o que é um texto - ricoeur

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o QUE É UM TEXTO? Este ensaio será consagrado, no essencial, ao debate entre duas atitudes fundamentais que podemos assumir perante um texto. Estas duas atitudes foram resumidas, na época de Wilhelm Dilthey, no fim do século passado, pelas duas palavras «explicar» e "interpretar». Dillhey chamava explicação ao modelo de inteligibilidade recebido das ciências da natureza e alargado às ciências históricas pelas escolas posítivistas e fazia da interpretação uma forma derivada da compreensão, na qual via a alitude fundamental das ciências do espirito como a única capaz de respeitar a diferença fundamental entre estas ciências e as ciências da natureza. Proponho-me, aqui, examinar o destino desta oposição, à luz dos conflitos de escolas contemporâneas. De facto, a noção de explica- ção deslocou-se; não é herdada das ciências da natureza, mas de modelos propriamente lingu ísticos. Quanto à noção de interpretação, ela sofreu, na hermenêutica moderna, transformações profundas que a afastam da noção psicológica de compreensão, no sentido de Dihhey. É esta nova posição do problema, talvez menos antinómica e mais fecun- da, que eu gostaria de explorar. Mas, antes de entrar nos novos con- ceitos de explicação e de interpretação, gostaria de me deter numa questão preliminar que comanda, na realidade, toda a sequência da nossa investigação. E a questão é esta: o que é um texto? I- OQUE É UM TEXTO? ~; Chamamos texto atodo odiscurso fixado pela escrita. Segu ndo esta ::.definição, a fixação pela escrita é constituída do próprio texto. Mas o que .'"é que, assim, é fixado pela escrita? Dissemos: todo o discurso. Significa 141 ~":' ..~ .; . ~: ..i . :.,~

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Hermeneutica juridica

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Page 1: O Que é Um Texto - Ricoeur

o QUE ÉUM TEXTO?

Este ensaio será consagrado, no essencial, ao debate entre duasatitudes fundamentais que podemos assumir perante um texto. Estasduas atitudes foram resumidas, na época de Wilhelm Dilthey, no fim doséculo passado, pelas duas palavras «explicar» e "interpretar». Dillheychamava explicação ao modelo de inteligibilidade recebido das ciênciasda natureza e alargado às ciências históricas pelas escolas posítivistase fazia da interpretação uma forma derivada da compreensão, na qualvia a alitude fundamental das ciências do espirito como a única capaz derespeitar a diferença fundamental entre estas ciências e as ciências danatureza. Proponho-me, aqui, examinar o destino desta oposição, à luzdos conflitos de escolas contemporâneas. De facto, a noção de explica-ção deslocou-se; já não é herdada das ciências da natureza, mas demodelos propriamente lingu ísticos. Quanto à noção de interpretação, elasofreu, na hermenêutica moderna, transformações profundas que aafastam da noção psicológica de compreensão, no sentido de Dihhey. Éesta nova posição do problema, talvez menos antinómica e mais fecun-da, que eu gostaria de explorar. Mas, antes de entrar nos novos con-ceitos de explicação e de interpretação, gostaria de me deter numaquestão preliminar que comanda, na realidade, toda a sequência danossa investigação. E a questão é esta: o que é um texto?

I - O QUE ÉUM TEXTO?

~; Chamamos texto a todo odiscurso fixado pela escrita. S egu ndo esta:: .definição, a fixação pela escrita é constituída do próprio texto. Mas o que.'"é que, assim, é fixado pela escrita? Dissemos: todo o discurso. Significa

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Page 2: O Que é Um Texto - Ricoeur

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Do texto à acção

.isto que o discurso teve, primeiro, que ser pronunciado física ou mental-mente? Que toda a escrita foi, primeiro, pelo menos a título potencial,uma fala? Numa palavra.qual é a relação do texto com a fala?

À partida,somos tentados a dizer que toda a escrita se acrescentaa uma fala anterior. De facto, se entendermos por fala, de acordo comFerdinand de Saussure, a realização da língua num acontecimento dediscurso, a produção de um discurso singular por um locutor, então, cadatexto está em relação à língua na mesma posição de realização que a1ala Além dissQ._aE.scritaé.,JillqWmtQ..institul.çáQ>-PQsterior à íalacuíaarticulações, que já apareceram na oralidade, ela parece destinada afixar por um grafismo linear; a atenção quase exclusiva dada às escritasfonéticas parece confirmar que a escrita não acrescenta nada ao ten6-meno da fala, a não ser a fixação que permite conservá-Ia; donde a con-vicção de que a escrita é uma fala fixada, que a inscrição, seja grafismoou registo, é inscrição de fala, inscrição que assegura à fala a sua dura-bilidade graças ao carácter subsistente da gravura.

