hÖffe, otfried - o que é justica

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL CHANCELER- Dom Dadeus Grings REITOR - Ir. Norberto Francisco Rauch VICE-REITOR- Ir. Joaquim Clotet CONSELHO EDITORIAL Antoninho Muza Naime Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Jayme Paviani Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva Regina Zilberman Telmo Berthold Urbano Zilles (Presidente) Vera Lúcia Strube de Lima Diretor da EDIPUCRS- Antoninho Muza Naime EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681- Prédio 33 C.P. 1429 90619-900 Porto Alegre - RS Fone/Fax.: (51) 3320-3523 E-mail [email protected] www .pucrs. br/edi pucrs/

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

CHANCELER- Dom Dadeus Grings REITOR - Ir. Norberto Francisco Rauch VICE-REITOR- Ir. Joaquim Clotet CONSELHO EDITORIAL

Antoninho Muza Naime Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Jayme Paviani Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva Regina Zilberman Telmo Berthold Urbano Zilles (Presidente) V era Lúcia Strube de Lima

Diretor da EDIPUCRS- Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681- Prédio 33

C.P. 1429 90619-900 Porto Alegre - RS

Fone/Fax.: (51) 3320-3523 E-mail [email protected]

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Otfried Hoffe

O QUE É JUSTIÇA?

Tradução: Peter Naumann

Coleção: FILOSOFIA- 155

EOIPUCRS

PORTO ALEGRE 2003

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SUMÁRIO

~ I. UMA HERANÇA DA HUMANIDADE I 11 1. Traços comuns interculturais I 11 2. Origem divina (albores) I 16 3. Instaurar a ordem (Platão) I 22 4. Distinções que dão a medida (Aristóteles) I 24

II. SOBRE O CONCEITO DE JUSTIÇA I 29 1. O desafio I 29 2. Moral social devida I 31 3. Justiça como virtude I 33 4. Intermezzo: a justiça divina I 36

III. CETICISMO CONTRA A JUSTIÇA I 39 1. O positivismo jurídico I 39 2. O ceticismo da teoria sistêmica I 41 3. O utilitarismo: uma alternativa? I 43

IV. JUSTIÇA POLÍTICA OU DIREITO NATURAL? I 45 1. A idéia de um direito natural I 45 2. Objeções I 47 3. Um direito natural crítico I 48

V. JUSTIÇA PROCEDIMENTAL I 53

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VI. TRÊS PRINCÍPIOS I 57 1. "Vive honestamente" I 58 2. "Não prejudiques ninguém" I 59 3. "Assegura a cada um o que é seu" I 59

VII. O JUDICIÁRIO I 63 1. Princípios de justiça do Judiciário I 63 2. À guisa de complementação: eqüidade I 67 3. Um perigo: o Estado judicial I 69

VIII. PARA A FUNDAMENTAÇÃO DA JUSTIÇA POLÍTICA I 73 1. O modelo da cooperação (Aristóteles) I 73 2. O modelo do conflito (teorias contratualistas) I 74 3. Justiça como eqüidade (Rawls) I 78 4. Justiça como troca I 80

IX. PRINCÍPIOS INTERMEDIÁRIOS: DIREITOS HUMANOS I 83 1. Direitos humanos e direitos fundamentais I 83 2. Um olhar sobre a história das idéias I 84 3. Direitos de liberdade, direitos sociais e culturais, direitos de participação e co-gestão I 86

X. JUSTIÇA PENAL I 93 1. Definição da pena I 93 2. Normatização da pena I 95 3. Legitimação da pena I 97 4. Suspensão da pena? I 98

XI. JUSTIÇA SOCIAL I 101 1. Justiça comutativa I 102 2. Justiça compensatória I 103 3. Justiça entre as gerações I 105 4. Justiça e solidariedade I 107 5. Justiça com animais? I 109

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XII. JUSTIÇA NO PLURALISMO: TOLERÂNCIA I 111

XIII. JUSTIÇA GLOBAL I 115 1. Uma república federativa universal I 115 2. O direito à diferença I 118 3. Tarefas globais do direito I 120 4. Justiça anamnética I 127 5. Um senso de direito mundial e justiça mundial I 128 6. Uma visão realista I 130

XIV. ESTRATÉGIAS ESPECIAIS I 133 1. Desobediência civil I 134 2. Intervenção humanitária I 136

XV. MAIS DO QUE A JUSTIÇA: SENSO COMUNITÁRIO E AMIZADE I 141

Bibliografia I 145 Índice onomástico I 149 Índice analítico I 150

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I

UMA HERANÇA DA HUMANIDADE

1. Traços comuns interculturais

Em sentido primigênio, justiça significa simplesmente a concordância com o direito vigente. Até hoje chamamos Justiça -Judiciário- o órgão público que serve ao direito. Mas sem abando­nar a relação estreita com o direito, a justiça tem de há muito um significado mais abrangente e mais fortemente moral. Refere-se, numa primeira aproximação, tanto, em sentido objetivo, à justeza do direito, em termos de conteúdo, quanto também, subjetivamen­te, à honradez de uma pessoa. Máxime. como justiça objetiva ela é um conceito fundamental do desejo humano: ao mesmo tempo ob­jeto do anseio e da exigência humana. Nenhuma cultura e nenhuma época quer abrir mão da justiça. Um dos objetivos orientadores da humanidade, desde os seus primórdios, é que no mundo impere a justiça.

Porém, relativamente cedo aparece também um relativismo em termos de ética (jurídica). Como se reconhecem outras repre­sentações da justiça em outros países, duvida-se da possibilidade de uma justiça independente da cultura e da época. Nesse sentido, já o antigo cético Carnéades (214-129 a. C.) profere dois discursos conscientemente contraditórios na sua linha de argumentação, um a favor, outro contra a justiça. E Blaise Pascal (1623-1662) constata zombeteiramente que a justiça seria limitada por um rio, pois do lado de cá e do lado de lá do Reno estariam predominando justiças

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distintas (Pensamentos, n. 294). Ocorre que sucumbimos amiúde a uma ilusão de perspectiva. Mesmo Pascal não distingue entre idéi­as menos elementares de justiça- assim a de que os primogênitos herdam tudo (Pensamentos, n. 291)- e um núcleo incontroverso. Dessa forma escapa aos céticos o que praticamente todas as cultu­ras compartilham: uma justiça que já num sentido empírico não possui validade apenas regional e epocal. Em seu nome devemos contradizer Goethe, quando ele afirma: "Justiça: uma característica e um fantasma dos alemães" (Máximas e reflexões, n. 167: Obras, v. xn, p. 386).

Devido à justiça transcu!tural e transepocal, intercultural­mente reconhecida, pode-se caracterizar toda a humanidade como uma comunidade baseada na justiça. Os traços comuns a todos os seres humanos principiam no preceito da igualdade: "Casos iguais devem ser tratados de modo igual". Tanto na sua forma negativa, enquanto proibição do arbítrio, como também na sua forma positi­va, enquanto norma da imparcialidade, o preceito da igualdade exige a arbitragem de litígios sem consideração da pessoa. Nesse sentido, as artes plásticas representam a justiça ·elementar, a deusa Justitia, com os olhos vendados. Não importa se mulher ou ho­mem, rico ou pobre, poderoso ou fraco: segundo a imparcialidade de primeiro grau, a da aplicação da regra, cada qual recebe um tra­tamento igual consoante a regra correspondente: todos são iguais perante a lei. Com vistas à tarefa adicional de atribuir a cada pes­soa exatamente o que lhe cabe, a Iustitia com freqüência se apre­senta com uma balança na mão. E a espada simboliza a sua dupla tarefa- tanto proteger como punir.

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(llustr. 1: A fonte da Justiça em Berna, recorte)

Mas essa imparcialidade de primeiro grau, a da aplicação da regra. de modo nenhum é suficiente. Muito pelo contrário, ela deve ser complementada por uma imparcialidade de segundo grau, a da fixação da regra. Aqui não se pode esperar que disponhamos

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de uma única regra para todas as esferas da vida. No caso dos di­reitos fundamentais e humanos, importa a igualdade: "A cada um segundo o seu valor enquanto homem como tal". Com vistas à ga­rantia ekmentar da existência, impõe-se o aspecto da necessidade: "A cada um segundo as suas necessidades". Nos universos do tra­balho e do exercício da profissão, importa o princípio do rendi­mento; nos processos penais, a gravidade da violação do direito, combinada com o grau de culpa subjetiva.

lnterculturalmente reconhecidos são também os princípios da justiça procedimental; além disso, a idéia da mutualidade ou re­ciprocidade, combinada com a regra áurea ("Não faças a outrem o que não queres que te façam") e com essa equivalência no dar e re­ceber ("justiça comutativa"), que de modo nenhum vale apenas para relações na esfera econômica. Pertence por igual à herança comum de justiça a idéia de uma justiça compensatória ("cmTeti­va"). No Direito Civil ela exige a compensação por danos sofridos. no Direito Penal a compensação por uma injustiça culposa. Outros­sim, são protegidos, praticamente em todos os lugares, os mesmos bens de direitos fundamentais. Em todos os lugares, são punidos o assassinato, o furto e o roubo, bem como ofensas, além disso falsi­ficações de pesos, medidas e documentos e, não em último lugar, infrações elementares contra o meio ambiente, assim. por exemplo, no passado o envenenamento de poços. Há, por fim, consenso quanto ao preceito de punir apenas os culpados e, quanto ao pre­ceito subseqüente, de punir com mais brandura violaçõ_es menores contra o Direito Penal e com mais rigor violações mais graves. Os traços comuns são, portanto, impressionantemente numerosos, de modo que a civilização global, hoje em formação, pode orientar os seus discursos sobre um direito intercultural segundo o conceito de justiça.

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(llustr. 2: Código de Hamurabi. pane superior. século X V li a. C.)

A humanidade abandonou outros objetivos orientadores, em virtude da Ilustração ou devido a experiências decepcionantes. No entanto, ela deixa à justiça o seu peso preponderante até aos di­as atuais. Mesmo Friedrich Nietzsche (1844-1900), um dos mais ferozes críticos da moral ocidental, lhe dispensa um elogio prati­camente insuperável: "Se, ainda sob a arremetida da ofensa, do es­cárnio e da suspeição contra a pessoa, a objetividade elevada, clara, do justo olho, julgador, que perscruta com profundidade e brandu­ra iguais, não se turva. bem, então isso representa um fragmento de perfeição e de suprema maestria na face da terra" (Genealogia da moral, 2° Tratado, n. 11 ).

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2. Origem divina (albores)

Um discurso intercultural sobre a justiça não se contenta com a herança comum. Ele lança também um olhar sobre outras culturas, especialmente sobre épocas prístinas, para cuja compre­ensão de justiça há duas características diversas: uma extensão consideravelmente maior do campo semântico e a idéia da origem divina. Nas grandes civilizações do Oriente Próximo, por exemplo, os critérios de obrigação social, mais tarde distinguidos uns dos outros, ainda formam uma unidade relativamente indistinta. Elas não só relacionam a justiça pessoal, a honradez, com a justiça polí­tica. Não apenas no Israel antigo, mas já nas culturas ainda mais remotas do Egito e - em grau mais fraco - da Mesopotâmia, bem como na Grécia arcaica, a justiça é fundamentada em termos reli­giosos. A deificação, a divinização, ou teologicização da justiça é um traço intercultural comum de culturas arcaicas. A unidade de direito e justiça e a sua relação com um sentimento de lealdade à comunidade de pertença, com a solidariedade, são igualmente um patrimônio comum, a par da inserção do direito e da justiça em uma ordem social abrangente, que inclui até o próprio cosmo.

Egito e Mesopotâmia. A sociedade egípcia constitui uma hierarquia, no sentido originário do termo: uma dominação sagra­da, pois é encabeçada pelo "faraó" (Grande Casa) como encarna­ção de Horus, o deus-falcão ("Grande Deus"); e no âmbito da reli­gião solar existem germes de um monoteísmo.

O conceito fundamental da moral social, Ma' at, não vale apenas para as três dimensões do universo humano: indivíduo, so­ciedade e Estado, mas também para a quarta dimensão, o universo dos deuses. É impossível reproduzir o seu significado com uma única palavra. Mais exatamente, ele deve ser perifraseado com os termos "verdade, justiça, direito, ordem, sabedoria, autenticidade, sinceridade". "Ma' at refere-se à moral e a padrões de comporta­mento no convívio humano, à justiça divina do tribunal dos mortos, à superação diária do caos pelo deus-sol, criador do cosmo, e à le­gislação cosmogônica da sua imagem terrena, o rei" (Assmann, Ma'at. 2. ed. 1995, p. 9s.).

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A "justiça" egípcia combina a justiça no sentido rigoroso: o que os homens devem uns aos outros com o que eles devem à or­dem divina e com uma responsabilidade recíproca de uns pelos outros, com solidariedade. Adicionalmente ela considera o êxito da própria vida. Quem vi v e em consonância com Ma 'at não é apenas honrado ou justo num sentido abrangente. Segundo a idéia arcaica da retribuição de que o bem compensa e o ruim ou mal se vinga, o homem honrado tem êxito em três dimensões: no aquém atual, vi­sível em uma carreira de funcionário e na estima das outras pesso­as; na memória dos pósteros, visível num túmulo monumental, e, finalmente, no além, ao qual se chega por via do tribunal dos mor­tos, que é um tribunal de deuses.

Ma'at se caracteriza ainda, e não em último lugar, por um aspecto da compaixão, pela primeira vez elaborado, segundo se diz, pela tradição judaico-cristã: a possibilidade de abrir mão da vingança enquanto retribuição e de uma libertação abrangente da miséria e da aflição: Ma' at integra a ordem, a dominação e a hon­radez com uma felicidade insuperável, com salvação.

Não é lícito inferir desse significado tão abrangente quanto ainda pouco diferenciado de Ma'at um universo de representações e um mundo de vida indiferenciado na mesma medida. Existem pelo menos duas instâncias distintas de julgamento. O tribunal co­mum possui competência para infrações isoladas do direito no de­curso da vida, e o "Ministro da Justiça" tem o título de sacerdote da Ma' at: Ma' at é também a deusa da decisão judicial. Em contrapar­tida, o tribunal dos mortos julga toda a vida transcorrida. Dessarte, no tribunal dos mortos, mas praticamente não no tribunal comum, é punido tudo o que ofende Ma 'at, pois em duas longas listas de de­clarações de inocência, juntadas aos mortos, segundo o Livro dos Mortos (Cap. 125) do antigo Egito (v. Assmann. Ma 'at, p. 138s), não figuram apenas delitos de clara competência do Judiciário, como homicídio, furto e fraude, mas também infrações pratica­mente não-julgáveis por tribunais, como não ter brigado, não ter proferido palavras supérfluas, não ter espionado ninguém e nem se ter vangloriado. Como diante do tribunal dos mortos não contam apenas as infrações de competência do Judiciário, o direito positivo

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e a moral extrajurídica não coincidem pura e simplesmente. Assim a sua separação principia em tempo não remoto na história da hu­manidade.

Os "Livros de direito", provenientes da Mesopotâmia e parcialmente já redigidos muito tempo antes do Código de Hamu­rabi, dizem respeito à vida aqui na terra, sem conter perspectiva para um tribunal dos mortos. Por isso, eles se afiguram seculariza­dos em elevado grau, a partir da ótica moderna. No entanto, a or­dem do direito e da justiça conserva uma origem divina, e o rei deve prestar contas aos deuses. Aqui aparece uma competência que se antecipa ao corretivo clássico da justiça, à eqüidade: os reis não podem apenas promulgar o direito a viger, mas também suspendê­lo, caso a caso, onde a sua aplicação exterminaria os pobres e de­samparados, especialmente os proverbiais "órfãos e viúvas".

Israel antigo: também na acepção dos antigos israelitas a "justiça" possui os dois significados fundamentais que ainda de­vem ser determinados mais de perto. No sentido objetivo ou políti­co, ela designa as representações normativas que orientam e orde­nam uma boa sociedade; no sentido subjetivo, ela designa uma ação ou pessoa que se pauta por essas representações orientadoras e, em Israel, adicionalmente, por uma pletora de obrigações con-eretas.

À semelhança da doutrina egípcia da Ma 'at, e provavel­mente sob sua influência, as expressões hebraicas traduzidas por "justiça" (dikaiosynê [ÕLKcuooúv'll], iustitia), p"JY. e i1j?;')!t Sactaq resp. Sactaqah (SDQH), significam uma situação de vida ao mesmo tempo abrangente e imutável.

Fundada na aliança que Deus, JHWH, concedeu a Israel, Sadaq consiste na relação, tanto jurídica quanto ética e, sobretudo, religiosa, entre Deus e o seu povo eleito. Como quintessência dos mandamentos contidos na Torá, nos cinco Livros de Moisés, a "justiça" objetiva é tida como vontade revelada de Deus. E justo, no sentido pessoal, é aquele que aceita essa ordem propositalmen­te, que cumpre de modo ativo seus mandamentos e ajuda, dessarte, a conservar a comunidade jurídico-ético-religiosa.

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Sadaq significa mais "fidelidade à comunidade" e está mais próximo ao conceito de solidariedade, compreendida como lealdade para com a própria comunidade, do que à noção de dívida recíproca entre os homens.

No pensamento bíblico acresce à "justiça" política e pesso­al um terceiro conceito: a justiça de Deus. Ela não se refere a algo que Deus deve aos homens, mas à fidelidade de Deus à aliança: no Antigo Testamento, ela respeita à confiança na sua atenção ao povo de Israel, em parte castigadora, em parte salvadora; ou, no Novo Testamento, à confiança na sua atenção a todos os homens de boa vontade.

Visto as expressões bíblicas traduzidas por "justiça" abrangerem tudo o que inclui uma existência plena do fiel, isto é, a paz, a libertação, a redenção, a graça e a salvação, elas transcen­dem em muito o conceito estrito e rigoroso de justiça. Os elemen­tos inclusos são perfeitamente conhecidos desde os gregos: a paz (eirénê [ELp~vfl], pax), a felicidade no sentido de uma vida inteira­mente bem-sucedida (eudaimonía [Euõaq.J.oví.a], felicitas ou beati­tudo), bem como a sua potenciação na salvação (marariotês [i.J.CiKetpLÓTflç]). À semelhança do conceito egípcio, o conceito he­braico também não expressa uma concepção de todo em todo dis­tinta. Muito pelo contrário, de um ponto de vista mundano, ele deve parecer bastante arcaico, pois liga a justiça, no sentido rigoro­so do termo, com outros conceitos de forma ainda relativamente indiferenciada. Aqui se imiscui uma intenção alheia ao conceito ri­goroso: a de os homens por si só não estarem em condições de produzir o estado da "justiça", mas de o receberem como dádiva e graça de Deus.

Assim como Ra, o deus-sol dos egípcios, dispensa direito e justiça, o Deus bíblico é também a fonte do direito e da justiça, para a qual ele. no entanto, tem competência direta, diferentemente das representações orientais mais antigas. Quem padece de perse­guições e inimizades, dirige-se diretamente a Deus sem a interme­diação de um rei (S/7).

Diferentemente do tribunal dos mortos do Egito, JHWH pode poupar os homens, apesar da culpa muitíssimo grande (e.g.

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Os 11, 8ss): mas a não-aplicação do castigo não beneficia aqui um indivíduo, e sim a coletividade, o povo eleito de Israel. Em sentido geral, Deus não é apenas aquele que julga, pune, mas também o Deus salvador, que dispensa bondade e misericórdia. Assim como o rei na Mesopotâmia, ele assume a defesa dos pobres e desampa­rados, ajudando-os a alcançarem o direito e a justiça e libertando­os do poder dos prevaricadores, isto é, dos violadores do direito (SI 82, 3-4 ). Mas isso significa, não tanto a justiça social ou uma qua­lidade de Estado de bem-estar social, mas muito mais uma ajuda jurídica, no sentido de auxiliar na consecução do direito.

Grécia. Nos testemunhos pré-filosóficos mais antigos, nas duas epopéias de Homero, na Ilíada e na Odisséia, bem como na Teogonia ("geração dos deuses") de Hesíodo, a justiça ainda tem uma origem divina. Do mesmo modo direito e justiça formam uma unidade indistinta, pois uma única deusa, Têmis, tem competência para ambas. Como filha de Gaia, a mãe de todos os seres, e de Urano, deus do céu, ela é ainda mais antiga do que o posterior rei dos deuses, Zeus. Nisso fica manifesto que vige para os homens e os deuses uma ordem comum e, além disso, eterna e imutável. No entanto, Têmis não traz por si própria a ordem ao mundo, porém com ajuda das suas três filhas concebidas de Zeus. A nova ordem é, assim, confirmada pelo novo rei dos deuses e investida do poder que lhe é próprio. Ao mesmo tempo, manifesta-se, na maioria das filhas, uma primeira diferenciação, o que faz o pensamento grego afigurar-se mais "moderno", quer dizer, menos arcaico: Díkê res­ponde pelos costumes, pelo direito e pela jurisprudência; Eirénê por uma paz que inclui o bem-estar econômico e cultural; Eunomía por um bom ordenamento jurídico. Uma outra diferença também pode ser considerada "moderna": a retribuição efetuada por Díkê refere-se com clareza ao resultado da aplicação da justiça, por sua vez de natureza meramente negativa. Violações do direito são pu­nidas, mas a honestidade não é recompensada.

Por outro lado, a cultura aristocrática grega é, no que tange a isso, mais arcaica, na medida em que, em oposição ao Egito e a Israel, não só predomina a justiça, mas valores agonais em posição

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de primado com relação a esta. Textos-chaves de Homero, Hesíodo e Ésquilo mostram que a justiça, como valor central da moral soci­al, só paulatinamente se impõe. Quando, no último canto da Odis­séia, o herói que retornou mata os cento e oito pretendentes, há anos consumindo o seu patrimônio, ele infringe a justiça em três aspectos: Ulisses exerce a justiça privada, ao invés de entregar o caso a um tribunal. A justiça privada é extremamente desproporci­onal: reage ao delito contra a propriedade com um delito de homi­cídio, inclusive com um homicídio em massa. Por fim, na reserva­da assembléia do povo não se apela aos deuses como guardiães da justiça, nem se fala de uma avaliação de bens (propriedade contra vida), de um delito passional desculpável ou de legítima defesa. Em vez disso, Zeus exige dos habitantes de Ítaca que "esqueçam" o assassinato em massa e reconheçam novamente Ulisses como seu rei, sem lhe impor nenhuma pena ou expiação.

O poeta Hesíodo insurge-se contra o éthos aristocrático de Homero. Recorrendo provavelmente a ensinamentos da sabedoria oriental, ele erige a justiça em valor central da moral social, dei­xando os deuses providenciar para que o injusto sofra (Trabalhos e dias, versos 214-218), e delega à nobreza a tarefa de empenhar-se como julgadora em prol da justiça (versos 220s).

Mais de duzentos anos depois, o poeta trágico Ésquilo re­presenta o surgimento de uma instituição elementar de justiça, isto é, do tribunal de justiça penal. Na Oréstia, ele inicialmente apre­senta o incêndio avassalador da violência, que se propaga, de acor­do com o princípio arcaico da vendeta: mas, em vez de deixar a vendeta se encerrar somente numa catástrofe final, como na saga islandesa dos Wolsungen ou na Canção dos Nibelungen, ele con­clui, de forma construtiva, com a instituição de um tribunal penal. Este não se preocupa apenas com a paz doméstica, mas conduz também ao florescimento econômico e cultural da coletividade (Gemeinwesen). Além disso, ele respeita o princípio mais impor­tante, até hoje, da justiça processual penal: a presunção da inocên­cia ou a correspondente regra do ônus da prova (in dubio pro reo). Enquanto comumente se trata de um caso individual, de justiça para um caso, está na pauta em Ésquilo a inocência de um tipo de

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delito, de uma justiça de delito. Não há como decidir inequivoca­mente se Orestes é culpado por vingar o assassinato do pai com a morte da mãe. Segundo a lei mais antiga, matriarcal, não pode ha­ver matricídio; conforme a lei mais nova da igualdade, a mãe tam­bém merece uma pena severa pela sua instigação ao uxoricídio, que deve ser executada por Orestes, dada a inexistência de uma justiça pública. Nessa situação de falta de univocidade delituosa, um número igual de juízes prolata sentenças pró e contra Orestes, razão pela qual intervém a deusa Palas Atena e, em consonância com o princípio in dubio pro reo, decide em favor de Orestes.

3. Instaurar a ordem (Platão)

Os gregos foram os primeiros a desenvolverem uma filoso­fia para a justiça, no sentido rigoroso do termo. Para isso concorre­ram, por certo, três circunstâncias: em vez de ser um valor há muito tempo reconhecido, a justiça deve inicialmente impor-se contra a moral aristocrática da honra compreendida em termos agonísticos. Diferentemente da situação posterior em Roma, não existe um estamento de juristas, de modo que os gregos, em tercei­ro lugar, estendem a sua relação filosófica com o mundo também ao direito e à justiça.

A filosofia da justiça atinge um primeiro ápice na obra mais antiga do Ocidente, dedicada à justiça, no diálogo Politeía [noÀLcELCX] (República), com o subtítulo Peri dikaíou [nEpl. ÕLKCX(ou] ("Sobre o que é justo ou o homem justo"). Para Platão (427-347 a. C.), a justiça é um fenômeno secular. Ainda que ele a denomine ocasionalmente "divina", ele não se refere a uma obrigatoriedade de natureza religiosa. No lugar da origem divina aparece um ele­mento metafísico; o último fundamento de legitimação é a idéia do Bem. Por um lado, a ordem hierárquica da sociedade, conhecida do antigo Egito, é preservada. Mas ela não é mais encabeçada por um representante de deus na terra. Melhor dizendo, ao ser humano im­põe-se compromisso, assumindo ele a plena responsabilidade pela justiça, embora isso não valha para quaisquer pessoas nem para to­das as pessoas. No lugar de um rei, sacerdote ou profeta, convoca-

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do por deus, aparece um aristocrata do espírito, o rei-filósofo, des­tacado por sua competência teórica e, sobretudo, por sua compe­tência em questões de natureza moral-prática (República, V 437 c­d). Mas, para poder arcar com sua responsabilidade, ele mesmo deve ser justo. Com vistas a esse fim, Platão introduz um elemento de todo em todo novo com relação às representações do Antigo Oriente Médio: o fato de que uma hierarquia das forças pessoais, das assim chamadas partes da alma, corresponde à hierarquia social e de que a justiça tem competência para as duas ordens, a social e a "anímica".

Platão distingue de forma perfeitamente plausível três for­ças fundamentais na alma: o desejo, a energia e a razão. A elas cor­respondem três perfeições ou virtudes: no desejo, a prudência; na energia, a coragem, e na razão o conhecimento ou sabedoria. Mas, para que cada força fundamental cumpra a tarefa que lhe é peculiar e se constitua a reta ordem na alma, necessita-se ainda de uma quarta virtude: a justiça. Desde então, a justiça integra um quarteto de virtudes principais em torno das quais tudo gravita. Ao lado da prudência, da coragem e da sabedoria ela é considerada uma das quatro virtudes cardeais (lat. cardo, gonzo); por causa da sua tarefa ordenadora, ela é até considerada como a vjrtude suprema. Pois similarmente ao Egito e ao antigo Israel, a justiça é também em Platão um princípio geral de ordenamento. A tarefa desse princípio vai até mais longe ainda, pois ele não responde apenas pela ordem social, mas também pela ordem da alma. A justiça zela para que cada parte da alma cumpra a função que lhe é adequada; ela "atri­bui a cada uma o que é seu", evidentemente não determinados bens, mas campos de tarefas e atividades. O mesmo vale para a pólis [TTÓÀLç]. Platão sabe perfeitamente que "em cada um de nós se encontram as mesmas três espécies e modalidades de ação", cor­respondentes às três forças da alma, a saber: a arte de adquirir, a coragem e o desejo de saber (República, IV 435e-436a). Uma co­letividade somente é justa, quando cada um procura cumprir atare­fa que corresponde a sua aptidão dominante. Quem tem um forte desejo e é aqui, na melhor das hipóteses, capaz de ser virtuoso, no campo da prudência, deve ser artesão, agricultor ou comerciante.

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Quem dispõe de uma vigorosa energia e da sua excelência, a cora­gem, deve ser guardião. E somente quem for eminente na razão pode e deve ser rei-filósofo. Também aqui a justiça zela pela cor­relação correta e, simultaneamente, pela ordem global correta. Não que Platão declare a coletividade justa o pressuposto de indivíduos justos. Ele não afirma que só uma constituição justa e instituições justas permitem aos homens, por sua parte, ser justos. Tampouco assevera que a coletividade somente pode tornar-se justa, se todos os indivíduos forem justos. Mas ele defende a atenuada afirmação contrária de que nem todos os cidadãos devem dispor da justiça, mas uma parte, os governantes. Platão até supõe uma correspon­dência exata (isomorfismo) entre cidadãos e coletividades: tal como um indivíduo se torna justo apenas quando governado pela razão, assim uma coletividade somente se torna justa, pelo fato de nela governarem cidadãos regidos pela razão. Por isso, ele repete a idéia do governo dos filósofos com aplicação à esfera do indivíduo; complementa o governo político dos filósofos para um governo dos filósofos de natureza pessoal: "O ser humano mais excelso, mais justo e ao mesmo tempo mais feliz, é aquele que é mais régio na sua maneira de pensar e a si próprio governa regiamente" (Repú­blica, IV, 580 b-c).

4. Distinções que dão a medida (Aristóteles)

O segundo ponto pinacular no pensamento jurídico oci­dental é formado pelo primeiro tratado efetivo sobre a justiça, o Livro V da Ética a Nicômaco. Aristóteles (384/3-32211 a. C.) con­tinua aqui a secularização da justiça operada por Platão. O estagi­rita não apenas consegue viver sem alguma religião ou teologia, mas também sem metafísica. No âmbito do conceito de justiça, ele estabelece distinções que se mostram pertinentes até aos dias atuais e se cifram numa diferenciação, não de todo, mas em grande parte suficiente:

A justiça, como virtude completa, denominada justiça uni­versal (iustitia universalis) por Santo Tomás de Aquino, significa, para Aristóteles, com vistas ao outro, a virtude perfeita, ainda mais

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reluzente do que a estrela vespertina e matutina. Consiste na atitu­de de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exi­gem. A justiça universal denota uma integridade abrangente. Dela fazem parte, e.g., também as obras da coragem e da prudência, a que Aristóteles, no entanto, alude modestamente apenas, com in­terdições: a coragem proíbe o soldado de abandonar o seu posto, a prudência proíbe cometer o adultério e tornar-se violento.

Enquanto a justiça universal é familiar aos gregos, a idéia de uma justiça como virtude entre outras virtudes, a de uma justiça particular (iustitia particularis), provavelmente foi descoberta por Aristóteles. A justiça particular refere-se àquelas questões de hon­ra, dinheiro ou autoconservação -, podemos complementar: poder -, nas quais é ameaçador o perigo de um prazer desmedido diante do lucro, quer dizer, da insaciabilidade. Em uma espécie de justiça particular, ou seja, na repartição da honra e do dinheiro (iustitia distributiva), Aristóteles considera lícita a desigualdade. No caso da honra, isso salta aos olhos, pois as pessoas geram resultados distintos, tanto para a coletividade quanto na ciência, na arte ou no esporte, de modo que, por exemplo, seria um contra-senso equipa­rar um romance trivial às obras de Dante, Shakespeare ou Goethe.

A outra justiça. ordenadora, regulamenta o intercâmbio. Enquanto justiça da troca (iustitia commutativa), ela tem compe­tência para o intercâmbio voluntário, para as operações comerciais ou o direito civil, quer dizer, para ocorrências como compra, ven­da, empréstimos e fiança. Mas, enquanto justiça compensatória ou corretiva (iustitia correctiva), ela regulamenta no direito penal o intercâmbio involuntário. O rol aristotélico de duas vezes sete de­litos contém uma medida digna de menção pela validade intercul­tural. Pertencem à categoria dos delitos "ocultos" o furto, o adulté­rio, o envenenamento, o lenocínio, o aliciamento de escravos, o as­sassinato por traição e o falso testemunho; por outro lado, perten­cem à categoria dos delitos "violentos" os maus-tratos, a privação da liberdade, o homicídio, o roubo, a mutilação, a difamação e o insulto. Ao passo que a justiça distributiva admite desigualdades, a igualdade domina na justiça ordenadora. Assim, não importa se um homem honrado rouba um homem mau, mas tão-somente que ele

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roubou e quão elevado foi o prejuízo. E o juiz compensa o dano por uma pena, à medida que ele retoma - conforme afirma Aristó­teles - o "lucro" auferido do delito.

A totalidade das distinções até aqui mencionadas Aristóte­les correlaciona-as ao justo por excelência. E concebe-as como tra­ços distintivos estruturais, "abstratos", universalmente válidos. Distingue-os do justo em determinados contextos institucionais. Eles iniciam com o politicamente justo, que deve ser compreendido aqui no sentido rigoroso, "republicano". Em contraposição ao ar­cabouço vertical da ordem, predominante em outros casos, isto é, em oposição à dominação e à sociedade hierarquicamente estrutu­radas, ele é sinônimo de um arcabouço horizontal de ordem: cida­dãos livres e iguais formam uma coletividade na qual eles gover­nam e se deixam governar alternadamente, servindo assim ao bem comum.

No âmbito do politicamente justo, Aristóteles acolhe resu­midamente uma distinção introduzida pelos sofistas a qual caracte­riza o pensamento ocidental sobre o direito e a justiça praticamente até aos dias atuais: a distinção entre o natural (tà physikón) [rà <jluoLKÓv] e o legal (tà nomikón [ro VOiJ.LKÓv]; Ética a Nicôma­co, V 10, 1134 b18-1135 a 5), denominada, mais tarde, direito na­tural e direito positivo. Enquanto o direito positivo derivaria da convenção e ordem, o direito natural se caracterizaria pela univer­salidade ("possui em todos os lugares a mesma força") e pela não­arbitrariedade ("não depende desta ou daquela opinião").

Aristóteles não aduz o que dela faz parte; não cita exem­plos aqui. Poderíamos pensar nas determinações do que é justo por excelência, máxime nas da justiça particular, e praticamente não se pode duvidar de que Aristóteles contabiliza os duas vezes sete de­litos penais como integrando o direito natural. Dever-se-ia conside­rar também como parte do direito natural, num sentido mais amplo, a célebre tese de que o homem seria "por natureza" um ser político (Política, I 2). De acordo com a Retórica (I 13, 1373 b 9-18), é justo num sentido natural agir como a Antígona de Sófocles e se­pultar o irmão Polínice, apesar da proibição do rei Creonte. Com relação às Constituições, Aristóteles declara expressamente uma

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única como a melhor por sua natureza, a saber, aquele governo que serve ao bem-estar da coletividade e é reconhecido por cidadãos que, com vistas a uma vida virtuosa, se deixam governar e se go­vernam alternadamente (cf. Política, III 13, 1284 a 2 s.).

Ilustr. 3:

em termos gerais ("abstratamente")

justiça universal (i. universalis)

justiça particular (i. particularis)

Justiça (iustitia)

em instituições

não-política política (e.g. comunidade (autogoverno de doméstica) cidadãos livres)

/ distribuição ordem, intercâmbio~mente Jturalmente (i. distributiva) (i. commutativa

(honra. dinheirv· autopreservação)

~"''"'"' (d)reloo """""

voluntariamente (direito civil) involuntariamente (direito penal) justiça comutativa (iustitia cmnmutativa)

/ compra, venda, empréstimo, fiança

justiça corretiva (iustitia correctiva)

delitos ocultos: furto, adultério, envenenamento, lenocínio, aliciamento de escravos, assassinato por traição, falso testemunho

delitos violentos: maus-tratos, priva­ção da liberdade, homicídio, roubo, mutilação, difamação, insulto

Ilustr. 3: As distinções de Aristóteles a respeito da justiça

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SOBRE ·o CONCEITO DE JUSTIÇA

Uma questão debatida com veemência, tanto no cotidiano quanto na filosofia, é esta: em que consiste mais concretamente a justiça? Uma discussão acurada determinará primeiro o conceito e distinguirá para tal fim duas indagações de todo em todo distintas em termos de método: de um lado, as condições sob as quais a jus­tiça se vê desafiada; de outro lado, qual dentre as respostas a esse desafio tem o nome "justiça". A primeira indagação busca as con­dições descritivas da aplicação, a segunda os momentos prescriti­vos e normativos.

1. O desafio

No âmbito das condições de aplicação da justiça, podem ser distinguidas ainda as condições objetivas das subjetivas, quer dizer, distinguir o campo de objetos da justiça do sujeito que é ca­paz e desafiado a praticá-la.

Escassez ou conflito: "Admitamos que a natureza tenha dotado o homem de uma abundância tão rica em todos os confortos exteriores", de modo que não haja necessidade de um "trabalho penoso", de "nenhuma agricultura, de nenhuma navegação", então "afigura-se plausível que em tal estado feliz qualquer outra virtude social floresceria e decuplicar-se-ia, mas nem teríamos sonhado com a virtude cautelosa, desconfiada da justiça". Como para David Hume (Princípios da moral, Cap. III: "Sobre a justiça"), assim também para outros filósofos liberais a escassez pertence às condi­ções de aplicação da justiça. E indiretamente Platão já defende essa

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opinião, à medida que ele ainda não fala de justiça onde os homens estão satisfeitos com o que é necessário para o seu sustento. Com efeito, muitas tarefas da justiça resultam da limitação dos recursos naturais. E mesmo a civilização científico-técnica pode, por um lado, aumentar a produtividade econômica, mas não superar a "lei da escassez" antropológica, tripartida: (1) o último dado orientador de toda e qualquer economia - a Terra com os animais, plantas e materiais, é limitada; (2) o homem precisa beneficiar os dados ori­entadores da sua existência "no suor do seu rosto", o que ele prefe­re evitar; e (3) existe a ameaça de uma insaciabilidade tendencial, um querer sempre mais, que constrange, com exageradas cobiças, tudo o que é humano, não importa se o indivíduo, o grupo ou a instituição.

Porém, onde domina a abundância, por parte da natureza, a justiça se torna apenas em grande escala, mas não integralmente, desempregada. Pois, por um lado, existe também uma escassez in­dependente da natureza, já que o ser humano não carece apenas do que a natureza lhe poderia oferecer dos bens em plenitude (na su­posição de a insaciabilidade se manter dentro de limites). O ser humano necessita também do que somente seus semelhantes po­dem providenciar: serviços, começando com a assistência da qual necessitam os lactentes. Por outro lado, nem todas as tarefas da justiça estão referidas à escassez: nem a igualdade perante a lei, nem a competente imparcialidade do Judiciário e da administração pública, relativo a isso; nem os direitos humanos liberais, nem a soberania popular ou ainda a divisão dos poderes. Existe, e não em último lugar, uma luta pelo reconhecimento, acompanhada dos sentimentos de inveja e ciúme. Caim mata o seu irmão Abel, não porque lhe faltam bens, mas porque "o Senhor olhou para Abel e suas oferendas, mas não para Caim e suas oferendas" (Gn 4, 4-5).

Busca-se justiça em todo o âmbito das relações humanas, tanto nas de cooperação quanto também nas da concorrência. no caso de aqui surgirem interesses, pretensões e deveres conflitantes. A condição objetiva de aplicação cifra-se no litígio ou conflito. Como estes, existem, tanto no trato pessoal quanto nas relações comerciais, bem como nas instituições e nos sistemas sociais, no-

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meadamente no direito e no Estado, além disso também entre os Estados e, não em último lugar, por igual na relação entre as dife­rentes gerações, a justiça está em jogo em todas essas áreas.

Capacidade de ação: Quem, face aos conflitos, exige justi­ça, p~ssupõe duas coisas por parte dos sujeitos: que as relações entre estes podem configurar-se distintamente e que a respectiva forma depende não apenas de uma instância externa, e.g., da natu­reza ou de exigências sistêmicas. Ao menos parcialmente essa for­ma deve ser atribuível a seres capazes de ação, a saber, pessoas fí­sicas e jurídicas. A justiça não existe nem na sociedade, à medida que esta possui um caráter exclusivamente sistêmico, nem entre animais, à medida que o comportamento destes é determinado ape­nas por instintos naturais. Mas pode perfeitamente existir uma jus­tiça com relação a animais (v. Cap. X1.5). E caso fossem desco­bertos animais capazes de agir, também eles estariam sujeitos à justiça: tanto à justiça entre eles quanto à relativa aos seres huma­nos.

2. Moral social devida

Diante das distintas possibilidades de configuração, a justi­ça assume uma determinada espécie de avaliação: a avaliação soci­al, de resto normativa, a qual, no âmbito dos três graus hierarqui­camente ordenados, pertence ao terceiro e indubitavelmente mais elevado grau, ao grau moral, no sentido estrito do termo.

No primeiro grau, técnico num sentido mais amplo, avali­am-se meios, caminhos e procedimentos, a partir de objetivos ou fmalidades quaisquer, mas pressupostos em cada caso. As obriga­ções pertinentes, em parte instrumentais, em parte funcionais ou estratégicas, significam "bom para alguma coisa (qualquer)". No segundo grau, de natureza pragmática, os objetivos ou fins, não normativamente tematizados no primeiro, são avaliados a partir do interesse natural pelo próprio bem-estar da pessoa; "bom" significa aqui "bom para alguém". Se, no caso da pessoa em questão, se trata de um indivíduo, ocorre uma avaliação em termos de prag­mática individual; em se tratando de um grupo, ocorre uma avalia-

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ção em termos de pragmática social que corresponde à ética do utilitarismo. Quem já considera o seu princípio, isto é, o bem co­mum máximo e coletivo, como a medida máxima de valoração, desconsidera que uma coisa pode promover o bem comum coletivo e não obstante ser injusta. O utilitarismo é indiferente quanto à "distribuição" do bem comum.

O terceiro grau da avaliação, genuinamente moral, supera a indiferença. O bem comum não é mais compreendido apenas cole­tiva, mas distributivamente, apurando as condições. Não basta que algo seja apenas "bom para um grupo na sua totalidade"; é mister ser também "bom para cada indivíduo". Somente com isso se atin­ge um caráter de obrigatoriedade que não se deixa invalidar por outras obrigatoriedades nem barganhar em troca delas: uma obri­gatoriedade incondicional ou categoricamente válida, genuina­mente moral. Pela justiça o âmbito do social é submetido à idéia de um bem irrestrito. Em que pese a importância das obrigatoriedades técnicas, funcionais e ainda mais das pragmáticas, e.g., a segurança interna e externa e o bem-estar econômico, elas podem estar a ser­viço do banditismo organizado e de Estados que claramente des­respeitam o direito; ou elas podem, até, conter privilégios e discri­minações juridicamente fundamentadas.

Mas a justiça não cobre toda a área da moral. Já eventuais deveres do ser humano consigo mesmo não são abrangidos. E no âmbito da moral social, a justiça diz respeito apenas a uma pequena parte, à parte dos deveres: aos assim chamados deveres de direito ou à moral do direito. Ao passo que ficamos decepcionados diante de infrações de deveres de virtude como compaixão, beneficência e generosidade, também do dever da gratidão e da disposição de per­doar, violações da justiça despertam reações de indignação e pro­testo. O reconhecimento dos deveres de virtude nós só o podemos pedir e esperar do outro; em contraposição, podemos exigir o cum­primento do dever de justiça. Enquanto moral social devida, a jus­tiça está investida do grau hierárquico de critério fundamental e supremo de todo o convívio humano, enquanto a beneficência constitui o critério otimamente supremo e a solidariedade ocupa uma posição intermediária.

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Em virtude do peculiar grau hierárquico da justiça, existe a ameaça de um deslocamento que podemos utilizar conscientemen­te, o que conduz ao abuso: declaramos prestação fundamental de­vida o que na verdade pertence à esfera do "plus" merecido. Sem dúvida~ a moral ordena sejamos pessoalmente generosos e benefi­centes; mas uma ordem social com competência para a coação, um Estado, essencialmente só responde pela justiça. Mais especifica­mente, as realizações a mais de compaixão e beneficência devem ser geradas voluntariamente, não podendo, dessarte, ser obtidas por coação, mas apenas por solicitação.

Mas o que as pessoas devem umas às outras? Sem dúvida, não a obrigação de se deixarem oprimir ou explorar. Em conformi­dade com a idéia fundamental da imparcialidade e reciprocidade, o objeto da justiça, o convívio, deve ser configurado de modo que as suas vantagens e desvantagens não se "distribuam" entre diferentes grupos. Pressupondo um resultado positivo no balanço das vanta­gens e desvantagens -do contrário é preferível viver solitariamente -, as vantagens não podem ser de proveito apenas à sociedade en­quanto coletividade, mas devem favorecer também a cada indiví­duo. A medida da justiça consiste na vantagem distributiva e si­multaneamente coletiva: na vantagem para cada indivíduo e para todos os indivíduos em conjunto.

3. Justiça como virtude

O convívio humano possui dois lados, aos quais corres­pendem dois conceitos de justiça. Com relação a instituições e sis­temas sociais, como o matrimônio e a família, a economia e o sis­tema educacional, a moral devida é denominada justiça institucio­nal ou objetiva; no caso do direito e do Estado, também se chama justiça política. No entendimento personalista ou subjetivo, ela si­gnifica, em contrapartida, aquela honradez que não cumpre as exi­gências da justiça institucional apenas ocasionalmente e por medo de castigos, mas voluntária e constantemente, "habitualmente". Aqui a justiça é um traço distintivo do caráter ou da personalidade, uma virtude moral que, por um lado, independe de uma simpatia

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pessoal e, por outro, não ultrapassa o devido. Existem dessarte dois graus. Quem age com justiça baseado somente em motivos extra­morais, e.g., por medo da pena, encontra-se apenas no grau inferi­or, básico. Desde Kant, fala-se aqui de legalidade e pensa-se na consonância com o que a justiça ou, em termos mais genéricos, a moral mandam fazer. Não se trata aqui, portanto, da congruência com a lei positiva, da legalidade positiva, mas de uma legalidade moral. No plano mais elevado e no grau da perfeição, no da mora­lidade, agimos, não apenas com justiça, mas fazemo-lo também a partir de uma determinada mentalidade, a saber, simplesmente por ser justo. Quem é justo nesse sentido pleno também não enganará outras pessoas, mesmo tendo condições para tal, em virtude de maior poder ou inteligência. E como legislador, juiz, professor, um dos pais ou concidadão, ele orientará as suas ações e omissões se­gundo a idéia da justiça objetiva, também se o direito positivo e a moral convencional deixarem lacunas e margens à apreciação, ou quando a sua consecução for extremamente improvável.

Enquanto a filosofia da Antiguidade discute ambos os la­dos e Platão assume até uma correspondência entre justiça pessoal e política, a Idade Média cristã, assim como a Idade Média islâmi­ca e judaica, se interessa "bem mais pela justiça pessoal, nos assim chamados "Espelhos dos príncipes"*, sobretudo pelos governantes justos. O liberalismo político da Idade Moderna, ao contrário, pre­fere confiar na justiça das instituições e na sua divisão de poderes. Mas a suposição difundida de que sociedades modernas poderiam abrir mão da justiça pessoal é falha, pois uma certa medida de jus­tiça, tanto do lado dos cidadãos quanto do dos titulares dos cargos da sua sociedade, pertence às condições de funcionamento da de­mocracia no Estado de direito: assim titulares de funções como, e.g., os parlamentares hão mister da justiça pessoal ("honradez"), pois, de outro modo, e em contradição com o seu juramento, não serviriam à totalidade do povo, mas tão-somente aos interesses da sua clientela, contribuindo a uma tirania da maioria, temida pela

Tradução literal de "Fürstenspiegel", um gênero de literatura (lato sen­su) em voga na Europa medieval e renascentista, uma espécie de manual para bons governantes [nota do tradutor].

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teoria crítica da democracia de Platão (República VIII 555b ss.) e Aristóteles (Política, OV 4, 1290 bl s.) a John Stuart Mill (Sobre a liberdade, Cap. 4 ). Também nos juízes e funcionários da adminis­tração, até no caso das pessoas que trabalham nos meios de comu­nicaçã~ (enquanto quintessência do quarto poder), é imprescindí­vel, não uma justiça abrangente, mas uma justiça pessoal referida ao seu campo de atividades. Se alguns carecem dela, os outros, que são erri grande número, poderão regulá-la. Mas onde a falta se tor­na a regra, quando, e.g., juízes praticam "sistematicamente" um "jogo de cartas marcadas" com a acusação e a defesa, a tarefa em questão é pervertida.

Por outro lado, cidadãos precisam dispor da justiça pessoal, para que via de regra cumpram voluntária e permanentemente as exigências da justiça institucional e para obstaculizar um excesso do poder estatal. Em casos de injustiça relativa à vida, os cidadãos probos se indignam e protestam; se necessário, exercem até a de­sobediência civil (v. Cap. XIV.l): a justiça pessoal opõe-se a que o ordenamento jurídico descambe num "Estado baseado na ausência do direito".

Quem se revolta somente quando ele próprio é vítima de uma injustiça, permanece no grau preliminar de referência, "ego­ísta". Só quando se revolta com a injustiça contra outras pessoas possui a justiça propriamente dita, referida a outrem, altruísta. Mas quem a exerce apenas com amigos ou membros do próprio grupo, é justo em termos altruístas apenas num sentido fraco da expressão. Num sentido mais forte, é justo em termos altruístas aquele que se toma de indignação com a injustiça também contra pessoas intei­ramente estranhas. E quem considera uma injustiça cometida con­tra outros não menor do que uma cometida contra si mesmo ou seus amigos, este atinge a perfeição. Então ele não cometerá injus­tiça em nenhum caso, também não onde ele poderia tornar-se víti­ma de uma injustiça alheia. O modelo dessa postura é Sócrates, tal como ele aparece sobretudo no diálogo platônico Críton. A sua célebre máxima "É preferível sofrer injustiça a cometê-la" contra­diz de forma provocadora o éthos da aristocracia grega tradicional, pois ali o sofrimento da injustiça dizia apenas respeito aos escra-

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vos. Ao mesmo tempo a indignação contra a injustiça no mundo é relativizada, pois mais importante é a própria justiça, a justiça pes­soal, como parte indispensável da integridade moral.

Segundo o sofista Trasímaco, o justo em todos os lugares está em situação menos vantajosa do que o injusto (Platão, Repú­blica, I 343 d), pois ele careceria de riqueza, poder, até de reconhe­cimento público. Sócrates rejeita decididamente tal opinião. À per­gunta sobre a utilidade da justiça ele não responde que ela serve apenas "ao outro", mas que ela serve também ao próprio justo, pois somente homens justos vivem em regime de confiança recíproca; ademais, serve-lhes por preferirem sofrer injustiças a cometê-las, tanto por respeito a si mesmos quanto por respeito àqueles cuja opinião lhes importa. Em contrapartida, pessoas injustas não só vi­vem em discórdia com outras; escravas que são das suas cobiças conflitantes, elas também vivem em discórdia consigo mesmas. Sem amizade, sem confiança no mundo e sem respeito por si mes­mas, elas levam uma existência miserável, ao passo que só os jus­tos vivem uma vida integralmente digna de ser vivida (República, IX 575 e- 576 a).

4. Intermezzo: a justiça divina

A competência para questões de justiça divina concentra-se nas religiões e nos seus teólogos. O filósofo pode satisfazer-se com uma história intercultural. As suas origens estão no Oriente, na co­letânea de contos Mil e uma noites, e ela é recontada por Friedrich Dürrenmatt (Monstervortrag I Palestra do monstro, 1969, p. lls): "O profeta Maomé está sentado num sítio ermo em uma colina. No sopé da colina há uma fonte. Chega um cavaleiro. Enquanto ele dá de beber ao seu cavalo, uma bolsa repleta de moedas cai da sua sela. O cavaleiro se afasta, sem perceber a perda da bolsa. Chega um segundo cavaleiro que encontra a bolsa e se afasta com ela. Chega um terceiro cavaleiro e dá de beber ao seu cavalo na fonte. Entrementes, o primeiro cavaleiro percebeu a perda da bolsa e re­toma ao lugar. Crê que o terceiro cavaleiro lhe roubou as moedas, e os dois começam a altercar. O primeiro cavaleiro mata o terceiro,

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cai em si, ao não encontrar nenhuma bolsa com moedas. e se afasta sorrateiramente. Sentado na colina, o profeta está desesperado. 'Alá, exclama ele, o mundo é injusto. Um ladrão escapa impune­mente e um inocente é morto!' Alá, normalmente silente, lhe res­pond~: 'Quão tolo és! Nada entendes da minha justiça! O primeiro cavaleiro tinha roubado do pai do segundo cavaleiro o dinheiro que perdeu. O segundo tomou o que já lhe pertencia. O terceiro tinha violentado a mulher do primeiro. Matando o terceiro, o primeiro vingou a sua mulher'. Após, Alá silencia novamente. Depois de ter percebido a voz de Alá, o profeta entoa loas à sua justiça".

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III

CETICISMO CONTRA A JUSTIÇA

Dois elementos do conceito de justiça merecem especial atenção: (1) enquanto exigência suprema para o convívio humano e fundamento último da justificação de uma coletividade, a justiça reveste-se de um significado moral e simultaneamente universal. (2) Sua medida não consiste em um donativo unilateral, mesmo no caso de ela servir ao bem-estar da ooletividade. Mas como a reci­procidade integra o cerne da justiça, a correspondente regra ou ins­tituição não devem beneficiar apenas a coletividade, mas ser van­tajosas para cada indivíduo. Ambos os elementos, porém, enfrenta­ram objeções (cf. Hoffe, Politische Gerechtigkeit I Justiça política. 1987, Parte 1): além do relativismo em matéria de ética (jurídica) (cf. Cap. I. 1), também o positivismo jurídico e a teoria sociológica de sistemas põem em dúvfda a obrigatoriedade universal. E o uti­litarismo se volta contra a relativização do bem-estar coletivo.

1. O positivismo jurídico

Numa forma modesta o positivismo jurídico ainda não le­vanta nenhuma objeção contra o ponto de vista da justiça. Pretende tão-somente estabelecer a ciência jurídica como uma ciência inde­pendente, máxime da política e da filosofia; distingue, do ponto de vista conceitual, o direito positivamente vigente óo direito requeri­do pela moral. Crítico com relação à justiça chega a ser somente o positivismo jurídico radical, que pretende determinar o direito po­sitivo na sua íntegra, sem nenhum elemento de moral e justiça. A ele um modesto moralismo jurídico opõe a seguinte pergunta: "Se

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colocarmos de lado a justiça, o que serão os impérios senão gran­des bandos de ladrões?" (Santo Agostinho, Cidade de Deus, IV 4). O caminho rumo a um positivismo jurídico radical foi preparado pela afirmação de Thomas Hobbes, filósofo do direito e do Estado (1588-1679): "Não a verdade, mas uma autoridade faz uma lei" (Leviatã, cap. 26, versão latina). Ela favorece a teoria dos impera­tivos, segundo a qual normas jurídicas são ordens que emanam de um poder superior, ameaçam com malefícios a sua inobservância e são por isso costumeiramente obedecidas. Visto nesse "positivismo ingênuo" o direito aparecer como ordenamento de poder não­dotado de sanções, ele, em termos meramente conceituais, não se distingue do poder criminoso organizado ("grandes bandos de la­drões"). Diante disso, o filósofo austríaco do direito e constitucio­nalista Hans Kelsen (1881-1973) e o filósofo britânico do direito Herbert L. A. Hart (1907 -1993) desenvolveram um "positivismo refletido". De acordo com Kelsen, o direito consiste em uma hie­rarquia de autorizações, abonada, em última instância, por uma norma fundamental. E, segundo Hart, o direito consiste de um cor­po de regras que encontra o reconhecimento empírico das pessoas a que dizem respeito. Mas mesmo desse modo o ordenamento jurídi­co ainda não pode ser distinguido da criminalidade organizada.

Demasiado próximo da violência nua e crua, o direito, na teoria dos imperativos, é um dever-ser efetuado mediante a comi­nação de um malefício. Em Kelsen, o direito se transforma, com maior adequação à sua natureza, em dever autorizado, sendo que a ponta da autorização, a norma fundamental, permanece uma pro­posta formal de emergência. E em Hart, o direito assenta num que­rer livre que deixa em aberto duas perguntas: por um lado, por que devemos reconhecer as restrições da liberdade ínsitas no direito? Por outro, por que o direito, embora construído a partir do reco­nhecimento, contém um momento de coação, até de coação penal? As duas perguntas somente podem ser respondidas por um ele­mento de justiça, pela justiça definidora do direito, isto é, que a co­ação social, denominada "direito", em última instância não benefi­cia a organização criminosa, mas os implicados e a cada um deles individualmente. Assim, para dar um exemplo, o direito penal ser-

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ve à proteção dos bens jurídicos da vida e do corpo, da propriedade e da honra ("boa reputação"), também da saúde pública, da prote­ção de documentos, pesos e medidas. Mesmo questões tão impor­tantes de punibilidade como a imputabilidade, a culpa e regras pro­cedim~ntais rigorosas estão, por sua vez, comprometidas com a idéia da justiça. Tais elementos de justiça definidora do direito formam, em conjunto, uma fundamental "justiça jusconstituinte". Sem eles - e aqui devemos concordar com Santo Agostinho - uma ordem jurídica e estatal não seria nada mais do que um grande bando de ladrões. Um ordenamento jurídico não pode ser inteira­mente injusto e distinguir-se, apesar disso, conceitualmente do crime organizado. Com justeza, embora também de forma um tanto vaga, Gustav Radbruch, jurista e ex-ministro da Justiça, afirma, na obra Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht I Injustiça legal e direito supralegal. 1946, p. 89), que "nem [se pode] definir o direito, também o direito positivo, diferentemente [ ... ] a não ser como uma ordem e um estatuto que, pelo seu sentido, se destina a servir a justiça" (cf. também cap. IV).

2. O ceticismo da teoria sistêmica

Niklas Luhmann, sociólogo e representante da teoria sis­têmica ( 1927 -1998), defende, no tratado da fase inicial da sua obra Legitimação pelo procedimento (1969, p. 28s), um positivismo ju­rídico orientado segundo a história social e ao mesmo tempo tri­butário da teoria da modernidade. Na sua opinião, o direito nem sempre, mas significativamente na Idade Moderna, esteve livre de elementos suprapositivos, tendo dessarte sido capacitado a assumir uma medida de transformação antes desconhecida. Mas à idéia de uma "institucionalização de alterações arbitrárias do direito" subjaz uma tríplice ilusão de perspectiva. Em primeiro lugar, Luhmann ignora que já na Antiguidade, nomeadamente a democracia ateni­ense conheceu um grau elevado de transformações. Em segundo lugar, passa-lhe despercebida a justiça definidora do direito, embo­ra ele mesmo vincule a vigência do direito ao consenso, por sua vez mais esperável em uma vantagem distributiva. E last but not

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least, ele subestima o fato de justamente a evolução moderna do di­reito caracterizar-se por princípios de justiça. A capacidade de transformação não é genericamente permitida ao direito, mas tão­só no quadro de orientações prévias muito abrangentes acerca de justiça, assim, por exemplo, quanto aos direitos de liberdade, à so­berania popular e à divisão dos poderes, posteriormente ao Estado social e, mais recentemente, à proteção ambiental.

Uma década mais tarde Luhmann (Ausdifferenzierung des Rechts/Diferenciação do direito. 1981, cap. 15) pretende dispensar apenas o conceito tradicional de justiça e substituí-lo por um con­ceito sistêmico: para que o direito ainda possa continuar capaz de funcionamento sob as condições de uma sociedade excessivamente complexificada, o sistema jurídico moderno deveria aumentar a sua própria complexidade, especialmente a sua capacidade à diferenci­ação interna e ao processamento de informações. A justiça seria agora aquela "complexidade adequada" que refletiria a complexi­dade da sociedade em causa no âmbito do direito, na medida em que isso seria possível ao direito, em conformidade com as suas condições internas de funcionamento.

Essa redeterminação segue este princípio: deve-se reinter­pretar o que não se quer reconhecer, mas também não se pode ne­gar. Pois no quadro dos três graus de avaliação (v. Cap. 11.2) a complexidade adequada, enquanto obrigatoriedade funcional, per­tence apenas ao primeiro grau, não cumprindo, por conseguinte, nem ao menos a condição conceitual mínima de justiça, ou seja, a normatividade de terceiro grau. Além disso, ela nem alcança a es­pecificidade do direito, pois todos os sistemas parciais da socieda­de devem empenhar-se pela complexidade adequada. Em vez de fazer justiça ao conceito de justiça e às peculiaridades de um orde­namento jurídico, Luhmann defende "uma teoria da justiça sem justiça".

Por fim, na conferência Paradigm lost I Paradigma perdi­do ( 1988), ele opõe à moral um argumento que pelo seu sentido também atinge a justiça: visto a sociedade moderna consistir de sistemas parciais relativamente autônomos e cada sistema parcial, como a economia, a ciência e o direito, obedecer a uma normativi-

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dade peculiar, específica à sua função, a normatividade inespecífi­ca à sua função, a moral, seria invalidada. Incapaz de integrar a so­ciedade nas suas partes ou na sua totalidade, a moral ter-se-ia trans­formado em paradigma perdido. Mas contra isso se pode argu­mentai' que a "moral", enquanto normatividade inespecífica à sua função, pode ser utilizada de modo funcionalmente específico e que a justiça política, para citar um exemplo, pode ser utilizada com vistas à especificidade do direito e do Estado, definindo e normatizando o direito.

3. O utilitarismo: uma alternativa?

Desde os seus primórdios, o utilitarismo, como ética do bem comum a ser maximizado, vive em conflito com a justiça, pois ele não somente admite, mas até exige a violação de pretensões justificadas, mesmo dos direitos fundamentais e humanos, à medi­da que isso serve ao bem coletivo. Um dos seus representantes clássicos, John Stuart Mill (1806-1873 ), tentou reconciliar o utilita­rismo com a justiça (Utilitarismo, cap. 5), mas esse tentame é mal­sucedido. Por um lado, Mill distingue três graus: (1) critérios pri­maciais de justiça de (2) regras de ação e (3) casos individuais. Mas ele submete apenas o primeiro grau ao princípio utilitarista, sem conceder que, para os dois outros graus, valem critérios com caráter de justiça - a igualdade para o grau 2 e a imparcialidade para o grau 3. Com isso, a justiça é dotada de um campo de ativi­dades mais amplo do que Mill reconhece. Por outro lado, Mill so­brestima o alcance da sua justificativa utilitarista de critérios pri­maciais de justiça. Assim, por exemplo, quanto à justiça penal, im­portante para ele, Mill apenas mostra que a pena criminal também pode ser justificada a partir do bem comum da coletividade, mas não cogita a possibilidade de uma justificação alternativa: a da re­tribuição, à qual, do ponto de vista moral, até caberia a prioridade (cf. cap. X). Mill tampouco se pergunta se os dois elementos fun­damentais das coletividades modernas - a soberania popular e os direitos humanos - possuem um grau hierárquico de justiça.

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Genericamente se pode aduzir contra o utilitarismo que, no concernente à exigência de maximizar o bem comum, ele esquece a questão de como o bem comum em grau máximo deveria ser "distribuído" entre os envolvidos. Indiferente diante dessa questão, ele admite até uma sociedade escravagista e uma sociedade de castas, contanto que elas gerem o máximo bem comum para a co­letividade. Com razão, Marx e Engels acusam o utilitarismo de praticar uma "exploitation de l'homme par l'homme", uma explo­ração do homem pelo homem (A ideologia alemã, Cap. "Moral, comércio, teoria da exploração"). Além disso, o utilitarismo pres­supõe uma medida excessivamente alta de altruísmo, pois cada in­divíduo deve estar disposto a subordinar o seu próprio bem-estar ao da coletividade. Nisso reside um "apequenamento moral do próprio indivíduo", pois ele abdica da pretensão de ser uma pessoa com di­reitos inalienáveis, que não podem ser violados nem pela busca do maior bem-estar da coletividade. Em vez disso, são reconhecidas apenas "pessoas mínimas", pessoas sem objetivos supremos e sem um determinado caráter. O erro fundamental do utilitarismo cifra­se nessa confusão de imparcialidade e impessoalidade, baseada em uma falta de separação de amor aos homens e senso da justiça.

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IV

, JUSTIÇA POLITICA

OU DIREITO NATURAL?

1. A idéia de um direito natural

Desde que Antígona, invocando as "leis não-escritas dos deuses, as imutáveis, que não são de ontem ou de hoje" (Sófocles. Antígona, versos 471-473), ignorou uma ordem de Creonte, rei de Tebas, e sepultou o seu irmão Polínice, arriscando a sua própria vida, a evolução do direito ocidental vive de um impulso crítico. Contra a arrogância do poder que crê ter a faculdade de elevar prescrições quaisquer à categoria do direito vigente, defende-se a idéia de uma obrigatoriedade subtraída a toda e qualquer autorida­de humana, cujo reconhecimento cada coletividade deve aos seus cidadãos e que permite a resistência, no caso de grosseira violação. (Não podemos, no entanto, esquecer que o próprio Creonte não age movido pela pura arrogância do poder). Os gregos denominam o conjunto de· tais obrigatoriedades jurídicas, pré- e suprapositiva­mente válidas, como o "reto ou justo pela natureza" (physei [ <j>ÚaE L] I physikon díkaion [<j>uaLKov õLK!nov ]). O latim fala em "direito natural" (ius naturae) ou, antes, em restrição do conceito de lei em um termo primacialmente naturalista, isto é, a "lei natural" (lex naturae). Sob a influência do cristianismo, também se fala do "di­reito divino" (ius divinum) e de uma "lei eterna" (lex aeterna); desde a Ilustração européia também é usada a expressão "direito racional".

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Se o direito natural se fundamenta, em última análise, numa ordem mundial instaurada por Deus ("direito natural cos­mológico"), na essência do ser humano ("direito natural antropoló­gico") ou ainda na razão (prática) ("direito natural racional" ou "di­reito racional"), e se a parte contrária, o direito positivo, se ali­menta de costumes jurídicos ou prejulgados ou mais de códigos le­gais, eis uma questão de segunda ordem. Sem prejuízo de tais dife­renças, o pensamento jurídico europeu vive, durante séculos, da justaposição e contraposição de direito natural e direito positivo. Os grandes pensadores jusnaturalistas ou são juristas, que se abrem à filosofia do direito, como Hugo Grócio (1583-1645), Samuel Pu­fendorf (1632-1694) e Christian Thomasius (1655-1728), ou, in­versamente, são filósofos que se ocupam intensamente com o di­reito, como John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Fried­rich Hegel (1770-1831 ). Com o radicalismo e a originalidade pe­culiares a toda e qualquer filosofia, eles buscam princípios que, conquanto tenham validade sem instituição positiva do direito, possuem um primado sobre as leis vigentes e o poder estatal que as implementa. Inspiram, assim, as revoluções norte-americana e francesa e contribuem para a figura moderna da coletividade, para o Estado democrático e constitucional de direito, caracterizado por sua neutralidade em matéria religiosa, sua separação de moral pes­soal e justiça política, pela divisão dos poderes, pela soberania po­pular e pelos direitos humanos transformados em direitos funda­mentais. O direito natural da Idade Moderna imprime também um cunho duradouro em códigos de leis europeus, como, e.g., o All­gemeines Landrecht für die preussischen Staaten I Direito comum da Prússia (1794), o Code Civil I Código Civil francês (1804) e o Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch I Código Civil Geral da Áustria (1811).

Mas na primeira metade do século XIX a tradição do di­reito natural sofre uma ruptura. Somente as experiências com Esta­dos claramente baseados na ausência do direito, especialmente com o Terceiro Reich, conferem-lhe novamente um peso jurídico e po­lítico, visível, e.g., na Carta Atlântica de 1941, na Declaração Uni-

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versal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, e em al­gumas sentenças do Superior Tribunal Federal Alemão e do Tribu­nal Constitucional Federal da República Federal da Alemanha. Embora o direito natural seja levado em consideração, mesmo no pensainento marxista de um Ernst Bloch (1895-1977) e na filosofia analítica do direito, de Hart, "o eterno retorno do positivismo jurí­dico" não tarda. A ele opõe-se, porém, a teoria contratualista mais recente, inspirada no pensamento moderno de direito natural. Mas como entrementes o jusnaturalismo é considerado obsoleto, prefe­re-se falar em "teorias da justiça" (v. Cap. VIII2-3).

2. Objeções

Muitas objeções ao direito natural fundamentam-se ou em um mal-entendido ou referem-se a seguidores que não mais atin­gem o nível dos grandes pensadores jusnaturalistas.

Consoante uma primeira objeção, o programa jusnatura­lista careceria de clareza, pois seu primeiro elemento conceitual se­ria plurívoco. Com efeito, o conceito de "natureza" é, por um lado, em si plurívoco, como a maioria dos conceitos fundamentais de filosofia; por outro lado, o contexto restringe, sem sombra de dúvi­da, essa plurivocidade. Aqui a expressão "natureza" não é o oposto de "história" ou "cultura", mas daquilo que as pessoas acordam entre si, seja na forma de costumes jurídicos ou de estatuto formal. Como conceito oposto ao direito positivo, criado pelo homem, o direito natural refere-se a uma instância pré- e suprapositiva, mais especificamente moral.

Em segundo lugar, o direito natural é criticado, porque lhe faltaram todos os três elementos conceituais indispensáveis ao se­gundo elemento conceitual, isto é, ao direito: (1) enquanto exigên­cia moral, ele não teria nenhum caráter positivo de coação. (2) Como ele consistiria essencialmente apenas de princípios jurídicos, definiria, quando muito, em casos especiais, o que exatamente se poderia exigir das outras pessoas ou o que lhes seria devido. (3) A ausência de caráter de coação faria desaparecer também a "figura histórico-política" da coação, o Estado dotado do poder de coação;

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em virtude disso, o direito natural seria um direito inerme. Mas a deficiência- tríplice - somente existe para quem compreende de modo equívoco o direito natural como direito positivo, embora ele seja entendido, clara e decididamente, como instância não-positiva.

De acordo com a terceira objeção, a do relativismo ético, princípios do direito natural deveriam ser iguais entre todos os po­vos e em todas as épocas. Mas, na verdade, diz-se encontrarmos princípios jurídicos distintos e mesmo contraditórios. Essa objeção é desautorizada, tanto pela realidade social -pelo variegado leque de aspectos interculturais comuns (v. Cap. I. 1) - quanto por um problema de método - pela falácia do ser-dever-ser: mesmo onde os princípios se distinguem, não podemos desse fato, isto é, de um "ser", inferir um "dever-ser".

3. Um direito natural crítico

Quem leva a sério as objeções mencionadas defende um direito natural crítico, que antes de tudo não consiste de nada mais senão de uma postura moral-crítica contra o direito e o Estado. Mas com essa definição ainda continua indeterminado o direito natural crítico. No quadro de uma crítica suprapositiva do direito e do Es­tado, desenvolve-se uma argumentação especificamente jusnatura­lista só quando é invocada a "natureza" como autoridade normati­zante. Isso pode dar-se de três maneiras distintas: pelas vias des­critiva, teleológica e moral.

No sentido descritivo, a natureza refere-se à totalidade da­queles pressupostos últimos, não mais questionáveis quanto às premissas do agir humano, não determinadas nem por ações e I omissões anteriores, nem pelo atual quadro institucional e cultural. "Natureza" é aqui sinônimo da quintessência dos aspectos da exis-tência humana ("direito natural antropológico") e do mundo ("di-reito natural cosmológico"). Subtraídos à disponibilidade pessoal e social, eles definem a margem de ação na qual o ser humano pode atuar, seja como indivíduo, seja como grupo ou espécie.

No caso do correspondente direito natural, devemos consi­derar por que a natureza deveria possuir uma força jurídica norma-

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tizadora, embora ela seja ou um dado preexistente imutável ou algo diante do qual a pessoa pode tomar posição, e que ela pode, segun­do os seus interesses, reconhecer ou tentar transformar. Em ambos os casos, a natureza possui apenas um sentido fático, não normati­vo. Elà é um "ser" do qual podemos derivar normas suprapositivas somente ao preço de uma falácia lógica, da assim chamada falácia ser-dever-ser.

· Em segundo lugar, no quadro dos elementos subtraídos a toda e qualquer disponibilidade humana, natureza significa algo que cresce, não estando, por conseguinte, imediatamente presente em plena realidade, mas no início apenas como virtualidade: como disposição e germe. O correspondente "pensamento jusnaturalista teleológico" remonta sobretudo a Aristóteles e desenvolve, a partir dele, uma significativa história da sua influência. Aqui a natureza é compreendida como um processo de crescimento e desdobramento, cujo móvel está no que cresce, e que chega a termo onde as possi­bilidades dispostas no germe originário alcançam a evolução plena, a realização ótima da essência. Assim, separação clara entre fatos naturais, o ser, e normas ideais, o dever-ser, passa despercebida. Se Aristóteles afirma que o ser humano é por natureza um ser político (zôon politikón) [(wov lTOÀL nKÓv ], nem todas as premissas dessa afirmação são enunciados ontológicos, no sentido rigoroso do ter­mo, nem a conclusão final formula uma pretensão de dever-ser. Em vez disso, o estagirita diz que em meio a relações políticas o ser humano encontraria as melhores oportunidades para uma vida boa e plena (cf. Cap. VIII 1).

O terceiro conceito, de natureza moral, subjaz ao jusnatu­ralismo racionalista da Idade Moderna. Quem o emprega de modo mais claro, quanto ao método, é Immanuel Kant. Enquanto os sé­culos XVII e XVIII compreendem genericamente por direito natu­ral o equivalente não-empírico da ciência empírica do Estado, Kant põe aqui de lado todas as hipóteses religiosas e teológicas. Para ele, o direito natural é uma disciplina isenta da revelação divina, fun­dada tão-somente na razão. Enquanto parte da filosofia prática e paripassu propedêutica da ciência do direito positivo, o direito na­tural, no tocante ao seu objeto, pertence às duas faculdades, tanto à

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do direito quanto à da filosofia. Da esfera prática da liberdade. Kant separa rigorosamente o âmbito teórico das leis da natureza e correlaciona o direito natural com o âmbito da .liberdade. Em vez de direito natural, seria melhor falar em direito da liberdade, pois ele não tem nada a ver com a "natureza natural", quintessência de todos os entes. Também não referido à essência do ser humano, o direito natural, enquanto direito racional rigoroso, é formado pela totalidade de todos os princípios pré-empíricos e simultaneamente morais do direito.

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(llustr. 4: Ambrogio Lorenzclli, Alegoria do bom regime da paz e da justiça. 1338/40. Siena. Palazzo Pubblico. Recorte)

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Em Kant, o pensamento jusnaturalista se conscientiza de que a natureza como autoridade normatizadora não tem nada a ver com a natureza empiricamente pesquisável, isto é, a natureza natu­ral. l\1esmo se, nos princípios mais concretos, os conhecimentos empíricos desempenham um papel, eles não servem à justificação moral, mas, sim, à especificação de um princípio fundamental de mora.! jurídica, independente de toda e qualquer experiência. Como a natureza do direito natural não tem nada a ver com a natureza empiricamente pesquisável, prefere-se abandonar essa expressão, para evitar mal-entendidos. O direito natural, que evita claramente a falácia ser-dever-ser, corresponde ao ponto de vista moral diante do direito e do Estado. Por conseguinte, ele não é apenas aparenta­do com a causa da justiça política - e muito menos ainda é concor­rente dela. Pelo contrário, ambos coincidem.

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JUSTIÇA PROCEDIMENTAL

Decisões juridicamente vinculantes carecem de procedi­mentos claros, aos quais subjazem princípios de justiça que, pelo assim dizer, em todas as culturas pertencem inquestionavelmente ao patrimônio de justiça da humanidade. Visto não se revestirem de importância somente em um ordenamento jurídico e estatal, eles fazem parte de uma "justiça natural", pré-política. Causa espécie que não desempenhem nenhum papel digno de menção na tradição jusnaturalista.

Em procedimentos, não importam primacialmente os con­teúdos ou resultados, mas as competências, os trâmites e as forma­lidades que, por sua vez, não têm seu fim em si mesmas. Como servem a conteúdos e resultados e se justificam somente a partir disso, logram criar apenas sob duas premissas aquela disposição genérica na qual assentam Estados democráticos de direito, a saber, aceitar decisões legislativas ainda indeterminadas quanto a conteú­do: por um lado, os procedimentos devem ser abertos às necessida­des e aos interesses dos implicados, ademais capazes de-aprender e atender também aos princípios da justiça procedimental. Por outro, devem vincular-se a orientações prévias que, por sua vez, são jus­tas, isto é, que ao menos se coadunam com a justiça substancial.

Dentre as três espécies de justiça procedimental - a forma pura, a forma imperfeita e a forma perfeita - a justiça pro<;edimen­tal imperfeita, predominante nas esferas do direito e do Estado, não provê uma legitimação originária, mas, na melhor das hipóteses, uma legitimação subsidiária. Como aqui nem sequer pode ser asse-

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gurada a atribuição-guia de toda a justiça procedimental, isto é, imparcialidade, as teorias procedimentais da democracia, mais r, centemente em voga (e.g., Habermas. Faktizitiit und Geltung I F, ticidade e validade. 1992, cap. VII s), não têm muita força pers1 asória. E mais: todas as teorias do direito, do Estado e da polític que confiam integralmente nos procedimentos, têm uma caract rística positivista que ao mesmo tempo ameaça a justiça.

Só no primeiro tipo, na justiça procedimental pura, os pr cedimentos oferecem mais do que uma legitimação apenas subsic ária, pois aqui a justiça é ínsita ao próprio procedimento, ao pas: que não se pode falar de uma medida independente de procec mentos, quando se objetiva um resultado justo. Assim que se apli, um procedimento honesto, que trata de maneira igual todos os ir plicados, como no jogo de sorte o lance de dados ou o sorteio, o em votações, a contagem dos votos, assim os resultados são justc não apenas subsidiariamente, mas até originariamente.

À diferença dessa justiça no procedimento, as duas outr espécies são justiça por meio de procedimento. Na justiça proc dimental peifeita existe um critério independente de aferição do r sultado justo e um procedimento para chegar a esse resultado cc segurança aproximativa. A divisão de um bolo, para citar u exemplo, produz um resultado justo, se cada pessoa recebe um ç daço de igual tamanho, o que se pode realizar segundo o seguir princípio: quem reparte, recebe o último pedaço, pois nesse ca ele cuidará, para todos os pedaços, na medida do possível, terem mesmo tamanho.

Também na justiça procedimental imperfeita existe u critério independente de aferição do resultado justo. Para citar L

exemplo: processos penais são justos, quando punem, por um Iac todos os culpados, mas apenas os culpados, e quando, além dis! dimensionam o grau da pena exclusivamente em conformida com a culpa. Mas tudo indica não existir um procedimento que e clui erros judiciários e impede tanto a punição de inocentes quar também a não-punição de culpados. E, em último lugar, tamb~ não se exclui uma punição falha, na qual uma pessoa não é puni

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segundo a extensão da sua culpa, mas de modo demasiadc ou excessivamente rigoroso.

Ainda que a imparcialidade não possa ser ass existem, contudo, princípios que a promovem. Eles se ach< cialmente diferenciados no arquétipo de procedimentos i tos, no processo judicial (cf. Hoffmann. VeifahrensgerecJ Justiça procedimental. 1992). No Ocidente, eles remon qüentemente a fontes gregas, em parte com precursores e~ babilônicos. Quanto ao mérito, vigem muitas vezes há mt tempo e são encontradiços em muitas outras culturas. princípios interculturalmente reconhecidos encontra-se, princípio da oitiva legal: "Audiatur et altera pars" ("ouça bém a outra parte"). Nesse sentido e com vistas à imparc um ordenamento dos vizires do antigo Egito, da 18a din< torno de 1500, postula: "Olha para quem conheces co quem não conheces e para quem te é próximo como para q distante da tua casa", ou "Não passes ao largo de nenhurr sem teres ouvido a sua fala" (segundo Wagner. Der Ric juiz. 1959, p. 33). E um provérbio alemão afirma: "A fal homem é a fala de nenhum homem: é dever de justiça o bos". Para que cada parte possa expor o seu ponto de vist< sua exposição dos fatos quanto a avaliação jurídica dos um litígio somente pode ser decidido. depois de ambas as 1 rem se explicado.

Um outro princípio reza: "Nemo est iudex in c<: ("ninguém é juiz em causa própria"). E para preservar a i !idade, um juiz não pode exercer a sua função. se um assw volver direta ou indiretamente. Esse princípio é reforçad rei to à recusa por parcialidade. No processo civil assist' parte o direito de recusar um magistrado, um escrivão o quando é lícito temer que ele não enfrenta a causa sem id concebidas (assim no Código de Processo Civil alemão n ss. e 406). E no processo penal cabe aos acusados, à pror ao querelante o mesmo direito contra juízes, escabinos, jur crivães e peritos (Código de Processo Penal. §§ 24 ss.).

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Além disso, deve-se cuidar para que seja respeitada a im­parcialidade na relação entre as partes e que, na medida do possí­vel, todos os pontos de vista relevantes para a decisão sejam consi­derados, pois nada contradiz mais a justiça procedimental do que posições preconcebidas e unilateralidade. Integram também a justi­ça procedimental a independência do juiz em questões atinentes à causa e em termos pessoais, o caráter público do processo, a hie­rarquia das instâncias (a possibilidade de apelação e recurso), e ainda os prazos processuais, pois, sem a segurança jurídica, à qual tudo isso serve, não existe nenhuma justiça real.

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TRES PRINCIPIOS

A coletânea e, ao mesmo tempo, a legislação ocidental mais importante, o Corpus iuris civilis, uma "coleção de direito ci­vil (não-canônico)", organizada por Justiniano, imperador romano do Oriente (527-565), resume todas as exigências do direito em três princípios, em lugar proeminente, no início dos digestos. Du­rante muitos séculos, eles foram atribuídos ao jurista romano Do­mício Ulpiano (ca. 170-228). Em estilo claro e sintetizado de modo aforístico, como que talhado em pedra, eles declaram: "As prescri­ções do direito são estas: viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que é seu" (luris praecepta sunt haec: honeste vi­vere, neminem laedere, suum cuique tribuere). Traduzidos em im­perativos, eles se guindam à condição dos princípios mais famosos do direito ocidental, a três princípios categóricos do direito. Tanto para uma pessoa privada quanto para o titular de um cargo, eles de­finem necessária e, ao mesmo tempo, suficientemente a justiça ou probidade pessoal.

De acordo com o entendimento convencional, os três prin­cípios afirmam essencialmente a mesma coisa. O primeiro, "vive honestamente" (honeste vive), ordena uma probidade que consiste, em sua determinação negativa, na proibição "não leses ninguém" (neminem laede) e, positivamente, no imperativo "dá a cada um o que é seu" (suum cuique tribue). Porém, como já o fez Kant (Rechtslehre I Doutrina do direito, "Divisão universal dos deveres jurídicos"), pode-se dar a cada princípio um significado especial e simultaneamente mais fundamentador.

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1. "Vive honestamente"

No primeiro princípio, "vive honestamente", não está em jogo aquela honra no sentido extrajurídico, devida a realizações extraordinárias e que se mostra como renome eminente, como re­putação acompanhada de honras e cargos honoríficos. Na palavra latina honestas a honra se vincula a dignidade, virtude e eticidade. No direito tudo depende desse seu sentido modesto, negativo, da integridade jurídica da qual é merecedora toda pessoa que, em ter­mos jurídicos, não incorre em nenhuma culpa. O primeiro impera­tivo da justiça pessoal exige não cometer violações do direito e aperfeiçoar a livre omissão para uma postura firme, para um traço distintivo do caráter. Essa justiça pessoal cifra-se numa obediência jurídica consciente e voluntária, na probidade, enquanto concor­dância com o direito, e na integridade jurídica.

Esse entendimento pode ser complementado ainda com Kant pela exigência e pelo dever à auto-afirmação ou ao auto­reconhecimento, em termos de moral jurídica, de "afirmar na rela­ção com outros o seu valor como homem" (Rechtslehre I Doutrina do direito, "Divisão da doutrina do direito", A). Ela corresponde ao imperativo categórico: "Não te transformes em mero meio dos ou­tros, mas sê simultaneamente um fim para eles". No sentido fun­damental, sem o qual o direito nem poderia ser constituído, so­mente é probo quem não se deixa degradar na sua dignidade a mero meio: a um objeto do qual outros podem dispor e manipular a bel-prazer. O probo não só não prejudica outros, mas também não permite que o prejudiquem, na medida em que se recusa a todo e qualquer rebaixamento. Ele não admite o "pequeno rebaixamento", que consiste em permitir ser enganado ou logrado nos seus direitos a olhos vistos, e, sobretudo, não consente o "grande rebaixamen­to", o qual se curva à escravidão ou à servidão.

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2. "Não prejudiques ninguém"

O segundo princípio da justiça - "não prejudiques nin­guém" (neminem laede) - diz respeito, não apenas à violação da integridade física, mas a qualquer violação do direito. Nesse senti­do, ele ressalta efetivamente apenas a dimensão negativa da inte­gridade jurídica: proíbe lesar alguém. Não obstante, é introduzido um novo elemento jurídico. Com efeito, a proibição pressupõe já terem os outros certos direitos que se devem respeitar ou que se podem violar. Como a proibição é formulada sem nenhuma restri­ção, os direitos por ela tutelados possuem uma validade igualmente irrestrita. Por conseguinte, tacitamente é afirmado no segundo princípio que cada pessoa possui direitos, em parte inatos, em parte adquiridos, que todos devem respeitar sem exceção e incondicio­nalmente. O auto-reconhecimento jurídico exigido no primeiro princípio é, portanto, complementado no segundo pelo hetero­reconhecimento jurídico. E sem ele - nos lembra o primeiro prin­cípio - perdemos a nossa integridade jurídica.

Como, no entanto, devemos comportar-nos, se as relações sociais somente são possíveis a expensas do direito, isto é, e.g., apenas na forma de opressão e exploração? A resposta do segundo princípio é de provocante clareza: vale, sem exceção, como impe­rativo categórico do direito aquele de não lesar ninguém, mesmo se, conforme Kant enfatiza com razão, fosse mister "afastar-se nes­se caso de todas as relações com outras pessoas e evitar qualquer convívio social". Assim seres morais somente dispõem da seguinte alternativa: ou estabelecem entre eles uma relação que respeita os direitos, em duas palavras, uma relação jurídica, ou então devem abster-se de todas as relações. De qualquer modo, está categorica­mente proibida uma sociedade fundamentada na opressão, explora­ção e em outras violações de direitos humanos.

3. "Assegura a cada um o que é seu"

As origens do terceiro princípio podem ser rastreadas até ao poeta grego Simônides (556-46817 a.C.), passando pela Repú-

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blica de Platão (I 331 e ss.). Mas quase sempre nos reportamos a Cícero (106-43 a.C.; De officiis 1, § 15; De legibus 1, § 19) ou à citada passagem dos digestos. A compreensão adequada é matéria de controvérsias. Em Platão um cidadão probo explica a exigência de dar "a cada um o devido" como um mandamento de fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos. Mas o próprio Platão oferece uma outra interpretação: que a cada parte da alma e a cada esta­menta da sociedade impende cumprir a tarefa que lhes é imposta pela totalidade da sociedade (v. Cap. I. 3).

Na tradução habitual "dá a cada um o que é seu" (suum cuique tribue), o terceiro princípio se afigura disparatado, pois de­vem dar-se a uma pessoa os direitos que ela já possui, de acordo com o segundo princípio. Por isso, faz sentido um outro entendi­mento: que os direitos que já se tem sejam assegurados; à conces­são dos direitos segue-se a sua garantia. Porém, direitos não se vê­em ameaçados apenas por um indivíduo, mas pela totalidade de to­das as outras pessoas. Por essa razão, a garantia não deve ser assu­mida individualmente, mas apenas em conjunto, não em caráter privado, mas público. É verdade que o indivíduo pode associar-se à comunidade pública em pauta, a um Estado, ou recusar essa asso­ciação. Diante de tal alternativa, o terceiro princípio da justiça exi­ge aderir a uma comunidade jurídica ou, caso ela ainda não exista, fundá-la originariamente, pois, em face da limitação espacial da terra, a sociedade com outras pessoas é inevitável, e, em virtude da proibição da injustiça, a sociedade inevitável deve ser configurada de forma jurídica.

No concerto dos três princípios, a máxima socrática - "é preferível sofrer injustiça a cometê-la" -é dialeticamente superada, pois a sua segunda parte, ou seja, a proibição absoluta da injustiça, é preservada, ao passo que a primeira parte, a preferência por so­frer uma injustiça, se torna supérflua, uma vez que uma comunida­de jurídica em princípio não comete injustiças contra si mesma, nem tolera injustiças alheias. Por fim, a exigência do auto­reconhecimento, no primeiro, e do hetero-reconhecimento, no se­gundo princípio, é seguida, no terceiro princípio da justiça, pelo imperativo de um reconhecimento assegurado reciprocamente e, ao

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mesmo tempo, de público, o que se dá na forma de Estado. Visto a determinação imperativa ter validade irrestrita, ela não diz respeito somente aos indivíduos e grupos, mas também aos Estados. Por isso, o terceiro princípio da justiça exige instaurar um estado de di­reito não apenas "nacional", mas também inter- e transnacional: uma república federativa mundial (v. Cap. XIII.l).

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VII

, O JUDICIARIO

1. Princípios de justiça do Judiciário

No termo "Judiciário", denominação do sistema judicial, ressoa ainda a tarefa historicamente primacial e até hoje impres­cindível da justiça: fazer justiça a alguém significa, no direito civil, ajudá-lo a obter o seu direito, quer dizer, decidir sobre pretensões de direito e suas correspondentes obrigações; e no direito penal, por um lado, tem o sentido de punir apenas os culpados, mas decla­rar inocentes os que não têm culpa e, por outro lado, determinar a pena de acordo com a gravidade da culpa. Em ambos os casos, de­verá prevalecer a objetividade, para desmentir o terrível adágio "Em alto mar e perante o tribunal estamos nas mãos de Deus". Em vez disso, o Judiciário deve fazer para todos o que Hamurabi, o "rei da justiça", promete aos fracos, às viúvas e aos órfãos: os juí­zes devem compreender-se como o direito animado e facultar sem distinção a cada pessoa a obtenção do seu direito.

O sistema judicial representa uma inovação de justiça de importância histórica verdadeiramente universal. Como Ésquilo mostra exemplarmente na O réstia, o sistema judicial supera o du­plo "juizado" privado: a opinião privada sobre o direito e a sua consecução privada, juntamente com a conseqüência inevitável dela, ou seja, a expansão generalizada e incontrolável da violência. Para tal fim, as duas formas fundamentais da justiça devem con­vergir. A justiça política de uma coletividade institui o sistema ju­dicial (como superação da justiça privada, a sua denominação mais

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precisa é juizado público ou justiça pública); e a justiça pessoal dos juízes empenha-se por sentenças imparciais.

À imparcialidade servem os princípios mencionados a pro­pósito da justiça procedimental imperfeita. A proibição de julgar em causa própria e outras "regras primaciais de imparcialidade ju­dicial" devem ajudar a efetivar o que o provérbio "fiat iustitia et pereat mundus" (faça-se a justiça, ainda que o mundo pereça) ori­ginalmente pretende dizer, pois ele não significa o fanatismo que, por causa da justiça, até aceita o fim do mundo. (No seu sermão de 10 de maio de 1535, Martinho Lutero traduz esse adágio nos se­guintes termos: "Aconteça o que for justo, ainda que o mundo so­çobre"). A afirmação, registrada pela primeira vez como tendo sido feita pelo Papa Adriano VI (1459-1523, coroação em 1522), afirma que também o "mundo", compreendido como a sociedade dos "grandes e poderosos", não poderá ficar subtraído ao braço da jus­tiça. Kant, portanto, traduz corretamente para o alemão: "Que pre­valeça a justiça, ainda que nisso pereçam todos os malfeitores do mundo" (A Paz Perpétua, Anexo 1).

Para serem inteiramente imparciais, os juízes deveriam possuir três perfeições: uma onisciência, tanto com vista ao direito vigente quanto também com vista ao ocorrido; uma prudência uni­versal capaz de julgar correta e integralmente o ocorrido, à luz do direito vigente; uma justiça pessoal perfeita que também queira julgar tudo de forma justa. E o sistema judicial deve, adicional­mente e em quarto lugar, dispor de uma onipotência que logra im­por com perfeição as sentenças justas. Mas, como tamanha perfei­ção somente existe em uma divindade, a justiça pode empenhar-se apenas pela maior aproximação possível. Disso fazem parte meca­nismos de natureza institucional. Dado o conhecimento das múlti­plas limitações de cada juiz e do colegiado de juízes, não confia­mos no juiz inteiramente bom, onisciente, prudente em tudo, sim­plesmente justo. Sem abrandar as exigências aos magistrados, cui­da-se, ademais, de assegurar o caráter público do processo, institui­se uma hierarquia de tribunais e, no caso de processos penais, uma divisão do trabalho entre a acusação ("promotor público"), a defesa e o juiz. Este último, por sua vez, deve dominar o seu "ofício jurí-

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dico", começando pelo conhecimento das leis vigentes, da sua in­terpretação até ao momento atual, e da discussão dos juristas, isto é, das assim chamadas "doutrinas prevalentes".

Mas os conhecimentos jurídicos por si só não qualificam para o exercício da magistratura. O juiz deve, além disso, estar em condições de saber apreciar os casos que lhe são propostos, em conformidade com a lei, isto é, deve saber ajuizar o particular à luz do universal. De acordo com um entendimento ingênuo da facul­dade judicante, basta para tal fim uma mera operação de subsun­ção, ou seja, a derivação silogística, quase mecânica, da sentença de duas orientações prévias claras: a da regra geral e a do caso par­ticular. Na verdade, não existe o "silogismo judicial", pois a lei não pode determinar normativamente a sentença judicial. Isso, porém, não é corroborado por um diagnóstico empírico, como a transfor­mação do direito civil no nacional-socialismo, pois a responsabili­dade por tal transformação também recai sobre não poucos casos de obediência complacente a orientações políticas, quer dizer, so­bre a falta de coragem cívica. Muito pelo contrário, um silogismo judicial é impossível, devido a uma razão de teoria do conheci­mento, segundo a qual as leis carecem de interpretação, sem com isso estarem à disposição da ação do magistrado. Na fórmula de Montesquieu, o juiz continua sendo a "boca da lei". Porém, ele não fala como um papagaio que palra sem pensar; muito pelo contrário, ele atua criativamente, embora tal criatividade se manifeste menos na criação e mais na interpretação do direito. Pois, à diferença do legislador, o juiz não pode criar um direito novo, mas só lhe cabe interpretar o direito previamente dado. Comprometido com a su­peração dos dois lados da justiça privada, o magistrado não poderá exercer nenhuma "justiça judicial privada" e colocar no lugar de opiniões privadas alheias a sua própria opinião, para atribuir-lhe validade pública, por força do seu poder decisório autorizado. Existe uma única exceção, exemplificada na formulação clássica do Código Civil Suíço, Art. 1°, § 2: "Caso não se possa extrair da lei nenhuma prescrição, o juiz deverá decidir segundo o direito consuetudinário e, onde também este não existir, segundo a regra que ele formularia como legislador".

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Visto um caráter criativo ser inerente à decisão judicial, é praticamente impossível prevê-la. Apesar disso, é mister ater-se à idéia de que existem "respostas corretas" também em casos litigio­sos. A elas servem regras de interpretação que complementam as "regras primárias" por "regras secundárias da imparcialidade judi­cial". Faz parte do métier do juiz a capacidade de averiguar um conjunto de fatos freqüentemente difícil e controverso ("averigua­ção dos fatos"), socorrendo-se, quando necessário, de pareceres, e avaliando-os também, pois eles muitas vezes são controversos. Mas o cerne da faculdade judicante consiste na capacidade de in­terpretar os fatos averiguados, à luz das leis vigentes, efetuando ponderações e fazendo culminá-las em uma decisão. Já que, mes­mo com acuradíssimo saber e consciência, o magistrado não fica imune a erros e enganos, deve acrescer a disposição de elaborar ex posta crítica jurídica e aprender dela com vistas a decisões futuras.

Na interpretação das leis, o juiz está vinculado a regras próprias de interpretação que o comprometem com o teor literal (interpretação gramatical), o nexo semântico (interpretação siste­mática), a finalidade da regulamentação do legislador (interpreta­ção histórica), a finalidade da regulamentação, tal como ela se ex­pressa atualmente na lei (interpretação teleológica), as definições prévias da Constituição (interpretação em conformidade com a Constituição) e com decisões anteriores ("prejulgados"), especial­mente as dos tribunais supremos, e ainda com o que, no curso de uma longa tradição, ascendeu à categoria de "doutrina prevalente". Evidentemente, podem ocorrer conflitos entre essas interpretações. Mesmo se não existe nenhuma meta-regra que logre dirimi-los, as regras estabelecem nexos entre si; freqüentemente se complemen­tam e, no caso de conflito, exigem o que os juízes de qualquer modo precisam dominar: a arte da ponderação.

Mencionemos uma última tarefa de justiça do Judiciário: no quadro da incumbência mais abrangente - "segurança jurídica" - o Judiciário procura interligar as decisões de casos diferentes numa jurisprudência o mais uniforme e unitária possível.

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(llustr.5: A Justiça. Catedral de Bamberg)

2. À guisa de complementação: eqüidade

Uma correção importante relativa ao direito e à justiça re­monta a Aristóteles: a eqüidade (epieikeía [ETILELKEta]: Ética a Ni­cômaco, V 14; em latim, aequitas; em inglês, equity). Assim, para citar um exemplo, uma correção poderia ser imperativa à guisa de "melhoria posterior". Uma legislação insuficientemente exata care­ce de atualização. Mas a eqüidade ocupa-se de uma outra correção, a da aplicação concreta. Por serem genéricas, elas não fazem justi­ça a cada caso individual. Aqui a eqüidade previne tanto uma exa­tidão mesquinha quanto um rigor impiedoso, para que o direito su­premo não inverta o seu papel e se transforme em injustiça supre­ma: summum ius summa iniuria. Mas o provérbio latino, transmiti­do por Cícero (De officiis, I 10, 33), joga com uma ambivalência semântica. Na primeira parte, ele se refere a um direito legalmente assegurado, isto é, positivo; na segunda, respeita a uma injustiça,

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em termos de moral jurídica. E tal possibilidade ocorre: ocasional­mente, a aplicação do direito positivo conduz a uma injustiça, em termos de moral jurídica. A isso opõe-se a eqüidade.

Ora, a pessoa que age com eqüidade está disposta a ceder onde a lei está a seu favor. De tal desistência Kant afirma, com ra­zão, que ela não pode ser obtida mediante coação (Rechtslehre I Doutrina do direito, "Anexo sobre a Introdução à doutrina do di­reito"). Se, e.g., um contrato não prevê nenhuma compensação de perdas inflacionárias, em tal caso, mesmo num elevado índice in­flacionário, não existe nenhum dever de direito positivo para com­pensação. Aristóteles concorda com isso, pois ele compromete ex­pressamente o juiz com a lei e permite a consideração da eqüidade somente a uma instância à parte, ao árbitro, diferentemente de quem exerce o ofício de juiz.

Com boas razões, Aristóteles apresenta a justiça e a eqüi­dade como duas virtudes e, não obstante, não as considera posturas distintas, pois situações que demandam eqüidade são, de certo modo, um caso de teste no qual se demonstra a sua justiça pessoal. Voltada contra uma aplicação impensada, mecânica, a eqüidade desafia a faculdade de juízo. Visto as regras, de um modo geral, prejudicarem a justiça do caso individual, poderíamos querer abrir mão delas e confiar integralmente na faculdade de juízo de pesso­as. Mas leis são melhores, à medida que, diferentemente de pesso­as, são de todo isentas de paixões. Em contrapartida, o ser humano sabe ajuizar melhor do caso individual. Aqui se abre a dupla tarefa, não inteiramente livre de tensões, que a linguagem coloquial pre­serva na combinação de "justo e eqüitativo" e na locução "todos os que pensam com eqüidade e justiça": de um lado, o direito, por ser competente em matéria de igualdade, carece da norma genérica. Por outro, ele deve considerar o caso individual na sua especifici­dade inconfundível, o que, por vezes, exige um afastamento do teor literal do direito vigente. Mas isso não visa suspender a idéia da justiça; pelo contrário, ela deve ser considerada também onde as circunstâncias são de tal ordem extraordinárias que o legislador não as previu. Em casos especiais, a eqüidade, incluída uma eqüi-

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dade procedimental, significa uma correção imperativa no interesse da justiça.

3. Um perigo: o Estado judicial

Nas condições imperantes na sua época, as do Estado ab­solutista, o primeiro teórico da moderna divisão dos poderes, Charles Louis de Secondat de Montesquieu (1689-17 55), considera de certo modo inexistente o Poder Judiciário (Do espírito das leis, 1748. X! 6). