artigo sobre o mal em ricoeur

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1 Ricœur e a Viso tica do Mal Marcio de Lima Pacheco 1 [email protected] RESUMO A obra de Paul Ricœur tem como ponto de partida a reflexo tica: o homem falvel, da culpa e do mal. Pretendemos nesse artigo abordar o que Ricœur chama de viso tica do mal. Para isso, necessrio analisar dois autores que habitualmente no se associam, Santo Agostinho e Kant. O primeiro ao lutar contra a concepo maniquesta do mal e o segundo, ao pensar o mal como uma heteronomia da vontade, um mal radical, isto , o formalismo em moral. Para Ricœur, a clarificao do que seja o mal por esses dois filosfos se traduz por uma perda de profundidade, pois o preo da clareza a perda da profundidade, da profundidade que corresponde tenebrosa experincia do mal que aflora nos mitos e nos smbolos primrios. Ricœur ento encontra o que no admitido na viso tica do mal: a tenebrosa experincia que aflora de modo diverso na simblica do mal, e que constitui o “trgico” da reflexo. Por conseguinte, o que na teodicia era apenas um falso saber como conceito tornado setor da esperana. A necessidade do mal , pois, ento, o mais alto smbolo racional que a inteligncia da esperana forma. Palavras-Chaves: Paul Ricœur, Smbolo, Pecado, Mal, tica RESUM Le travail de Paul Ricœur a comme point de dpart la rflexion thique: l’homme faillible, de la faute et du mal. Nous avons projet dans cett’article pour approcher que Ricœur tirent de vision thique du mal. Pour cela, c’est ncessaire analyser deux auteurs qui habituellement n’associent pas, Saint Agustin et Kant. Le premier quand lutter contre le maniquesta de la conception du mal et la seconde, quand penser le mal comme un heteronomia de la volont, un mal radical, c’est, le formalisme dans morale. Pour Ricœur, l’claircissement de ce qui est le mal pour ces deux filosfos la traduit pour une perte de la profondeur, parce que le prix de la clart est la perte de la profondeur, de la profondeur qui correspond l’exprience sombre du mal qu’il glace dans les mythes et dans les emblmes fondamentaux. Ricœur trouve ce qui n’est pas admis dans la vision thique du mal alors: l’exprience sombre qui glace dans une plusieurs entre le symbolique du mal, et qu’il constitue le " tragique " de la rflexion. Par consquent qui tait juste une fausse connaissance comme section du concept de l’espoir dans le teodicia est tourn. Le besoin du mal est, par consquent, alors, le plus haut emblme rationnel qui l’intelligence des formes de l’espoir. Mots Cls: Paul Ricœur, Symbole, Pch, Mal, thique 1- INTRODUO 1 Mestrado em Filosofia pela UFRN, Licenciado em Filosofia (UERN), Pedagogia (FASE) e em Cincias Biolgicas e Bacharel em Teologia (FPA e pelo Instituto Nossa Senhora da Assuno); Professor da Faculdade de Filosofia Cincias e Letras de Cajazeiras- FAFIC e da Faculdade do Serid- FAS; Professor do Ensino Mdio no Estado do Rio Grande do Norte.

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Page 1: Artigo Sobre o Mal Em Ricoeur

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Ricœur e a Vis�o �tica do Mal

Marcio de Lima Pacheco1

[email protected]

RESUMO

A obra de Paul Ricœur tem como ponto de partida a reflex�o �tica: o homem fal�vel, da culpa e do mal. Pretendemos nesse artigo abordar o que Ricœur chama de vis�o �tica do mal. Para isso, � necess�rio analisar dois autores que habitualmente n�o se associam, Santo Agostinho e Kant. O primeiro ao lutar contra a concep��o manique�sta do mal e o segundo, ao pensar o mal como uma heteronomia da vontade, um mal radical, isto �, o formalismo em moral. Para Ricœur, a clarifica��o do que seja o mal por esses dois filos�fos se traduz por uma perda de profundidade, pois o pre�o da clareza � a perda da profundidade, da profundidade que corresponde � tenebrosa experi�ncia do mal que aflora nos mitos e nos s�mbolos prim�rios. Ricœur ent�o encontra o que n�o � admitido na vis�o �tica do mal: a tenebrosa experi�ncia que aflora de modo diverso na simb�lica do mal, e que constitui o “tr�gico” da reflex�o. Por conseguinte, o que na teodic�ia era apenas um falso saber como conceito � tornado setor da esperan�a. A necessidade do mal �, pois, ent�o, o mais alto s�mbolo racional que a intelig�ncia da esperan�a forma.

Palavras-Chaves: Paul Ricœur, S�mbolo, Pecado, Mal, �tica

RESUM�

Le travail de Paul Ricœur a comme point de d�part la r�flexion �thique: l'homme faillible, de la faute et du mal. Nous avons projet� dans cett’article pour approcher que Ricœur tirent de vision �thique du mal. Pour cela, c'est n�cessaire analyser deux auteurs qui habituellement n'associent pas, Saint Agustin et Kant. Le premier quand lutter contre le manique�sta de la conception du mal et la seconde, quand penser le mal comme un heteronomia de la volont�, un mal radical, c'est, le formalisme dans morale. Pour Ricœur, l'�claircissement de ce qui est le mal pour ces deux filos�fos la traduit pour une perte de la profondeur, parce que le prix de la clart� est la perte de la profondeur, de la profondeur qui correspond � l'exp�rience sombre du mal qu'il glace dans les mythes et dans les embl�mes fondamentaux. Ricœur trouve ce qui n'est pas admis dans la vision �thique du mal alors: l'exp�rience sombre qui glace dans une plusieurs entr�e le symbolique du mal, et qu'il constitue le " tragique " de la r�flexion. Par cons�quent qui �tait juste une fausse connaissance comme section du concept de l'espoir dans le teodic�ia est tourn�. Le besoin du mal est, par cons�quent, alors, le plus haut embl�me rationnel qui l'intelligence des formes de l'espoir.

Mots Cl�s: Paul Ricœur, Symbole, P�ch�, Mal, �thique

1- INTRODU��O

1 Mestrado em Filosofia pela UFRN, Licenciado em Filosofia (UERN), Pedagogia (FASE) e em Ci�ncias Biol�gicas e Bacharel em Teologia (FPA e pelo Instituto Nossa Senhora da Assun��o); Professor da Faculdade de Filosofia Ci�ncias e Letras de Cajazeiras- FAFIC e da Faculdade do Serid�-FAS; Professor do Ensino M�dio no Estado do Rio Grande do Norte.

Page 2: Artigo Sobre o Mal Em Ricoeur

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Em que se torna a investiga��o filos�fica sobre o mal, quando a no��o de pecado

original deixa de ser visada como conceito, falso, e passa a ser tomada como s�mbolo

verdadeiro? Responder a esta quest�o � apreender o alcance da vis�o �tica do mal. A

vis�o �tica do mal, para Ricœur, � inaugurada, em parte, por dois grandes nomes que, de

um modo habitual, n�o associamos: Santo Agostinho e Kant. O m�todo utilizado ser� o

da pesquisa bibliogr�fica e o objetivo � mostrar como Ricoeur chega a uma filosofia da

esperan�a a partir de uma vis�o �tica do mal. Para isso, desenvolver-se-�, ao longo do

artigo, as vis�es de Agostinho e Kant, que culminar� por analisar, tamb�m, algumas

filosofias da totalidade como a de: Plotino, Spinoza e Hegel e vermos que essas cont�m

um modelo explicativo da entrada do mal no mundo, mas que n�o o explica. �

necess�rio, portanto, sondar no conceito de pecado original, “n�o a sua falsa clareza,

mas sua tenebrosa riqueza anal�gica. Sua for�a est� em remeter intencionalmente �quilo

que h� de mais radical na confiss�o dos pecados, a saber que o mal precede minha

tomada de consci�ncia, que ele � n�o-analis�vel em faltas individuais, que � a minha

impot�ncia preliminar” (CI,1978,p.258). A fim de tentar vislumbrar o pensamento a

uma filosofia da esperan�a em meio a vis�o �tica do mal.

