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GRADUAÇÃO 2012.2 TEORIA DA JUSTIÇA AUTOR: VITOR PINTO CHAVES

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GRADUAÇÃO 2012.2

TEORIA DA JUSTIÇA

AUTOR: VITOR PINTO CHAVES

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SumárioTeoria da Justiça

I. PROGRAMA DE CURSO ....................................................................................................................................... 3

II — IDEIAS DE JUSTIÇA ..................................................................................................................................... 12

2.1. SEMÂNTICA E HISTÓRIA DAS CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA ......................................................................................... 122.1.1. Aula 1: Apresentação do Curso .......................................................................................... 122.1.2. Aula 2: O que é Justiça? ..................................................................................................... 132.1.3. Aula 3: Justiça e distribuição: Da antiguidade à modernidade ............................................ 14

2.2. O UTILITARISMO CLÁSSICO ............................................................................................................................ 162.2.1. Aula 4: O princípio da utilidade e a questão social. ............................................................ 16

2.3. JUSTIÇA E AS CONCEPÇÕES LIBERAIS ................................................................................................................ 182.3.1. Aula 05 e 6 — Justiça como equidade e os princípios de justiça ......................................... 182.3.2. Aula 07 — O fato do pluralismo: uma teoria política, e não metafísica .............................. 232.3.3. Aula 08 — Liberdade radical: uma teoria da justiça para um estado mínimo ..................... 302.3.4. Aula 9 — Liberdade e capacidade ...................................................................................... 32

2.4. COMUNITARISMO E AS CRÍTICAS À VISÃO LIBERAL ............................................................................................... 382.4.1. Aula 10: A Prioridade do Bem ........................................................................................... 392.4.2. Aula 11: Igualdade Complexa ............................................................................................ 412.4.3. Aula 12: Multiculturalismo e o valor das culturas .............................................................. 46

2.5. TEORIA CRÍTICA: JUSTIÇA, DELIBERAÇÃO E RECONHECIMENTO ............................................................................... 482.5.1. Aula 14: Democracia deliberativa: a complementaridade entre autonomia pública e privada ........492.5.2. Aula 15: Justiça social como reconhecimento ..................................................................... 51

II — DIREITO E JUSTIÇA NO BRASIL ...................................................................................................................... 53

BIBLIOGRAFIA BÁSICA ....................................................................................................................................... 56

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I. PROGRAMA DE CURSO

INTRODUÇÃO

Teoria da Justiça é a disciplina de maior interface entre Filosofi a do Direi-to e Filosofi a Política. Atualmente, tem sido responsável pela mobilização das discussões nesses dois campos do saber. Entre seus temas está a justifi cação normativa dos direitos fundamentais (individuais e sociais), das políticas pú-blicas e das formas de organização da democracia.

Ancorado nessa interface, este curso enfatizará, no desenvolvimento de seus temas principais, a iniciação dos estudantes na discussão que se apresen-ta central: a refl exão acerca de como os debates sobre Teoria da Justiça podem auxiliar a pensar o Brasil contemporâneo.

Este programa, por conseguinte, buscará traçar uma trajetória sistemática que propicie aos estudantes enxergar os passos e objetivos da disciplina.

1.2. VISÃO GERAL

O curso de Teoria da Justiça está dividido em duas partes gerais: (i) o ma-peamento extensivo de rol das principais correntes de pensamento que apre-sentam visões alternativas sobre a ideia de justiça e (ii) a discussão seletiva de problemas jurídico-institucionais da realidade brasileira que mobilizem a refl exão sobre o signifi cado prático, com suas limitações e possibilidades, da construção de práticas e instituições justas no Brasil.

A divisão do curso em duas partes é didática. O desenvolvimento da dis-ciplina parte do pressuposto que pensar em ideais e pensar em instituições e práticas não são atividades estanques. Essas atividades modifi cam-se recipro-camente, mas não se reduzem uma a outra.

A primeira parte do curso — A Ideia de Justiça — pretende apresentar ao aluno, ainda que de forma sabidamente sumarizada, algumas das prin-cipais discussões contemporâneas sobre o problema da justiça. Enfatizará a compreensão sobre como as correntes de pensamento selecionadas, ao refl etir sobre a ideia de justiça, apresentam distintas concepções sobre o indivíduo, a sociedade e a dinâmica política. A expectativa é que os debates e divergências teóricas possam auxiliar na atividade de refl exão sobre o direito e as institui-ções brasileiras.

Essa primeira parte será dividida em 4 (quatro) seções: 1) Semântica e História das Concepções de Justiça, 2) Utilitarismo Clássico, 3) Justiça e as Con-cepções Liberais, 4) Comunitarismo e Críticas ao Liberalismo e 5) Teoria Crítica.

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A segunda parte do curso — Direito e Justiça no Brasil — focará a cons-trução da habilidade dos estudantes em manejar, de forma crítica e seletiva, argumentos — principalmente a partir do mapeamento teórico fornecido pela primeira parte — para o debate jurídico-institucional de questões can-dentes do direito e da vida pública brasileira. Nessa fase, os alunos serão di-vididos em grupos que liderarão, munidos de argumentos teóricos e práticos contrastantes, a discussão temática em sala de aula.

Os temas das aulas da segunda parte do curso estão divididos em 3 (três) eixos: (i) Direitos e Liberdades Individuais, (ii) Direitos Sociais e Políticas Públi-cas e (iii) Direito e Democracia. Para cada um desses eixos há, respectivamen-te, os seguintes problemas selecionados: a) descriminalização do aborto, b) casamento homossexual, c) ações afi rmativas e políticas de cotas nas universi-dades públicas, d) direito à saúde e a concessão de medicamentos, e) reforma política: fi nanciamento público de campanhas eleitorais e f ) regulamentação do plebiscito e do referendo popular.

1.3. OBJETIVOS GERAIS

O curso de Teoria da Justiça destina-se a prover aos alunos um mapeamen-to introdutório, porém crítico e comparativo, das principais tendências do debate contemporâneo em torno do conceito de justiça. Com isso, busca-se familiarizar os estudantes com parcela importante da atual agenda da Filoso-fi a do Direito e da Filosofi a Política.

O conteúdo programático do curso será apresentado de tal modo que os alunos sintam-se capacitados a analisar, comparar, contrastar e criticar os con-ceitos de justiça apresentados a partir de parâmetros teóricos e pragmáticos. O objetivo geral do curso é tornar o estudante apto a compreender em que medida as ideias de justiça permitem explicitar contradições de discursos de justifi cação de instituições e de práticas sociais. Desmistifi cada, a discussão so-bre os fundamentos do direito perde seu caráter etéreo e torna-se operacional.

Já o objetivo específi co é fomentar interpretação no sentido de enxergar a ideia de justiça simultaneamente como: a) um parâmetro para a tomada de de-cisões; b) um critério para a produção de normas; c) um critério para a aferição da legitimidade e da validade de normas e decisões; d) um princípio norteador da organização e da ordenação do estado e da sociedade; e e) um parâmetro para a defi nição, elaboração, consecução e avaliação de políticas públicas.

Ao longo do curso, os alunos serão incentivados a desenvolver raciocínio prático com base nos temas mobilizados a partir dos textos selecionados para suscitar a discussão em sala de aula. Cada estudante deve perceber como as diversas teorias da justiça estudadas permitem o aprofundamento de pers-pectivas analíticas e críticas em relação ao direito, à sociedade e à política.

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Ao desenvolver a capacidade analítica dos alunos, o curso objetiva instigar o raciocínio crítico que possibilite a formulação de um diagnóstico e a constru-ção de alternativas para instituições jurídicas, sociais e políticas.

Espera-se que os alunos, ao fi nal do curso, acumulem instrumental teórico que lhes permita pensar e argumentar fundamentadamente sobre temas que relacionem as discussões advindas das concepções apresentadas e os proble-mas sociais brasileiros. Para tanto, é imprescindível perspectiva interdisci-plinar. Os estudantes serão instigados a perceber que o conceito de justiça, mesmo quando formulado sob uma perspectiva fi losófi ca, não se justifi ca sem uma aplicação prática que, por sua vez, não pode prescindir de uma abordagem simultaneamente jurídica, social, política e econômica.

1.4. METODOLOGIA

O curso adotará a estratégia didática recomendada pela Escola em seu Projeto Pedagógico: a combinação do mapeamento extensivo com o apro-fundamento seletivo (MEAS). Por isso sua divisão básica em duas partes.

A primeira parte do curso, A Ideia de Justiça, focará o mapeamento ex-tensivo. Consistirá na formação de um quadro contrastante de perspectivas alternativas sobre o conceito de justiça e seus desdobramentos. Focalizará as principais discussões contemporâneas sobre o tema, sem que com isso haja qualquer pretensão enciclopédica.

Para propiciar mapeamento que apresente diversas abordagens, a literatu-ra que acompanhará o curso será enxuta, porém diversifi cada. Isso implicará contato com um conjunto relativamente amplo de autores. Contudo, é pre-ciso ter em mente que o curso não consiste em um estudo específi co de tais autores. Seria impossível — e contraproducente para objetivo do curso — focar as peculiaridades teóricas de cada autor. A proposta do curso, ao con-trário, pretende transmitir aos alunos as linhas de raciocínios, representativos de um debate mais profundo acerca de possibilidades alternativas de pensar temas e problemas semelhantes. Portanto, os alunos não devem se preocupar em meramente identifi car as principais ideias de cada texto (ou autor), mas sim em utilizá-los instrumentalmente, associando-as e construindo as suas próprias ideias fundamentadas.

A forma pela qual o curso foi montado implica necessariamente a cons-trução progressiva de uma refl exão crítica a respeito dos temas abordados. O caráter multifacetário do curso (que se estrutura a partir de diferentes modos de conceber a justiça e de discuti-los como critérios para a produção, legitimação e validade de normas, decisões e políticas públicas) propicia que a cada aula as perspectivas estudadas nas aulas anteriores sejam permanente-mente questionadas e revisadas. Essa empreitada é largamente facultada pela

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existência de um diálogo real travado entre diversos dos autores cujas aborda-gens serão estudadas no curso.

Em geral, mesmo nessa primeira parte do curso, as aulas partirão de temas e problemas a serem discutidos participativamente em sala. Os textos servi-rão para que esses temas e problemas possam ser identifi cados e associados às diferentes perspectivas teóricas que representam. Contudo, dado o grau de complexidade e sofi sticação de algumas argumentações, em alguns casos a aula assumirá um tom mais analítico e centrado nos textos, razão pela qual algumas aulas terão formato de seminários de discussão do texto base.

É imprescindível que os alunos se preparem para a aula lendo os textos obrigatórios indicados neste programa. Os alunos devem necessariamente ler com antecedência os textos indicados.

Os estudantes serão constantemente chamados a participar da aula, ha-vendo ou não seminários de leitura, independentemente de avisos prévios. Ao início de cada aula, os alunos serão indagados a respeito de suas impres-sões acerca do texto lido e instigados a compará-los com argumentos aprendi-dos nas aulas anteriores. A partir disso, o professor indicará uma questão, um tema ou um problema a ser discutido com referência ao texto lido. Ou seja, os textos sempre formarão material básico para as aulas e todas elas terão, dentre seus objetivos, a identifi cação e discussão dos principais argumentos neles contidos, bem como dos principais conceitos neles enunciados.

Além disso, serão constantemente instigados ao longo das aulas a apre-sentarem suas próprias visões, opiniões e pensamentos a respeito do tema tratado. Uma vez que o curso tem como eixo central a apresentação de pers-pectivas díspares a respeito da justiça, os alunos serão permanentemente cha-mados a posicionarem-se a respeito delas. Neste contexto, o professor assu-mirá um papel provocador, incitando os alunos a um ceticismo em relação de suas próprias crenças e valores (os quais são inafastáveis quando o que está em jogo são modos de conceber-se e aplicar-se a justiça) e em relação às próprias convicções que forem formando ao longo do curso.

Por mais que este seja um curso de teoria da justiça, o caráter prático de seu estudo é muito evidente. As teorias da justiça são elaboradas para efeti-vamente interagirem com a realidade social, e não apenas para descrever ou revisar um conjunto de conceitos. Pressupõem, com efeito, preocupação e refl exão sobre um contexto social, que no caso é o contexto social brasileiro. Por essa razão a segunda parte do curso, Direito e Justiça no Brasil, terá ên-fase metodológica distinta. O foco sairá do mapeamento extensivo e passará para o aprofundamento do conhecimento a partir de problemas jurídico-institucionais previamente selecionados.

O aprofundamento seletivo, tal qual descrito no Projeto Pedagógico da Escola, é o estudo de uma disciplina como um conjunto de problemas, em que o objetivo é a investigação persistente de um tema em todas as suas ra-

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mifi cações conceituais ou práticas. A ideia é que, através desses problemas, o aluno aprenda a dominar os métodos e conceitos analíticos advindos das concepções teóricas. Com isso, o objetivo é o de que os alunos, ao término da disciplina, saiam sentindo-se capacitados, e não apenas saturado de infor-mações que fatalmente esquecerão em pouco tempo.

A aplicação da abordagem de aprofundamento seletivo nesta disciplina consistirá na análise de 3 (três) conjuntos de problemas que permitem seu enfrentamento a partir de mais de uma linha de pensamento, a saber: i) Di-reitos e Liberdades Individuais, (ii) Direitos Sociais e Políticas Públicas e (iii) Direito e Democracia.

Para tanto, os estudantes devem se organizar em 6 (seis) grupos. Cada grupo deverá escolher um dentre os seguintes temas: a) descriminalização do aborto, b) casamento homossexual, c) ações afi rmativas e políticas de cotas nas universidades públicas, d) direito à saúde e a concessão de medicamen-tos, e) reforma política: fi nanciamento público de campanhas eleitorais e f ) democracia direta: regulamentação do plebiscito e do referendo popular. Para cada um desses temas, há, pelo menos, um projeto de lei, uma lei já em vigor, uma regulamentação de política pública ou uma decisão judicial que servirão de objeto de crítica e de reconstrução, a partir da pesquisa dos grupos.

Escolhidos os temas, os estudantes devem, desde o início do semestre, se preparar para seminário de apresentação de suas análises e ideias que será realizado nas últimas 6 (seis) aulas do curso. Para tanto, deverão dividir seus estudos em três partes: i) mapeamento do objeto de sua apresentação, iden-tifi cando as principais linhas da discussão jurídico-política nacional; ii) iden-tifi cação de conceitos de justiça concorrentes que contribuam para crítica fundamentada do objeto de discussão e iii) apresentação de propostas alter-nativas que interliguem a questão prática, como todas as suas peculiaridades, a ideários contrastantes de justiça.

Para o melhor aproveitamento das apresentações em sala, é necessário que os grupos agendem reuniões com o professor do curso, em horários alternati-vos ao período de aulas, no desenvolvimento de cada uma das três etapas. Tais reuniões farão parte do critério de avaliação da nota de participação.

1.5. DESAFIOS E DIFICULDADES

Teoria da Justiça é ainda um curso novo. Usualmente não encontra espaço nos currículos de graduação das faculdades de Direito brasileiras. A opção de não oferecer um curso de Filosofi a do Direito tradicional, mas sim um que enfoque em um de seus principais eixos temáticos, a teoria da justiça, refl ete a proposta da Escola de focar ensino que voltado à capacitação dos estudantes que foge ao modelo enciclopédico.

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Este curso, como conseqüência desse modelo de ensino, visa a ultrapassar segmentação entre fundamentação do direito e dogmática jurídica. Ao sepa-rá-las como elementos estanques, muitas abordagens esquecem-se que a di-nâmica do direito em uma democracia envolve a um só tempo a necessidade de discussão constante dos fundamentos jurídicos e o domínio técnico de sua operação. Muitas vezes a Teoria do Direito é representada com um conjunto de devaneios que escapam a discussão das realidades institucionais concretas. E a dogmática jurídica, em suas várias vertentes, é apresentada, caricatamen-te, como uma receita de fórmulas prontas. Não é necessário escolher apenas entre esses dois mundos quase “autistas”. O profi ssional do direito de alto nível e comprometido com os valores democráticos precisa saber transitar criticamente entre os dois mundos. Esse é o maior desafi o que o presente curso pretende ajudar os alunos a alcançar.

1.6. FORMAS DE AVALIAÇÃO

Os alunos serão permanentemente avaliados por sua participação em sala de aula e por seu engajamento no curso. Por isso, em ambas as etapas de avaliação (P1 e P2) serão atribuídos pontos de participação. Para tanto, em algumas aulas haverá, sem aviso prévio, seminário a partir de texto de leitura obrigatória.

Além desta avaliação permanente da participação, serão aplicadas duas provas e será, na segunda parte do curso, avaliada a apresentação dos grupos. Tais avaliações comporão as duas notas necessárias à média fi nal. A distribui-ção do peso das formas de avaliação será a seguinte:

A primeira nota (P1) será composta por três partes. A participação nas discussões dos textos, nas atividades de classe e em reuniões preparatórias para a apresentação do trabalho em grupo resultarão em até 20% da nota. Fichamento comparativo dos textos das aulas 5 e 12 representará até 20% da P1. E prova escrita equivalerá até 60%.

A segunda nota (P2) também será composta por três partes. A participa-ção na discussão dos textos e, sobretudo, na apresentação de outros grupos (com indagações, críticas e propostas alternativas) equivalerá a até 20% desta segunda nota. A apresentação do trabalho, a partir do desempenho individu-al e coletivo, representará até 40% dessa nota. Além disso, prova escrita, rea-lizada ao fi nal do semestre, computará até 40% do total. Esta segunda prova escrita englobará todo o conteúdo ensinado da primeira avaliação em diante, incluindo as questões discutidas nas apresentações dos grupos.

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1 NB: Programação e bibliografi a sujei-

tas a ajustes.

1.7. PROGRAMA E CALENDÁRIO DE AULAS1

Parte I: A Ideia de Justiça

Aula 01 — Apresentação do curso

§1 Semântica e História das Concepções de JustiçaAula 02 — O que é justiça?Texto base: KELSEN, Hans. O que é Justiça? São Paulo: Editora Martins

Fontes, 3ª ed, 2001, pp. 1 a 25.

Aula 03 — Justiça e distribuição: Da antiguidade à modernidade.Texto base: FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça

distributiva. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006, pp. 29 a 42.

§2 — O Utilitarismo ClássicoAula 04 — O princípio da utilidade e a questão socialTextos base: BENTHAN, Jeremy. Introdução aos princípios da moral e da le-

gislação. In: MAFFETTON, Sebastiano e VECA, Salvatore. A Ideia de justiça de Platão a Rawls. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, pp. 231 a 238.

§3 — Justiça e as Concepções LiberaisAula 05 e 06— Justiça como equidade e os princípios de justiçaTexto base: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Editora

Martins Fontes, 2 ed., 2005, caps. I (1, 3 e 4) II (11) e III (24).

Aula 07 — O fato do pluralismo: uma teoria política, e não metafísicaTexto base: RAWLS, John. Liberalismo Político. Editora Ática, São Paulo,

2000, caps. IV (1, 3, 5 e 6).

Aula 08 — Liberdade radical: uma teoria da justiça para um estado mínimoTexto base: NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia, Editora Jorge

Zahar, Rio de Janeiro, pp. 42 a 51, 170 a 174 e 181 a 184.

Aula 9 — Entre liberalismo e utilitarismo: a perspectiva capacitáriaTexto base: SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Companhia

das Letras, São Paulo, 1999, cap. 3.

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§4 — ComunitarismoAula 10 — A prioridade do bemTexto base: SANDEL, Michael. “Justice and the Good” In: SANDEL,

Michael (ed.). Liberalism and its Critics. Cambridge University Press, New York, 2 ed., 1998, pp. 133 a 135, 147 a 154 e 172 a 174.

Aula 11 — Igualdade complexaTexto base: WALZER, Michael. Esferas da Justiça. Editora Martins Fontes,

São Paulo, 2003, pp. 1 a 11 e 20 a 25.

Aula 12 — Multiculturalismo e o valor das culturasTexto base: TAYLOR, Charles; GOTMANN, Amy. “Multiculturalism: Exa-

mining the politics of recognition”. Princeton: Princeton University Press, 1992.

Aula 13 — Revisão para a primeira avaliação escrita e entrega do fi chamento.

— Primeira avaliação escrita

— Entrega de notas e revisão das questões

§5 — A Teoria CríticaAula 14 — Justiçca e democracia deliberativa: a complementaridade entre

autonomia pública e privadaTexto base: HABERMAS, Jurgen. Três modelos normativos de democracia.

In__. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002.

Aula 15 — Justiça social como reconhecimento e liberdades comunicativasTexto base: HONNETH, Axel. “Justiça e liberdade comunicativa: refl e-

xões em conexão com Hegel”. Revista brasileira de estudos políticos. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, n 89.

Aula 16 Justiça e a desigualdade social brasileiraTexto base: SOUZA, Jessé. HONNETH. A ralé brasileira. Belo Horizon-

te: Editora UFMG, 2009, cap. 2.

Parte II: Direito e Justiça no Brasil

§1 — Direito e Liberdades IndividuaisAula 17 — Descriminalização do aborto

Aula 18 — Casamento homossexual

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§2 — Direitos Sociais e Políticas PúblicasAula 19 — Ações afi rmativas e políticas de cotas nas universidades públicas

Aula 20 (29/05) — Direito a saúde e distribuição de medicamentos

§3 — Direito e DemocraciaAula 21 — Financiamento público de campanhas eleitorais

Aula 22 — Regulamentação do plebiscito e do referendo popular.

Aula 23 — Encerramento do curso: Justiça como ampliação de oportu-nidades

Texto base: UNGER, Roberto Mangabeira (2004a). O Direito e o Fu-turo da Democracia. Tradução de Caio Farah Rodriguez e Marcio Soares Grandchamp. São Paulo: Boitempo.

Aula 24 — Revisão para a segunda avaliação escrita

— Segunda avaliação escrita

— Entrega de notas e revisão das questões

— Prova fi nal

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II — IDEIAS DE JUSTIÇA

2.1. SEMÂNTICA E HISTÓRIA DAS CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA

2.1.1. AULA 1: APRESENTAÇÃO DO CURSO

2.1.1.1. INTRODUÇÃO

A Teoria da Justiça constitui certamente a disciplina de maior interface entre a Filosofi a do Direito e a Filosofi a Política. Enquanto objeto comum destes dois campos do saber, a Teoria da Justiça é largamente responsável por tê-los reavivado nas últimas décadas, constituindo-se em um dos principais temas da agenda teórica contemporânea. É tendo isso em mente que esta primeira aula introduzirá os alunos à Teoria da Justiça.

2.1.1.2. OBJETIVOS

São objetivos desta aula:• Apresentar o curso, seu programa, metodologia e métodos de avalia-

ção;• Defi nir com os alunos o cronograma do curso e o calendário das aulas

e avaliações;• Apresentar a teoria da justiça como uma disciplina interdisciplinar,

apontando seu uso e relevância em diferentes disciplinas;

2.1.1.3. CONCLUSÃO

Espera-se que com esta aula os alunos sintam-se à vontade com o cur-so e inteiramente informados a respeito de sua estrutura, funcionamento, metodologia e organização. Espera-se ainda que os alunos compreendam a importância da disciplina no contexto acadêmico contemporâneo e que per-cebam a relevância em sua formação profi ssional e pessoal, tanto no plano da aquisição e acúmulo de informações teóricas como no plano da aquisição e instrumentalização de conhecimentos práticos.

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2.1.2. AULA 2: O QUE É JUSTIÇA?

Texto base: KELSEN, Hans. O que é Justiça? São Paulo: Editora Martins Fontes, 3ª ed, 2001, pp. 1 a 25.

2.1.2.1. INTRODUÇÃO

Conhecido em geral pelos estudantes de Direito por sua Teoria Pura, Kel-sen tem uma obra vasta, que transita pela política, pela teoria democrática e, no nosso caso, sobre justiça. No ensaio de leitura obrigatória, o autor discute vários sentidos de justiça e o problema, para a democracia, de se hierarqui-zar valores. Adota, portanto, uma visão relativista, baseada no princípio da tolerância, como caminho para discussão sobre justiça. O texto serve como introdução à problemática do curso. Proporciona ao aluno a refl exão sobre os limites e as difi culdades de se defi nir um signifi cado único de justiça que sirva como parâmetro para a organização da sociedade.

2.1.2.2. OBJETIVOS

São objetivos desta aula:• Discutir, em caráter provisório, o signifi cado de justiça;• Indicar a multiplicidade de conceitos e teorizações que a ideia de jus-

tiça admite;

2.1.2.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Após realizar a leitura do texto, o aluno deve tentar responder as seguintes questões:

1. Qual é a difi culdade de se defi nir o conceito de justiça?2. É possível construir uma ordem justa com base em valores absolutos?3. A sociedade moderna tem algum valor preponderante?4. O que é, para Kelsen, o relativismo? Qual a sua base de fundamentação?

2.1.2.4. CONCLUSÃO

Espera-se que ao fi nal desta aula os alunos possam refl etir sobre a comple-xidade das discussões sobre justiça e da necessidade, em uma democracia, de tolerância com diferentes visões.

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2.1.3. AULA 3: JUSTIÇA E DISTRIBUIÇÃO: DA ANTIGUIDADE À MODERNIDADE

Textos base: FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006, pp. 29 a 42.

2.1.3.1. INTRODUÇÃO

Esta aula destina-se a exemplifi car, a partir da ideia de justiça distributiva, a necessidade leitura histórica de conceitos e ideias.

O texto base explora a seguinte tese: a ideia de justiça distributiva sofreu alterações profundas com o advento da Modernidade. Pois é somente nesse período em que se pode encontrar a noção de cada pessoa merecem determi-nados bens, independentemente de méritos próprios. A justiça distributiva moderna baseia-se na dignidade, e não mais na concepção de honra, carac-terística dos períodos anteriores. Tal perspectiva ajuda-nos a compreender o pano de fundo das discussões das contemporâneas teorias da justiça.

2.1.4.2. OBJETIVOS

Constituem objetivos desta aula:• Compreender a evolução e a mutação histórica do conceito de justiça

distributiva;• Identifi car a ideia moderna de justiça distributiva como critério o es-

tabelecimento de princípios organizativos e ordenadores da sociedade, bem como para a defi nição e implementação de políticas públicas estatais.

2.1.3.5. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Após realizar a leitura dos texto selecionado, os alunos deverão tentar res-ponder às seguintes perguntas:

1. Qual é a diferença entre justiça distributiva e justiça corretiva (co-mutativa) em Aristóteles?

2. Qual é o signifi cado de justiça distributiva para Adam Smith?3. Qual é a inovação de John Lock acerca desse conceito?

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2.1.3.6. CONCLUSÃO

Espera-se que com esta aula os alunos possam compreender a ideia de justiça, e em especial de justiça distributiva, sob uma perspectiva dinâmica. Espera-se, também, que compreenda que as alterações semânticas impactam nossa leitura sobre direito.

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2.2. O UTILITARISMO CLÁSSICO

2.2.1. AULA 4: O PRINCÍPIO DA UTILIDADE E A QUESTÃO SOCIAL.

Textos base: BENTHAN, Jeremy. Introdução aos princípios da moral e da le-gislação. In: MAFFETTON, Sebastiano e VECA, Salvatore. A Ideia de justiça de Platão a Rawls. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, pp. 231 a 238.

2.2.1.1. INTRODUÇÃO

Esta aula visa a apresentar aos estudantes linhas gerais do utilitarismo clás-sico enquanto perspectiva que representa uma das primeiras vertentes a bus-car a racionalização da ideia de justiça. Fruto de um otimismo decorrente do desenvolvimento científi co do sec. XVII e XVIII e da Revolução Francesa, os utilitaristas foram pioneiros na utilização da categoria justiça social como um instrumento de proposição e de avaliação de políticas públicas (Benthan e Stuart Mill são conhecidos por serem precursores na defesa de políticas de bem-estar social).

No breve texto desta aula, um dos maiores expoentes dessa corrente de pensamento, Jeremy Benthan, apresenta as linhas gerais do seu pensamento. O centro de sua proposta está na defi nição do princípio da utilidade como parâmetro de julgamento de ações e políticas.

2.2.1.2. OBJETIVOS

Constituem objetivos desta aula:• Compreender o contexto histórico e social do desenvolvimento do

utilitarismo;• Discutir as implicações de um conceito de justiça social relacionado

com a ideia de utilidade;• Debater os limites e as possibilidades de utilização do raciocínio uti-

litarista, especialmente o cálculo utilitarista, para análise de políticas públicas no Brasil.

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2.2.1.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Após realizar a leitura do texto selecionado, os alunos deverão tentar res-ponder às seguintes perguntas:

1. Como Benthan descreve a natureza humana?2. Qual a distinção entre o utilidade e princípio da utilidade? Defi na

ambos.3. Em sua opinião, por que poderíamos considerar o utilitarismo uma

doutrina consequencialista?

2.2.1.4. CONCLUSÃO

Ao fi nal desta aula os alunos deverão compreender o contexto histórico do utilitarismo e suas principais características. A compreensão do raciocínio utilitarista é fundamental para o desenvolvimento do curso, uma vez que essa corrente é objeto constante das críticas liberais.

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 18

2.3. JUSTIÇA E AS CONCEPÇÕES LIBERAIS

2.3.1. AULA 05 E 6 — JUSTIÇA COMO EQUIDADE E OS PRINCÍ-PIOS DE JUSTIÇA

Texto base: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2 ed., 2005, caps. I (1, 3 e 4) II (11) e III (24).

2.3.1.1. INTRODUÇÃO

A perspectiva liberal tem em John Rawls como seu principal expoente. Rawls é, inclusive, o principal nome associado à teoria da justiça, tendo sido o seu livro homônimo publicado em 1971, o principal ponto de partida para retomada das fi losofi as jurídica, política e moral após um longo período de predomínio da fi losofi a analítica no cenário acadêmico norte-americano.

A publicação de Uma Teoria da Justiça, por John Rawls, em 1971, levou ao renascimento da fi losofi a do direito, da fi losofi a política e da fi losofi a moral norte-americanas. Há muito adormecido nas malhas da fi losofi a analítica, o meio acadêmico daquele país tornou-se palco de um longo debate que ainda não se calou. Para além do Atlântico, inúmeras instituições universitárias e publicações científi cas, além dos maiores teóricos em atividade, viram-se en-volvidos nas indagações suscitadas por Rawls.

Já no prefácio da obra Rawls esclarece que o seu objetivo é “generalizar e elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria tradicional do contrato social representada por Locke, Rousseau e Kant” (Uma Teoria da Justiça, p. xxii). O objetivo desta retomada do modelo contratualista é propor um siste-ma de justiça, ou seja, oferecer uma determinada concepção de justiça como a melhor dentre as alternativas conhecidas pela sociedade.

Segundo Rawls, “não se deve pensar no contrato original [a posição origi-nal] como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que esta-belece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a ideia norteadora é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original” (Uma Teoria da Justiça, p.12). Rawls acredita que o procedimento característico das teorias contratualistas fornece um método analítico geral para o estudo comparativo de diferentes concepções de justiça. São vários os autores que virão posteriormente a concordar com isso e valer-se do método contratualista para elaborar e defender suas concepções de justiça.

O procedimento contratualista que Rawls elabora para demonstrar como a sua concepção de justiça (a “justiça como equidade”) é a melhor alternativa existente para organizar a sociedade baseia-se na ideia de posição original. A posição original (ou situação inicial) representa o próprio momento contratual. Trata-se de uma situação puramente hipotética. Vale dizer, não se requer que sua descrição ocorra

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 19

2 Rawls apresenta as partes na posição

original essencialmente como seres

racionais. São pessoas que sabem que

têm um plano racional de vida, mas

que desconhecem a sua concepção de

bem, assim como os interesses e os

objetivos particulares que objetivam

promover. Rawls supõe que apesar

destas restrições, estas pessoas estão

aptas a decidir qual concepção de jus-

tiça lhe trará mais benefícios, uma vez

que elas presumem que geralmente

preferem ter uma quantidade maior de

bens sociais primários, ao invés de uma

menor. Assim, embora não tenham

nenhuma informação a respeito de

seus objetivos particulares, as partes

têm conhecimento sufi ciente para clas-

sifi car as alternativas existentes. Esta

racionalidade das partes, Rawls deno-

mina de “racionalidade mutuamente

desinteressada”. As partes não são

pessoas ego ístas e presume-se que elas

têm um senso de justiça, e que esse fato

é compartilhado entre elas. Esse senso

de justiça signifi ca que as partes podem

confi ar umas nas outras e que todas en-

tendem e agem conforme os princípios

acordados, quaisquer que sejam eles.

Vale dizer, uma vez reconhecidos os

princípios, as partes podem ter uma

confi ança mútua quanto à sua obedi-

ência. Assim, as partes são racionais

no sentido de não fazerem acordos que

sabem que não poderiam manter, ou

que só poderiam manter com grande

difi culdade.

3 Com o intuito de assegurar um ponto

de partida de igualdade e garantir a

neutralidade e a imparcialidade de sua

teoria da justiça, Rawls cobre as partes

na posição original com um véu que

“busca anular os efeitos das contingên-

cias específi cas que colocam os homens

em posições de disputa, tentando-os

a explorar as circunstâncias naturais

e sociais em seu próprio benefício”

(Uma Teoria da Justiça, p.147). Assim,

as partes devem avaliar os princípios

de justiça apenas com base em consi-

derações gerais, desconhecendo como

cada concepção de justiça alternativa

apresentada na posição original pode

afetar o seu caso particular. As restri-

ções impostas pelo véu da ignorância

podem ser consideradas a partir de dois

ângulos. As partes desconhecem as cir-

cunstâncias particulares de sua própria

pessoa, bem como as de sua sociedade.

Quanto a si próprias, as partes na posi-

ção original não conhecem: seu lugar

na sociedade, sua posição e status so-

cial, seus dotes naturais e habilidades,

sua inteligência e força, sua concepção

de bem, e nem mesmo características

psicológicas pessoais como o humor.

Quanto à sociedade em que vivem, as

partes ignoram sua situação econômica

e política, seu grau de cultura e civiliza-

ção, além de não possuírem nenhuma

informação sobre a qual geração per-

tencem. O véu da ignorância, portanto,

concretamente, basta que a simulemos. Como afi rma Rawls, “não se pretende que a concepção da posição original explique a conduta humana, exceto na medida em que ela tenta dar conta de nossos juízos morais e nos ajuda a explicar o fato de termos um senso de justiça” (Uma Teoria da Justiça, p.130). Rawls se vale de uma demonstração que se pretende dedutiva para mostrar que o reconhecimento dos dois princípios de justiça que formam a concepção de justiça como equidade é a única escolha consistente com a descrição completa da posição original.

Como se verifi ca este processo de escolha? Em primeiro lugar, as partes na posição original não se confrontam com todas as concepções de justiça possíveis e existentes, além de não serem capazes de, por si só, gerarem essas alternativas através de suas deliberações2. Rawls admite estes fatos e acredi-ta que essas limitações fragilizam e tornam incompleto o procedimento de escolha, porém afi rma que isso é inevitável. Para lidar com esse problema, recorre então a uma lista das concepções tradicionais de justiça. Esta pequena lista será apresentada às partes, que deverão, unanimemente, escolher, como a melhor, uma única concepção dentre as enumeradas. Rawls supõe que essa decisão é alcançada após uma série de comparações feitas em pares. O obje-tivo é demonstrar que os dois princípios da justiça como equidade são prefe-ríveis, uma vez que todos na posição original concordam que eles devem ser escolhidos em detrimento de todas as demais alternativas.

Qual é o raciocínio que as partes empregam para chegar aos dois prin-cípios de justiça? Rawls descreve este raciocínio a partir da suposição do comportamento de uma pessoa qualquer na posição original. Submetida às restrições formais do conceito de justo, além daquelas impostas pelo véu da ignorância, Rawls acredita que não é razoável que essa pessoa espere mais do que uma parte igual na divisão dos bens sociais primários, além de não ser racional que concorde em obter menos3. Logo, essa pessoa deveria escolher de antemão um princípio que preveja uma distribuição igual, vale dizer, um princípio que garanta liberdades básicas iguais para todos, bem como outro que assegure uma igualdade equitativa de oportunidades.

Porém, é preciso também lidar com a suposta existência de desigualdades econômicas e institucionais. As partes na posição original são mutuamente de-sinteressadas, não são seres altruístas ou egoístas, mas estão cobertas pelo véu da ignorância. Devem, assim, lidar com o fato da desigualdade, prevendo um princípio que a permita contanto que ela venha a melhorar a situação de todos, inclusive daqueles que podem vir a ser, uma vez levantado o véu da ignorância, os menos favorecidos. Chegam então, as partes, ao princípio da diferença.

Rawls acredita que através deste raciocínio as partes não apenas concluem pelos dois princípios, como também pela sua ordem serial. “Na posição ori-ginal as partes não sabem que formas particulares seus interesses assumirão; mas elas supõem que têm esses interesses e também que as liberdades básicas exigidas para protegê-los são garantidas pelo primeiro princípio. Como pre-

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 20

exclui o conhecimento de todo e qual-

quer fato particular, com exceção do

fato que “a sua sociedade está sujeita

às circunstâncias da justiça e a qualquer

conseqüência que possa decorrer disso”

(Uma Teoria da Justiça, p.147-148). No

entanto, as partes não estão excluídas

do conhecimento de dados gerais sobre

a natureza humana e a sociedade. Nes-

se sentido, elas entendem as relações

políticas e os princípios da teoria eco-

nômica, a base da organização social,

bem como as leis que regem a psico-

logia humana. A ideia do véu da igno-

rância consiste, portanto, em assegurar

a justiça dos princípios escolhidos.

Afi nal, se na escuridão e incerteza do

véu podemos identifi car os princípios

de justiça que nos são mais desejáveis,

ou seja, preferir determinados arranjos

em detrimento de outros, então nossa

escolha tem um bom motivo para ser

tida como a escolha justa.

4 “Maximin” é abreviação de maximum

minimorum; trata-se da ideia de que

em situações de escolha na incerteza

deve-se optar pela alternativa cujo

pior resultado possível é me lhor que os

piores resultados possíveis das demais

alternativas. É preciso ter cuidado para

não confundir o princípio (ou regra)

maximin de decisão em condições de

incerteza com o princípio maximin de

justiça social, que é também uma de-

nominação muito usada para o princí-

pio da diferença.

cisam assegurar esses interesses, clas sifi cam o primeiro princípio como priori-tário em relação ao segundo” (Uma Teoria da Justiça, p.163).

Demonstrar esse processo de raciocínio pode parecer simples; difícil é pro-var re almente que as partes chegariam a essa escolha, principalmente conside-rando todas as restrições a que estão impostas. Rawls sabe disso e, para refor-çar seu argumento em favor dos dois princípios, afasta justifi cações de cunho probabilístico e submete o raciocínio das partes à regra maximin4. Rawls parte então para uma descrição paradigmática da posição original, reforçando a si-tuação de incerteza em que se encontram as partes, a fi m de mostrar que os dois princípios de justiça seriam efe tivamente escolhidos, pois representam um mínimo que as partes não colocariam em risco em nome de maiores van-tagens econômicas e sociais. Conforme acredita o autor: “há uma relação entre os dois princípios e a regra maximin para a escolha em situações de incerteza. Isso fi ca evidente à luz do fato de que os dois princípios de justiça são aqueles que uma pessoa escolheria para a concepção de uma sociedade em que o seu lugar lhe fosse atribuído por seu inimigo” (Uma Teoria da Justiça, p.165).

O primeiro objeto dos princípios da justiça como equidade é a estrutura básica da sociedade, isto é, a ordenação das principais instituições sociais em um esquema de cooperação. Os princípios de justiça têm, portanto, a função de orientar a atribuição de direitos e deveres nessas instituições e determinar a distribuição adequada dos benefícios e encargos da vida social. É importante frisar que Rawls refere-se a duas espécies de princípios: os princípios de justi-ça para instituições e os princípios que se aplicam aos indivíduos.

Os princípios de justiça para instituições constituem os dois famosos prin-cípios escolhidos pelas partes na posição original. Em Uma Teoria da Justiça, Rawls constrói e elabora a defi nição desses princípios paulatinamente até chegar à sua formulação fi nal:

Primeiro Princípio: “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangen-te sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema seme lhante de liberdades para todos”.

Segundo Princípio: “As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordena-das de tal modo que, ao mesmo tempo:

(a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e

(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades”.

Esses princípios não podem ser aplicados indiscriminadamente, mas de-vem obedecer a uma ordenação serial (ou “ordenação léxica”), ou seja, o pri-meiro antecede o segundo. Essa ordem de aplicação explica-se pelo fato de que as violações das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro prin-

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 21

cípio não podem ser justifi cadas nem compensadas por maiores vantagens econômicas e sociais. Essa situação dá origem então ao que Rawls classifi ca como a primeira regra de prioridade: a prioridade da liberdade.

Primeira Regra de Prioridade — Os princípios de justiça devem ser classifi ca-dos em ordem lexical e, portanto, as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade.

Há também uma segunda regra de prioridade, qual seja a da prioridade da justiça sobre a efi ciência e sobre o bem-estar:

Segunda Regra de Prioridade — O segundo princípio de justiça é lexicamente ante rior ao princípio da efi ciência e ao princípio da maximização da soma de vanta-gens; e a igualdade equitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença.

Os princípios rawlsianos não estão apenas condicionados por estas relações de prioridade em sua aplicação, mas também às chamadas restrições formais do conceito de justo. Estas limitam o conhecimento das partes e as alternativas a elas oferecidas na posição original através de algumas condições impostas aos princípios de justiça. São elas:

• Generalidade: Os princípios devem ser gerais, ou seja, sua formulação deve ser possível sem o uso do que reconheceríamos intuitivamente como o nome de uma pessoa ou descrições defi nidas disfarçadas;

• Universalidade: Os princípios devem ser universais em sua aplicação. De-vem aplicar-se a todos, porque todos são pessoas éticas. Devem ser esco-lhidos em vista das conseqüências decorrentes de sua aceitação por todos;

• Publicidade: Trata-se de condição decorrente do uso da abordagem contratu alista. As partes acreditam que estão escolhendo princípios de uma concep ção comum de justiça que serão conhecidos por todos;

• Ordenação: Os princípios de justiça devem ajustar reivindicações confl itan tes, impondo às mesmas uma ordenação;

• Caráter Terminativo: O sistema de princípios deve ser visto pelas par-tes como a última instância de apelação do raciocínio prático. Vale dizer, o raciocínio feito a partir dos princípios de justiça é conclusivo.

