída com o único ou principal objetivo de economia tributária que auferir os juros por sua própria conta e não como agente, administrador fiduciário ou mandatário por conta de terceiros”.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

25

O que ele deve ter feito, isto sim, é, no momento da transferência da propriedade, consignar tal acontecimento na sua declaração de rendimentos correspondente ao respectivo período, na ficha de doações e transferências patrimoniais feitas e na declaração de bens com a baixa dos bens cedidos.

Quanto à declaração ao Banco Central do Brasil, os bens transferidos

ao “trustee”, se localizados no exterior, simplesmente desaparecerão na próxima declaração anual ou trimestral do “settlor”.

Explique-se em mais detalhes o porquê das afirmações acima Quanto à declaração de bens integrante da declaração anual de

rendimentos da pessoa física, suas diretrizes legais estão refletidas nos art. 798 e seguintes do Regulamento do Imposto de Renda baixado pelo Decreto n. 3000, de 26.3.1999 (RIR/99).

Nessa declaração, a pessoa física deve incluir “todos os bens imóveis e

móveis que, no País ou no exterior, constituam o seu patrimônio” em 31 de dezembro do ano anterior, devendo tais bens ser declarados pelos respectivos custos de aquisição. Por abranger a totalidade do patrimônio pessoal, também são incluídas as obrigações da pessoa declarante.

Essencialmente, portanto, incluem-se nessa declaração os direitos

de propriedade, embora também possam ser incluídos direitos de posse sobre bens, dado que tais bens podem ser produtores de rendas sujeitas à incidência do imposto de renda.

A declaração dos custos de aquisição explica-se porque esse

documento destina-se ao controle do patrimônio e das suas mutações com vistas à fiscalização da incidência do imposto de renda das pessoas físicas aqui residentes, cujo imposto incide sobre o acréscimo patrimonial verificado no ano e apurado com base nos valores de aquisição dos bens, sendo também, por meio das mutações de patrimônio entre um e outro ano, possível ao fisco constatar a correlação entre os rendimentos declarados e os acréscimos ao patrimônio.

Por este motivo, direitos patrimoniais, isto é, com conteúdo

econômico, quando adquiridos sem custo (por exemplo, quando adquiridos por

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

26

doação), têm regras legais para fixação do respectivo valor a ser incluído na declaração de bens, sendo que idêntico valor é considerado e declarado como aumento patrimonial não tributável (RIR/99, art. 39, inciso XV, e art. 119).

Por óbvio, existem inúmeras particularidades e regras especiais que

não precisam ser mencionadas aqui, resumindo-se a descrição acima ao que é geral, além de essencial para os fins desta análise.

Neste sentido, se os bens do “trust’ não se integram nos bens que

constituem o patrimônio do “settlor” ou do beneficiário, pois pertencem ao “trustee” não residente no Brasil, e estão na posse deste, eles não são incluídos na declaração de bens obrigatoriamente feita à Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) pelo “settlor” ou pelo beneficiário. Claro que se o “trustee” for residente no País, tem obrigação de apresentar os bens do “trust” na sua declaração de bens, tanto quanto as respectivas rendas integram sua declaração nos campos próprios a cada espécie delas.

Para confirmação de que os bens do “trust” não pertencem ao

patrimônio do “settlor” ou do beneficiário, e pertencem ao do “trustee”, além das razões já apresentadas, traga-se à baila a definição de universalidade jurídica, na qual se enquadra o patrimônio da pessoa, que é dada pelo art. 91 do Código Civil de 2002, “in verbis”:

“Art. 91 - Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico.”

O art. 57 código de 1916 definia que o patrimônio e a herança são

bens universais, e a doutrina unanimemente especificava o patrimônio como sendo o conjunto de relações jurídicas do seu titular, com conteúdo econômico, ou seja, refletia o que hoje está contido na definição legal de universalidade jurídica.