2 -A VISÃO ÉTICA DO MAL

Santo Agostinho, ao lutar contra a doutrina dos manique�stas2, afirma que o mal

n�o � uma coisa, n�o � mat�ria, n�o � mundo3. Em suma, n�o podemos responder �

pergunta malum esse (o mal existe?), visto que n�o se pode perguntar quid malum (o

que � o mal?) somente podemos perguntar: unde malum faciamus? (de onde adv�m que

fa�amos o mal?)4. O mal, ent�o, � um nada quanto a sua subst�ncia e a sua natureza. As

2 Ver: AGUST�N, San. De Moribus Ecclesiæ et de Moribus Manichæorum. Madrid: B.A.C., 1968. E AGUST�N, San. De gratia Christi et de peccato originali. Madrid: B.A.C, 1968.3 “Em absoluto, o mal n�o existe nem para V�s [Deus] nem para as vossas criaturas” (cf. AGOSTINHO, Santo. Confiss�es, in: Os Pensadores. S�o Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 188). Martinez comenta que: “O mal no mundo � real, � ineg�vel: assim nos parece o mundo. Para descobrir este segredo, temos de precisar o que � o mal. Evidentemente, n�o � uma subst�ncia, n�o � um ser; porque neste caso a subst�ncia do mal seria incorrupt�vel ou corrupt�vel; se o primeiro, ele � uma subst�ncia sumamente boa; se o segundo, ele seria em si uma subst�ncia boa, posto que, de outro modo, n�o poderia viciar-se ou ser corrompida. Que �, afinal, o mal? Onde ele se encontra? (cf. MART�NEZ, Agust�n. San Agustín: ideario: selección y estudio. 2�ed. Buenos Aires: Espasa Calpe, 1946, p. 50).

4 “Buscava a origem do mal, mas buscava-a erroneamente. E, ainda mesmo nessa indaga��o, n�o enxergava o mal que nela havia. Obrigava a passar, ante o olhar do meu esp�rito, todas as criaturas, tudo o

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quest�es chegam a extremos doutrin�rios: de um lado, os manique�stas afirmam o mal

como natureza; de outro, Santo Agostinho cria um conceito negativo do mal, que se

oporia ao ser5.

Ricœur mostra que Santo Agostinho coloca-se em contato direto, se � que se

pode dizer o poder do nada que est� contido no mal, e a liberdade a operar na vontade;

coloca-se em contato direto com o problema, e esse contato � comprovado pelo pr�prio

Agostinho no Contra Secundinum (Contra Secundinio), quando diz: o mal � a

“inclina��o do que tem mais ser para o que tem menos ser” (CONFLITO DAS

INTERPRETAÇÕES6,p. 231); e no Contra Felicem (Contra F�lix), quando diz que se h�

penit�ncia, � que h� culpabilidade; se h� culpabilidade, � que h� vontade; se h� vontade

no pecado, n�o � a natureza que nos coage. De forma a opor no Contra Felicem

vontade-m� e natureza-m�, contudo sem sucesso, pois n�o tinha nenhum meio de

tematizar tais conceitos, n�o tinha um aparelho conceitual adequado para deles se

aproximar e estabilizar a oposi��o entre natureza e vontade. Somente poder� dispor a

remodelar certos conceitos recebidos do neo-platonismo e tomados na gama dos graus

do ser a tal ponto de fazer da liberdade poder origin�rio de dizer n�o ao ser, o poder de

“faltar” (deficere), de “declinar” (declinare), de tender para o nada (a non esse) de um

afastamento da criatura para com o Criador.

que nelas podemos ver, como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as �rvores e os animais sujeitos a morte, bem como aquilo que n�o vemos nela, como o firmamento do c�u, todos os anjos e todos os esp�ritos celestes (...). Qual a origem do mal, se Deus que � bom, fez todas as coisas? Sendo o supremo e sumo Bem, criou bens menores do que Ele; mas enfim, o Criador e as criaturas todas s�o bons. Donde, pois, vem o mal? [unde est malum?]” (cf. AGOSTINHO, Santo,Confissões,S�o Paulo: Paulus.1998. p. 176-177).5 “Afirmo que Deus todo-poderoso n�o produz de si nada que seja mal e o que � seu permanece incorrupto por haver sido engendrado de uma fonte inviol�vel. Com respeito �s demais coisas que se manifestam como contrarias neste mundo, afirmo que n�o derivam de Deus nem apareceram neste mundo como obra sua, quer dizer, que n�o t�m sua origem Nele. Isto � o que aceitamos em nossa f�: o mal � alheio a Deus” (cf. AGUSTIN, Actas del debate con Fortunato, in: Obras completas de San Agustín. Madrid: B.A.C., 1986, art. 19). E ainda, “Vi claramente que todas as coisas que se corrompem s�o boas: n�o se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se n�o fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorrupt�veis, e se n�o tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse. De fato, a corrup��o � nociva, e, se n�o diminu�sse o bem n�o seria nociva. Portanto - ou todas as coisas que se corrompem s�o privadas de algum bem. Isto n�o admite d�vida. Se, por�m, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e j� n�o pudessem ser alteradas, seriam melhores porque permaneceriam incorrupt�veis. Que maior monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder todo bem?” (cf. Confissões, 1999, p. 288).6 Cf. RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978. (Citaremos esta obra como CI).

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Agostinho � um homem que est� em constante busca por Deus, o que o coloca

em situa��o de conflito, de cora��o inquieto (Cordis inquieti), pelo qual o homem

conhece seu ser e procura a Deus e, n�o obstante, sente que foi feito para a vida no

mundo, mas n�o para este mundo7. Isto �, deve-se aspirar ao amor de Deus, pois, este �

a �nica fonte de felicidade. Entretanto, a d�vida de Agostinho era de como o homem

poderia usufruir os bens terrenos aspirando aos bens eternos8. Para resolver este

problema Agostinho se funda no eudemonismo, na finalidade �ltima que h� no homem,

que � a busca da felicidade, que para Santo Agostinho se encontra em Deus; e que a

livre vontade do homem � o sujeito da obriga��o moral. Ora, para Agostinho a vida

moral se constitui de uma seq��ncia for�osa de atos individuais de escolha, de forma

que o problema do livre arb�trio n�o est� nos bens temporais, que s�o bons, pois foram

criados por Deus, mas na forma como s�o utilizados pelo homem. Assim o problema do

mal est� no ato de liberdade do homem que prefere amar as coisas criadas (criaturas) do

que o pr�prio Deus (Criador). A isso Santo Agostinho chama de m� vontade, pecado9.

Para Agostinho o mal moral (pecado) est� na submiss�o da raz�o �s paix�es

fr�volas, ao mau desejo, pois, para o bispo de Hipona, quando a raz�o domina os

movimentos da alma, o homem � perfeitamente ordenado. Porque a submiss�o de coisas

melhores �s coisas menos boas n�o podem ser chamadas de justa ou de ordem. Isto �,

7 “Criastes-nos para V�s e o nosso cora��o vive inquieto, enquanto n�o repousar em V�s” (cf. Confiss�es, 1999, p. 37). Conforme Sciacca: “O homem est� no mundo feito para ele, por�m ele � feito para Deus, que n�o � deste mundo; � uma condi��o incomoda: n�o h� adequa��o entre ser em e o seu ser para” (cf. SCIACCA, Michele Federico. San Agust�n. Barcelona: Luis Miracle Editor, 1955, p. 394).

8 Esta tamb�m era a condi��o de d�vida do primeiro homem com diz Agostinho: “O que pode mover a vontade de nossos primeiros pais? Mas a vontade n�o fica solicitada a um determinado ato, a n�o ser por meio de algum objeto, o qual vem a perceber. E se cada pessoa tem o poder de escolher o que vai a aceitar ou rejeitar, ningu�m possui o poder de escolher ou rejeitar. Ningu�m pode determinar qual o objeto cuja vista o impressionar�. Ora, � preciso reconhecer: a alma fica impressionada pela vista de objetos, sejam superiores, sejam inferiores de tal modo que a vontade racional pode escolher entre os dois lados o que prefere. E ser� conforme o m�rito dessa escolha que se seguir� para ela o infort�nio ou a felicidade. Assim no para�so terrestre, havia como objeto percebido: vindo do lado superior, o preceito divino, e vindo do lado inferior, a sugest�o da serpente. Pois nem o que o Senhor ia prescrever, nem o que a serpente ia sugerir foi deixado ao poder do homem. Contudo ele estava certamente livre de resistir a vista das sedu��es inferiores, pois o homem tendo sido criado na sanidade da sabedoria achava-se isento de todos os liames que dificultavam a sua escolha. Podemos compreender isso pelo fato de os pr�prios insensatos chegarem a vencer-se e se elevarem at� � sabedoria, ainda que lhes seja penoso renunciar as do�uras envenenadas de seus h�bitos funestos” (O Livre-Arb�trio, 1995, p.237- 238).

9 Santo Agostinho mostra que n�o existe nada mau em si, e que o mal se segue sempre do mau uso das criaturas. “� por isso que o problema, cada vez mais circunscrito, nos conduz a reconhecer que o mal n�o se encontra nas coisas sen�o na atividade daquele que usa das coisas. Do mal moral merece propriamente o nome de mal” (cf. JOLIVET, Regis. Le probl�me du mal d’apr�s Saint Augustin, Paris: Grabriel Beauchesne et Ses Fils �diteurs, 1936, p. 63).

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quando a raz�o governa os movimentos irracionais da alma � que domina o que

verdadeiramente deve dominar, devido � virtude da lei eterna de Deus10. Neste ponto,

Agostinho se afasta do manique�smo e do neoplatonismo, que colocavam a origem do

mal na mat�ria. A primeira afirmava que o mal n�o s� existe, mas que � uma subst�ncia

corp�rea, mat�ria. O neoplatonismo nega que o mal seja em si ou que a mat�ria seja o

mal em si, j� que para o neoplatonismo tudo derivaria de um �nico Ser, o Uno. Desta

forma o mal n�o � mais que um acidente, uma defici�ncia de bem que acontece na

mat�ria. O mal, desta maneira, n�o forma um ser, mas um n�o-ser causado pela

degrada��o do bem nas sucessivas emana��es do Uno. Agostinho sugere uma resposta

na qual, submiss�o da raz�o �s paix�es propriamente, o pecado � a fonte �nica do mal, e

de si mesmo, pois o pecado resulta da m� vontade que � a soberba (tamb�m pecado) 11.

Dessa forma, o pecado � ao mesmo tempo causa e efeito do mal.

Isto significa antes de tudo que, para Agostinho, o mal � moral, pois se traduz

pela a��o culposa do homem, o pecado. Ora esse mal para o Bispo de Hipona n�o �

positivo, n�o forma uma coisa, n�o � mat�ria, mas tem causa e natureza negativa. Ora, a

causa das coisas boas � Deus, enquanto a causa do mal � a vontade criada, que escolhe

livremente afastar-se do Bem que � imut�vel e infindo. O mal � um contr�rio da ordem

estabelecida por Deus, que � buscar a Ele, para tender para o n�o-ser, para a desordem

que n�o parte sen�o de uma vontade livre12. Assim, o mal, para Agostinho, tem sua

causa na vontade. Ora, Agostinho chega, no Contra Felicem, a opor vontade m� e

10 “Por conseguinte, s� quando a raz�o domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado. Porque n�o se pode falar de ordem justa, sequer simplesmente de ordem, onde as coisas melhores est�o subordinadas �s menos boas (...). Ent�o, quando a raz�o a mente ou o esp�rito governa os movimento irracionais da alma, � que est� a dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna” (cf. O Livre-Arbítrio, 1995, p. 47).

11 “Se Deus n�o tivesse outorgado o livre-arb�trio ao homem, n�o poderia existir nenhum ju�zo justo que o castigasse, nem m�rito ao bem obrar, assim como tampouco o preceito divino de fazer penitencia pelos pecados, nem mesmo perd�o dos pecados que Deus nos tem dado por Jesus Cristo nosso senhor. Com efeito quem n�o peca livremente, n�o peca” (cf. Actas del debate con Fortunato, 1986, p. 256)12 “� bem como dizes e eu concordo em que todos os pecados encontrem-se nessa �nica categoria, a saber: cada um, ao pecar, afasta-se das coisas divinas e realmente dur�veis para se apegar as coisas mut�veis e incertas ainda que estas se encontrem perfeitamente dispostas, cada uma em sua ordem,e realizem a beleza que lhes corresponde. Contudo, � pr�prio de uma alma pervertida e desordenada escravizar-se a elas. A raz�o � que, por ordem e direito divinos, foi a alma posta � frente das coisas inferiores, para conduzir conforme o seu benepl�cito. Ao mesmo tempo, o outro problema que os nos t�nhamos proposto, ap�s a primeira quest�o: o que � proceder mal?,parece-se que j� temos resolvido com clareza, a saber: de onde vem praticarmos o mal? Se n�o me engano tal como a nossa argumenta��o mostrou, o mal moral [pecado] tem sua origem no livre-arb�trio de nossa vontade” (cf. O Livre-Arbítrio, 1995, p. 68-69).

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natureza m�, entretanto, sem sucesso, visto que, o quadro conceitual que tinha diante de

si n�o favorecia a estabilizar e inscrever a oposi��o “natureza versus vontade” numa

concep��o coerente. Para Ricœur seria necess�rio uma filosofia do agir e uma filosofia

da conting�ncia na qual estaria dito que o mal surge como um acontecimento, um salto

qualitativo. Mas o pecado configura, de fato, o salto entre o bem e o mal, uma ruptura

entre a comunidade boa e a prefer�ncia solit�ria. Nesta condi��o h� um hiato entre a

finitude e o mal n�o pode ser vencido13.

Ricœur mostra que um caminho paralelo foi posteriormente seguido por Kant no

Ensaio sobre o mal Radical, no qual elabora o quadro conceitual14 que faltou a

Agostinho. Inicialmente, leva em conta a especificidade os conceitos pr�ticos como:

vontade, arb�trio, m�xima da vontade. Kant realiza uma oposi��o entre a vontade e a

natureza esbo�ada por Agostinho. Para Kant o mal, � pensado nesse primeiro momento

como uma heteronomia da vontade15. Mais ainda, elabora a condi��o principal de uma

conceitualiza��o do mal como mal radical16, uma formaliza��o moral no Ensaio sobre o

mal radical. O mal, para Kant, n�o reside mais na sensibilidade17. Uma vez afirmado,

13 “O hiato entre a finitude e o mal seria injustific�vel por excel�ncia” (cf. RICŒUR, Paul. Lectures 2. Contrée des philosophes, Paris: Seuil,1991, p. 249).

14 “Por conseguinte, o fundamento do mal n�o poder� ser encontrado em nenhum objeto determinante do arb�trio por ina��o, nem num instinto natural, mas somente numa regra, que o arb�trio fornece a si mesmo para o uso de sua liberdade, isto �, numa m�xima” (cf. KANT, Emmanuel. A religi�o dentro dos limites da simples Raz�o. In: Os Pensadores, S�o Paulo: Editor Victor Civita, 1980, p. 274). 15 “A vontade � essencialmente boa vontade, sua lei � a pr�pria lei moral e, inversamente, a lei moral pode e n�o pode ser a lei de uma vontade livre. O mal � ent�o heteronomia, sen�o o m�ximo feito de uma vontade livre que se determina pelos movimentos sens�veis, estranhos a raz�o” (cf. REBOUL. O., Kant et le problème du mal. Montreal: Press de l’Universit� de Montr�al, 1971, p. 65).

16 A propens�o do homem para o mal “deve ser considerada como moralmente m�, por conseguinte, n�o como disposi��o da natureza, mas como algo que pode ser imputado ao homem, deve consistir, conseq�entemente, em m�ximas do arb�trio contr�rias � lei; estas, por�m, por causa da liberdade, devem ser consideradas contingentes, o que, por sua vez, n�o estaria de acordo com a universalidade deste mal se seu fundamento supremo subjetivo de todas as m�ximas n�o estivesse, de uma maneira qualquer, entrela�ado com a pr�pria humanidade e como que enraizado nela; poderemos denominar esta propens�o uma propens�o natural para o mal, e como deve ser sempre ele mesmo [o homem] culpado, um mal radical, inato natureza humana” (cf. A religião dentro dos limites da simples Razão, 1980, p. 282).

