introdução à hermenêutica de paul ricoeur
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INTRODUO HERMENUTICA DE PAUL RICOEUR
MARIA DE JESUS MARTINS DA FONSECA
Nota de Abertura H muito tempo que tnhamos a inteno de realizar este trabalho, retomando um tema que,
desde os bancos da Universidade, ficou de ser aprofundado pelo interesse que ento nos despertou.
Naquela altura, a disciplina de Hermenutica tinha sido introduzida no plano curricular do curso h pouco
tempo e a temtica constitua uma novidade. Ao tempo, tambm ainda no existiam tradues publicadas
em portugus da obra de Ricoeur, embora isso no constitusse problema, porquanto as obras estavam
acessveis nas livrarias, na lngua original em que foram publicadas, por um lado, e, por outro, porque,
mesmo que existissem tradues portuguesas, sempre os professores nos instavam a ler na lngua original
em que a obra fora publicada, pelos claros benefcios que a prtica implicava, quer a nvel do domnio
dessas lnguas estrangeiras, quer a nvel da compreenso do texto. Tambm no existia, na altura,
bibliografia significativa na rea em causa, e a pouca que havia encontrava-se na lngua original em que
tinha sido publicada, ou em tradues, elas tambm, em lngua estrangeira, bem ainda como no existia o
conjunto de estudos hoje disponveis, inclusive em Portugal, no s sobre a temtica hermenutica em
geral, como, especificamente, sobre Ricoeur e o seu pensamento.
Por algumas das razes acima expostas, no se estranhe, pois, que tenhamos optado neste artigo
por manter as citaes na lngua original. Tambm no se estranhe o facto de termos optado neste texto
por apresentar abundantes citaes do autor, o que corresponde a uma inteno deliberada de ilustrar o
pensamento do autor pelo prprio autor, no sentido de dar a voz ao prprio Ricoeur, em discurso directo e
original, e de modo a que seja ele a apresentar-se e a representar-se a si prprio.
Surgiu agora a oportunidade de realizar esse projecto antigo, mas, como sempre, a ambio
inicial ficou aqum da realizao. Era nosso desejo tecer uma breve histria da hermenutica, assim como
projectvamos referir-nos a outros conceitos chave, que permitiriam uma melhor e mais profunda
compreenso do pensamento de RICOEUR. Contudo, constrangimentos vrios, sobretudo de tempo,
impediram-nos de cumprir esse iderio inicial que, num acto de boa vontade, nos propusemos.
Finalmente, no podemos nem queremos deixar de relembrar, aqui e agora, o nosso saudoso
Professor Miguel Baptista Pereira (1929-2007). Foi nosso professor de Hermenutica e de Antropologia
Filosfica e ainda de Seminrio. Pela sua mo e com a sua orientao e sabedoria, h muitos anos, pela
primeira vez, nos foi proporcionado o acesso e a chave de entrada ao pensamento de Ricoeur, como, alis,
ao de muitos outros filsofos, desde os antigos, aos modernos e aos contemporneos. O seu domnio da
histria da filosofia, a sua capacidade de nos fazer perceber a contemporaneidade e actualidade das
filosofias e dos filsofos, por muito antigos que fossem, bem como a extraordinria clareza do seu
pensamento, da sua linguagem e da sua transmisso, foram sempre traos marcantes da sua aco como
professor. Por isso as suas aulas no eram interrompidas, com dvidas ou questes, no porque a isso no
instasse os seus alunos, mas porque a sua clareza e sabedoria, a sua extraordinria capacidade de
relacionar tudo com tudo e de nos tornar evidentes essas relaes, deixando-nos atnitos e maravilhados,
no permitiam dvidas nem justificavam qualquer suprflua questo. Depois tambm porque o seu
discurso e a sua fala nos mantinham permanente e profundamente interessados, ainda que a aula durasse
trs ou mais horas, como se estivssemos em estado de encantamento e encantados. Porque de facto
estvamos encantados, extasiados, pasmados, mas a perceber e a entender tudo o que nos era dito. Era um
professor nato. Com ele aprendemos a pensar filosfica e criticamente o mundo, a vida, o homem, a
Professora Adjunta da Escola Superior de Educao do Instituto Politcnico de Viseu.
experincia, o tempo e a histria, mas tambm o amor e a morte, e a ns prprios enquanto imersos no
mundo e na vida. Era tambm um homem muito atento e preocupado com a anlise crtica do presente, a
partir dele reavaliando o passado e buscando a prefigurao do futuro. Com ele pudemos conhecer, antes
de se tornarem moda e conhecidos em Portugal, filsofos como Gadamer, Adorno, Apel, Hannah Arendt,
Ricoeur, Deleuze, Foucault, Habermas ou Derrida.
Honramos a sua memria e assim lhe prestamos a nossa merecida homenagem.
