ricoeur leitor de freud

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Doutorando em Filosofia - UNICAMP. Bolsista da CAPES PDSE (EHESS/França). Professor de Filosofia da UFMS. RICOEUR LEITOR DE FREUD: NOTAS SOBRE A QUESTÃO DO SUJEITO EM FREUD Weiny César Freitas Pinto Resumo: O artigo detém-se a um ponto específico da leitura que o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) fez da Psicanálise freudiana em seu De l’interprétation – essai sur Freud (1965): a sua análise da questão do sujeito em Freud. Nossa hipótese é que há, em sentido geral, pelo menos dois aspectos fundamentais da análise que Ricoeur apresenta de Freud acerca da questão da subjetividade: o primeiro se refere à identificação da teoria psicanalítica como um discurso sobre o sujeito. Neste aspecto, a tese ricoeuriana é que a Psicanálise de Freud possui um discurso próprio sobre a subjetividade. O segundo trata da concepção deste sujeito do qual nos fala este discurso próprio da Psicanálise. Já aqui, a tese de Ricoeur é que a subjetividade em Freud é sempre aquela que não se crê, uma espécie de subjetividade às avessas, em nossos próprios termos. A fim de avaliar a hipótese que propomos, seguiremos a argumentação ricoeuriana a partir das noções de dialética do freudismoe de “estrutura de acolhida filosófica da Psicanálisea Fenomenologia de Husserl e o conceito de “arqueologia do sujeito” para argumentar que a leitura que Ricoeur faz de Freud sobre a questão da subjetividade nos coloca diante de uma espécie sui generis de teoria do sujeito. Esta tese extrai do trabalho do filósofo sobre a Psicanálise, a sua contribuição, talvez, a mais decisiva: estaria Ricoeur, por meio do freudismo, nos falando de uma nova teoria da subjetividade? Ao que tudo indica, sim. Mas, nesse caso, de que sujeito, exatamente, se trata? De que subjetividade nos fala Ricoeur, leitor de Freud? Como se dá a constituição deste sujeito, quais suas características e o que, afinal, o torna, de forma efetiva, possível? É com o intuito de, pelo menos inicialmente, responder a essas questões que o presente artigo irá, portanto, apresentar algumas notas gerais sobre a questão do sujeito em Freud a partir da leitura ricoeuriana do freudismo. Palavras-chave: Filosofia, Psicanálise, Subjetividade. Abstract: The article focuses on a specific point of the reading that the french philosopher Paul Ricoeur (1913- 2005) did on freudian Psychoanalysis in his De l'interprétation essai sur Freud (1965): its analysis on the issue of the subject in Freud. Our hypothesis is that there is, in a general sense, at least two fundamental aspects in the Ricoeur’s analysis on Freud, regarding the subjectivity: the first refers to the identification of psychoanalytic theory as a discourse on the subject, in this respect, the Ricoeur’s thesis is that Freud's Psychoanalysis himself has a proper speech on subjectivity; the second deals with the concept of this subject about which, supposedly, tells the discourse which is proper of the Psychoanalysis; whereas here, Ricoeur's thesis is that subjectivity in Freud is always the one that does not believe, a kind of “subjectivity in reverse” on our own terms. In order to evaluate the hypothesis that we propose, we argue from the dialectic of freudianism and the structure of philosophical acceptance of Psychoanalysis: the Phenomenology of Husserl and the concept of “archeology of the subject”, which Ricoeur’s reading on Freud on the issue of subjectivity puts us forth a kind of a sui generis theory of the subject. This thesis extracts from the philosopher's work on Psychoanalysis, perhaps, its most decisive contribution: would Ricoeur, through freudianism, speaking to us about a new theory of subjectivity? Apparently, yes. In this case, what kind of subject is, precisely, it? What kind of subjectivity is Ricoeur talking about as a Freud reader? How is the constitution of this subject, what are their characteristics, which, after all, makes it effectively possible? It is with this intention of, at least initially, to answer these questions that this article will, therefore, present some general notes on the question about the subject in Freud, from Ricoeur’s reading about the freudianism. Key words: Philosophy, Psychoanalysis, Subjectivity.

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Leitura do hermenêuta P. Ricoeur a respeito de alguns elementos da Psicanálise de Freud.

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  • Doutorando em Filosofia - UNICAMP. Bolsista da CAPES PDSE (EHESS/Frana). Professor de

    Filosofia da UFMS.

    RICOEUR LEITOR DE FREUD: NOTAS SOBRE A QUESTO DO

    SUJEITO EM FREUD

    Weiny Csar Freitas Pinto

    Resumo:

    O artigo detm-se a um ponto especfico da leitura que o filsofo francs Paul Ricoeur (1913-2005) fez da

    Psicanlise freudiana em seu De linterprtation essai sur Freud (1965): a sua anlise da questo do sujeito em Freud. Nossa hiptese que h, em sentido geral, pelo menos dois aspectos fundamentais da

    anlise que Ricoeur apresenta de Freud acerca da questo da subjetividade: o primeiro se refere

    identificao da teoria psicanaltica como um discurso sobre o sujeito. Neste aspecto, a tese ricoeuriana

    que a Psicanlise de Freud possui um discurso prprio sobre a subjetividade. O segundo trata da

    concepo deste sujeito do qual nos fala este discurso prprio da Psicanlise. J aqui, a tese de Ricoeur

    que a subjetividade em Freud sempre aquela que no se cr, uma espcie de subjetividade s avessas,

    em nossos prprios termos. A fim de avaliar a hiptese que propomos, seguiremos a argumentao

    ricoeuriana a partir das noes de dialtica do freudismo e de estrutura de acolhida filosfica da Psicanlise a Fenomenologia de Husserl e o conceito de arqueologia do sujeito para argumentar que a leitura que Ricoeur faz de Freud sobre a questo da subjetividade nos coloca diante de uma espcie

    sui generis de teoria do sujeito. Esta tese extrai do trabalho do filsofo sobre a Psicanlise, a sua

    contribuio, talvez, a mais decisiva: estaria Ricoeur, por meio do freudismo, nos falando de uma nova

    teoria da subjetividade? Ao que tudo indica, sim. Mas, nesse caso, de que sujeito, exatamente, se trata?

    De que subjetividade nos fala Ricoeur, leitor de Freud? Como se d a constituio deste sujeito, quais

    suas caractersticas e o que, afinal, o torna, de forma efetiva, possvel? com o intuito de, pelo menos

    inicialmente, responder a essas questes que o presente artigo ir, portanto, apresentar algumas notas

    gerais sobre a questo do sujeito em Freud a partir da leitura ricoeuriana do freudismo.