A anterioridade psicológica e sociológica da fala sobre a escrita nãoestá em causa, Apenas se pode perguntar se o aparecimento tardio daescrita não terá provocado uma mudança radical na nossa relação comos próprios enunciados do nosso discurso. Voltemos, com efeito, à nos-sadefinição: o texto é um discurso fixado pela escrita. O que é fixado pelaescrita é, pois, um discurso que poderia ter sido dito, éverdade, mas quese escreve, precisamente, porque não se diz. A fixação pela escrita sur-ge no mesmo lugar da fala, quer dizer, no lugar em que a fala poderia ternascido. Podemos, então, perguntar se o texto não é verdadeiramentetexto quando não se limita a transcrever uma fala anterior, mas quandoinscreve directamente na escrita o que quer dizer o discurso.

Aquilo que poderia dar peso a esta ideia de uma relação directa doqu e rer -d izer do enu nciado com a escrita é a função da leitura em relaçãoà escrita. De facto, a escrita redama a lei1ura segundo uma relação que,em breve, nos permitirá introduzir o conceito de inte rpretação. Por agora,digamos que o teitor ocupa o lugar do irneríocutor, corno, simetricamen-te, a escrita ocupa o lugar da locução e do locutor. Efectivamente, a rela-ção escrever-ler não é um caso particular da relação falar-responder.Não é uma relação de interlocutor; não é um caso de diálogo. Não bastafdizerquea leitura éum diálogo com o autoratravés da sua obra.é preciso'dízer que a relação do leitorcom o livro éde uma natureza completamen-te diferente; o diáloçoé uma troca de perguntas e de respostas; não há

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troca. desta~spécie .enne:o escritor e o leitor, o 'escritor não respondeaolertor; o livro separa até em duas vertentes a acto de escrever e oactode ler, -quenão.tcomunicarn: o leitor .está ausente .da escrita; oescritor_está.a~ sente -da <le.itura.ro .texto ..produz ,'assim ,uma dj!0aQ9Jltaçaodo J~~~~~~·º~~_scntor;;édestemadoque ele toma o lugar darelação de diálogo que liga, imediatamente, a voz de um ao ouvido dooutro.

Esta ocupação do lugar do diálogo pela leitura é tão manifesta que,~uandonosacontec.eencontrarumautor f I r- porexemp1o,.do.seU---_,_.,Iivr~), tem?s o sentimento de .urna profunda reviravolta desta relaçãomurto particular que temos com o autor na e pela sua obra. Às vezes,gosto de dizer que ler um livro é considerar o seu autor como já morto eolivro com? póstumo. De tacto, é quando o autor está morto que a rela-çao com o livro se torna completa e, de certo modo, intacta; o autor já nãopode responder, resta apenas ler a sua obra.. Esta ?iferença entre o acto da leitura e o acto do diálogo confirmaa nossa hipótese de que a escrita é uma realização comparável à falaparalela à fala. uma realização que ocupa o lugar dela e, de certo modo'a intercepta. Foi por isso que pudemos dizer que o que aparece na escritaé.o discurso e~quan!o inle~ão de dizer e que a escrita é uma inscriçãodl:ecta desta 10_!~.Q@0,mesmo se, histórica e psicologicamente. a es-crita começou portranscrevergrafieamente os signos da fala. Esta liber-tação da escrita que a coloca no lugar da 1ala é o acto de nascimento dotexto., Agora, o.que.é que acontecerá ao próprio enunciado, quando é

directarnente rnscnto em vez de ser pronunciado? Insistiu-se sempre nocarácter mais marcante: o escrito conserva o discurso e 1az dele umarquivo disponível para a memória individual e colectiva. Acrescente-setan:b~n: que a linearização dos símbolos permite uma tradução analiticae distintiva de todos os traços sucessivos e discretos da linguagem eaume~a. ass~m, a sua e~icácia. Isto será tudo? Conservação e eficáciaasSOCiadas nao caracterizam ainda senão a transcrição da linguagemoral em signos gráficos. A libertação do texto em relação à oralidadearrasta uma verdadeira transformação tanto das relações entre a lin-guagem e o mundo como da relação entre a linguagem e as diversassubj~ividades envolvidas, adoautore ado leitor. Já seapercebeu algu-ma coisa ?es~a secunda transformação, ao distinguir a leitura do diálogo;será precrso Ir ainda mais longe, mas partindo desta vez da transforma-

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o que é um texto?

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Page 3: O Que é Um Texto - Ricoeur

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-Do texto à acção

ção que atinge a relação referencial da linguagemcom o mundo, quandoo texto ocupa o lUgar da fala,

, Que entendemos nós por relação referencialou por tu nçâo referen-cial? Isto: ao di rigir-se a um outrolocutor, osujeitododiscurso diz alguma

, -coisa sobre alguma coisa; isso de que ele fala é o referente do seuF, discurso; esta função referencial é, como sesabe,produzida pela frase

~

queé,apri.meira efimais.simples unida~edediscurso; é.a frase que tem~r mira dizer alguma coisa de verdadeiro oualguma coisa de real. Pelo

t.\ enos, no discurso declarativo. Esta funçãoreferencial é tão impor-~ tanteque ela compensa, de algum modo, umaoutra característica da lin-

guagem, a que separa os signos das coisas;pela função referencial, alinguagem «restitui ao universo" (segundo as palavras de GustaveGuillaume) estes signos,que a função simbólica,na sua origem, tornouausentes das coisas. Todo o discurso está, assim,num grau qualquer,ligado ao mundo. Porque, se não se falasse domundo, do que é que se~~~ -

Mas, quando o texto ocupa o lugar da fala,alguma coisa de impor-tante se passa. Na troca de palavras, os loculoresestão presentes umao outro, mas também o estão a situação, aambiência, o meio circuns-tancial do discurso. É em relação a este meiocircunstancial que ° dis-curso é plenamente significante; o remeter paraa realidade é, finalmen-te, remeter para esta realidade que pode sermostrada «em torno" dosocutores, <tem torno" , se se pode dizer; daprópria instância de discurso;a linguagem está, aliás, bem equipada paraassegurar esta fixação; osdemonstrativos, os advérbios de tempo e de lugar, os pronomes pes-soais.os, eml2Qs do verbo e, em geral, todososindicadores ••deícticos ••

"ostensivos~ servem para fixar o discurso narealidade circunstancialque rodeia a instância de discurso. Assim, nafalaviva, o sentido idea/doque se diz inclina-se para a referência real,asaber,aquilo sobre quesefafa; no limite, esta referência real tende a coníundr-secom uma de-signação ostensiva em que a fala se junta aogestode mostrar, de fazerver. O sentido morre na referéncia e esta, naexibição.

Já não acontece o mesmo quando o textoocupa o lugar da fala. Omovimento da referência para a exibição é interceplado, ao mesmo tem-po que o diálogo é interrompido pelo texto. Eu digo, exactamente, inter-.ceptado e não suprimido; é aí que me afastarei,em breve, daquilo a quechamo, desde já, a ideologia do texto absolutoque procede, por umahipóstase indevida, a uma passagem liminarrnentesubreptícia, baseada

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o que é.um-texto?

nas observações justas que acabamos.defazer. O texto, vê-to-emos,não é sem referência; a tarefa da leitura, ·enquanto interpretação, seráprecisamente a de efectuar a referência. Pelo menos, nesta expectativaem que a referência é diferida, o texto está, de certa forma, ••no ar», forado mundo ou sem mundo; graças a esta obliteraçáo da relação com omundo, cada texto é livre de entrar em rslaçãocom todos os outros1extosque venham tomar o lugar da realidade circunstancial indicada pela falaviva.. Esta relação de texto a texto, no esbatimento do mundo de que sefala, gera o quasi-mundo dos textos ou literatura.

Essa é a transtorrnação que afecta o próprio discurso, quandoomovimento da referência para a exibição se encontra interceptado pelotexto; as palavras deixam de se esbater face às coisas; as palavras es-critas tornam-se palavras para si mesmas.

Esta ocultação do mundo circunstancial pelo quasi-mundo dos tex-to~ pod~ ser tão completa que o próprio mundo, numa civilização da es-c:i1a, deixa de sero que se pode mostrar ao falare reduz-se a esta espé-cie de "aura" que as obras explanam. Assim, falamos do mundo grego,do mundo bizantino. Este mundo podemos dizê-Ia imaginário, no sentidode que ele épresentificadopelo escrito, no próprio lugar em que o mundoera apresentado pela fala; mas este imaginário é, ele próprio, uma cria-ção da literatura. é um imaginário literário.

Esta transformação da relação entre o texto e o seu mundo é achave da outra transformação de que já falámos, a que afecta a relaçãodo texto com as subjectividades do autor e do leitor. Pensamos saber oque é o a.utQr de um texto porque dele se deriva a noção da de lQÇ,utorda fala; o sujeito da fala, diz Benveniste, é aquele que se designa a simesmo ao dizer ••eu ••. Quando o texto toma o lugar da fala, já não pode-mos falar propriamente de locutor, pelo menos, no sentido de uma auto--designação imediata e directa daquele que fala na instância de discurso;a esta proximidade do sujeitofafante com a sua própria fala substitui-seuma relação complexa do autor com otexto que permite dizer que o autoré instituído pelo texto, que ele próprio se mantém no espaço de signi-ficação traçado e inscrito pela escrita; o texto é exactamente o lugaronde o autor sobrevive. Mas ele sobrevive aí de uma forma diferente dad e primeiro leitor? A colocação à distância do autor p elo seu próprio textoé já um fenómeno de primeira leitura que, de uma só vez, coloca o con-junto dos problemas com os quais vamos, agora, ser confrontados e que

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. ". Do -texto à acção

dizem respeito às relaçóes da explicação com a interpretação; estas'relações nascem no momento da leitura. .

11- EXPLICAÇÃO OU COMPREENSÃO? .

De facto é na leitura que iremos ver, em breve, confrontarem-se asduas atitude~ que colocámos, no início, sob o duplo títul.o d~ explicaçãoe da interpretação. Esta dualidade encontra~o-Ia, em p~IfT~el~lugar, e~Difthey, o seu inventor. Em Dilthey, com ef~ito,es~as dlstm~es const~-tuíam uma alternativa naqual um termo devia exclw.'"um outro.?u C( ex~h-cais». àmaneira do sábio naturalista, ou «interpretais-, àmaneira do ~IS-

toriador. É esta alternativa exclusiva que irá fornecer o pont~ de partida.da discussão que se segue. Proponho-me mostrar que a noçao ~e texto,tal como a estabelecemos na primeira parte d~ste ensalo~ eXige umarenovação das duas noções de explicação e d~ Inte~(etaçao e, gra~asa esta renovação, uma concepção menos antínómca ~a sua relaçao.Digamos já que a discussão será de.'íberadam~nte ?nentada para ~procura de uma estreita complementandade e reciprocidade entre expli-cação e interpretação. . -'. .

A oposição inicial, em Dihhey, nao e exactamente e~tre explicar einterpretar, mas entre explicar e comp!eende:, sendo a mte.rpretaçãouma província particular da compreensao. Por ISSO, é da oposlçã~ e.ntreexplicar e compreender que devemos partir. Ora, se esta oposiçao éexclusiva, é porque, em Dilthey, os dois termos designam du~s esferasda realidade que têm que desempatar. Esta~ duas e~!eras sao as dasciências da natureza e das ciências do espírito, A reglao d~ natureza éa dos objectos oferecidos à observação científica e submetid?s, desdeGalileu, ao trabalho de matematização e, d~~de John St.ua~ ~lfl, ~os cá-nones da lógica indutiva. A região do espmto é a das I.ndlvidualidadespsfquicas nas quais cada psiquismo é cap~ ~e se mov!mentar. A com-preensão é essa transferência para um psqinsrno alheio, Perçumar sepodem existir ciências do espírito é perguntar, ~IS: se é.posslv~1 umaconsciência científica dos indivíduos, se esta intelíçéncia do Singularpode ser objectiva à sua maneira, ~e ela é suscept!vel ?e receber u~avalidade universal. Sim, responde Dilthey, porque o Inten~r se dá em sig-nos exteriores que podem ser apercebidos e compreendidos ~nquantosignos de um psiquismo alheio: ••Chamamos compreensão, dIZ ele no

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o que é um texto?

famoso artigo de 1900 sobre a origem da hermenêulica(1), ao processo'pelo qual conhecemos alguma coisa de psiquismo com a ajuda de sig'nossensíveis que são a sua manifestação» (p. 320). É desta compreensãoque a inlerpretaçáoé uma província particular. Entre os signos do psi-quismo alheio, temos as ••manifestações fixadas de modo duradouro»,os ••testemunhos humanos conservados pela escrita", os <f monumentosescritos". A interpretação é, assim, a arte de compreender aplicada aessas manifestações, a esses testemunhos, a esses monumentos, dosquais a escrita constitui a característica distintiva.

Neste par compreender-interpretar, a compreensão fornece o tu·n-damento, a saber, o conhecimento por signos do psiquismo alheio, ainterpretação fornece o grau de objectividade. graças à fixação e àconservação que a escrita confere aos signos .. À partida, esta distinção entre explicar e compreender parece clara;no entanto, ela não deixa de se obscurecer a pari1r do momento em quenos interrogamos sobre as condições de cientificidade da interpretação.Expulsou-sea explicação para fora do campo das ciências naturais; maso conflito renasce no próprio seio do conceito de interpretação entre, porum lado, o carácter intuitivo inverificável que ele possui do conceito psi-cologizante de compreensão ao qual é subordinado, por outro lado, aexigência de objectividade lígada à própria noção de ciência do espírito.Esta fragmentação da hermenêutica entre a sua tendência psico/ogi-zante e a sua procura de uma lógica da interpretação póe, finalmente, emcausa a relação entre a compreensão e a interpretação. Não é a inter-pretação uma espécie da compreensão que faz sobreSSair o gênero? Adíferença específica, a saber, a fixação pela escrita, nãoé, aqui, mais im-portante que o traço comum a todos os signos, a saber, atribuir um in-terior a um exterior? O que é que é mais imponante, na hermenêutica,a sua inclusáo na esfera da compreensão ou a sua diferença relativa-mente à compreensão? Schleiermacher, antes de Dilthey, tinha sido atestemunha desta fragmentação interna do projecto hermenêutico-e/etinha-a ultrapassado pela prática humana de um feliz casamento da ge-niafidade romântica com a virtuosidade filológica. Com Dillhey, asexigências epistemológicas são mais urgentes. Várias gerações Q

separam do sábio romântico, várias gerações implicadas na reflexão

(1) W. Dilthey. -Origine et développement dEi I'herménéutiquen (1900), in Je Monde de/'Esprir,.I, op. cit.

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Do ~X10 à acção~ '-

1- O PARADIGMA DO TEXTO

Para justificar a distinção entre linguagem falada 8 linguagem es-crita, preciso de introduzir um conceito preliminar, o do discurso. É en-quanto discurso que a linguagem é ou falada ou escrita.

Ora, o que é o discurso? Nao vamos pedir a resposta aos lógicos·nem mesmo aos defensores da análise linguística, mas aos próprios lin-

guistas. O discurso=rdaquilo a que os linguistas chamamsistema ou código linguíslic O discurso é o acontecimento de lin-guagem. . ~f)L~Ü\\t-~

Se o signo (Ionológico ou texlcal) é a unloade de base da linguagem,atrase é a unidade de base do discurso. É por isso que é a linguistica dafrase que serve de suporte à teoria do discurso enquanto aconlecimento.. Irei pegar em quatro características desta linguística da frase que meajudarão a elaborar a hermenêutica do acontecimento e do discurso.

Primeira característica: o discurso realiza-se sempre temporalmen-te e no presente. enquanto o sistema da língua é virtual e estranho aotempo. Émile Benveniste chama-lhe: -instância de discurso".

Segunda característica; enquanto a Ifngua não requer nenhumsujeito - no sentido de que a questão "quem fala .• não se apnca a estenível-, o discurso remete para o seu locutor graças a um conjunto com-plexo de mecanismos. tais como os pronomes pessoais. Diremos que a•.a instância de discurso .• é auto-referencia!. _

Terceira característica: enquanlo os signos da língua remetem ape-nas para outros signos no Interior do próprio sistema, e enquanto a línguadispensa o mundo como dispensa a temporalidade e a subjectividade,o discurso é sempre acerca de qualquer coisa. Refere um mundo quepretende descrever, exprimir, representar. É no discurso que se actuali-za a função simbólica da linguagem.

Quarta característica: enquanto a língua é apenas uma condlçào decornunlcação para a qual fornece códigos, é no discurso que sãotrocadas todas as mensagens. Neste sentido, só o discurso tem, nãoapenas um mundo, mas o outro, um inlerlocutor a quem se dirige.

Estas quatro características tomadas em conjunto fazem do dis-curso um acontecimento. Vejamos de que modo elas se realizam na lin-guagem oral e na linguagem escrita.

1. O discurso. dissemos nós, só existe enquanto discurso temporale presente. Esta primeira caracter/slica reauza-so de modo diferente na

I.\

II

I.

o modelo do texto

fala viva e na escrita. Na fala viva, a ínstáncia de discurso permanece umacontecimento fugidio. O acontecimento aparece e desaparece. É porisso que há um problema de tlxaçao, de lnscríçao. O que queremos lixaré o que desaparece. Se, por exlensáo, se pode dizer que se lixa a línçua_ ínscrlçao do allabeto. lnscriçáo lexical, lnscriçáo sintáclica -. é emrunçao só daquilo que exige ser fixado, o discurso. Só o discurso requerser lixado, porque o discurso desaparece. \X7

O sistema a-temporal não aparece nem desaparece; náo acontece. --iÉ·allurã-aêlêõibTéirrffi5S; aqui, o mito do Fedro. A escrita foi dada aos ,homens para "socorrer ••a ••fragilidade do discurso .•. Iraqilidade que é a ~do acontecimento. A dádiva dos grammata - destas •.marcas exter-nas", desta alienação material-apenas foi um ..remédio .•para a nOSSQmemória. O rei egípci<:>-dtfTêbas podia perleitamente responder ao deusToth que a escrila-er-a-l:Jffl-I-also remédio. na medida em que substituía averdadeira reminiscência pela conservação material, a real sabedoriapelo simulacro do conhecimento. Apesar destes perigos. a inscriçãoconslitui, lodavia._O-Qe-stiAe-é0-discurso. O que é que a escrita fixa elec-tivamente? Nãoo acontecimento do·dizer, mas o ..dito •.da fala, se enten-dermos pelo ••dito" 'aãfala a exteriorizaçao intencional que constitui aprópria mira do discurso em virtud_e da qual o Sagen -o dizer - quertornar-se Aus-sage - enunciado. Numa palavra, o que nós escreve-mos, o que inscrevernesré-ç n®Jtfa=éo dizer. É a signilicação do acon-tecimento de faia, não o acontecimento enquanto acontecimento.

Mas. se o que n7fs"'fixamos.é-ª Qi.óprià fala enquanto dita, o que é queé "dito •.?

Aqui, a hermenéutica tem de fazer apelo, não apenas à linguíslica(a Iinguística do discurso enquanto distinta da Hnguística da língua).como acima fizemos, mas ainda à teoria dos sctos de linguagem. 131como a encontramos em Austin e Scarle. O acto de ralar, segundo estes.autores, é constituído por uma hierarquia ordenada. distribuída por trêsníveis: 1) o nfvel do acto focucionário ou proposicional, o acto de dizer;2) o nível do acto ou da força ilocucionária. o que fazemos ao falar; e 3)o nível do acto perlocucionário. o que fazemos pelo lacro de dizer.

Que implicaçoes têm estas distinçOes para o nosso problema dJexteriorização intencional pela quai o acontecimento se supera nasignificaçao e se presta à tlxaçáo material? O acto locucionário exteriori-za-se na frase. De facto, a frase pode ser identificada e reidenlificadJcomo sendo a mesma. Uma frase toma-se um e-nunciado (Aus-sage) e

Í\. ~ _--'"~C"V ~ ...---T&i

Page 6: O Que é Um Texto - Ricoeur

Do lato à acçâo

pode, assim, ser transmitida a outros como sendo tal e tal frase dotadade tal e tal siqniíicaçáo. Mas o acto ilocucionário também pode serexteriorizado graças a paradigmas gramaticais (modos indicativo, im-perativo, conju ntívo e todos os outros processos que expri mem a "força»ilo ucionária) que permitem a sua idenlilicaçao e a sua reidentificação.verdade que, no discurso talado, a força ilocucionária assenta na

mímica e no gestõ assim como nos aspectosnáo articulados do discursoa que chamamos prosódia. Neste sentido,a força ilocucionária é inscritamenos completamente na gramática que a significaç!ío proposicional.Seja o que for, a sua inscrição segundo uma articulação sintáctica éassegurada por paradigmas específicos que, por princípio, tornam pos-_sível a fixação pela escrita. Temos,sgrn dúvida, de aceitar queo acto

1\\perlocucion.áriO é o a:pe~to d~-aIScursomenos facil de inscrever ê que. \\Icaractenza, de peferencía,a"llnguag-e-!2!-talael-cr.--M.@sa acçào perlocu-

cionária .precisarnen e, aquDo que, nodiscurso, é menos discurso. Éo discurso enquanto eslímulo. Ele opera,não graças ao reconhecimen-to da minha íntençáo pelo meu Interloculor, mas, se assim se pode dizer,pela sua energia, em virtude da sua inJluência directa nas emoções edisposições arectivas. Assim, o acto proposicional, a torça ilocucionáriae o ado perJocucionário são susceptíveis, numa ordem decrescente, dee . aç es intenclo ·u.e...L0rnam possível a inscriçáo na escrita.

Daí resulta. que é.preciso enterT~I,\rpor significaçào do acio de lin-guagem ou, mais precls arnenle, por ~a do dize r, nao apenas a fraseno sentido restrito do acto proposicional, mas lambém a força ilocu-cionária e a acçáo perlocucionária, namedida em que estes três aspec-tos do acto de linguagem são codilicados, elevados à categoria deparadigmas e em que, como consequência, podem ser identificados erei::lentificados como tendo a mesma signilicaçào. Dou, aqui, à palavra"significaçào •• uma acepçào mais laia que cobre todos os aspectos etodos os níveis da exteriorização intencional que torna possível a ins-críçao do discurso. .

O destino das outras três características do discurso, na passagemda fala à escrita, vai exigir precisões suplementares no que diz respeitoa esta elevação do dizer ao dito.

2. No discurso, dissemos nós - e era a segunda característicadiferencial do discurso em relação à língua-:-, aJrasedesigna o seu lo-cutor por meio de diversos indicadores desubjedivídade e depersonali-

188

o modelo do IV:(O

dade. No discurso oral, esta devolução do discurso ao sujeito fala.Dleapresenta um carácter de imediatid~d.e que se pode e~pti.c.ardo seguintemodo. A Intenção subjectiva do sujeito falante. e a slgnl1tcaç~o do seudiscurso' recobrem-se mutuamente de tal modo que é a mesn:a coisacompreendero que o loculorquerdizer e o q~e quer diz er o ~eu discurso.A ambiguidade da expressao francesa voulolfdlre(querer dizer). corras-pondendo ao aíemáo ••meinen .. e ao inglês "to meen-, testemu.nha estausurpaçao. t: quase a rneSllla coisa pergun\ar·.flQ!I~ qller voce dizer?"

iI

J

e "Que quer isso dizer? ». Com o discurso es~nto, ~ Intenção. do. ~utor ea intenção do texto deixam de coincidir. Esta dl~soclaçé1o d~ slqnilicaçàoverbal do texto e da intenção mentaí constnuí a verdadeifa aposta da

inscriç~o do.discurso.. . .Isto não quer dizer que possamos conceber um t~xto s~m autor; o

elo entre o locutor e o discurso náo é abolido, mas dlstendido e com-plicado. A dissociação da significação e.d.a intenção permanece. umaaventura da devolução do discurso ao SUjeito talante. Mas a c~rrelra dotexto escapa ao horizonte tini to vivido pelo seu autor. O que diZ o textoimporta mais do que aquilo que o autor quis dizer; do:avante,. oda aexegesedesenvo ve os sUprocessos no seio da clrcunscr~ção deslqnillcação gue rompeu as suas amarras com a psícoloçia do seu autor.Para voltar, uma vez mais. à expressão de Platao, o dlscurs-º--e~cnto nàopode ser «?~orri~o~ os proces~o~ que concorrem R~r.? acompreensào ao dlscurs.o oral: entoação, rrurmca, ge.sto. Neste sentico.a lnscriçào em::-marca1? externas •. Que, inicialme~te, par~ceu alienar odiscurso, "marca" também a espíritualidade elecuva do discurso. A par-tir daí, apenas a siqnilicaçáo "presta socorro •. à signific~çãO sem o ~o~tributo da presença física e psiclógica do autor. Mas dizer que a ~Ignrücaçao «presta socorro- à significação é dizer que apenas a ínter-pretaçao é o «remédio .. para a fragilidade do discurso que o seu autor

já não pode «salvar-.

3. O acontecimento é ultrapassado, uma terceira vez, pela slqruílca-çáo. O discurso. dissemos nós; é o que se r~fere ao m.undo, a um mun-do. No discurso oral. isso significa que aquiío que o diáloço refere, emúltima análise, é a situaç.1ocomum aos interlocut.ores. Es~a snuaçao querodeia, 'de algum modo, o diálogo e as suas referênCias pod~m serapontadas aoeco. porexe.mp.lo, ou~esignadas de forma o~le,:slVa petopróprio discurso, graças à referência oblíqua de fõdos os indicadores.

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Page 7: O Que é Um Texto - Ricoeur

Do texto à acção

como os demonstrativos, os advérbios de tempo e de lugar, os tem-~s do verbo, etc. No discurso oral, diremos nós, a referência é osten-siva.. Oue lhe acont~ce no ~iscurso es.crito?Poderemos dizer que o textoJ~ não tem ref~rêncla? Sena coníundir referência e rnostração, mundo es~tuaç~o. O discurso não pode deixar de se relerir a alguma coisa. Aodizer Isto, ?fasto-me de toda a ideologia do texto absoluto. Só umpequeno numero de textos seleccionados satisfaz este ideal do textos~m. ~eferência. São textos em queo jogo do significante rompe com oSignificado. Mas esta nova forma tem apenas valor de excepçáo e nãopode fornecer a chave de todos osoutros textos que, de uma maneira oude outra, falam do mundo. Mas o que é, então, o assunto de textos emque nadapode ser mostrado? Longede dizer que o texto é sem mundosustentarei, sem paradoxo, que só o homem tem um mundo e nãoapenas u:na situação. 00 mesmo ~odo que liberta a sua significação datutela da Intenção mentat, o texto liberta a sua referência dos limites dareferência ostensiva. ~ara nós, o mundo é o conjunto das referênciasabertas pelos textos. E assim que lalamos do ••mundo" da Grécia, nãopara designar o que eram as situaçõespara aqueles que as viviam maspara deslçnar as referências não siluacionais que sobrevivem ao desa-parecímento dos precedentes e que, doravante, se oferecem comomodos possíveis de ser, como dimensões simbólicas do nosso ser-no--mundo. ~al ~,para mim, o relerente de toda a literatura: já não o Umwerr'das ~efe:enclas ostensivas do diálogo, mas o Welt projectado pelasreferências não ostensivas de todosos textos que nós lemos, compreen-dem.os e de que gostán:os ..Compreender um texto é, ao mesmo tempo,elUCI?ar a nossa próp.na süuaçao ou, se se quiser, interpolar entre ospredicados da nos~a situação todasassignilicaçõesque faze m do nossoUmwelt um Welt. E este alargamento do Umwelt às dimensões do Weltq~e nos permite ralar das referências abertas pelo texto; seria melhordizer que estas referências abrem omundo. Mais uma vez, a espirituaii-cace ~o ~Iscurso se n:anif esta pela escrita, libertando-nos da visibilidadee.da hmltaç~o das situações. abrindo-nos um mundo, a saber, novasdimensões do nosso ser-no-mundo.

Neste sentido, Heideggertem razão para dizer - na sua análise doVerstehen ~m Sein und Zeit - que aquilo que, primeiro, compreende-mos num discurso não é uma outra pessoa, mas um projecto, isto é, oesboço de um novo ser-no-mundo. Só a escrita, ao libertar-se, náo

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o modelo do texto

apenas do seu autor, mas da estreiteza da situação dialogat, reveta que

o destino do discurso é projectar um mundo.Ligando, deste .modo, a referência à projecçao de um mundo,

nao é apenas Heidegger que nós seguimos, mas Wilhelm von Humboldtpara quem a justilícaç~o máxima da linguagem era estabelecer a re-lação entre o homem e o mundo. Se eliminarmos. es~~ tunçáo rele-renGial, permanece apenas um jogo absurdo de siqnilicanles erran-

tes.

4. Mas é talvez com a quarta característica que a raallz açào dodiscurso na escrita é mais exemptar. Só o discurso, e não a linguagem,se dirige a atguém. Reside aí o fundamento da comunicação. Mas, parao discurso, uma coisa é ser dirigida a um interlocutor igualmente pre-sente na süuaçáo, outra é dirigir-se, como normalmente acontece como fenómeno da escrita, a quem quer que saiba ler. Em véz de se dirigirunicamente a ti, segunda pessoa, o que é escrito dirige-se ao auditórioque ele cria por si mesmo. Também isto marca a espiritualidade daescrita, como contrapartida da sua materialidade e alienação que elaimpóe ao discurso. O frente a frente da escrita equivale àquilo quequalquer pessoa é capaz de ler. A copresença dos sujeitos no diálogodeixa de ser o modelo de toda a "compreens~o". A relação escrever-lerdeixa de ser um caso particular da relação falar-ouvir. Mas, ao mesmotempo, o discurso é revelado enquanto discurso na universalidade dasua direcção. Ao escapar ao carácter momentâneo do acontecimento,aos constrangimentos vividos pelo autor e à estreiteza da referência os-tensiva, o dis~urso escapa aos limites do lace-a-face. Já não há ouvintevisível. Um.leliõfdesconhecido, invisível, tornou-se o destinatário nao

privilegiado do discurso.

Em que medida se pode dizer que o objecto das ciências humanas'se conforma com o paradigma do texto'? Max Weber define este objectocomo Sinnhaft orientiertes Verhallen, como ••conduta orientada domaneira sensata". Em que medida se pode substituir O predicadcorientado de maneira sensata por aquilo.a que eu gostaria .de chamar oscstsctets de legíbílídade que podemos derivar da análise precedente do

texto? .Tentemos aplicar os nossos quatro critérios de textualidade ao

conceito de acçáo sensata.

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