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Artigos São Paulo / SETEMBRO 2018 1 Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário 40 anos de Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados”, São Paulo, 2018, p. 39-70. Autor: Roberto de Siqueira Campos IMPORTAÇÃO DE BENS MÓVEIS – IMPOSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO ICMS MESMO APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 33 1 - I - No final do ano de 2001, foi publicada a Emenda Constitucional n. 33, que alterou substancialmente o art. 155 da Constituição Federal. Neste estudo, não examinaremos todas as modificações desta Emenda, mas sim aquela constante da letra “a” do inciso IX, § 2º, art. 155. Para bem precisar o objeto de estudo, transcrevemos a seguir o texto constitucional vigente antes e depois da Emenda n. 33 possibilitando, assim, o conhecimento das alterações na outorga de competência tributária aos Estados Federados e ao Distrito Federal. CONSTITUIÇÃO FEDERAL ANTES DA EMENDA N. 33 “Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: 1 Texto originalmente publicado no livro Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). São Paulo: Dialética, 2002, 6º v., p. 441- 479

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São Paulo / SETEMBRO 2018

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Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário 40 anos de Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados”, São Paulo, 2018, p. 39-70.

Autor: Roberto de Siqueira Campos IMPORTAÇÃO DE BENS MÓVEIS – IMPOSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO ICMS MESMO APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 331

- I - No final do ano de 2001, foi publicada a Emenda Constitucional n.

33, que alterou substancialmente o art. 155 da Constituição Federal. Neste estudo, não examinaremos todas as modificações desta

Emenda, mas sim aquela constante da letra “a” do inciso IX, § 2º, art. 155. Para bem precisar o objeto de estudo, transcrevemos a seguir o

texto constitucional vigente antes e depois da Emenda n. 33 possibilitando, assim, o conhecimento das alterações na outorga de competência tributária aos Estados Federados e ao Distrito Federal.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL ANTES DA EMENDA N. 33 “Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

1 Texto originalmente publicado no livro Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). São Paulo: Dialética, 2002, 6º v., p. 441-479

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I – (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. (...) § 2º – O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (...) IX – incidirá também: a) sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DEPOIS DA EMENDA N. 33 “Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I – (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. (...) § 2º – O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (...) IX – incidirá também:

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a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço.

Duas indagações devem ser feitas preliminarmente, a saber: a) por que mudou? b) o que mudou? Vejamos cada uma dessas questões.

- II - A rigor, o estudo que se propõe a investigar o conteúdo normativo

de dispositivo constitucional não deveria se ater a considerações estranhas ao seu objeto. Todavia, quer nos parecer que registrar a motivação que impulsionou o legislador constituinte derivado auxiliará na exposição e entendimento da segunda indagação, demonstrando que a “criatura” ganha vida própria após a sua criação independentemente da vontade de seu “criador”!

A nova redação prescreve que os Estados e o Distrito Federal

poderão instituir, no âmbito de seus respectivos territórios, a incidência do ICMS na entrada, a título de importação, de:

a) “bem”; ou b) “mercadoria”. Determina também que essa oneração recaia sobre as importações

realizadas por pessoas físicas ou jurídicas, ainda que não sejam habituais contribuintes do imposto.

Mais ainda. A finalidade da importação (o destino dos bens e

mercadorias importados) pelas pessoas físicas ou jurídicas, mesmo que não

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sejam habituais contribuintes, é irrelevante para efeitos da incidência do imposto.

Pela inclusão das pessoas físicas como sujeitas ao pagamento do

ICMS na importação, houve necessidade de se indicar que o Estado do “domicílio” do destinatário será o competente para a arrecadação do imposto, à semelhança da antiga e mantida previsão – estabelecimento destinatário – atribuível ao local de recolhimento em relação pessoas jurídicas.

Esta é a leitura gráfica que se pode fazer desta letra “a” do inciso IX,

e com ela constatar que a intenção do legislador constituinte derivado foi a de ampliar o campo de incidência do ICMS na importação, pretendendo tributar:

a) a singela importação de bens; b) a importação de mercadorias; c) a importação por pessoas físicas; d) a importação realizada por pessoas jurídicas não

contribuintes do ICMS; e) sendo irrelevante (“para efeitos da incidência do imposto”) a

finalidade a ser dada à coisa importada pelo seu respectivo importador.

À toda evidência a Emenda n. 33 é resultante de um lobby dos

Estados para contornar as manifestações do Supremo Tribunal Federal2 ao decidir que as importações por pessoas físicas, bem como pessoas jurídicas não contribuintes do ICMS não ficavam sujeitas ao imposto por ocasião do desembaraço aduaneiro. O mesmo se diga em relação ao não pagamento do imposto quando da importação de bens em regime de admissão temporária, arrendamento mercantil, locação e outras situações análogas. 2 A questão da não incidência do ICMS na importação realizada por pessoas físicas foi decidida pelo Plenário do STF no RE 203.075-9-DF, assim como a não-incidência do imposto nas importações por pessoas jurídicas não contribuintes do ICMS também foi decida em seção plenária do STF no RE 185.788-7-SP.

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É lamentável que o processo legislativo tenha por motivação básica

contornar a jurisprudência dos tribunais porque, em última instância, são as decisões judiciais que explicitam o âmbito da eficácia das normas integrantes do ordenamento jurídico, dando à sociedade a segurança indispensável ao seu desenvolvimento pelo prévio conhecimento da conduta de cada cidadão e a respectiva previsibilidade da oneração tributária.

A ânsia arrecadatória, escancaradamente demonstrada na grafia da

Emenda Constitucional, certamente não tem origem na vontade do povo, ainda que formalmente tenha sido aprovada pelos seus representantes. Todavia, esta questão não é pertinente em um estudo de natureza jurídica, e a ênfase aos aspectos morais da proposta de Emenda à Constituição não deve e nem pode prejudicar as questões jurídicas que se apresentam e que devem ser examinadas à luz da Ciência do Direito.

Assim, retomando o aspecto eminentemente jurídico da Emenda n.

33, cabe examinar se a motivação do legislador de alguma forma interfere no conteúdo do comando normativo, uma vez incorporado ao ordenamento jurídico.

- III -

Adverte Carlos Maximiliano3 que “toda lei é obra humana e aplicada

por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não verificarem, com esmero, o sentido e o alcance das suas prescrições”.

Ora, a elaboração de Emendas à Constituição não escapa ao crivo da

advertência do jurista, motivo pelo qual deve o intérprete, com isenção de ânimo, envidar todo o esforço na pesquisa do sentido e do alcance das novas prescrições normativas.

Maximiliano, quando faz a advertência, ressalta que “interpretar

uma expressão de Direito não é simplesmente tornar claro4 o respectivo dizer, 3 Hermenêutica e aplicação do direito: 3. ed., Freitas Bastos, 1941, p. 23. 4 Grifos do original.

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abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão reta”. Inspirados nesta lição, denominamos a primeira abordagem das modificações introduzidas pela Emenda Constitucional n. 33 de leitura gráfica porque simplesmente, naquele momento, estávamos visualizando palavras, frases e orações e, com elas, observando o pensamento do legislador constituinte derivado.

Esta observação primeira é de vital importância porque o aplicador

da lei deverá ter em mente, e até mesmo levar em consideração como objeto de seu estudo, o desejo do legislador. Todavia, a regra de conduta, ou seja, a norma jurídica, é examinada no contexto do ordenamento e jamais poderá ser considerada de forma isolada, vinculada à motivação de quem a concebeu (criador).

Por estar contida em outro universo, a lei se desprende do complexo de pensamentos e tendências que animaram seus autores5 de tal sorte que ao jurista cabe examinar não mais o texto gráfico, mas sim o conteúdo normativo nele expresso6.

Por tal razão, afirma Carlos Maximiliano:

“Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o autor. Consideram-na como “disposição mais ou menos imperativa, materializada num texto, a fim de realizar, sob um ângulo determinado, a harmonia social, objeto supremo do Direito.” Logo ao intérprete incumbe apenas determinar o sentido objetivo do

5 Luiz Roberto Barroso, in: Interpretação e aplicação da Constituição: 4. ed., Saraiva, p.113. 6 Ao tratar da interpretação gramatical em sua obra, Luiz Roberto Barroso adverte que, embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua letra, cumpre evitar o excesso de apego ao texto, que pode conduzir à injustiça, à fraude e até ao ridículo. Ilustrando suas assertivas relembra, de memória, manifestação “deliciosamente espirituosa” do ex-ministro Luiz Gallotti, do Supremo Tribunal Federal, que ao julgar um recurso extraordinário afirmou: “De todas, a interpretação literal é a pior. Foi por ela que Cléia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo feito um voto à Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na mais absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo seu compromisso.”

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texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem inquirir a vontade inspiradora da elaboração primitiva7.”

Tendo estas lições como premissas, examinaremos adiante a

outorga de competência tributária estabelecida no art. 155 da Constituição Federal.

– IV –

Antes, é interessante que se faça um breve histórico das mudanças

ocorridas na legislação, inclusive na Constituição Federal, tendo por escopo o desejo dos Estados de tributar as importações de bens em geral, inclusive de ativo fixo e material de consumo. Há muito tempo esta questão é conturbada e marcada por destemperos arrecadatórios.

Em passado remoto, o Estado de São Paulo, por exemplo, tentou

instituir a cobrança do ICMS na importação de mercadorias e o fez por decreto. Já na Constituição de 1969 vigorava o princípio da legalidade (art.

153, § 2º, e mais especificamente no âmbito do Direito tributário, o inciso II do art. 19).

Mesmo assim, por Decreto do Poder Executivo Estadual (Decreto

51345 de 31 de janeiro de 1969) pretendeu-se instituir o fato gerador do ICM na importação nos seguintes termos:

“Art. 1 – O imposto de circulação de mercadorias tem como fato gerador: I (...) II – a entrada em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de mercadoria importada do exterior pelo titular do estabelecimento.”

7 Obra citada, p. 48. Grifos do original.

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Naturalmente os contribuintes se insurgiram contra a cobrança do imposto sob o argumento de que a hipótese de incidência não poderia ser instituída por decreto, uma vez que somente a lei poderia criar obrigação tributária8.

A questão formal de instituição do ICMS na importação foi resolvida

com a edição, pelo Poder Legislativo do Estado de São Paulo, da Lei 91 de 27 de dezembro de 1972, que tinha a seguinte redação:

“Art. 1 – O imposto de circulação de mercadorias tem como fato gerador: I (...) II – a entrada em estabelecimento comercial, industrial ou produtor de mercadoria importada do exterior pelo titular do estabelecimento.”

Todavia, o questionamento da exigência do ICM na importação

continuou em relação aos bens destinados ao ativo fixo e consumo do estabelecimento importador.

O argumento suscitado era de que a competência tributária

outorgada aos Estados limitava-se a permitir a incidência do imposto sobre “mercadorias” e que os bens destinados ao ativo fixo do estabelecimento, bem como aqueles de consumo, não se destinando à revenda, estavam fora do comércio e, consequentemente, não poderiam estar sujeitos ao imposto estadual9. Em outras palavras, bens destinados ao ativo fixo e ao consumo do 8 A questão, após ter sido debatida em inúmeros julgados, foi decidida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE 70.574 SP onde o ministro Luiz Gallotti, louvando-se em extenso parecer do Procurador Geral da República, confirma que o Decreto 51.345/69 instituía um fato gerador sem que a lei estadual antes tivesse eleito tal previsão, não obstante houvesse autorização para os Estados assim procederem, nos termos do inciso II do artigo 1º do decreto-lei 406/69. Vide também acórdão bem elucidativo da Segunda Turma do STF RE 77.619-2. 9 Apenas para registro, o artigo 23 da Constituição de 1969 tinha a seguinte redação: Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: II) operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e comerciantes, impostos que não serão cumulativos e dos quais se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.

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estabelecimento importador não podiam ser qualificados de mercadorias e, portanto, estavam fora da competência tributária dos Estados.

A jurisprudência dos tribunais pátrios foi se encaminhando nesse

sentido ressaltando que o fato gerador do ICM não poderia se materializar em qualquer entrada de bens provenientes do exterior, mas somente em relação àquelas em que a “circulação econômica tivesse sentido comercial” (negócio jurídico, diríamos), aludida no inciso II do art. 23 da Constituição Federal de 196910.

No voto proferido pelo ministro Moreira Alves no RE 88.176-SP,

referindo-se ao quanto havia dito o ministro Thompson Flores quando o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu a respeito da incidência ou não do ICM na importação de bens destinados ao ativo fixo, o cerne da questão jurídica ficou bem demonstrado e está vazado nos seguintes termos:

“A partir do julgamento do RE 79.951 (RTJ 78/215 e segs.), o plenário desta Corte firmou jurisprudência no sentido de que sobre bens de capital não incide o ICM, porque não se destinam eles à revenda. O argumento fundamental em que se baseou essa decisão assim foi exposto pelo relator do citado acórdão, Ministro Thompson Flores:

“Penso que uma razão maior arrebata a possibilidade de proporcionar o êxito da irresignação, ainda que não aceita a tese do invocado direito adquirido. É que os bens importados são de capital, destinam-se ao ativo fixo da Empresa, não visam, pois, a circulação jamais se destinando o seu comércio à revenda”. Sobre eles não poderia incidir o ICM, o qual recai, como quer a Constituição em seu art. 23, II, sobre, verbis:

“operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais ou comerciante...

Igualmente dispõe o Dec.-Lei 406/68, em seus arts. 1º, II e 6º.

10 Vide RE 79.951, 88.176-SP, 86.076-SP, 86.819-SP.

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O fato gerador, assim, no que atine ao importador, é a entrada em seu estabelecimento. Não é, porém, qualquer entrada, mas de mercadoria provinda do exterior, destinada à circulação, que só pode ter sentido econômico comercial e apenas por contribuinte que seja comerciante, industrial ou produtor”.

No caso, não há dúvida de que as aeronaves importadas se destinam a uso próprio das recorrentes. É certo, também, que o acórdão recorrido entende que os bens em causa não são bens de capital, em face do disposto no § 2º do art. 1o do Ato Complementar no 36/67. Esse argumento do acórdão, porém, não procede, pois o § 2º do art. 1º do Ato Complementar n. 36/67 somente conceitua o que se deva entender por bens de capital, para os efeitos do disposto no caput e no § 1º do citado artigo, os quais se referem à base de cálculo do ICM nas saídas de bens de capital de origem estrangeira promovidas pelo estabelecimento que houver realizado a importação. A conceituação, portanto, não é para a incidência, em geral, do ICM. Como bem salientou o Sr. Ministro Thompson Flores, na passagem do seu voto acima transcrita, em face da Constituição Federal, não é qualquer entrada de bem que acarreta a incidência do ICM, mas é necessário que se trate de mercadoria, sem a qual não existe a circulação econômica a que alude o inciso II do artigo 23 da Emenda Constitucional n. 1/69. Ora, bem adquirido para uso próprio, o qual se integra no ativo fixo da empresa adquirente, não se destina à revenda, e, portanto, não se configura como mercadoria. O deslocamento do bem entre a Alfândega e o estabelecimento da importadora é mera movimentação física que se não confunde com a circulação econômica necessária para a incidência do ICM. Em face do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento, para conceder a segurança, pagas as custas pelo recorrido.” (RE n. 88176/SP, Ministro Moreira Alves, DJ julg. 21.10.77, public. 29.12.77, STF, 2ª Turma)

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As sucessivas decisões acabaram dando origem à Súmula 570 do

STF do seguinte teor:

“O imposto de circulação de mercadorias não incide sobre a importação de bens de capital.”

O questionamento da tributação de bens na importação também

ocorreu em razão de tratados assinados pelo Brasil. O RE 113.711-8 SP dá notícia de que o Anexo I do Regulamento do

ICMS do Estado de São Paulo concedia isenções para as saídas de máquinas e equipamentos industriais de fabricação nacional11.

Por força desses tratados internacionais (no caso, o GATT) havia

extensão da isenção dos equipamentos nacionais em relação àqueles importados.

As decisões judiciais confirmando a isenção na importação de

máquinas e equipamentos foram inúmeras, e a questão acabou dando origem à Súmula 575 do STF com a seguinte redação:

“À mercadoria importada de país signatário do GATT, ou membro da ALALC, estende-se a isenção do imposto de circulação de mercadorias concedida à similar nacional.”

Assim, quer em relação à qualificação jurídica que se podia dar aos

bens importados (ser ou não ser mercadoria), quer em relação a outras disposições do ordenamento jurídico vigente na época (destino dos bens, tratados internacionais), os Estados não conseguiam tributar a entrada de alguns bens provenientes do exterior.

11 As isenções concedidas pelo Estado de São Paulo são decorrentes de Convênios firmados entre todos os Estados Federados nos termos estabelecidos pela lei complementar 24/75.

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Naturalmente como o desejo de tributar tais bens permanecia, não havia outro meio para derrubar a jurisprudência dos tribunais a não ser mudando a própria Constituição.

Foi o que ocorreu. A Emenda Constitucional 23/83, chamada Emenda Passos Porto,

introduziu o parágrafo 11º ao artigo 23 da Carta de 1969. O lobby dos Estados, efetuando gestões para modificar a

Constituição Federal, está registrado na Ementa do Recurso Extraordinário 113.711-8 SP, que tem a seguinte redação:

“EMENTA – ICM. Isenção. Aplicação da súmula 575. Interpretação do artigo 23, § 11, da Constituição Federal. – Em face do disposto no artigo 325 do Regimento Interno desta Corte, na redação dada pela Emenda Regimental no 2/85, o recurso em causa só pode ser examinado no tocante à alegação de ofensa ao artigo 23, § 11, da Constituição Federal. – O § 11 foi acrescentado pela Emenda no 23/83 ao artigo 23 da Constituição para explicitar uma das hipóteses de incidência do ICM (que – note-se – já estava prevista, anteriormente, no art. 1º, II, do Decreto-Lei 406/68), e, para, em sua parte final, elidir a jurisprudência desta Corte que vinha decidindo em sentido contrário ao que ali ficou expresso. A expressão “incidirá” pressupõe que o Estado-membro, como decorre do caput desse artigo 23, tenha instituído, por lei estadual, esse imposto, e nada impede, evidentemente, que ele conceda, também por lei estadual, isenção, que, aliás, pressupõe a incidência, uma vez que ela – no entendimento que é o acolhido por este Tribunal – se caracteriza como a dispensa legal do pagamento de tributo devido. Recurso extraordinário não reconhecido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, não conhecer do recurso.

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Brasília, 26 de junho de 1987.” (RE n. 113.711-8/SP, Ministro Moreira Alves, DJ julg. 26.6.87, public. 09.10.87, STF, 1ª Turma)

Com a mudança do Texto Constitucional, alterou-se o campo de

incidência do ICM. Vejamos a redação do texto original e, posteriormente, como ficou o âmbito de competência dos Estados para tributar o ICM na importação.

“Art. 23 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por produtores, industriais e comerciantes, impostos que não serão cumulativos e dos quais se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.”