    Palavras-chave:

    Filosofia, Psicanlise, Subjetividade.

    Abstract: The article focuses on a specific point of the reading that the french philosopher Paul Ricoeur (1913-

    2005) did on freudian Psychoanalysis in his De l'interprtation essai sur Freud (1965): its analysis on the issue of the subject in Freud. Our hypothesis is that there is, in a general sense, at least two

    fundamental aspects in the Ricoeurs analysis on Freud, regarding the subjectivity: the first refers to the identification of psychoanalytic theory as a discourse on the subject, in this respect, the Ricoeurs thesis is that Freud's Psychoanalysis himself has a proper speech on subjectivity; the second deals with the

    concept of this subject about which, supposedly, tells the discourse which is proper of the

    Psychoanalysis; whereas here, Ricoeur's thesis is that subjectivity in Freud is always the one that does

    not believe, a kind of subjectivity in reverse on our own terms. In order to evaluate the hypothesis that we propose, we argue from the dialectic of freudianism and the structure of philosophical acceptance of

    Psychoanalysis: the Phenomenology of Husserl and the concept of archeology of the subject, which Ricoeurs reading on Freud on the issue of subjectivity puts us forth a kind of a sui generis theory of the subject. This thesis extracts from the philosopher's work on Psychoanalysis, perhaps, its most decisive

    contribution: would Ricoeur, through freudianism, speaking to us about a new theory of subjectivity?

    Apparently, yes. In this case, what kind of subject is, precisely, it? What kind of subjectivity is Ricoeur

    talking about as a Freud reader? How is the constitution of this subject, what are their characteristics,

    which, after all, makes it effectively possible? It is with this intention of, at least initially, to answer these

    questions that this article will, therefore, present some general notes on the question about the subject in

    Freud, from Ricoeurs reading about the freudianism.

    Key words:

    Philosophy, Psychoanalysis, Subjectivity.

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    Introduo

    Autor de uma obra to extensa quanto diversa, Paul Ricoeur registrou em

    sua trajetria filosfica uma fecunda interlocuo com o pensamento de Freud. O livro

    De linterprtation essai sur Freud, publicao de 1965, , certamente, o ponto mais

    evidente desse registro 1.

    Entre os vrios temas e problemas abordados no texto sobre o freudismo,

    modo como o prprio Ricoeur designa o pensamento freudiano, o filsofo, na parte final

    do trabalho, apresenta, explicitamente, sua anlise sobre a questo do sujeito em Freud.

    Em tese, segundo Ricoeur, a Psicanlise freudiana , sim, portadora de um discurso

    sobre a subjetividade, embora, o sujeito em Freud seja aquele que jamais cr em si

    mesmo.

    A anlise desta tese, cujo o contedo principal a concepo de sujeito

    oriunda da leitura ricoeuriana da Psicanlise de Freud, constitui-se, como sendo o

    objetivo principal deste artigo. No final, algumas observaes gerais notas sobre a

    questo do sujeito daro termo ao nosso trabalho.

    1. Subjetividade, Filosofia e Psicanlise

    O tema do sujeito , por si s, objeto de alta relevncia filosfica. Retom-lo

    a partir do quadro terico da Psicanlise de Freud tambm o , e a principal razo disso

    est no fato de que, entre as vrias tradies conceituais da histria da filosofia que

    foram tocadas pela peste freudiana, aquela que se desenvolveu em torno do conceito

    de subjetividade, o foi de maneira emblemtica:

    A incidncia da Psicanlise no discurso filosfico interpelou este numa tradio terica

    muito especial, a qual se centrava fundamentalmente na concepo de sujeito. Com efeito, a

    filosofia do sujeito foi questionada pela Psicanlise (...) na medida em que para ela o sujeito

    estaria sempre inscrito no campo da conscincia e se enunciava no registro do eu, enquanto

    a Psicanlise formulou o descentramento do sujeito em ambos os registros citados. (...)

    (BIRMAN: 2003, 8. Grifo do autor).

    1 O ponto mais evidente, mas no o nico. Sobre a permanncia e alcance da presena de Freud no

    conjunto da obra de Ricoeur, ver Busacchi (2010); este autor defende que a confrontao de Ricoeur

    com o pensamento freudiano atravessa toda a obra ricoeuriana. Tambm Porr (2009) defende a

    mesma ideia chamando a ateno para o fato de que, no somente a Psicanlise de Freud, mas tambm

    a de Heinz Kohut (1913-1981) se faz sentir significativamente na obra ricoeuriana a partir dos anos

    oitenta.

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    , sobretudo, a partir desse registro que o tema do sujeito freudiano passa

    a ser um problema relevantemente filosfico. E, embora haja numerosos trabalhos sobre

    o assunto, saber, exatamente, de qu subjetividade, afinal, nos fala a Psicanlise de

    Freud , em nossa opinio, uma tarefa ainda a ser realizada. Neste ponto, portanto,

    concordamos integralmente com Monzani (1991, 136):

    (...) Quem estudou seriamente a obra de Freud sabe perfeitamente que o conceito, ou

    melhor, a concepo de sujeito sofreu, nas suas mos, uma transformao de monta. Mas o

    que significou isso? Destronamento do cogito e de seus privilgios? Em certa medida, sim.

    Ponto final e definitivo nas filosofias da conscincia? Problemtico, j que o prprio Freud afirmava que a conscincia o nosso nico farol nas trevas da psicologia profunda.

    Isso sem falar no famoso adgio. Wo es war, soll ich werden. Descentramento radical do

    sujeito e determinao pela instncia do outro? Com certeza, sim. Mas o que significa exatamente isso? Qual o sentido dessa transformao e quais suas consequncias? A bem

    da verdade, ainda no sabemos direito (...).

    Nesse sentido, se a Psicanlise de Freud foi capaz de questionar com tanta

    radicalidade um conceito to importante tradio filosfica como o conceito de

    subjetividade, j no mais possvel, sob qualquer que seja o pretexto, que o discurso

    filosfico simplesmente ignore a teoria psicanaltica. Ao que tudo indica, subjetividade,

    filosofia e psicanlise parecem, ento, compor um programa de pesquisa no qual ainda

    h muito por fazer e , por esta e por outras razes, que Freud, sem dvida, (...)

    continua sendo, para ns, filsofos, um interlocutor imprescindvel e provocador

    (MATTEO: 2002, 19).

    Paul Ricoeur, enquanto filsofo, parece ter entendido bem este quadro e,

    definitivamente, no se furtou provocao freudiana; se empenhou na compreenso do

    freudismo e tornou-se um exmio leitor de Freud.

