foucault e ricoeur - historiografia

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  • 7/25/2019 Foucault e Ricoeur - Historiografia

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    Revista de Teoria da Histria Ano 2, Nmero 5, junho/ 2011 Universidade Federal de GoisISSN: 2175-5892

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    RELAES DE FORA E RELAES DE SENTIDO: MICHELFOUCAULT E PAUL RICOEUR REVOLUCIONAM A

    HISTORIOGRAFIA1

    Mestrando Breno MendesUniversidade Federal de Minas Gerais

    E-mail: [email protected]

    RESUMO

    Exposio, discusso e comparao dos textos Foucault revoluciona a histria, dePaul Veyne e Paul Ricoeur revoluciona a histria de Franois Dosse. Busca-seapontar as principais caractersticas destas revolues e qual seria o carter decada uma: continuidade ou ruptura? Investiga-se tambm em que medida os

    filsofos Michel Foucault e Paul Ricoeur contriburam para uma retomada dodilogo entre filsofos e historiadores e o que teriam deixado como legado Historiografia contempornea.

    Palavras-chave:Michel Foucault; Paul Ricoeur; Revoluo; Filosofia da Histria;Historiografia Contempornea.

    RSUM

    Lexposition, la discussion et la comparaison des textes Foucault rvolutionne

    lhistoire,dePaul Veyne et Paul Ricoeur rvolutionne lhistoire,de Franois Dosse.On cherche montrer les principaux caractristiques de ces rvolutions et quelserait le caractre de chacune : continuit ou rupture? On recherche aussi dansquelle mesure les philosophes Michel Foucault et Paul Ricoeur ont contribu reprendre le dialogue entre les philosophes et les historiens et ce quils auraientlaiss comme legs Lhistoriographie contemporaine.

    Mots-cls: Michel Foucault; Paul Ricoeur; Rvolution; Philosophie de lhistoire;Historiographie Contemporaine.

    1Gostaria de expressar aqui meus agradecimentos ao professor Jos Carlos Reis pela leitura e pelasobservaes feitas a respeito de uma verso preliminar e reduzida deste texto que foi apresentadacomo trabalho final disciplina Clssicos da Teoria da Histria Contempornea: A arqueologia dosaber Michel Foucault e A memria, a histria, o esquecimento, Paul Ricoeur,

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    Introduo: da Revoluo

    Revoluo um dos temas mais caros aos estudos histricos. Em torno dele

    as interpretaes so mltiplas. O campo ao qual ele se aplica no menos plural.

    A princpio, o conceito de revoluo era empregado no campo astronmico.

    Coprnico designava com este termo o movimento cclico dos astros no retorno ao

    seu ponto de partida. No campo poltico as aplicaes so diversas: Revoluo

    Inglesa, Revoluo Americana, Revoluo Francesa, Revoluo Mexicana,

    Revoluo Russa, Revoluo de 1930, Revoluo Cubana etc. Alexandre Koyr e

    Thomas Kuhn se notabilizaram pela extenso da noo de revoluo ao campo da

    historiografia da cincia1 (ARENDT, 1988, KUHN, 2007). No de se espantar,

    portanto, que o termo tenha sido aplicado Teoria da Histria2em dois famososartigos: Foucault revoluciona a histria[1978] e, Paul Ricoeur revoluciona a histria

    [1995], escrita respectivamente pelos historiadores Paul Veyne e Franois Dosse.

    No presente texto nos deteremos na investigao da extenso deste termo

    Teoria da Histria tomando como ponto de partida os textos supracitados. Com

    efeito, ser que a revoluo historiogrfica apontada por Veyne e Dosse tem o

    mesmo carter? Ser que a prpria palavra revoluo tem o mesmo sentido em

    ambos os textos? Qual o ncleo destas revolues? No deixa de ser instigante

    que ambos os textos apontem filsofos como autores que revolucionaram a

    histria da historiografia, o que nos motiva a comear nossa exposio abordando,

    de maneira breve, a relao entre Histria e Filosofia, sobretudo no contexto

    francs do sculo XX.

    A relao entre Histria e Filosofia: um dilogo de surdos?

    1Consideramos revolues cientficas aqueles episdios de desenvolvimento no-cumulativo, nosquais um paradigma mais antigo total ou parcialmente substitudo por um novo, incompatvelcom o anterior. (KUHN, 2007, p.125).2Outro historiador que aplicou o termo revoluo Teoria da Histria foi Peter Burke ao referir-se Escola dos Annales. Ele chega mesmo a denominar de Antigo Regime a produo historiogrficado sculo XIX com a qual os Annales pretendiam romper. Lucien Febvre e Marc Bloch foram oslderes do pode ser denominado Revoluo Francesa da Historiografia. Para interpretar as aesdos revolucionrios, contudo necessrio conhecer alguma coisa do antigo regime que desejavamderrubar (BURKE, 1997, p. 17).

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    O dilogo entre historiadores e filsofos tem se mostrado historicamente

    ambguo. freqente encontrarmos queixas em ambas as frentes. Por um lado, os

    filsofos reclamam da incipiente ou inexistente reflexo terica e filosfica dos

    historiadores em relao a questes inerentes a seu ofcio, tais como, asubjetividade do historiador, os conceitos de verdade, necessidade, causalidade e

    sentido em histria. Por outro, os historiadores criticam as reflexes realizadas

    pelos filsofos sobre a Histria porque alm de apresentarem uma dimenso

    normativa e prescritiva, elas estariam distantes das questes e dificuldades

    encontradas na prtica da pesquisa histrica (CHARTIER, 1990, MITRE, 2003).

    Certamente, um dos principais estopins para este mal-estar foi a produo

    de Filosofias da Histria. Reflexo tpica da modernidade, ela consiste em ser uma

    interpretao sistemtica e racional da histria universal cujo objetivo unificar a

    disperso dos acontecimentos para apreender seu sentido ltimo, seu significado

    essencial para a histria da humanidade. Em suma, era estabelecido um tlos, uma

    meta para a histria humana. Dentre seus propositores mais ilustres podemos

    destacar Kant, Hegel e Marx.

    A situao parece agravar-se quando levamos em conta a histria da

    filosofia praticada na Frana e cujos princpios foram sistematizados por M.

    Guroult. Em geral, ela costuma ser escrita por filsofos e abdica de

    contextualizaes histrico-sociais, postulando a autonomia da obra em relao a

    seu tempo de produo, numa anlise internalista, imanentista e des-

    historicizada. A histria da filosofia considerada, ela mesma, filosofia

    (CHARTIER, 1990).

    Com efeito, a responsabilidade pelas barreiras que atrapalhavam o dilogo

    entre Histria e Filosofia no contexto francs no apenas dos filsofos e sua

    Histria (des-historicizada) da Filosofia, pois tambm os historiadores voltaram

    as costas filosofia. Neste sentido, destacamos que uma das marcas da 1 e 2 faseda Escola dos Annales foi o combate influncia filosfica na historiografia e a

    apologia sua aliana com as Cincias Sociais. Este combate se fazia necessrio,

    pois, para a nouvelle histoire, as trs principais tendncias do sculo XIX

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    (Historicismo, Marxismo e Positivismo) embora tenham tentado uma ruptura,

    permaneciam influenciadas pela filosofia1(REIS, 2004).