17 O fundamento do mal radical n�o pode “ser colocado, como comumente se faz, na sensibilidade do homem e nas inclina��es naturais da� derivadas. Pois n�o s� por que elas n�o t�m uma rela��o direta com o mal (muito antes com o que a inten��o moral pode provar em sua for�a, d�o ocasi�o para a virtude); assim n�o devemos ser respons�veis por sua exist�ncia (nem o podemos; por serem inatas, n�o somos n�s os autores), mas sim a propens�o para o mal, que num ente que a moralidade do sujeito, por conseguinte, � encontrado nele, como num ente que age livremente, deve poder ser-lhe imputado como sendo sua pr�pria culpa; malgrado a raiz profunda da mesma no arb�trio, contra a qual deve-se dizer que

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por Kant, que “as inclina��es naturais que resultam da sensibilidade n�o t�m rela��o

direta com o mal” (CI, p.255), este, o mal, reside em uma rela��o, ou melhor, na

subvers�o de uma rela��o. O mal, por conseguinte, � a subordi��o e aliena��o pelo

homem do puro motivo do respeito aos motivos sens�veis. Uma vez que “Kant afirma

que as inclina��es naturais que resultam da sensibilidade nem se quer tem rela��o direta

com o mal” (CI, p. 255). O mal � o que acontece quando o homem subordina e aliena o

puro motivo do respeito aos motivos sens�veis. No momento em que me imputo a

responsabilidade de um ato como se dissesse: “n�o poderia ter feito isso assim, mas de

outra maneira”, indica um ato pelo qual me responsabilizo por uma a��o passada. Essa

consci�ncia de ter podido fazer de outra maneira, entretanto, est� ligada � consci�ncia

de ter devido fazer de outra maneira: �, todavia, o reconhecimento dever ter feito de

outro modo que reconhe�o o poder fazer de outro modo o dever serve como um

detector: se me sinto, ou ao menos me creio obrigado, � porque sou um ser que pode

agir n�o somente sob o impulso, ou constrangimento do desejo, mas que posso agir sob

a condi��o de uma lei que se me apresenta. Assim Kant tem raz�o em dizer que agir

segundo uma representa��o de uma lei � diferente de agir segundo leis. E tal poder de

agir conforme a representa��o de uma lei � a vontade.

No seguimento de uma lei posso tamb�m descobrir o poder de agir contra. A

experi�ncia da confiss�o, da declara��o do mal, do pecado cometido, da culpa nos leva

a uma experi�ncia, a experi�ncia do remorso – uma experi�ncia da rela��o da liberdade

� obriga��o na qual: primeiro, reconhe�o para mim um dever, ou melhor, um poder que

corresponde a esse dever. E segundo, declaro ter agido contra a lei que me parece

obrigat�ria. � uma transgress�o. A liberdade, assim, � o poder de agir conforme a

representa��o de uma lei e de passar � obriga��o. Est� a� o que deveria ter sido feito e,

que, portanto, poderia ter feito, e a� est� o que foi feito. A imputa��o do ato �, desta

forma, qualificada moralmente pela sua rela��o ao dever e ao poder.

se encontra, por natureza, no homem (...). Para dar portanto, um fundamento do moralmente mau no homem, a sensibilidade cont�m muito pouco; pois ela torna o homem meramente bestial, ao retirar os motivos que se podem originar na liberdade; mas uma raz�o, que libera da lei moral, mas ao mesmo tempo maligna (uma vontade absolutamente maligna), conv�m, ao contr�rio, demais, porque mediante isto a o posi��o � pr�pria lei ser� elevada a motivo (pois sem qualquer motivo n�o pode ser determinado o arb�trio) e o sujeito tornar-se-ia um ente diab�lico. Nenhum dos dois � aplic�vel ao homem” (cf. A religião dentro dos limites da simples Razão, 1980, p. 283).

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Para Ricœur, em Kant aparece como uma determina��o do mal como uma

determina��o da liberdade. A determina��o do mal pode ser expressa como a invers�o

da rela��o entre m�vel e a lei no interior da m�xima de minha a��o. Desta forma, a

defini��o kantiana pode ser compreendida de maneira que: se se chama m�xima ao

enunciado pr�tico daquilo que algu�m se p�e a fazer, o mal n�o � nada em si, nem na

natureza nem na consci�ncia; sen�o uma certa rela��o invertida, ou seja, uma rela��o e

n�o uma coisa, e uma rela��o invertida, em aten��o a uma ordem de prefer�ncia e de

subordina��o indicada pela obriga��o. Esta ideia de Kant, por assim dizer, tira toda a

natureza do mal, desenraiza-o: o mal n�o s� existe apenas pelo ato de o tomar sobre si,

de o assumir, mas aquilo que o caracteriza, do ponto de vista moral, � a ordem pela qual

um agente disp�e as suas m�ximas; � uma prefer�ncia que n�o deveria existir, aquilo a

que n�s chamamos uma rela��o invertida.

Assim, a ideia kantiana da subvers�o da m�xima m� � o equivalente do esquema

b�blico do desvio. Tal como temos no mito ad�mico – oposto ao esquema �rfico da

exterioridade. Desta forma, encontra-se o equivalente racional desse esquema na id�ia

da subvers�o da m�xima, que o formaliza.

Esse formalismo, conforme Ricœur, traz consigo o beneficio de “construir o

conceito da m�xima m� como regra que o livre arb�trio forja para si pr�prio” (CI,p.

255). O mal n�o mais reside na sensibilidade na qual o mal n�o � mais aquela inclina��o

para o sens�vel e aos prazeres do ser finito, acaba-se, assim, a confus�o entre o mal e o

efetivo, o passional. O mal, por conseguinte, n�o � mais “a infra��o grosseira do dever,

mas a mal�cia que faz passar por virtude o que � a sua trai��o” (CI, p.256). O mal, por

assim dizer, do mal � a ratifica��o enganosa da m�xima pela conformidade. A

liberdade, agora, � o poder do desvio, poder de uma subvers�o da ordem; o mal para

Kant n�o � algo, mas a subvers�o da rela��o entre os motivos da a��o. O mal para Kant,

ao contr�rio de Agostinho, situa-se, n�o no sens�vel, mas no solo da raz�o. Desfazendo-

se como “algo”, como, ali�s, j� tentara, por outro lado, fazer Agostinho, o mal se torna,

em Kant, “subvers�o de uma rela��o” (CI, p.256), e isto implica que a liberdade �, por

conseguinte, esse poder de afastamento, por uma impostura, da boa m�xima. O mal n�o

� qualquer coisa, mas a subvers�o da ordem.

Para Ricœur, a clarifica��o disso se traduz por uma perda de profundidade, pois

“o pre�o da clareza � a perda da profundidade” (CI, p.256), da profundidade que

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corresponde � tenebrosa experi�ncia do mal que aflora nos mitos e nos s�mbolos

prim�rios. Ricœur ent�o encontra o que n�o � admitido na vis�o �tica do mal: a

tenebrosa experi�ncia que aflora de modo diverso na simb�lica do mal, e que constitui o

“tr�gico” da reflex�o. Sen�o, vejamos: a) ao n�vel dos s�mbolos prim�rios, Ricœur

mostrou que por meio da confiss�o dos pecados que o homem declara o mal, como j�-

a�, no qual nas�o e no qual se encontra o mal, por assim dizer, n�o analis�vel em

culpabilidades individuais e atuais; b) a experi�ncia do mal j�-a�, que suscita o ciclo dos

mitos distintos do mito ad�mico por um esquema de exterioridade, o mal � exterior ao

homem, este o j� encontra na face da terra. Esse o ciclo m�tico n�o � exclu�do no mito

ad�mico, mas como mostrou Ricœur: Ad�o � o mais velho dos homens e n�o somente o

homem exemplar, mas o anterior do mal a todos os homens, Ad�o � o primeiro a

praticar o mal. Contudo, Ad�o tem seu outro, uma figura anterior a ele, a serpente a qual

j� se encontrava a�, e bastante ardilosa. c)diante da anterioridade do mal por Ad�o e pela

serpente, “a vis�o �tica do mal s� tematizar apenas o s�mbolo do mal atual, o

‘afastamento’, o desvio ‘contingente’ (CI,p. 256). Ad�o � ent�o o arqu�tipo, o exemplar

do mal presente que repetimos e imitamos cada vez que come�amos o mal. Logo, se

continuamos o mal � necess�rio tentar dizer o mal como tradi��o, como encadeamento

hist�rico, com reino j�-a� .