    2. Ricoeur leitor de Freud

    Em 1965, Paul Ricoeur publicou o texto De linterprtation essai sur

    Freud2. A obra, j quase cinquentenria, bastante extensa e divide-se em trs livros:

    Problemtica3, Analtica4 e Dialtica5. Ela composta por trs conferncias

    2 Por razes didticas, mencionarei esta obra partir daqui somente como: De linterprtation. 3 Dividido em trs captulos. 4 Dividido em trs partes, somando nove captulos. 5 Dividido em quatro captulos.

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    realizadas na Universidade de Yale (EUA), em 1961, e oito na Universidade de Louvain

    (Blgica) nos anos posteriores. No total, Ricoeur dedicou-se, pelo menos, cinco anos ao

    estudo sistemtico dos textos de Freud.

    Em termos gerais, o objetivo do De linterprtation a criao de uma

    interpretao filosfica de Freud. Ricoeur busca no freudismo o sentido filosfico da

    Psicanlise e, ao faz-lo, se mostra a um leitor minucioso dos textos freudianos,

    proporcionando-nos, assim, um amplo e aprofundado estudo sobre a Psicanlise.

    Em termos mais precisos, o problema geral levantado por Ricoeur na obra se refere

    consistncia do discurso psicanaltico (Cf. RICOEUR: 1977, 12). Em torno desta

    problemtica, o filsofo francs divide sua anlise em quatro subproblemas: 1)

    epistemolgico, 2) reflexivo, 3 dialtico e, 4) hermenutico-filosfico:

    Em primeiro lugar, um problema epistemolgico: o que interpretar em Psicanlise, e

    como a interpretao dos sinais do homem se articula com a explicao econmica

    pretendendo atingir a raiz do desejo? Em seguida, um problema reflexivo: que

    compreenso nova de si procede dessa interpretao, e de que si se trata de compreender? Enfim, um problema dialtico: seria a interpretao freudiana da cultura exclusiva de

    qualquer outra? Se no , segundo que regra de pensamento pode ser coordenada com

    outras interpretaes, sem que a inteligncia se veja condenada a s repudiar o fanatismo

    para cair no ecletismo? Essas trs questes constituem o longo desvio pelo qual retomo

    com maior empenho o problema deixado em suspenso no fim de minha Simblica do Mal,

    a saber, o da relao entre uma hermenutica dos smbolos e uma filosofia da reflexo

    concreta (RICOEUR: 1977, 12. Grifo do autor).

    No preciso muito esforo para perceber de imediato que o subproblema

    especfico no qual se insere a questo do sujeito o denominado por Ricoeur de

    reflexivo. No entanto, neste ponto, queremos chamar a ateno para o ltimo

    subproblema, aquele chamado de hermenutico-filosfico, cuja questo fundamental

    saber como relacionar uma hermenutica simblica com uma filosofia da reflexo

    concreta.

    Este subproblema importante porque, alm de constar na srie de

    subproblemas a partir dos quais Ricoeur investiga seu problema maior em Freud, isto ,

    a consistncia do discurso freudiano, ele contextualiza fundamentalmente o seu

    interesse pela Psicanlise6. Vemos isso com clareza na medida em que o subproblema

    hermenutico-filosfico no um problema novo para Ricoeur. Relacionar

    6 Na verdade, em nosso entender, o subproblema hermenutico-filosfico o pano de fundo sobre o qual se desenvolve todos os outros problemas investigados na leitura que Ricoeur fez de Freud. Em

    uma palavra, este subproblema, de algum modo, atravessa todas as anlises do De linterprtation.

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    hermenutica simblica e filosofia da reflexo no , em absoluto, um problema que

    surge ou se d, originalmente, a partir do De linterprtation, assim como so, por

    exemplo, os outros trs subproblemas: epistemolgico, reflexivo e dialtico. No caso do

    problema hermenutico-filosfico, trata-se mesmo de um problema que anterior

    obra sobre Freud; e, talvez, justamente, o problema que tenha levado Ricoeur ao estudo

    mais sistematizado da Psicanlise.

    De fato, a relao entre hermenutica e reflexo um problema ao qual

    Ricoeur j havia se deparado em sua Filosofia da vontade, notadamente, em sua

    Simblica do mal (1960)7. A questo de saber como relacionar smbolo e reflexo

    problema hermenutico-filosfico pode ser tomada, portanto, como um dos pontos

    de chegada da Filosofia da vontade ricoeuriana e, ao mesmo tempo, como o ponto de

    partida para a Filosofia da Psicanlise realizada por Ricoeur.

    Como esclarece o prprio filsofo, a sua interpretao filosfica de Freud deve ser

    compreendida como um long dtour, a via longa pela qual ele retoma com maior

    empenho aquele j conhecido problema hermenutico-filosfico. A Psicanlise de

    Freud , portanto, uma espcie de longo desvio ao qual Ricoeur se submete para

    retomar, depois, um problema j estabelecido anteriormente.

    Nesse sentido, somos colocados diante de um importante aspecto da leitura

    ricoeuriana da Psicanlise. A noo de desvio long dtour proposta a pelo prprio

    Ricoeur para caracterizar e justificar o seu trabalho sobre Freud no pode passar sem a

    devida ateno porque, ao final, o que ela parece indicar que o De linterprtation ,

    antes de tudo, a retomada de um problema, e, este aspecto sozinho j suficiente para

    nos fornecer, pelo menos, trs indicaes determinantes acerca do contexto da obra, a

    saber: 1) que a questo principal do De linterprtation, em que pese os variados e

    importantes problemas a analisados, epistemolgico, reflexivo e dialtico, no outra,

    seno, retomar com maior empenho, o problema da relao smbolo e reflexo; 2) que

    a ida de Ricoeur a Freud no se d em razo de mero modismo da filosofia francesa nos

    anos sessenta, antes, se fundamenta em um slido e consistente projeto filosfico j

    7 Filosofia da vontade: meno relacionada s obras de 1950: Philosophie de la volont I: le volontaire et linvoluntaire; e 1960: Philosophie de la volont II: Finitude et culpabilit I: lhomme faillible / Finitude et culpabilit II: La symbolique du mal. A ttulo de informao: o projeto de uma filosofia da vontade a primeira expresso sistemtica da obra de Ricoeur na qual o filsofo j dialoga a explicitamente com a psicanlise de Freud, sobretudo quando inscreve a noo de inconsciente como

    uma das figuras do involuntrio.