    No obstante, temos observado que a partir da dcada de 1970 esta difcil,

    mas fecunda interao entre Histria e Filosofia tem sido retomada no cenriointelectual francs. Nossa hiptese que a apropriao dos historiadores das obras

    de Foucault e Ricoeur teria sido um fator fundamental para que a relao entre

    Histria e Filosofia no seja um dilogo de surdos.

    A revoluo de Michel Foucault: Relaes de Fora.

    Michel Foucault (1926-1984) um intelectual de difcil categorizao.

    Muitos tentaram enquadr-lo no estruturalismo to em voga no cenrio francs,

    alguns o taxaram de ps-estruturalista, outros disseram que ele era a maior

    expresso da ps-modernidade (HUTCHEON, 1991). Contudo, ele no aceitava

    estes rtulos, ele foi um filsofo singular que reivindicava em alto e bom som sua

    singularidade, rejeitando qualquer rtulo com desprezo, pois era sua constante

    preocupao desfazer-se de qualquer adeso ou aderncia, inclusive a si mesmo

    (DOSSE, 2001, p.198). No esqueamos de sua clebre frase Vrios como eu, sem

    dvida, escrevem para no ter mais um rosto. No me pergunte quem eu sou, no

    me diga para permanecer o mesmo (FOUCAULT, 2009, p.20).

    A maioria dos comentadores divide sua obra em trs fases, adotando como

    base critrios metodolgicos e cronolgicos. Dessa forma, teramos a arqueologia

    para a investigao do saber, agenealogiapara a analtica do poder e a ticapara a

    pesquisa do sujeito e do cuidado de si. 2Todavia, um dos principais enganos aos

    quais esta periodizao pode levar pensar que ao passar de uma fase outra,

    1 O positivismo embora tenha buscado inspirao nas cincias naturais continuou sendoinfluenciado pela filosofia. O historicismo procurou se afastar tanto das cincias naturais, quanto dafilosofia metafsica da histria ao destacar a singularidade dos acontecimentos em detrimento deprincpios atemporais, mas permaneceu filosfico medida que os eventos s adquiriam sentidoquando inseridos em uma totalidade. O marxismo permaneceu uma filosofia da histria, e,portanto, , em certa medida, teleolgico. Para mais detalhes ver: (REIS, 2004: p. 37-43)2Embora seja muito utilizada, esta diviso no consensual e traz suas limitaes. Uma delas quea 3 fase no traz um mtodo prprio, as anlises sobre a tica se valem tanto da arqueologiaquanto da genealogia, o que levou alguns autores a falar inclusive numa arqueogenealogia (Cf.VEIGA NETO, 2005, p.43).

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    Foucault abandona completamente as anlises anteriores, sem que haja

    incorporao e interpenetrao entre as anlises. (VEIGA NETO, 2005)

    Passemos agora a examinar de forma mais direta os fatores que levaram

    este filsofo francs a ser apontado como um autor que revolucionou a escrita daHistria. Para Veyne, Foucault empreendeu a revoluo cientfica que a

    historiografia tanto aguardava. Ele o historiador em estado pleno, o primeiro a

    ser completamente positivista. Ele recusa a metafsica e desvia o olhar do

    historiador dos objetos tomados como naturais para as prticas (VEYNE, 1995).

    No ano de 1969 Foucault publica uma obra na qual ir se aproximar de

    maneira singular dos historiadores, sobretudo daqueles vinculados Escola dos

    Annales:A arqueologia do saber. E na introduo desta obra que o autor discute

    sobre temas caros nouvelle histoire. Ele aponta para um cruzamento entre uma

    modificao na historiografia e outra na chamada histria das idias. Numa clara

    aluso aos historiadores dosAnnales1ele diz que na historiografia a ateno j no

    est mais em uma histria biogrfica, factual e poltica, mas se volta para os longos

    perodos, equilbrios que tendem estabilidade e dificilmente so rompidos.

    Destaca tambm a apropriao de mtodos caros s Cincias Sociais. A histria

    tradicional se preocupava com questes do tipo, qual a ligao deve ser

    estabelecida entre acontecimentos dspares? Qual seu encadeamento necessrio?

    Qual a continuidade que os atravessa? J a nova histria se pergunta sobre quais

    os tipos de srie possvel estabelecer, sobre qual o critrio destas sries e sobre

    quais sries de sries possvel instaurar (FOUCAULT, 2009). Para Le Roy

    Ladurie, a introduo da Arqueologia do Saber a primeira definio da histria

    serial (LE ROY LADURIE apudDOSSE, 2001, p. 213).

    Por outro lado, aproximadamente no mesmo perodo, na histria das idias

    a ateno se deslocou das unidades contnuas de pensamento para os fenmenos

    de ruptura. Na epistemologia francesa autores como Koyr e Canguilhembuscaram no se limitar descrio das invenes dos grandes cientistas numa

    1Em um texto no qual comenta sobre A arqueologia do saber, Foucault explicita ainda mais estaaluso: De fato, hoje em dia, os historiadores e penso certamente na escola dos Annales, MarcBloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel tentam ampliar as periodizaes que os historiadorespraticam habitualmente. Braudel, por exemplo, chegou a definir uma noo de civilizao materialque teria uma evoluo extremamente lenta: do final da Idade Mdia ao sculo XVIII (FOUCAULT,2005, p.146).

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    marcha progressiva ao longo do tempo (MACHADO, 1982). Na teoria da literatura

    no se analisa mais o esprito da poca ou a pessoa do autor genial, mas a

    prpria estrutura do texto. A histria das idias multiplica as rupturas em busca da

    perturbao das continuidades, enquanto a historiografia tenta apagar, ou minorara irrupo dos acontecimentos com o estabelecimento de estruturas (FOUCAULT,

    2009).

    Segundo Foucault, embora tenham tomado direes distintas o problema

    colocado por estas disciplinas o mesmo: a crtica do documento. A histria

    tradicional procurava descobrir a verdade que estava oculta nos documentos

    classificando-os como verdadeiros ou falsos. Ela tentava empreender uma

    reconstituio do passado a partir dos rastros deixados por ele. A proposta era

    memorizar os monumentos do passado transformando-os em documento. J a

    nova histria no busca interpretar o documento ou descobrir se ele diz a verdade,

    mas trabalh-lo desde o interior. Ela estabelece um corpus, sries de massas

    documentais, e descreve as relaes entre estas sries. Num movimento contrrio

    a histria tradicional ela transforma os documentos em monumentos.

    preciso desligar a histria da imagem com que ela se deleitou durantemuito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropolgica: a deuma memria milenar e coletiva que se servia de documentos materiaispara reencontrar o frescor de suas lembranas" (FOUCAULT, 2009, p. 7).

    Esta discusso ganhou ainda mais fora na historiografia a partir do texto

    de Jacques Le Goff, Documento/Monumento. Ele destaca que os historiadores dos

    Annales alargaram o conceito de fonte histrica, outrora restrito apenas aos

    documentos escritos. Le Goff diz que este movimento levou quilo que a partir dos

    anos 1960 ficou conhecido como revoluo documental: em lugar do fato que

    conduz ao acontecimento e a uma histria linear, a uma memria progressiva, ela

    privilegia o dado que leva srie e a histria descontnua. (LE GOFF, 2003, p. 532)

    Na esteira de Foucault,Le Goff sublinha que o documento-monumento o

    resultado de um esforo de uma sociedade em construir e impor ao futuro

    determinada imagem acerca de si prpria. Na introduo da Arqueologia do saber

    percebemos que o principal alvo das crticas de Foucault a noo de uma histria

    contnua que utiliza a memria para garantir a soberania da conscincia. Para ele

    a histria contnua o correlato indispensvel funo fundadora do sujeito: a

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    garantia de que tudo que lhe escapou poder ser devolvido. (FOUCAULT, 2009, p.

    14).

    Esta mudana no tratamento do documento tem vrias conseqncias. Ela

    possibilitou que a historiografia no mais se limitasse temporalidade breve, masconcebesse duraes mais longas. A noo de descontinuidade assume agora um

    papel fundamental nas disciplinas histricas. A disperso dos acontecimentos no

    mais vista como algo a ser contornado e preenchido por uma grande narrativa

    que tenta criar entre eles um encadeamento, uma continuidade. A descontinuidade

    no mais um obstculo, algo a ser eliminado da prtica historiadora, mas o

    resultado de uma operao deliberada pelo historiador (FOUCAULT, 2009).

    Aps apontar estas modificaes podemos compreender melhor o mtodo

    arqueolgico proposto por Michel Foucault para a investigao dos saberes. O

    autor utiliza deste mtodo visando distinguir suas anlises histricas daquelas

    praticadas pela antiga histria das idias que definida por ele como uma

    disciplina que descreve comeos, fins e retornos. A anlise arqueolgica consiste

    em abandonar esta histria das idias1e seus postulados de gnese, continuidade e

    totalizao. Logo de incio a arqueologia coloca em suspenso as grandes unidades

    que atribuam uma continuidade aos discursos como obra, autor e tema. No se

    trata de abandon-las completamente, mas mostrar que elas no so objetos

    naturais.

    A arqueologia tenta abordar os discursos como prticas que esto

    submetidas a regras. Ela os trata em seu volume prprio, enquanto monumento, e

    no enquanto documento, como signo de alguma outra coisa. Os discursos so

    questionados em sua especificidade. A arqueologia no tenta repetir o que foi dito,

    ela v o discurso como uma reescrita que lhe exterior, uma transformao

    regulada do que foi escrito. (FOUCAULT, 2009) Nesta abordagem do saber no h

    progresso, no h teleologia, recusa-se s filosofias da histria que buscam umsentido ltimo para a histria.

    Se trata de um procedimento de escavar verticalmente as camadasdescontnuas de discursos j pronunciados, muitas vezes de discursos do

    1Eu no teria o direito de estar tranqilo enquanto no me separasse da histria das idias,enquanto no mostrasse em que a anlise arqueolgica se diferencia de suas prescries(FOUCAULT, 2009, p. 154).

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    passado, a fim de trazer luz fragmentos de idias, conceitos, discursostalvez j esquecidos (VEIGA-NETO, 2005, p. 54).

    Esta mudana de olhar, este deslocamento que abandona os objetos

    tomados como naturais para concentrar-se nas prticas uma das principaiscaractersticas da revoluo historiogrfica apontada por Veyne. A descrio

    arqueolgica pretende descrever as prticas em sua positividade, sem pressupor

    nada, sem presumir que exista um alvo, um objeto natural ou uma causa material.

    A prtica no uma instncia misteriosa, um subsolo da histria, um motor

    oculto, o que fazem as pessoas. (VEYNE, 1995, p.157) Se esta pretenso soa

    como um discurso positivista, Foucault se diz um positivista feliz 1(FOUCAULT,

    2009).

    Veyne destaca ainda que na compreenso de Foucault no so os objetosque determinam nossas aes, mas so as nossas prticas que determinam esses

    objetos. A relao determina o objeto, (...) o objeto no seno o correlato de uma

    prtica, no existe antes dela (VEYNE, 1995, p. 159). Em suma, esta revoluo

    foucaultiana consiste em historicizar tudo, em mostrar que tudo depende de

    tudo.

    Segundo Machado a principal questo que a arqueologia pretende

    responder como os saberes aparecem e se modificam. Nas obras posteriores

    Arqueologia do Sabera questo que norteia os trabalhos passa a ser por que os

    saberes aparecem, quais as suas condies de possibilidade externa, ou conforme

    Machado sugere, talvez seja melhor dizer que estas condies so imanentes a eles.

    (MACHADO, 1984) Para responder a essa pergunta o mtodo de inspirao

    nietzscheana que Foucault utilizar a genealogia. O texto que tomaremos como

    base para delimitar este mtodo ser Nietzsche, a genealogia e a histria.

    A genealogia cinza; ela meticulosa e pacientemente documentria. Ela

    trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, vrias vezes reescritos

    1Esta ironia proposta por Foucault merece um esclarecimento: O que o aproxima do positivismo aatitude de se aproximar dos fenmenos sem se apoiar em nenhuma idia preconcebida e sembuscar nenhuma essncia escondida por detrs deles. (DOMINGUES, 2004, p. 172). Todavia,Foucault no compartilha, e at mesmo se insurge contra, outros dois traos definidores do modelopositivista, a saber, 1) O estabelecimento de nexos causais entre os fenmenos com o intuito dedeterminar as leis que os governam. 2) Confirmar os nexos causais e comprovar as leis atravs detestes e experimentos. Para uma discusso mais alentada do paradigma positivista ver:(DOMINGUES, 2004).

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    (FOUCAULT, 1984, p.15). com essas palavras que Foucault inicia um de seus

    textos mais instigantes e provocativos no que diz respeito Teoria da Histria. A

    partir deste texto pretendemos explicitar alguns outros pontos de sua revoluo

    historiogrfica, como a recusa metafsica, a dissociao do sujeito e oentrelaamento entre saber e poder.

    A genealogia marca a singularidade dos acontecimentos, os espreita mesmo

    quando eles so considerados como sem histria. Ela exige pacincia e mincia,

    demanda um grande nmero de documentos. Ela se insurge contra a pesquisa da

    origem e das indefinidas teleologias. O genealogista no acredita na metafsica, mas

    escolhe escutar a histria e percebe que atrs das coisas h algo inteiramente

    diferente: no seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas so sem

    essncia (FOUCAULT, 1984, p. 17).

    O mtodo genealgico no tenta restabelecer uma continuidade que recubra

    o esquecimento. Pelo contrrio, ele no quer servir como uma autenticao para o

    sujeito e sua identidade garantida pela memria. Ele agita aquilo que parecia

    imvel, fragmenta o que se pensava unido, mostra a heterogeneidade daquilo que

    considerava estar em conformidade consigo mesmo, a histria da contra-

    memria. Segundo suas palavras: preciso livrar-se do prprio sujeito, isto ,

    chegar a uma anlise que possa dar conta da constituio do sujeito na trama

    histrica (FOUCAULT, 1984, p. 7) A genealogia opera uma dissociao do Eu, ela

    no se preocupa com a alma e sua imortalidade, mas com o corpo que a

    superfcie de inscrio dos acontecimentos. Ela mostra o corpo inteiramente

    marcado de histria, assim como a histria arruinando o corpo (FOUCAULT, 1984).