Diante, ent�o, destes tr�s pontos, Ricœur nota o perigo de voltar a cair no

tenebroso la�o da gnose, pois ao introduzir um esquema de “heran�a” (de Agostinho) e

tent�-lo coordenar com o do “afastamento” (de Kant) num conceito plaus�vel, podemos

voltar a uma mitologia dogm�tica, reificando o mal numa “natureza”. Ora, foi

justamente o conceito de natureza (reifica��o do mal) posta para compensar a

contingência do mal, isto �, que os pecados s�o apenas acidentes ocorridos na vontade,

causa da liberdade do homem, portanto, n�o necess�ria, que regulou o primeiro

movimento do pensamento. Cabe agora, portanto, para Ricœur, sair deste esquema

gn�stico e pensar alguma coisa como “uma natureza do mal, uma natureza que n�o seria

natureza das coisas, mas natureza originaria do homem, mas natureza da liberdade, logo

habitus contra�do, maneira advinda de ser da liberdade” (CI, p.257). Neste ponto, �

preciso retomar Santo Agostinho e Kant, o primeiro “quando passa do mal atual ao

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pecado original”18; o segundo, quando remonta da m�xima m� do livre-arb�trio ao

fundamento de todas as m�ximas m�s.

No que diz respeito a Kant, � sabido que tentou elaborar uma dedu��o

transcendental a partir da qual o mal de natureza apresenta-se como fundamento

(possibilidade) das m�ximas m�s, de forma que a inclina��o para o mal � de car�ter

intelig�vel, e n�o sens�vel. Para mostrar isso, Ricœur utiliza-se de uma cita��o de um

trecho de A Religião nos limites da simples Razão: “Se o Dasein desse pendor pode ser

mostrado (dargetan) por meio de provas emp�ricas do conflito no tempo, a natureza

(Beschaffenheit) e o fundamento (Grund) desse pendor devem ser reconhecido a priori,

pois se trata de uma rela��o da liberdade � lei cujo conceito � sempre n�o emp�rico”

(CI,p.259). Desta forma, podemos compreender donde proceda o mal, mas “jamais

descobrir a raiz do mal na m�xima suprema do livre-arb�trio como rela��o � lei, pois se

trata de uma a��o intelig�vel que precede toda a experi�ncia ” (CI,p.259). Toda a

natureza do mal pode ser dada como nascimento, mas n�o � o nascimento sua causa. O

mal se torna advindo de uma maneira da liberdade. O mal est� a�, � anterior a mim, n�o

o podemos conhecer, somente podemos faz�-lo; � um “h�bito contra�do”, algo que ao

longo da vida o tomo para mim19. Ora, se esse “h�bito contra�do” do livre-arb�trio faz,

ou antes, fornece o s�mbolo da concilia��o da conting�ncia e da anterioridade do mal;

todavia, diferentemente da gnose, que pretende sondar a origem desse mal, Kant

reconhece que no que faz referencia a origem dessa inclina��o para o mal, “ela

permanece para n�s impenetr�vel porque deve ser imputada a n�s e porque, em

conseq��ncia, esse fundamento supremo de todas as m�ximas exigiria por sua vez a

admiss�o de uma m�xima m�” (CI,p. 259), n�o existi, assim, raz�o compreensiva para a

origem do mal. Portanto, reconhece-se que o filos�fo vai ao encontro do inescrut�vel,

do insond�vel no qual o mal come�a sempre pela liberdade j�-a�; est� para a liberdade,

em h�bito, come�o e anteced�ncia. Deste modo, em Kant h� uma transposi��o da figura

m�tica da serpente que representa o sempre a� do mal, desse mal que � come�o, isto �

determina��o da liberdade por si mesma. Ao fazer isso, Kant, como assinala Ricœur,

18 “As m�s a��es que cometemos por ignor�ncia e as boas que n�o conseguimos praticar, apesar da boa vontade, denominam-se ‘pecados’, visto tirarem sua origem daquele primeiro pecado cometido por livre vontade por Ad�o: estes n�o s�o mais que conseq��ncia daquele” (cf. O Livre-Arbítrio, 1995, p. 56).

19 “Por Propens�o (propensio) entendo o fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclina��o (apetite habitual, concupisc�ncia) enquanto contingente para a humanidade em geral” (cf. A religião dentro dos limites da simples Razão, 1980, p. 279).

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completa Agostinho, “ao destruir o envolt�rio gn�stico do conceito de pecado original”

e ao tentar uma “dedu��o transcendental do fundamento das m�ximas m�s” (CI, p. 259).

Mas, por conseguinte, “mergulha de novo no n�o saber a investiga��o de um

fundamento do fundamento” (CI,p.259). Isto �, h� um duplo movimento, no qual, ao

mesmo tempo, eleva-se o pensamento e o faz de novo cair. Por um lado, entra-se na luz,

na claridade do formalismo kantiano; por outro, perde-se na escurid�o inescrut�vel do

n�o-conhecimento, ao retomar a natureza do mal como fundamento das m�ximas m�s.

No que diz respeito a Santo Agostinho, ao elaborar o conceito de pecado

original, no �ltimo livro do De Libero Arb�trio (O Livre Arb�trio), Agostinho re�ne, em

uma no��o, como vimos, inconsistente, categorias jur�dicas e biol�gicas. Com efeito, ao

mesmo tempo em que o primeiro homem transgride uma regra (vontade20), e � julgado e

condenado; essa falta � transmitida a toda a sua gera��o. O mal n�o se torna somente

pecado de Ad�o, mas � implica uma pena imposta aos homens, seus descendentes, pelo

ato cometido21. Com isso, n�o mais seria contra Mani22 que teria que lutar, mas contra

Pel�gio H� agora, n�o mais uma id�ia do mal natureza, mas uma id�ia de “culpabilidade

de natureza”, em Santo Agostinho, pois esta � “efetiva como ato, pun�vel como um

20 “Assim Agostinho elabora uma vis�o puramente �tica do mal onde o homem � integralmente respons�vel, ele extrai de uma vis�o tr�gica onde o homem n�o � mais autor, mas v�tima de um Deus capaz de sofrer, mesmo que n�o seja cruel” (CI, p. 231).

21 “Apesar de afirmar categoricamente que o homem n�o foi programado deterministicamente nem para o bem, nem para o mal, essa parece ser uma situa��o v�lida unicamente para o primeiro homem, Ad�o, antes da queda (pecado original), momento em que gozava de perfeita ou plena liberdade. Depois da queda, perdeu tal condi��o. E mais do que isso, ele transmitiu sua natureza deca�da a seus descendentes, de modo que, quanto s�o demais homens, descendentes de Ad�o, Agostinho, admite que n�o gozam plenamente da liberdade, mas sofrem ou, pelo menos � primeira vista, parecem sofrer de uma ‘certa dose de necessitarismo’, por trazerem em si as manchas do pecado original. Nesse caso, fechando o ciclo de sua explica��o, quando, num primeiro momento, ao colocar o pecado (soberba) como causa do mal no homem, o mal aparecia como culpa (malum culp�), agora ele aparece, tamb�m, como efeito ou pena imposta aos homens descendentes de Ad�o, pelo primeiro pecado cometido por este (malum pœn�) (cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. O problema do mal na pol�mica antimaniqu�ia de Santo Agostinho, Porto Alegre: EDIPUCRS,2002. p. 345).