PRIMEIRA PARTE Uma viso geral do pensamento de Paul Ricoeur PAUL RICOEUR (1913-2005) , sem dvida, um dos filsofos mais importantes do sculo XX
e, portanto, da nossa contemporaneidade. Autor de uma vastssima obra, grande parte da qual se encontra
hoje acessvel em Portugal, ainda que nem toda traduzida e publicada em lngua portuguesa, um
pensador de um flego invulgar e to complexo quanto profundo.
No fcil aceder ao seu pensamento que, alis, foi um pensamento sempre em evoluo e
movimento. Por isso, o prprio Ricoeur nunca d da sua obra uma viso unitria e sistematizada,
considerando o seu pensamento como uma sistematicidade fracturada sistematicit brise. A sua
extensa obra, (mais de 500 ttulos em artigos, conferncias, colquios, mesas redondas, actas e
entrevistas, algumas tradues, meia centena de prefcios a obras de outros autores e mais de 20
monografias, a maior parte das quais de sua autoria, algumas em co-autoria), caracteriza-se no s pela
diversidade dos temas, como tambm pelo retorno sucessivo (um eterno retorno) a esses mesmos temas.
Da que retoma incessantemente os mesmos problemas, muitas vezes sob o mesmo ponto de vista, num
claro esforo do seu aprofundamento e sempre em vista da sua uma melhor compreenso, como alis
advoga a sua hermenutica, mas tambm porque no raro ficarmos impressionados com a repetio,
quase ipsis verbis, das mesmas ideias, como o caso de alguns passos das duas obras que mais
trabalhmos neste estudo, O Conflito das Interpretaes e Da Interpretao: Ensaio sobre Freud.
Seja como for, impossvel escamotear a riqueza, o aspecto multifacetado e a densidade de um
pensamento como o que nos presente, pelo vontade com que se se move em campos to diversos
como a fenomenologia, o existencialismo, a psicanlise, a filosofia reflexiva, o estruturalismo, a filosofia
analtica, a semiologia e a lingustica ou a semntica e a hermenutica, entre outras.
Trata-se, portanto, de uma obra viva, aberta e no mumificada ou fechada dentro de si mesma,
mas de uma obra que quer compreender e se quer compreender pela mediao de outros, como, alis, o
exige a sua proposta hermenutica. Se a questo hermenutica , de resto, a sua preocupao central
durante a maior parte da sua vida e, por isso tambm, grande parte da sua obra lhe dedicada e se se
trata de dilucidar o problema filosfico da compreenso hermenutica, isso s possvel atravs da
mediao, na convico de Ricoeur, mediao essa proporcionada por todos os campos atrs referidos.
que no h compreenso e, consequentemente, interpretao sem mediao. A mediao condio de
possibilidade da compreenso e da interpretao. Por isso, a sua obra se caracteriza pelo dilogo
constante, atento e vivo, aberto e crtico, que mantm com todos os ramos do saber dentro das chamadas
Cincias Humanas e, assim, todo esse dilogo, indispensvel e imprescindvel pela mediao que
possibilita, se encontra subordinado questo central que a questo hermenutica e em vista da mesma
questo hermenutica.
Por todas estas razes, a entrada no pensamento de Ricoeur no fcil, porque constantemente
apela nossa meditao e ao nosso contnuo esforo, empenhamento e participao na sua compreenso.
neste contexto que se pode compreender o objectivo deste trabalho: aceder compreenso da
hermenutica de Paul Ricoeur e possibilitar a nossa prpria compreenso desse pensamento e do que ele
nos diz. De facto, no tanto o dizer (porque o dizer desvanece-se no prprio instante em que se acaba de dizer e mal acaba de se dizer), antes aquilo que o dizer implica, a saber, o que dito, o que se diz, o dito do dizer, ou, como melhor diz o francs, le dit du dire (porque o dito, esse subsiste), e precisamente
isso que nos interessa compreender, para melhor nos compreendermos como homens, atravs dessas
indispensveis mediaes que o prprio RICOEUR tanto acentuou do texto ou, em geral, do outro,
daquilo que outro face a ns, do qual o texto s uma metfora ou um modelo exemplar. S assim nos
compreenderemos como homens, pois h muito que perdemos a iluso de, fechados dentro de ns,
solipsistas, mumificados, estticos, mortos, nos podermos conhecer e compreender na nossa humanidade.
Ora estamos e somos vivos e no queremos, meramente, que a vida e o tempo passem por ns, no
queremos limitar-nos a estar na vida e no tempo como objectos mortos, ns queremos viver a prpria vida
e o prprio tempo. Por isso, somos ex-sistncia. E viver a vida e o tempo viver em o mundo, no
mundo e com o mundo, mas tambm com os outros. E essencialmente atravs deles, da nossa inter-
relao ao mundo e aos outros e da inter-relao do mundo e dos outros a ns, atravs desta contnua
dialctica de vai-e-vem, que nos compreenderemos a ns prprios, j que somos seres-no-mundo e seres-
com-outros.
A hermenutica de Ricoeur no consiste tanto na construo/captao do sentido dos smbolos,
dos mitos e