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    anteriormente existente; e, 3) que Ricoeur reconhece a relevncia filosfica da

    Psicanlise, o que se expressa no modo respeitoso e atento com o qual o filsofo lida

    com os textos freudianos, ele no se apropria indiscriminadamente dos conceitos

    psicanalticos, como talvez muitos filsofos fizeram e o faam, o que, em ltima

    anlise, nos faz concluir que Ricoeur foi a Freud porque reconheceu na Psicanlise o

    mbito, o desvio, o long dtour necessrio mais adequado para acolher a retomada de

    seu antigo problema8.

    A natureza, as implicaes e as consequncias especficas da retomada do

    problema hermenutico-filosfico no De linterprtation so, sem dvida alguma,

    questes de grande importncia para a compreenso do desenvolvimento do pensamento

    geral ricoeuriano. No entanto, devemos, agora, a partir das indicaes acima,

    concentrarmo-nos na anlise da questo do sujeito.

    3. A questo do sujeito em Freud segundo Ricoeur

    Definida a questo principal do De lintrerprtation, bem como as suas

    implicaes decorrentes, isso no significa, entretanto, que os outros problemas a

    encontrados epistemolgico, reflexivo e dialtico sejam de menor importncia.

    Em tese, conceber a interpretao filosfica de Freud como um longo desvio implica

    tambm reconhecer que o estudo feito por Ricoeur dos textos freudianos, de forma to

    respeitosa e habilidosa, resultou em um significativo e criterioso conjunto de anlises no

    qual se encontra uma variedade enorme de temas filosficos relacionados diretamente

    com o universo particular da Psicanlise freudiana.

    Dentre essa significativa variedade temtica, pretendemos deter-nos a um

    tema especfico: a questo do sujeito em Freud. Esse tema tratado pela anlise feita

    por Ricoeur no interior daquilo que ele chamou de subproblema reflexivo, ou seja,

    objetivamente, trata-se a da anlise da consistncia do discurso freudiano tomado em

    sua problemtica reflexiva, cuja questo fundamental assim formulada por ele:

    8 Poder-se-ia mesmo perguntar: Mas por que, exatamente, a Psicanlise? Considerando a enorme

    erudio de Ricoeur perfeitamente possvel pensar que o problema hermenutico-filosfico pudesse ser retomado em quaisquer outros domnios. Entretanto, foi o pensamento de Freud que

    Ricoeur escolheu como o desvio para a retomada de seu problema. Controvrsias parte, isso s certifica ainda mais o quanto Freud e sua Psicanlise so interlocutores importantes para a reflexo

    filosfica e o quanto Ricoeur jamais negligenciou este aspecto.

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    (...) ser que a desapropriao da conscincia em proveito de outro ncleo de sentido pode

    ser compreendida como um ato de reflexo, at mesmo como o primeiro gesto da

    reapropriao? (RICOEUR: 1977, 55. Grifo do autor).

    Se pudssemos radicalizar a questo a formularamos do seguinte modo:

    ser que o discurso freudiano pode ser compreendido como uma reapropriao da

    conscincia, isto , como uma filosofia da reflexo? Aqui, estamos j, diante da linha

    mestra que guiar toda a anlise de Ricoeur sobre a questo do sujeito em Freud, no De

    linterprtation.

    Portanto, o tema da desapropriao/reapropriao da conscincia o que,

    fundamentalmente, vai guiar toda a interpretao ricoeuriana do sujeito na Psicanlise.

    Se, de um lado, o discurso freudiano desapropria a conscincia at aqui, a que tudo

    indica, no h nenhuma novidade! ; de outro, trata-se de questionar e fazer ver se, em

    ltima anlise, esse mesmo discurso, no pode ser tomado como uma reapropriao da

    conscincia efetiva, aquela anterior iluso do cogito. Aqui, talvez, uma novidade

    originalmente ricoeuriana: a Psicanlise de Freud considerada como um discurso de

    reapropriao da verdadeira conscincia possvel.

    Como quer que seja, o objetivo principal da anlise de Ricoeur sobre a

    questo do sujeito em Freud demonstrar que o discurso freudiano, de algum modo e

    em alguma medida, opera uma reapropriao da conscincia; certamente, no da

    conscincia do cogito; talvez, em termos mais adequados, daquela conscincia primeira

    que advm mais propriamente do sum.

    Mas, de qual modo e em qual medida, exatamente, a Psicanlise opera essa

    reapropriao? Como o discurso freudiano conduz-nos, afinal, a essa conscincia do

    sum? 1) por meio da dialtica do freudismo, uma dialtica que Ricoeur enxerga na

    metapsicologia freudiana; e, 2) na medida em que se estabelea uma estrutura

    filosfica de acolhida da Psicanlise: a Fenomenologia de Husserl e o conceito

    fenomenolgico de arqueologia do sujeito.

    a. A dialtica do freudismo

    Ricoeur defende que h uma dialtica presente na metapsicologia de Freud

    apoiando-se na hiptese de que a obra freudiana detm, sobretudo em seu plano terico,

    certo movimento filosfico (Cf. RICOEUR: 1977, 346). A rigor, um movimento

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    ignorado e at mesmo recusado pelo prprio Freud, mas nem por isso, inexistente,

    segundo o filsofo francs.

    A tese de Ricoeur, resumidamente, a seguinte: do ponto de vista filosfico,

    a Psicanlise de Freud aparece, inicialmente, como uma antifenomenologia, uma

    epoch invertida: no trata da reduo conscincia, mas de uma reduo da

    conscincia. Isso se d, explica o filsofo, na medida em que a Psicanlise estabelece,

    principalmente, a partir do conceito de inconsciente, que o ponto de vista da conscincia

    um ponto de vista falso, um cogito ilusrio, dir Ricoeur. Ocorre a, nessa

    antifenomenologia de epoch invertida, um deslocamento do foco de significaes: a

    conscincia deixa de ser o fundamento originrio do sentido. Nessa etapa, que Ricoeur

    denomina de descentramento/destomada da conscincia, a noo filosfica clssica de

    conscincia/sujeito9 sofre um terrvel golpe: o cogito passa de fundamento a mero

    efeito, instaurando-se a uma verdadeira desolao fenomenolgica. A este propsito

    Ricoeur afirma: (...) Nasceu um problema novo: o da mentira da conscincia, da

    conscincia como mentira (RICOEUR: 1978, 87).

    No entanto, essa desolao fenomenolgica, a conscincia como mentira,

    em suma, a Psicanlise como antifenomenologia, no sero definitivas. Segundo a

    interpretao ricoeuriana, a antifenomenologia da Psicanlise , somente, o momento

    inicial da concepo de um processo que no se restringe pura e simples reduo da

    conscincia. Ricoeur defende que, ao termo de sua tarefa, essa antifenomenologia

    apontar, em ltima instncia, para um aprofundamento mesmo da conscincia.