22 “Comparava-os [os escritos dos s�bios gregos] com os escritos de Mani, que sobre estas coisas escreveu muito, delirando sem rumo, e n�o falava em nenhuma parte sobre a raz�o dos solst�cios e dos equin�cios, nem dos eclipses das estrelas nem de outras coisas que havia lido nos livros da sabedoria deste s�culo. Contudo, ali mandavam que eu acreditasse, ainda que n�o me davam explica��o alguma daquelas doutrinas, que eu tinha bem averiguadas pelos n�meros e o testemunho de meus olhos; antes eram muito diferentes (cf. Confiss�es, 1999, p. 200). “Qual a origem do mal, se Deus, que � bom, fez todas as coisas? Sendo o supremo e sumo Bem, criou bens menores do que Ele; mas enfim, o Criador e as criaturas todas s�o bons. Donde, pois, vem o mal?” (cf. O Livre- Arb�trio,1995, p. 28). Destas duas cita��es, cf. SCIACCA, 1955, p. 1, nos diz: “Agora que ele [Agostinho] abandonou as care�as maniqu�ias, os problemas que ele herdou do manique�smo e que ele n�o tinha ainda resolvido –impossibilidade de conceber um Deus sem extens�o e uma subst�ncia corporal, explica��o da origem do mal – se p�em para ele agora em termos filos�ficos”.

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crime, embora herdado como doen�a” (CI, p. 258). A id�ia deste mal que � transmitido

� intelig�vel, mas n�o cognosc�vel. Pode a intelig�ncia criar argumentos v�lidos, mas

que s�o imposs�veis de se conhecer. Trata-se de uma racionaliza��o do tema Paulino, na

qual Deus, em seu mist�rio, escolhe uns e rejeita outros, isto faz com que a perdi��o,

mesmo da criancinha no ventre materno, seja por direito. Direito advindo da falta de

Ad�o por via de gera��o. E que a salva��o seja dada por gra�a, pela bel vontade de

Deus. Ora, a id�ia de pecado elaborado pelo Doutor da Gra�a � inconsistente, logo se

v�, enquanto mistura dois universos de discursos – o da �tica ou do direito, e o da

biologia. � tamb�m uma id�ia escandalosa enquanto � outra a id�ia de retribui��o e de

inculpa��o em massa dos homens. E id�ia irris�ria, enquanto relan�a a eterna teodic�ia ,

e seu processo de justificar Deus.

Entretanto, o que � preciso sondar no conceito de pecado original, para Ricœur,

“n�o � a sua falsa clareza, mas sua tenebrosa riqueza anal�gica. Sua for�a est� em

remeter intencionalmente �quilo que h� de mais radical na confiss�o dos pecados, a

saber que o mal precede minha tomada de consci�ncia, que ele � n�o-analis�vel em

faltas individuais, que � a minha impot�ncia preliminar” (CI,p. 258). Ora, desta forma, o

mal est� para minha liberdade, como meu nascimento est� pra minha consci�ncia atual,

a saber, sempre j� a�, de maneira que natureza e nascimento sejam conceitos anal�gicos,

e n�o te�ricos. A� est� a fun��o simb�lica do conceito: integrar o esquema de heran�a,

herdado na disputa como os maniqueus e de uma quase-natureza elaborado contra os

pelagianos. D�-se, assim, a fun��o simb�lica, por assim dizer, insubstitu�vel, do

conceito, que � integrar o esquema da heran�a ao da conting�ncia do mal. O mal a� “�

uma esp�cie de involunt�rio no seio mesmo do volunt�rio, n�o mais em face dele, mas

nele” (CI, p. 258). A confiss�o do mal � dada em outro n�vel, profundo e diferente do

arrepender-se, simplesmente, dos pecados. O mal est� em um simbolismo, e n�o na

gera��o de fato. A regenera��o �, assim, convers�o.

� neste contexto que, com Ricœur, pode-se perguntar: ser� que “toda

possibilidade de pensar estar� ent�o extinta com o n�o-saber concernente � origem do

fundamento das m�ximas m�s?” (CI, p.261) Ou, ainda, a peleja do “rigor reflexivo e a

riqueza simb�lica se findar� com a volta ao s�mbolo impenetr�vel da queda?”

(CI,p.261). Para Ricœur n�o. Contudo, abre-se um “intervalo” entre a natureza essencial

do homem e a confiss�o da conting�ncia do mal. Cabe, ent�o, perguntar se � poss�vel

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deixar lado a lado a necessidade da falibilidade, isto �, de que o homem pode ser fal�vel

e a conting�ncia do mal. � primeira vista, foi deixada de lado a dimens�o do mundo dos

s�mbolos m�ticos na qual os s�mbolos do come�o s� adquirem seu significado pleno em

rela��o aos s�mbolos do fim, isto �, purifica��o da m�cula, remiss�o dos pecados,

justifica��o do culpado, por meio de algum ritual, ou pela vinda do rei-salvador.

Conseq�entemente, os grandes mitos, conforme Ricœur, s�o mitos do come�o e do fim

(Philosophie de la Volonté 23,p. 318-321), por exemplo: o mito da cria��o babil�nico, o

Enuma Elish, que relata a vit�ria de Marduk, o mito tr�gico do Prometeu Agrilhoado,

que faz uma reconcilia��o do tr�gico pelo tr�gico, no qual Deus tentador e enganador

participa da indistin��o primordial entre o bem o mal, como o testemunha a imagem de

Zeus; os mitos �rficos que narram o p�riplo e a volta da alma exilada num corpo mau,

sendo esse ex�lio anterior a toda a apresenta��o do mal por um homem respons�vel e

livre, por fim o relato b�blico, o mito ad�mico que � balizado pela figuras do fim como:

o rei dos �ltimos tempos, o filho do homem, o segundo Ad�o de quem fala S�o Paulo,

s�o tipos do homem que “h� por vir”.

Em todos s�mbolos de ordem m�tica o sentido procede do fim para o come�o,

mas o que esse encadeamento de sentido retr�grado d� a pensar? Porventura, n�o

convidar� a passar da conting�ncia do mal a uma certa “necessidade” do mal? Para

Ricœur essa � a maior tarefa e a mais perigosa, visto que, o pensamento avan�a sobre

dois abismos: o do pensamento reflexivo sobre a alegoria e o do pensamento

especulativo sobre a gnose, como visto. Ali�s, � uma tarefa enorme porque “o

pensamento simb�lico, vai do come�o do mal ao seu fim, parece efetivamente supor a

ideia de que tudo isso tem, afinal, um sentido, de que uma figura significante desenha-se

imperiosamente atrav�s da conting�ncia do mal, em suma, de que o mal pertence a uma

certa totalidade do real. Uma certa necessidade... Uma certa totalidade.... Mas n�o

qualquer necessidade, n�o qualquer totalidade” (CI,p.261). N�o importa que

necessidade, n�o importa que totalidade o caso � que nos esquemas de necessidade,

como, por exemplo, no mito ad�mico, o necess�rio s� aparece depois, visto do fim, e,

todavia apesar da conting�ncia do mal. Um texto b�blico que demonstra isso para

Ricœur � o de S�o Paulo aos Romanos onde diz:

23 RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté. Tome II: 1.Finitude et Culpabilité 2. La Symbolique du mal, Paris: Aubier, 1988. (Citaremos esta obra como SM).

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Se pela falta de um s� todos morreram, com quanta maior profus�o a gra�a de Deus e o dom gratuito de um s� homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre todos (...). Por conseguinte, assim como pela falta de um s� resultou a condena��o de todos os homens, do mesmo modo, a obra da justi�a de um s� resultou para todos os homens justifica��o que traz a vida (...) onde avultou o pecado, a gra�a superabundou, para que, como imperou o pecado na morte, assim tamb�m imperasse a gra�a por meio da justi�a, para a vida eterna, atrav�s de Jesus Cristo, nosso senhor 24.(Rm. 5, 15;18; 20)

O pecado habita o homem. Ora a morte, castigo do pecado, entrou no mundo a

partir da falta de Ad�o. Disso Paulo conclui que o pr�prio pecado entrou na humanidade

por meio desta falta inicial, � a doutrina do pecado original. O que interessa aqui, ao

apostolo dos gentios n�o � a compara��o entre as figuras do velho Ad�o e do novo

Ad�o, tampouco a oposi��o destas, mas o paralelo e a grada��o, o progresso, a escalada

do homem em busca da justifica��o, que oferece entre a obra nefasta do primeiro ad�o e

a repara��o superabundante do segundo Ad�o, na qualidade de um novo chefe da

Humanidade, imagem pela qual Deus restaura a cria��o. Essa “superabund�ncia”

paulina se constitui uma grande tarefa ao pensamento. Ricœur diz que nenhuma grande

“filosofia da totalidade” p�de dar raz�es � inclus�o da conting�ncia do mal em um

esquema significativo e totalizador. Com efeito, ou o pensamento da necessidade do

mal deixa cair para fora a conting�ncia, como � o caso dos sistemas n�o dial�ticos de

Plotino25 e Spinoza, ou a inclui t�o bem que elimina por inteiro tanto a passagem da

inoc�ncia ao conhecimento do mal, quanto o tr�gico do mal que se precede a ele

pr�prio, como, por exemplo, o sistema dial�tico de Hegel.

