advocacia e acesso a justica

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    A ADVOCACIA E O ACESSO JUSTIA NO ESTADO DE SO PAULO(1980-2005)

    Frederico Normanha Ribeiro de Almeida

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao do

    Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,

    para a obteno do ttulo de mestre em Cincia Poltica.

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Tereza Aina Sadek

    So Paulo

    2005

  • 1Agradecimentos

    Esse trabalho, a par de meus prprios e exclusivos erros, contou com o apoio

    de diversas pessoas, cujos nomes mencionarei, ainda que correndo o risco de ser

    injusto com aqueles que no citei.

    minha orientadora, professora Maria Tereza Sadek, pelo apoio e incentivo

    constantes, e por ter conciliado a diviso generosa de seu vasto conhecimento do

    tema, de sua experincia em pesquisa e de sua orientao dedicada, com a total

    liberdade intelectual que me foi concedida na conduo de meus estudos e desta

    pesquisa.

    s professoras Maria DAlva Gil Kinzo, do Departamento de Cincia Poltica

    da FFLCH/USP, e Luciana Gross Siqueira Cunha, da Escola de Direito de So Paulo

    da Fundao Getlio Vargas, cujos comentrios por ocasio do exame de

    qualificao foram fundamentais para aprimorar o objeto e a metodologia desta

    pesquisa.

    Aos colegas, professores, funcionrias e funcionrios do Departamento de

    Cincia Poltica, pela recepo e pelo apoio em todos os momentos do curso de

    mestrado.

    CAPES, a quem devo o suporte financeiro para a realizao de meus

    estudos.

    Aos amigos que ganhei na Faculdade de Direito do Largo de So Francisco,

    pelas experincias que contriburam fundamentalmente para minha formao

    pessoal e poltica, e pelo apoio e incentivo incondicionais.

    A toda a equipe do Ncleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Cincias

    Criminais. A Eneida Gonalves de Macedo Haddad e a Jacqueline Sinhoretto, muito

    especialmente, porque alm de contriburem enormemente com reflexes e

    comentrios para este trabalho, tornaram-se grandes amigas minhas.

    Aos meus pais, Maria Inz e Joo Thomaz, que sempre incentivaram em

    todos os seus quatro filhos a curiosidade e a vontade de aprender, por meio de uma

    educao carinhosa e tica.

    Lia. Agradecer pelo amor, pacincia e companheirismo seria insuficiente,

    alm de um lugar-comum imperdovel para a crtica de sua inteligncia fina e de seu

    humor cido. Chegaste. E desde logo foi vero.

  • 2Resumo

    O envolvimento da advocacia nas reformas de ampliao do acesso aos

    sistemas de justia tem merecido ateno da literatura comparada, que reala

    caractersticas de comprometimento social e engajamento poltico de certos

    movimentos de advogados e suas entidades de classe, mas tambm aponta para a

    interveno desses profissionais na supresso das insuficincias do mercado de

    servios legais. A partir de uma abordagem institucional da advocacia, que destaca

    as disposies constitucionais sobre a participao privilegiada da profisso na

    administrao e funcionamento do sistema de justia brasileiro, o objetivo do estudo

    investigar como a advocacia vem se relacionando com as reformas do acesso

    justia no estado de So Paulo, durante a transio para a democracia e a

    consolidao democrtica no Brasil. A pesquisa envolve a reconstruo do debate

    sobre o tema no interior da profisso, a partir de uma anlise de contedo das

    publicaes oficiais das entidades da advocacia.

    Palavras-chave: sistema de justia; acesso justia; reformas judiciais;advocacia; advogados.

    Abstract

    The advocacys evolvement on the reforms to enlarge the access to judicial

    systems has deserved attention of comparative literature, which enhances

    characteristics of social and political engagement of certain movements of lawyers

    and its professional entities, but also indicates the intervention of these professionals

    in the suppression of the legal services markets insufficiencies. Using an institutional

    approach of advocacy, that detaches the constitutional disposals about the privileged

    participation of the profession in the administration and functioning of the Brazilian

    judicial system, the objective of this study is investigate how advocacy has been

    involved in the access to justices reforms in So Paulo state, during the transition to

    democracy and democratic consolidation in Brazil. The research involves the

    reconstruction of the discussion about that subject inside the profession, using a

    contents analysis of official publications of the advocacys entities.

    Keywords: judicial system; access to justice; judicial reforms; advocacy;lawyers.

  • 3Sumrio

    1. Apresentao

    2. Advocacia e acesso justia

    2.1. Acesso justia e reforma institucional

    2.2. Acesso justia e transformao da advocacia

    2.3. Advocacia e acesso justia no Brasil

    3. Hiptese e desenho da pesquisa

    4. A identidade profissional dos advogados e da advocacia

    4.1. O Governo dos Bacharis

    4.2. A profissionalizao da advocacia

    4.3. A institucionalizao da advocacia

    4.4. Elite, profisso ou instituio?

    5. O mercado de trabalho da advocacia

    6. O debate sobre acesso justia no interior da advocacia paulista

    6.1. Os custos do processo e o aparelhamento do Judicirio

    6.2. Desburocratizao de procedimentos judiciais:

    6.2.1. Os juizados especiais

    6.2.2. Outras reformas processuais e a introduo de

    mecanismos de resoluo alternativa de conflitos

    6.3. Assistncia judiciria gratuita: a advocacia dativa e a questo

    da Defensoria Pblica

    6.4. A advocacia pro bono

    6.5. Outras iniciativas da OABSP: servios legais e comisses

    temticas

    7. Consideraes finais

    8. Fontes e bibliografia

    8.1. Peridicos

    8.2. Bancos de dados e pginas de internet

    8.3. Bibliografia

    4

    7

    7

    11

    19

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    29

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    106

    110

    118

    125

    125

    125

    127

  • 41. Apresentao

    A constituio ainda recente de uma agenda de pesquisa sobre o sistema de

    justia brasileiro revela lacunas substantivas e, por vezes, grandes lapsos temporais

    entre estudos relacionados. No campo das instituies, tm merecido destaque os

    estudos sobre polcia; as anlises do Poder Judicirio, e especificamente, da

    composio da magistratura e do funcionamento dos juizados especiais; alm do

    Ministrio Pblico, cujo destaque recente na vida poltica brasileira tem justificado

    diversos estudos sobre esse rgo1.

    Um tema que perpassa diversos desses estudos o do acesso justia, por

    representar um problema em termos de democratizao do sistema de justia e de

    efetivao da cidadania, no contexto maior da redemocratizao brasileira

    (Junqueira, 1996).

    Nesse sentido, a advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil OAB tm

    sido pouco abordados enquanto instituies do sistema de justia e objetos de

    estudo (Sadek, 2002), ressalvadas as excees que sero a seguir detalhadas. O

    objetivo geral da presente pesquisa contribuir para o fortalecimento dessa agenda,

    ao analisar as relaes entre advocacia e acesso justia. Busca-se, assim,

    relacionar o estudo de uma instituio pouco abordada por essas pesquisas a

    advocacia com outro tema de enorme relevncia na caracterizao desse campo

    de estudos o acesso justia.

    O objetivo especfico do presente trabalho analisar o papel da advocacia

    privada e da OAB na ampliao de acesso justia no estado de So Paulo. A

    escolha do objeto tem duas justificativas, uma de carter mais geral, outra de carter

    especfico.

    A justificativa geral diz respeito pertinncia da relao entre a advocacia e o

    acesso justia nos estudos sobre este ltimo tema. Isso ficar evidente na

    descrio dos esquemas de acesso justia verificados por Mauro Cappelletti e

    Bryant Garth (1988), e na afirmativa de Boaventura de Sousa Santos (1996) de que

    a transformao dos modelos de enfrentamento do problema do acesso justia

    significou a transformao da prpria advocacia.

    1 Para uma reviso da produo em pesquisa scio-jurdica no Brasil, ver Eliane Botelho Junqueira (1996); Luciano Oliveira eJoo Maurcio Adeodato (1996); Adriana A. Loche, Helder R. S. Ferreira, Lus Antnio F. Souza e Wnia Pasinato Izumino(1999); e Maria Tereza Sadek (2002).

  • 5A justificativa especfica diz respeito situao atual do acesso justia no

    estado de So Paulo. O envio Assemblia Legislativa, pelo governador do estado,

    de projeto de lei que cria a Defensoria Pblica paulista2, em julho de 2005,

    representou uma significativa alterao na situao do acesso justia em So

    Paulo. Afinal, at o momento esse estado uma das trs nicas unidades da

    federao que at hoje no instalaram suas respectivas defensorias pblicas ao

    lado de Gois e Santa Catarina (Ministrio da Justia, 2004). Sob a alegao oficial

    de que tudo no passa de uma questo de nome, conforme observado por Luciana

    Gross Siqueira Cunha (1999: 108), os servios pblicos de assistncia jurdica no

    estado de So Paulo vm sendo prestados pela Procuradoria de Assistncia

    Judiciria PAJ, rgo subordinado Procuradoria Geral do Estado PGE,

    embora a prpria Constituio estadual estabelea diferentes atribuies para PGE

    e Defensoria Pblica (idem). Por outro lado, dentre os convnios mantidos pelo

    estado com entidades no-governamentais para o atendimento da demanda no

    captada pela PAJ, destaca-se o que envolve a seco paulista da Ordem dos

    Advogados do Brasil OABSP. Esse convnio mantido desde a dcada de 1980 e

    atualmente mobiliza mais de 43.000 dos 165.521 advogados em atividade no estado

    de So Paulo. Vale a pena informar que, dentre as unidades da federao que

    possuem defensoria pblica organizadas, se a existncia de convnios para a

    prestao de assistncia jurdica gratuita alternativa encontrada em 54,5% dos

    casos, a OAB a entidade conveniada em apenas dois dos 22 estados

    pesquisados.

    Dessa forma, e embora restrita assistncia judiciria, a ilustrao da

    situao de So Paulo exposta acima sugere algumas questes importantes para a

    compreenso da relao mais ampla entre a advocacia e o acesso justia

    globalmente compreendido. Afinal, quais os fatores que levaram o estado de So

    Paulo a eleger a advocacia privada como sua parceira preferencial na prestao da

    assistncia judiciria gratuita, destoando-se da experincia de outros estados? Num

    estado que possui uma das maiores relaes de advogados por habitante3 do pas,

    qual o impacto desse modelo de prestao de assistncia gratuita para a ampliao

    do acesso justia, de um lado, e para o prprio envolvimento da advocacia na

    questo, por outro? Como a advocacia paulista se relaciona com o acesso justia

    2 Projeto de Lei Complementar PLC n 18/2005 Lei Orgnica da Defensoria Pblica do Estado de So Paulo.3 Relao de 434,1 advogados para 100.000 habitantes (OAB e IBGE, 2005). Neste sentido, ver tabela 7, abaixo.