    Em outros termos, isso quer dizer que o deslocamento do foco de

    significaes que a Psicanlise realiza radical, mas a radicalidade desse deslocamento

    no se encontra, ao final, simplesmente em um foco de significaes deslocado. Antes, a

    radicalidade mesma desse deslocamento est no fato de que ele conduz, a seu termo, a

    uma ressignificao interpretativa do sentido. Em tese, Ricoeur afirma de forma

    categrica: (...) o movimento de destomada da conscincia no separado da tarefa de

    reapropriao do sentido na interpretao (...) (RICOEUR: 1977, 346). Ou seja, para o

    filsofo, to importante quanto admitir que a Psicanlise seja uma crtica radical

    9 Noo da tradio filosfica moderna cujas principais referncias so Descartes, Kant e Hegel.

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    conscincia no negligenciar o sentido da radicalidade dessa crtica, que, em ltima

    anlise, no outro, seno, o do aprofundamento mesmo da conscincia10.

    Afinal, o que, definitivamente, a Psicanlise faz a partir de seus modelos nos fornecer

    uma conscincia melhor:

    (...) uma conscincia descentrada de si, despreocupada, deslocada para a imensido do Cosmos por Coprnico, para o gnio mvel da vida por Darwin, para as profundezas

    tenebrosas da Psique por Freud. A conscincia se amplia a si mesma ao descentrar-se sobre

    seu Outro: Cosmos, Bios, Psique. Ela se encontra perdendo-se; descobre-se, instruda e

    clarificada, ao perder-se, narcsica. (RICOEUR: 1978, 131).

    Em ltima anlise, , portanto, para essa conscincia melhor, no

    narcsica, instruda e clarificada que, segundo Ricoeur, a Psicanlise aponta e

    garante. E como ela o faz? Justamente a partir daquilo que o filsofo enxergou como

    sendo o mvel filosfico da metapsicologia freudiana que no consiste em outra coisa

    seno em uma verdadeira dialtica do freudismo: o descentramento/destomada da

    conscincia a antifenomenologia de epoch invertida da Psicanlise , coextensivo,

    reapropriao do sentido na interpretao ressignificao interpretativa do sentido.

    Em uma palavra: a antifenomenologia de epoch invertida da Psicanlise

    destomada/descentramento da conscincia converte-se, dialeticamente, em

    ressignificao interpretativa do sentido reapropriao do sentindo na interpretao.

    Assim, chegamos aqui ao principal ponto sobre o qual se apoia a tese ricoeuriana da

    dialtica do freudismo.

    A rigor, a primeira consequncia considervel dessa tese de Ricoeur aponta

    para a sua hiptese mais geral de que Freud, ao construir o plano terico da Psicanlise,

    a metapsicologia, no conseguiu faz-lo, como talvez tenha desejado e assim o mostra

    atravs dos conceitos mais naturalistas de sua teoria, sem que seu discurso se

    transformasse, tambm, em um discurso sobre o sentido. Neste aspecto, a implicao

    mais imediata da tese ricoeuriana clara: trata-se de defender, explicitamente, que a

    Psicanlise de Freud , sim, um discurso do sentido, uma semntica do desejo e da

    cultura como, de forma recorrente, insistir o filsofo. Em termos bem precisos, o que

    est em questo aqui nada menos que o tema da teleologia do freudismo: proposta

    10 Sobre este aspecto, Ricoeur chama a ateno para o fato de que a crtica operada pela Psicanlise

    conscincia muito mais uma crtica s pretenses da conscincia que conscincia em si mesma. Cf.

    RICOEUR: 1978, 130.

  • P E R I v . 0 7 n . 0 1 2 0 1 5 p . 8 7 - 1 0 5 9 6

    ricoeuriana segundo a qual a finalidade ltima da teoria psicanaltica de Freud seria

    reestabelecer o sentido de si ao homem e cultura. Em outras palavras, o freudismo

    operaria no nvel da conscincia de si o que o esprito absoluto hegeliano teria operado

    no nvel da histria. a partir deste entendimento que Ricoeur (1978, 91) pode afirmar

    de forma to explcita que: (...) A Psicanlise no se interessa por um inconsciente

    incognoscvel (...); isto , que ela existe, seno justamente para fornecer sentido s

    manifestaes do inconsciente; ou seja, em ltimo caso, para trazer conscincia o

    sentido das pulses, que a Psicanlise se constitui como um campo de conhecimento.

    Mas, outra consequncia importante da tese ricoeuriana da dialtida do

    freudismo que esta reapropriao do sentido possibilitada pela Psicanlise s ocorre

    em razo mesmo do descentramento da conscincia que a teoria freudiana opera. Ora,

    s h a necessidade de uma reapropriao do sentido porque, antes, um sentido outro

    foi desapropriado, algo se perdeu: aquela conscincia do cogito foi expulsa de sua

    centralidade pelo conceito de inconsciente, algo de fundamental foi alterado no processo

    de criao de sentido e o sujeito precisa, ento, se interrogar agora sobre a sua

    identidade e destino. Afinal, o que , ou deve ser, a conscincia, princpio da teoria da

    subjetividade clssica, quando o sentido no mais se reconhece originariamente nela? Se

    a conscincia no mais o ncleo originrio do sentido, qual , agora, a origem do

    sujeito?

    Se seguimos bem a linha do pressuposto ricoeuriano defendido acima de

    que a Psicanlise, em ltima anlise, aponta para uma reapropriao do sentido , o

    que temos aqui a necessidade de revisar o conceito filosfico de conscincia/sujeito.

    Em outras palavras, a concepo do freudismo como um discurso do sentido implica

    imediatamente em uma reavaliao de nossa compreenso sobre o que e como se

    constitui o sentido, ele mesmo.

    A novidade que, ao fim desse processo de reviso ou reavaliao, se ele se

    realiza a partir da dialtica proposta por Ricoeur no interior da metapsicologia

    freudiana, o sentido do descentramento da conscincia/sujeito que a Psicanlise opera

    aparecer ressignificado, pois ele ter se convertido em aprofundamento mesmo da

    conscincia/sujeito.

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    b. A estrutura filosfica de acolhida da Psicanlise: a Fenomenologia de Husserl e o conceito de arqueologia do sujeito

    Alm da dialtica metapsicolgica, a reapropriao do sentido operada

    pela Psicanlise depende tambm da determinao de um locus filosfico para o

    freudismo, um topus no qual a originalidade do pensamento freudiano possa ser

    acolhida no interior do pensamento filosfico11. Em uma palavra, para o filsofo, a

    Fenomenologia de Husserl e o conceito de arqueologia do sujeito que devem cumprir

    o papel de acolher filosoficamente o pensamento freudiano. A esse respeito, Ricoeur ,

    extremamente, claro e direto. Ele busca na Fenomenologia de Husserl, mais

    precisamente em suas Meditaes cartesianas, (...) a estrutura filosfica que deve

    acolher a problemtica freudiana, isto , onde essa possa ser pensada e refletida

    (RICOEUR: 1977, 344). Segundo o filsofo, a partir das Meditaes cartesianas de

    Husserl possvel (...) proceder a uma repetio de estilo reflexivo de toda a

    metapsicologia freudiana (RICOEUR: 1977, 345). E quando se trata, especificamente,

    da anlise da questo do sujeito em Freud, Ricoeur no deixa dvidas: (...) o lugar

    filosfico do discurso analtico definido pelo conceito de arqueologia do sujeito

    (RICOEUR: 1977, 343).

    Objetivamente, para o filsofo, se trata a de afirmar que o freudismo deve

    ser pensado e repetido reflexivamente no interior das Meditaes cartesianas de

    Husserl. Repetir reflexivamente a metapsicologia de Freud no interior da

    Fenomenologia , justamente, demonstrar como a dialtica do freudismo realiza o

    descentramento do sentido na Psicanlise. Mas, que sentido novo a Psicanlise

    possibilita com este descentramento? Precisamente, o sentido arqueolgico. Em tese:

    pensar e repetir reflexivamente a metapsicologia freudiana no interior da

    Fenomenologia de Husserl nos conduz ao sentido arqueolgico da conscincia/sujeito.

    11 Sobre a necessidade de um locus filosfico para a Psicanlise, se trata de um tema problemtico: Por

    que, exatamente, o freudismo necessitaria de uma estrutura de acolhida filosfica? Monzani (1991)

    um crtico dessa postura inveterada de se ler Freud a partir de estruturas externas ao prprio texto

    freudiano. Este autor argumenta que o resultado final desse tipo de trabalho sempre uma leitura

    equivocada do freudismo na medida em que o submete a uma estrutura de significao que no lhe

    prpria. Nesse caso, somos obrigados a pensar como possvel que a leitura ricoeuriana de Freud,

    embora baseada em uma estrutura filosfica, no caia no erro advertido por Monzani. Tarefa difcil e

    ainda a realizar-se. Sobre a tese da autonomia do pensamento freudiano ver Monzani (1989).

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    De modo mais especfico, o prprio Ricoeur estabelece assim o conceito de

    arqueologia do sujeito:

    (...) passando a um nvel propriamente filosfico, nos perguntaremos se uma filosofia da

    reflexo pode explicar conceitos realistas e naturalistas que, na teoria freudiana, regulam

    essa teoria sui generis. O conceito diretivo dessa etapa reflexiva ser o de arqueologia do

    sujeito. No um conceito elaborado pela prpria psicanlise; o conceito que o

    pensamento reflexivo forma para proporcionar uma base filosfica ao discurso analtico.

    Ao mesmo tempo, o prprio pensamento reflexivo se modifica integrando o discurso de sua

    prpria arqueologia; de reflexo abstrata comea a tornar-se reflexo concreta. (RICOEUR:

    1977, 282. Grifo do autor).

    Nesse caso, na medida em que a hermenutica dos smbolos, passando

    pelo longo desvio do freudismo, se relaciona com a filosofia da reflexo por meio

    do conceito de arqueologia do sujeito, o problema da inscrio do discurso freudiano

    em uma filosofia reflexiva i.e., como um discurso que descentraliza e reapropria a

    conscincia parece encontrar aqui a sua soluo. De fato, segundo Ricoeur,

    precisamente esse conceito que liga a Psicanlise de Freud filosofia da reflexo e a

    torna, finalmente, concreta (Cf. RICOEUR: 1977, 373).

    A implicao mais imediata do conceito de arqueologia do sujeito a

    concepo da Psicanlise como uma arqueologia da subjetividade, uma busca regressiva

    pelo sujeito que, ao menos neste ponto, ao contrrio da fenomenologia hegeliana, por

    exemplo, se pe em marcha a partir da hiptese, segundo a qual, o lugar onde o sujeito

    se encontra , antes de tudo, em uma arch e no em um telos12.

    Nesse sentido, a partir do conceito de arqueologia do sujeito, a Psicanlise

    de Freud especialmente concebida como uma marcha regressa, um caminho para trs

    cujo destino ltimo a arch da subjetividade. Nesse caso, segundo Ricoeur,

    diferentemente das vias utilizadas pela tradio filosfica moderna Descartes, Kant e

    Hegel que, em ltima anlise, sempre buscaram a subjetividade em figuras

    teleolgicas, seja da Razo, seja da Crtica, seja do Estado, a busca do sujeito, em

    Freud, se d em outra ordem, uma vez que se trata de fazer um caminho de volta, um

    12 J sabemos que o modelo teleolgico da fenomenologia de Hegel, tal como demonstrado anteriormente

    acima, tambm levado em conta por Ricoeur em sua anlise da questo do sujeito em Freud.

    Entretanto, no ponto ao qual estamos agora precisamente nos referindo a apropriao ricoeuriana do conceito de arqueologia do sujeito interessa-nos aqui, antes de tudo, evidenciar a clara e radical oposio entre o processo arqueolgico proposto por esse conceito e o processo teleolgico relativo

    fenomenologia hegeliana. Nada de contraditrio h quando sabemos que o trabalho de Ricoeur sobre

    Freud deve ser lido no terreno mesmo j conhecido do conflito das intepretaes.

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    retorno ao passado por meio de figuras arqueolgicas como, por exemplo, o Desejo, a

    Culpa e o Ego.

    Contudo, mais do que isso, a arqueologia do sujeito proposta por Ricoeur

    em Freud, requer um novo avano do pensamento cuja inteligncia do freudismo

    deve cumprir (Cf. RICOEUR: 1977, 344): e aqui, precisamente, neste ponto que o

    caminho de volta realizado pela Psicanlise se torna avano!

    Na leitura de Ricoeur sobre Freud, caminhar para trs avanar na busca

    do sujeito, porque busc-lo naquilo que ultrapassa as progressivas pretenses ilusrias

    da conscincia imediata e encontr-lo na conscincia que marcha humilhada em

    caminho regressivo rumo s suas mais profundas razes.

    Em tese, a arqueologia do sujeito um avano na busca da subjetividade

    porque, em ltima anlise, no discurso sui generis freudiano, a arch, dialeticamente, se

    torna telos. A este respeito, Ricoeur (1978, 132) afirma categoricamente: (...) Freud

    muda a conscincia, mudando a conscincia da conscincia (...).

    , portanto, a transformao dialtica desta marcha regressa, deste

    caminho de volta em avano do pensamento, que caracteriza o principal aspecto do

    conceito de arqueologia do sujeito proposto por Ricoeur ao discurso freudiano sobre a

    subjetividade13.

    Notamos assim que por meio da Fenomenologia de Husserl, tomada como

    estrutura de acolhida do discurso freudiano, e do conceito de arqueologia do sujeito,

    tomado como avano do pensamento, que Ricoeur garante a inscrio definitiva do

    freudismo num registro propriamente filosfico. Aqui, a questo inicial de saber como a

    Psicanlise de Freud opera uma reapropriao da conscincia, fica, razoavelmente,

    respondida. Entretanto, resta ainda investigar, no que se refere, especificamente,

    questo do sujeito em Freud, quais as implicaes mais decisivas de toda essa dmarche

    levada adiante por Ricoeur: que questo nova do sujeito depreende-se, exatamente,

    desse sentido arqueolgico da subjetividade oriundo da reapropriao do sentido

    operada pela Psicanlise? Que noo de sujeito surge, afinal, da leitura ricoeuriana de

    Freud? Isto o que veremos a seguir.

    13 Arriscando-nos em uma hiptese, caberia examinar mais a fundo se, justamente, o conceito de

    arqueologia do sujeito no poderia ser tomado como uma espcie arqueteleologia! O significado preciso deste termo precisaria ainda ser fundamentado.

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    4. Notas sobre a questo do sujeito em Freud segundo Ricoeur

    Precisamente h, pelo menos, dois aspectos fundamentais da anlise que

    Ricoeur nos apresenta de Freud acerca da questo do sujeito: o primeiro se refere

    identificao da teoria psicanaltica como um discurso sobre o sujeito. Neste aspecto, a

    tese de Ricoeur que a Psicanlise de Freud possui um discurso prprio sobre a

    subjetividade. O segundo aspecto, por sua vez, trata da concepo deste sujeito do qual

    nos fala esse discurso prprio da Psicanlise, sendo que, neste caso, a tese ricoeuriana

    que a subjetividade em Freud sempre uma subjetividade que no cr em si mesma,

    uma espcie de sujeito s avessas, em nossos prprios termos14.

    A legitimidade destes dois aspectos assegurada pelo prprio Ricoeur

    (1977, 344), quando afirma, categoricamente que (...) um s e mesmo projeto

    compreender o freudismo como um discurso sobre o sujeito e descobrir que o sujeito

    no jamais aquele que se cr. Ora, no estamos aqui, justamente, diante daquele

    avano para trs referente ao conceito de arqueologia do sujeito? De um lado o

    avano: a Psicanlise tomada como um discurso sobre o sujeito; e, de outro lado o

    retrocesso: mas, o sujeito desse discurso no se cr.

    Que a interpretao ricoeuriana da questo do sujeito em Freud parte da

    considerao da Psicanlise como portadora de um discurso prprio e legtimo sobre a

    subjetividade, disso ns j sabemos; contudo, isso no significa, segundo Ricoeur, que o

    discurso freudiano tenha sistematizado o tema do sujeito.

    Para Ricoeur (1977, 344), no encontramos na Psicanlise um discurso

    tematizado sobre a subjetividade. Alis, ao contrrio, Ricoeur defende que Freud, em

    sua obra, ignora e recusa toda e qualquer problemtica do sujeito ordinrio. A rigor, no

    h a nenhuma interrogao explicitamente radical ao sujeito do pensamento ou da

    existncia, o que, para a anlise ricoeuriana, se explica, justamente, por conta dessa

    espcie sui generis de subjetividade que o prprio discurso freudiano comporta: aquela

    espcie de sujeito que no se cr.

    14 O termo sujeito s avessas ser utilizado aqui como uma tentativa inicial de caracterizar a originalidade da concepo de sujeito oriunda da leitura ricoeuriana de Freud. Ele faz frente,

    especialmente, noo de inverso do sujeito, uma formulao de Lacan, j bem estabelecida e bastante disseminada. O objetivo seria pensar a distino e, talvez mesmo, a oposio das duas

    concepes de sujeito concebidas em Freud: a de Ricoeur e a de Lacan. Certamente, um desafio para

    outra oportunidade.

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    Segundo Ricoeur, ento exatamente esta fuga da afirmao, do originrio ou de

    qualquer fundamento egolgico que caracteriza e sustenta, sobremaneira, o discurso

    freudiano da subjetividade. Em sntese, dir o filsofo: , justamente, esta fuga do

    cogito, to presente no discurso de Freud, que nos leva a perguntar pela questo do

    sujeito na Psicanlise (RICOEUR: 1977, 344).

    Ou seja, em decorrncia da ausncia mesma, em Freud, de uma

    tematizao da subjetividade, que Ricoeur identifica a Psicanlise a um discurso prprio

    sobre o sujeito. E, se seguimos com ateno esta linha de raciocnio, somos levados a

    considerar que a anlise ricoeuriana da questo do sujeito em Freud se apoia,

    fundamentalmente, em dois aspectos principais: o primeiro deles consiste naquilo que

    vimos insistindo desde o incio de nossa argumentao, na concepo da psicanlise

    como um discurso prprio acerca da subjetividade. O segundo aspecto, este de ordem

    mais implcita, consiste na concepo de que este discurso prprio do freudismo sobre

    o sujeito uma espcie sui generis de discurso, na medida em que se trata de uma

    abordagem da subjetividade que no assegura ao sujeito a sua autoconstituio.

    Mas que espcie estranha de sujeito ou discurso sobre a subjetividade

    essa? Como conceber que seja um discurso sobre o sujeito, justamente, um discurso que

    nega ao sujeito a sua autoconstituio? Estaria Ricoeur, por meio do freudismo, nos

    apresentando uma nova noo de subjetividade? Uma nova compreenso do sujeito?

    Tudo indica que sim; mas de que subjetividade, exatamente, se trata? De que sujeito,

    afinal, nos fala Ricoeur, leitor de Freud?

    Antes de tudo, preciso admitir que responder consistentemente a essas

    interrogaes , ao menos para ns, ainda uma tarefa a realizar-se. Contudo,

    considerando a argumentao que apresentamos, acreditamos ser possvel, ao menos,

    indicarmos, inicialmente, trs notas que podem contribuir para a compreenso dessas

    questes que compem o conjunto maior da questo do sujeito em Freud, segundo

    Ricoeur.

    a. Da arqueologia do sujeito ao sum do cogito

    Se estivermos certos na anlise que fizemos, o processo arqueolgico da

    subjetividade, proposto por Ricoeur ao discurso freudiano, parece fornecer elementos

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    suficientes para se pensar uma nova questo do sujeito: o avano para trs levado a

    termo por esse processo nos apresenta uma dialtica entre arch e telos que, certamente,

    tem implicaes decisivas na constituio desta nova questo da subjetividade. A

    dimenso destas implicaes pode ser pressentida diante daquilo que,

    fundamentalmente, a dialtica desta arqueolgica designa. Como dir Ricoeur (1977, p.