No primeiro caso, onde a necessidade deixa cair para fora a conting�ncia,

Plotino e Spinoza conheceram algum dos problemas de dar raz�o a conting�ncia do mal

num plano significante, contudo sem sucesso. Para Ricœur, Plotino, “tentou, at� os seus

�ltimos tratados, dar a raz�o da ‘declina��o’ das almas fascinadas por sua pr�pria

imagem nos corpos com a necessidade de processão” (CI,p.262). A possess�o n�o �

24 Tanto o texto grego como a vers�o latina s�o bem claros quando falam de um �nico homem

25 Segundo Giovanni Reale: Plotino, fil�sofo neoplat�nico nasceu em Lic�polis em 205 d.C e faleceu em 270. Foi disc�pulo de Armonio Sardes que fundou o neoplatonismo em Alexandria. Plotino teve grande influencia sobre Agostinho de Hipona, como em outros padres da Igreja (cf.REALE, Giovanni. História da Filosofia v. I, S�o Paulo: Paulus, 1990, p. 238-250; 455)

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sen�o um desdobramento interno das riquezas “virtuais” do primeiro Princ�pio, o Uno.

A luminosidade do Uno, perpassa tudo, at� o grau mais �nfimo que � a mat�ria que n�o

� outra coisa que o oposto do Uno. H�, assim, uma hierarquia pela qual tudo deriva do

Uno que � o princ�pio de tudo. Desse princ�pio, emana uma possess�o, um segundo

estado, que � Inteligência do mundo, que nada mais � sen�o uma c�pia do uno e com ela

marca o in�cio de v�rias possess�es. Ora, a terceira possess�o para Plotino � a Alma do

mundo, o principio animador que d� vida a todos os corpos. Desta forma, o Uno, a

Inteligência e Alma do mundo correspondem a tr�s realidades transcendentais nas quais

o mal n�o tem lugar.

Entretanto, seguindo as emana��es que se dar�o pela Alma, n�o por capricho ou

vontade seus, ele engendra o ser ou a mat�ria que � o �ltimo grau de possess�o, lugar da

multiplicidade e, portanto, princ�pio, ou melhor, possibilidade do mal. Assim, a Alma,

ao se relacionar com o mundo por ela produzido, ao dar forma aos corpos, recebem

algumas de suas caracter�sticas dos seres corp�reos, como se tornar divis�vel, n�o no

sentido corp�reo, mas no sentido em que a alma que est� nos corpos ao serem divididos

tamb�m se divide, entretanto permanecendo inteira em cada um das partes divididas. De

maneira que a Alma, terceira emana��o do Uno, embora seja espiritual, est� sujeita a

corromper-se. A alma � atingida pela mat�ria, que � o mal em pot�ncia26. No sistema

plotiniano, no qual a Alma universal d� origem a mat�ria, que d� origem ao seres

corporais, sendo a ultima possess�o do Uno e, como tal, � eterna e necess�ria27, a

mat�ria sendo necess�ria e o mal provindo desta mat�ria, o mal � necess�rio28. Da� que

o mal n�o vem de n�s, mas � anterior a n�s e nos possui apesar dele. Enfim, para

Ricœur, Plotino nos velhos tratados sobre a Provid�ncia “reanima o velho tema do

logos” o qual “proclama que ordem nasce da disson�ncia e at� mesmo, que a ordem � a

raz�o da desordem” (CI,p. 262); de forma que a Provid�ncia se serve dos males que ela

26 “A mat�ria � em si m� e � o primeiro mal: a alma [...], em sua uni�o com ela torna-se m�” (cf. PLOTINO, Eneadas I, in: Colletion des Universités de France: Paris: Soci�y� d’edition “Les Belles lettres” 1932, art., 8 vers. 14).Sendo que: “Por estar sempre ligada a um corpo, isto �, � mat�ria, a alma n�o fica imune de impurezas e desordens, nesse sentido, a alma est� envolta por aquilo que vulgarmente chamamos de ‘mal’” (cf. BUSSOLA, Carlo. Plotino: A alma no tempo. Vit�ria: UFES / FCAA, 1990, p. 43). A mat�ria �, ent�o, a causa da defici�ncia da alma, ou seja, o mal.

27 “A mat�ria � necess�ria por que o Universo consta de contr�rios, e n�o poderia haver contr�rios se n�o existisse a mat�ria” (cf. FRAILE. Guillermo. História da Filosofia: Grécia y Roma. Madrid: B.A.C., 1956, p. 719).

28 “Parece que ela (a mat�ria) � movida e carregada por um poder m�gico que deu uma atra��o irresist�vel” (CI, 262).

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n�o produz. Apesar da desordem h� harm�nia. Apesar do mal, o bem prevalece. Quem

n�o v� que isso n�o � mais que uma teodic�ia?

Contudo, Ricœur diz que “a teodic�ia jamais ultrapassa o n�vel de uma ret�rica

argumentadora e persuasiva” (CI,p. 262) a qual recorre “a tantos argumentos, quanto

mais abundantes que carecem, cada um deles, de for�a” (CI,p.262). Com isso, o

pensamento chegado a tal ponto pode dizer que por que existe ordem existe desordem e,

assim, reduzir a problem�tica do mal a um jogo de luzes e de sombra, por assim dizer

uma “est�tica da discord�ncia”. “Tal � a m� f� da teodic�ia: ela n�o triunfa sobre o mal

real, mas somente sobre seu fantasma est�tico” (CI,p.261), numa ordem de harm�nicos

de ordem e desordem.

Tal argumenta��o suspeita da teodic�ia � renunciada, mais tarde, por Spinoza.

Conforme Ricœur, em uma filosofia n�o dial�tica da necessidade, como a de Spinoza,

“h� lugar para os modos infinitos, certamente, mas n�o para o mal que � uma ilus�o que

procede da ignor�ncia de todos” (CI,p.263). Os modos infinitos s�o sensa��es da

subst�ncia, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual � concebido. Para

Spinoza os modos n�o existem sem os atributos, isto �, o que o intelecto percebe da

substancia (Deus = Subst�ncia). De forma que tudo quanto existe � determinado pela

natureza de Deus, que � necess�rio29 e nada pode existir sem que venha desse ser

necess�rio; portanto, tudo mais � contingente. O mal s� pode ser contingente, portanto

s� poder� ser reconhecido dentro de uma vis�o �tica do mal. Todavia, n�o � conservada

nessa mais � dissipada como ilus�o de n�o poder conhecer a sua causa.

Por conseguinte, Ricœur pergunta: “uma filosofia da dial�tica da necessidade

far� mais justi�a, se podemos dizer assim, ao tr�gico do mal?” (CI,p. 263). Sem d�vida,

responde ele. Entretanto, � esse “sem d�vida” e pela mesma raz�o que uma filosofia

como a de Hegel representa ao mesmo tempo a maior tentativa de explicar o tr�gico do

mal, como a maior tenta��o. Porque o mal se instala ao mesmo tempo em que a hist�ria

das figuras do Esp�rito30. Ora, em Hegel o mal � tanto conservado como ultrapassado.

Conservado no momento em que reside no reconhecimento das consci�ncias.

29 “Esse � o ponto fundamental a considerar para se compreender Spinoza: a ‘necessidade’ � apresentada como solu��o de todos os problemas” (cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia, v. II, S�o Paulo: Paulus,1990, p. 417).

30 Cf. HEGEL,G.W.F., A boa consci�ncia A bela alma, o mal e o seu perd�o, in: Fenomenologia do Espírito. Parte II. Petr�polis: Editora Vozes, 1988, p. 119-142.

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Ultrapassado no �mbito que � por essa luta de consci�ncias que posso ter a cis�o entre

consci�ncia julgadora e consci�ncia culpada. H� de se notar que o mal ao ser integrado

na Fenomenologia do Esp�rito n�o o � mais como mal, por�m como contradi��o, a

negatividade hegeliana. Essa negatividade, diz Ricœur citando Kierkegaard, � o maître

Jacques do hegelianismo, pois “a negatividade significa ao mesmo tempo a invers�o do

singular no universal” (CI,p. 263), isto �, oposi��o entre interior e exterior na for�a, na

morte, na falta. Todas as negatividades, por assim dizer, est�o atadas na negatividade.

Em um cap�tulo da Fenomenologia do Espírito intitulado, “O mal e seu perd�o”, Hegel,

diz Ricœur, n�o deixa d�vida de que a “remiss�o j� � reconcilia��o no saber absoluto

pela passagem de um contr�rio a outro, da singularidade � universalidade da consci�ncia

julgada e reciprocamente31” (CI,p. 263). O perd�o, a saber, � a pr�pria destrui��o do

ju�zo32. Um certo esquema significativo, que adquire um saber absoluto sem restos, com

o pre�o de eliminar o hiato entre o mal que se p�e e o tr�gico do mal que j� est� a�, e

assim liquidar o injustific�vel do mal e a gratuidade da reconcilia��o por meio de uma

dissolu��o do perd�o dos pecados em uma reconcilia��o filos�fica. O perd�o � tal que

destr�i o ju�zo o qual � uma categoria do mal e n�o da salva��o. Como em S�o Paulo,

diz Ricœur “a pr�pria lei � julgada. Mas ao mesmo tempo, o s�mbolo da remiss�o dos

pecados � perdido, pois o mal � menos ‘perdoado’ do que ‘superado’” (CI,p.263); ele

desaparece nesta reconcilia��o33. Ao mesmo tempo, o que podemos chamar de acento

31 “O mal se confessa, de fato, como mal pela afirma��o de que opera segundo sua interior lei e boa-consci�ncia, em oposi��o ao universal reconhecido. Com efeito, se essa lei e boa-consci�ncia n�o fosse a lei de sua singularidade e arbitrariedade, n�o seria algo de interior, de pr�prio; mas o universalmente reconhecido, portanto, quem diz de fato que age contra os outros segundo sua lei e boa-consci�ncia, diz de fato que os maltrata. Contudo, a boa-consci�ncia efetiva n�o � esse persistir no saber-e-querer, que se op�e ao universal; mas o universal � o elemento de seu ser a� e sua linguagem exprime seu agir com o dever reconhecido” (Fenomenologia do Espírito, 1988, p. 136).

32 “O perd�o, que concede � primeira [consci�ncia], � a ren�ncia a si mesma, - � sua ess�ncia inefetiva, � qual equipara a outra consci�ncia que era o agir efetivo. [Agora] reconhece com bem o que era chamado mal, pela determina��o que o agir recebia no pensamento; ou melhor dito, abandona [tanto] essa diferen�a do pensamento determinado como seu ju�zo determinante para-si-essente, assim como a outra consci�ncia abandona o determinar, para-si-essente, da a��o. A palavra da reconcilia��o � o esp�rito a�-essente, que contempla o puro saber de si mesmo, como da ess�ncia universal em seu contr�rio, - no puro saber de si como singularidade absolutamente essente dentro de si: um rec�proco reconhecer, que � o esp�rito absoluto” (cf. Fenomenologia do Espírito, 1988, p. 141).

33 “El paso Del pecado a la justicia lo describe asi ela apostol, contraponiendo a justificacion a la condenacion fulminada por el pecado de Ad�n: Y no como por uno que pecó así fué el don; porque la sentencia, arrancando de no solo, remata en condenación; mas el don, partiendo de muchas ofensas, se resuelve en justificación (5,16). M�s comprensica es esta outra formula: La ley del Espiritu [que lo es de la justicia y] de la vida, en Cristo Jesús, me libertó de la ley [de la carne, que lo es] del pecado y de la muerte (8,2)” (cf. BOVER. J. M., Teologia de San Pablo. Madrid: B.A.C., 1956. p. 731).

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tr�gico se desloca do mal moral para o movimento de exterioriza��o, de elocu��o

(aliena��o) do pr�prio Esp�rito, visto que acontece na totalidade da hist�ria humana, que

� uma revela��o de Deus, que o infinito assume o mal da finitude, como esclarece

Ricœur, com uma nota de J.Hyppolite: “Toda essa longa hist�ria de erros que o

desenvolvimento humano exibe e que a fenomenologia reconstr�i � efetivamente uma

queda, mas � preciso aprender que essa queda faz parte do pr�prio absoluto, que ela �

um momento da verdade total”34 (CI, 263-264). Essa maneira de ver a queda por parte

de Hegel � apelidado por Ricœur de “pantragicismo”, isto �, replica da dissolu��o da

vis�o �tica do mundo consumada em saber absoluto, vista a transposi��o da remiss�o

dos pecados em reconcilia��o filos�fica. Nada restando da gratuidade da reconcilia��o,

tampouco do injustific�vel do mal.

3- CONCLUSÃO

Fracassadas as necessidades n�o-dial�tica do mal de Plotino e Spinoza e da

dial�tica de Hegel, Ricœur pergunta se a resposta, inteligibilidade simb�lica, n�o estar�

do lado de uma hist�ria dotada de sentido de prefer�ncia a busc�-la numa l�gica do ser?

Pois n�o ser� exclusiva, do movimento que vai da queda � perfei��o, uma l�gica, seja

dial�tica ou n�o? Ou mais, ser� poss�vel “conceber um vir-a-ser do ser onde o tr�gico do

mal” seria ao mesmo tempo reconhecido e superado? Ricœur, depois de colocadas essas

quest�es, diz n�o estar em estado de respond�-las. Entretanto, antev� a dire��o para a

poss�vel medita��o delas: Primeiro, “a reconcilia��o � aguardada a despeito do mal”

(CI,p. 264), isto �, a reconcilia��o � atingida apesar do mal. Ora, o apesar do mal �,

todavia, uma verdadeira categoria da esperan�a, do desmentido. Contudo, n�o h�

provas disso, mas somente sinais no quais o meio ou lugar de implanta��o desta

categoria �, sem d�vida, a hist�ria e n�o um sistema ou uma l�gica, uma escatologia.

Segundo, esse “apesar de” � um “gra�as a”; com o mal, o Princ�pio das coisas faz o

bem. Ora o desmentido � tal pedagogia escondida que faz Agostinho dizer etiam pecata,

por�m pecado. Todavia, n�o h� saber absoluto nem “apesar de”, nem tampouco “gra�as

a”. Terceiro e �ltimo, a hist�ria dotada de sentido da superabund�ncia paulina engloba o

“apesar de” e o “gra�as a” e � justamente o que constitui o milagre do cosmo, donde

procede um movimento retr�grado em busca do verdadeiro, no qual da maravilha “onde

abundou o pecado...” nasce a necessidade que coloca o mal na luz do ser. Por

34 Esse trecho � do livro citado por Ricœur no texto em o Conflito das Interpreta��es, 1978, p. 255: HYPPOLITE,J.,G�nese et Struture de la Ph�nom�nologie de l’esprit, p. 509.

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conseguinte, o que na teodic�ia era apenas um falso saber � tornado setor da esperan�a.

A necessidade do mal �, pois, ent�o, o mais alto s�mbolo racional que a intelig�ncia da

esperan�a forma35.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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35 Registra-se um coment�rio oral do professor Abrah�o Costa Andrade: “Logo se percebe que a rela��o entre s�mbolo e pensamento n�o � puramente te�rica, mas diz respeito a uma filosofia que, ao aproxim�-los, prepara-se para ir al�m de si e cingir o mundo com a possibilidade de transform�-lo, tanto quanto aos homens que nele habitam”.