O texto original da antiga Constituição não autorizava a cobrança do

ICM na importação. A redação acrescida pela Emenda Constitucional 23/83 outorgou

nova competência tributária aos Estados nos seguintes limites:

“§ 11 – O imposto a que se refere o item II incidirá, também, sobre a entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de mercadoria importada do exterior por seu titular, inclusive quando se tratar de bens destinados a consumo ou ativo fixo do estabelecimento.”

Em outras palavras, os pressupostos constitucionais de incidência

eram: a) a existência de operações mercantis dentro do território

nacional, ou

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b) a entrada de mercadorias do exterior, assim como as importações de bens destinados ao ativo fixo e ao consumo do estabelecimento.

A disposição destes comandos normativos na Constituição de 1969

era de vital importância para o exame da competência outorgada aos Estados, e a sua separação era bem nítida.

O caput indicava que o pressuposto de incidência era a existência da

operação mercantil, e o parágrafo, além de permitir a tributação de “mercadorias”, à vista do termo “também”, não deixava nenhuma dúvida de que as situações de importação se estendiam a duas outras hipóteses em que o clássico conceito de mercadoria não poderia ser empregado, ou seja, bastava que a origem da entrada do bem fosse a importação e a coisa importada fosse destinada ao consumo ou ao ativo fixo do importador.

Esse era o âmbito de competência tributária dos Estados no final da

vigência da Constituição de 1969. Cabe aqui uma observação preliminar importante para as futuras

conclusões deste estudo: a função normativa do parágrafo em relação ao seu respectivo caput.

Observa-se que a Emenda Constitucional 23/83 incluiu dispositivo

fazendo com que o parágrafo acrescentasse uma nova situação (uma nova hipótese de incidência) à anteriormente já existente.

Como se demonstrou, pela manifestação do ministro Moreira Alves,

esse parágrafo 11 teve por escopo anular a jurisprudência anterior que excluía a incidência do imposto sobre a entrada de bens destinados ao consumo e ao ativo fixo, porque, pelas decisões dos tribunais, tais bens não poderiam ser considerados mercadorias e, consequentemente, não se amoldavam à única hipótese de incidência prevista no caput do então artigo 23.

Há, no caso, sentido lógico entre as disposições constantes do caput

e de seu respectivo parágrafo. O primeiro estabelece que a incidência do imposto se dará sobre “operações mercantis” e o segundo, “que a tributação também

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recairá sobre a ‘importação de mercadorias’”. Mais ainda: que a incidência do imposto se dará também sobre os “bens” destinados ao ativo fixo e ao consumo do estabelecimento.

Em outras palavras, o parágrafo acrescentado ao caput do artigo

explicitava que a incidência do imposto na importação se dava TAMBÉM sobre mercadorias e sobre outros bens que, em função da destinação, não poderiam receber essa qualificação jurídica.

Esta harmonia entre caput e parágrafo dava à norma a necessária

eficácia para que produzisse os efeitos desejados: qual seja, novas outorgas de competência tributária.

Deste momento em diante, os Estados e o Distrito Federal poderiam

tributar as operações mercantis internas, as importações de mercadorias (assim entendidos os bens destinados pelo importador às novas operações mercantis, havendo ou não industrialização) e aos bens destinados ao consumo do estabelecimento e ao seu ativo fixo.

Com a Constituição de 1988, houve um aperfeiçoamento da

descrição da regra de incidência do ICMS, que a maioria da doutrina não examinou com o devido cuidado.

Enquanto na vigência da Constituição de 1969 dois eram os

pressupostos de incidência do imposto (operações relativas à circulação de mercadorias e entrada de “bens” provenientes do exterior para consumo e ativo fixo), na de 1988 o pressuposto passou a ser um só (não estamos considerando aqui a questão da tributação dos serviços de transporte, de comunicação e da energia elétrica), qual seja, a existência de operação mercantil, quer ela se realize dentro do território nacional, quer ela se inicie no exterior e aqui se encerre. Vejamos o texto constitucional original de 1988:

“Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I (...)

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II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços sobre transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”

Este é o comando hospedado no inciso II do art. 155 considerado, no

caso, como caput do artigo. A indagação subsequente seria: Ora, se assim é, qual o sentido da

norma constante da letra “a” do inciso IX, § 2º do art. 155, antes da Emenda Constitucional 33?

Vejamos a sua redação:

“IX – incidirá também a) sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado ao consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço.”

O intérprete, no processo de hermenêutica, deve se abstrair da

vontade do legislador, como já se demonstrou e, à procura do verdadeiro sentido do comando ínsito na norma, não pode abandonar nenhum significado de termos ou mesmo orações que constem graficamente do texto.

Ao analisar o texto Constitucional de 1969, em que três distintos

pressupostos suportavam a competência tributária dos Estados (operações relativas à circulação de mercadorias, entradas de mercadorias no estabelecimento, quando provenientes do exterior e entradas de “bens” destinados ao consumo ou ativo fixo do importador), o intérprete atento é forçado a concluir que a competência tributária foi modificada.

Em primeiro lugar pelo simples fato de que, se nenhuma alteração

tivesse sido incluída no Texto Constitucional, as incidências ficariam como estavam, tudo de conformidade com o desejo do legislador constituinte de anular a jurisprudência dos tribunais no sentido de que a destinação da coisa

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importada lhe tirava a qualificação de “mercadoria”, como adiante se demonstrou.

Por outro, se a nova Carta contém inovação, há que se respeitá-la

dando-lhe a dimensão e densidade que tem no contexto da norma onde foi inserida. O constituinte de 1988, no caput do artigo que outorga competência tributária aos Estados, colocou em situação equivalente o pressuposto de incidência do imposto estadual, quer para a tributação interna, quer em relação àquelas provenientes do exterior, quando determina que ele será a oneração “das operações relativas à circulação de mercadorias, ainda que as operações se iniciem no exterior.

Note-se que o constituinte chega a ser repetitivo quando emana o

novo comando, pois expressamente determina que o imposto deve incidir sobre “operações”; ele usa o termo duas vezes, quer para designar o pressuposto de incidência dentro do território nacional, quer em relação às importações.

Não se pode desconsiderar esta modificação no processo de

hermenêutica! Pois bem. Se o pressuposto de incidência do ICMS é a pré-existência de “operação relativa à circulação de mercadoria”, é de se concluir que, também para as importações, a competência tributária dos Estados requer a existência de negócio jurídico de natureza mercantil, com transferência da propriedade do bem móvel do vendedor ao comprador12 sob pena de se tributar algo distinto do que, pela Constituição, foi autorizado!

Examinemos mais detalhadamente a norma constante da letra “a”

do inciso IX, § 2º, art. 155 para harmonizá-la com o seu caput (inciso II, art. 155). Reza o dispositivo: incidirá também sobre a entrada de mercadoria importada do exterior.

12 No momento, não vamos nos deter em considerações mais profundas sobre o conceito “operação mercantil”. A matéria está exaustivamente tratada na doutrina e pacificada na jurisprudência dos tribunais. A respeito do tema vide nosso estudo ICM – Empreitada de construção civil com fornecimento de material produzido pelo empreiteiro fora do local da obra (inconstitucionalidade e ilegalidade da incidência do ICM sobre o material), publicado na Revista de Direito Tributário nº 45/273.

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Constata-se que houve um aproveitamento do texto contido no § 11 do artigo 23 da antiga Constituição. Todavia, na nova Constituição, esse texto adquire conotação própria, ainda que o intérprete, valendo-se do método histórico de interpretação, considere os fatos como ocorridos no tempo.

Na Constituição de 1988, esta primeira expressão da letra “a” do

inciso IX ficou repetitiva, na medida em que o caput do artigo (inciso II do 155) determina que a competência dos Estados Federados é para tributar as operações relativas à circulação de mercadorias, ainda que iniciadas no exterior.

Ora, as “mercadorias”, a que se refere a letra “a” do inciso IX nada

mais são do que a base física destas “operações” previstas no caput do artigo! “Mercadoria”, como se sabe, é a qualificação jurídica que se atribui ao bem móvel enquanto objeto de negócio jurídico mercantil.

Assim, quando a letra “a”, hoje, autoriza os Estados e Distrito

Federal a tributar as “entradas de mercadorias importadas do exterior”, a norma que aí está diferencia-se daquela constante do caput do artigo (“operações relativas à circulação de mercadorias”) apenas quanto à forma de sua descrição, porque em seu aspecto material, tanto uma quanto a outra estabelecem que as unidades federadas estão autorizadas a tributar a expressão econômica de negócio jurídico oneroso de transferência de propriedade de bens móveis, ainda que iniciado no exterior, ou como queiram, de mercadoria entrada no estabelecimento importada do exterior.

Não se alegue que a interpretação dada à norma constante da letra

“a” do inciso IX leva à inutilidade do dispositivo e que, portanto, ela não é correta.

Indubitavelmente o aproveitamento do texto da antiga Constituição

pode turvar a clareza da norma quando descreve (ainda que com uma redação distinta) uma repetição da hipótese de incidência do imposto nas aquisições efetuadas no exterior. Todavia, a origem histórica do dispositivo justifica, lhe dá vida e sentido na Constituição de 1988.

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De outro lado, a manutenção da expressão incidirá também ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento tem por escopo continuar a inibir o retorno do entendimento de que os bens não destinados à revenda não podem ser considerados “mercadorias” e, portanto, não tributáveis na importação como já demonstramos neste estudo.

Assim, mantida esta expressão, estão os Estados e Distrito Federal

autorizados a tributar as “operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas dentro do território nacional ou quando iniciadas no exterior”, ou quando o importador interne bens destinados ao seu consumo ou ao ativo fixo do estabelecimento.

Este é o comando normativo que se depreende da leitura do inciso

II, do art. 155 da Constituição Federal de 1988, combinado com o disposto na letra “a” do inciso IX, parágrafo segundo.

Elegeu-se como requisito necessário à incidência do ICMS na

importação a existência de negócio jurídico internacional, quando o Texto Constitucional determina que o imposto incida sobre “operação relativa à circulação de mercadoria ainda que iniciada no exterior”.

Tal conclusão encontra respaldo na interpretação histórica e

sistemática do dispositivo em questão. Ocorre que no dia 12 de dezembro de 2001, o Diário Oficial da União

publicou a Emenda Constitucional n. 33, alterando a redação da letra “a” do inciso IX, do § 2º do art. 155 da Constituição Federal.

Assim sendo, cabe examinar em que medida a competência

tributária dos Estados e do Distrito Federal foi alterada, para que, dentro de seus territórios, instituam a cobrança do ICMS.

Com a Emenda Constitucional n. 33/01 uma série de modificações

foram efetuadas no Texto Constitucional de 1988.

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Neste estudo, examinaremos apenas as modificações ocorridas na letra “a” do inciso IX, § 2º do art. 155 que afetam o âmbito de competência dos Estados e do Distrito Federal para a cobrança do ICMS.

Essa Emenda Constitucional manteve integralmente a redação do

art. 155, bem como a do seu § 2º e o próprio inciso IX, de tal sorte que a redação da letra “a” passou a ser a seguinte:

“Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. § 2º – O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (...) IX – Incidirá também: a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço.”

Demonstramos anteriormente que o pressuposto de incidência do

ICMS é o negócio jurídico de natureza mercantil. O imposto em questão não incide sobre a circulação, sobre mercadorias, mas sim sobre operações, que têm por finalidade a transferência da propriedade de bem móvel em decorrência de ato mercantil13.

13 Sobre os pressupostos de incidência do ICM, vide nosso trabalho publicado na Revista de Direito Tributário 45/273.

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Este entendimento está consubstanciado na Súmula 573 do STF:

“Não se constitui fato gerador do ICM a saída física de máquinas, utensílios e implementos a título de comodato.”

Também o Superior Tribunal de Justiça tem o mesmo entendimento

objeto da Súmula 166:

“Não se constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadorias de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”

“Mercadoria”, em síntese, perante a doutrina e pelas decisões

judiciais, para efeitos de incidência do ICMS, é uma qualificação jurídica que se atribui ao bem móvel enquanto objeto da compra e venda mercantil.

O campo de incidência do ICMS é constantemente objeto de

inúmeras manifestações da doutrina em consonância com a jurisprudência dos tribunais, de domínio geral dos estudiosos do Direito, razão pela qual, neste trabalho, não nos alongaremos para além das considerações acima expostas.

Isto posto, examinemos as normas de competência tributária

hospedadas nesta última versão do art. 155 da Constituição Federal. Mas antes, recordemos, como premissa, que as normas

constitucionais devem ser interpretadas respeitada a unidade da Constituição. Elas necessariamente devem ser consideradas um todo harmônico e sistemático, não um conjunto de regras desordenadas e singelamente justapostas, donde se possa extrair comandos isolados presos a uma interpretação da literalidade do texto.

É por esta razão que J. J. Gomes Canotilho, ao tratar dos princípios

de interpretação da Constituição em sua obra Direito constitucional e teoria da constituição, afirma:

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“1. O princípio da unidade da constituição O princípio da unidade da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. Como “ponto de orientação”, “guia de discussão” e “factor hermenêutico de decisão”, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (ex.: princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio unitário e princípio da autonomia regional e local). Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios.” (grifos do original)14

No mesmo sentido, lembra Carlos Maximiliano:

“O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma em seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e se restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituam elementos autônomos operando em campos diversos. Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço.”15

Isto posto, vejamos como o legislador constituinte (após a Emenda

Constitucional n. 33) normatizou a outorga de competência tributária aos Estados. Para tanto, dissecaremos cada um dos comandos do art. 155, inciso II, bem como aqueles existentes na letra “a” do inciso IX, § 2º.

14 3. ed., Livraria Almedina, Coimbra, p. 1148. 15 Obra citada, p. 161.

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O primeiro deles expressa a regra de atribuição de competência aos Estados e Distrito Federal e fixa os limites materiais desta competência.

“Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias..., ainda que as operações se iniciem no exterior ...”

Ora, a outorga de competência tributária exposta no caput e inciso II

estabelece o limite material do campo de incidência do ICMS em dois distintos aspectos:

a) permitindo a oneração da expressão econômica objeto do

negócio jurídico mercantil (operação relativa à circulação de mercadoria), quer ele se realize dentro do território nacional ou quando se inicie no exterior e aqui se conclua, e

b) proibindo que o Estado tribute qualquer outra movimentação

de bens que não seja decorrente de “operação relativa à circulação de mercadoria” dentro do território nacional, ou iniciada no exterior e aqui venha a ser concluída.

Este é o limite material que se depreende do dispositivo e

reconhecido pelos tribunais superiores quando se lê o teor das Súmulas 573 e 166 do STF e do STJ, respectivamente.

Naquelas hipóteses, os tribunais superiores não constataram nas

saídas em comodato ou nas transferências de bens entre estabelecimentos da mesma empresa, a existência do pressuposto material de incidência do imposto, segundo o permissivo constitucional. Ou seja, para haver a incidência do imposto é indispensável ocorrer o “negócio jurídico mercantil que implique a transferência da propriedade de bens móveis juridicamente qualificados de mercadorias”.

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No exame da norma constitucional que outorga competência tributária e pelas decisões dos tribunais superiores constata-se que a mesma norma que outorga a competência dentro de um certo âmbito de atuação humana veda essa mesma competência em relação a todos os outros aspectos existentes fora desse âmbito.

O comando normativo que permite tributar certa expressão

econômica simultaneamente veda que o mesmo imposto onere todas as demais expressões econômicas distintas daquela.

Na doutrina, Norberto Bobbio foi quem melhor estudou esta

característica das normas dentro do ordenamento jurídico. No capitulo 4º de sua obra Teoria do ordenamento jurídico16, ao

examinar a completude do ordenamento, citando E. Zitelmann e Donato Donati, Bobbio afirma que, para esses autores, toda a atividade humana é regulada por normas jurídicas porque a conduta que não é regulamentada pela norma particular (é permitido ao Estado tributar movimentação de bens resultantes de operações relativas à circulação de mercadorias dentro do território nacional ou iniciadas no exterior e aqui concluídas) é regulada pela “norma geral exclusiva” (é proibido ao Estado tributar movimentação de bens que não sejam decorrentes de operações relativas à circulação de mercadorias realizadas dentro do território nacional ou iniciadas no exterior e aqui concluídas).

Bobbio afirma, à luz da doutrina de que toda atividade humana é

regulada pelo Direito, que as normas nunca nascem sozinhas, mas aos pares: cada norma particular, que poderemos chamar de inclusiva, está acompanhada, como se fosse por sua própria sombra, pela sua norma geral exclusiva.

Esses são os comandos constantes do caput do art. 155, inciso II. Vejamos agora os existentes na letra “a” do inciso IX, § 2º, separados

apenas para efeitos didáticos permitindo, com isso, um melhor exame.

16 2. ed., Editora Pólis, 1991, p. 115 e seguintes.

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a) incidirá também:

a.1) sobre a entrada de “bem” importado do exterior por pessoa física ou jurídica;

a.2) sobre a entrada de “mercadoria” importada do exterior

por pessoa física ou jurídica; a.3) tanto nas hipóteses descritas em “a.1” como em “a.2”,

não é necessário que o importador seja contribuinte habitual do imposto;

a.4) tanto na hipótese prevista em “a.1” quanto nas

estabelecidas em “a.2”, o imposto será devido qualquer que seja a finalidade que o importador der aos “bens” ou “mercadorias” por ele importados; e

a.5) finalmente, o comando normativo constante da letra “a”

expressa a competência para arrecadar o imposto nos casos de importação, atribuindo-a ao Estado do domicílio ou ao estabelecimento do destinatário da “mercadoria” ou “bem”.17

A análise destas normas será efetuada no sentido inverso de sua

apresentação. A modificação da letra “a” do inciso IX, exposta em “a.5”, acrescenta

ao dispositivo constitucional a palavra domicílio por ser o termo apropriado para a indicação da residência das pessoas físicas que, pela nova redação, passaram a ser contribuintes do ICMS na importação, permanecendo o termo estabelecimento para designar o Estado competente para tributar as importações realizadas por pessoas jurídicas.

17 Por não ser objeto deste estudo, não analisamos a competência tributária dos Estados no que diz respeito ao imposto sobre serviços de transporte e de comunicação.

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Como já demonstramos, a inclusão das pessoas físicas como contribuintes do imposto na importação teve por objetivo anular a consagrada jurisprudência do STF de que elas, quando importadoras, não estavam sujeitas ao ICMS.

A norma prevista em “a.4” (irrelevância do destino dado às

importações pelo importador para efeitos da coisa importada ser ou não tributada) tem sua raiz histórica na Emenda Constitucional 23/83 cujo objetivo foi anular a jurisprudência dos tribunais que na época admitia não ser mercadoria o bem destinado ao ativo fixo ou ao consumo do importador, como detalhadamente já demonstramos.

A manutenção deste comando normativo explicita a norma

constante do caput na medida em que, sendo o imposto incidente sobre a “operação mercantil, realizada dentro do território nacional ou iniciada no exterior e aqui concluída”, o destino que se venha a dar à coisa importada, por certo, torna-se irrelevante para efeitos de incidência do ICMS.

No caso, a disposição do parágrafo (letra “a”, IX, § 2º) guarda

consonância e sentido lógico com o comando do caput do artigo. A norma detalhada em “a.3” (de que para ser contribuinte na

importação não se exige que o importador seja um contribuinte habitual) reflete, na verdade, apenas a elevação de seu status dentro do ordenamento jurídico.

Antes este dispositivo já constava do parágrafo único do artigo 4º da

Lei Complementar 87/96, e agora está hospedado na Constituição Federal. De forma idêntica à norma explicitada em “a.4”, também não se

choca com a norma constante do caput do artigo, porque o importador, a pessoa física ou jurídica, no caso, é o contribuinte responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que o contribuinte originário (o que materializa o ato mercantil) encontra-se fora do território nacional, não podendo dele ser exigido qualquer tipo de exação.

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Como sabemos, somente a habitualidade de atos de comércio pode qualificar o agente como comerciante e, consequentemente, a atribuição aos bens móveis, objeto do comércio, a qualificação de “mercadorias”.

A norma em questão explicita a regra constante do caput, uma vez

que o requisito da habitualidade, para efeitos da caracterização do contribuinte do ICMS, aplica-se apenas àquele contribuinte original e não a outro que o é por expressa disposição legal (aqui, a CF), eleito para o pagamento do imposto, como no caso de importação. Desta forma, o comando ora em exame amolda-se à regra constante do caput sendo-lhe esclarecedor e confirmatório. À toda evidência, a regra também foi estabelecida para anular a jurisprudência dos tribunais de que importadores pessoas físicas não estavam sujeitas ao pagamento do ICMS.

A norma indicada em “a.2” (o imposto incidirá também sobre a

entrada de mercadoria importada do exterior por pessoa física ou jurídica) pode ser examinada sob dois ângulos.

O primeiro deles, quando afirma que o imposto incidirá sobre a

importação de mercadorias, já tivemos oportunidade de comentar. É juridicamente impossível um imposto, que tenha como pressuposto de incidência as “operações relativas à circulação de mercadorias” e sua materialidade, não recair sobre as “mercadorias” propriamente ditas. De outro modo, a expressão econômica atribuída à coisa objeto da transação é que sofrerá a oneração do imposto. Se assim não for, o que se estará tributando é qualquer outra coisa fora da competência conferida aos Estados e ao Distrito Federal.

A Constituição Federal não empregaria duas vezes o termo

“mercadorias” no mesmo dispositivo de outorga de competência constitucional com significados distintos.

O termo “mercadorias”, objeto do inciso II do art. 155, não difere

daquele constante de seu § 2º, IX, “a”. Assim sendo, quando a norma constante da letra “a” do inciso IX estabelece que a incidência “também se dará sobre mercadorias” não se pode fazer uma leitura isolada de sua primeira parte, sob pena de admitir que a norma constitucional é simplesmente repetitiva, redundante, constando um comando no parágrafo já existente no caput.

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A eficácia do dispositivo, além de explicitar a incidência do imposto sobre “mercadorias”, está também intimamente ligada à sua segunda parte, ou seja, quando a importação se der por pessoas físicas e jurídicas, contribuintes habituais ou não do imposto. Em outras palavras, serão consideradas “mercadorias”, porque objeto de compra e venda mercantil internacional, as aquisições efetuadas pelas indicadas pessoas e, por esta razão, sujeitas ao imposto.

Assim, o imposto onerará as mercadorias, como tais, as coisas objeto

de negócios jurídicos mercantis internacionais, seja o importador pessoa física ou jurídica, contribuinte habitual do imposto ou não e independentemente do destino que se a venha a dar a essas mercadorias (este o segundo ângulo passível de exame em “a 2”).

Com esta interpretação sistemática das normas constantes da letra

“a”, inciso IX, aplica-se, no processo de hermenêutica, as lições de Canotilho, Carlos Maximiliano e de tantos outros juristas de visualizar as normas constitucionais como um todo orgânico, único, harmônico e sistemático, buscando-se como resultado a identificação do comando normativo, no caso, os limites da outorga de competência tributária dos Estados e do Distrito Federal.

Cabe agora examinarmos a norma detalhada em “a.1” (o imposto

incidirá também sobre a entrada de bem importado do exterior por pessoa física ou jurídica).

Esta inovação da Emenda Constitucional n. 33 merece considerações

mais detalhadas. Quando a disposição constante do parágrafo (mais especificamente

§ 2º, IX, “a”) inicia-se com um comando desta natureza – incidirá também –, o intérprete mais apressado dirá que, além da hipótese de incidência prevista no caput, outra será incluída, visto que a expressão incidirá também contém a ideia de “uma outra coisa”, uma outra incidência distinta daquela prevista no caput do artigo. Todavia, o exame acurado deste comando demonstrará exatamente o contrário.

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É o que passamos a investigar. A expressão incidirá também, hospedada no inciso IX, mostrou-se

apropriada em relação a todos os demais comandos constantes da letra “a” porque ela estabelece um liame lógico e sistemático com o caput do artigo.

Verificamos aí que a norma do parágrafo reafirma a incidência do

imposto nos moldes previstos no caput, esclarecendo que a exação se dará ainda que “o destinatário da mercadoria seja pessoa física ou jurídica não contribuinte do imposto”.

Da mesma forma, o pressuposto de incidência constante do caput é

reafirmado no parágrafo quando se indica que o imposto incidirá “qualquer que seja a finalidade da mercadoria importada”.

O que se observa em relação a estes outros comandos do parágrafo é

que eles, de forma sistemática e lógica, integram a norma constante do caput explicitando o seu âmbito de validade, eliminando possíveis argumentos jurídicos do passado para que o imposto não fosse cobrado na importação, quer em relação à destinação das mercadorias (vide histórico do dispositivo já demonstrado), quer em relação à qualidade dos importadores (vide acórdãos do STF, nas notas de rodapé, que decidiram pela não incidência do imposto quando as importações eram realizadas por pessoas físicas).

Quando assim se postou, o constituinte derivado amoldou a técnica

legislativa em conformidade com um princípio básico de hermenêutica, qual seja, de que os parágrafos subordinam-se ao caput.

Na verdade, as normas constantes dos parágrafos têm por finalidade

explicitar o comando constante do caput, ou até mesmo estabelecer uma exceção, conforme o caso18. 18 Por exemplo, o Parecer n. SR-70, de 6/10/1988, do Consultor Geral da República (DOU de 7/10/1988, p. 19675 e seg.), com fulcro da doutrina de Vicente Ráo, afirmou: “Sabemos que o parágrafo é, tecnicamente, o desdobramento do enunciado principal, com a finalidade de ordená-lo inteligentemente ou excepcionar a disposição principal. Ordenando ou excepcionando, sempre se refere ao ‘caput’: ‘... em sentido técnico-

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A interpretação sistemática que se faz entre caput e parágrafos

permite ao intérprete vislumbrar um conjunto de comandos normativos, de sentido comum, lapidando o todo de tal sorte que sobre ele não paire dúvida em relação à conduta a ser seguida.

A importância deste princípio de hermenêutica é de tal ordem que o

legislador complementar optou por adotá-lo como imposição legal no processo de elaboração das leis inclusive, e naturalmente das Emendas Constitucionais19.

É o que observamos no art. 11, inciso III, letra “c” da Lei

Complementar 95/98, que tem a seguinte redação:

“Art. 11 – As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: (...) III – para obtenção da ordem lógica:

legislativo indica a disposição secundária de um artigo, ou texto de lei, que, de qualquer modo, completa ou altera a disposição principal, a que se subordina. Comumente, o conteúdo do parágrafo deve ligar-se e sujeitar-se à prescrição contida na disposição principal, como o particular ao geral. Também usa o legislador, com freqüência, dispor a matéria em sucessão lógica, unindo o sentido de cada parágrafo ao do parágrafo anterior e o de todos os parágrafos ao do texto principal do artigo.’ (Vicente Ráo, “o Direito e a Vida dos Direitos”, vol. I, p. 326)”. O Supremo Tribunal Federal, Pleno, no mandado de injunção no 60-3 (AgRg), decidido em 12/9/1990, considerou caso concreto afirmando “o parágrafo estar jungido ao regime jurídico único de que cogita o ‘caput’” (DJU de 28/9/1990, p. 10222). O ministro Moreira Alves, votando no recurso extraordinário no 146615-4-PE, julgado em 6/4/1995 pelo Plenário do Supremo Tribunal, afirmou “que é princípio de hermenêutica jurídica que, quando os parágrafos, no tocante a hipóteses determinadas, as disciplinam diferentemente da regra geral contida no ‘caput’ do mesmo dispositivo, aqueles devem ser interpretados, sempre que possível, como exceções a este” (nosso arquivo R1-6/4/95). 19 Cf. art. 59 – O processo legislativo compreende a elaboração de: I – Emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções. Parágrafo Único: lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

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(...) c) expressar por meio de parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no “caput” do artigo e as exceções à regra por este estabelecida.”

Pois bem. Ocorre que nesse § 2º, IX, letra “a” está expresso que o

imposto previsto no caput incidirá também sobre a entrada de bem importado do exterior, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade.

O comando constante desta letra “a”, em sua expressão gráfica, pode

até ser claro em relação às situações em que o imposto TAMBÉM deverá incidir – “sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior”. Todavia, esta clareza “gráfica” está diametralmente oposta quando se abandona a singela leitura do dispositivo e se passa a examinar o seu conteúdo normativo.