    367), trata-se de nada menos que, (...) propriamente o sum do Cogito; afinal, (...)

    essa marcha regressiva (...) para o pr-significado e o insignificante seria insignificante,

    se no fosse apoiada numa problemtica do sujeito (...) (RICOEUR: 1977, 367).

    Esta descoberta, assevera Ricoeur (1977, 367), no deixar intacta a noo prpria que

    temos da subjetividade. Talvez, a transformao mais radical que a leitura ricoeuriana

    da questo do sujeito em Freud prope concepo geral que temos da noo de

    subjetividade seja, justamente, a necessidade e a possibilidade de, a partir de agora,

    conseguirmos pensar a figura do sujeito sem necessariamente a relacionarmos com a sua

    autoconstituio. Em outras palavras, a crtica ricoeuriana noo clssica de sujeito ,

    na verdade, menos uma crtica figura do sujeito, ele mesmo, que uma crtica direta e

    radical representao imediata que a conscincia faz de si. Utilizando o freudismo

    para levar essa crtica ao limite, Ricoeur, na contramo de seus contemporneos, aponta

    no morte do sujeito, mas sua existncia em outro registro constitucional: aquele a

    partir do qual a subjetividade no mais o resultado da representao imediata da

    conscincia e sim o esforo que a conscincia faz para tornar-se um si mesmo; esforo

    este que inclui a autorecusa radical de qualquer espcie de autoconstituio.

    b. Da Psicanlise como um discurso prprio sobre o sujeito conscincia como tarefa

    Reconhecer na Psicanlise um discurso sobre um sujeito que no se cr, que

    no seu prprio fundamento e, mesmo assim, identific-la a um discurso prprio sobre

    a subjetividade implica, imediatamente, em uma reviso da compreenso clssica de

    conscincia/sujeito, porque, nesse caso, trata-se aqui de uma conscincia que aprendeu a

    lio de no mais se deixar levar pela iluso de ser fundamento e origem. Em ltima

    anlise, uma conscincia que sabe que daqui pra frente, ela no outra coisa, seno,

    tarefa.

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    Nas palavras do prprio Ricoeur (1978, 94): (...) Tudo o que se pode dizer

    depois de Freud, sobre a conscincia, parece-me estar includo nessa frmula: a

    conscincia no origem, mas tarefa (...).

    , certamente, em razo desta noo de conscincia enquanto tarefa que

    vemos Ricoeur afirmar to decididamente que a Psicanlise , sobretudo, um eterno

    retorno conscincia (Cf. RICOEUR: 1967, 351).

    c. Do sujeito que no se cr a uma subjetividade s avessas

    Definitivamente, tudo parece mesmo indicar que, na leitura ricoeuriana da

    Psicanlise, a questo do sujeito em Freud ganha, de fato, contornos de uma nova teoria

    da subjetividade. Antes de tudo, o ponto central dessa nova teoria se fundamenta na

    concepo de um sujeito que se constitui ao assumir, por completo, a condio radical

    de incredulidade quanto a si mesmo um sujeito que jamais se cr! S isso j ,

    seguramente, suficiente para nos convencer que estamos diante aqui de uma nova

    compreenso ou um novo avano do pensamento quanto questo da subjetividade.

    Afinal, como conceber um sujeito que no se cr? De que modo tomar como sujeito,

    justamente, aquilo a que falta o elemento constituinte de qualquer possibilidade de

    subjetividade, a convico, a certeza, a crena, a afirmao, etc.?

    De fato, afirmar a constituio da subjetividade, justamente, na

    incredulidade do sujeito quanto a si mesmo, nem de longe se parece com qualquer lio

    das tradicionais filosofias do sujeito. A proposta ricoeuriana de uma noo de sujeito em

    Freud que se constitui, na exata medida mesma da negao radical da autoconstituio

    de si, talvez, possa ser mais bem compreendida por meio do que propomos chamar,

    enfim, de subjetividade s avessas15.

    15 Notar mais uma vez que no se trata aqui de pensar em termos de sujeito do inconsciente ou inverso do sujeito Lacan no sentido de dissociar conscincia e desejo opondo-os em dois polos radicalmente antepostos. Trata-se, antes e, sobretudo, de poder situar essa nova figura da subjetividade,

    talvez, no campo mesmo do exerccio radical da suspeita; ou seja, a noo de subjetividade s avessas significaria, nesse caso, a concepo de um sujeito constitudo na incredulidade de sua subjetividade, mas no na incredulidade de si mesmo; si mesmo que encontraria sua afirmao, enfim,

    no na iluso do cogito e, tampouco, no inconsciente ele mesmo, mas no exerccio efetivo e

    permanente de uma hermenutica prpria da suspeita. Esse ponto, certamente, mereceria mais reflexo;

    aqui, fica somente a indicao e a promessa de desenvolv-lo em um trabalho futuro.

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    Concluso

    Tal como o concebeu Ricoeur, o discurso freudiano sim, finalmente, uma

    teoria da subjetividade. Est claro para ns que a compreenso do sentido originrio do

    sujeito sobre o qual nos fala essa teoria no est na clareza e evidncia da representao

    imediata da conscincia, mas preciso admitir tambm que o fundamento deste sujeito

    no se encontra na obscurido e indistino, prprias ao regime do inconsciente. Antes

    de tudo, arriscamos aqui uma hiptese, trata-se mesmo de uma teoria do sujeito que

    parece encontrar seu fundamento no exerccio mesmo de uma elaborada e original

    hermenutica da suspeita. Afinal, o qu, alm da suspeita, poderia garantir

    ontologicamente o sujeito na confisso radical de sua completa inadequao? Por fim,

    na tentativa de apresentar mais claramente ainda esta suposta nova subjetividade que

    advm da leitura ricoeuriana da questo do sujeito em Freud terminaramos por dizer

    que h algumas frmulas ou termos do prprio Ricoeur que podem ser tomadas como

    descries precisas deste novo conceito de subjetividade: sujeito que se pe, mas no se

    possui, sujeito hesitante, irresoluto, ferido, quebrado, partido, incrdulo, despossudo,

    sujeito inadequado. Tudo isso e mais, mas seja como for, e esta , talvez, a grande

    novidade: sempre um sujeito.

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