  • 6para alm da prestao de assistncia judiciria gratuita? Qual o futuro da parceria

    Estado-advocacia aps a implantao da defensoria pblica em So Paulo?

    Mais precisamente, o objetivo da investigao testar a hiptese de que

    fatores ligados identidade profissional e ao controle sobre o mercado de servios

    advocatcios concorrem a fim de determinar a maior ou menor participao da

    advocacia na ampliao do acesso justia.

  • 72. Advocacia e acesso justia

    2.1. Acesso justia e reforma institucional

    Segundo Boaventura de Sousa Santos, o tema do acesso justia aquele

    que mais diretamente equaciona as relaes entre igualdade jurdico-formal e

    desigualdade socioeconmica (1989: 45). Em perspectiva comparada, o principal

    referencial terico da questo do acesso justia encontra-se no chamado Projeto

    de Florena, coordenado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth na dcada de 1970,

    e que buscou fornecer uma viso ampla dos estudos tericos, bem como das

    reformas institucionais existentes em diversos pases no sentido de garantir o

    acesso da populao ao sistema de justia. Em breve sntese, pode-se dizer que a

    principal contribuio do Projeto de Florena foi clarificar a existncia de obstculos

    econmicos, sociais e culturais ao acesso justia4, ao passo em que estabeleceu a

    idia do acesso justia como movimento de reforma, a partir da metfora das trs

    ondas momentos de reformas institucionais mais ou menos equivalentes s

    geraes de direitos conquistados no mbito de Estado de bem-estar social5. Nesse

    sentido, da mesma forma que acompanhou seu apogeu, o movimento de acesso

    justia tambm sofreu as conseqncias da crise do Estado-providncia:

    As reformas e o desenvolvimento dos sistemas de acesso ao direito e

    justia, assim como a produo legislativa em favor dos mais carenciados,

    esto em estreita relao com a consolidao dos Estados-Providncia, a

    partir do fim da segunda grande guerra (1945), nos quais surgiram mltiplos

    novos direitos os direitos sociais em favor dos cidados e dos grupos mais

    desfavorecidos. Consequentemente, nos Estados-Providncia esteve

    presente a preocupao de tornar tais direitos efectivos, assegurar o seu

    4 Segundo Boaventura de Sousa Santos (1989), embora esses obstculos estejam todos de alguma forma relacionados situao geral de desigualdade social, pode-se definir os obstculos econmicos como aqueles impostos pelos custos dalitigncia judicial, por sua vez determinados no s pelos custos diretos relativos a honorrios advocatcios e taxas judicirias,mas tambm pelas relaes entre custos e valor da causa e custos e tempo do processo. Os obstculos sociais e culturais, poroutro lado, so aqueles relacionados a diferenas de classe social entre operadores e usurios da justia, ao reconhecimentode direitos e de mecanismos de proteo, e ao acesso ao conhecimento jurdico.5 O acesso justia pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental o mais bsico dos direitos humanos de umsistema jurdico moderno e igualitrio que pretenda garantir, e no apenas proclamar os direitos de todos. (Cappelletti e Garth,1988: 12). Da a centralidade do tema do acesso no debate sobre efetivao de direitos, de onde Vianna e outros destacam aimportncia do surgimento da idia de direitos difusos para a democratizao do sistema de justia: Portanto, segundoCappelletti e Garth, a origem da democratizao dos sistemas jurdicos esteve indissociavelmente ligada emergncia doschamados direitos difusos, quando, ento, a concepo que definia o processo civil como um assunto a ser resolvido entre

  • 8respeito e do princpio constitucional da igualdade dos cidados de forma a

    garantir o acesso aos tribunais e a outros organismos de regulao de

    litgios.

    No entanto, nos anos oitenta e noventa assistiu-se ao declnio dos sistemas

    de acesso ao direito, com as restries oramentais e as alteraes de

    concepo poltica no sentido de limitar o mbito do apoio judicirio,

    reservando-os s matrias criminais. A elegibilidade do acesso ao direito e

    justia retoma os esquemas caritativos anteriores segunda grande guerra

    mundial.

    A este pessimismo e declnio dos regimes e meios de acesso ao direito e

    justia dos anos oitenta e noventa, suceder-se-, no final do sculo XX e

    incio do sculo XXI, um discurso poltico e legislativo de desenvolvimento e

    consolidao de todos os meios que permitam aos cidados aceder ao direito

    e resoluo de litgios, designadamente na Europa (...) (OPJP, 2002).

    Entretanto, conforme ressalta Eliane Botelho Junqueira (1996), no foi a partir

    da contribuio terica de Cappelletti e Garth, ou mesmo em relao problemtica

    da efetivao de novos direitos que a questo do acesso justia colocou-se entre

    ns: no Brasil, se a discusso sobre direitos coletivos e difusos tambm esteve

    presente no incio dos anos 80, o problema fundamental que se apresentava

    naquele momento era o da extenso grande maioria da populao de direitos

    individuais e sociais bsicos. Segundo Celso Campilongo:

    Ns tentamos simultaneamente, na mesma conjuntura histrica, afirmar

    tanto os direitos civis e individuais quanto os direitos polticos, os diretos

    sociais e os coletivos. Ou seja, os desafios para o acesso justia entre ns

    so infinitamente mais acentuados. (1995: 15).

    Analisando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD)

    de 19886, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE),

    Wanderley Guilherme dos Santos reala o descompasso existente entre o padro

    esperado das instituies democrticas, e seu desempenho real em vrios campos

    (eleies, partidos, sindicatos, associativismo civil, etc.). Na questo especfica de

    conflituosidade e procura por justia, a pesquisa mostra que apenas 10,5% dos

    duas partes precisou ser revista, alternando as regras determinantes da legitimidade dos atores para agir, os procedimentostradicionais e a prpria atuao dos juzes. (1998: 157).6 Essa foi a primeira e nica vez que o levantamento realizado pelo IBGE incluiu questes sobre vitimizao e resoluo deconflitos (Sadek, 2002: 246).

  • 9entrevistados reconheciam envolvimento pessoal em algum tipo de conflito; desses,

    67% no procuraram o Judicirio para a resoluo de seu problema. Dos

    entrevistados que se reconheciam vtima de roubo ou furto, ou vtimas de agresses

    fsicas, 68% e 61%, respectivamente, no procuraram a polcia (Santos, 1994: 101).

    Para o autor:

    A eloqncia dos dados garante a concluso de que, ademais de existir um

    conglomerado social de considervel magnitude que sistematicamente

    dispensa o recurso ao voto como mecanismo de participao, que se revela

    indiferente participao que vai do partido poltico ao sindicato, passando

    pelas associaes comunitrias, e que ignora os laos contratuais entre

    polticos e seus eleitores, tambm assustadoramente elevado o nmero

    daqueles que ou negam o conflito, qualquer tipo de conflito caracterstico das

    sociedades contemporneas e, em particular, das que so atrasadas, ou o

    reconhecimento dele no os faz ativar as instituies estatais apropriadas.

    (...) Mas a experincia individual de cada um testemunha de que

    transitamos com freqncia das instituies polirquicas para as no

    polirquicas, como se estivssemos coabitando o mesmo universo

    institucional. Quando votamos conforme as regras da cidadania polirquica,

    mas no damos queixa polcia de que nosso filho teve seus tnis roubados,

    ns automaticamente mudamos de sistema institucional. E se em acrscimo

    compramos gs paralisante para que o adolescente possa proteger-se em

    futuro que se sabe prximo, escolhemos a via resolver por conta prpria em

    desespero da polcia e da justia. Na verdade, toda a populao brasileira

    transita permanentemente de um a outro conjunto de instituies, com

    repercusses malficas sobre a cultura cvica do pas, em primeiro lugar, e

    sobre a probabilidade de sucesso das polticas governamentais. (Santos,

    1994; 104)7.

    A pesquisa Lei, justia e cidadania, realizada entre 1995 e 1996 pelo Centro

    de Pesquisa e Documentao da Fundao Getlio Vargas (CPDOC-FGV) em

    parceria com o Instituto de Estudos da Religio (ISER), tambm buscou investigar a

    percepo da populao acerca de seus direitos e das instituies responsveis por

    sua efetivao e pela resoluo dos conflitos. Os dados, analisados por Dulce

    7 Ao utilizar a expresso poliarquia, o autor faz referncia expressa teoria democrtica de Robert Dahl: Define-se poliarquia,sucintamente, por elevado grau de institucionalizao da competio pelo poder (existncia de regras claras, pblicas eobedecidas) associado a extensa participao poltica, s limitada por razovel requisito de idade. A coexistncia de ambas asdimenses supe, minimamente, a garantia dos direitos clssicos de associao, liberdade de expresso, formao departidos, igualdade perante a lei e, afinal, controle da agenda pblica. (Santos, 1994: 80).

  • 10

    Chaves Pandolfi (1999), mais uma vez confirmam a distncia existente entre as

    instituies formais e a efetivao da cidadania plena:

    Ora, se o processo de afirmao da nossa cidadania contribuiu para afirmar

    no imaginrio da populao a primazia dos direitos sociais, provocar um certo

    descaso pelos direitos polticos e civis, e acentuar a percepo dos direitos

    de um modo geral como favores ou privilgios, esse processo contribuiu

    tambm para que as instituies oficialmente encarregadas de garantir esses

    direitos no sejam reconhecidas como instrumentos garantidores dos

    direitos. Por isso, como outras pesquisas demonstraram, muitas vezes, ao

    invs de utilizar os canais institucionais, a populao acredita que o acesso

    direto s autoridades, apelando-se inclusive para a sua boa vontade, pode

    ser o melhor caminho para a obteno dos direitos. (Pandolfi, 1999: 54)8.

    Por isso Junqueira (1996) afirma que os motivos para o despertar da questo

    do acesso justia como problema poltico e terico no Brasil encontram-se no

    processo poltico e social da abertura do regime militar, entre o final da dcada de

    1970 e o incio dos anos 80. Trata-se, portanto, de inserir a questo do acesso e,

    conseqentemente, da democratizao do sistema de justia no contexto maior da

    redemocratizao brasileira, marcado pelo surgimento de novos atores polticos, por

    movimentos de reforma institucional e conquista de novos direitos, mas tambm por

    demandas bsicas de cidadania.