Em sua obra Interpretação e aplicação da Constituição, Luiz Roberto

Barroso, ao tratar da interpretação gramatical, esclarece que ela é o momento inicial do processo interpretativo. Mas adverte:

“De regra, todavia, correrá risco o intérprete que estancar sua linha de raciocínio na interpretação literal. Embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua letra, cumpre evitar o excesso de apego ao texto, que pode conduzir à injustiça, à fraude, e até ao ridículo.”20

Esse mesmo autor esclarece que o problema da linguagem

constitucional, na atual Carta, teria se agravado com a democratização do processo constituinte, tendo como consequência a possibilidade de menor cuidado na adoção de uma terminologia jurídica uniforme e tecnicamente rigorosa. Contudo, adverte que o texto constitucional apresenta uma ambiguidade por ser um documento popular e um documento jurídico a um só tempo, lembrando para tanto, a passagem do voto do ministro Marco Aurélio no RMS 21.514 em que foi relator:

20 Obra citada, p. 126.

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“Sempre tenho presente a premissa de que o Direito é ciência e, como tal, possui institutos, expressões e vocábulos com sentido próprio, havendo de se presumir que o legislador, especialmente o constituinte, haja atuado com técnica, atentando para o fato de que o esmero de linguagem é essencial à revelação do sentido correto da disposição normativa.”

A leitura gramatical dessa primeira parte da norma constante da

letra “a” indica a existência de situações distintas passíveis de incidência do imposto em relação às entradas provenientes do exterior, ou seja, I) a entrada de bens, ou II) a entrada de mercadorias.

A conclusão da afirmativa não requer maiores investigações, uma

vez que as palavras bem e mercadorias estão intercaladas pela conjunção alternativa ou. Significa dizer que, segundo a leitura gramatical do dispositivo, os “bens” importados, assim como as “mercadorias” provenientes do exterior, estariam sujeitas ao imposto estadual.

Ocorre que a interpretação gramatical de todas é a mais pobre. É a

que menos indica o sentido da norma, na medida em que se aparta do todo. Deixa de lado o sentido lógico que deve haver entre disposições do caput e seus respectivos parágrafos. É secundária diante da interpretação sistemática e teleológica e pode levar o interprete a situações absurdas, incompatíveis e inconciliáveis, desvirtuando o processo de hermenêutica como um todo.

Ora, se a leitura gramatical do dispositivo não conduz o intérprete à

segurança desejada na pesquisa da norma emanada do Texto Constitucional, há que se dar o primeiro passo investigando o significado dos termos – bem e mercadoria – para, em seguida, examiná-los no contexto unívoco da norma existente no caput e no parágrafo.

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A Carta Magna vigente emprega dez vezes o termo bem; no plural, bens, quarenta e duas vezes21.

O legislador constituinte, quando empregou esses termos, sempre o

fez para designar bens, móveis e imóveis, nas condições especificadas nos artigos 43 e 47 (e seguintes) do Código Civil (algumas vezes expressa, e outras, implicitamente) e, vez ou outra, utilizou-os também com o significado de “direitos”, como ocorre no artigo 216 da Constituição Federal.

21 Palavra “Bem” – encontrada 10 vezes: Seção II – Das Limitações do Poder De Tributar, Art. 150, inciso VI; Seção IV – Dos Impostos dos Estados e do Distrito Federal, Art. 155, parágrafo 1o, inciso I, e parágrafo 2º, incisos IX e XII; Seção V – Dos Impostos dos Municípios, Art. 156, parágrafo 2º, inciso II; Capítulo IV – Da Ciência e Tecnologia, Art. 218, parágrafo 1º; Capítulo VI – Do Meio Ambiente, Art. 225; Título IX – Das Disposições Constitucionais Gerais, Art. 243, parágrafo único. Palavra “bens” – encontrada 42 vezes: Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Art. 5º, incisos XV, XXXI, XLV, XLVI e LIV; Capítulo II – Da União, Art. 20, caput e Art. 23, inciso IV; Título III – Da Organização do Estado, Capítulo I – Da Organização Político-Administrativa, Art. 24, inciso VIII; Capítulo III – Dos Estados Federados, Art. 26, caput; Capítulo VII – Da Administração Pública, Seção I – Disposições Gerais, Art. 37, parágrafo 4º; Seção II – Das Atribuições Do Congresso Nacional, Art. 48 – inciso V; Subseção III – Das Leis, Art. 62, parágrafo 1º, inciso II; Capítulo II – Da União, Art. 21, inciso XIV; Seção IX – Da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária, Art. 71, inciso II; Seção IV – Dos Tribunais Regionais Federais e dos Juízes Federais – Art. 109, inciso IV; Título V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas – Capítulo I – Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio – Seção I – Do Estado de Defesa, Art. 136, inciso II, Art. 139, inciso VII; Capítulo III – Da Segurança Pública – Art. 144, parágrafo 1º, inciso I e parágrafo 8º; caput; Seção II – Das Limitações do Poder de Tributar, Art. 150, inciso V e Art. 152, caput; Seção IV – Dos Impostos dos Estados e do Distrito Federal, Art. 155, caput, parágrafo 1º, incisos I, II e II – b , parágrafo 2º, inciso VII; Seção V – Dos Impostos dos Municípios, Art. 156, inciso II e parágrafo 2º, inciso I; Capítulo II – Da União, Art. 21, inciso XIV; Seção II – Da Cultura, Art. 216, caput e parágrafo 3º; Capítulo VII – Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso, Art. 277, parágrafo 1o, inciso II; Capítulo VIII – Dos Índios – Art. 231, caput; Título IX – Das Disposições Constitucionais Gerais – Art. 241, caput e Art. 250, caput; Título X – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – Art. 16, parágrafo 3º, Art. 57, parágrafo 2º, Art. 80, parágrafo 2º.

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A leitura desses artigos demonstra que os institutos de Direito Privado foram adotados pelo legislador constituinte para expressar os comandos normativos constitucionais.

No caso da letra “a”, com a redação que lhe deu a Emenda n. 33,

pode-se perfeitamente excluir a conotação do termo bem com o significado de bem imóvel pela simples razão de ser impossível a materialização de sua importação (como se conclui do dispositivo).

Assim – bem –, no contexto da letra “a”, com a redação da Emenda n.

33, somente pode ser bem móvel (portanto um bem material) ou direitos (bem imaterial).

Tomando-se isto por premissa, há que se verificar o conceito que o

Direito empresta a esses termos para melhor verificar a dimensão e densidade da regra estampada na letra “a” do inciso IX, na redação da Emenda n. 33.

Estabelece o artigo 47 e seguintes do Código Civil:

“Art. 47 – São bens móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia”. “Art. 48 – Consideram-se móveis para efeitos legais: I – Os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes. II – Os direitos de obrigação e as ações respectivas. III – Os direitos de autor”. “Art. 49 – Os materiais destinados a alguma construção, enquanto não forem empregados, conservam a sua qualidade de móveis. Readquirem essa qualidade os provenientes da demolição de algum prédio”.

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Para efeitos deste estudo, podemos dizer que o termo bem, constante da letra “a”, do inciso IX em questão, tem o significado de coisa corpórea móvel e, em última instância, direitos imateriais, num excesso de zelo interpretativo.

Resta agora revermos o conceito de “mercadoria”. Na Constituição de 1988, mercadoria somente pode ser o bem

móvel objeto da compra e venda mercantil, ou ainda, a coisa objeto de alienação em decorrência do negócio jurídico de natureza mercantil.

“Mercadoria”, nesta Constituição, é a qualificação jurídica que

se empresta ao bem móvel (coisa corpórea) enquanto objeto de negócio jurídico de compra e venda mercantil.

À vista dos comandos normativos constantes da própria letra “a” do

inciso IX, não há possibilidade de se empregar o termo “mercadoria” com eventuais outros significados que a doutrina utilizou ao longo dos tempos, tais como “as coisas estocadas pelo comerciante”, “os bens móveis destinados ao comércio”, etc.

Quando a letra “a” do inciso IX indica que as mercadorias serão

tributadas na importação realizada por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, e irrelevante a finalidade de sua destinação, a regra exclui toda e qualquer outra possível atribuição que se possa emprestar ao termo mercadoria, a não ser a de bem móvel objeto de negócio jurídico de natureza mercantil (operação relativa à circulação de ....).

Esta natural conclusão adquire maior clareza recordando-se a

evolução histórica desse parágrafo já exposta neste estudo. No passado, como demonstramos, argumentou-se junto aos

tribunais que os bens de ativo fixo e de consumo do importador não seriam considerados mercadorias porque não destinados ao comércio. O mesmo ocorreu em relação às importações realizadas por pessoas físicas e jurídicas não contribuintes do imposto. Chegou-se até mesmo a decidir-se que estas últimas não estariam sujeitas ao imposto porque não teriam como se aproveitar do respectivo crédito do ICMS, ferindo-se, assim, o princípio da não cumulatividade!

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Ora, se assim é, excluindo-se expressamente toda e qualquer outra

possibilidade de emprego do termo mercadoria, ele somente pode ter a mesma conotação que lhe é dada no caput do artigo (155, II) como sendo “o bem móvel objeto do negócio jurídico mercantil, pelo qual o vendedor transfere ao comprador a sua respectiva propriedade por ato oneroso”.

Ressalte-se, mais uma vez, que nesta Constituição a evolução

histórica demonstra que o constituinte foi anulando e restringindo todas as demais hipóteses e conotações em que o termo mercadoria poderia ser empregado restando uma única: a que destacamos no parágrafo anterior. Na Carta de 1988, não mais se poderá levar em consideração o destino dos bens para qualificá-los como mercadorias, o animus do comerciante em relação ao seu estoque, etc. Mercadoria, aqui, tem um significado restrito imposto pelo próprio legislador constituinte ao longo de sucessivas modificações da Constituição Federal.