Ora, o “settlor” e o beneficiário não têm qualquer relação jurídica

que lhes atribua a propriedade dos bens do “trust”, o que os coloca fora do conceito legal brasileiro de patrimônio da pessoa, inclusive para efeitos tributários, incluindo o da declaração de bens.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

27

Poder-se-ia supor que, em virtude de o patrimônio ser legalmente definido como uma universalidade de direito formada pelo complexo de relações jurídicas da pessoa, dotadas de valor econômico, haveria uma relação jurídica do beneficiário com o “trustee” quanto aos bens do “trust”, e que, portanto, deveria tal relação ser considerada como compondo o patrimônio a ser declarado. E essa suposição também poderia ser reforçada porque legalmente (art. 83, inciso III, do Código Civil) são arrolados como bens móveis os direitos pessoais de caráter patrimonial e as respectivas ações.

Todavia, a todo rigor, a relação jurídica de natureza negocial, que

existe entre as referidas pessoas, é de natureza pessoal, não sendo atributiva de direito real sobre os bens colocados no “trust”, e tem um caráter patrimonial apenas remoto, na verdade inexistente de pronto.

Realmente, quanto a esses direitos pessoais, eles têm por objeto o

cumprimento das funções do “trustee”, sendo que a relação jurídica constitutiva do “trust” atribui ao beneficiário mera expectativa de um futuro direito de propriedade, que pode ser sobre os bens do “trust” ou apenas sobre rendimentos por eles gerados, ou, mais ainda, sobre bens futuros, mas que, em qualquer caso, é direito ainda não adquirido, ao passo que as relações jurídicas que compõem o patrimônio são atributivas de direitos e obrigações, com o que não se confundem as expectativas de direitos ou mesmo os direitos sujeitos à condição suspensiva.

Por isso, não se deve incluir na declaração de bens tais expectativas

ou direitos condicionados, mesmo que se admita uma interpretação mais ampla para o patrimônio, estribada na definição de direito adquirido contida no parágrafo 2º do art. 6º da já mencionada Lei de Introdução, segundo a qual “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.

Ocorre que essa norma está vinculada à vedação constitucional (que

visa complementar) de retroatividade das leis em detrimento de direitos adquiridos, e também de atos jurídicos perfeitos e da coisa julgada.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

28

Ora, o direito assegurado ao beneficiário pelo “deed” de um “trust” é direito de natureza pessoal contra o “trustee”, o qual, em si, não tem valor econômico imediato, inclusive porque não tem como ser avaliado, e não se confunde com direito real sobre os bens do “trust”, estando o direito sobre estes subordinado a condições a serem implementadas no futuro.

Igualmente inconfundível com o direito pessoal decorrente do

“deed”, e existente enquanto este esteja valendo e sendo cumprido, é o eventual direito futuro à indenização de perdas e danos se o “trustee” descumprir seus deveres, cuja valoração, a ser feita em conformidade com o prejuízo causado, nada representa quanto àquele direito pessoal em si e quanto aos bens detidos pelo “trustee”.

Destarte, na perspectiva brasileira, a irretroatividade de novas leis

está assegurada para proteção do “deed” como ato (negócio) jurídico perfeito, e também para proteção dos direitos que dele decorrem, mas não significa que haja direito de propriedade ou qualquer direito real já adquirido desde a data do “deed”.

Aliando-se a isto a determinação legal de que a declaração de bens

inclua os que constituam o patrimônio do declarante, com os respectivos valores de custos de aquisição (para atender a respectiva finalidade de fiscalização tributária), e considerando-se que o direito pessoal atribuído ao “settlor” ou ao beneficiário contra o “trustee” não produz mutação patrimonial, não tem custo e nem tem como ser avaliado segundo as regras legais fixadas para este fim, não se manifesta a obrigatoriedade legal da sua menção na declaração, cuja obrigatoriedade surgirá quando, e se, for completada a aquisição de algum direito de propriedade, o qual então, por ter sido adquirido gratuitamente, será declarado pelo valor de mercado do respectivo bem.

Pelas mesmas razões, e como já dito, nos casos em que o “settlor”

transfira bens da sua propriedade ao “trustee”, no ano em que o fato ocorra ele fica obrigado a dar baixa desses bens em sua declaração de bens.