Estes são, por conseguinte, os cinco grupos de condições formais do con-ceito de justo, que pode ser sintetizado nas seguintes palavras de Rawls: “Uma concepção do justo é um conjunto de princípios gerais em sua forma e uni-versais em sua aplicação, que deve ser publicamente reconhecido como última instância de apelação para a ordenação das reivindicações confl itantes de pes-soas éticas” (Uma Teoria da Justiça, p.145).

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 22

2.3.1.2. OBJETIVOS

São objetivos desta aula:• Discutir a concepção de “justiça como equidade” tal como formulada

por John Rawls;• Explicar o procedimento contratualista que se encontra na base da

ideia de justiça como equidade;• Esclarecer o papel e a função do conceito de “posição original”;• Discutir os dois princípios de justiça como equidade;• Explicar o signifi cado da prioridade da liberdade;• Explicitar o signifi cado da prioridade da justiça sobre a efi ciência e o

bem-estar;• Problematizar o conteúdo da aula diante da recente experiência brasi-

leira no campo das ações afi rmativas. Em particular, discutir a aplica-bilidade do princípio da diferença na atual política de cotas adotada pelas universidades brasileiras.

• Questionar a desconsideração da pluralidade das pessoas na formula-ção da justiça como equidade;

2.3.1.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Os conceitos desenvolvidos por Rawls são referências centrais em todo o debate sobre a teoria da justiça, desde o início da década de setenta até os dias de hoje. O método contratualista desenvolvido por Rawls e os conceitos criados para explicá-lo são discutidos por quase todos os autores que serão estudados ao longo deste curso. Tendo em vista, portanto, a importância ca-pital do conteúdo desta e das próximas duas aulas, recomenda-se aos alunos que realizem, como atividade de aproveitamento da leitura, um fi chamento da bibliografi a obrigatória desta aula.

2.3.1.4. CONCLUSÃO

Espera-se que ao fi nal desta aula os alunos já consigam identifi car as prin-cipais características da concepção de justiça como equidade. Em particular, espera-se que eles tenham apreendido o signifi cado da “sociedade como um sistema justo de cooperação”, da ideia de “sociedade bem-ordenada”, da ideia de “estrutura básica”, do conceito de “posição original” e do conceito de “véu da ignorância”. Além disso, espera-se que ao fi nal desta aula os alunos te-nham compreendido os dois famosos princípios da justiça como equidade.

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 23

5 É possível identifi car dois momentos

distintos em que Rawls submete sua

obra à revisão, incorporando críticas,

reformulando ideias e recriando con-

ceitos. O primeiro desses momentos

dá-se em 1975, quando Rawls revisa

Uma Teoria da Justiça para publicação

na língua alemã. Neste momento, são

feitas apenas algumas correções com

o objetivo de corrigir duas fragilidades

que acredita ter encontrado em sua

formulação original. A primeira delas

diz respeito à concepção de liberdade.

Rawls passa a afi rmar que os direitos e

liberdades básicas e sua prioridade são

tidos como uma garantia, igualmente

para todos os cidadãos, de condições

sociais essenciais para o adequado

desenvolvimento e o exercício pleno e

informado de suas duas capacidades

morais — isto é, a capacidade de ter

um senso de justiça e de possuir uma

concepção de bem. As liberdades polí-

ticas iguais também ganham um “valor

justo”. A segunda fragilidade de Uma

Teoria da Justiça refere-se à concepção

de bens primários. Isso leva Rawls a

reformular seu conceito de pessoa, que

passa a possuir aquelas duas capacida-

des morais e ter uma ordem de inte-

resses no desenvolvimento e exercício

dessas capacidades. Os bens primários

passam a ser caracterizados como aqui-

lo que as pessoas precisam em sua con-

dição de cidadãos livres e iguais e como

membros plenamente cooperativos de

uma determinada sociedade ao longo

de suas vidas. O segundo momento de

revisão ocorre em 1993, com a publica-

ção de O Liberalismo Político. Neste mo-

mento, realmente pode-se dizer que as

mudanças foram substantivas. Mais do

que corrigir eventuais imprecisões, nes-

se momento de sua obra política Rawls

reconhece defi ciências em sua teoria

que abalam a própria estabilidade de

seu modelo. As alterações feitas che-

gam a recriar e criar novos conceitos.

2.3.2. AULA 07 — O FATO DO PLURALISMO: UMA TEORIA POLÍTI-CA, E NÃO METAFÍSICA

Texto base: RAWLS, John. Liberalismo Político. Editora Ática, São Paulo, 2000, caps. IV (1, 3, 5 e 6).

2.3.2.1. INTRODUÇÃO

A transição no pensamento de John Rawls que irá conduzi-lo à publicação de O Liberalismo Político5, em 1993, parece se iniciar cerca de dez anos antes em confe rências dadas por ele na Universidade de Columbia, em Nova York. Publicados em toda a sua longa extensão sob o título “Kantian Constructivism in Moral Th eory”, esses seminários levaram Rawls a repensar seu modelo e perceber algumas inconsistências internas implícitas em seu argumento ori-ginal da justiça como equidade. Ao se perguntar como pessoas razoáveis, pos-suindo diferentes doutrinas abrangentes razoáveis, podem aceitar a mesma concepção de justiça liberal como uma base compartilhada de justifi cação, razão pública e unidade social, Rawls conclui que sua concepção de justiça apresenta problemas de estabilidade e legitimidade política. A partir dessa constatação, publicará vários artigos seminais nos quais:

• Afi rma o caráter político de sua concepção de justiça e introduz o conceito de fato do pluralismo razoável, substituindo o conceito de pluralismo simples;

• Elabora o conceito de consenso sobreposto, não mais se referindo a um consen so simples;

• Introduz o conceito de razão pública.

São estes os conceitos que vieram a dar auto-sustentação, estabilidade e unidade à teoria rawlsiana. Os artigos nos quais eles foram elaborados for-mam o material básico de O Liberalismo Político, após ganharem novas revi-sões e ampliações. Acompanhando o movimento de transformação da justiça como equidade em uma concepção política de justiça, esta aula será dedicada ao estudo desses três conceitos.

1) O Fato do Pluralismo RazoávelJá na introdução de O Liberalismo Político, Rawls afi rma que a descrição

da es tabilidade por ele empreendida em Uma Teoria da Justiça não é coerente com a totalidade de sua visão. E é justamente a eliminação desta incoerência, assevera, que responde pelas diferenças entre Uma Teoria da Justiça e O Libe-ralismo Político. E qual seria esta incoerência? A descrição do conceito de “so-ciedade bem ordenada”, que em Uma Teoria da Justiça encontra-se assentada

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 24

na ideia de que todos os seus cidadãos endossam a justiça como equidade como uma doutrina fi losófi ca abrangente. Trata-se do fato do pluralismo ou pluralismo simples. Ou seja, em Uma Teoria da Justiça, as pessoas endossam a justiça como equidade através de sua aderência a uma mesma doutrina fi losó-fi ca abrangente. Já em O Liberalismo Político, Rawls quer justamente reforçar o contraste entre doutrinas fi losófi cas e morais abrangentes e uma concepção de justiça limitada ao domínio do político.

Rawls admite que a cultura política de uma sociedade democrática neces-sariamente caracteriza-se pela pluralidade e diversidade de doutrinas religiosas, fi losófi cas e morais. E não se trata apenas de constatar esta diversidade: trata-se de reconhecê-la como uma pluralidade de doutrinas confl itantes e irreconcili-áveis. Em outras palavras, trata-se de reconhecer o pluralismo razoável.

Falar em pluralismo razoável não signifi ca falar apenas de uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, mas de assumir a sua incompatibilidade e mesmo a possibilidade de existência de doutrinas pouco razoáveis, irracio-nais ou absurdas. O Liberalismo Político, portanto, tem a tarefa de demonstrar como uma concepção de justiça fundada em instituições democráticas livres deve necessariamente levar em conta o fato do pluralismo razoável.

O pluralismo razoável é o primeiro dos cinco “fatos gerais” que caracteri-zam a cultura política de uma sociedade democrática. A diversidade de dou-trinas abran gentes não é uma simples condição histórica que pode desapare-cer, mas um traço permanente da cultura pública da democracia. Mais ainda, o pluralismo razoável é o resultado natural da razão humana sob instituições livres. Rawls reconhece que sua ideia de sociedade bem-ordenada de justiça como equidade não é nada realista ao perceber que não há como ignorar o fato de que em uma sociedade democrática moderna:

• Não há apenas uma pluralidade de doutrinas abrangentes, mas uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, e, ainda assim, in-compatíveis;

• É inócuo acreditar que todos os cidadãos professem uma mesma dou-trina razoável ou que um dia possam vir a fazê-lo;

• A concepção de justiça compartilhada pelos cidadãos não pode deri-var exclu sivamente de uma doutrina abrangente; vale dizer, uma dou-trina abrangente e razoável não pode garantir a base da unidade social;

• Uma doutrina abrangente e razoável não pode, por si só, oferecer o conteúdo da razão pública sobre questões políticas fundamentais.

Rawls depara-se então não apenas com um problema de estabilidade em sua teoria, mas também com um problema de legitimidade. As bases do acor-do não podem mais ser as mesmas, isto é, não podem mais ser constituídas por uma doutrina geral e abrangente. Torna-se então necessária uma con-

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 25

cepção política de justiça, ou seja, uma concepção neutra, à qual as doutrinas abrangentes e razoáveis dos cidadãos possam aderir. Mais do que isso, torna-se necessária uma nova base de justifi cação. Para verifi car a legitimidade da concepção política de justiça e testar a estabilidade e a unidade da sociedade bem-ordenada que ela representa, torna-se necessário, assim, introduzir um novo conceito: o consenso sobreposto.

2) O Consenso SobrepostoO conceito de consenso sobreposto foi introduzido por Rawls em 1985

com a pu blicação do artigo “Justice as Fairness: Political not Metaphysical”, no qual foi oferecida também sua primeira exposição sistemática. Ao demons-trar a justiça como equidade como uma concepção política de justiça, Rawls relaciona o pluralismo razoável com o consenso sobreposto. Este viria a re-forçar a concepção política de justiça ao incluir todas as doutrinas religiosas e fi losófi cas opostas entre si e suscetíveis de se manterem e ganharem adeptos em uma democracia constitucional. Prevendo possíveis críticas, tece, naquele momento, dois argumentos para afastar a compreensão de que o consenso sobreposto seria uma ideia essencialmente hobbesiana. Em primeiro lugar, afi rma que justiça como equidade é uma concepção moral, de modo que o consenso que propõe não consiste em um mero modus vivendi. Em segundo lugar, assevera que cada uma das doutrinas abrangentes que compõem o con-senso sobreposto aceitam a justiça como equidade a seu modo, a partir de seu próprio ponto de vista.

Pouco antes de lançar O Liberalismo Político, Rawls publicou um impor-tante artigo intitulado “Th e Domain of the Political and Overlapping Consen-sus”, o qual explica que a visão geral de cada cidadão tem duas partes: uma coincide com uma concepção política de justiça e a outra é (total ou parcial-mente) uma doutrina abrangente à qual a concepção política se relaciona de alguma forma. Explica-se assim como que, dado o fato do pluralismo razo-ável, instituições livres conquistam a aquiescência e a obediência necessárias para durar ao longo dos tempos.

Finalmente, em O Liberalismo Político, Rawls tenta defi nitivamente con-solidar sua concepção de justiça resolvendo os problemas de estabilidade e de unidade de sua teoria. Neste sentido, explica que “a unidade social baseia-se num consenso sobre a concepção política, e a estabilidade é possível quando as doutrinas que constituem o consenso são aceitas pelos cidadãos e as exi-gências da justiça não confl itam gravemente com seus interesses essenciais” (O Liberalismo Político, 179).

Vale ainda mencionar que Rawls formula também uma ideia de consenso consti tucional em contraposição à ideia de consenso sobreposto. O consen-so constitucional seria anterior ao consenso sobreposto e teria como objeto certos princípios de liberdades e direitos políticos fundamentais e procedi-

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 26

mentos democráticos. Partindo da ideia de cooperação, Rawls demonstra as forças que levarão sua concepção liberal de justiça enquanto simples modus vivendi a transformar-se em um consenso constitucional e posteriormente em um consenso sobreposto.

3) A Razão PúblicaEm O Liberalismo Político encontra-se uma boa defi nição da ideia de razão

pública: “a razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de seus cidadãos, daqueles que compartilham o status de cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem do público: aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos e fi ns a que devem servir” (O Liberalismo Político, pp. 261-262).

É importante ressaltar que nem todas as razões são públicas. Há muitas razões não-públicas, como é o caso das igrejas, universidades e demais asso-ciações da sociedade civil. A razão pública, no entanto, é única, pois é a razão de cidadãos iguais que exercem um poder político fi nal e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua Constituição.

Rawls afi rma que a razão pública não se aplica a todas as questões polí-ticas, mas apenas àquelas que envolvem os chamados “elementos constitu-cionais essenciais” e também questões de justiça básica. Rawls acredita que somente os valores políticos devem resolver questões fundamentais, isto é, questões que constituem o objeto da razão pública.

A razão pública aplica-se não apenas aos cidadãos, mas também aos Pode-res do Estado. Em outras palavras, os representantes do Legislativo quando se pronunciam e deliberam ofi cialmente, os detentores de cargos executivos em seus atos e pronunciamentos públicos, e os juízes — sobretudo os magis-trados constitucionais — ao exercerem o controle de constitucionalidade e motivarem suas decisões, fazem uso da razão pública.

A razão pública defendida por Rawls implica também uma concepção ideal de cidadania para um regime democrático constitucional. Este ideal de cidadania democrática impõe um “dever de civilidade” (que é também um dever moral) que atribui a cada cidadão a responsabilidade de explicar aos demais como os princípios e políticas que defende e vota podem ser sustentados pelos valores políticos da razão pública. Este dever de civilidade, somado aos valores do político, produz o ideal de cidadãos governando a si mesmos, de um modo que cada qual acredita que seria razoável esperar que os outros aceitem. Sendo esse ideal sustentado pelas doutrinas abrangentes, “os cidadãos defendem o ideal de razão pública não em conseqüência de uma barganha política, como num modus vivendi, mas em virtude de suas próprias doutrinas razoáveis” (O Liberalismo Político, p. 267).

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TEORIA DA JUSTIÇA

FGV DIREITO RIO 27

6 “Maximin” é abreviação de maximum

minimorum; trata-se da ideia de que

em situações de escolha na incerteza

deve-se optar pela alternativa cujo

pior resultado possível é melhor que os

piores resultados possíveis das demais

alternativas. É preciso ter cuidado para

não confundir o princípio (ou regra)

maximin de decisão em condições de

incerteza com o princípio maximin de

justiça social, que é também uma de-

nominação muito usada para o princí-

pio da diferença.

Além disso, a formulação original dos dois princípios de justiça foi revis-ta por Rawls em suas famosas Tanner Lectures (“As Liberdades Básicas e sua Prioridade”), publicadas em 1982 e posteriormente incorporadas em O Libe-ralismo Político. Neste livro, Rawls destaca a importância de os princípios de justiça servirem como diretrizes para a forma pela qual as instituições básicas devem realizar os valores de liberdade e igualdade. A nova redação dos prin-cípios de justiça em O Liberalismo Político passa a ser:

“Primeiro Princípio: Todas as pessoas têm igual direito a um projeto intei-ramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido.”

“Segundo Princípio: As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade.”

Tendo em vista estas modifi cações teóricas incorporadas em O Liberalismo Político, Rawls passa a afi rmar os princípios de justiça como manifestações do conteúdo de uma concepção política liberal de justiça. São três as características principais desta concepção que passa a substituir a concepção de justiça como equidade:

• A especifi cação de certos direitos, liberdades e oportunidades básicas;• A atribuição de uma prioridade especial a esses direitos, liberdades e

oportunidades, principalmente no que diz respeito às exigências do bem geral e de valores perfeccionistas;

• O estabelecimento de medidas que assegurem a todos os cidadãos os meios polivalentes adequados para que suas liberdades e oportunida-des sejam efeti vamente postas em prática.

Outros três elementos passam também a determinar que os dois princí-pios de justiça expressem uma forma igualitária de liberalismo:

• A garantia do valor equitativo das liberdades políticas, de modo que as mesmas não sejam puramente formais;

• A igualdade equitativa de oportunidades;• O princípio da diferença6.

Outra informação importante à compreensão sistemática do signifi cado dos princípios de justiça na obra de Rawls é acrescentada em O Liberalismo

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Político. Trata-se da pressuposição de outro princípio, lexicamente anterior ao primeiro, “que prescreva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, ao menos à medida que a satisfação dessas necessidades seja necessária para que os cidadãos entendam e tenham condições de exercer de forma fecunda esses direitos e liberdades” (O Liberalismo Político, p. 49). Rawls vai ainda mais longe. O que ele quer, na verdade, é afi rmar que seus princípios de justiça estão implícitos no que ele chama de um fundo comum da cultura pública das sociedades democráticas.

2.3.2.2. OBJETIVOS

São objetivos desta aula:• Discutir a relação entre justiça, pluralismo e democracia;• Questionar os problemas que o pluralismo coloca para a justiça e a

democracia;• Analisar o signifi cado do “fato do pluralismo razoável”;• Indagar se no Brasil existe um pluralismo razoável e como ele se com-

patibiliza com a justiça;• Explicitar a ideia de consenso sobreposto;• Incentivar uma postura cética mediante a ideia de consenso sobre-

posto, tendo em vista a sua confi guração como um simples modus vivendi;

• Questionar se o consenso sobreposto é um conceito que pode traduzir a realidade, sobretudo a realidade brasileira;

• Examinar criticamente a ideia rawlsiana de razão pública;• Anunciar as revisões feitas por Rawls em sua teoria da justiça e o seu

impacto na formulação dos dois princípios de justiça;• Indicar como a concepção de justiça como equidade converte-se numa

“concepção política liberal de justiça”;

2.3.2.3. ATIVIDADE DE APROFUNDAMENTO DA LEITURA

Valendo-se de suas próprias palavras, os alunos devem tentar resumir, em um parágrafo cada, os conceitos de pluralismo razoável, consenso sobreposto e razão pública. Em um quarto e último parágrafo, devem tentar relacionar estes conceitos à realidade brasileira.

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TEORIA DA JUSTIÇA

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2.3.2.4. CONCLUSÃO

Espera-se que ao fi nal desta aula os alunos já tenham percebido como a teoria da justiça afeta, na prática, as sociedades democráticas contemporâ-neas. Neste momento do curso, os alunos devem já estar aptos a identifi car na realidade do mundo e do Brasil várias das questões problematizadas pela perspectiva liberal de justiça. Espera-se que eles percebam como o pluralismo é um fato que não pode ser desconsiderado ao se defender uma concepção de justiça, bem como atentem para as implicações que isso traz para uma abordagem liberal da justiça.

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2.3.3. AULA 08 — LIBERDADE RADICAL: UMA TEORIA DA JUSTI-ÇA PARA UM ESTADO MÍNIMO

Texto base: NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, pp. 42 a 51, 170 a 174 e 181 a 184.

2.3.3.1. INTRODUÇÃO

Com a obra de Rawls, apresentada nas últimas aulas, aquilo que se chama hoje teoria da justiça entra defi nitivamente em cena, passando a ganhar corpo justamente com as diversas respostas e críticas que a concepção de justiça rawl-siana passou a receber. A perspectiva libertária é justamente uma dessas respostas.

Seu principal expoente, Robert Nozick, buscou formular de uma teoria de jus-tiça distributiva que busca fazer frente à teoria da justiça como equidade rawlsiana.

O libertarianismo representado por Robert Nozick apresenta, dentre as suas principais características, a defesa irrestrita das liberdades de mercado e da limitação do papel do Estado na área social. O libertarianismo difere-se do liberalismo de Rawls, por exemplo, ao condenar políticas redistributivas, em especial políticas tributárias redistributivas.

A reação de Nozick ao liberalismo de Rawls, com a publicação de seu livro Anarquia, Estado e Utopia, em 1974, adquiriu um espaço importante por produzir uma linhagem teórica ainda mais radical do próprio liberalismo. Apropriando-se também do argumento contratualista e partindo da prio-ridade dos direitos de liberdade e de propriedade sobre os demais direitos, Nozick propõe um modelo de Estado mínimo que se opõe deliberadamente ao esquema redistributivo de Rawls. Em sua análise, Nozick considera a obra de Rawls insufi cientemente liberal.

2.3.3.2. OBJETIVOS

São objetivos desta aula:

• Esclarecer o signifi cado da ideia de Estado mínimo e de Estado ultra-mínimo;

• Debater a relação entre o tamanho do Estado e a garantia dos direitos;• Identifi car o papel do Estado em relação à justiça distributiva;• Analisar o signifi cado da “teoria da titularidade” (entitlement theory);• Examinar a relação entre liberdade e propriedade;• Discutir o papel do direito de propriedade na teoria da justiça;• Questionar o “proviso lockeano”;• Debater se um modelo de Estado mínimo seria desejável ao Brasil.

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2.3.3.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Após a leitura do texto indicado, os alunos devem responder às seguintes perguntas:

1. Quais são os três principais aspectos da teoria da justiça de Nozick? Que princípios ele deriva destes aspectos? Explicite-os.

2. Qual a relevância do princípio das transferências?3. Em que medida a teoria da justiça como titularidade de Nozick é

histórica?4. Qual é a relação entre redistribuição e direitos de propriedade?5. Explique o papel da teoria da aquisição de Locke na teoria da justiça

de Nozick.

2.3.3.4. CONCLUSÃO

A perspectiva libertariana da justiça deve restar consolidada ao fi nal desta aula. Os alunos devem, neste momento, mostrarem-se já capazes de distin-guir entre uma abordagem liberal de Rawls do liberalismo radical de Nozick. Sobretudo, deve fi car claro para eles como o papel do Estado e do direito apresenta-se de modo diverso numa perspectiva liberal e numa perspectiva libertária. O contraste entre distribuição e resdistribuição deve ter sido apre-endido, e os alunos devem estar aptos a identifi car como se posicionam o liberalismo e o libertarianismo em relação à justiça distributiva.

É extremamente desejável que após esta aula os alunos tenham uma boa compre ensão do signifi cado do Estado mínimo, da relação entre liberdade e igualdade, dos impactos do tamanho do Estado sobre os direitos, da relação entre propriedade e liberdade e do papel da propriedade na teoria da justiça. Espera-se que eles possam problematizar todos esses conceitos em face da realidade brasileira, perguntando-se, em especial, se um modelo de Estado mínimo seria desejável ao Brasil e como o direito de propriedade deveria ser levado em conta na formulação de uma concepção de justiça adequada para o Brasil.

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2.3.4. AULA 9 — LIBERDADE E CAPACIDADE

Texto base: SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Companhia das Letras, São Paulo, 1999, cap. 3.

2.3.4.1. INTRODUÇÃO

Esta parte do curso destina-se a estudar a contribuição da economia do bem-estar de Amartya Sen para a teoria da justiça. Vencedor do Prêmio No-bel de Economia de 1998, Sen apresenta inovadoras contribuições ao debate contemporâneo em torno da questão da desigualdade e da pobreza.

Livre do idioma e dos axiomas restritos aos economistas, a obra de Sen revela-se essencial à compreensão do conjunto de explicações e justifi cações usualmente articuladas pelos agentes e instituições responsáveis, seja pela for-matação teórica, seja pelo desempenho prático da economia do bem-estar e seus desdobramentos específi cos em relação aos temas da desigualdade, da pobreza e do desenvolvimento.

Sen é um liberal, sem dúvida, mas é um liberal que sabe reconhecer o valor da liberdade sem confundi-lo com a igualdade. Assim como se mostra um economista disposto a dialogar com a política e com o direito, Sen revela-se um membro da comunidade intelectual liberal sensível às interpelações hu-manistas, éticas e fi losófi cas.

No que toca ao tema da relação entre justiça e desigualdade, a principal ques-tão enfrentada por Sen consiste em saber de que igualdade se trata, isto é, que tipo de igualdade está em jogo. Em outras palavras, a questão é menos a de saber qual concepção ou forma de igualdade postula-se do que saber exatamente qual o conteúdo substantivo da igualdade postulada por uma determinada concep-ção igualitária. Tampouco busca Sen justifi car a igualdade (ou a desigualdade) ou encontrar uma resposta que auxilie na fundamentação de seu valor. Por isso, ele insiste que a principal questão a ser colocada (e respondida) pelos analistas do tema não deve ser “por que a igualdade?”, mas, sim, “igualdade de quê?”.

O ponto de partida e um dos principais sustentáculos do argumento de Sen consiste naquilo que ele concebe como o fato da diversidade humana, isto é, o fato de que as pessoas são diferentes em função do ambiente natural e social que as cercam — o que resulta também em uma constante diversidade de suas “características externas” e de suas “características pessoais”. Esse pres-suposto faz com que o ponto de partida do modelo teórico de Sen seja justa-mente a desigualdade — e mais, uma desigualdade natural, ou naturalizada. Sen distingue-se, assim, de boa parte da fi losofi a política contemporânea com a qual dialoga (os artífi ces dos “modelos éticos de ordenamento social”) e de seus principais interlocutores, como, por exemplo, John Rawls.

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Conforme já aprendemos, Rawls adota como pressuposto de seu modelo teórico uma construção contrafática que lhe permite justamente partir de uma situação de igualdade. A função do véu da ignorância rawlsiano que co-bre os sujeitos na posição original é justamente a de garantir uma concepção de justiça igualitária. Mas o que importa nisso, para fazer a distinção em rela-ção a Sen, é que o véu da ignorância garante uma situação de igualdade (e não apenas de imparcialidade) já na própria posição original, que representa o ponto de partida do argumento rawlsiano. Ou seja, enquanto Rawls parte da igualdade a fi m de chegar à própria igualdade, Sen parte da desigualdade para nela permanecer, pois seu modelo apenas provê instrumental teórico para a análise da desigualdade, omitindo-se de apresentar possíveis soluções para os problemas práticos e teóricos que ela acarreta (ou que ela em si representa).

Com efeito, o papel deste pressuposto acerca da “diversidade humana” é deveras importante na construção do argumento de Sen. Um de seus princi-pais efeitos consiste, por exemplo, na constatação de que a igualdade em um espaço (leia-se “espaço de avaliação”, ou seja, a seleção das variáveis focais re-levantes em uma determinada análise da desigualdade) sempre corresponderá à desigualdade em outro. Assim, a resposta à questão fundamental acerca de qual igualdade se trata (“igualdade de quê?”) não apenas deverá ser referida à igualdade no espaço escolhido para a análise, mas também deverá possuir re-fl exos extensos e relevantes em outros espaços não priorizados (ou priorizados secundariamente) em tal análise. É desta forma que a constatação (ou busca) da igualdade em um determinado espaço implicará de forma lógica e neces-sária a percepção da existência da desigualdade em algum outro espaço (o qual por sua vez pode constituir o espaço escolhido de análise — e, portanto, o espaço principal — de outra pesquisa que se oriente por outras variáveis).

Sen sabe, contudo, que a relação entre a igualdade e seu oposto (isto é, a relação entre igualdade e desigualdade), consubstanciada na afi rmação de que a uma igualdade sempre corresponderá uma desigualdade, não pode ser estendida analogicamente à relação entre igualdade e liberdade. Isso porque Sen sabe muito bem, ao contrário de muitos de seus colegas economistas e liberais, que a liberdade não é o oposto da igualdade. Vale dizer, ele sabe que ambas não são excludentes e que tampouco a realização de uma implica a não-realização de outra. Diante disso, Sen é taxativo em sua defesa de que tal modo tradicional de conceber a relação entre liberdade e igualdade é falho. Este seria, segundo ele, um dos principais erros de muitos autores contempo-râneos classifi cados como libertários. Assim, não seria nem correto e nem útil conceber a relação entre aqueles dois valores como uma relação de oposição (isto é, liberdade x igualdade), pois, afi nal, eles não são alternativos. A liber-dade sempre estaria entre os possíveis “campos de aplicação” da igualdade, as-sim como esta, por sua vez, sempre se encontraria entre os possíveis “padrões de distribuição” da liberdade.

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Um dos principais argumentos de Sen parte da crítica à predominância da variável ‘rendas’ nas análises sobre a desigualdade. De acordo com ele, a extensão da desigualdade real de oportunidades não pode ser deduzida única e diretamente da desigualdade de rendas, pois “o que podemos ou não fazer, podemos ou não realizar, não depende somente das nossas rendas, mas tam-bém da variedade de características físicas e sociais que afetam nossas vidas e fazem de nós o que somos”. Ignorar esse fato consistiria em um dos principais problemas da literatura econômica sobre a medição de desigualdade.