    A questo do acesso pode ser vista, ainda, da perspectiva de acesso

    individual ou coletivo justia (Junqueira, 1996). Na primeira perspectiva destaca-se

    o debate em torno de mecanismos de desbloqueio das instituies de justia ao

    acesso dos cidados individualmente as custas judiciais, as defensorias pblicas e

    os servios legais gratuitos, a desburocratizao e a informalizao de

    procedimentos judiciais, como no caso dos juizados especiais ; de outro ponto de

    vista, o debate se d em torno da relao entre o Judicirio e os novos movimentos

    sociais, portadores de novas demandas por novos direitos onde se destacam as 8 Para Pandolfi, a efetivao da cidadania no Brasil no obedeceu mesma seqncia ou lgica de sociedades democrticasconsolidadas, com a conquista de direitos dividida em trs geraes (civis, polticos e sociais), sendo que a aquisio de umagerao de direitos era o ponto de partida para a conquista das prximas geraes (1999: 48). Da a prevalncia, no Brasil, dosdireitos sociais percebida pela pesquisa, em detrimento dos direitos civis e polticos: Aqui, por exemplo, os direitos sociaisforam incorporados por uma parcela da populao nos anos 30 e 40, durante a vigncia do regime autoritrio implantado porGetlio Vargas, perodo de cerceamento dos direitos polticos e civis. Como parte de um bem articulado projeto poltico-ideolgico, o Estado brasileiro no ps-30 buscou definir um novo papel e lugar para o trabalhador na sociedade. (...) Aextenso da cidadania se faz, pois, via regulamentao de novas profisses e/ou ocupaes, em primeiro lugar, e medianteampliao do escopo dos direitos associados a estas profisses, antes que por extenso dos valores inerentes ao conceito de

  • 11

    reformas de institutos processuais de titularidade de ao, as novas atribuies

    constitucionais do Ministrio Pblico na defesa de interesses coletivos e difusos, e o

    desbloqueio do sistema de justia representao coletiva e aos movimentos

    sociais organizados.

    Outra distino, e que perpassa a anterior, diz respeito diferenciao entre

    acesso ao Judicirio e acesso justia (Falco, 1995). O primeiro enfoque diz

    respeito ao aperfeioamento do modelo de administrao da justia e tem por

    pressuposto o monoplio dessa administrao pelo Estado a discusso centra-se,

    portanto, nas instituies formais do sistema de justia e tem por conseqncia o

    reforo daquele monoplio ; o segundo enfoque reconhece a insuficincia do

    primeiro para a abordagem do problema e pretende ampliar a discusso para uma

    noo mais abrangente de acesso justia questiona-se, neste ponto, o prprio

    monoplio estatal da administrao da justia, a partir do reconhecimento de formas

    alternativas de soluo de conflitos e, principalmente, de novas fontes no-estatais

    de produo do direito.

    2.2. Acesso justia e transformao da advocacia

    De acordo com a descrio feita por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988),

    a evoluo dos esquemas de acesso justia passou necessariamente pela

    incluso da advocacia nas alternativas de enfrentamento do problema. Se num

    primeiro momento a prestao de assistncia judiciria aos pobres consistia em

    dever imposto aos advogados, sem qualquer contraprestao financeira sistema

    de munus honorificum , reformas no sentido de estabelecer algum tipo de

    remunerao aos profissionais (honorrios e/ou despesas), bem como de

    sistematizao dos servios de assistncia levaram os esquemas de acesso

    justia ao chamado sistema judicare: nele, a assistncia judiciria gratuita tomada

    como direito, e os advogados particulares so remunerados pelo Estado, superando

    as caractersticas caritativas dos primeiros esforos; os desenhos das experincias

    em cada um dos pases variam, mas em geral h limites de renda para definio da

    clientela dos servios, cuja organizao pode contar com a participao em maior ou

    membro da comunidade. A cidadania est embutida na profisso e os direitos do cidado restringem-se aos direitos do lugarque ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei. (idem: 53).

  • 12

    menor grau das organizaes profissionais de advogados. Entretanto, conforme

    ponderam Cappelletti e Garth (1988: 38), se o sistema judicare foi capaz de superar

    as barreiras econmicas do acesso justia, mostrou-se incapaz de enfrentar os

    problemas coletivos das populaes de baixa renda s quais se destinavam.

    Num segundo mpeto de reformas na assistncia judiciria, iniciado nos

    Estados Unidos na dcada de 1960, a nfase foi justamente na superao das

    barreiras geogrficas e culturais ao acesso justia; os advogados, igualmente

    remunerados pelo Estado, organizavam-se em escritrios de vizinhana, e

    privilegiavam a informao jurdica, a conscientizao sobre direitos e as demandas

    coletivas. Se apresentou vantagens sobre o sistema judicare justamente por essas

    caractersticas, o modelo de advogados de equipe (Cappelletti e Garth, 1988: 49)

    mostrou-se demasiadamente dependente da ao governamental muitas vezes,

    ela prpria alvo das aes desses escritrios e de certa forma negligente em

    relao a causas individuais, defesa de direitos civis e sociais bsicos.

    Por tal razo, em geral os pases optaram por sistemas mistos, combinando

    caractersticas de ambos os modelos. Se essa primeira onda do movimento de

    reformas de acesso justia, genericamente chamada por Cappelletti e Garth de

    assistncia judiciria para os pobres (1988: 31) representou significativos esforos

    por parte de Estados e advogados para a democratizao do acesso ao Judicirio,

    ela encontrou limitaes no nmero de advogados necessrios e nos recursos

    oramentrios disponveis para sua manuteno, o que se refletiria na qualidade dos

    servios prestados:

    Para obter os servios de um profissional altamente treinado, preciso

    pagar caro, sejam os honorrios atendidos pelo cliente ou pelo Estado. Em

    economias de mercado, como j assinalamos, a realidade diz que, sem

    remunerao adequada, os servios jurdicos para os pobres tendem a ser

    pobres tambm. (Cappelletti e Garth, 1988: 47).

    A segunda onda do movimento de reformas de acesso justia deu-se em

    torno da representao jurdica dos interesses difusos, e que no estavam direta ou

    necessariamente relacionados situao de pobreza (Cappelletti e Garth, 1988: 49).

    Nesse momento, foram fundamentais as reformas nos institutos processuais de

    titularidade de ao e legitimidade ativa, e a interveno governamental por meio de

  • 13

    agncias temticas ou pela ao dos Ministrios Pblicos (e rgos similares), mas

    a participao da advocacia continuou sendo de grande importncia. A figura do

    advogado pblico, remunerado pelo Estado e surgida nos Estados Unidos na

    dcada de 1970, ganhou fora em alguns sistemas jurdicos com a finalidade de

    representar interesses at ento no representados ou no organizados, como os

    dos consumidores, dos idosos e do meio ambiente (idem: 54).

    Por outro lado, as solues governamentais apresentavam os mesmos

    inconvenientes de algumas iniciativas da primeira onda de reformas, principalmente

    no que se refere sua independncia poltica e aos custos de manuteno. A partir

    da, as solues encontradas para viabilizar a representao jurdica foram cada vez

    mais no sentido de conferir legitimidade para organizaes da sociedade civil

    pleitearem a defesa dos interesses difusos em juzo; a participao da advocacia

    nesse conjunto de reformas passou a ser, portanto, secundria e diretamente

    dependente da criao de uma demanda, por parte das associaes civis, por novos

    servios jurdicos.

    Entretanto, e embora de maneira desarticulada em relao s aes

    governamentais diretas, a advocacia privada foi capaz de se articular de modo a

    suprir a demanda das organizaes da sociedade civil, oferecendo novas opes de

    mercado para servios jurdicos. Acompanhando as reformas institucionais em

    curso, a advocacia privada norte-americana passou a constituir as sociedades de

    advogados do interesse pblico, composta de profissionais liberais e muitas vezes

    vinculadas a organizaes sem fim lucrativos, mantidas por contribuies

    filantrpicas (Cappelletti e Garth, 1988: 62-3). Embora tenham alcanado conquistas

    importantes, as sociedades de advogados de interesse pblico foram criticadas por

    no se responsabilizarem efetivamente pelos interesses que representam, muitas

    vezes sobrepondo suas vises polticas, prprias ou das organizaes que as

    mantm, aos interesses dos grupos por eles defendidos; mais uma vez, e conforme

    relatam Cappelletti e Garth, deu-se preferncia a solues mistas, que combinam as

    diversas iniciativas de representao de interesses difusos (idem: 65-6).

    Mas com a terceira onda do movimento de acesso justia que a prpria

    participao da advocacia questionada nas solues propostas. Chamada por

    Cappelletti e Garth de novo enfoque do acesso justia, a terceira onda do acesso

    justia propugna pela informalizao dos procedimentos judiciais, valorizao da

    autonomia das partes em conflito e busca de mecanismos de soluo alternativa de

  • 14

    conflitos, como a mediao, a conciliao e a arbitragem. De acordo com aqueles

    autores, embora a terceira onda de reformas compreenda tambm a representao

    judicial por advogados, a crtica a essa representao est na base da

    fundamentao terica desse novo conjunto de medidas. Segundo essa crtica, a

    nfase excessiva na representao judicial por advogados valoriza as solues

    formais em detrimento das solues substantivamente satisfatrias, bem como as

    vitrias judiciais em detrimento de conquistas polticas que consolidem os avanos

    substantivos; por outro lado, desvaloriza formas mais simples e menos dispendiosas

    de advocacia, como a advocacia leiga ou em causa prpria, e, promovendo os

    servios advocatcios, perde a oportunidade de propor reformas e polticas que

    eliminem a necessidade de advogados para a defesa de interesses (Cappelletti e

    Garth, 1988: 69, nota 142).

    Relatrio do Observatrio Permanente da Justia Portuguesa (OPJP, 2002),

    sobre as reformas recentes nos esquemas de apoio judicirio no mbito do

    Conselho da Europa e em seis pases comparados9, d conta da centralidade da

    presena de advogados e da participao das organizaes desses profissionais

    nas atuais polticas de acesso justia, em geral caracterizadas pela prestao

    descentralizada dos servios que vo da simples consulta e orientao ao

    patrocnio efetivo das causas, por meio de escritrios organizados pelo prprio

    Estado, pelos colgios de advogados ou por outras organizaes da sociedade civil

    e pela remunerao, parcial ou total, dos servios pelo Estado, muitas vezes

    combinados com medidas de resoluo extrajudicial de conflitos.