Pois bem. Se assim é, temos uma contradição expressa entre o

disposto no parágrafo (letra “a”, inciso IX, § 2º) e o estabelecido no caput do artigo (155, II) em face da inovação objeto da Emenda Constitucional n. 33. Vejamos.

Anteriormente nos referíamos à lição de Norberto Bobbio que,

mencionando outros doutrinadores, afirmava que as regras nascem aos pares no ordenamento jurídico.

Elas foram denominadas normas gerais “inclusivas” e normas gerais

“exclusivas”. Assim, o legislador constituinte estabeleceu que a competência dos

Estados e do Distrito Federal é para onerar “as operações relativas à circulação de mercadorias ainda que iniciadas no exterior” (norma geral inclusiva).

O legislador constituinte derivado respeitou este comando. Não fez

qualquer modificação em seu texto. Manteve-o na Emenda n. 33.

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Ora, se assim procedeu, o caput do artigo continua a irradiar aquele outro comando nascido de maneira gêmea com este que se acaba de transcrever. Vale dizer: no caput do artigo vigora a norma geral exclusiva de que “todos os demais bens móveis que não possam receber a qualificação jurídica de mercadorias estão fora da competência tributária dos Estados e do Distrito Federal”.

Há que se ter presente, conforme já demostrado neste estudo, que as

mercadorias são, por excelência, bens móveis. Diferem, contudo, dos bens, genericamente considerados em razão da qualificação que o Direito lhes empresta.

Tanto elas (mercadorias) quanto os bens são conceitos jurídicos

emprestados do Direito Privado e adotados pelo legislador constituinte. Quanto a isso, não se discute e cremos ser a opinião de juristas, doutrinadores e magistrados.

A Constituição Federal está repleta de termos, conceitos, formas e

institutos de direito privado, e isso é inconteste porque o legislador complementar, no art. 110 do Código Tributário Nacional, determina, no capítulo que trata da interpretação da legislação tributária, que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance desses conceitos e institutos de Direito Privado, utilizados expressa ou implicitamente na Constituição Federal”.

Assim, mercadorias nada mais são do que uma espécie do gênero

bens. Desta forma, se o caput (na norma inclusiva ou na geral exclusiva) restringe a competência tributária dos Estados e do Distrito Federal para onerar a espécie, não é lógico, sistêmico e harmônico que o parágrafo deste mesmo artigo determine que a competência tributária TAMBÉM se estenda ao gênero!

Admitir a validade desta norma (que em tese estenderia a

competência tributária dos Estados e do Distrito Federal) equivaleria a aceitar a nulidade das regras estampadas no caput do artigo (tanto a particular inclusiva quanto a geral exclusiva).

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Observe-se com atenção: Se a competência tributária se estende para “a importação de ‘ bens’, por pessoa física ou jurídica, contribuinte ou não habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade”, as regras constantes do caput perdem todo e qualquer sentido. Ficam totalmente sem eficácia. Deixam de ter razão lógica para a sua própria existência, porque será suficiente a materialização da entrada de um bem móvel no País para que os Estados efetuem a cobrança do imposto!

Teríamos, então, não um imposto “sobre operações relativas à

circulação de mercadorias, ainda que iniciadas no exterior”, mas sim um imposto sobre a importação de “bens”!

Admitir esta situação implicaria a inexorável aceitação de que o

parágrafo passaria a determinar o campo de incidência do ICMS, e que com o advento da Emenda Constitucional n. 33, o caput do artigo estaria revogado, numa absurda e insensata situação de um parágrafo ter vida própria e autônoma, desvinculado de qualquer caput de artigo!

Já mostramos anteriormente, citando a lição de Luiz Roberto

Barroso, que apenas o exame literal da norma pode conduzir o intérprete a uma situação ridícula! Pois ela aí está.

Vale destacar também que o exame do conteúdo normativo

constante do parágrafo e seu respectivo caput indica a contradição dos preceitos sob o ponto de vista jurídico.

Na divisão didática apresentada em relação à norma constante da

letra “a” do inciso IX, todas as inovações da Emenda Constitucional n. 33 puderam ser interpretadas e harmonizadas com o caput do artigo.

Neste esforço hermenêutico obteve-se uma simbiose da visão literal

do texto com o respectivo conteúdo normativo considerando-o já integrante do todo. Todavia, no particular ora examinado, isto não foi possível.

Resta, portanto, verificarmos como solucionar a questão da

contradição exposta.

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O primeiro enfoque é que, neste particular, o projeto de Emenda Constitucional contém vício de ilegalidade em sua origem e, portanto, não integraria o ordenamento jurídico pátrio.

Com efeito. Por expressa disposição Constitucional (artigo 59), o

processo legislativo compreende também a elaboração de Emendas Constitucionais (inciso I).

Neste mesmo artigo, em seu parágrafo único, há previsão de que a

lei complementar deverá dispor sobre “a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.”

A Lei Complementar 95/98 tem esta específica finalidade e está

vigente em nosso ordenamento. Ela, como já transcrevemos, estabelece que as disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão, ordem lógica, expressando, em seus parágrafos, os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e suas exceções.

Ora, no caso aqui examinado não se estabelece uma exceção ao

caput, tampouco aos aspectos complementares à norma do caput, mas sim a sua integral anulação, bem como a violação de seu sentido lógico jurídico em total afronta à expressa disposição do que consta da letra “c”, inciso III, art. 11, da Lei Complementar 95/98.

Eleger como tributável a entrada de bem importado do exterior

(gênero) equivale a nulificar a previsão de tributação da espécie (mercadoria), uma vez que esta é sempre materializada em um bem móvel que, por força da qualificação jurídica que recebe, restringe esse bem a uma certa categoria prevista no Direito pátrio.

Assim, em sua origem, o projeto de Emenda à Constituição, em

nosso entender, é ilegal e, consequentemente, não tem condições de se converter em Emenda Constitucional produzindo efeitos, bem como repercussões no ordenamento jurídico como norma fundamental.

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Contudo, apenas pelo amor à investigação, admita-se que a conclusão sobre a ilegalidade do projeto da Emenda Constitucional não procede e que, de fato e de direito, a modificação introduzida pela Emenda n. 33 incorporou-se à Constituição Federal como eficaz e válida, produzindo e irradiando no ordenamento jurídico os efeitos que lhe são peculiares, quais sejam, a outorga de competência tributária aos Estados e ao Distrito Federal para que a entrada de bens no território nacional seja tributada pelo ICMS. Caso isto ocorra, estamos diante de uma antinomia.

Antes de mais nada, repita-se, houve necessidade de se estabelecer a

premissa que a norma especificada em “a.1” é válida e eficaz, isto porque, para se falar em antinomia no direito, é indispensável que se examine a contradição de normas jurídicas. Não pode ser atribuída a categoria de norma jurídica àquela cuja origem contém vício, à vista da flagrante desobediência à Lei Complementar 95/98 que versa sobre a elaboração e alteração de diplomas legais, inclusive da própria Constituição Federal.

Pois bem. A contradição já exposta reside no fato de o dispositivo

constante do parágrafo modificativo da Constituição Federal conter atribuição de competência para os Estados tributarem a importação de bens, sendo este um conceito genérico e amplo que abrange e envolve o conceito de mercadorias, que é uma espécie desses bens.

A situação antinômica está no fato de que no caput do artigo (155,

II) hospeda-se a norma mais específica, mais restrita, abrangida por aquela que passou a constar do respectivo parágrafo.

Se, por hipótese, o caput do artigo atribuísse aos Estados e Distrito

Federal a competência para tributar a importação de bens, e o respectivo parágrafo rezasse que o imposto “também incidiria sobre a importação de mercadorias”, poder-se-ía considerar que a função do parágrafo, no caso, seria esclarecedora da norma geral constante do caput.

Contudo isto não ocorre no caso concreto! A norma objeto do caput

limita a competência tributária dos Estados para onerar um certo tipo de bens, quais sejam: “os móveis (excluindo-se os imóveis e os imateriais) que possam ser juridicamente qualificados de mercadorias”.

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Não se pode inferir outra coisa quando o constituinte determina que

o imposto incidirá sobre “operações relativas à circulação de mercadorias ainda que as operações se iniciem no exterior”!

Ora, o parágrafo de um artigo pode conter norma esclarecedora do

respectivo caput, pode conter norma restritiva ao comando previsto no caput, pode estabelecer exceção à regra nele contida.

É princípio de hermenêutica que os parágrafos devem guardar

sentido lógico às disposições do caput, ainda que excepcionando-os ou estabelecendo regras esclarecedoras do respectivo comando.

No caso sob exame isto não ocorre porque, admitindo-se a validade

da regra detalhada em “a.1”, contida na Emenda n. 33, há que se concluir pela derrogação da norma constante do caput, o que é inaceitável.

Na visão sistemática do ordenamento jurídico, principalmente na

Carta Maior, não é possível haver norma de um parágrafo vinculado a um caput não vigente, derrogado, inexistente.

De qualquer forma, os dois dispositivos aí estão, o caput não

alterado pela a Emenda n. 33 e o parágrafo (letra “a”, IX, § 2º, 155) por ela modificado e incorporado ao Texto Constitucional.

Aí está, pois, a antinomia. Como solucioná-la? Antes de mais nada é relevante que se esclareça que a antinomia não

se estabelece entre termos, na hipótese entre bens e mercadorias. Estes, isoladamente considerados, são institutos de Direito Privado contendo cada um de per si os significados que lhe são peculiares.

A antinomia se instaura entre normas, mais especificamente, no

caso, entre comandos de outorga de competência tributária aos Estados e ao Distrito Federal.

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Já detalhamos anteriormente que, no exame do ordenamento jurídico, devemos levar em consideração a sua unidade, a sua coerência e a sua consistência, principalmente na Constituição Federal, sob pena de incorrermos em erro no processo hermenêutico, não identificando, consequentemente, o correto sentido do comando normativo.

Para tanto, valemo-nos dos processos adotados pela doutrina e

pelos tribunais para resolver as antinomias. Preliminarmente há que se ter em conta que tanto a norma

constante do caput do artigo (os Estados e o Distrito Federal somente podem tributar bens juridicamente qualificados de mercadorias em operações internacionais realizadas por pessoa física ou jurídica, contribuinte ou não do imposto, qualquer que seja a sua finalidade) quanto aquela outra objeto do parágrafo inserido pela Emenda Constitucional (os Estados e o Distrito Federal estão autorizados a tributar a entrada de bens importados do exterior por pessoa física ou jurídica, contribuinte ou não do imposto, qualquer que seja a sua finalidade) estão postas dentro do mesmo âmbito de validade, ou seja, na Constituição Federal outorgando competência tributária às entidades políticas.

Em princípio, três são os critérios para a solução das normas

antinômicas: a) o cronológico; b) o hierárquico; e c) o da especialidade. Pelo critério cronológico, a incompatibilidade entre duas normas se

resolve com a prevalência da norma posterior. No caso, adotando-se o critério cronológico, a norma exposta em

“a.1” derrogaria aquela prevista no caput do artigo, fazendo com que o imposto estadual, a partir de então, incidisse apenas sobre bens importados (conceito mais genérico e amplo) derrogando aquela outra mais específica e restrita prevista no caput do artigo, que autoriza apenas a incidência do imposto sobre bens, enquanto considerados juridicamente mercadorias, excluindo ainda a incidência do imposto sobre todo outro bem móvel que assim não seja qualificado (norma geral exclusiva).

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O critério cronológico, para a solução da antinomia, não pode ser

aplicável no caso pelas razões já expostas, e que sinteticamente repetimos. Não é admissível que a Constituição Federal contenha norma de

atribuição de competência tributária estabelecida em um parágrafo que não esteja preso à existência do respectivo caput! Na suposta situação da norma do parágrafo revogar a do caput, teria a Constituição um dispositivo determinando que o imposto TAMBÉM incidiria sobre a entrada de bens sem que a outra hipótese, que deu origem e a necessidade do uso da palavra também, sequer pudesse ser considerada pelo hermeneuta, em face da sua inexistência.

O critério cronológico conduz a uma solução absurda, não podendo

ser adotado. O critério hierárquico normalmente é usado quando a antinomia se

apresenta em normas que estão hospedadas em diplomas legais de distintos níveis.

Não é o caso. Ambas as normas, como se vê, estão previstas na

Constituição Federal, de tal sorte que o critério hierárquico não viabiliza a solução do conflito.

Resta, pois, o critério da “especialidade”. Por este critério, a norma

mais especial e restritiva prevalece àquela mais genérica e ampla. Assim, quando o legislador constituinte determina que o imposto

deva incidir sobre operações relativas à circulação de mercadorias, ainda que iniciadas no exterior, determinando que o imposto estadual onere a expressão econômica dos bens móveis juridicamente qualificados de mercadorias (norma geral inclusiva), e simultaneamente determina que todos os demais bens que não tenham tais características estejam fora de competência tributária dos Estados (norma geral exclusiva) estabelece ele duas normas mais específicas e restritivas do que aquela de caráter geral e ampla (hospedada no parágrafo), que autoriza a incidência do imposto sobre todo e qualquer tipo de bem, inclusive os “bens móveis” cujo conceito é amplo e genérico.

Nestes casos, a solução da antinomia está em considerar a

prevalência da(s) norma(s) especial(ais) e restritiva(s) sobre a geral.

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Nem se alegue que no caso estamos diante de um conflito de

critérios, em que o cronológico (a Emenda Constitucional) é posterior às regras de caráter especiais previstos no caput do artigo.

No caso, não se pode invocar eventual prevalência do critério

cronológico, uma vez que a sua adoção levaria a um resultado absurdo já anteriormente apontado, ou seja, derrogaria o inciso II do caput do art. 155, permanecendo a regra do parágrafo isolada do corpo que daria sustentação à sua própria razão de ser.

Ao discorrer sobre o conflito de critérios, Marcos Rolim Fernando

Torres22 assevera que lex posterior generalis non derogat priori speciali.

– VI – À vista de todo o exposto, pode-se enumerar as seguintes

conclusões: 1 – A tentativa de cobrança do ICMS na importação foi feita (no

Estado de São Paulo) por decreto do Poder Executivo, questionado em Juízo em face da violação do Princípio da Legalidade.

2 – Após as manifestações favoráveis do Judiciário, a exação passou

a ser prevista em lei estadual. 3 – A primeira restrição que se aplicou ao conceito de mercadorias,

prevista na Constituição Federal para efeitos de determinação da hipótese de incidência do imposto, foi quando a jurisprudência excluiu esta qualificação jurídica em relação aos bens destinados ao ativo fixo e ao consumo do importador.

A partir de então, na Constituição Federal, o termo mercadorias

poderia ser aplicado não só aos bens móveis objeto da compra e venda mercantil, como também àqueles que, por destinação dos importadores 22 Antinomias no direito: da visão teórica ao caso prático. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, ano 4, no 7, p. 95.

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comerciantes, pessoas jurídicas, seriam revendidos ou mantidos em estoque para futura revenda. O fato gerador era a entrada no estabelecimento importador; porém, não qualquer entrada, mas sim aquela em que o bem móvel pudesse receber o atributo de mercadoria nos limites das conotações do termo aqui apontadas.

4 – Podendo tributar mercadorias na importação, mas não os bens

destinados ao ativo fixo e ao consumo do estabelecimento (conforme firmou-se a jurisprudência), modificou-se a Constituição Federal elegendo-se como tributável as “mercadorias” e os bens destinados ao ativo fixo (Emenda Passos Porto).

Assim, as hipóteses de incidência do ICM na importação passaram a

ser duas: sobre as mercadorias (cujo conceito continuava a ser o acima exposto) e sobre os bens destinados ao consumo ou ao ativo fixo do importador.

5 – Com a Constituição Federal de 1988 houve uma restrição ao

conceito de mercadorias para efeitos de identificação da hipótese de incidência, na medida em que o legislador constituinte limitou à materialidade dessa incidência aqueles bens objeto da compra e venda mercantil nacional e internacional (operações relativas à circulação de mercadorias ainda que as operações tenham sido iniciadas no exterior).

Para onerar os bens destinados ao ativo fixo e ao consumo do

importador houve necessidade de se manter, em regra apartada, o comando de que eles também ficariam sujeitos à incidência do imposto estadual. Visou-se, com esta providência legislativa, impedir que a jurisprudência do passado, que retirava desses bens a qualificação de mercadorias, voltasse a imperar.

6 – Não obstante o pressuposto de incidência do imposto estadual, a

partir de 1988, fosse um só (haver operação mercantil nacional ou internacional) os tribunais, não levando em conta este detalhe, começaram a decidir que pessoas físicas e jurídicas não contribuintes habituais do ICMS não estariam sujeitas à incidência do imposto quando da importação.

Para eliminar o resultado dessas decisões novamente a Constituição

foi emendada para estabelecer que os bens móveis objeto de negócio jurídico de natureza mercantil (qualificação possível para mercadorias no texto

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constitucional vigente) estariam sujeitos ao imposto estadual, mesmo que eles fossem importados por pessoas físicas ou jurídicas não contribuintes do imposto, qualquer que fosse a sua finalidade.

O conceito de mercadorias que já estava restrito aos bens móveis

objeto da compra e venda mercantil nacional ou internacional, ganhava novo reforço. Excluía-se a possibilidade de sua utilização em função da qualificação jurídica do importador ou em razão da destinação que lhe fosse dada.

7 – Prevaleceu como hipótese de incidência do ICMS a tributação de

bens móveis que possam ser juridicamente qualificados de mercadorias. Em outras palavras, o legislador constituinte elegeu uma espécie de bem móvel cuja expressão econômica pode ser onerada pelos Estados.

Esta previsão constitucional está hospedada no caput do art. 155, II,

da Constituição Federal. Quando a Emenda Constitucional n. 33 pretende estabelecer a

incidência do imposto na singela importação de bens e o faz em parágrafo deste art. 155, ela não alcança o desejo inicial do constituinte derivado por desobedecer as disposições da Lei Complementar 95/98, não estabelecendo ordem lógica entre as disposições do parágrafo e respectivo caput, conforme demonstrado. Ainda que assim não seja, a Emenda Constitucional n. 33 estabelece uma antinomia entre a norma objeto do caput do artigo e aquela prevista em seu respectivo parágrafo.

Não é juridicamente possível se atribuir normatividade às

disposições do art. 155, II, da Constituição Federal, que hospeda regra de caráter restritivo, quando aquela prevista no parágrafo é genérica, de amplo aspecto, englobando e abrangendo a materialidade da hipótese de incidência prevista no caput. Evidenciada a antinomia das normas em questão (admitindo-se, por hipótese, como superada a ilegalidade por violação da Lei Complementar 95/98), há que se resolvê-la pelo critério da especialidade, retirando-se do ordenamento a previsão de singela incidência do imposto estadual na importação de bens.

Como se observa, uma vez no ordenamento jurídico, “a criatura

ganha vida própria independentemente da vontade de seu criador”.