    Foucault critica duramente uma histria que confere a disperso do

    passado uma forma de reconciliao e permite que nos reconheamos em todas as

    suas partes. Ele desdenha dos historiadores que na busca do sentido histrico se

    apiam em noes supra-histricas. Em uma entrevista foi solicitado que Foucaultcomentasse a seguinte frase de Sartre: Foucault no tem o sentido da histria. Ele

    ento respondeu: Esta uma frase que me encanta! Gostaria que ela fosse

    colocada como epgrafe de tudo o que fao, pois acredito que profundamente

    verdadeira (FOUCAULT, 2006, p. 97).

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    A emergncia dos acontecimentos mostra que eles so produzidos num jogo

    de dominaes, em conflituosas relaes de fora. A histria efetiva praticada pelo

    genealogista indica que estas foras que esto em jogo na histria no esto

    submetidas a uma destinao ltima, mas ao acaso da prpria luta. A historicidadeque nos domina belicosa e no lingstica. Relao de poder, no relao de

    sentido (FOUCAULT, 1984, p. 5).

    Com efeito, a passagem da arqueologia genealogia no se d to

    abruptamente que o uso de uma implique na supresso da outra. (NICOLAZZI,

    2002). Nenhum dos dois mtodos acredita em essncias, finalidades metafsicas ou

    leis gerais. Ambos evidenciam as rupturas e desconfiam das continuidades e

    totalizaes. verdade, porm, que a arqueologia aplicada ao saber enquanto a

    genealogia utilizada para investigar o poder.

    Todavia, em Foucault as esferas do saber e do poder no so

    incomunicveis, pelo contrrio, eles so duas faces de um mesmo processo. A

    relao entre ambos fica clara atravs do conceito de regime de verdade. Nesta

    compreenso a verdade no uma essncia atemporal que paira acima dos

    interesses particulares, ela no existe fora do poder. Cada sociedade estabelece

    quais tipos de discurso ela faz funcionar como verdadeiros, quais instncias iro

    distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos. Por verdade Foucault entende um

    conjunto de regimes atravs dos quais se distingue o verdadeiro do falso, e se

    atribui ao verdadeiro efeitos especficos de poder. (FOUCAULT, 1984) A verdade

    uma mscara discursiva construda para a prtica da beligerncia, impossvel de

    ser arrancada: atrs de uma mscara, outra, e outra, e outra... (REIS, 2006, p. 169).

    A revoluo de Paul Ricoeur: Relaes de sentido

    Dezessete anos aps a publicao do texto de Veyne ser a vez de Dosseanunciar uma outra revoluo na historiografia, novamente empreendida por um

    filsofo. Com efeito, esta revoluo est galgada em outros parmetros. Logo de

    incio destacamos que a relao que estes filsofos mantm com a histria so

    distintas. Ao longo de sua trajetria Foucault empreendeu diversas pesquisas

    histricas nas quais h inclusive investigao documental. Como exemplos

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    podemos citar as obras A histria da loucura, Vigiar e Punir e Histria da

    sexualidade. Por seu turno, Paul Ricoeur produziu reflexes de cunho terico

    acerca da escrita da histria que podem ser encaixadas nos quadros da Teoria ou

    da Filosofia da Histria1. Algo que distingue Ricoeur dos demais filsofos queteorizaram sobre a histria que ele demonstra um substancioso conhecimento

    das obras clssicas da historiografia, sobretudo a francesa2.

    Aqui no compete ao filsofo dar lies ao historiador; sempre oprprio exerccio de um mister cientfico que instrui o filsofo. -nos,pois, necessrio ouvir em primeiro lugar o historiador, enquanto refletesobre seu mister.(...) (RICOEUR, 1968, p. 25)

    Paul Ricoeur (1913-2005) foi um longevo filsofo com uma vasta obra que

    atravessou o sculo XX e adentrou o incio do XXI. Seu primeiro livro, publicado em

    1947, foi escrito em parceria com Mikel Dufrenne e versava sobre Karl Jaspers e a

    Filosofia da existncia. Sua ltima obra, Percursos do reconhecimento,data de 2004

    perfazendo uma trajetria de 57 anos de trajetria intelectual.

    No que tange a periodizao da obra ricoeuriana, acreditamos que um

    caminho interessante seja a diviso em duas grandes fases3sugerida pelo prprio

    autor em uma entrevista (OLIVEIRA, 1990): A 1 seria a fase pr-hermenutica na

    qual se destaca sua tentativa em empreender uma filosofia da vontade baseada na

    abordagem fenomenolgica. A 2 seria a fase hermenutica na qual se inseremsuas investigaes sobre a psicanlise, a metfora, a narrativa, a identidade, o

    justo, e a memria. possvel sistematizar melhor esta proposta de diviso

    1O termo Filosofia da Histria no tomado aqui no sentido j mencionado acima, no qual ele uma interpretao sistemtica da histria universal em busca de seu sentido essencial. Propomosque ele seja aqui entendido como uma reflexo filosfica, epistemolgica, sobre questes doconhecimento histrico.2Neste sentido, no poderamos deixar de mencionar sua original interpretao no primeiro tomo

    de Tempo e Narrativada obra de Braudel O mediterrneoquando ele sustenta que mesmo aqueleque mais pretendeu afastar a narrativa de sua pesquisa acabou por tecer uma trama na qualtransformou o mar mediterrneo em um quase-personagem. (RICOEUR, 2010, v1)3Repete-se aqui o mesmo risco apontado quando discutamos a periodizao da obra de Foucault:pensar que na passagem de uma fase outra os procedimentos so completamente abandonadospara que se inicie uma outra etapa. No caso de Ricoeur isto se torna ainda mais claro quando ele dizem um artigo: Para l da simples oposio, h entre fenomenologia e hermenutica uma pertenamtua, (...) a fenomenologia permanece o inultrapassvel pressuposto da hermenutica. Por outrolado, a prpria fenomenologia no se pode constituir sem um pressuposto hermenutico.(RICOEUR, S/D, p. 50). As implicaes desta pertena mtua foram amplamente discutidas no textoFenomenologia e Hermenutica: no rastro de Husserl, includo na coletnea Do texto ao.

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    decompondo a 2 fase em hermenutica dos smbolos, hermenutica do texto, da

    ao e do si. (CUNHA, 2008).

    O dilogo de Ricoeur com a historiografia1 remonta a uma obra publicada

    no ano de 1955: Histria e Verdade. Um dos pontos da revoluo historiogrficaapontada por Dosse j est presente nesta obra, e diz respeito relao entre

    objetividade e subjetividade no conhecimento histrico, uma das questes mais

    polmicas da Teoria da Histria. Ricoeur afirma que a histria utiliza uma

    epistemologia mista e que se espera dela um determinado tipo de objetividade.