É a percepção deste problema e a tentativa de resolvê-lo que levará Sen a formular uma possível alternativa para dar conta adequadamente das análises sobre a desigualdade. A ideia central dessa visão alternativa consiste no con-ceito de capaci dade. “Capacidade”, no esquema argumentativo de Sen, não é apenas um conceito, mas uma nova perspectiva de análise. A abordagem da capacidade se distinguiria decisivamente das abordagens tradicionais de avaliação individual e social, as quais comumente se baseiam em variáveis tais quais “bens primários” (como no caso de Rawls), “recursos” (como no caso de Dworkin) ou “renda real” (como no caso da grande maioria das análises de cunho econômico). De acordo com Sen, todas essas variáveis tradicionais consistem apenas em instrumentos para a realização do bem-estar e meios para a liberdade. Já a capacidade, ao contrário, implica a liberdade para buscar funcionamentos (parte dos elementos constitutivos do bem-estar e do estado de uma pessoa), além de desempenhar um papel direto no próprio bem-estar.

A perspectiva da capacidade possibilita um reconhecimento mais comple-to “da variedade de maneiras sob as quais as vidas podem ser enriquecidas e empobrecidas”. Além disso, a capacidade concentra-se diretamente sobre a liberdade, e não sobre os meios para realizá-la: ela é, assim, um “refl exo da liberdade substantiva”. Nesse sentido, a capacidade de uma determinada pes-soa representa a sua liberdade de realizar bem-estar.

Correlato ao conceito de capacidade está o conceito de funcionamento. De acordo com Sen, a capacidade é defi nida em termos das mesmas variáveis que os fun cionamentos, de modo que não há diferença, no contexto de uma análise específi ca, entre focalizar um ou outro. Isso explica em parte porque “uma combinação de funcionamentos é um ponto em tal espaço (o espaço de avaliação no qual a análise se desenvolve, é evidente), enquanto a capacidade é um conjunto de tais pontos”.

Uma vez que a capacidade é um refl exo da liberdade substantiva, sua defi nição possui um papel bastante importante no conjunto do argumen-to de Sen. Em primeiro lugar, ele insiste que ela deve ser distinguida da realização, dos recursos e meios para a liberdade. Em outras palavras, é preciso distinguir entre, de um lado, a liberdade em si, isto é, a própria liberdade, e, de outro, os recursos e meios que auxiliam a atingi-la, bem como a sua própria realização. Uma coisa é, portanto, a liberdade, a liber-

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dade para realizar, outra coisa é a realização (ou realizações) propiciada por tal liberdade.

Outra distinção conceitual que Sen estabelece em sua discussão sobre a liberdade consiste em diferenciar o que seria a “liberdade da condição de agente” (liberdade para fazer acontecer as realizações que se valoriza e se ten-ta produzir) e a “liberdade de bem-estar” (liberdade para realizar as coisas que são constitutivas do seu bem-estar). Esta última forma de liberdade, a liberdade de bem-estar, refl ete, segundo Sen, o conjunto capacitário de uma pessoa, isto é, a reunião total de suas capacidades.

A liberdade de bem-estar (assim como a própria realização do bem-estar) pode mover-se em direção oposta à liberdade de condição de agente — ou seja, enquanto um cresce o outro decresce e vice-versa. Em conseqüência, li-berdade e realização de bem-estar são também suscetíveis a esse movimento antagônico, em direções opostas. Esse tipo de confl ito pode ocorrer a despeito da interpretação da liberdade que se encontra em jogo. Em outras palavras, liberdade e bem-estar podem mover-se em direções opostas (um causando o acréscimo ou decréscimo do outro) a despeito do fato de interpretarmos a li-berdade como “liberdade de condição de agente” ou “liberdade de bem-estar”.

Além de suas contribuições no contexto das discussões acerca da desigual-dade, Sen oferece ainda um grande aporte ao debate sobre a pobreza e o de-senvolvimento. Uma de suas importantes constatações no campo de estudos sobre a pobreza diz respeito à necessidade de atentar também à distribuição de renda entre os pobres. Diante disso, ele cria um novo parâmetro estatístico (o qual denomina simplesmente como “D”, a fi m de fazer a distinção em re-lação às demais medidas de desigualdade referentes à distribuição da pobreza) que permita conceber e avaliar a medida da desigualdade entre os pobres.

Aplicando sua abordagem analítica da capacidade ao tema da pobreza, Sen explica que esta pode ser melhor compreendida como sendo uma “defi ciência de capacidade” do que como uma falha na satisfação das necessidades básicas de mercadorias. Uma vez entendida a pobreza como defi ciência de capaci-dade, o papel das mercadorias, enquanto variável analítica componente do espaço de avaliação de uma análise de medição da pobreza, deve também, por sua vez, ser substituído pelo conceito de funcionamentos (ou seja, o que deve passar a ser considerado nas análises é o “espaço de funcionamentos”, e não o “espaço de mercadorias”).

Aceitando-se a pobreza como uma questão de defi ciência de capacidade, segue-se que a pobreza passa a ser diagnosticada não pelo “baixo nível de renda” das pessoas analisadas, mas, sim, pela sua “inadequação para gerar ca-pacidades” minimamente aceitáveis. Assim, saindo de cena as variáveis renda e mercadoria, entende-se que o que está em jogo na análise da pobreza é a capacidade de realizar funcionamentos. Mesmo a adequação de determinados níveis particulares de renda deve ser julgada de acordo com a capacidade,

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explica Sen. Assim, não haveria mais de se falar em “renda baixa” para diag-nosticar-se a incidência da pobreza, mas, sim, em “renda inadequada”, pois se trata afi nal de saber se uma determinada renda pode ou não ser convertida em capacidade (e a extensão com que isso pode ser feito), não obstante seu tamanho (da renda).

Essa distinção entre os conceitos de capacidade e renda e os respectivos papéis por eles operados seria crucial para a compreensão da persistência da pobreza e da fome em países ricos. O tamanho das rendas por si só não con-segue dar conta de uma explicação consistente para esse fato real de muitas sociedades (ricas) contemporâneas. De acordo com Sen, o baixo nível de renda é apenas um dentre outros fatores que infl uenciam a pobreza em países ricos, tais como, por exemplo, os Estados Unidos.

Quando o foco é jogado na perspectiva da capacidade, percebe-se, nova-mente, que o tamanho da renda não interfere diretamente na possibilidade de sua conversão em capacidade (reitere-se, renda não basta; o que é neces-sário é poder convertê-la em capacidade). Nos países ricos, por mais que a renda média da população seja alta, o custo de vida comumente também é alto, de modo que a renda pode não signifi car diretamente capacidade, pois o processo de conversão de uma em outra pode ser complicado, uma vez que independe em absoluto apenas do tamanho da renda.

Em síntese, o que parece ser importante frisar é que, de acordo com Sen, a pobreza não se traduz em (e não deve ser entendida como) rendas baixas, mas em capacidades básicas insufi cientes. Conectando este ponto à discussão da aula anterior sobre a desigualdade, em especial com a caracterização da liberdade estabelecida em função do conceito de capacidade, pode-se entender que, tratando-se a pobreza de uma defi ciência de capacidade, ela não seria meramente um problema de falta de igualdade, mas também de falta de liberdade.

2.3.4.2. OBJETIVOS

Encontram-se entre os objetivos desta aula os seguintes:• examinar o conceito de capacidade;• investigar o conceito de “funcionamentos”;• analisar a relação entre liberdade e igualdade na perspectiva capacitá-

ria; • avaliar a relação entre liberdade, igualdade e bem-estar;• contrastar a concepção de justiça como capacidade de Sen com a con-

cepção de justiça como eqüidade de Rawls; e• comparar a concepção de bem-estar de Sen com a de Dworkin apren-

dida nas aulas anteriores.• relacionar as perspectivas igualitária, utilitarista e capacitária da justiça;

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• comparar pobreza, felicidade e bem-estar como fundamentos alterna-tivos para as teorias de justiça;

• examinar a importância da base informacional nos julgamentos;• apresentar as contribuições de Sen para o estudo da pobreza e da desi-

gualdade;• relacionar liberdade, bem-estar e desenvolvimento;• relacionar bem-estar, recursos e capacidade; e

2.3.4.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Após a leitura do texto indicado, os alunos devem responder as seguintes questões:

1. Relacione, de um lado, capacidade e bem-estar e, de outro, capaci-dade e liberdade para buscar bem-estar.

2. O que são os conjuntos capacitários?3. Estabeleça a relação entre capacidade e funcionamentos.4. Diferencie capacidade e utilidade.5. Qual confl ito se estabelece entre liberdade e bem-estar?6. Qual a relevância do bem-estar para uma teoria da justiça?7. Quais são as principais críticas de Sen ao libertarianismo, ao utilita-

rismo e à justiça rawlsiana?

2.3.4.4. CONCLUSÃO

Espera-se que com esta aula os alunos sejam introduzidos na economia do bem-estar e identifi quem a sua importância para a teoria da justiça. Em particular, espera-se que os alunos compreendam a contribuição de Sen ao debate sobre a desigualdade e tornem-se aptos a articular os conceitos de capacidade, funcionamento e bem-estar. Além disso, espera-se que os alunos possam adquirir um novo ângulo analítico a respeito da relação entre liber-dade e igualdade.

Com esta aula, espera-se, também, que os alunos tenham compreendido a abordagem capacitária do bem-estar e estejam aptos a articulá-la como uma concepção alternativa de justiça.

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2.4. COMUNITARISMO E AS CRÍTICAS À VISÃO LIBERAL

NOTA AO ALUNO

Antes de apresentarmos as perspectivas dos autores selecionados, é im-portante um alerta preliminar. Em geral, costuma-se classifi car um amplo conjunto de autores críticos à visão liberal de justiça como comunitaristas. A classifi cação tem objetivos didáticos e refl ete traços incomuns de alguns auto-res que têm como foco a crítica ao modelo de interpretação liberal, especial-mente: a concepção de indivíduo, a distinção entre direitos e valores, a rígida separação entre o público e o privado, e a ideia de neutralidade do Estado. Porém, se há convergência na crítica ao liberalismo, não necessariamente essa convergência é sufi ciente para identifi carmos uma corrente de pensamento.

Isso é o que ocorre com o pensamento dos quatro autores selecionados para esta sessão do curso. Todos convergem na crítica à visão liberal, mas pro-põem caminhos distintos para a crítica e compreensão dos temas abordados neste curso. Exploraremos ao longo destas 4 próximas aulas as convergências e as divergências entre eles.

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2.4.1. AULA 10: A PRIORIDADE DO BEM

Texto base: SANDEL, Michael. “Justice and the Good” In: SANDEL, Michael (ed.). Liberalism and its Critics. Cambridge University Press, New York, 2 ed., 1998, pp. 133 a 135, 147 a 154 e 172 a 174..

2.4.1.1. INTRODUÇÃO

O debate acadêmico norte-americano do início da década de 1980 é mar-cado pela oposição de um conjunto de autores comunitaristas à teoria da jus-tiça rawlsiana. O liberalismo rawlsiano, compreendido pelos comunitaristas como uma “ética baseada no justo”, passa a ser confrontado com uma visão que concede mais expressão a conceitos tais como cidadania e comunidade.

A prioridade do justo e do direito sobre o bem, a concepção de pessoa, a neutralidade do sistema de direitos e a ideia de pluralismo proposta pela teoria da justiça de Rawls constituem o foco de um profícuo debate do qual Michael Sandel é um dos principais expoentes.

Com efeito, é Sandel o comunitarista que mais personifi ca a crítica à con-cepção de justiça como equidade ao publicar, em 1982, Liberalism and the Limits of Justice — um livro inteiramente voltado ao exame do liberalismo ra-wlsiano, o qual acredita consistir em um liberalismo deontológico e herdeiro da doutrina kantiana. O principal ponto desse livro de Sandel que interessa a este curso de teoria da justiça consiste na rejeição da prioridade do direito e do justo sobre o bem. Na aula de hoje, veremos como este argumento se sustenta no arrazoado de Sandel.

2.4.1.2. OBJETIVOS

Entre os objetivos desta aula constam os seguintes:

• Examinar as principais características do pensamento denominado comunitarista;

• Avaliar as principais críticas que o comunitarismo faz ao liberalismo;• Relacionar o conceito de justiça com a ideia de comunidade;• Contrastar abordagens universalistas e relativistas da ideia de justiça;• Debater a relação de prioridade entre justiça, direito e bem;• Contrastar a teoria da justiça do comunitarismo com aquelas defendi-

das pelo liberalismo, em suas várias vertentes, e pelo utilitarismo.

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2.4.1.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Recomenda-se como atividade de aproveitamento de leitura desta aula que os alunos elaborem um fi chamento do texto recomendado. Este fi chamento pode ser feito em apenas duas páginas, nas quais se busque: 1) sumarizar os principais argumentos de Michael Sandel; 2) identifi car os principais pontos de contraste entre o comunitarismo e o liberalismo; 3) defi nir as principais características da concepção comunitarista de justiça.

2.4.1.4. CONCLUSÃO

Espera-se com esta aula que os seguintes pontos tenham fi cado nítidos: 1) a relação entre justiça e comunidade; 2) o signifi cado de uma concepção rela-tivista de justiça; 3) a relação de prioridade entre o justo, o direito e o bem na perspectiva comunitarista. Espera-se ainda que os alunos sejam capazes de se posicionar em face de uma visão comunitarista da justiça em contraste com as demais estudadas anteriormente.

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2.4.2. AULA 11: IGUALDADE COMPLEXA

Texto base: WALZER, Michael. Esferas da Justiça. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2003, pp. 1 a 11 e 20 a 25.

2.4.2.1. INTRODUÇÃO

Uma das questões centrais que parecem orientar o pensamento de Michael Walzer talvez seja a medida da igualdade. Walzer busca uma resposta para a seguinte pergunta: ‘em que aspecto somos iguais uns aos outros?’. Se somos iguais em alguns aspectos em virtude de uma característica comum, esta é a capacidade que temos de reconhecer o outro, ou seja, de nos reconhecermos mutuamente como seres humanos.