    Especificamente sobre o caso de Portugal, o relatrio do OPJP analisou a

    perspectiva da Ordem dos Advogados sobre o acesso ao direito e justia a partir

    de 1981, e percebeu que, embora a organizao dos profissionais portugueses

    tenha desde o incio demonstrado preocupao com a questo, seu envolvimento

    efetivo sofreu oscilaes. Assim, se na dcada de 1980 manifestou-se a

    preocupao com a qualidade e a amplitude dos servios de apoio judicirio em

    Portugal, que contemplasse a informao, a consulta e o patrocnio de causas por

    profissionais designados, a dcada de 1990 assistiu a uma interveno da Ordem

    dos Advogados mais voltada para os problemas decorrentes da remunerao dos

    profissionais disponibilizados para o apoio judicirio e para questes relacionadas

    9 Frana, Reino Unido, Canad, Espanha, Holanda e Alemanha.

  • 15

    valorizao desses advogados, em detrimento de avanos substantivos ou

    transformaes voltadas para ampliao do acesso justia globalmente

    compreendido. J sobre o programa da gesto da Ordem dos Advogados no incio

    dos anos 2000, o relatrio percebe um empenho na transformao do modelo de

    apoio judicirio, que, contudo, continuava a enfatizar a presena e a valorizao do

    advogado para a ampliao do acesso justia:

    O programa alm de efectuar uma sucinta avaliao do actual modelo,

    avana igualmente com propostas de interveno, demonstrando um

    empenho inequvoco na sua transformao. Contudo, as propostas

    avanadas pressupem, na sua maioria, que o sistema de acesso ao direito

    e justia seja assumido quase exclusivamente pelos advogados ou

    licenciados em direito, seja na prestao de informaes jurdicas, no

    exerccio da arbitragem ou da mediao. Decorrem desta nova estratgia da

    Ordem dos Advogados trs idias: a) a importncia da dignificao do

    sistema de acesso ao direito e, por conseguinte, da prpria profisso de

    advogado; b) a necessidade de alargar as sadas profissionais, atravs da

    introduo e distribuio de um conjunto de novas competncias e funes a

    desempenhar por advogados e por licenciados em direito, contribuindo, por

    um lado, para a melhoria do sistema de acesso e, por outro, para solucionar

    a actual crise de abundncia; c) a inevitabilidade do controlo, pela Ordem

    dos Advogados, de todo o sistema de acesso ao direito (em colaborao com

    o Ministrio da Justia), bem como dos seus fundos e mecanismos de

    gesto, controlo e fiscalizao (o proposto Instituto da Advocacia e do

    Acesso ao Direito), tornando-o mais dependente desta profisso. (OPJP,

    2002: 277).

    Relatrio do Observatrio Latino-Americano de Poltica Criminal (OLAPOC,

    2004) demonstra que os sistemas de assistncia judiciria em pases da Amrica

    Latina variam desde a absoluta ausncia de qualquer previso legal de assistncia

    gratuita, at a organizao de servios de defensoria pblica autnomos (Tabela 1).

  • 16

    Tabela 1: distribuio dos pases de acordo com o tipo deassistncia judiciria prestada

    (Amrica Latina, 2004).

    Nmero Percentual

    Sem previso legal 3 9,6

    Apenas advogados nomeados (*) 7 22,5

    Servios pblicos vinculados (**) 16 51,6

    Servios pblicos autnomos (***) 5 16,1

    Total 31 100

    Fonte: OLAPOC (2004).

    (*) Advogados nomeados por tribunais ou cortes, para casos especficos,

    remunerados pelo Estado.

    (**) Servios organizados pelo Estado e vinculados a algum outro rgo estatal.

    (***) Autonomia administrativa e financeira.

    Os dados demonstram que em 22,5% dos pases latino-americanos a

    assistncia judiciria depende exclusivamente da nomeao de advogados

    particulares para a defesa de interesses de pessoas de baixa renda. Alm disso, dos

    21 pases que possuem algum tipo de servio pblico organizado, vinculado ou

    autnomo, h notcia, no relatrio, da coexistncia do sistema de nomeao de

    advogados particulares em pelo menos seis deles10.

    De acordo com o panorama traado por Cappelletti e Garth, a participao da

    advocacia nas ondas de reforma dos sistemas de justia investigados parece ter

    sido determinada pela avaliao que se fez, em cada momento, das barreiras

    existentes para o acesso individual ou coletivo justia. Assim, se a representao

    judicial por advogados teve papel central nas conquistas das duas primeiras ondas

    de reformas, foi justamente no seu questionamento que se fundamentou a terceira

    onda do acesso justia.

    10 Argentina, Belize, Bolvia, Brasil, Chile e Colmbia; na Costa Rica e no Panam h relato da existncia de outros serviosorganizados com a participao de advogados particulares, mas fora do Estado. Por fim, vale a pena informar que Cuba foiaqui classificada dentre os pases que possuem servio pblico autnomo, muito embora tal organizao confunda-se com aprpria organizao profissional dos advogados, j que a advocacia privada foi suprimida pelo Estado (OLAPOC, 2004). Orelatrio do OLAPOC bastante sucinto e o levantamento realizado tinha por foco justamente a institucionalizao dosservios de defensoria pblica na Amrica Latina; por isso, no nos permite avaliar outras formas de participao da advocaciapara alm da prestao tpica da primeira onda de reformas de acesso justia, ou mesmo a exata medida da atuao daadvocacia particular, mesmo nos pases que possuem servios pblicos organizados assumindo-se, obviamente, a quaseinevitabilidade da adoo de solues combinadas para o enfrentamento do problema do acesso. Para maiores detalhesacerca da evoluo da organizao da advocacia em Cuba, ver relatrio especfico (OLAPOC, 2004b); para uma anlisecomparativa da defesa pblica na Guatemala e na Colmbia, ver Antonio Maldonado (2004).

  • 17

    Mas parece haver algo alm da simples necessidade ou convenincia

    estratgica a determinar a maior ou menor participao da advocacia nas reformas

    de acesso justia e isso parece evidente na experincia norte-americana das

    sociedades de advogados de interesse pblico, organizadas a partir do

    associativismo civil envolvendo profissionais liberais, e ao largo, embora tributria,

    das iniciativas governamentais pela representao dos interesses difusos. Para

    Sousa Santos:

    Em geral, de forma comum a todos os pases, este movimento do legal aid

    transformou a advocacia. A par da advocacia tradicional, surgiram a

    advocacia social e a advocacia poltica. Estas duas novas faces da

    advocacia surgem inseridas em movimentos socialmente comprometidos, em

    que a primeira pretende unicamente resolver os problemas jurdicos dos mais

    carenciados a ttulo individual (defesa de pobres), e a segunda pretende j

    defend-los numa perspectiva coletiva (advogados de sindicatos,

    associaes), isto , defender os interesses colectivos dos cidados no

    sentido do public interest advocacy. (1996: 488).

    Segundo Kim Economides, o movimento de reformas de acesso justia na

    Amrica do Norte e na Europa um fenmeno que est ligado tanto s

    transformaes econmicas e polticas das ltimas dcadas globalizao e crise

    do Estado de bem-estar social, principalmente , quanto a mudanas nas fronteiras

    profissionais:

    Em primeiro lugar, o problema de acesso justia no simplesmente um

    problema de opo individual do cidado: as responsabilidades pela garantia

    de que tal acesso seja assegurado a grupos excludos recaem tanto no

    governo, quanto nos organismos profissionais. Em segundo, como a

    dependncia do mercado pode, de muitas maneiras, perpetuar espaos

    vazios na oferta de servios jurdicos, no apenas em termos de reas do

    direito, mas tambm de reas geogrficas, preciso uma ao determinada

    do governo e das profisses jurdicas (ambos agindo em consonncia) para

    que tais espaos vazios sejam um dia preenchidos. (1999: 69).

    Nesse sentido, Economides defende uma quarta onda no movimento

    contemporneo do acesso justia, identificada pelo que define como acesso dos

    operadores do direito justia:

  • 18

    Dentro da conscincia da profisso jurdica existe um paradoxo curioso,

    quase invisvel: como os advogados, que diariamente administram justia,

    percebem e tm, eles mesmos, acesso justia? A experincia quotidiana

    dos advogados e a proximidade da Justia cegam a profisso jurdica em

    relao a concepes mais profundas de justia (interna ou social) e,

    conseqentemente, fazem com que a profisso ignore a relao entre justia

    civil e justia cvica. Nossa quarta onda expe as dimenses tica e poltica

    da administrao da justia e, assim, indica importantes e novos desafios

    tanto para a responsabilidade profissional quanto para o ensino jurdico.

    (1999: 72).

    Para Roberto O. Berizonce, mudanas das posturas profissionais dos

    advogados, voltadas para a ampliao do acesso justia, passam

    necessariamente por transformaes na prpria organizao da profisso:

    (...) una reforma profunda de los modelos actuales habr de influir sobre la

    organizacin de la abogaca signando en adelante, en mayor o menor

    medida, el rol de los prestadores que pasarn a ser, ms que nunca,

    verdaderos operadores sociales. Como tambin, producir efectos no menos

    directos y notrios en la misin de las organizaciones y colegios de

    abogados, llamamdos seguramente a desempear un papel protagnico em

    la organizacin, regncia y administracin de los servicios asistenciales,

    satisfaciendo as su misin esencial al servicio del bien comn. (1992: 68).

    H, portanto, duas ordens de fatores a influenciarem no maior ou menor

    envolvimento da advocacia privada na ampliao do acesso justia: de um lado,

    aqueles relacionados s mudanas na identidade da advocacia, ao seu

    comprometimento social (Sousa Santos, 1996), transformao de sua tica

    profissional (Economides, 1999) ou misso de suas organizaes profissionais

    (Berizonce, 1992); de outro lado, temos um mercado de servios legais regulando a

    oferta desses servios, com maior ou menor interveno do Estado ou das

    organizaes de advogados no sentido de suprir suas falhas.

  • 19

    2.3. Advocacia e acesso justia no Brasil

    falta de trabalhos especficos, e a fim de se apreender as relaes entre

    advocacia e acesso justia no Brasil, optou-se por uma breve reviso de parte da

    literatura sobre o sistema de justia que tenha, ainda que incidentalmente, abordado

    tais relaes.

    Segundo relata Maria da Glria Bonelli, a criao da assistncia judiciria aos

    indivduos pobres envolvidos em inquritos criminais, durante a presidncia de

    Nabuco de Arajo frente do Instituto dos Advogados do Brasil IAB (1866-1873),

    foi um dos principais avanos no sentido da profissionalizao da advocacia no

    perodo imperial (2002: 46).

    Conforme observado por Luciana Gross Siqueira Cunha (1999), o primeiro

    estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, de 1930, j impunha aos advogados

    inscritos o dever de prestao de assistncia judiciria gratuita s pessoas que no

    pudessem pagar pelos servios profissionais. Com o advento da lei n 1.060 de 1950

    marco institucional da assistncia jurdica no Brasil, embora ainda no

    considerasse o acesso justia dever do Estado ou direito do cidado , a

    obrigao de prestao de servios de assistncia judiciria foi deixada a cargo da

    OAB, por meio da indicao de advogados inscritos ou por nomeao pelo juiz, sem

    qualquer forma de remunerao aos profissionais.

    Entretanto, conforme o Estado assumia obrigaes no sentido de garantir

    servios de assistncia jurdica para as classes populares, estruturando servios

    pblicos de assistncia judiciria e organizando a advocacia em carreiras de

    defensores pblicos, a profisso parece ter assumido outros papis no seu

    envolvimento institucional com a questo do acesso justia.

    Analisando a advocacia em direitos humanos no Brasil e na Amrica Latina

    no processo de redemocratizao recente do continente, Falco (1989) mostra como

    esse exerccio profissional, forjado na defesa judicial de perseguidos polticos e dos

    interesses de segmentos afetados pelas polticas econmicas dos regimes

    autoritrios, e historicamente praticado sob proteo das igrejas (catlica,

    principalmente), dos colgios de advogados e das entidades resistentes da

  • 20

    sociedade civil, se caracteriza por paradoxos: de um lado, a defesa judicial dos

    interesses por ela representados deveria ser capaz de mobilizar o arcabouo jurdico

    existente na contestao das prprias leis vigentes, em geral tidas como autoritrias

    ou ilegtimas; em outras palavras, o jurdico contra o legal (1989: 147), e assim,

    essa advocacia caracteriza-se por defender certos interesses valendo-se da

    legislao vigente, ao mesmo tempo em que a questiona e busca reform-la. O

    segundo paradoxo seria decorrente do primeiro, e estaria caracterizado pelo fato de

    que, nesse tipo de advocacia, dificilmente a atuao tcnico-jurdica prescinde de

    alguma forma de atuao extralegal, esta em geral voltada para a presso poltica

    sobre a opinio pblica e sobre as instituies, mas tambm para a conscientizao

    e educao sobre direitos.

    Utilizando dados da pesquisa Justia em So Bernardo do Campo, realizada

    pelo Centro de Estudos Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, e partindo de uma tipologia que estabelece a distino

    entre servios legais tradicionais voltados para o acesso individual justia,

    prestado exclusivamente por advogados, com uma postura paternalista,

    assistencialista e pouco esclarecedora do direito, alm de restrita ao uso do aparato

    estritamente legal e inovadores voltados para o acesso coletivo justia,

    compreendendo a participao e a conscientizao dos usurios sobre seus direitos,

    envolvendo equipes multidisciplinares e mobilizando estratgias extralegais , Celso

    Fernandes Campilongo (1994) comparou os servios de assistncia jurdica

    prestados por advogados e estagirios organizados pela OAB de So Paulo e pelo

    Sindicato dos Metalrgicos na cidade paulista de So Bernardo do Campo.

    Identificando os servios da OAB como tradicionais, e os do Sindicato como

    inovadores, o autor, entretanto, conclui pela relevncia de ambas as intervenes

    para a ampliao do acesso justia:

    Tanto a conscincia dos direitos individuais presente nas demandas da OAB

    quanto a conscincia dos direitos coletivos notada no Sindicato reforam o

    mesmo fenmeno, ou seja: setores da base da pirmide social que

    compem parte significativa da clientela ganham, talvez pela primeira vez,

    conscincia dos seus direitos, de serem cidados. O fato de ambos os

    servios legais aqui comparados terem uma grande demanda de trabalhos

    reala ainda mais a grandiosidade da novidade. O novo no significa tanto a

    utilizao de canais inditos de soluo de conflitos jurdicos ou o recurso a

  • 21

    um vago direito alternativo, informal e extra-estatal. O ineditismo est

    assentado no dado fundamental de que setores populares, antes

    praticamente alijados ou ignorados na arena judicial, vo crescentemente

    marcando sua presena e ocupando espaos poltico-jurdicos antes vazios.

    (1994: 95).

    Junqueira (1996) mostra como a Seco do Rio de Janeiro da OAB foi capaz

    de conciliar, na dcada de 1980, uma experincia inovadora de assistncia jurdica

    a implantao, pela prpria entidade, de um escritrio-modelo no Morro da Coroa,

    na capital do estado com uma preocupao, que se pretendia cientfica, de realizar

    uma investigao que apreendesse, de um lado, as dificuldades de acesso ao

    Judicirio pelas classes populares, e de outro, as novas formas extrajudiciais de

    normatividade e resoluo de conflitos produzidas por aquela comunidade,

    especialmente por meio das associaes de moradores e dos grupos responsveis

    pelo trfico de drogas11.

    Diagnstico das defensorias pblicas realizado pelo Ministrio da Justia

    (2004) mostra que dos 27 estados da federao, apenas So Paulo, Gois e Santa

    Catarina no organizaram suas defensorias; mostra tambm que o Brasil possui ao

    todo 3.154 advogados na condio de defensores pblicos estaduais, numa relao

    de 1,86 profissionais para cada 100.000 habitantes (Ministrio da Justia, 2004: 49-

    50); desses profissionais, 85% exerceram atividade profissional antes do ingresso na

    carreira, mas 29,8% deles gostariam de exercer outra carreira jurdica, sendo que

    38,6% dos defensores do pas j estavam se preparando para isso. Ainda segundo o

    estudo diagnstico, se a existncia de convnios para a prestao de assistncia

    jurdica gratuita alternativa encontrada em 54,5% dos estados pesquisados, a OAB

    a entidade conveniada em apenas dois dos 22 estados12.

    Descrevendo a experincia de criao dos juizados especiais de pequenas

    causas na dcada de 80 que, dentre outras mudanas, inovou ao desobrigar as

    11 Segundo Junqueira, a principal referncia terica desse trabalho foi a concepo de pluralismo jurdico, lanada cerca dequinze anos antes a partir de uma pesquisa desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos em uma favela carioca, entodenominada Pasrgada: A influncia de Boaventura de Sousa Santos faz-se ainda presente em uma linha completamentedistinta de investigao, desenvolvida pelo Departamento de Pesquisa e Documentao da Ordem dos Advogados do Brasil Seo Rio de Janeiro. Em funo da experincia de implantao de um escritrio modelo de advocacia na favela do Morro daCoroa, nasce a oportunidade de, 15 anos depois, revistar Pasrgada. Duas concluses chamam a ateno. De um lado, apesquisa constata que a grande distncia entre a populao mais subalternizada e o Poder Judicirio, considerado umdispositivo privado das elites, explica a existncia de uma indisponibilidade da populao em relao ao mundo dos ricos, quefunciona como bloqueio simblico do seu acesso a dispositivos estatais de intermediao de conflitos (...). De outro, pde-seperceber, j em meados dos anos 80, que a boca-de-fumo surgia como grupo com pretenses de tutelar direitos e mediarconflitos, ou seja, como um importante operador normativo ao lado da juridicidade da associao de moradores. (1996: 396-7).12 Maranho e Paraba (Ministrio da Justia, 2004).

  • 22

    partes no processo de constiturem advogados para a defesa de seus interesses ,

    Vianna, Carvalho, Melo e Burgos (1999) destacam as resistncias por parte da OAB,

    em geral sob a alegao de que a presena de advogado era fundamental para a

    defesa dos interesses das partes, principalmente das pessoas mais humildes e

    pouco informadas acerca de seus direitos, mas tambm sob o argumento de que a

    informalizao de procedimentos trazida por essa reforma judicial daria espao para

    o arbtrio judicial e a precarizao de garantias processuais (idem: 172-177). Alm

    disso, a Lei 7.244/84, que criou os juizados de pequenas causas, previa tambm a

    instituio, no interior dos juizados, de mecanismos de soluo alternativa de

    conflitos, como a conciliao promovida por juzes leigos e a arbitragem; Vianna e

    outros (1999: 174) vem nas resistncias por parte da OAB, a quem cabia a

    indicao dos rbitros, aliadas s resistncias dos prprios magistrados figura o

    juiz leigo, as possveis razes para a pouca aceitao posterior desses mecanismos.

    De fato, a articulao de interesses entre setores reformistas da magistratura

    e o Ministrio da Desburocratizao13 para a instalao dos juizados especiais se viu

    obrigada a travar um debate inevitvel com a OAB, que resultou em solues de

    compromisso no debate sobre a constitucionalizao dos juizados, como a elevao

    de sua competncia para causas com valor at 40 salrios mnimos (Vianna,

    Carvalho, Melo e Burgos, 1999: 177); alm disso, segundo relata Bonelli (2002), a

    incluso, no Estatuto da Advocacia, da postulao nos juizados especiais como

    atividade privativa da advocacia s foi relativizada com a mediao do Supremo

    Tribunal Federal, que vetou parcialmente a previso legal, fundamentando o critrio

    ao final includo na Lei dos Juizados Especiais Cveis e Criminais (lei n 9.099/1995)

    obrigatoriedade de assistncia de advogado apenas nas causas de valor entre 20

    e 40 salrios mnimos:

    As tenses entre corporativismo e liberalismo que os advogados brasileiros

    viveram nos debates sobre a recente reformulao do Estatuto da Advocacia

    tambm foram mediadas pelo Judicirio, que de certa forma atendeu a

    ambas as vises. Ao mesmo tempo que manteve o maior acesso da

    populao aos Juizados Especiais de Pequenas Causas vetando a

    13 No incio dos anos 80, dois movimentos de sinalizao distinta convergiram em torno do projeto de criao dos Juizados dePequenas Causas: o da Associao de Juzes do Rio Grande do Sul AJURIS, interessada no desenvolvimento dealternativas capazes de ampliar o acesso ao Judicirio, canalizando para ele a litigiosidade contida na vida social, e o doExecutivo Federal, cujo Ministrio da Desburocratizao pretendia racionalizar a mquina administrativa, tornando-a mais gil eeficiente. (Vianna, Carvalho, Melo e Burgos, 1999: 167).

  • 23

    imposio de advogado, ele regulamentou a obrigatoriedade para causas

    entre vinte e quarenta salrios-mnimos. (2002: 76).

    Mas, alm da questo de garantir a defesa de direitos das populaes mais

    pobres, Vianna e outros viram na posio da OAB na dcada de 1980 uma postura

    poltica, de oposio de uma agncia da intelligentzia democrtica (1999: 177) a

    uma iniciativa de reforma levada a cabo por um Estado ainda fortemente marcado

    por uma estrutura burocrtica autoritria:

    Com efeito, a principal bandeira da agenda reformista dos advogados era a

    da ampliao da assistncia judiciria aos pobres, capacitando-os a litigar.

    Porm, no de todo desprezvel a suposio de que a oposio da OAB

    Lei 7.244 [que criou os juizados de pequenas causas] tinha, em parte, uma

    inspirao poltica. Aquela entidade, afinal, alinhava-se entre as demais

    instituies da sociedade civil que se opunham, desde sempre, ditadura

    militar e, ao que parece, via na Lei dos Juizados, no sem razo, uma

    iniciativa que, embora liderada pelo Judicirio, tinha tambm a marca de um

    Estado autoritrio, empenhado na racionalizao do seu aparato burocrtico.

    (1999: 176).

  • 24

    3. Hiptese e desenho da pesquisa

    As explicaes apresentadas por Vianna e outros para a oposio da OAB

    instalao dos juizados especiais no do conta de compreender mais

    profundamente as relaes gerais entre advocacia e acesso justia, mesmo

    porque no era esse o objetivo de sua anlise. Em primeiro lugar, a hiptese da

    oposio democrtica da OAB auto-reforma de um Estado autoritrio-burocrtico

    parece estar superada pela emergncia de uma nova ordem constitucional em 1988

    e, muito especialmente, pela prpria participao da advocacia nessa ordem,

    conforme se ver adiante. Afinal, se a atuao da OAB de defesa da ordem jurdica

    democrtica justificou a oposio da entidade ao regime militar, possibilitou tambm

    uma nova postura da advocacia ps-1988. Segundo Bonelli:

    A bandeira que unificou inicialmente o grupo reforou seu coesionamento na

    segunda metade do sculo XX, frente aos freqentes ataques que o estado

    de direito sofreu no Brasil, particularmente sob o regime militar de 1964-1985.

    O sucesso na construo do regime poltico democrtico, a aprovao da

    constituio de 1988, o funcionamento jurdico e a independncia do Poder

    Judicirio colocam em primeiro plano o destaque do mundo do Direito no

    Brasil atual.

    Apesar das dificuldades econmicas, da excluso da cidadania e das

    desigualdades sociais no pas, os advogados e a ordem jurdica

    conquistaram uma visibilidade pblica que lhes realimentam a identidade

    comum e a preservao do entrelaamento em torno de suas associaes,

    em especial a OAB. (2002: 75).

    Por sua vez, o argumento que associa a representao judicial por advogado

    garantia de direitos nos procedimentos de resoluo de conflitos encontra respaldo

    nessa vocao institucional da OAB na defesa da ordem jurdica, mas tambm no

    prprio papel conferido advocacia pelas disposies constitucionais relativas ao

    sistema de justia, conforme se ver. Entretanto, se esse argumento capaz de

    explicar a oposio da OAB s iniciativas de ampliao do acesso justia que

    afastem a advocacia da administrao dos conflitos, ele no permite entender a

  • 25

    participao da advocacia e da OAB nos esforos de superao do problema do

    acesso que envolvem justamente a representao judicial por advogado.

    Buscando uma explicao alternativa para a experincia brasileira, a hiptese

    principal deste trabalho a de que, como mostram os estudos comparados,

    converso profissional e controle sobre o mercado concorrem para a definio do

    maior ou menor envolvimento da advocacia na ampliao do acesso justia no

    Brasil.

    A fim de testar essa hiptese, optou-se por uma pesquisa documental capaz

    de reconstruir o debate interno advocacia no estado de So Paulo, de 1980 a

    2005; mais especificamente, buscou-se, por meio da anlise de contedo de

    publicaes de entidades da advocacia paulista, identificar os pontos que

    estruturaram a pauta desse debate no perodo. Tal opo metodolgica justifica-se,

    em primeiro lugar, pela prpria amplitude de temas que compem o debate sobre

    acesso justia globalmente compreendido: os obstculos econmicos, culturais e

    sociais; as oposies entre acesso individual e coletivo, e entre acesso justia e ao

    judicirio; a diversidade de mecanismos e arranjos institucionais possveis para a

    ampliao do acesso, conforme exposto acima. Acreditou-se, assim, que a leitura

    orientada por palavras-chave relacionadas a esses temas, de textos publicados na

    imprensa da advocacia fosse capaz de dar conta das dimenses desse debate.

    Em segundo lugar, a demarcao do perodo histrico compreendido pela

    coleta de material justifica-se por representar grande parte do processo recente de

    redemocratizao e de consolidao democrtica no Brasil, e por ter assistido aos

    principais movimentos de reformas do sistema de justia nesse contexto: a criao

    dos juizados de pequenas causas em 1984 e dos juizados especiais em 1995, a

    Constituio de 1988 e a reforma do Judicirio aprovada em 2004; especificamente

    no estado de So Paulo, a institucionalizao do convnio da PGESP com a OABSP

    nos anos 1980 e o movimento pela Defensoria Pblica, que culminou com o envio

    Assemblia Legislativa, em julho de 2005, do projeto de lei que cria tal instituio.

    O marco inicial do lapso temporal escolhido, datado em janeiro de 1980, tem

    por referncia a eleio direta para o governo do Estado, em 1982, de Franco

    Montoro do PMDB14 que teve em sua gesto, inclusive como Secretrios da

    14 Partido do Movimento Democrtico Brasileiro.

  • 26

    Justia e da Segurana Pblica, importantes quadros da advocacia paulista , mas

    busca abranger ainda um momento anterior do processo de transio poltica.

    Foi coletado material de publicaes oficiais de quatro entidades da

    advocacia paulista: o Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil

    OABSP, a quem cabe o controle formal sobre o exerccio profissional, e que tem

    adeso compulsria de seus membros15; a Associao dos Advogados de So

    Paulo AASP, entidade de livre adeso e voltada para a prestao de servios e a

    defesa dos interesses da classe16; o Instituto dos Advogados de So Paulo IASP,

    a mais antiga das entidades da advocacia paulista, de associao condicionada

    indicao e aprovao de seus membros, e voltada para o estudo de temas do

    direito e para o aperfeioamento da profisso17; e o Sindicato dos Advogados de

    So Paulo SASP, tambm de livre associao e responsvel pela representao

    dos interesses profissionais, especialmente nas questes eminentemente

    trabalhistas18.

    O Jornal do Advogado, publicado pela OABSP com periodicidade mensal,

    revelou-se a principal fonte de dados da presente pesquisa, devido ao seu formato

    propriamente jornalstico incluindo, assim, editoriais, notas informativas,

    15 Segundo o artigo 3 do Estatuto da Advocacia (Lei federal n 8.906/1994), o exerccio da atividade de advocacia no territriobrasileiro e a denominao de advogado so privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil; ainda segundo seuartigo 10, a inscrio principal do advogado deve ser feita no Conselho Seccional em cujo territrio pretende estabelecer o seudomiclio profissional. O artigo 44 do Estatuto define a OAB como servio pblico, dotada de personalidade jurdica e formafederativa, tendo como finalidades: defender a Constituio, a ordem jurdica do Estado democrtico de direito, os direitoshumanos, a justia social, e pugnar pela boa aplicao das leis, pela rpida administrao da justia e pelo aperfeioamento dacultura e das instituies jurdicas (inciso I); promover, com exclusividade, a representao, a defesa, a seleo e a disciplinados advogados em toda a Repblica Federativa do Brasil (inciso II). Por fim, o artigo 45 define os rgos que compem aentidade: o Conselho Federal, os Conselhos Seccionais, as Subseces e as Caixas de Assistncia ao Advogado. A OABSP,fundada em 1932, conta, atualmente, com 165.521 advogados e 24.322 estagirios inscritos em seus quadros (OAB, 2005).16 Conforme seu estatuto, a AASP uma associao de fins no econmicos, constituda de advogados e estagirios inscritosna OAB (artigo 1), e tem por finalidade: defender direitos, interesses e prerrogativas de seus associados e dos advogados emgeral; propugnar pela assistncia e previdncia social aos advogados, podendo criar servios prprios ou estabelecerconvnios com terceiros; promover maior convvio entre eles; incrementar a cultura das letras e dos assuntos jurdicos,mediante realizao de debates, conferncias, reunies, cursos, congressos e publicaes de interesse jurdico em geral;oferecer aos associados servios que facilitem o exerccio da profisso; representar judicial e extrajudicialmente seusassociados; impetrar, em favor de seus associados, mandado de segurana coletivo (artigo 2). A AASP foi fundada em 1942.17 O IASP foi fundado em 1827. So fins do Instituto, de acordo com o artigo 6 de seu estatuto: o estudo do Direito, a difusodos conhecimentos jurdicos e o culto Justia; a sustentao do primado do Direito e da Justia; a defesa dos direitos, dadignidade e do prestgio dos advogados e dos juristas em geral; a colaborao com o Poder Pblico no aperfeioamento daordem jurdica e das prticas jurdico-administrativas, especialmente no tocante organizao e administrao da Justia,direitos e interesses de seus rgos; a guarda e a estrita observncia das normas da tica profissional por seus associados epelos demais profissionais das carreiras jurdicas; a colaborao e desenvolvimento de atividades com a Ordem dosAdvogados do Brasil e outras entidades, sem limite territorial; a promoo de cursos e conferncias sobre temas jurdicos e deinteresse pblico; a promoo da defesa do meio ambiente, do consumidor e do patrimnio artstico, cultural, esttico, histrico,turstico e paisagstico; a prestao de servios comunidade em reas de cunho jurdico e cultural, inclusive ligadas divulgao da legislao e da jurisprudncia; o aperfeioamento do exerccio profissional das carreiras jurdicas.18 Suas finalidades esto definidas no artigo 2 de seu estatuto: coordenar e encaminhar as reivindicaes dos advogados;defender os interesses e direitos individuais ou coletivos dos integrantes da categoria; promover o desenvolvimento e oaprimoramento cultural, social e tcnico dos trabalhadores representados; integrar a sociedade civil organizada como entidadecomprometida com o Estado de Direito Democrtico e do Bem-Estar Social. Dentre suas prerrogativas incluem-se arepresentao judicial, a celebrao de acordos e convenes coletivas, a instaurao de dissdios trabalhistas e a mobilizaode greve (artigo 3). O SASP foi fundado em 1951, sofreu interveno do regime militar em 1964, e teve seu registro cassadoem 1968. Foi reativado em 1983.

  • 27

    entrevistas, reportagens, artigos assinados, transcries de discursos, debates,

    teses, resolues e concluses de seminrios, contedos produzidos no s pela

    prpria OABSP, mas tambm pelas outras entidades includas no levantamento. A

    mesma gama de contedo foi encontrada na Revista da OAB, embora tenha sido

    publicada pela OABSP apenas no perodo de 1982 a 1986, com edies bimestrais.

    A Revista do Advogado, da AASP, de periodicidade mensal, rene em geral apenas

    artigos assinados sobre temas especficos de cada edio, escritos no s por

    advogados, e tendo por foco a atualizao e o debate em torno de questes atuais

    relacionadas aplicao do direito positivo e ao aprimoramento das prticas

    profissionais; nesse sentido, foram valorizadas as edies que tinham por tema

    alteraes legislativas ou institucionais ligadas ampliao do acesso justia,

    como por exemplo, a instalao dos juizados especiais e a reforma do Judicirio,

    que muitas vezes reproduziam o contedo de debates, eventos e seminrios

    realizados pela entidade. O IASP, embora seja a mais antiga das entidades, s teve

    uma revista publicada a partir de 1997; com edies semestrais, a Revista do IASP

    tem seu contedo voltado fundamentalmente para a atualizao legislativa,

    doutrinria e jurisprudencial, com foco no aprimoramento tcnico-profissional e na

    valorizao da cultura jurdica, embora reproduza tambm discursos dos dirigentes

    da entidade, bem como pareceres aprovados por seu conselho. Assim como a

    AASP, o IASP mantm um boletim mensal de atualizao legislativa e

    jurisprudencial que por seu carter exclusivamente tcnico, foram descartados

    como fonte de dados para esta pesquisa. Por fim, o peridico mensal Voz do

    Advogado, editado pelo SASP, publicado desde a dcada de 1990, embora a

    entidade no mantenha acervo prprio de suas publicaes, disponibilizando

    edies em seu stio na internet, em verso eletrnica, a partir do ano 2000.

    Vale a pena, neste ponto, realizar uma crtica das fontes. Assim como ocorre

    com outras instituies do sistema de justia, a produo e a sistematizao de

    informaes pela advocacia paulista e suas principais entidades bastante frgil.

    So raras as pesquisas metodologicamente orientadas sobre o perfil da advocacia e

    seu mercado de trabalho. As sistematizaes de dados mais consistentes,

    produzidas em geral pela OABSP, referem-se em geral ao ensino jurdico, ao exame

    de Ordem e aos balanos e prestaes de contas das atividades administrativas

    internas da prpria entidade. Ainda assim, sua disponibilizao para o acesso

    pblico fica restrita sua divulgao nas publicaes oficiais, notando-se, durante o

  • 28

    levantamento, certa dificuldade de obteno de dados junto OABSP e suas

    comisses temticas no h, enfim, banco de dados de acesso livre ao pblico.

    Por fim, a inexistncia de um acervo das publicaes do SASP, alm de

    revelar certo descaso com a memria da prpria entidade, se junta publicao

    tardia da revista pelo IASP como fatos demonstrativos do grau de insero dessas

    entidades no debate pblico. As publicaes do SASP demonstram, de um lado, a

    atuao extremamente politizada da entidade em questes conjunturais e na pauta

    de debates do movimento social como, por exemplo, as campanhas contrrias

    Aliana de Livre Comrcio das Amricas (ALCA) e recente interveno norte-

    americana no Iraque , mas, por outro, um foco corporativo muito marcado pela

    atuao na defesa da advocacia trabalhista, em especial. O IASP, por sua vez,

    mostrou-se uma entidade que, embora tradicionalmente aberta participao de

    membros da comunidade jurdica que no advogados juzes e promotores,

    especialmente manteve seu debate em torno da valorizao da cultura e da

    comunidade jurdica, incapaz de ultrapassar essas fronteiras. Em outro extremo,

    portanto, estariam as publicaes da OABSP, cujo amplo contedo demonstra a

    maior insero e abertura da entidade a questes conjunturais, ao longo do tempo.

    As publicaes da AASP, por fim, revelam a receptividade da entidade em relao a

    inovaes no mundo do direito, embora demonstrem uma interveno geralmente

    marcada pela manuteno de um debate de natureza doutrinria em torno das

    questes levantadas.

    Por tal razo, a presente pesquisa recorreu a outras fontes de informaes

    disponveis, que incluram, alm de documentos e de informaes coletadas nos

    stios das prprias entidades na internet, contatos com advogados a elas ligados, e

    bancos de dados sobre a atividade judicial e sobre a educao superior no pas.

    A reconstruo do debate foi feita a partir dos principais temas que emergiram

    dessa leitura, expostos a seguir. Entretanto, o material coletado tambm forneceu

    importantes subsdios para o desenvolvimento das duas variveis que compem a

    hiptese desse trabalho: converso profissional e controle sobre o mercado de

    trabalho.

  • 29

    4. A identidade profissional dos advogados e da advocacia

    Fernando Ruivo (1989) aponta trs movimentos de resposta crise de

    legitimao do Judicirio: a converso profissional do magistrado; o desbloqueio das

    instituies judicirias ao acesso da populao, por meio da superao dos

    obstculos econmicos, sociais e culturais; bem como iniciativas de simplificao e

    desburocratizao dos procedimentos e da atividade judicial.

    Basicamente, pode-se entender como converso profissional a mudana na

    identidade profissional do operador do direito, que baseada em uma aplicao

    menos formalista da lei e mais aberta a valores, princpios e a determinantes da

    realidade social, tem por objetivo a transformao e a legitimao das instituies

    jurdicas.

    A converso profissional dos operadores do direito um dos mais complexos

    aspectos das reformas do sistema de justia, porque toca simultaneamente em

    diversos pontos relevantes o ensino jurdico, o recrutamento dos operadores, o

    debate sobre sua sindicalizao e posicionamento poltico, bem como novas

    possibilidades de aplicao do direito positivo e, em geral, os debates na literatura

    esto voltados para a magistratura, mais sensvel ao conflito entre neutralidade

    tcnica e engajamento poltico19.

    No esforo de definio da identidade profissional dos advogados e da

    advocacia, recorreu-se s duas principais correntes verificadas nos estudos das

    cincias sociais sobre o tema: o bacharelismo e a profissionalizao da advocacia.

    Por fim, apresenta-se uma abordagem alternativa para a compreenso desta

    identidade, dada principalmente pelas disposies constitucionais vigentes sobre as

    instituies de justia: a institucionalizao da advocacia.

    19 Nesse sentido ver Jos Eduardo Faria e Jos Reinaldo Lima Lopes (1989), Jos Eduardo Faria (1991) e Ricardo Guanabara(1996).

  • 30

    4.1. O Governo dos Bacharis20

    Os advogados aparecem no pensamento poltico brasileiro inseridos nas

    anlises do fenmeno chamado de bacharelismo. Srgio Buarque de Holanda,

    embora tenha identificado j em Portugal o prestgio social do bacharel, atribuiu

    valorizao da personalidade individual e ao amor pronunciado pelas formas fixas e

    pelas leis genricas - tpicas do carter brasileiro a origem da seduo exercida

    pelas profisses liberais e pelo ttulo de doutor (2002: 1059).

    Para Raymundo Faoro (1958), o prestgio dos letrados no Brasil teria razes

    na colonizao; a valorizao social do bacharel estaria associada educao

    jesutica e refletiria a valorizao poltica, na medida em que a educao era

    condio da nobilitao, e logo, do ingresso do indivduo no estamento burocrtico

    (1958: 224-5). A relao entre o ensino jurdico e a burocracia seria ntima e

    deliberada, segundo Faoro, pela diligncia governamental de educar a juventude

    para o emprego pblico (1958: 227). Da o sentido da crtica de Tavares Bastos

    educao pblica, especialmente no ensino superior, que produziria, segundo ele,

    uma abundncia de mdicos e bacharis, outros tantos solicitadores de emprego,

    outros tantos braos perdidos para o trabalho livre e para a empresa individual

    (Bastos, 1976: 37).

    Nesse aspecto, seria impossvel para os estudiosos de nossa formao

    nacional ignorarem os reflexos de certos aspectos da cultura jurdica na prtica de

    nossas instituies. Para Holanda, alm do j mencionado apego s formas fixas e

    leis genricas, outro trao tpico da cultura bacharelesca e letrada em nosso pas,

    fortemente tributria da influncia positivista, seria a crena no poder milagroso das

    idias, baseada em verdade, em seu avesso da mesma moeda: um secreto horror

    realidade (2002: 1060). Decorrncia do predomnio de tal cultura em nosso meio

    poltico seria, portanto, a inadequao de instituies exgenas e ideais,

    transplantadas para uma realidade qual no se adaptariam.

    Entretanto, com Oliveira Vianna (1987), e no contexto de um pensamento

    autoritrio e antiliberal que se d a crtica mais incisiva e sistemtica influncia da

    20 A expresso d nome a um dos captulos de Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro (1958).

  • 31

    cultura jurdica na formao da elite poltica brasileira21. Em sua anlise da formao

    das elites do Imprio os Homens de 1000 (1987, v. 1: 283) e na sua crtica a

    Rui Barbosa um modelo dos juristas do Imprio e dos juristas da Repblica

    (1987, v. 2: 32) possvel destacar as manifestaes e as origens do que o autor

    chama de idealismo utpico das elites e seu marginalismo poltico (idem: 15).

    Segundo Vianna, a nossos homens pblicos a conscincia nacional chegaria

    como idia, e no como cultura (1987, v. 1: 294); no viria do povo, mas dos livros

    universitrios e da prpria figura do Imperador e de seu Poder Moderador que os

    nomeava, educado para as imparcialidades do governo pela natureza de seu

    prprio cargo e possudo inteiramente da conscincia da Nao (1987: 300). Se

    no deviam nada ao seu povo, os homens da elite iam buscar na cultura e na

    tradio poltica dos pases europeus as fontes de sua atuao esse o sentido

    do que Vianna chama de marginalismo22.

    O idealismo utpico de nossos constitucionalistas legisladores, publicistas,

    tratadistas e polticos, tanto no Imprio, como na Repblica (Vianna, 1987, v. 2; 21)

    derivaria, segundo o autor, de um idealismo jurdico, caracterstica da metodologia

    de nosso direito pblico, impermevel apreenso da realidade circunstante e

    experimental; esta seria possvel apenas nas novas cincias sociais, construdas

    pelo mtodo objetivo e sociolgico de observao. Para os homens pblicos

    formados na cultura jurdica, ao contrrio, a metodologia de estudo e trabalho

    resumir-se-ia hermenutica dos textos legais. Para Vianna, o amor de tais homens

    s Tbuas da Lei seria quase religioso, e o recurso ao Direito Comparado,

    constante, denunciando o j citado marginalismo (1987, v. 2: 21).

    De qualquer forma, foi na crtica a Rui Barbosa, modelo dos juristas do

    Imprio e da Primeira Repblica, que Vianna detalhou as caractersticas da

    formao jurdica que influenciariam nossos homens pblicos: a influncia 21 A sistematizao do pensamento autoritrio da Primeira Repblica feita por Bolvar Lamounier em torno do modelo deideologia de Estado (1978: 356), revela o carter marcadamente antiliberal desse pensamento poltico: de um lado, a visoorgnico-corporativa da sociedade, tendente erradicao do conflito social e desmobilizao da sociedade civil; de outro, opredomnio do principio estatal sobre o de mercado, e a viso do Estado como coordenador da sociedade e da ao poltica.Para Maria Hermnia Tavares de Almeida, a obra de Oliveira Vianna ora citada trata justamente da inadequao do modeloliberal de organizao poltica efetiva cultura poltica da sociedade brasileira: O tema , pois, o da distncia ocenica quesepara o pas legal do pas real, para usar uma expresso cara aos contemporneos de Oliveira Vianna. O primeiro o pasdas elites cosmopolitas e metropolitanas, entre as quais se destacam os juristas liberais. O segundo a terra do povo-massaesmagadoramente rural, com suas normas, comportamentos e tradies prprios e ignorados pelas elites. (2001: 295).22 Justamente por isto que eu cheguei convico de que os homens da elite intelectual do Brasil, no s os que possuempreparao jurdica, como os que possuem preparao literria e cientfica os chamados homens de pensamento(doutrinadores, propagandistas, idealistas, publicistas etc.) podem ser, mui legitimamente, dentro da grande categoria doshomens marginais (marginal man) da classificao de Park. Porque como o tipo de Park vivem todos eles entre duasculturas: uma a do seu povo, que lhes forma o subconsciente coletivo; outra a europia ou norte-americana, que lhes d

  • 32

    predominante de doutrinas estrangeiras, especialmente jurdicas, em detrimento

    brasiliana, ou seja, as obras de conhecimento da realidade brasileira e da formao

    nacional; a viso do direito como tecnologia, e no como cincia social; o gosto pela

    erudio, decorrente de uma metodologia escolstica e formalista e da necessidade

    de ascendncia e autoridade intelectual; decorrncia desta ltima caracterstica seria

    o recuso constante ao bordo do autor estrangeiro e ao argumento de autoridade;

    por fim, a influncia do mundo anglo-saxo e dos princpios da doutrina liberal (1987,

    v. 2: 32-4).

    Esta ltima caracterstica da personalidade de Rui, e segundo Vianna, dos

    bacharis juristas em geral, merece ateno, e no pode, ao contrrio das outras

    marcas dessa elite intelectual, ser tratada como mera decorrncia das

    caractersticas anteriores. Afinal, a ideologia liberal, fortemente arraigada na ordem

    legal constitucional, esteve presente de maneira mais ou menos direta na formao

    dos bacharis juristas. Segundo Srgio Adorno (1988), o papel do Estado nacional,

    enquanto ente administrativo responsvel pela manuteno dos cursos universitrios

    nesta opo talvez seja questionvel, mas se no incutiu diretamente a doutrina

    liberal nas atividades curriculares, teria ao menos permitido que esses ideais se

    desenvolvessem nas atividades extracurriculares, principalmente na militncia dos

    estudantes e no jornalismo acadmico, reproduzindo na vida intelectual e na

    formao dessas geraes, a sntese entre patrimonialismo e liberalismo

    caracterstica da vida do Imprio:

    impossvel, de igual modo, analisar a militncia poltica acadmica

    independentemente de suas projees ideolgicas. No foi sem razo que os

    princpios liberais se sobrepuseram aos democrticos e que a imprensa

    acadmica se constituiu em poderoso instrumento de difuso do pensamento

    liberal. Desde a criao dos cursos jurdicos, o jus-naturalismo e os princpios

    bsicos do liberalismo econmico e poltico introduziram-se pelos labirintos

    da vida acadmica, expressando-se enquanto ideologia capaz de representar

    os interesses, algo antagnicos, dos homens brancos, livres e proprietrios.

    Carregando em seu bojo o mesmo princpio que norteara a revoluo

    descolonizadora a liberdade e a luta permanente contra tudo que a

    contivesse e a cerceasse , a vida acadmica no comportou o aprendizado

    as idias, as diretrizes do pensamento, os paradigmas constitucionais, os critrios do julgamento poltico. (Vianna, 1987, v. 2:16).

  • 33

    de uma militncia poltica voltada para a democratizao da sociedade

    brasileira. (Adorno, 1988: 238).

    Entretanto, a diversificao de formaes superiores e a massificao do

    ensino universitrio, o predomnio de tecnocratas na gesto pblica (Martins e

    Barbuy, 1999), bem como o surgimento de uma nova elite intelectual com a criao

    dos cursos de cincias sociais na dcada de 1930 (Santos, 1978), fizeram com que

    os bacharis cedessem ao menos parte de seu protagonismo na vida pblica. Essa

    nova condio do bacharel, e especialmente do bacharel-advogado, evidencia, no

    dizer de Joaquim Falco, uma tenso, que molda o desempenho profissional como

    uma convivncia contraditria entre o bacharel-burocrata, funcionrio pblico e o

    profissional advogado liberal. (1984: 11).

    4.2. A profissionalizao da advocacia

    Aos estudos propriamente de elites, Maria da Glria Bonelli (2002) ope uma

    viso da advocacia calcada na sociologia das profisses, destacando seu aspecto

    efetivamente profissional, e especificamente analisando o processo por meio do qual

    os advogados foram gradualmente se distanciando do Estado e do mercado, a fim

    de delimitar seu campo profissional. Segundo Bonelli, na estruturao de carreiras e

    ocupaes, profissionalismo, mercado livre e burocracia concorrem entre si no

    mundo do trabalho (2002: 19). O primeiro valoriza o conhecimento especializado e

    abstrato, adquirido em cursos superiores; o controle do mercado de trabalho pelos

    pares; e a autonomia, qualidade e independncia na prestao de servios. A

    ideologia do mercado livre se caracteriza pelo predomnio do saber prtico;

    mobilidade ocupacional e geogrfica; diviso cotidiana (e no padronizada) do

    trabalho; abertura para o ingresso no mercado de trabalho e estmulo concorrncia

    e livre escolha pelos clientes. Por fim, o modelo burocrtico valoriza o carter

    administrativo e a eficincia; possui diviso mecnica do trabalho, controle

    hierrquico da carreira e administrativo do ingresso na ocupao (2002: 16-8).

    Descrevendo a trajetria institucional do Instituto dos Advogados do Brasil

    IAB e, posteriormente, da Ordem dos Advogados do Brasil OAB, Bonelli percebe

    como a organizao da profisso de advogado mudou de uma associao de elite

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    o IAB fundado em 1843 para uma associao de massa, com a criao da OAB

    em 1930. Mais especificamente, o que o estudo de Bonelli mostra que os

    caminhos da profissionalizao da advocacia esto intimamente ligados transio

    de uma associao inicialmente identificada com uma contra-elite liberal, desalojada

    do poder pela centralizao conservadora do Segundo Reinado, a um modelo de

    organizao da profisso por meio de uma associao de massa, que adquirindo

    gradualmente maior controle sobre o exerccio profissional, delimitou fronteiras

    razoavelmente ntidas entre a advocacia e o Estado.

    Portadores do conhecimento especializado necessrio, legitimado por seus

    diplomas superiores a expertise23 , os 26 fundadores do IAB tinham por objetivo

    imprimir uma autoridade distintamente qualificada sua ao junto ao Estado, ao

    mesmo tempo em que reivindicavam para o Instituto a fiscalizao do mercado da

    advocacia, com poder disciplinar sobre os profissionais (Bonelli, 2002: 41-2).

    Mas a principal misso institucional do IAB era mesmo a criao da Ordem

    dos Advogados do Brasil, o que por longo perodo encontrou resistncias (idem: 40).

    Em 1917 foi instalado o Conselho da Ordem, com funo disciplinar apenas sobre

    os scios do IAB. Segundo Bonelli:

    H uma clara intencionalidade por parte dos membros do IAB em criar uma

    corporao com controle dos pares e do mercado, com nfase muito distinta

    daquela que motivou a fundao do Instituto, como asilo para os feridos nas

    revolues. A fundamentao para a instalao da Ordem de carter moral,

    embora trouxesse ganhos materiais. (2002: 55).

    A OAB foi criada pelo decreto n 19.408 de 18 de novembro de 1930 e

    regulamentada pelo decreto n 22.478 de 20 de fevereiro de 1933, com adeso

    compulsria, organizada em mbito nacional e inspirada pela idia de profisso

    autogovernada (Bonelli, 2002: 57-8) o que parece explicar o carter moral da

    fundao da OAB, presente no s na organizao da representao dos interesses

    dos advogados, mas principalmente no controle mais especfico do prprio exerccio

    profissional de cada advogado individualmente. A postura de oposio da OAB ao

    Estado Novo, marcada pelo objetivo de resgate da ordem jurdica atacada pelo

    golpe de 1937, permitiu a ligao entre a atuao estritamente profissional e a

    23 Expertise refere-se ao conhecimento especializado de carter abstrato, produzido nas universidades e obtido atravs dodiploma superior. (Bonelli, 2002: 17, nota 2).

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    atuao institucional da entidade, caracterizando o que Bonelli chama de dupla

    vocao. Na verdade, esse o principal argumento da autora para a explicao do

    processo de delimitao do campo profissional da advocacia em relao aos do

    mercado e da poltica:

    Isso definiu o aspecto central do profissionalismo e unificou os advogados

    no Brasil, at ento divididos nas disputas entre a neutralidade cientfica e a

    politizao que marcaram os perodos precedentes. A polarizao entre

    estes dois iderios persistiu, mas os freqentes ataques ordem jurdica

    mantiveram o vnculo dos advogados na busca da normalidade

    constitucional, gerando a identidade da OAB como possuidora de uma dupla

    vocao a profissional e a institucional. (2002: 34).

    O crescimento do nmero de advogados e de novos campos de atuao

    profissional como a advocacia preventiva, a consultoria jurdica a empresas e de

    negcios imprimiu novo ritmo ao processo de ampliao dos mecanismos de

    controle da OAB sobre o exerccio da advocacia a partir da dcada de 1950. As

    Conferncias Nacionais da OAB de 1958 e 1960 discutiram e aprovaram medidas

    como a reserva de mercado da consultoria jurdica para a profisso e o

    estabelecimento de um piso salarial para os advogados empregados esta, ao final,

    includa no novo Estatuto da Ordem de 1963, juntamente com a criao do Exame

    de Ordem como requisito para ingresso na profisso, o que, apesar de previsto, no