    Certamente, no uma objetividade como a das cincias fsicas e biolgicas, pois h

    tantos nveis de objetividade quantos procedimentos metdicos. A objetividade em

    histria uma objetividade especfica, histrica, que demanda a subjetividade do

    historiador2(RICOEUR, 1968).

    A obra de Marc Bloch Apologia da histria: ou o ofcio do historiador

    mencionada por Ricoeur como o seu ponto de partida nestas reflexes. De Bloch

    ele sublinha a definio da observao histrica como um conhecimento por

    vestgios e tambm faz referncia a definio de histria como cincia dos homens

    no tempo (BLOCH, 2001). A objetividade em histria no significa reviver o

    passado tal qual ele ocorreu, numa coincidncia plena entre o texto do

    historiador e seu referente. Ela no se limita crtica documental como poderia

    julgar o positivismo (RICOEUR, 1968).

    Em comparao com a que avistada pelas demais cincias, a objetividade

    histrica incompleta. Ricoeur aponta alguns traos que caracterizam esta

    incompletude: 1) O historiador realiza uma escolha do objeto de anlise, ele atribui

    um juzo de importncia atravs do qual seleciona os acontecimentos que so

    considerados como importantes. 2) o historiador que define os nexos de

    causalidade entre os eventos. 3) A distncia histrica em relao ao objeto faz

    1A memria, a histria, o esquecimento[2000] uma obra que traz importantes reflexes no quetange a este dilogo. Entretanto, no a abordaremos, pois ela foi publicada posteriormente ao textode Dosse Paul Ricoeur revoluciona a histria, e nosso propsito examinar quais os pontos darevoluo ricoeuriana apontada pelo historiador francs neste texto.2 Bdarrida nos lembra que este posicionamento de Ricoeur um alerta contra aqueles que,influenciados pela onda estruturalista em voga na Frana no contexto de publicao da obra (anos1950), direcionavam a histria para pesquisa de estruturas, foras, instituies, deixando de lado oshomens, os valores humanos, e a subjetividade historiador. Esta escolha era guiada por umapretenso cientificidade. (BDARRIDA, 2001).

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    com que o historiador tenha como tarefa dar nome quilo que mudou aquilo que

    no mais. A linguagem histrica nunca coincide completamente com a do

    passado; o historiador utiliza de uma imaginao temporal, na medida em que ele

    transporta-se para a poca que estuda, tornando-a presente. 4) O objetivo dahistria compreender e explicar os homens. A histria promove um dilogo, um

    encontro entre os homens do presente e os de outrora. Ela mostra que ambos

    pertencem mesma subjetividade, a mesma humanidade. A histria submisso

    ao inesperado, abertura ao outro (RICOEUR, 1968; REIS, 2006 e DOSSE, 2001).

    A subjetividade do historiador no dissolve a objetividade histrica, antes

    seu correlato. Com efeito, no uma subjetividade qualquer que colocada em

    cena. Ela no se refere s motivaes, paixes e preconceitos de um sujeito

    puramente emprico e psicolgico. O objetivo do historiador no julgar os

    homens de outrora a partir dos valores atuais, num imperdovel anacronismo, mas

    compreend-los, nos lembra Marc Bloch. A subjetividade de historiador, como

    toda subjetividade cientfica, representa a vitria de uma boa subjetividade sobre

    uma m subjetividade (RICOEUR, 1968, p. 33).

    Outro ponto da revoluo historiogrfica de Ricoeur destacada por Dosse

    diz respeito ao mtodo: A histria uma hermenutica. Ricoeur dos poucos

    autores franceses a se aventurar nesta seara repleta de filsofos alemes.

    Tradicionalmente, a hermenutica definida como a arte de interpretar textos. A

    princpio, ela era aplicada interpretao de distintos gneros textuais: bblicos,

    jurdicos, provenientes da Antigidade greco-latina A partir de Schleiermacher

    (1768-1834) ela tem seus horizontes expandidos, busca-se lanar as bases para

    uma hermenutica geral. Este autor desloca o trabalho da interpretao do objeto

    para o sujeito. A hermenutica deixaria de ser determinada pela natureza

    heterognea dos objetos aos quais ela se dirige (diversos tipos de textos) para ser

    marcada pela estrutura do sujeito ou esprito em sua unidade. Schleiermacherambicionava fixar regras gerais de interpretao que fossem aplicveis a todos os

    campos. deste autor o famoso adgio, h hermenutica, onde houver no

    compreenso e tambm a romntica ambio de, superando a distncia cultural,

    compreender um autor to bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se

    compreendeu (SCHLEIERMACHER apud RICOEUR, 2008, p. 27). Em rplica ao

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    positivismo, Dilthey utilizar a hermenutica na sua busca de fundamentao

    epistemolgica e metodolgica das cincias do esprito em face das cincias da

    natureza.

    Segundo Dosse, entre 1950 e 1975 o paradigma predominante em cinciashumanas foi o estruturalista que tomava como disciplina-modelo a lingstica

    (DOSSE, 2001). Em linhas gerais, este modelo se caracterizava por um

    distanciamento das pesquisas diacrnicas de fenmenos isolados, para se

    concentrar em sistemas de conjunto, estruturas1, abordadas pela sincronia. Um

    aspecto que se mostra comum a todos os estruturalismos, diz Piaget, uma

    esperana de inteligibilidade fundada na crena de que uma estrutura se basta a si

    mesma, no precisa recorrer a elementos externos para sua explicao (PIAGET,

    1970).

    Contudo a partir da dcada de 1980 a noo de historicidade passa a se

    impor sobre a de estrutura, agora, diz Dosse, o paradigma interpretativo,

    hermenutico: Essa nova orientao implica levar a srio a guinada lingstica e

    dar grande ateno aos discursos sobre a ao, narrao, transformao das

    aes em enredo, mas sem fechar-se na discursividade (DOSSE, 2001, p. 43).

    Destacamos que Ricoeur contribuiu de forma significativa para este novo

    paradigma. Sua hermenutica dialoga com o estruturalismo, mas d um passo

    adiante na discusso, na medida em que, no est restrita ao campo do discurso,

    mas vai do texto ao. O filsofo francsquestiona a tentativa de supresso do

    tempo nas abordagens estruturalistas, assim como a sujeio da diacronia

    sincronia que dificultaria a compreenso das mudanas de significados dos

    smbolos. Ele questiona ainda a anulao do sujeito em nome da objetividade da

    estrutura(RICOEUR, 1978, PELLAUER, 2009).

    Tomaremos como base para discusso destes pontos seu ensaio O que

    um texto?. Nesta concepo, texto a fixao ou substituio do discurso oral pelaescrita. Esta noo de texto demanda uma nova abordagem da dualidade proposta

    por Dilthey entre a explicao (a princpio limitada s cincias da natureza) e a

    1Uma estrutura um sistema de transformaes que comporta leis enquanto sistema (...) e que seconserva ou se enriquece pelo prprio jogo de suas transformaes, sem que estas conduzam parafora de suas fronteiras ou faam apelo a elementos exteriores. (...) Uma estrutura compreende oscaracteres de totalidade, de transformaes e de auto regulao. (PIAGET, 1970, p. 8).

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    compreenso (a princpio restrita s cincias do esprito). A proposta ricoeuriana

    que entre ambas a relao no seja antinmica, mas de complementaridade e

    reciprocidade.

    Ele aponta para duas vias possveis de anlise dos textos: 1) A explicaoestrutural que suspende tanto o referente externo como a figura do autor e se

    concentra em suas relaes internas, suas estruturas. 2) Abordagem interpretativa

    que no toma o texto como uma estrutura fechada em si mesma, mas o restitui ao

    dilogo, comunicao viva. Segundo Ricoeur, a explicao estrutural no apenas

    possvel como legtima. Ao tratar o texto em suas estruturas internas, a

    lingstica mostra como a prpria linguagem utiliza a noo de explicao sem

    recorrer a modelos epistemolgicos das cincias da natureza. J a via

    interpretativa abre espao para a significao, para os sentidos, para que seja

    encadeado um discurso novo no discurso do texto, j que ele no est fechado em

    si mesmo. Nela o leitor apropria-se do texto e compreende melhor a si mesmo. A

    compreenso de si passa pelo caminho da compreenso dos signos de cultura. Este

    processo ocorre no momento da leitura quando o texto sai de seu quase-mundo

    sem sujeito e retorna ao mundo da ao, ao mundo da vida, onde o sujeito o

    leitor. (RICOEUR, S/D)

    A reconciliao entre as duas atitudes possveis perante um texto

    (explicao e compreenso) ser arrematada em Tempo e Narrativa [1983-1985]

    na noo de crculo hermenutico. Alis, nesta obra publicada em 3 volumes

    podemos destacar diversas contribuies do autor a importantes debates da

    historiografia contempornea1. A comear pela tese central, apresentada nas

    primeiras pginas do livro: O tempo se torna tempo humano na medida em que

    est articulado de maneira narrativa; em contraposio, a narrativa significativa

    na medida em que desenha os traos da experincia temporal. (RICOEUR, 2010,

    v1, p. 9). A argumentao ser alicerada nas reflexes de Santo Agostinho sobre otempo, e nas de Aristteles sobre a intriga.

    1Somados, os 3 tomos da obra ultrapassam as mil pginas. Os limites do presente texto nos levarama apresentar as teses sobre questes da historiografia contidas na trilogia de forma um tantoquanto esquemtica, todavia, em outro texto, as discutimos com mais vagar e as comparamos com oposicionamento de outros autores. (Cf. MENDES, 2010).

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    Santo Agostinho discorre sobre um tempo interior, que se passa na alma e

    quase indizvel, inenarrvel. J Aristteles ao abordar a tessitura do enredo reflete

    sobre a trama potica sem pretender falar do tempo. Ricoeur ir desfazer o

    antagonismo entre ambas as proposies para concili-las atravs da triplammesis, ou crculo hermenutico, que estabelece uma circularidade entre tempo e

    narrativa. O crculo tem incio em M1 na prefigurao do campo da experincia. Os

    smbolos e a linguagem conferem inteligibilidade a esta vivncia de tal forma que

    para Ricoeur elas j so um quase-texto. Em M2 esse campo configurado por um

    enredo. Entra-se no mundo do texto. Neste momento o autor d forma

    experincia vivida em M1, ele urde um enredo com incio meio e fim, organiza uma

    sntese do heterogneo. Em M3 o vivido refigurado novamente no campo da

    experincia. o momento da leitura, no qual pela interpretao, pela apropriao

    da narrativa o leitor tem sua experincia modificada. O texto emerge de uma

    experincia, configurado numa trama, mas retorna ao mundo da ao, da

    experincia no processo de leitura. 1(RICOEUR, 2010, v1)

    Alm desta tese central, destacamos que em Tempo e Narrativa existem

    outras discusses que podem ser includas na chamada revoluo ricoeuriana.

    Uma delas diz respeito ao tempo histrico. Ricoeur desfaz mais uma oposio,

    desta vez a que confrontava o tempo da conscincia, que se passa no interior do

    homem, abordado principalmente por filsofos e o tempo da natureza, exterior ao

    homem, estudado, sobretudo, por fsicos. Sua posio a de que o tempo histrico

    um terceiro tempo que inscreve o que passa no que no passa, o irreversvel no

    reversvel, mudanas da vida sublunar nos movimentos supralunares (REIS, 2006,

    p.183). Para fazer esta inscrio a operao historiogrfica utiliza de 3 conectores

    que ligam o tempo da conscincia ao da natureza sem se reduzir a nenhum deles:

    1)O calendrio. 2)Seqncia de geraes. 3) Arquivos, documentos e rastros.

    (RICOEUR, 2010, v3)Com efeito, o posicionamento de Ricoeur que obteve maior visibilidade

    entre os historiadores diz respeito ligao entre histria, narrativa e fico. O

    1O crculo hermenutico tambm sistematiza a ambio de Ricoeur de construir um processo deinterpretao no qual explicao e compreenso no fossem opostas, mas complementares. Paratanto ele no despreza a explicao estrutural do texto que se concentra em M2, mas no abre modo seu retorno ao mundo da ao (M3) onde haveria sua compreenso, sua apropriao pelo leitor.

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    historiador estadunidense Hayden White destacou-se neste debate por suas

    importantes e polmicas consideraes. Segundo White, as narrativas histricas

    so fices verbais cujos contedos so tanto inventados quanto descobertos e

    cujas formas tm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do quecom seus correspondentes nas cincias (WHITE, 1994; p. 98). As obras de histria

    no apreendem um mundo exterior (o passado) porque o prprio real produzido

    pela linguagem, pelo discurso (WHITE, 1994).Ricoeur reconhece a importncia do

    raciocnio de White que coloca em primeiro plano a questo da urdidura do enredo

    na historiografia. Contudo, seu argumento seguir em uma outra direo.

    Para Ricoeur h um vnculo indireto entre a historiografia e a narrativa, que

    no diminui sua cientificidade, pois, como vimos acima, ele no ope explicao

    compreenso e sustenta que narrar j explicar, narrar mais compreender

    melhor. Ele defende a existncia de um entrecruzamento entre histria e fico no

    ato da leitura, que, todavia, no impede o estabelecimento de distines entre

    ambas. Ricoeur lembra que embora utilize a imaginao, a historiografia sofre uma

    limitao externa, concernente aos documentos, aos rastros que as experincias

    vividas deixaram no tempo: o historiador tem uma dvida com os vivos antigos. A

    historiografia utiliza os 3 conectores citados acima para inscrever o tempo da

    conscincia no da natureza enquanto a narrativa ficcional explora fecundamente as

    falhas, os desnveis entre estes tempos (RICOEUR, 2010, v3).

    Balano das revolues

    Aps termos realizado este panorama sobre os principais aspectos que

    levaram os historiadores a apontar Foucault e Ricoeur como filsofos que

    revolucionaram a histria da historiografia razovel que faamos uma breve

    comparao entre ambas as revoluesParece-nos que a revoluo de Foucault, abordada por Veyne, caracterizada

    pela descontinuidade presente tanto na arqueologia, quanto na genealogia, aponta

    para aquele uso do conceito de revoluo que implica uma ruptura com o passado

    para que seja dado um novo comeo, seja iniciado um novo tempo no qual a

    histria estaria aberta a aes extraordinrias. (ARENDT, 1988)

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    Por outro lado, Dosse afirma que a revoluo de Ricoeur por ele descrita

    no remete a idia de ruptura e descontinuidade, mas concepo de revoluo

    que indica retorno para1um estender-se sobre o passado a partir do presente

    (DOSSE, 2001) Com efeito, embora a proposta de Ricoeur no consista numaruptura com o passado e com a tradio, tampouco ela quer indicar um mero

    retorno.

    Quando questionado em uma entrevista se propunha um retorno

    metafsica Ricoeur disse: Se h uma palavra que eu recuso a palavra retorno. Eu

    digo continuao (OLIVEIRA, 1990). E essa continuao pode dialogar, e de certa

    forma incluir, autores que desferiram severas crticas a conscincia histrica

    ocidental como Marx, Nietzsche, Freud e... Foucault!

    Em suas reflexes sobre a histria Ricoeur no deixa de fazer meno a obra

    de Foucault2. No ltimo captulo de Tempo e narrativa ele analisa algumas

    proposies da Arqueologia do Saber. O que Ricoeur questiona em Foucault

    associao que ele faz de uma viso continusta da memria s pretenses de uma

    conscincia constituinte Segundo Ricoeur, defender a noo de memria histrica

    no implica fazer da histria um abrigo para a soberania da conscincia e do

    sujeito, como afirmara Foucault. Ademais, Ricoeur no evita o descentramento do

    sujeito realizado pelos mestres da suspeita Marx, Nietzsche e Freud. Em suma,

    ele no oferece um sujeito cuja conscincia totalmente transparente, um cogito

    que soberano de si mesmo, que controla plenamente seu sentido. No h nem

    sujeito exaltado (Descartes), nem sujeito humilhado (Nietzsche), mas, um cogito

    ferido. Em lugar de uma reflexo imediata da conscincia sobre si mesma, ou de

    uma ausncia de reflexo, o caminho que se abre de uma via longa, uma

    hermenutica do si que para compreender-se passa pelo desvio necessrio da

    percepo do outro e tambm dos signos da cultura. (RICOEUR, 1991 e 2010, v3;

    GAGNEBIN, 1997).Ento o que Ricoeur pretende no um retorno s filosofias do sujeito,

    reflexo total da conscincia sobre si, to duramente criticadas por Foucault.

    1Segundo Arendt, que citada por Dosse, estava ausente tanto da Revoluo americana quanto dafrancesa, a princpio, a idia de inovao e novidade. Eles alegavam, com toda sinceridade, quedesejavam o retorno dos velhos tempos em que as coisas eram como deviam ser. (ARENDT, 1988:p. 35)2Ricoeur tambm analisa as posies de Foucault em A memria, a histria, o esquecimento [2000].

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    Tampouco, ele faz apologia da disperso, da ausncia de sujeito e de reflexo sobre

    si. Se os modernos esforaram-se para construir um slido edifcio para o sujeito e

    a Razo, e os ps-modernos afirmavam que era preciso desconstruir tudo isso, a

    tarefa proposta por Ricoeur distingue-se de ambas: ele recolhe os cacos daconscincia histrica ocidental, mas no para reconstitu-la da maneira como era

    originalmente. Com suas mediaes imperfeitas, suas proposies de sentido

    parciais, que levam em conta as crticas desconstrucionistas ele anseia um mundo

    habitvel, onde seja possvel viver-junto com o outro.

    Destacamos acima as referncias de Ricoeur filosofia foucaultiana. Na obra

    de Foucault, todavia, as referncias Ricoeur so exguas. Segundo o levantamento

    feito por Castonguay h apenas 3 menes nos Ditos e escritos foucaultianos: 1)

    Uma breve meno uma sesso de debates, a qual se seguiu uma conferncia de

    Canguilhem sobre a lngua filosfica, na qual tanto Foucault quanto Ricoeur

    participaram e discutiram. 2) Uma referncia passagem da fenomenologia rumo

    ao estruturalismo no contexto filosfico francs1. 3) Uma aluso no que diz

    respeito origem histrica da conscincia e da culpabilidade (Ricoeur consagrou

    uma obra a este tema: Finitude e culpabilidade). O autor conclui este rol de

    referncias de forma categrica: As outras obras de Foucault ignoram

    sistematicamente a obra de Ricoeur2. (CASTONGUAY, 2010, p.83).

    Um breve olhar sobre as principais correntes da historiografia

    contempornea nos indica que houve um retorno do dilogo entre Histria e

    Filosofia. Alis, retornaram tambm o poltico e a narrativa que outrora foram

    preteridos pelas duas primeiras geraes dos Annales. O debate terico sobre o

    retorno da narrativa tem em Tempo e narrativa de Ricoeur uma importante

    contribuio que vem sendo lida e debatida entre os historiadores. poca de sua

    1Esta meno breve e superficial. Ela aparece em uma entrevista intitulada Estruturalismo e Ps-estruturalismo. O assunto tratado o cenrio filosfico francs. O nome de Ricoeur lembradoquando Foucault comenta sobre a relao entre as diversas correntes filosficas francesas, ofreudo-marxismo, a fenomenologia e o marxismo: Ricoeur, que no era marxista, certamente, masque era fenomenologista e estava longe de ignorar o marxismo; (FOUCUALT, 2005, p. 310).2Um indcio da pertinncia de uma abordagem comparativa entre Foucault e Ricoeur a presenade dois artigos sobre o tema no primeiro nmero da recm lanada revista tudesRicoeuriennes/Ricoeur Studies. Alm do texto de Castonguay que mencionamos h tambmHermneutiques croises: conversation imaginaire entre Ricoeur et Foucault - Annie Barthlmy.Nenhum dos dois, contudo, se prope a analisar o impacto dos autores na histria da historiografia.

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    publicao, Chartier chega a classific-lo como o mais importante publicado sobre

    histria nos ltimos dez anos. (CHARTIER apudDOSSE, 2001, p. 74).

    Segundo Stone, a volta da narrativa se deve ao enfraquecimento das

    abordagens econmicas, demogrficas e estruturais. (STONE, 1991). Poderamosdizer ainda, que diretamente relacionado a este enfraquecimento, e ao

    renascimento da narrativa, est a renovao da Histria Poltica. Durante algum

    tempo esta tendncia foi rotulada como factual, elitista, biogrfica, cuja

    metodologia era uma narrativa linear dos feitos dos grandes heris (JULLIARD,

    1988). Todavia, em sua renovao, h um alargamento do conceito de poltico. Este

    no possui mais fronteiras fixas, e, de modo algum se restringe a esfera estatal ou

    das elites, mas, est relacionado s mais distintas reas da vida coletiva

    (RMOND, 1996). Esta compreenso de poltico e de poder, ou melhor dizendo,

    dos poderes, aponta para mais um dilogo dos historiadores com a filosofia, desta

    vez com Michel Foucault. Para ele os poderes so exercidos nos diversos nveis da

    rede social. A existncia destes micro-poderes pode estar, ou no, integrada ao

    Estado. As transformaes ao nvel capilar, minsculo, do poder no esto

    necessariamente ligadas s mudanas ocorridas no mbito do Estado1

    (MACHADO, 1984, p. XII).

    A historiografia poltica passou a enfocar, nos anos 70, a Microfsica do

    poder, na realidade as infinitas astcias dos poderes em lugareshistricos pouco conhecidos dos historiadores famlia, escola, asilos,prises, hospitais, hospcios, polcia, oficinas, fbricas etc.; em suma, nocotidiano de cada indivduo ou grupo social. (FALCON, 1997, p.118).

    Poderamos por em questo se retorno o melhor termo para a nova

    relao que a historiografia tem mantido com a filosofia, a narrativa e a poltica. O

    dilogo com os filsofos j no se d sob o prisma da Filosofia da Histria, que

    buscava um sentido ltimo para os acontecimentos baseado em algum princpio

    atemporal. A narrativa histrica est longe daquela metodologia descritiva e linear

    combatida pelas primeiras geraes dosAnnales2.E a poltica no se resume mais a

    1 Segundo Roberto Machado, a proposta de Foucault no minimizar o papel do Estado nasrelaes de poder existentes na sociedade, mas se insurgir contra duas idias: 1) A de que o Estadoseria o rgo nico e central de poder. 2) A de que as redes de poderes existentes nas sociedadesmodernas seriam uma mera extenso do poder que emana do Estado. (MACHADO, 1984).2 pertinente lembrar que Ricoeur se posiciona contra a expresso retorno da narrativa. Segundoele, existe entre a histria e a narrativa um vnculo oculto, indireto. Durante um perodo do sculo

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    biografia dos heris nacionais. Estes argumentos nos autorizam concluir que no

    houve um retorno, mas uma renovao, uma nova configurao entre a Histria,

    a Filosofia, a narrativa e a poltica.

    Consideraes finais

    Antes de terminar nossa exposio apontaremos um trao que seria comum

    s revolues apontadas por Veyne e Dosse nas obras de Foucault e Ricoeur.

    Ambos sublinham a importncia do conceito de relaopara a Teoria da Histria1.

    Como j mostramos acima, Veyne escreve que a revoluo foucaultiana est

    fundada no primado da relao, na convico de que no so os objetos que

    determinam nossas aes, mas so as nossas prticas que determinam esses

    objetos. A relao determina o objeto. Em Foucault tudo historicizado, tudo

    depende de tudo, tudo est relacionado a tudo. Por outro lado, Dosse escreve que

    a revoluo ricoeuriana marcada por seu mtodo de mediaes imperfeitas que

    desfaz os antagonismos entre as posies conflitantes, sem, contudo, tentar dar

    uma resposta final s questes e apagar as aporias. Longe disso, Ricoeur anseia

    faz-las trabalhar de forma frutfera. Alis, acreditamos que o conceito de relao

    to importante para estes autores que o utilizamos para dar ttulo ao nosso texto e

    tambm para apontar a principal caracterstica de suas reflexes sobre a

    historiografia: relaes de fora, no caso de Foucault e relaes de sentido, no de

    Ricoeur.

    Retomando nossa hiptese, acreditamos que as obras de Foucault e Ricoeur

    deram uma contribuio significativa para uma nova configurao do dilogo entre

    filsofos e historiadores. Um ponto decisivo para isto, como j abordamos acima,

    XX, o que teria ocorrido, no foi uma separao total entre histria e narrativa, mas, aquilo que elechamou de eclipse da narrativa, pois, mesmo aquele que se pretendeu mais estrutural e menosnarrativo (Braudel), no deixou de narrar uma histria. (RICOEUR 2010, v1) Em outras palavras,para Ricoeur, embora a narrativa permanecesse na prtica historiogrfica, ela foi, em parteocultada, eclipsada. Conclumos esta nota com uma provocao: Acaso pode alguma coisa retornar,sem jamais haver partido?1 Esta idia nos foi sugerida pelo texto de Quadros que discute sobre a possibilidade de outrofilsofo francs, Jacques Derrida, ter revolucionado a histria da historiografia: Tanto Foucaultquanto Ricoeur, relidos respectivamente por Veyne e Dosse, tratam do saber histrico a partir deuma relacionalidade fundante. Seus textos abordam o primado das relaes e as mediaes.(QUADROS, 2009, p. 7).

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    que nenhum dos dois autores prope uma Filosofia da histria que busca um

    sentido ltimo para os acontecimentos a partir de um princpio atemporal. Neste

    sentido, importante que no se perca do horizonte as peculiaridades de cada

    campo do conhecimento. Malgrado alguns classifiquem Foucault comohistoriador1, sublinhamos que tanto as suas reflexes como as de Ricoeur sobre a

    historiografia so feitas sempre a partir do campo filosfico. Concordamos com o

    caminho indicado por Lucien Febvre:

    Dois espritos, bem entendido: o filosfico e o histrico. Dois espritosirredutveis. Mas no se trata de reduzi-los um ao outro. Trata-se defazer com que, permanecendo um e outro em suas posies, eles noignorem o vizinho ao ponto de lhe permanecer hostil ou estranho.(FEBVRE apudREIS, 2004, p. 133)

    No gostaramos de concluir este texto defendendo que a revoluo deRicoeur superior a de Foucault ou vice-versa. Acreditamos que aquilo que o

    ponto-fraco das anlises de um filsofo ser justamente o ponto-forte das

    pesquisas do outro. Se em Foucault parece que quase-tudo reduzido a relaes de

    fora e h pouco espao para a proposio de sentido, em Ricoeur ocorre o

    contrrio, h uma nfase nas relaes de sentido e pouco espao para os conflitos

    de poder. Mais do que escolher a um e renunciar ao outro, a fortuna do historiador

    poder se apropriar dos dois autores, das duas revolues, pois seu objeto de

    estudo, a passagem dos homens no tempo, no vivida somente por meio de

    relaes de fora, ou apenas pelas relaes de sentido. Caberia a historiografia

    ento a tarefa de mostrar que a historicidade humana ambgua, na qual

    coexistem tanto a beligerncia pelo poder quanto as atribuies de sentido.

    Recebido em: 20/05/2011Aceito em: 27/06/2011

    1No deixa de ser curioso uma certa recepo cruzada da obra foucaultiana: filsofos dizem queos livros do francs so obras de histria, enquanto historiadores afirmam que so textosfilosficos. O prprio Foucault no se decidia claramente a este respeito, definindo-se ora comohistoriador, ora como filsofo. Muchail aponta para uma perspectiva pertinente ao dizer queFoucault pensa filosoficamente ao praticar suas investigaes histricas, o que fica claro no trecho aseguir: Meus livros no so tratados de filosofia nem estudos histricos; no mximo, sofragmentos filosficos em canteiros histricos. (FOUCAULT apudMUCHAIL, 2004).

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