licenciamento ambiental
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Paulo Procpio Burian
DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL AVALIAO AMBIENTAL ESTRATGICA
AMBIVALNCIAS DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL DO SETOR ELTRICO
Tese de Doutorado em Cincias Sociais apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientao do Prof. Dr. Daniel Joseph Hogan
Este exemplar corresponde verso final da Tese defendida e aprovada em 22/02/2006, perante a Banca Examinadora.
Banca Examinadora: Prof. Dr. Daniel Joseph Hogan Profa. Dra Leila da Costa Ferreira Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto Prof. Dr.Gilberto De Martino Jannuzzi Prof. Dr. Alfio Brandemburg Suplentes: Prof. Dr. Roberto Luiz do Carmo Prof. Dr. Jos Marcos Pinto da Cunha Profa. Dra. Lcia da Costa Ferreira
Campinas 2006
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP
Bibliotecrio: Helena Joana Flipsen CRB-8 / 5283
Burian, Paulo Procpio. B916d Do estudo de impacto ambiental avaliao ambiental estratgica : ambivalncias do processo de licenciamento ambiental do setor eltrico / Paulo Procpio Burian. Campinas, SP : [s.n.], 2006. Orientador: Daniel Joseph Hogan. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Impacto ambiental. 2. Meio ambiente. 3. Energia eltrica - Conservao. I. Hogan, Daniel Joseph.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.
Ttulo em ingls: From environmental impact assesment to strategic Environmental assessment. Palavras-chave em ingls (Keywords): Analysis of environmental impact, Environment, Electric power - Conservation. rea de concentrao: Titulao: Doutor em Cincias Sociais. Banca examinadora: Daniel Joseph Hogan, Leila da Costa Ferreira, Shiguenoli Miyamoto, Gilberto De Martino Jannuzzi, Alfio Brandemburg. Data da defesa: 22-02-2006.
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Essa tese dedicada a minha querida av Oneide, meu
maior exemplo de perseverana e dedicao.
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Agradecimentos
Pronto. Nem acredito que cheguei na hora de fazer os agradecimentos. Confesso que
nos ltimos meses tenho sonhado com esse momento, j que simboliza melhor do que
qualquer outro o trmino desse trabalho.
Tudo comeou em 2001 quando iniciei essa empreitada buscando aprimorar meu
trabalho na rea de licenciamento ambiental de projetos de usinas hidreltricas. Nessa
primeira etapa fui muito incentivado por diversas pessoas, dos quais posso destacar os
amigos PQ e Andra, que passaram horas conversando sobre meu projeto inicial,
quando as idias ainda estavam vagas na minha cabea, e Mateus e Tayne, que
passaram anos escutando sobre a tese. Merece ainda meus agradecimentos os velhos
amigos Yellow, Biro e Jorjo, contemporneos dessa fase que acompanharam de perto
meus esforos inicial e final. De modo geral, todos os amigos foram fundamentais e
seria injusto continuar citando, pois acabaria esquecendo de algum, mas preciso
destacar a ajuda da Gabi, que alm dessa velha e boa amizade, me auxiliou muito na
estruturao da tese com dicas preciosas e sugestes pertinentes em momentos
cruciais.
Dentro da Unicamp, sempre fui bem recebido e atendido pelos professores e
funcionrios que cruzaram meu caminho. Dois professores, entretanto, merecem
agradecimento especial: o meu orientador Daniel Hogan, por sempre acreditar que eu
poderia finalizar o trabalho mesmo estando distante e envolvido plenamente em outras
atividades, enriquecendo a tese com seus valiosos comentrios; e Leila da Costa
Ferreira, cujas disciplinas e ensinamentos foram extremamente teis para subsidiar a
parte terica.
Com relao aos funcionrios da Ps-graduao, destaco Maria Rita e Gil, que sempre
se prontificaram a prestar todos os esclarecimentos necessrios nessa caminhada.
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Agradeo ainda ao colega Benlson pelo apoio e comentrios pertinentes durante as
disciplinas.
Em Curitiba, devo agradecimentos aos professores Alfio Brandemburg, Dimas Floriani,
cujas disciplinas foram importantes para o desenvolvimento terico do presente
trabalho. Alm deles, agradeo ainda, de modo geral, aos funcionrios do curso de
doutorado de Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPR, que disponibilizaram os
computadores para que eu pudesse acessar os peridicos eletrnicos importantes para
a concluso da tese.
No teria sido possvel a elaborao dessa tese sem a sustentao financeira da
SOMA, assim como a compreenso, apoio e amizade de todos os scios e
colaboradores, que tornaram o ambiente agradvel para o exerccio dessa atividade. Ao
Roni, vale um agradecimento especial pelas dicas acadmicas, Karin pela interrupo
de suas frias para ajudar com o scanner e Taciana pela ajuda na elaborao de
mapas para inserir nesse trabalho.
Agradeo ao apoio incondicional de minhas irms Gabriela, Natlia e Mariana, assim
como de suas respectivas famlias, incluindo meus sobrinhos to queridos, Marcela,
Alice, Eduardo e Artur. minha me, que se mobilizou para ajudar em um dos
momentos mais difceis para finalizar essa tese.
Devo agradecimento ainda a meu pai, que sempre me incentivou nessa empreitada no
s com palavras, mas, principalmente, com o prprio exemplo de vida. Devo tambm
agradecer a sua esposa, Ana Cristina, to companheira dele, que tambm me ajudou.
E para encerrar, no poderia deixar de agradecer Adriana, por todo amor e carinho ao
longo dessa jornada.
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Segundo a perene e imutvel lei deste mundo, tudo criado, tudo
desaparece, motivado por uma srie de causas e condies; tudo
muda, nada permanece inaltervel. (A Doutrina de Buda)
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Resumo
Nas ltimas dcadas, dois movimentos aparentemente antagnicos influenciaram
diretamente a absoro da temtica socioambiental no nvel institucional. Se por um
lado ocorreu o processo de globalizao com a integrao da economia mundial
reduzindo a atuao do Estado nacional em setores estratgicos, por outro lado houve
uma consolidao dos processos de licenciamento ambiental, conseqncia das
presses exercidas tanto pelos movimentos sociais, quanto pelas agncias multilaterais
de financiamento.
Tomando como ponto de partida a confluncia desses dois aspectos distintos que se
confrontam e dialogam, o presente estudo visa verificar at que ponto os processos de
licenciamento tm desempenhado um papel importante para que as questes
socioambientais sejam devidamente incorporadas no setor eltrico brasileiro. Embora
esses processos tenham representado um passo importante em direo
sustentabilidade, ainda precisam ser aprimorados de modo a incluir outros aspectos
como a consulta pblica, que no se encontram plenamente equacionados.
A partir da constatao, por meio de estudos de caso, de que os Estudos de Impacto
Ambiental - EIAs - tm se mostrado insuficientes na medida em que so elaborados
apenas na etapa de projeto, recentemente tem sido introduzida a Avaliao Ambiental
Estratgica AAE, um novo instrumento que tem como objetivo inserir a varivel
socioambiental na etapa de planejamento para influenciar no processo de tomada de
deciso em seu estgio inicial. Embora reconhecidamente a introduo de AAE
represente um avano, no pode ser considerada, de modo algum, como uma soluo
definitiva para essa questo.
Desse modo, sem ter a pretenso de dar respostas definitivas, este trabalho busca
levantar diversos aspectos que permeiam a relao entre o setor eltrico e o meio
ambiente, demonstrando como as incertezas da era ps-moderna tambm se refletem
nos mecanismos de licenciamento ambiental. Trata-se, portanto, de um processo em
permanente construo e fundamentalmente dependente do dilogo para seu
aprimoramento.
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Abstract
In the last decades, two movements apparently opposed have influenced the way of
incorporation of environmental debates on the level of the institutions. On the one hand,
there is the globalization process which conveys the integration of the capitalist world,
weakening the power of the National State in strategic sectors. On the other hand, the
license process has been consolidated, due to the pressure of social movements and
multi-lateral agencies.
Based on this particular context, the present study seeks to verify to which extent the
license process has played an important role for the environmental debates to be
incorporated in the Brazilian electric sector agenda. Yet the environmental license
process is an important step in the direction of sustainability, it needs to be improved,
even including issues like public consultation.
Case studies about Environmental Impact Assessments - EIAs show that they are
insufficient, for they are carried out only during the Project stage. Thats why the
Strategic Environmental Assessment SEA has been recently developed. The objective
of this new instrument is to incorporate the environmental issues in the Planning stage,
then any important decision will be taken in the very beginning. Even though the
introduction of SEA has been important, case studies prove that it cannot be considered
a final solution to these problems.
Yet this study does not bring definitive answers, it intends to identify several pertinent
questions regarding the relationship between the electric sector and the environment,
suggesting that the uncertainties of the post-modern age are also present in the
environmental license instruments. Finally, this process is in permanent construction and
it depends fundamentally on constant dialogue to be refined.
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SUMRIO INTRODUO 13
PARTE I - BASES TERICAS E CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA 27
CAPTULO 1 - INCERTEZAS DA RELAO ENTRE MEIO AMBIENTE E SETOR ELTRICO NO BRASIL
27
1.1 Apresentao 27
1.2 Da modernidade plena para a ps-modernidade: identificao das razes tericas do ambientalismo
33
1.2.1 Emergncia das questes ambientais nas cincias humanas 36
1.2.2 Fases das sociologia ambiental 40
1.3 Questo ambiental na ps-modernidade 53
1.3.1 Sociedade de Risco e Modernizao Ecolgica 59
1.4 Desafio no caso de pases em desenvolvimento 66
CAPTULO 2 CONTEXTUALIZAO DA RELAO ENTRE AS QUESTES SOCIOAMBIENTAIS E O SETOR ELTRICO BRASILEIRO
69
PARTE II ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E AVALIAO AMBIENTAL ESTRATGICA ASPECTOS GERAIS E ESTUDOS DE CASO
87
CAPTULO 3 ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL INSTRUMENTO EFETIVO NA INCORPORAO DAS TEMTICAS AMBIENTAIS PELO SETOR ELTRICO?
87
3.1 A introduo de Estudo de Impacto Ambiental como instrumento de licenciamento ambiental no Brasil
87
3.2 Aspectos crticos de Estudos de Impacto Ambiental no Brasil 93
3.2.1 Aspectos Legais 93
3.2.2 Estudos de caso no Brasil 98
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3.2.3 Consideraes Finais a respeito dos Estudos de Impacto Ambiental avaliados
134
3.3 Cenrios e perspectivas globais da instituio de EIA 136
CAPTULO 4 ANTECIPANDO QUESTES SOCIOAMBIENTAIS NO PROCESSO DECISRIO POR MEIO DA UTILIZAO DA AVALIAO AMBIENTAL ESTRATGICA
153
4.1 Emergncia da Avaliao Ambiental Estratgica no contexto nacional ocupando lacunas do Estudo de Impacto Ambiental
153
4.2 Estudos de caso: Taquari-Antas, Rio Grande do Sul e Chopim, Paran
161
4.2.1 Bacia do Taquari-Antas, Rio Grande do Sul 161
4.2.2 Bacia do Chopim, Paran 176
4.2.3 Aspectos pertinentes e comparativos entre as Avaliaes Ambientais Estratgicas avaliadas
192
4.3 Consideraes sobre a Avaliao Ambiental Estratgica como instrumento no processo de licenciamento ambiental
194
CONCLUSES 199
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INTRODUO
Em 1998, a BAESA - Energtica Barra Grande S.A., consrcio de empresas que detm
a concesso da Usina Hidreltrica - UH - Barra Grande, protocolou no Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente IBAMA, os documentos necessrios para o processo de
licenciamento ambiental da Usina Hidreltrica - UH - Barra Grande, ou seja, o Estudo
de Impacto Ambiental EIA e o respectivo Relatrio de Impacto Ambiental RIMA
referente a esse empreendimento localizado no rio Pelotas na divisa dos estados de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que faz parte da bacia hidrogrfica do rio Uruguai.
Com base nesses documentos, a Licena Prvia - LP - foi concedida pelo IBAMA em
1999. Posteriormente, com a emisso da Licena de Instalao - LI, iniciou-se a
construo da barragem da UH Barra Grande em julho de 2001.
No incio de 2004, com a barragem praticamente concluda, foi necessrio realizar um
inventrio florestal para a obteno da autorizao do desmate da rea a ser alagada
pelo reservatrio. Com a realizao desse inventrio, constatou-se que o RIMA relativo
a esse empreendimento omitiu a presena de mais de 2.000 hectares de florestas
primrias de araucrias (Araucaria angustifolia) e outros 4.000 hectares de florestas em
diferentes estados de regenerao (Prochnow, M. 2005).
No RIMA, documento de maior acessibilidade ao pblico, omite-se a presena das
matas com araucrias, referindo-se rea a ser diretamente afetada da seguinte forma:
As matas marginais mostram-se pouco desenvolvidas, ou
seja, constituem-se uma vegetao j impactada. Sua
fisionomia repete, em sua maior parte, a observada nas
encostas.
Assim, a regio a ser diretamente impactada pelo
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empreendimento se caracteriza pelas reas cultivadas,
silvicultura e matas remanescentes, essas ltimas
impactadas por processos de extrao seletiva de madeira e
distribuda em forma de fragmentos (ENGEVIX, 1998: 23).
Percebe-se claramente, nesse processo, que houve uma omisso evidente, de
aparente m f, em relao descrio da rea a ser afetada pelo reservatrio,
agravada pela falha do IBAMA no processo de vistoria realizado na poca do
licenciamento prvio. Com a construo autorizada tendo com bases documentos com
graves falhas, criou-se um imbrglio de natureza jurdica e ambiental.
Rendendo-se lgica do fato consumado com a barragem pronta, aps um longo
perodo de brigas jurdicas, a justia federal autorizou a supresso da vegetao para a
formao do reservatrio e o IBAMA, com base em um Termo de Ajustamento de
Conduta, que entre outras condicionantes, estabeleceu a necessidade de elaborao
de uma Avaliao Ambiental da bacia do rio Uruguai, emitiu a Licena de Operao
LO em 4 de julho de 2005.
Esse caso recente citado acima, referente ao processo de licenciamento ambiental da
UH Barra Grande, foi inserido a ttulo de introduo pelo seu carter simblico, ao
demonstrar que a instituio de processos de licenciamento de empreendimentos
hidreltricos no Brasil em meados da dcada de 1980 no significou, de modo algum,
que a questo socioambiental1 estivesse de maneira adequada plenamente incorporada
pelo setor energtico brasileiro.
1 Pela legislao pertinente, consideram-se os impactos sociais como parte dos impactos ambientais. Entretanto, h posicionamentos contrrios a essa formulao, pois isto significaria tirar da populao que
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Sem querer aprofundar o caso especfico da UH Barra Grande, no qual nitidamente
evidenciaram-se graves falhas e omisses, o presente estudo visa verificar at que
ponto os processos de licenciamento tm desempenhado um papel importante para que
as questes socioambientais sejam devidamente incorporadas na rea de energia no
Brasil, tomando como base o setor eltrico.
Em que pese esse pssimo exemplo, o fato que somente por meio de processos de
licenciamento introduzidos no contexto democrtico, que de modo algum se esgotam na
elaborao de EIA e de RIMA, possvel identificar impactos e propor medidas e
programas que podem vir a prevenir, minimizar e/ou compensar de modo satisfatrio os
efeitos deletrios da implantao de empreendimentos hidreltricos que no eram
adotados at meados de 1980.
Entretanto, diante da constatao de que os instrumentos de licenciamento ambiental
como EIA e RIMA so insuficientes para equacionar a questo socioambiental nos
empreendimentos do setor eltrico, o presente estudo pretende analisar o modo como
tem surgido a demanda por instrumentos que busquem antecipar a identificao dessas
questes mais relevantes e ampliar a participao da sociedade civil no processo de
licenciamento ambiental. Para atender essa reivindicao, no Brasil, assim como nos
demais pases, tem sido gradualmente introduzidas a Avaliao Ambiental Estratgica -
AAE.
Tomando como base a introduo dos diversos mecanismos de licenciamento
ambiental no setor de energia, sejam eles j consolidados (EIA, RIMA) ou no (AAE), a
partir de estudos de casos no Brasil e comparados com exemplos em outros pases,
so investigadas as nuances na complexa relao entre a emergncia e consolidao
do ambientalismo, refletida no cumprimento, em maior ou menor grau de seriedade, de
sofre o impacto o seu papel de agente, mantendo a mesma lgica do empreendedor de apropriao do
territrio e controle de recursos (VAINER, 1993). No pretendo aprofundar esta discusso, optando por
adotar o termo socioambiental.
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normas e exigncias ambientais, principalmente no tocante ao processo de
licenciamento, diminuio do papel do Estado como agente de desenvolvimento e
acelerao da globalizao, ocorrida principalmente a partir de meados da dcada de
1980.
De fato nas ltimas dcadas do sculo XX, esses dois movimentos aparentemente
antagnicos influenciaram diretamente no processo de absoro da temtica ambiental
pelo setor de energia. Como afirma Fuchs e Arentsen (2002: 525),
em primeiro lugar, as polticas energticas tm sido
associadas com a crescente preocupao na
sustentabilidade. Em segundo, liberalizao, desregulao e
privatizao tm trasformado a organizao visando o
mercado de energia.2
Nesse sentido, uma das principais questes abordadas refere-se verificao do modo
como o processo de globalizao ocorrido a partir das ltimas dcadas do sculo XX
estaria relacionado, no s retirada do Estado da esfera econmica e estratgica
como o setor de energia (Sawyer apud Ferreira, 2003: 125), mas ao aparentemente
contraditrio processo de estabelecimento de exigncias ambientais assim como a sua
normatizao em nvel mundial. Ser que essa relao serve como um retrato fiel da
chamada ps-modernidade3 com todas as suas contradies e complexidades
presentes?
Um dos objetivos especficos do presente estudo verificar se a obrigatoriedade de
documentos como EIA ou AAE no processo de licenciamento, cujo escopo e
2 Traduo do autor: first energy policy has been associated with a steadily growing focus on
sustainability. Secondly, liberalization, deregulation and privatization have transformed the organization
and outlook of the energy markets. 3 No captulo 1, esse conceito ser abordado de modo mais sistemtico.
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metodologia de cada um encontram semelhanas em diversos pases do mundo, pode
servir como exemplo da aplicabilidade ou no da teoria da modernizao ecolgica ao
contexto de pases em desenvolvimento como o Brasil, ou se, pelo contrrio,
simbolizam atravs de exemplos como o citado anteriormente, a era da sociedade de
risco.
Visando dar conta dessa questo, a relao entre questes ambientais e setor de
energia analisada com a precauo de no fazer nem uma anlise maniquesta nem
tampouco de causa-efeito, evitando cair na armadilha da simplificao das questes em
vigor que acabaria empobrecendo o debate, perdendo a chance de aprofundar
questes realmente relevantes.
Tendo como premissa essas questes, o presente trabalho divide-se em duas partes.
Na primeira parte so apresentados os conceitos tericos abordados, assim como
aspectos da questo ambiental dentro do setor eltrico no sentido de contextualiz-lo. A
segunda parte dedicada a uma anlise dos instrumentos de licenciamento ambiental,
incluindo por um lado os j consagrados EIAs e RIMAs e, por outro lado, as AAEs. Para
encerrar, so feitas consideraes finais visando verificar at que ponto o processo de
licenciamento ambiental serve como um retrato da ps-modernidade.
A seguir, so apresentados o contedo e objetivo de cada parte e respectivos captulos.
Parte I
A Parte I dividida em dois captulos. O primeiro refere-se s incertezas e
ambivalncias pertinentes teorizao da relao entre meio ambiente e setor eltrico,
enquanto o segundo refere-se contextualizao dessa relao no cenrio nacional.
Captulo 1
Para dar conta da complexa relao entre desenvolvimento e meio ambiente, utilizado
como marco referencial terico a ps-modernidade em seu sentido mais amplo, sem
abrir mo de outros referenciais que tratam da relao entre desenvolvimento e meio
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ambiente, como a modernizao ecolgica utilizada por Buttel, Mol e Spargaaren e a
sociedade de risco definida por Beck.
A partir desses marcos tericos, verificado at que ponto o caso especfico da relao
entre as questes socioambientais e o setor de energia em um pas em
desenvolvimento como o Brasil pode ser compreendido dentro da tica da ps-
modernidade, a partir de uma anlise sobre a natureza das potencialidades e das
limitaes dos instrumentos de licenciamento ambiental.
Nesse primeiro captulo alguns conceitos tericos utilizados no presente trabalho so
enfatizados, visando situ-los no contexto nacional para identificar aspectos que podem
servir como referencial ao longo do presente estudo, tendo como premissa o fato de
que esse um pas onde ainda hoje a necessidade de desenvolvimento econmico
constantemente colocada em contraposio ao ambientalismo.
Estudo feito por Rinkevicius (2000) demonstra paradigmaticamente que essa
contraposio entre crescimento econmico e conservao ambiental no se restringe
ao Brasil. No caso da Litunia, analisado por Rinkevicius, trata-se de gerar energia
barata por meio da fonte nuclear - j que aquele pas no dispe de recursos hdricos
suficientes para gerao hidreltrica - em confronto com o risco que essa opo
representa para toda sociedade europia. Aps realizar um inqurito investigativo com
relao a tipos ideais de comportamentos relacionados capacidade de implantar
medidas de melhorias ambientais, Rinkevicius conclui que as mudanas institucionais
pelas quais a sociedade moderna tem passado podem ser explicadas dentro da lgica
da teoria da modernizao ecolgica, inclusive em pases em desenvolvimento.
Giddens, que reconhece que muitos aspectos da modernizao ecolgica fazem
sentido, levanta relevantes questes sobre sua aplicabilidade em determinadas
situaes, j que
no realmente convincente supor que a proteo
ambiental e desenvolvimento econmico se adaptem
confortavelmente um est fadado a entrar por vezes em
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conflito com o outro (Giddens, 2001: 68).
Essas observaes podem servir como pistas. Mas para verificar a viabilidade de se
aplicar no Brasil uma teoria de essncia conciliatria, como a modernizao ecolgica,
fundamental realizar um estudo mais aprofundado, no qual certamente devem aflorar
questionamentos pertinentes.
Desse modo, finalizando esse captulo, so identificados subsdios para responder s
seguintes questes: ser que a modernizao ecolgica, teoria fundamentada a partir
de estudos empricos em pases nitidamente avanados com relao percepo das
temticas ambientais como a Alemanha e Holanda, tem validade no Brasil? Ou estamos
mais enquadrados na sociedade de risco, em que na essncia questes ambientais
estariam em contraposio com qualquer poltica desenvolvimentista, incluindo o setor
eltrico que passou por profundas alteraes? Quais aspectos podem ser destacados
em cada uma dessas vertentes tericas para o caso brasileiro?
De qualquer modo, o pano de fundo para se analisar essa complexa relao no Brasil
ser, de antemo, a tica da ps-modernidade, considerando que na fase atual as
fronteiras anteriormente estabelecidas caram e a heterogeneidade, diversidade e
outras caractersticas relacionadas chamada ps-modernidade se fazem presente.
Nesse sentido, aspectos tcnicos, metodolgicos e demais instrumentos que
predominaram durante sculos devem ser observados com reserva.
Captulo 2
Visando adotar o setor eltrico como parmetro para o estudo emprico, no segundo
captulo, ainda na parte I, feito um breve histrico desse setor para contextualizar o
caso aqui presente. Longe de elaborar um relato extremamente abrangente, so
identificados os cenrios criados, as tendncias atuais e os atores principais que tm
atuado ou ainda podem atuar no processo de incorporao ou no das temticas scio-
ambientais por esse setor no Brasil. O objetivo especfico desse captulo o de
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identificar como se construiu o debate entre a viso mais desenvolvimentista que
predominou durante muito tempo (quando as questes ambientais e sociais no tinham
o menor espao) e a viso mais favorvel efetiva incorporao das questes
socioambientais dentro do setor eltrico.
No Brasil, o discurso que contrape desenvolvimento com o meio ambiente ainda tem
encontrado respaldo nos ltimos anos, principalmente dentro do setor eltrico, quando
em muitas ocasies a relativa demora de licenciar obras vista como um obstculo do
meio ambiente ao desenvolvimento do pas (Santos, 2002).
Para autores como Carlos Kawall L. Ferreira (apud Santos, 2002), cuja preocupao
recai exclusivamente sobre o crescimento da gerao de energia hidreltrica no pas, o
aumento das exigncias com relao a licenciamentos ambientais, entre os quais
incluiria a obrigatoriedade de realizao de EIA e de RIMA, tem como resultado o
aumento de custos, como os pagamentos aos proprietrios e municpios pelas terras
inundadas, que oneram diversos projetos do setor energtico como as usinas
hidreltricas. Obviamente, trata-se nesse caso de uma viso simplista demais da
situao, mas reflete o pensamento de parte dos analistas brasileiros quando se
debruam sobre a relao entre setor eltrico e meio ambiente. Ressalta-se que esse
discurso apresentado no recente, pois se refere aos anos 1980, quando as primeiras
demandas ambientais legais com relao ao licenciamento das grandes obras de infra-
estrutura passaram a se fazer presente.
Embora parte do setor eltrico atribua eventuais atrasos de implantao do parque
gerador brasileiro ao processo de licenciamento ambiental, esse processo no pode ser
analisado sem ser contextualizado com o perodo de polticas liberalizantes hegemnico
no Brasil desde o final dos anos 1980. No bojo do que se costumou chamar de
globalizao, o Estado nacional brasileiro reduziu-se drasticamente, retirando-se de
setores considerados estratgicos, como o de energia, e promovendo uma profunda
alterao na estrutura e no modo de funcionamento destas reas, com conseqncias
para a rea de planejamento.
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Percebe-se que a globalizao econmica seguida pela implantao de polticas
liberalizantes e pela reduo do papel do Estado nacional em setores estratgicos,
ocorreu paralelamente ao processo de fortalecimento dos movimentos sociais, aumento
das exigncias por parte das agncias multilaterais de financiamento e a conseqente
consolidao de processos de licenciamento ambiental (cujo maior exemplo a
instituio da obrigatoriedade dos EIAs e a instituio das Audincias Pblicas), que
traduziram na emergncia da questo ambiental.
O fato que, concomitantemente emergncia e implementao de licenciamentos
ambientais, o setor eltrico passou por um processo de desregulamentao e
privatizao quando os empreendimentos desse setor passaram, como qualquer outro
da economia privada, a objetivar a gerao de lucro para os empreendedores.
Essa confluncia de dois aspectos distintos que se confrontam e dialogam cria um
cenrio paradoxal e levanta diversos questionamentos que demandam maior ateno.
Parte II
Na Parte II, est o cerne desse trabalho, pois onde se situam os captulos que
aprofundam estudos de caso de dois diferentes documentos de licenciamento
ambiental: os EIAs e os respectivos RIMAs em primeiro momento; e as AAEs mais
recentemente.
Captulo 3
Desde a implantao da obrigatoriedade de EIAs pela Resoluo n 01 de 1986 do
Conselho Nacional de Meio Ambiente CONAMA, perodo que o pas estava passando
por um processo de redemocratizao, o chamado setor eltrico teve que minimamente
absorver as temticas socioambientais que, at aquele momento, no eram sequer
consideradas. Isso no quer dizer que essas temticas passaram a ter um peso
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realmente efetivo no processo de tomada de deciso, mas certamente representou um
passo a frente nessa questo.
Tomando como base o processo de licenciamento ambiental fundamentado nos EIAs e
nos RIMAs, no terceiro captulo so verificados em que medida esse instrumento pode
ou no representar avano no processo de incorporao das temticas socioambientais
por parte do setor eltrico, a partir de um amplo levantamento de questes pertinentes a
esses instrumentos existentes em diversas partes do mundo.
Nesse sentido, so abordados casos especficos no estado do Paran para, ento,
identificar as semelhanas e diferenas existentes entre a obrigatoriedade desses
estudos no Brasil e em outros pases, cujos processos de licenciamento so muito
semelhantes, seja nos desenvolvidos, seja nos pases em desenvolvimento.
A opo por casos de aplicao de EIA em empreendimentos hidreltricos no estado do
Paran decorre do fato de que o autor do presente estudo trabalhou durante anos na
rea de gerao da empresa estatal de energia, a Companhia Paranaense de Energia
COPEL, atuando diretamente com impactos socioambientais das usinas hidreltricas,
desde a fase de estudo de inventrio de bacia hidrogrfica, quando se definem
possveis locais de aproveitamento, at a implementao de programas sociais e
ambientais recomendados pelos respectivos EIAs, com a gesto e implantao do
Projeto Bsico Ambiental PBA.
Essa experincia particular permitiu que fossem percebidos que, embora os EIAs
possam ter contribudo em um primeiro momento para estreitar a relao dos projetos
de desenvolvimento com as questes socioambientais, atualmente a utilizao desse
instrumento por si s no serve como garantia de que o desenvolvimento do setor
eltrico esteja ocorrendo em total harmonia com o meio ambiente e a populao local.
Em muitos casos, tais como aquele citado na introduo, a elaborao do EIA tornou-se
um processo burocrtico e no conseguiu obter resultados importantes seja em fases
anteriores, de planejamento, seja em etapas posteriores, de implantao e operao,
pois abordam apenas o perodo de projeto.
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Captulo 4
Ciente das insuficincias que o EIA e o RIMA possuem para propor mudanas que
remetessem ao nvel do planejamento, a presente anlise aborda ainda outro tipo de
instrumento que no se encontra consagrado e, tampouco, regulamentado por leis ou
decretos aqui no Brasil: a AAE, que em determinadas situaes recebe uma
denominao mais especfica, como Avaliao Ambiental Integrada - AAI. Trata-se de
um instrumento que tem como objetivo principal a antecipao de questes
socioambientais mais relevantes para a etapa de planejamento, visando identificar
regies como maiores ou menores restries para a insero futura de
empreendimentos setoriais (tais como hidreltricos).
O captulo 4 aborda, portanto, essa temtica para verificar at que ponto a AAE ou AAI
pode ou no ser um instrumento no sentido de ampliar os canais de comunicao no
difcil dilogo entre o setor eltrico e as questes socioambientais. Para exemplificar,
so apresentadas algumas AAEs realizadas recentemente no Brasil como estudo de
caso, assim como sua metodologia, sua aplicabilidade e demais aspectos relevantes,
fazendo uma comparao com casos identificados em outros pases que j utilizam
esse tipo de instrumento.
Consideraes Finais
Para encerrar so tecidas algumas importantes questes a guisa de consideraes
finais visando, com base nos resultados apresentados, verificar at que ponto o caso
brasileiro a partir de uma perspectiva emprica, pode ser compreendido a partir de
conceitos ligados ps-modernidade, sem perder de vista o carter paradigmtico do
debate que permeia esta questo, assim como as incertezas inerentes aos processos
de avaliao ambiental.
23
-
Finalizando esse estudo, so levantadas algumas questes que merecem maior
ateno. Ser que mesmo introduzindo novos instrumentos metodolgicos como a
AAE, haver um encurtamento das distncias entre a viso do setor eltrico e dos
ambientalistas? possvel realizar de modo convincente essa ponte? Qual a base das
contradies e ambivalncias existentes entre esses campos de atuao? Em que
medida projetos de desenvolvimento podem ser adequadamente equacionados com o
meio ambiente e a qualidade de vida?
Sem ter a pretenso de dar respostas definitivas pretendo, a partir de estudos de caso e
da experincia individual, iluminar diversos aspectos que permeiam todas essas
questes demonstrando como a liquidez da sociedade ps-moderna (Bauman, 1999)
tambm se reflete nas questes socioambientais e que, portanto, as principais
respostas no podem ser encontradas facilmente a partir da adoo de determinada
metodologia, pois passam necessariamente pela ampliao do debate e pela
consolidao da sociedade democrtica.
Mtodos
Para realizar a presente empreitada, foi lanada mo basicamente dos seguintes
procedimentos de pesquisa.
Primeiramente, foram selecionados, a partir de diversos casos de licenciamento
ambiental no estado do Paran, quatro exemplos de EIA e do respectivo RIMA para
analis-los com maior profundidade, tendo em vista identificar principalmente aspectos
relacionados sua metodologia e ao seu andamento do processo. O foco no foi
verificar qualitativamente o contedo de cada um dos EIAs, mas sim observar dados
gerais relacionados ao processo como um todo visando obter subsdios para uma
posterior anlise comparativa.
Alm de avaliar os EIAs e os RIMAs propriamente ditos, verifiquei junto ao rgo
ambiental responsvel pela avaliao desses documentos, mais precisamente o
24
-
Instituto Ambiental do Paran IAP, se cada um desses empreendimentos em questo
foi ou no licenciado e qual a justificativa para determinada situao. Desse modo,
focalizou-se o processo decorrente do licenciamento, e no o contedo em si desses
documentos.
Foram ainda realizadas viagens expeditas s regies dos empreendimentos para
verificar se o contedo dos documentos pertinentes estava ou no abordando
apropriadamente cada regio.
Foi feito ainda um amplo levantamento de textos dos ltimos 10 anos que abordam
estudos de licenciamento em diversos pases a partir de peridicos especializados,
principalmente o Environmental Impact Assessment Review, onde foram encontrados
estudos de caso em mais de 20 pases diferentes.
Posteriormente, foram adotados os mesmos passos para anlise a respeito das AAEs,
tendo como ponto de partida a seleo de dois casos a serem aprofundados. Nesse
sentido, analisou o andamento dos processos da AAEs selecionadas, verificou-se seu
contedo e foram feitas ainda viagens expeditas de reconhecimento a cada uma das
bacias pertinentes.
Tal como a anlise dos EIAs, para as AAEs tambm foi feito um profundo levantamento
de textos pertinentes ao tema principalmente nos peridicos especializados e em
organismos internacionais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento BID.
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-
PARTE I BASES TERICAS E CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA
CAPTULO 1 INCERTEZAS NA RELAO ENTRE MEIO AMBIENTE E SETOR
ELTRICO NO BRASIL
1.1 Apresentao
O ambientalismo, tal como conhecido nos dias de hoje, surgiu e consolidou-se nas
ltimas dcadas do sculo XX, quase paralelamente ao processo de globalizao. No
Brasil em particular, esse movimento vem se fortalecendo desde meados da dcada de
1980, na poca motivado principalmente pelo perodo de preparao para a Conferncia
das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento - CNUMAD, realizada no
Rio de Janeiro em 1992. Embora estivesse em pauta h quase 20 anos, decididamente foi
a partir desse momento que a questo ambiental foi introduzida nos debates sobre
poltica econmica, relaes internacionais e outros circuitos de difcil penetrao
(Ferreira e Ferreira, 1992), deixando de ser uma questo marginal para assumir uma
posio central no debate sobre modelo de desenvolvimento.
O fato de que a emergncia e aparente consolidao das temticas ambientais ocorreram
com maior intensidade somente a partir das ltimas dcadas do sculo XX suscita
algumas questes relevantes que merecem destaque.
A primeira questo refere-se busca das razes que levaram os problemas ambientais a
permaneceram em uma aparente calmaria durante boa parte do sculo XX, s surgindo
com fora no perodo mais recente, embora reconhecidamente o modelo de
desenvolvimento intensivo e com maiores impactos sociais e ambientais teve suas razes
ainda no final do sculo XIX (Floriani, 2004).
primeira vista pode parecer contraditrio que uma preocupao ambiental com maior
nfase no tenha se manifestado durante as dcadas de 1950 a 1970, quando a
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hegemonia dos racionalismos econmico e tecnolgico atingiu seu pice. Esse perodo
ficou caracterizado como modernidade plena, quando os dois modelos de
desenvolvimento, seja capitalista, seja socialista, tinham em comum a no preservao
dos recursos naturais. Cabe enfatizar que, como bem reiteram Hawken, Lovins e Lovins
(1999), esse processo iniciou-se bem antes, a partir de meados do sculo XVIII, com o
advento da revoluo industrial, quando se destruiu mais a natureza do que em toda a
histria anterior.
Entretanto, mesmo diante desse cenrio alarmante, a questo ambiental permaneceu
durante boa parte do sculo XX na marginalidade at mesmo dentro do universo
acadmico, no merecendo ateno especial mesmo com evidncias de que o modelo de
desenvolvimento hegemnico apresentava profundos impactos ambientais.
A segunda questo a ser levantada refere-se busca pela identificao das razes da
complexa relao entre o processo de acelerao da chamada globalizao e a
consolidao do ambientalismo que tem ocorrido concomitantemente. Uma anlise
simplista e reducionista poderia, de maneira equivocada, concluir que haveria uma relao
causa-efeito entre esses dois movimentos, seja de motivao ativa ou reativa. Entretanto,
essa relao tem se mostrado muito mais ambivalente.
Essas duas questes aqui levantadas tm como objetivo no presente trabalho fornecer
pistas para contextualizar o cenrio em que a incorporao ou no das questes
socioambientais pelo setor de energia vem ocorrendo desde o final do sculo XX, perodo
marcado por intensas e profundas alteraes institucionais e pela introduo de
instrumentos de licenciamento ambiental.
O Brasil, em particular, apresenta um cenrio propcio para analisar essas questes com
maior rigor dentro do setor eltrico. Por um lado, trata-se de pas cuja maior preocupao
nas esferas governamentais tem sido a implantao de um desenvolvimento que reflita
em crescimento econmico constante como o caminho para reduzir o desemprego. Sem
entrar no mrito da discusso sobre a pertinncia da poltica econmica que tem vigorado
nos ltimos dez ou quinze anos, o fato que o processo de desenvolvimento nacional
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quase sempre se pautou na retrica de manuteno do crescimento econmico, aspecto
que tem sido diretamente relacionado - em primeira instncia - necessidade de elevao
da disponibilidade de energia eltrica. No Brasil, devido a sua matriz energtica, esse
aumento da gerao de energia movido principalmente pelas usinas hidreltricas,
responsveis, segundo dados da Agncia Nacional de Energia Eltrica (2005), por quase
trs quartos da eletricidade gerada no pas.
Qualquer fonte de gerao de energia em grande escala causa, necessariamente,
impactos ambientais e sociais de diferentes magnitudes que, se no forem bem
equacionados, podem causar prejuzos imensurveis no s para a atual, mas
principalmente para as futuras geraes. No caso especfico das usinas hidreltricas
construdas atravs de barragens, de acordo com a Comisso Mundial de Barragens
CMB4, consenso que embora tenham prestado significativa contribuio ao
desenvolvimento humano, muitas vezes o preo pago pelas populaes diretamente
afetadas assim como pelos recursos naturais foi inaceitvel e isso s poder ser
equacionado por meio de solues negociadas que eliminem projetos desfavorveis nos
estgios iniciais (CMB, 2000).
De fato, esse modelo de desenvolvimento baseado exclusivamente na racionalidade
econmica, embora tenha sido levado s ltimas conseqncias em determinados pases
com a poltica neo-liberal, teve suas razes em perodos histricos muito anteriores. No
Brasil, em particular, a racionalidade tecno-econmica atingiu seu pice durante o regime
militar das dcadas de 1960 e 1970, quando grandes projetos de desenvolvimento como
Itaipu e Transamaznica foram levados a cabo sem maiores preocupaes com os
impactos ambientais decorrentes dessas obras. Um marco desse perodo ocorreu na
Conferncia das Naes Unidas sobre Ambiente Humano em 1972, quando o Brasil
4 A Comisso Mundial de Barragens foi uma comisso independente constituda em 1998 por
68 membros de instituies representativas de diversos personagens atuantes no setor eltrico
que procurou analisar e discutir diversos estudos de caso para elaborar o documento
Barragens e Desenvolvimento: um novo modelo para tomada de decises.
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liderou o bloco dos pases que se opunham a qualquer restrio ambiental que poderia
obstruir ou retardar o processo de desenvolvimento pretendido. Representando a
pensamento predominante das polticas nacionais, Costa Cavalcanti, ministro das Minas e
Energia naquela poca, chegou a declarar que um pas que no alcanou o nvel
satisfatrio mnimo para prover o essencial no est em condies de desviar recursos
considerveis para proteo do meio ambiente (Marcovitch, 2000).
Desconsiderando o fato de que o regime ditatorial impedia que houvesse maiores
contestaes, o fato que mesmo em perodos mais democrticos antes do regime militar
pouco ou nada se encontrava de questionamento ambiental em relao ao modelo de
desenvolvimento adotado. O meio ambiente tornou-se efetivamente uma questo
somente a partir de meados da dcada de 1980, quer seja dentro das cincias sociais,
quer seja na sociedade de modo geral.
Dessa forma, sem ter a pretenso de dar respostas definitivas a essas questes e
contando com auxlio de autores como Buttel, Mol, Spaargaren, Giddens, e Beck, o
presente captulo busca encontrar as motivaes ou resistncias que o ambientalismo
enfrentou e as razes de s ter se manifestado com maior intensidade no final do sculo
XX, visando identificar qual a linha terica que pode servir como parmetro para
compreenso do modo de equacionamento da relao entre o setor eltrico e as questes
socioambientais.
Para cumprir essa tarefa, em um primeiro momento so abordados aspectos histricos do
ambientalismo para, na seqncia, identificar abordagens tericas pertinentes ao perodo
conhecido como ps-modernidade, passando desde conceitos mais crticos como
ecologia humana e a sociedade de risco, at a modernizao ecolgica, que tem um
carter eminentemente conciliatrio entre meio ambiente e desenvolvimento.
Com base nos casos analisados, h indcios de que a emergncia e consolidao das
temticas socioambientais ocorridas no final do sculo XX, que resultou no
estabelecimento de processos de licenciamento ambientais baseados, a princpio, nos
Estudos de Impacto Ambiental EIAs, esto diretamente ligados percepo de que os
30
-
grandes paradigmas predominantes at ento tm se mostrado insuficientes para dar
respostas satisfatrias aos impactos ambientais decorrentes de grandes projetos. Ou seja,
pensamentos totalizantes, estruturalistas, deterministas e fundamentados na hegemonia
das macroestruturas, todos constituintes da chamada modernidade plena, apresentavam
cada vez mais sinais de fraqueza.
A compreenso desse processo dentro das cincias sociais est ligada ao fato de que a
antiga pretenso dessas cincias em dar previsibilidade s aes humanas estava
equivocada, j que no davam conta das ambivalncias da sociedade. Segundo Bauman
(1999), um dos autores que se debruou sobre esse tema, a tentativa de identificar,
classificar e separar mostrar-se-ia uma tarefa das mais inglrias, na medida em que para
cada classificao sempre haveria um elemento incerto, uma contingncia inerente,
demonstrando que as bases sobre as quais a modernidade plena se baseou estavam
inexoravelmente equivocadas.
Nesse sentido, a fixao de metas cartesianamente estabelecidas est fadada ao
fracasso, j que, por mais que a sociedade caminhe em direo a um horizonte pr-
definido, o momento de atingi-lo jamais seria alcanado. Melhor dizendo, um projeto de
desenvolvimento sempre traz consigo reflexos no imaginados, principalmente no tocante
s questes socioambientais, que podem resultar em impactos de grande magnitude no
previstos pela engenharia de antemo. Compreende-se que o horizonte, ou seja, o
objetivo final, o pleno desenvolvimento no caso, permaneceria inalcanvel pelo simples
fato de que o mesmo estaria permanentemente sujeito s incertezas que, por sua vez,
sempre provocam profundas alteraes, modificando as metas pr-estabelecidas.
Incertezas, desintegraes, rearranjos compem o cenrio ao qual chamamos
genericamente de ps-modernidade.
O cenrio ps-moderno tornou-se o terreno frtil para prosperar questes que estavam
adormecidas como a ambiental. A ps-modernidade surge como vis terico fundamental
a partir do momento que grandes desastres ambientais passaram a ocupar um espao
cada vez maior na mdia nas ltimas dcadas do sculo XX, como, por exemplo, o caso
emblemtico do processo de ocupao territorial de Cubato (Hogan, 1993), que trouxe
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tona toda fragilidade do processo de desenvolvimento baseado na modernidade plena. As
relaes entre sociedade e natureza no podiam mais ser entendidas sobre a lgica da
previsibilidade, do total controle dos recursos naturais e da submisso da natureza
(Bauman,1999).
O fato de que a tentativa de impor a racionalidade puramente econmica ou tecnicista nas
relaes entre a sociedade e os recursos naturais acabou gerando sucessivos insucessos
tambm se aplica ao setor eltrico. Um setor que no Brasil sempre se pautou pelo
planejamento a longo prazo passou a se defrontar, a partir das ltimas dcadas do sculo
XX, com incertezas geradas tanto pelas questes socioambientais, que anteriormente no
estava sequer colocadas, quanto pelo novo cenrio institucional do setor, com a retirada
do Estado nacional da ao em polticas estratgicas.
De fato, ao analisar o histrico da relao entre o setor eltrico e o meio socioambiental,
depara-se efetivamente com uma srie de ambivalncias e de contingncias que no
poderiam ser compreendidas dentro de uma perspectiva da racionalidade e previsibilidade
que pautaram a chamada modernidade plena. As respostas aos problemas enfrentados
pela sociedade moderna no podem mais ser encontradas dentro de uma perspectiva
tecnocrtica. A tentativa de resolver problemas cientificamente, por meio de mtodos e
tcnicas previamente aprovados, acabou gerando novos problemas que at ento no
eram sequer imaginados. Diante desse contexto, preciso recorrer a vertentes tericas
mais flexveis, como aquelas advindas da ps-modernidade, para entender esse novo
momento.
A busca pelo equacionamento das questes entre o setor eltrico e o meio ambiente
atravs dos processos de licenciamento ambiental no Brasil ou nos demais pases
evidencia esse contexto. De acordo com Bauman (1999)
A maioria dos problemas que hoje enfrentam os
administradores das ordens locais produto da atividade
para resoluo de problemas. (...). Os problemas so criados
pela resoluo de problemas, novas reas de caos so
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-
geradas pela atividade ordenadora. O progresso consiste
antes e, sobretudo, na obsolescncia das solues de ontem
(Bauman, 1999: 22).
Desse modo, por meio dos processos de licenciamento ambiental relacionados ao setor
eltrico brasileiro, o presente captulo busca demonstrar que a procura incessante por
respostas concretas s questes socioambientais, em particular na sua relao com um
setor ligado a projetos de desenvolvimento, est fadada a ser inglria, pois nesse contexto
no h respostas prontas e acabadas. A relao entre meio ambiente e setor eltrico,
representada por meio dos diversos processos de licenciamento, um retrato fiel de toda
a incerteza que fundamenta a ps-modernidade.
1.2 Da modernidade plena para a ps-modernidade: identificao das razes tericas do ambientalismo
No final do sculo XX, concomitantemente com a acelerao do processo de globalizao,
tornou-se cada vez mais perceptvel a emergncia e posterior fortalecimento das questes
ambientais no s no Brasil, como no mundo todo. Esse cenrio foi bem sintetizado por
Ferreira (2003), ao afirmar que em menos de vinte anos a poltica de proteo ambiental
transformou-se de uma no-questo em uma das mais significativas preocupaes de
nosso tempo.
O reconhecimento e incorporao das temticas ambientais em polticas, planos,
programas e projetos refletiu diretamente na configurao das instituies
governamentais. Entretanto, no nvel institucional no h uma viso homognea quanto a
esse processo, pois enquanto as preocupaes ambientais reconhecidamente tm
crescido com a presso cada vez maior dos movimentos sociais nessa questo,
resultados concretos em termos de polticas pblicas so ainda discutveis. De qualquer
modo, um dos objetivos do presente trabalho justamente aprofundar a anlise sobre o
nvel institucional, tendo como estudo de caso o processo de insero das questes
ambientais no setor eltrico brasileiro. Sobre essa temtica, os captulos 3 e 4 do nfase
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especial na medida em que feita uma anlise sobre a incorporao das temticas
ambientais pelos chamados projetos de desenvolvimento atravs dos processos de
licenciamento ambiental no mbito tanto de projetos com os Estudos de Impacto
Ambiental - EIAs quanto, mais recentemente, de planos e programas com as Avaliaes
Ambientais Estratgicas - AAEs.
Embora a questo ambiental tenha efetivamente emergido com mais fora a ponto de
causar mudanas institucionais (como a introduo de processos de licenciamento)
apenas nas ltimas dcadas, levantamentos cuidadosos indicam que suas origens
histricas podem ser encontradas em uma poca muito mais remota. Segundo Branwell,
(apud Castells, 2002: 155), o desenvolvimento das chamadas idias verdes estaria
relacionado ao perodo do final do sculo XIX atravs de uma espcie de revolta das
cincias contra a prpria metodologia cientfica, indicando a ambigidade existente na
relao entre cincia e tecnologia.
No Brasil, particularmente, tambm h fortes indcios de que esse processo tambm tenha
suas razes em um perodo histrico mais remoto, ainda na poca escravista, quando a
preocupao ambiental j demandava alguma ateno durante o processo da formao
da intelectualidade brasileira sob influncia de pensadores europeus do final do sculo
XVIII (Pdua, 2002). Entretanto, naquele perodo, a crtica ambiental no tinha elementos
altrustas de respeito vida ou at mesmo de contracultura, to bem apontados como
uma das principais vertentes do movimento ambientalista predominante no final do sculo
XX por Castells (2002). A preocupao era em relao ao uso racional do solo e
preservao dos recursos naturais, cuja finalidade maior residiria na necessidade de
mant-los como reserva para que a nao pudesse utilizar para seu desenvolvimento no
futuro, tratando-se da construo da identidade da nao brasileira, cujo processo
demandaria o uso mais racional dos seus recursos naturais. O modo como se colocava a
crtica ambiental na poca escravista no tinha nada, ou quase nada, dos enfoques
alternativos centrados na necessidade de preservar a natureza devido ao seu valor
intrnseco, ou ento uma postura mais crtica quanto ao paradigma ocidental de progresso
econmico. Elementos deste tipo de crtica estaro presentes aqui e ali, mas o vis
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desenvolvimentista ser amplamente dominante (Pdua, 2002: 18).
Como a crtica ambiental daquele perodo no Brasil tinha um vis desenvolvimentista
muito arraigado, retratando um debate poltico que no tem relao com a questo
ambiental mais recente, optou-se por enfatizar o processo mais recente que se
fundamenta justamente na crtica ao processo de desenvolvimento baseado no binmio
capitalismo/industrializao e no uso intenso e predatrio dos recursos naturais (Castells,
2002: 142-143).
Portanto, a consolidao da crtica ambiental ao processo de desenvolvimento nesse
perodo mais recente est vinculada prioritariamente ao desmoronamento e descrena em
relao ao racionalismo economicista predominante at ento e identificado como espao
de fluxos incontrolveis (Castells, 2002), que constitui a base da ps-modernidade. Foi
preciso romper com as fronteiras at ento intransponveis entre as cincias naturais,
exatas e humanas para que a questo ambiental pudesse emergir e abrir espaos para
um saber fundamentalmente interdisciplinar, base de toda a crtica ambiental ao processo
de desenvolvimento e que norteia os documentos pertinentes a processos de
licenciamento estabelecidos no perodo mais recente.
As ltimas dcadas tm sido efetivamente marcadas por essa profunda mudana
paradigmtica ligada ao rompimento com uma viso cientificista e determinista que
enfatizava as macro-estruturas em detrimento s relaes cotidianas e s conexes entre
pequenos atores e dos mesmos com a natureza. Processo esse fundamental para
estabelecer novos vnculos entre diferentes disciplinas que anteriormente no se
comunicavam, dando as condies bsicas para que as questes ambientais
prosperassem.
Mas onde esto as origens dessa alterao ora em andamento? Para dar respostas a
essa questo, procuro identificar as fases de desenvolvimento do ambientalismo nas
ltimas dcadas do sculo XX, perodo em que efetivamente as questes ambientais
passaram a desempenhar um papel relevante nas cincias humanas.
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1.2.1 Emergncia das questes ambientais nas cincias humanas
O desenvolvimento da crtica ambiental dentro da sociologia, portanto, est diretamente
relacionado ao recente cenrio que deu as condies para a emergncia de
ambivalncias e contradies.
Diante dessa constatao, preciso resgatar o processo de embate entre a sociologia
mais cientificista, desenvolvida desde o final do sculo XIX, com a sociologia mais
heterodoxa, que surgiu nas ltimas dcadas do sculo XX. Embate esse que surgiu a
partir do momento em que se percebeu que a sociologia tal como definida por Durkheim
no criava espao para novas temticas como a ambiental.
Paradoxalmente, os obstculos existentes dentro da sociologia para se aproximar da
questo ambiental e aprofundar sua relao com o ser humano podem ser parcialmente
atribudos tentativa de Durkheim de justamente demarcar o territrio da sociologia como
uma cincia natural da sociedade que, apesar das diferenas entre conduta humana e
ocorrncias da natureza, envolveria esquemas explicativos da mesma lgica que os
estabelecidos nas cincias naturais (Giddens, 1981). Ou seja, a preocupao em justificar
a sociologia como cincia no sculo XIX, tal como uma cincia natural, acabou
contribuindo para que a fronteira entre ambas se tornasse mais rgida, a ponto de dificultar
a aproximao entre elas posteriormente.
A desconsiderao das cincias sociais pelas questes ambientais tambm decorre do
fato de que a prpria noo de ambiente considerava essencialmente os aspectos fsicos
e biolgicos, sem abordar as questes socioculturais e econmicas (Leff, 2000). Ou seja,
no abordavam as questes ambientais no s por razes prprias, mas tambm devido
inexistncia de trilhas disponveis entre ambos. Tambm pelo lado das cincias
biolgicas no havia espao disponvel para a construo desse caminho.
Durante a era industrial, as disciplinas foram se subdividindo, gerando vrias
especialidades. Diante disso, a interdisciplinaridade, ou seja, a relao estabelecida
intencionalmente entre diferentes disciplinas, permaneceu em total repouso durante boa
parte do sculo XX (Coimbra, 2000).
36
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Alm da excessiva especializao disciplinar, a era industrial caracterizou-se tambm pela
crena de que por meio de aes racionais e previsveis qualquer rudo, confuso,
imprevisibilidade e risco poderiam ser minimizados e at mesmo eliminados. Tratava-se
do culto racionalidade, alicerce da modernidade plena (Bauman, 1999). A crena cega
nos avanos tecnolgicos e no desenvolvimento econmico ofuscou os impactos que
esse modelo estava causando sobre os recursos naturais, dificultando as avaliaes
sobre as relaes entre sociedade e meio ambiente. Esse modelo de desenvolvimento foi
levado s ltimas conseqncias pelos regimes socialistas em vigor na segunda metade
do sculo XX, com resultados desastrosos para a natureza.
A questo ambiental era um assunto marginal, um rudo ao processo de desenvolvimento
que se planejou. E dentro da lgica da modernidade, o rudo, o inesperado poderiam ser
extirpados da sociedade. O limite ltimo da guerra contra o rudo um mundo de vida
totalmente controlado e a completa heteronomia do indivduo um indivduo localizado
sem ambigidade na ponta receptora do fluxo de informao e tendo suas opes
seguramente encerradas numa moldura estritamente definida pela autoridade
especializada Bauman (1999).
Percebe-se que Bauman se refere a um indivduo localizado sem ambigidade, aspecto
fundamental para manter a previsibilidade das aes sociais. Nesse sentido, a atividade
pessoal, as relaes cotidianas e os estudos de comportamentos humanos e suas
conexes com a natureza ficaram relegados, quando muito, ao plano secundrio.
Inserida no contexto da modernidade, a consolidao da sociologia como uma cincia
dependia da sua capacidade de agir cientificamente, estabelecendo barreiras fixas e
intransponveis com relao s demais disciplinas. Mas esse caminho tornou-se uma via
de mo dupla. Fortaleceu a sociologia no seu momento de afirmao, mas posteriormente
esse cientificismo tornou-se um obstculo compreenso mais ampla sobre as mudanas
efetivas com as quais a sociedade passou a se defrontar nas ltimas dcadas.
Embora durante grande parte do sculo XX o pensamento das cincias sociais tenha sido
marcado por esse vis estruturalista, pelo predomnio da estrutura social sobre o
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indivduo e do macro sobre o micro, um olhar mais atento percebe que mesmo nesse
perodo existiam autores que tentavam romper essas barreiras interdisciplinaridade,
como Norbert Elias. Em O Processo Civilizador, Elias (1993) antecipa-se, no final da
dcada de 1930, a algumas crticas feitas posteriormente noo durkheimniana de que
a sociedade representaria um objeto de reflexo terica, regida por fatos sociais que
independeriam da vontade pessoal de cada indivduo.
Procurando compreender o modo como se processam as mudanas comportamentais e
como as sociedades vo tornando-se mais civilizadas com o passar das dcadas5, Elias
lana mo de um extenso e profundo estudo das mudanas sociais ocorridas ao longo
dos tempos, principalmente no perodo do feudalismo, para associar fenmenos
aparentemente distintos, como o estabelecimento do monoplio do uso da fora e a
centralizao dos impostos dentro de um mesmo territrio, com as mudanas
comportamentais e a sua racionalizao, verificando que h uma interdependncia na
relao entre indivduo e sociedade.
Enquanto para Durkheim o constrangimento a que submetido um indivduo isolado
quando age contra o padro vigente resultado da coero social a qual esse indivduo
est inserido (mesmo que no seja claramente percebido), para Elias esse mesmo
fenmeno adquire uma tica diferenciada. O processo de estabilizao da sociedade por
meio do monoplio do uso da fora vem acompanhado de uma regulao que afeta toda a
vida instintiva e emocional. O controle, que originalmente exercido atravs de outro (ou
outros), transforma-se gradualmente em autocontrole, onde as atividades mais
animalescas so progressivamente excludas do palco da vida comunal e investidas de
um sentimento de vergonha (Elias, 1993: 202).
Uma das premissas fundamentais que perpassa ao longo do trabalho de Elias para
determinar o curso das mudanas histricas refere-se compreenso da sociedade e dos
5 O termo civilizadas aparece entre aspas no texto original de Elias, ciente do juzo de valor
contido com o qual esse autor no compartilha.
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indivduos como algo dinmico, dotado de mecanismos prprios de remodelagem e
constante adaptao. Este tecido bsico, resultante de muitos planos e aes isolados,
pode dar origem a mudanas e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou.
Desta interdependncia de pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem mais
irresistvel e mais forte do que a vontade e a razo das pessoas isoladas que a compem
(Elias, 1993). Desse modo Elias antecipou em algumas dcadas os alicerces da crtica ao
determinismo, semeando as condies para prosperarem questes heterodoxas, como a
ambiental, que vieram a emergir definitivamente apenas no final do sculo.
Portanto, Elias j antev algumas questes que dcadas depois tornaram-se
fundamentais para romper com as barreiras anteriormente fixadas entre as disciplinas e
abrir as portas da interdisciplinariedade. No final do sculo XX, houve o reconhecimento
dentro das cincias sociais de que as relaes entre homens, sociedade e natureza so
muito mais complexas e as preocupaes ambientais passaram a ser uma questo de
reconhecida importncia e com conseqncias institucionais, perodo relacionado com a
emergncia da chamada ps-modernidade.
Embora recente, o trabalho desenvolvido pelos socilogos ambientais j constituiu um
acervo respeitvel, estabelecendo as bases para que as preocupaes ambientais
deixassem o status de no questo para migrarem para uma posio de destaque,
estabelecendo um marco paradigmtico fundamental no perodo mais recente (Ferreira,
2001).
Esse olhar sobre si mesmo dos socilogos ambientais decorrente da busca pelos
motivos da incorporao das temticas ambientais ter acontecido tardiamente na
sociologia em comparao com demais cincias. Visando dar conta minimamente dessa
questo, alguns autores se debruam sobre o histrico do pensamento sociolgico
ambiental. Embora haja diferenas entre os histricos traados, pode-se perceber que, em
linhas gerais, h uma concordncia no sentido de identificar basicamente trs diferentes
fases, apresentadas a seguir.
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1.2.2 Fases da Sociologia Ambiental
Para Dunlap (1997), um dos primeiros autores a se debruar sobre o histrico do
pensamento ambiental, ainda que sob o olhar particular no caso dos Estados Unidos, h
trs perodos distintos do desenvolvimento da sociologia ambiental.
O primeiro perodo seria o da emergncia da sociologia ambiental ainda nos anos 1970,
influenciados diretamente pela publicao de Limites do Crescimento, de Meadows et al.,
em 1972, e ainda pela crise do petrleo de 1973. A publicao de Limites do Crescimento
trouxe para a ordem do dia a perspectiva neomalthusiana que identificava no crescimento
populacional dos pases pobres um dos principais problemas globais. Com a crise do
petrleo, emergiu o fato de que o modelo de desenvolvimento fortemente embasado
nesse recurso no renovvel apresentava claros sinais de insustentabilidade. Sob o
impacto da escassez de recursos, a sociologia ambiental comeava ento, ainda que
timidamente, a se firmar como uma importante vertente sociolgica, procurando delinear
um elo entre as cincias sociais e a ecologia.
Neste perodo inicial, de acordo com Dunlap (1997), houve uma srie de barreiras a
serem ultrapassadas dentro da sociologia. Assim como qualquer novo paradigma, o fato
da sociologia ambiental no se fixar sobre os alicerces da tradio durkheimniana
acabaria criando obstculos internos ao seu desenvolvimento inicial.
Para Buttel (1997), uma das principais vertentes tericas resultantes desse perodo inicial
a ecologia humana. Fortemente influenciada pelos movimentos sociais que eclodiram no
final da dcada de 1960, essa escola, que dependendo do autor recebia outra
denominao, valorizou o meio ambiente, condenando a forma de apropriao dos
recursos naturais por parte da sociedade e contrapondo-se radicalmente sociedade de
consumo e com posturas mais extremadas. A sociologia ambiental como uma sub-
disciplina da sociologia foi essencialmente fundada como conseqncia imediata da
mobilizao dos movimentos sociais modernos (Buttel, 1997).
A influncia dos movimentos sociais no surgimento da sociologia ambiental tambm
compartilhada na anlise sobre o mesmo tema feita por Dunlap (1997). Entretanto, o real
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peso desta influncia muito mais difcil de precisar para ambos.
O foco principal do ambientalismo desse perodo recai sobre a degradao ambiental no
seu sentido mais biolgico, sem maiores consideraes aos aspectos humanos
envolvidos (Mol, 1997). Nesse perodo, ainda havia uma separao claramente definida
entre o que pertencia ao domnio do ambiente e o que estava na esfera social. Nesse
cenrio, a crtica emergente com relao ao modelo de desenvolvimento estava
fundamentada na compreenso da natureza como algo externo ao sistema social, como
se houvesse uma fronteira intransponvel nessas esferas (Mol, 2000).
Apesar do reconhecimento do papel que a ecologia humana teve na afirmao da
temtica ambiental, Spaargaren e Mol criticam essa escola de pensamento pelo fato de
que a ecologia humana no considerava que os padres sociais e os eventos, tais como
conhecidos, so necessariamente mediados socialmente. Para Spaargarem, Mol e Buttel
(2000), todos tericos ligados modernizao ecolgica6, dentro da ecologia humana
havia um biologismo exagerado que pregava o predomnio da racionalidade ambiental
sobre a econmica, poltica ou cultural, ao invs de simplesmente buscar a sua
equiparao. Apesar das discordncias entre as perspectivas, quase unnime a nfase
na importncia dos movimentos sociais nesse primeiro perodo, assim como os mesmo
continuam tendo ainda hoje.
Spaargaren (2000) compartilha da separao histrica do ambientalismo em trs perodos
distintos desde a dcada de 1970, enfatizando a importncia de alguns pensadores da
poca para a emergncia dessa temtica. Para este autor, esse primeiro perodo foi
fortemente influenciado por autores como Otto Ullrich (Alemanha), Ivan Illich (Frana),
Fritz Schumacher (Reino Unido), Andr Gorz (Frana), Barry Commoner (EUA), Hans
Achterhuis (Holanda) e outros tericos da contra-produtividade7, todos muito influentes
6 Modernizao ecolgica uma vertente terica com forte vis conciliatrio entre
desenvolvimento e meio ambiente que ser aprofundado posteriormente.
7 A traduo do termo original counter-productive, utilizado por Spaargaren.
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entre os movimentos ambientais da poca. Embora muitos desses autores tenham suas
razes no neo-marxismo, eles convergiam na crtica tanto ao marxismo quanto ao
capitalismo-industrial que enxergavam o desenvolvimento das tecnologias como um
processo neutro, sem considerar os impactos que as mesmas tinham tanto entre as
pessoas, como no meio ambiente. Alm desses autores citados por Spaargaren (2000),
outros tambm desempenharam importante papel nesse perodo, tais como Dupuy (1980)
e Olphus (1977).
Sem querer realizar no presente estudo uma ampla e profunda avaliao sobre a
contribuio de cada autor no pensamento ambiental, de modo geral, todos chamavam a
ateno para o fato de que o processo de produo tinha que considerar os seus
impactos sobre o meio ambiente dentro dos custos reais de produo, ou seja,
enfatizavam a necessidade de internalizao dos custos ambientais nos processos
produtivos. Para eles, as mesmas foras produtivas que tinham garantido uma fase de
prosperidade material e bem estar numa etapa inicial, em determinado momento do
processo de desenvolvimento chegaram ao ponto-crtico para a sociedade.
Quando esse ponto crtico ultrapassado, os ganhos do
crescimento sustentado na dimenso material so
utrapassados pelos custos na dimenso socioambiental, e
nesse caso dito que a tecnologia ou a indstria `contra-
produtiva`8 (Spaargaren, 2000: 43).
Encontra-se, portanto, nesses autores, a origem da preocupao referente necessidade
de valorar a questo ambiental no processo produtivo, um dos principais elementos
norteadores da institucionalizao de instrumentos como estudos de avaliao ambiental
e outros referentes ao pro de licenciamento. Debates recentes sobre percentuais de
8 Traduo do autor: When this critical point is passed over, the rewards of sustained growth in the material dimension are outweighed by costs in socio environmental dimension, in which case the
technology or industry is said to be counter-productive
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valores a serem aplicados como medidas compensatrias de empreendimento
demonstram como, ainda hoje, a questo de valorao fundamental na abordagem
entre projetos de desenvolvimento e meio ambiente. Entretanto, a forma como diferentes
autores abordam a necessidade de internalizar a questo ambiental difere de modo
estratgico. Enquanto economistas ambientais como Hueting (Holanda) procuram
melhorar o sistema de produo e consumo com a incluso de aspectos ambientais,
internalizando seus custos, a maioria dos tericos da contra-produtividade acredita que
seria necessrio romper completamente com o modo de produo industrial, pois a raiz do
problema estaria na sua essncia. Assim como uma das principais crticas que surgiram
nesse perodo foi a no-internalizao dos custos ambientais nos processos produtivos,
pode-se encontrar claros sinais de que a forma como diferentes vertentes iriam abordar
essa questo seria um divisor de guas entre aqueles que defendem a melhoria ambiental
pela incorporao dessas temticas pelas instituies vigentes e aqueles que defendem
uma total reestruturao da sociedade para, ento, resolverem problemas relacionados ao
meio ambiente no seu mago, debate esse que perdura at hoje. Durante as discusses a
respeito dos documentos utilizados nos processos de licenciamento, o mago dessa
discusso permanece, como visto nos captulos subseqentes.
O processo de institucionalizao da questo ambiental que vem ocorrendo desde ento,
ilustrados pelos processos de licenciamentos ambientais dos chamados projetos de
desenvolvimento, seguem a lgica da internalizao dos custos sem questionar o modo
de produo na sua essncia. O debate internalizao x reestruturao representa
efetivamente um divisor de guas na relao entre a questo ambiental e o
desenvolvimento e constitui-se em um dos alicerces dos debates existentes sobre a
natureza dos instrumentos de licenciamento ambiental.
Embora os tericos da contra-produtividade tenham desempenhado um papel
fundamental nesse perodo, influenciando tanto o Programa do Partido Verde Alemo
quanto os principais movimentos ambientais que eclodiram nesse perodo (Spaargaren,
2000: 44), o fato que o processo de incorporao das temticas ambientais no processo
de desenvolvimento de grandes projetos vem seguindo nitidamente o processo de
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internalizao - bem ou mal - das questes ambientais por meio da definio de
programas e medidas mitigadoras e compensatrias cujos valores so, muitas vezes,
diretamente proporcionais ao valor de empreendimento em questo.
Percebe-se que a predominncia da necessidade de internalizao dos custos ambientais
paradoxal, pois o fato dos tericos da contra-produtividade terem conexo direta com
os movimentos sociais acabou, ainda que indiretamente, contribuindo decisivamente para
que ocorressem alteraes institucionais fundamentais, como a incorporao posterior
dessas temticas em polticas, planos, programas e projetos de organismos oficiais.
Mais do que simplesmente reconhecer a validade das questes ambientais como um
paradigma fundamental, tornou-se imperativo, naquela poca, romper com o pensamento
sociolgico mais determinista predominante at ento.
Embora esse movimento de aproximao entre ambiente e sociedade tenha ocorrido
principalmente no incio dos anos 1990, suas bases foram estabelecidas pelo menos dez
anos antes, quando as barreiras fixadas anteriormente entre as cincias naturais e sociais
foram derrubadas e os limites tornaram-se tnues (Giddens, 1996).
Esse ambiente de contestao dos paradigmas predominantes dessa fase foi fundamental
para que as questes ambientais, anteriormente marginalizadas, encontrassem terreno
frtil para se desenvolver e se fixar definitivamente na pauta do pensamento sociolgico.
O papel da sociologia de simplesmente subsidiar os tomadores de deciso, ao invs de
identificar criticamente novas questes, passava a ser cada vez mais questionado.
Entretanto, apesar deste questionamento cada vez mais enftico em relao sociologia
durkheimniana, a viso ambiental dentro dessa disciplina nos anos 1970 permanecia
como uma orientao minoritria. Nesse contexto, esse perodo inicial acabou marcado
pelo alto grau de politizao da temtica.
No nvel poltico-institucional, uma das mais importantes conseqncias dessa primeira
fase foi o estabelecimento de unidade de proteo a maioria Unidades de Proteo
Integral, restritiva s atividades humanas - como resposta para o processo de degradao
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decorrente da acelerada urbanizao que a sociedade ocidental assistia (Mol, 1997: 138).
Outra herana desse perodo foi a instituio de EIAs nos EUA, assunto abordado no
captulo 3.
O estabelecimento de unidades de conservao como poltica ambiental um sinal claro
de que nesse primeiro perodo havia uma separao muito bem delimitada entre o meio
fsico-biolgico e o meio social, sendo que a aprovao da Lei do Sistema Nacional de
Unidades de Conservao SNUC em 2002 serve como um retrato fiel dessa ciso. Do
mesmo modo, o processo de estruturao dos EIAs divididos metodologicamente entre
meios fsico, bitico e socioeconmico serve como sinal inequvoco dessa diviso,
herana que perdura at hoje e que mesmo os novos instrumentos como AAE
aparentemente no vo conseguir romper.
A crtica emergente com relao ao modelo de desenvolvimento ainda estava
fundamentada na compreenso dos recursos naturais como algo externo ao sistema
social, como se houvesse uma fronteira to ntida quanto aquela existente entre pases,
que definisse o que estava dentro do que estava fora (Mol, 2000).
Na primeira metade da dcada de 1980, essa nova tendncia entrou em declnio e a
sociologia ambiental ingressou no seu segundo perodo. Para Dunlap (1997), a idia de
que a sociedade teria limites de crescimento no era palatvel para uma sociedade
altamente consumista como a dos EUA e isso refletiu diretamente numa reao da
sociedade crtica ambiental do primeiro perodo. Esse movimento de reao resultou na
eleio de Reagan para a Presidncia, com a conseqente implantao de sua diretriz
poltica neo-liberal, resultando na diminuio do interesse da sociologia norte-americana
pela questo ambiental em comparao com a sua efervescncia na dcada de 1970.
Desse modo, apesar dos avanos iniciais no pensamento sociolgico ambiental na
dcada anterior, no incio dos anos 1980 a conjuntura poltica desfavorvel acabou
influenciando tambm o pensamento ambiental nos EUA (Dunlap,1997).
Para Buttel (1997), esse segundo momento da sociologia ambiental acabou sendo
fundamental como reforo terico. No momento em que a sociologia ambiental j estava
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mais consolidada como um novo paradigma, a chamada ecologia humana que emergiu na
dcada anterior, com carter eminentemente contestador do modelo de desenvolvimento,
passou a ter maior influncia sobre outras vertentes das cincias sociais. Enfim, esse
novo perodo acabou se caracterizando pela superao do carter puramente poltico-
ideolgico para avanar na teorizao desta questo.
No nvel institucional, Mol (1997) ressalta que a implantao e fortalecimento das agncias
ambientais governamentais em muitos pases ocidentais representaram um importante
legado deste perodo. Concomitantemente com as agncias ambientais, destacam-se
nesse perodo a expanso da legislao ambiental e um rpido crescimento do nmero de
participantes de organizaes no-governamentais ambientais. Todo o processo de
licenciamento ambiental no Brasil teve incio nesse perodo, quando se estabeleceram as
primeiras leis e agncias ambientais.
O perodo compreendido entre meados dos anos 1980 e incio dos 1990 definitivamente
marcado por um processo de institucionalizao da questo ambiental, seja por meio de
uma legislao ambiental cada vez mais rgida por um lado, seja por meio da
consolidao de agncias ambientais responsveis pelos processos de licenciamento por
outro.
Ao observarmos este processo no Brasil, percebe-se que, de fato, na dcada de 1980
ocorreu um grande avano com relao institucionalizao das questes ambientais.
Entre os diversos aspectos legais estabelecidos nessa dcada relacionados questo
ambiental, pode-se citar a Lei n 6.938 de 1981 que dispe sobre a Poltica Nacional de
Meio Ambiente; a Resoluo do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA n. 01
de 1986 que estabelece a obrigatoriedade de avaliao de impacto ambiental para
determinados empreendimentos; a Resoluo CONAMA n. 09 de 1987 que regulamenta
as audincias pblicas; e principalmente, a Constituio Federal de 1988, que destina um
captulo inteiro (Captulo VI) sobre Meio Ambiente. Em seu Captulo II, Artigo 20, Inciso XI,
Pargrafo 1, esta tratou de assegurar a necessidade de internalizar custos ambientais ao
afirmar que
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assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municpios, bem como a rgos da
administrao direta da Unio, participao no resultado da
explorao de petrleo ou gs natural, de recursos hdricos
para fins de gerao de energia eltrica, ou compensao
financeira por essa explorao.
De modo geral, a poltica nacional de meio ambiente foi sendo implantada no pas atravs
de Resolues do CONAMA, aceitas como se tivessem fora de Lei (Leite, 1997).
Percebe-se que os processos de licenciamento ambiental institudos no Brasil a partir dos
anos 1980 retrataram o processo de internalizao das questes ambientais e da
incorporao dos seus custos como forma de se adequar ao chamado desenvolvimento
sustentvel que, embora seja muito vago para que seja utilizado conceitualmente
(Bonalume, 2001), estava em evidncia nesse perodo. Para Spaargaren (2000), esse
perodo de debate em torno do termo desenvolvimento sustentvel estaria diretamente
ligado teoria da modernizao ecolgica, esse sim um conceito propriamente dito. No
processo de conceituao de modernizao ecolgica, dois autores com vises distintas
em relao ao papel do Estado foram fundamentais: Jnicke e Huber.
Para Jnicke, a crise ambiental deveria gerar uma nova ao racional do Estado que teria
que reassumir seu papel como ator principal nesse processo atravs de novas formas de
interveno poltica. Segundo Jnicke (in Spaargaren, 2000: 46) sem a interveno do
Estado, o esverdeamento da produo e do consumo uma impossibilidade. O processo
de modernizao ecolgica deve ser ativamente sustentado pelo Estado atravs de uma
Poltica industrial verde9.
9 Traduo do autor: Without state-intervention, the greening of production and consumption is
an impossibility. The ecological modernization process must be actively supported by the state
in form of green industry policy.
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Huber, por outro lado, entende que as questes ambientais levam naturalmente a um
processo de racionalizao da produo e consumo, independente de uma ao mais
contundente do Estado. As transformaes institucionais rpidas e profundas ocorridas a
partir de meados da dcada de 1980 seriam um sinal inequvoco dessa tendncia. Por
outro lado, percebe-se que a efetiva incorporao das temticas ambientais s ocorreu
quando o Estado passou a exigir de alguma forma, seja atravs de processos de
licenciamento, seja por Leis mais rigorosas para punir crimes ambientais.
Embora tenham vises diferentes com relao ao papel do Estado, ambos compartilham a
opinio de que a inovao tecnolgica e o desenvolvimento econmico tm uma funo
central na modernizao ecolgica e no podem ser descartados (Hajer, 1995).
O mago da chamada modernizao ecolgica defendida por Huber e Spaargaren
consiste no processo mtuo de ecologizao da economia e economizao da ecologia
que a sociedade nos tempos atuais estaria atravessando. A ecologizao da economia
refere-se ao processo de internalizao de custos ambientais nos aspectos de produo e
consumo, tal como tem ocorrido nos processos de licenciamento ambiental de
empreendimentos. J a economizao da ecologia refere-se perda da inocncia da
ecologia, com uma profissionalizao da mesma visando adquirir consistncia para afetar
o mundo racional de negcios e comrcio (Spaargaren, 2000: 50-51). De certo modo,
percebe-se que a forma como tem ocorrido a incorporao das temticas ambientais
dentro das sociedades capitalistas, incluindo o Brasil, tem muitas caractersticas desse
modo de internalizao dos custos ambientais, seja a economizao da ecologia, seja a
ecologizao da economia.
Embora adeptos da modernizao ecolgica, assim como do chamado capitalismo
natural, assumam a necessidade de valorao dos recursos naturais como um
instrumento importante, ambos reconhecem que essa no suficiente por trs motivos:
em primeiro lugar porque no h substitutos para os sistemas vivos; em segundo lugar
porque avaliar o capital natural um exerccio difcil e impreciso; e para finalizar porque as
inovaes tecnolgicas no tm como substituir o capital humano, a inteligncia (Hawken,
Lovins e Lovins, 1999).
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Por outro lado, mesmo reconhecendo que a valorao no suficiente e que apresenta
diversos desafios, a no valorao foi exatamente o que levou a sociedade s portas do
desastre (Hawken, Lovins e Lovins, 1999).
Certamente, essa interpretao de que as solues das questes ambientais podem ser
encontradas dentro do prprio capitalismo, numa espcie de capitalismo natural tal como
termo cunhado por Hawken, Lovins e Lovins, tem encontrado fortes resistncias,
principalmente entre os herdeiros da ecologia humana. Martell (1994), por exemplo,
entende que capitalismo e produo e consumo sustentvel so impossveis de conciliar e
que a interveno coletivista necessria para assegurar a sustentabilidade.
De fato, o processo de desenvolvimento em curso at incio da dcada de 1990 j havia
dado provas suficientes de que incompatvel com a sustentabilidade ambiental. Dentro
dessa lgica, os instrumentos para preservao dos recursos ambientais no poderiam
ser encontrados dentro do mesmo modelo de desenvolvimento que havia causado todos
os impactos. Particularmente no Brasil, Hogan (1993) destaca o caso de Cubato, quando
esse municpio ocupou os noticirios do mundo inteiro ostentando o ttulo de
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