Mais uma vez vale apontar que a situação dos beneficiários de

“trusts” é muito semelhante a outras mais comuns no direito brasileiro, que são as de sucessores por testamentos, durante as vidas dos respectivos testadores.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

29

A sucessão testamentária é disciplinada pelos art. 1857 e seguintes

do Código Civil, sendo certo que ela somente se completa pela morte do testador, momento, inclusive, em que se dá a incidência do imposto de transmissão “causa mortis” e o herdeiro passa a declarar os bens da herança à RFB, embora não haja incidência de imposto de renda segundo expressa determinação legal refletida no já referido art. 39, inciso XV, do RIR/99.

Neste caso, o herdeiro por testamento, tanto quanto o herdeiro

legal, durante a vida do testador não tem qualquer direito de propriedade, tendo, quando muito, uma expectativa de direito, cuja aquisição depende de fato futuro e até mesmo incerto, pois o herdeiro pode vir a falecer antes do testador ou este pode mudar ou revogar o testamento.

Ora, certamente não se espera que esse futuro herdeiro declare os

bens que um dia poderão vir a ser seus, nem a mera expectativa genérica de direitos, por todos os fundamentos acima expostos e também porque tais bens pertencem à declaração do seu proprietário e testador. Aliás, esta é a mesma situação em que se encontra o fideicomissário enquanto os bens estejam na propriedade do fiduciário.

E também é a situação de qualquer pessoa quanto aos seus possíveis

direitos futuros, ou quanto aos seus direitos de qualquer natureza que não sejam direitos reais, ou que sejam direitos estritamente pessoais não relacionados a um objeto com conteúdo econômico, portanto, diferentes de direitos pessoais relacionados a objetos econômicos, como é, por exemplo, o direito do mutuante, este, sim, sujeito à declaração.

Enfim, nas declarações de bens prestadas à RFB pelo “settlor” e pelo

beneficiário, pessoas físicas residentes no Brasil, não se incluem os bens que estejam no patrimônio do “trustee”. E este, se residente fora do País, também não está obrigado a declarar seus bens ao fisco brasileiro.

A segunda declaração envolvida nesta análise é a que deve ser feita

anualmente (ou trimestralmente, quando envolvidos bens em valor total superior a US$ 100 milhões) ao Banco Central do Brasil, compondo a denominada “Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior”, declaração esta

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

30

prevista no art. 1º do Decreto-lei n. 1060, de 21.10.1969, e no art. 1º da Medida Provisória n. 2224, de 4.9.2001.

O referido decreto-lei exige que as pessoas físicas e jurídicas aqui

residentes declarem ao Banco Central “os bens e valores que possuírem no exterior”, requer que a declaração seja atualizada sempre que houver “aumento ou diminuição dos bens, dinheiros ou valores”, e permite que seja exigida a justificação dos recursos empregados na sua aquisição.

Por sua vez, a medida provisória fixa multa pelo não fornecimento

regular da declaração, mas complementa a norma legal definindo que “são considerados capitais brasileiros no exterior os valores de qualquer natureza, os ativos em moeda e os bens e direitos detidos fora do território nacional” por pessoas físicas ou jurídicas.

Essa declaração está regulamentada pela Resolução n. 3854, de

27.5.2010, do Banco Central do Brasil, a qual detalha a forma de cumprimento da respectiva obrigação referindo-se genericamente a bens e valores possuídos no exterior, mas relacionando especificamente as seguintes categorias deles: depósitos, empréstimos em moeda, financiamentos, arrendamentos mercantis financeiros, investimentos diretos, investimentos em portfólios, aplicações em instrumentos financeiros derivativos e outros investimentos, incluindo imóveis e outros bens.

Tal declaração cumpre uma função apenas de controle dos capitais

mantidos fora do País e de possíveis fluxos cambiais relacionados a eles, sem implicações tributárias.

Dependendo do tipo de ativo, o valor a ser declarado é o custo de

aquisição ou o valor econômico atual, e também podem ser exigidas informações sobre rendimentos gerados fora do País pelos bens declarados.

As diferenças de valores entre os dessa declaração ao Banco Central

e os da declaração de bens à RFB, quando decorrentes dos diferentes critérios de valoração, não podem justificar a cobrança de imposto, não obstante possa haver troca de informações entre duas entidades públicas.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

31

Portanto, pelas razões antes expostas, também essa declaração ao Banco Central não inclui os bens do “trust” enquanto estiverem na propriedade e posse do “trustee” e, portanto, não integrarem o patrimônio dos declarantes residentes no Brasil (nem são bens possuídos pelos beneficiários e “settlors”), além de que os direitos derivados do “deed” não se enquadram nas modalidades relacionadas na Resolução n. 3854, acima mencionadas.

A despeito disso, o entendimento genérico do Banco Central é no

sentido de que os “trusts” devem ser declarados na ficha relativa a outros investimentos, quando seus beneficiários sejam pessoas físicas ou jurídicas residentes no Brasil, devendo a declaração ser apresentada ou pelos “trustees” ou pelos beneficiários, mas sempre em nome destes.

Trata-se de interpretação equivocada da legislação, a qual, se for

cumprida, inobstante a falta de base legal, não cria obrigações tributárias nem altera as devidas, além de que, evidentemente, não interfere com os patrimônios das pessoas envolvidas no “trust”.

Por fim, a terceira declaração é a que foi instituída pelo art. 25 da Lei

n. 12546, de 14.12.2011, e tem sobre ela uma grande quantidade de atos regulamentares infralegais.

Essa lei instituiu “a obrigação de prestar informações para fins

econômico-comerciais ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior relativas às transações entre residentes ou domiciliados no País e residentes ou domiciliados no exterior que compreendam serviços, intangíveis e outras operações que produzam variações no patrimônio das pessoas físicas, das pessoas jurídicas ou dos entes despersonalizados”.

Os informes neste caso também não visam o controle tributário,

pois se destinam ao estabelecimento de uma sistemática de coleta, tratamento e divulgação de estatísticas, no auxílio à gestão e ao acompanhamento dos mecanismos de apoio ao comércio exterior de serviços, intangíveis e às demais operações, instituídos no âmbito da administração pública, bem como no exercício das demais atribuições legais da competência do referido ministério.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

32

Portanto, essa obrigação, identificada pela sigla SISCOSERV, envolve essencialmente operações internacionais que não sejam de importação e exportação de mercadorias, incluindo serviços prestados ou recebidos, intangíveis transferidos ou adquiridos, e outras operações que acarretem variação no patrimônio do informante.

Sendo assim, somente há informe a ser prestado em relação a um

“trust” no exterior se houver transferência de bens ao “trustee”, ou recebimento de benefícios ou ativos do “trust”, ou ainda de pagamento de remuneração do “trustee” ou de despesas do “trust”, pela ou para a pessoa física ou jurídica domiciliada no Brasil.

Ao contrário, a simples condição da pessoa como beneficiária ou

“settlor” não induz à referida obrigação, por não haver qualquer variação no seu patrimônio fora das circunstâncias mencionadas no parágrafo anterior.

VI – A REGULARIZAÇÃO DE CAPITAIS BRASILEIROS NO EXTERIOR A Lei n. 13254, de 13.1.2016, instituiu o Regime Especial de

Regularização Cambial e Tributária (RERCT), para declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no País, conforme a legislação cambial ou tributária, nos termos e condições nela previstos.

Não é objetivo destes comentários abordar essa lei, mas é evidente a

sua proximidade com o tema aqui tratado, inclusive porque ela pode atingir situações em que estejam envolvidos “trusts”, tanto que o parágrafo 1º do art. 4º os menciona expressamente.

Como se sabe, devem ser regularizados, através de declaração e do

pagamento de imposto de renda e multa, os bens referidos no art. 1º dessa lei, explicitados em outros dispositivos da mesma lei, sendo o regime aplicável aos residentes ou domiciliados no País em 31.12.2014 que tenham sido ou ainda sejam proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos em períodos

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

33

anteriores àquela data, ainda que, nela, não possuíssem saldo de recursos ou título de propriedade de bens e direitos (parágrafo 1º do art. 1º).

Neste contexto, o parágrafo 1º do art. 4º, exige que a declaração de

regularização contenha, além de outros requisitos, “na hipótese de inexistência de saldo dos recursos, ou de titularidade de propriedade de bens ou direitos referidos no ‘caput’, em 31 de dezembro de 2014, a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes previstos no § 1º do art. 5º desta Lei e dos respectivos recursos, bens ou direitos de qualquer natureza não declarados, remetidos ou mantidos no exterior ou repatriados, ainda que posteriormente repassados à titularidade ou responsabilidade, direta ou indireta, de trust de quaisquer espécies, fundações, sociedades despersonalizadas, fideicomissos, ou dispostos mediante a entrega a pessoa física ou jurídica, personalizada ou não, para guarda, depósito, investimento, posse ou propriedade de que sejam beneficiários efetivos o interessado, seu representante ou pessoa por ele designada’”(inciso V).

Especialmente em relação a “trusts”, tendo-se em vista que o

parágrafo 1º do art. 1º da Lei n. 13254 alude a “proprietários ou titulares”, e que o parágrafo 2º alude a “titulares de direito ou de fato”, é relevantíssima a definição contida no inciso V do art. 2º, segundo a qual “titular” é o “proprietário dos recursos ou patrimônio não declarados, remetidos ou mantidos no exterior ou repatriados indevidamente”. Daí se infere que a lei se refere ao verdadeiro proprietário, ainda que de fato nas situações que, segundo o parágrafo 1º, inciso I, do art. 167 do Código Civil, possam se caracterizar como dissimulatórias do verdadeiro proprietário.

Destarte, a situação de “trust” passível de inclusão nessa lei é aquela

em que o “trustee” detenha em 31.12.2014 bens que, antes dessa data, mas ainda dentro do campo da punibilidade criminal (isto é, quando não ocorrida a prescrição criminal), tenham sido de alguma pessoa aqui residente naquela data, ou seja, bens que naquela data já não estavam no patrimônio dessa pessoa por terem sido transferidos ao “trust”, e que antes não haviam sido objeto das declarações obrigatórias ou foram objeto de remessas irregulares.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

34

Assim, levando em consideração essa norma e todas as demais da Lei n. 13254, e com a finalidade de complementar e ilustrar os segmentos anteriores, algumas situações podem ser mencionadas exemplificativamente:

- “trustee” residente no Brasil em 31.12.2014, que não havia

declarado os bens do “trust” existentes no exterior em 31.12.2014 ou antes dessa data, mas dentro do período de punibilidade, isto é, em tempo ainda não alcançado pela prescrição criminal respectiva: é situação passível de regularização;

- “settlor” residente no Brasil em 31.12.2014, que não havia

declarado bens existentes no exterior e transferidos a “trust” antes dessa data, mas dentro do período de punibilidade, isto é, em tempo ainda não alcançado pela prescrição criminal respectiva: é situação passível de regularização;

- “settlor” residente no Brasil em 31.12.2014, que não havia

declarado bens existentes no exterior e transferidos a “trust” antes de 31.12.2014, mas fora do período de punibilidade, isto é, em tempo já alcançado pela prescrição criminal respectiva: é situação que não necessita de regularização; 7

- “settlor” ou “trustee” residente no Brasil em 31.12.2014, com

relação a bens existentes no Brasil: é situação que pode ser regular ou irregular perante outras normas, dependendo do que tiver sido feito, mas que não é abrangida pela Lei n. 13254;

- beneficiário que tenha recebido de algum “trust” bens existentes

no exterior, tendo o recebimento ocorrido antes de 31.12.2014 e dentro do período de punibilidade, isto é, em tempo ainda não alcançado pela prescrição criminal, e que não os tenha declarado a partir do período do recebimento: é situação irregular, passível de regularização;

7 A falta de declaração é crime considerado permanente, pois se repete a cada vez em que a declaração tenha sido omitida. Porém, a infração deixa de existir quando o bem sai da propriedade da pessoa sujeita à declaração.

Artigos

São Paulo / AGOSTO 2016

35

- beneficiário que tenha recebido de algum “trust” bens existentes no exterior antes de 31.12.2014, mas que deles se desfez fora do período de punibilidade, isto é, em tempo já alcançado pela prescrição criminal: ainda que não os tenha declarado no devido tempo, é situação que não necessita de regularização.

Com tais exemplos relacionados à normatização de situações

irregulares, podemos encerrar a presente análise do instituto do “trust” na perspectiva do direito brasileiro.