Investigando os signifi cados primitivos da igualdade, Walzer demonstra que as demandas igualitárias surgiram em nossa história não apenas em fun-ção das diferenças, mas também da subordinação que estas proporcionam. O objetivo do igualitarismo político seria uma sociedade livre de dominação. Não se trata de eliminar diferenças, trata-se de abolir a dominação. Uma so-ciedade igualitária não poderia dispor de bens sociais que servissem de meios de dominação. O problema da dominação só pode ser resolvido se os bens sociais forem distribuídos por razões distintas e internas, isto é, por razões particulares e locais, e não universais.

Valendo-se de uma metodologia radicalmente particularista, Walzer afi r-ma o caráter local e particular dos direitos, encarando-os como resultado de uma concepção compartilhada dos bens sociais e não como decorrentes de qualquer característica humana que se pretenda universal. Tomando a justiça como a “arte da diferenciação” e a igualdade como o seu resultado, Walzer preocupa-se em analisar os diversos bens sociais no ensejo de que seu com-partilhamento possa se dar livre de dominação.

O pluralismo, para Walzer, explica-se pelo fato de cada sociedade, em cada época e em cada lugar, possuir seu próprio conceito de bens sociais, além de uma forma especifi ca de distribuição dos mesmos. Segundo Walzer, jamais teria havido em nossa história um critério decisivo único a partir do qual tais distribuições pudessem ser controladas. Afi nal, a justiça é uma construção humana, e como qualquer obra humana, ela é sempre singular. Conforme Walzer esclarece: “Os princípios de justiça são em si mesmos plurais em sua forma; bens sociais distintos deveriam ser distribuídos por razões distintas, por procedimentos diferentes e agentes distintos; e todas estas diferenças de-rivam da compreensão dos bens sociais, os quais são produtos inevitáveis do particularismo histórico e cultural” (Esferas da Justiça, p. 19).

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Segundo Walzer, uma teoria dos bens é requisito necessário para que se possa explicar e limitar o pluralismo das possibilidades distributivas. Tendo isso em vista, ele classifi ca seis proposições que acredita serem passíveis de resumir uma teoria dos bens. São elas:

1. Todos os bens que a justiça distributiva considera são bens sociais. Não são e nem hão de ser valorados por suas peculiaridades ex-clusivas. Vale dizer, os bens possuem signifi cados compartilhados porque sua concepção e criação são processos sociais. Pela mesma razão, os bens têm diferentes signifi cados nas diferentes sociedades;

2. Os indivíduos assumem identidades concretas em função da ma-neira com que concebem e criam — e, logo, possuem e empregam — os bens sociais;

3. Não existe um único conjunto de bens básicos ou primários con-cebível para todos os mundos morais e materiais — um conjunto assim teria que ser con cebido em termos extremamente abstratos, o que seria de pouca utilidade para a refl exão sobre as formas particu-lares de distribuição;

4. É o signifi cado dos bens o que determina o seu movimento. Os cri-térios e procedimentos distributivos são intrínsecos não em relação ao bem em si mesmo, mas em relação ao bem social;

5. Os signifi cados sociais possuem caráter histórico, assim como as distribui ções. Estas, sejam justas ou injustas, mudam através do tempo;

6. Quando os signifi cados são distintos, as distribuições devem ser au-tônomas. Todo bem social ou conjunto de bens sociais constitui uma esfera distributi va dentro da qual somente alguns critérios e disposições são apropriados.

A distinção entre os conceitos de igualdade simples e igualdade complexa, talvez constitua uma das contribuições principais de Walzer. Em um regime de igualdade simples, o monopólio de um bem social particular está em jogo uma vez que se determinado bem é dominante e amplamente compartilhado nenhum outro bem poderia ser monopolizado. Neste caso, afi rma Walzer, a igualdade seria multiplicada pelo processo de conversão até se estender por toda a gama de bens sociais. Um regime como este não poderia sobreviver por muito tempo: estaria sempre vitimado pela desigualdade, posto que após a conversão tal bem seria livremente negociado no mercado. Apenas o que poderia manter a estabilidade de tal regime seria uma lei que assegurasse o regresso periódico à situação original. De outro modo, o monopólio reapare-ceria e o predomínio desapareceria. A igualdade simples, portanto, requereria uma contínua intervenção estatal para destruir ou restringir eventuais mono-

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pólios e predomínios. Por isso Walzer acredita que a questão central da justiça distributiva não deve ser o monopólio, mas sim o predomínio.

Defi nindo o que chama de “critica do predomínio”, Walzer descreve uma forma distinta de igualdade que seria adequada à complexidade das distribui-ções. Trata-se da igualdade complexa. Uma sociedade complexamente iguali-tária se caracterizaria pelo fato de os bens sociais serem possuídos de maneira monopolista e, por outro lado, não poderem ser convertidos de modo geral. Haveria aqui uma infi nidade de pequenas desigualdades, mas elas não seriam multiplicadas pelo processo de conversão. A autonomia da distribuição le-varia à produção de inúmeros monopólios locais sustentados por diferentes grupos de pessoas.

Walzer não afi rma que a igualdade complexa é mais estável do que a igual-dade simples, porém ele ressalta que aquela abre um caminho para formas mais amplas e particularizadas de confl ito social. Isso porque “a igualdade é uma relação complexa de pessoas regulada pelos bens que fazemos, compar-tilhamos e trocamos entre nós mesmos; não é uma identidade de possessões. Ela requer, então, uma diversidade de critérios distributivos que refl itam a diversidade dos bens sociais” (Esferas da Justiça, p. 31).

Segundo Walzer, a crítica do predomínio e da dominação tem por base um princípio distributivo aberto que obedeceria a seguinte fórmula: ‘nenhum bem social X há de ser distribuído entre pessoas que possuam algum outro bem Y simplesmente porque possuem Y sem levar em conta o signifi cado de X.’. Três seriam os critérios que parecem cumprir os requisitos deste denomi-nado “princípio aberto”:

1. A livre troca: teoricamente, esta cria um mercado em que todos os bens são convertíveis em todos os outros bens através do meio neutro que é o dinheiro. Não há bens predominantes e nem monopólios;

2. O merecimento: o processo distributivo seria centralizado e seus resulta-dos imprevisíveis e diversos. Não haveria bem dominante;

3. A necessidade: esta gera uma esfera distributiva particular dentro da qual ela mesma é um principio distributivo apropriado. Satisfaz os requisitos da regra geral, os bens não se dominam mutuamente.

O efeito da regra é, portanto, o seguinte: “bens diversos a grupos diversos de pessoas, de acordo com razões diversas”. A complexidade leva à busca da igualdade pela demarcação das esferas distributivas e pela distinção dos sig-nifi cados. Walzer está certo de que o melhor tratamento a ser dispensado à justiça distributiva é o tratamento de suas partes, quais sejam os bens sociais e as esferas de distribuição. A justiça, para ele, é sempre relativa em face dos signifi cados sociais. Os bens devem ser distribuídos apenas por razões inter-

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nas. Assim, uma sociedade seria justa se seus membros vivessem de acordo com as noções por eles mesmos compartilhadas.

Portanto, se há uma característica comum que nos faz iguais uns aos ou-tros, esta é a nossa capacidade de produzir cultura. A igualdade complexa resulta na máxima diferenciação — contrapondo-se ao totalitarismo que, se-gundo Walzer, consiste em uma radical coordenação. A igualdade complexa implica na harmonia, e não na autonomia das esferas. A justiça vem a cum-prir o papel de distinguir as partes da vida social e de estabelecer uma socie-dade igualitária na qual as pessoas aprendam a conviver com a autonomia das distribuições e a reconhecer resultados diferentes para indivíduos diferentes, em esferas diferentes.

4.2.3. OBJETIVOS

Dentre os objetivos desta aula incluem-se os seguintes:• Conceitualizar a igualdade complexa;• Esclarecer a diferença entre igualdade simples e igualdade complexa;• Discutir o caráter particularista que algumas teorias da justiça podem

assumir;• Relacionar justiça e cultura;• Investigar as implicações da compreensão da justiça como comparti-

lhamento de signifi cados sociais;• Identifi car os critérios de distribuição endossados pelo comunitaris-

mo, espe cialmente pelo comunitarismo particularista de Walzer;• Debater a defi nição e o signifi cado das diferentes ‘esferas’ da justiça;• Discutir se seria apropriada para a sociedade brasileira uma concepção

de justiça que partisse da divisão de diversas esferas.

2.4.2.4. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Comente, criticamente, a seguinte frase de Michael Walzer: “os princípios de justiça são em si mesmos plurais em sua forma; bens sociais distintos de-veriam ser distribuídos por razões distintas, por procedimentos diferentes e agentes distintos; e todas estas diferenças derivam da compreensão dos bens sociais, os quais são produtos inevitáveis do particularismo histórico e cultu-ral” (Esferas da Justiça, p. 19).

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2.4.2.5. CONCLUSÃO

Espera-se que com esta aula os alunos compreendam uma forma de racio-cínio em que é possível defender uma concepção de justiça a partir do caráter local e particular dos direitos. Para determinadas versões do comunitarismo, a justiça deve ser encarada como resultado de uma concepção compartilhada de bens sociais, e não como decorrente de uma característica humana univer-sal. Alguns argumentos devem ser retidos pelos alunos, como, por exemplo, aquele que defende a justiça como a “arte da diferenciação” e apresenta a igualdade como o seu principal resultado. A compreensão da concepção de justiça baseada em diferentes “esferas” deve possibilitar que os alunos com-parem a perspectiva comunitarista com as outras teorias da justiça analisadas nas aulas anteriores do curso.

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7 Assim, ilustra o autor: “Então, a des-

coberta de minha própria identidade

não signifi ca que eu a construo isola-

damente, mas sim que eu a negocio

através do diálogo - em parte externo

e de outro interno - com os outros. Daí

porque o desenvolvimento de um ideal

de generalização da identidade de for-

ma não-aprisionada nos dá uma nova

importância para o reconhecimento.

Minha própria identidade dependente,

sem sombra de dúvida, de minhas rela-

ções dialógicas com os outros” (TAYLOR,

1992, 34).

2.4.3. AULA 12: MULTICULTURALISMO E O VALOR DAS CULTURAS

Texto base: TAYLOR, Charles; GOTMANN, Amy. “Multiculturalism: Examining the politics of recognition”. Princeton: Princeton University Press, 1992.

2.4.3.1. INTRODUÇÃO

O multiculturalismo é uma das principais tendências do pensamento con-temporâneo. As mudanças que vêm ocorrendo no mundo em virtude da globalização e das novas tecnologias que surgem com ela tornam inexorável o redimensionamento da dimensão cultural. Questões relativas à identidade e à diferença tornam-se cada vez mais prementes e o debate entre o universa-lismo e o relativismo torna-se cada vez mais acirrado.

É nesse cenário que discutiremos a perspectiva de Charles Taylor. A base da visão multiculturalista de Taylor é a ideia de reconhecer o igual valor de diferentes culturas. Para tanto, a palavra-chave dessa perspectiva é o reconhe-cimento baseado na ideia de dignidade. Taylor diferencia a noção de digni-dade — utilizada nas democracias modernas no sentido universal, igualitário e compatível com a noção de cidadania (dignidade da pessoa humana) — da noção de honra — advinda de sociedades fundamentadas hierarquicamente.

Taylor destaca que essa ideia de reconhecimento da dignidade, bem como a noção de indivíduo, não é algo dado, ou seja, não são categorias prévias. Elas são construídas socialmente. Dessa forma, Taylor se aproxima de uma postura hegeliana e critica arduamente o que denomina de “atomismo” que identifi ca nas perspectivas kantianas. Isso porque, para ele, a ideia de identi-dade é uma construção apenas possível em coletividade7.

Dessa forma, reconhecimento, assim como a formação da identidade, está no centro de sua abordagem. A formação das identidades não é vista como algo prévio, mas sim construído a partir do reconhecimento público. Isso, contudo, como ressalta Taylor, não signifi ca que anteriormente não existiam identidades ou que essas não dependiam do reconhecimento. Signifi ca ape-nas que eram questões não-problematizadas.

Para o autor o desenvolvimento da moderna noção de identidade tem feito crescer a importância dada às políticas de diferença, apesar de haver uma confusão entre as duas questões. Taylor, ao se centrar na implementação das políticas de reconhecimento, delimita dois tipos de visões liberais sobre os direitos fundamentais: a primeira que insiste na uniforme aplicação das regras defi nidas por esses direitos; e a segunda que suspeita desses objetivos coletivos gerais. Para ele, esses dois modelos são opostos e apresentam distin-tas soluções nas várias sociedades liberais.

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Taylor sugere um modelo no qual se enxergue a necessidade de restrição de direitos fundamentais em nome da preservação de vidas culturais oprimi-das. Isso porque ele não acredita na neutralidade do procedimento liberal, que seria também uma luta de crença historicamente situada. O liberalismo comportaria em si uma visão do bem que sobrepuja e oprime as demais. Daí concluir que “o rígido liberalismo procedimental pode rapidamente se tornar impraticável no mundo de amanhã” (TAYLOR, 1992: 61).

2.4.3.2. OBJETIVOS

Dentre os objetivos desta aula, destacam-se os seguintes:

• apresentar o tema do multiculturalismo e expor seu papel para a Filo-sofi a do Direito e para a Filosofi a Política contemporâneas;

• discutir a crítica de Taylor ao liberalismo;• examinar os desafi os que o multiculturalismo impõe à teoria da justiça; e• debater a legitimidade de políticas públicas com base no reconheci-

mento da multiculturalidade.

2.4.3.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Redija um pequeno ensaio, dialogando com o texto de Taylor, sobre a per-tinência da discussão de políticas de reconhecimento no Brasil. Cite algum exemplo sobre o cabimento ou o descabimento.

2.4.3.4. CONCLUSÃO

A aula de hoje busca inserir o aluno no contexto em debate cada vez mais crescente no mundo contemporâneo: a multiculturalidade. A ideia é que ao fi nal desta aula o estudante consiga apresentar posicionamentos coerentes e crí-ticos sobre a relação entre justiça e multiculturalismo, e sobre a legitimidade de políticas públicas voltadas ao reconhecimento de minorias étnicas ou culturais.

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2.5. TEORIA CRÍTICA: JUSTIÇA, DELIBERAÇÃO E RECONHECIMENTO

NOTA AO ALUNO

A quinta e última corrente de pensamento estudada neste curso de Teoria da Justiça é a denominada Teoria Crítica. Classifi ca-se como Teoria Crítica o conjunto de autores contemporâneos herdeiros das preocupações teóricas in-terdisciplinares da Escola de Frankfurt, especialmente da crítica à ideia instru-mental de racionalidade. Discutiremos nesta parte do curso a visão de justiça de três autores: Jürgen Habermas, Axel Honneth e Nancy Fraser. Traço comum entre os três no que concerne aos critérios de distribuição de direitos e bens é a tentativa de superação do pensamento liberal e o pensamento comunitarista.

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2.5.1. AULA 14: DEMOCRACIA DELIBERATIVA: A COMPLEMENTA-RIDADE ENTRE AUTONOMIA PÚBLICA E PRIVADA

Texto base: HABERMAS, Jurgen. Três modelos normativos de democracia. In__. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002.

2.5.1.1. INTRODUÇÃO

Jürgen Habermas é um dos pensadores mais conhecidos do nosso tempo. Sua construção teórica mais importante é a Teoria da Ação Comunicativa, onde constrói uma teria dual da sociedade (sistemas e mundo da vida). Nesta aula, porém, não enfatizaremos a teoria social de habermasiana. O foco aqui será outro. Será sua perspectiva sobre o direito e sobre a política.

A teoria discursiva do direito, formulada por Jürgen Habermas, tenta cor-rigir os défi cits compreensivos dos modelos normativos de democracia advin-dos do liberalismo e do republicanismo. Habermas critica ambos os modelos e reconstrói parcela de seus aspectos para defender um terceiro modelo de democracia: uma visão procedimental de política deliberativa.

Para Habermas, ao não entenderem a equiprimordialidade e a comple-mentaridade entre autonomias pública e autonomia privada, o modelo libe-ral e o modelo republicano não conseguem apresentar uma visão de justiça adequada à complexidade das sociedades contemporâneas.

Na visão habermasiana de política deliberativa, o Estado não seria nem uma institucionalização de uma comunidade ética (republicanismo) nem so-mente o regulador dos interesses privados (liberalismo). O Estado é visto como um sistema que, ao mesmo tempo em que é distinto da sociedade, necessita dela para legitimar a sua atuação. Sua legitimidade não é obtida a priori nem é advinda de uma concepção ética comum.

Nesse cenário, a ideia de justiça está relacionada às garantias de exercício da au-tonomia individual (pública e privada), referentes à existência de direitos individu-ais que resguardem a esfera privada, e de direitos de participação na esfera pública.

2.5.1.2. OBJETIVOS

Destacam-se os seguintes objetivos para esta aula:• apresentar, em linhas gerais, o pensamento de Jürgen Habermas;• diferenciar o modelo de democracia deliberativa dos modelos liberais

e republicanos;• discutir o signifi cado da complementaridade entre autonomia pública

e autonomia privada;• debater as possibilidades de aplicação da ideia de democracia delibe-

rativa nos problemas sociais brasileiros.

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2.5.1.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

Após ler o texto, responda as seguintes questões:

• Qual a diferença de visões sobre a política democrática entre o modelo normativo liberal e o republicano?

• Qual a diferença entre o signifi cado de cidadania entre os dois modelos?

Para Habermas, quais são as vantagens e as desvantagens do modelo re-publicano?

Em que consiste o modelo de democracia deliberativa proposto por Ha-bermas?

2.5.1.4. CONCLUSÃO

A ideia de democracia deliberativa, tal qual formulada por Habermas, representa perspectiva cada vez utilizada no debate atual sobre a legitimidade das ações estatais. Espera-se que nesta aula o estudante tenha compreendido as principais elementos dessa visão teórica e que consiga articulá-los como uma possibilidade de visão crítica da organização da sociedade.

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2.5.2. AULA 15: JUSTIÇA SOCIAL COMO RECONHECIMENTO

2.5.2.1. INTRODUÇÃO

Axel Honneth, sucessor de Habermas na função de diretor do Instituto para a Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt — instituição onde nas-ceu a conhecida Escola de Frankfurt — busca em seu trabalho dar um novo rumo à teoria social crítica. Sua teoria tem como foco central o processo de construção da identidade (individual e coletiva) movida pelos confl itos sociais. Apesar de partir da teoria habermasiana da ação comunicativa — com a qual compartilha a importância da intersubjetividade — Honneth tem por escopo corrigir os défi cits de abstração da, em sua visão, rígida separação habermasia-na entre sistema e mundo da vida. Para tanto, não se prende a um conceito de razão comunicativa restrito às condições possibilitadoras do entendimento. Sua refl exão investiga o papel das lutas sociais em prol do reconhecimento intersubjetivo para o desenvolvimento das sociedades complexas.

Além disso, Honneth procura construir alternativa às formulações de Ra-wls sobre justiça social. Ele compreende que a utilização de um conceito de liberdade comunicativa, baseada na intersubjetividade, e não no indivíduo isolado, como trabalha Rawls, tem o condão de alterar o próprio signifi cado de uma teoria da justiça. Isso porque se desloca o critério acerca do funda-mento de uma distribuição justa do nível dos bens de garantia da liberdade para o nível da reciprocidade vinculante, baseada na ideia de reconhecimento.

Assim, Honneth procura sistematizar não somente as estruturas de reco-nhecimento, as quais distingue comunicativamente, mas também as formas de desrespeito que representam o reconhecimento negado. O autor aponta três padrões intersubjetivos de reconhecimento, que correspondem a outras tantas formas de desrespeito: o amor/degradação pessoal, direito/exclusão-privação de direitos, e solidariedade/ofensa. As formas de desrespeito às es-truturas de reconhecimento, segundo Honneth, são as bases de confl itos so-ciais movidos por lutas por reconhecimento que representam a força motriz das transformações sociais.

Justiça, na visão do autor, relaciona-se com a garantia do desenvolvimento autônomo dessas três esferas de reconhecimento. Nesse contexto, a noção de justiça distributiva, entendida restritivamente como distribuição de bens materiais, pode ser concebida como decorrência de uma gramática moral baseada no reconhecimento intersubjetivo.

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2.5.2.2. OBJETIVOS

Encontram-se entre os objetivos desta aula os seguintes:

• diferenciar a proposta de Honneth da proposta de Habermas;• debater as críticas de Honneth ao liberalismo de Rawls;• discutir a relação entre justiça e reconhecimento;• apresentar as três esferas de reconhecimento introduzidas por Honne-

th e questionar sua utilidade como critério de justiça.

2.5.2.3. ATIVIDADE DE APROVEITAMENTO DA LEITURA

A partir do texto base, apresente brevemente exemplos de violações às três esferas de reconhecimento discutidas por Axel Honneth.

2.5.2.4. CONCLUSÃO

Espera-se que os alunos refl itam sobre a discussão proposta por Honneth e que procurem imaginar sua possibilidade de aplicação em problemas práticos relacionados a realidade brasileira. É desejável que os alunos posicionem-se a respeito da perspectiva de Fraser, indicando até que ponto o atual grau de desenvolvimento das sociedades contemporâneas tornam inexorável a inser-ção do reconhecimento em toda teorização sobre a justiça que se pretenda adequada à realidade contemporânea.

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II — DIREITO E JUSTIÇA NO BRASIL

3.1. INTRODUÇÃO

Como já explicitado na primeira parte deste material (Programa de Curso), o curso de Teoria da Justiça é dividido em duas partes. Na primeira foi realizado mapeamento de algumas das principais correntes contemporâneas de refl exão sobre a ideia de justiça. Nesta segunda parte, no entanto, o foco será outro: a compreensão crítica das estruturas de raciocínio apresentadas anteriormente, a partir de discussões voltadas a problemas jurídico-políticos nacionais.

As teorias da justiça que foram objeto da primeira parte do curso forne-ceram, direta ou indiretamente, diferentes concepções, que se propuseram coerentes, sobre a ideia de indivíduo, de sociedade justa e de organização das instituições estatais. Um dos objetivos desta segunda parte é demonstrar que tais concepções podem servir, especialmente em situações de difícil solução, de ponto de partida para discussão de problemas concretos relacionados, res-pectivamente, com o signifi cado e a abrangência das liberdades individuais, os critérios de distribuição de bens em uma sociedade e com as formas de organização da democracia.

Para tanto, não se espera do aluno a sobreposição de teorias estudadas às situações indicadas nesta segunda parte. A expectativa é que as teorias sirvam como suporte para que os estudantes criem caminhos argumentativos próprios, dotados de coerência e profundidade. As teorias da justiça são elaboradas para efetivamente interagirem com a realidade social, e não apenas para descrever ou revisar um conjunto de conceitos. Pressupõem, com efeito, preocupação e refl exão sobre um contexto social, que no caso é o contexto social brasileiro.

A aplicação da abordagem de aprofundamento seletivo nesta disciplina consistirá na análise de 3 (três) conjuntos de problemas que permitem seu enfrentamento a partir de mais de uma linha de pensamento, a saber: i) Di-reitos e Liberdades Individuais, (ii) Direitos Sociais e Políticas Públicas e (iii) Direito e Democracia.

Para tanto, os estudantes devem se organizar em 6 (seis) grupos. Cada grupo deverá escolher um dentre os seguintes temas: a) descriminalização do aborto, b) casamento homossexual, c) ações afi rmativas e políticas de cotas nas universidades públicas, d) direito à saúde e a concessão de medicamentos, e) reforma política: fi nanciamento público de campanhas eleitorais e f ) regu-lamentação do plebiscito e do referendo popular. Para cada um desses temas, há, pelo menos, um projeto de lei, uma lei já em vigor, uma regulamentação de política pública ou uma decisão judicial que servirão de objeto de crítica e de reconstrução, a partir da pesquisa dos grupos.

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Escolhidos os temas, os estudantes devem, desde o início do semestre, se preparar para seminário de apresentação de suas análises e ideias que será realizado nas últimas 6 (seis) aulas do curso. Para tanto, deverão dividir seus estudos em três partes: i) mapeamento do objeto de sua apresentação, iden-tifi cando as principais linhas da discussão jurídico-política nacional; ii) iden-tifi cação de conceitos de justiça concorrentes que contribuam para crítica fundamentada do objeto de discussão e iii) apresentação de propostas alter-nativas que interliguem a questão prática, como todas as suas peculiaridades, a ideários contrastantes de justiça.

Para o melhor aproveitamento das apresentações em sala, é necessário que os grupos agendem reuniões com o professor do curso, em horários alternati-vos ao período de aulas, no desenvolvimento de cada uma das três etapas. Tais reuniões farão parte do critério de avaliação da nota de participação.

3.2. METODOLOGIA

A abordagem metodológica desta segunda parte será, como já mencio-nado, o aprofundamento do conhecimento a partir de problemas jurídico-institucionais previamente selecionados.

O aprofundamento seletivo, tal qual descrito no Projeto Pedagógico da Escola, é o estudo de uma disciplina como um conjunto de problemas, em que o objetivo é a investigação persistente de um tema em todas as suas ra-mifi cações conceituais ou práticas. A ideia é que, através desses problemas, o aluno aprenda a dominar os métodos e conceitos analíticos advindos das concepções teóricas. Com isso, o objetivo é o de que os alunos, ao término da disciplina, saiam sentindo-se capacitados, e não apenas saturado de infor-mações que fatalmente esquecerão em pouco tempo.

Para tanto, os estudantes devem se organizar em 8 (seis) grupos de 2 (três) ou 3 (quatro) pessoas. Cada grupo deverá escolher um dentre os seguintes te-mas: a) descriminalização do aborto, b) descriminalização do uso de drogas, c) casamento homossexual, d) ações afi rmativas e políticas de cotas nas uni-versidades públicas, e) programas de transferência de renda, f ) direito à saúde e a concessão de medicamentos de alto custo, g) reforma política: fi nancia-mento público de campanhas eleitorais e h) regulamentação do plebiscito e do referendo popular.

Cada um desses temas servirá como uma pauta básica para desenvolvimen-to dos trabalhos. O intuito é que os próprios alunos, orientados pelo profes-sor, criem problemas práticos específi cos e alternativas argumentativas que vinculem a discussão das teorias da justiça com temas complexos da realidade brasileira. Nesse sentido, os alunos deverão realizar pesquisa conceitual e ins-titucional sobre o seu tema de análise e, partir disso, formular um problema.

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Assim, após a escolha dos temas, os estudantes devem, desde o início do semestre, se preparar para seminário de apresentação de suas análises e ideias. Para tanto, deverão dividir seus estudos em três partes: i) mapeamento do objeto de sua apresentação, identifi cando as principais linhas da discussão jurídico-política nacional; ii) identifi cação de conceitos de justiça concor-rentes que contribuam para crítica fundamentada do objeto de discussão e iii) apresentação de propostas alternativas que interliguem a questão prática, como todas as suas peculiaridades, a ideários contrastantes de justiça.

É necessário, para o melhor aproveitamento das apresentações em sala, que os grupos agendem reuniões com o professor da disciplina, em horários alternativos ao período de aulas, no desenvolvimento de cada uma das três etapas. Tais reuniões farão parte do critério de avaliação da nota de partici-pação.

Os alunos pela sua participação no debate. Os alunos podem usar sua imaginação e criatividade. Isso não signifi ca, no entanto, que o rigor aca-dêmico deve ser minimizado. Ao contrário, um equilíbrio harmônico entre seriedade intelectual, criatividade, ousadia argumentativa e interdisciplinari-dade é extremamente desejável.

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BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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TEORIA DA JUSTIÇA

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VITOR CHAVESPossui graduação em Direito (2005) e mestrado em Direito, Estado e Constituição (2008), ambos pela Universidade de Brasília. Atualmente, é professor da FGV Direito Rio e Procurador federal. Foi Chefe de Gabi-nete da Secretária de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2008-2009) e Coordenador do Contencioso Judicial da Consultoria Ju-rídica do Ministério da Justiça (2010). Tem experiência na área de Direi-to, com ênfase em Direito Constitucional, Teoria da Constituição, Direito Administrativo, e Direito Sociais e Políticas Públicas.

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FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Rodrigo ViannaVICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Cristina Nacif AlvesCOORDENADORA DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Andre Pacheco MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Thais Maria L. S. AzevedoCOORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Márcia BarrosoNÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA — PLACEMENT

Diogo PinheiroCOORDENADOR DE FINANÇAS

Milena BrantCOORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO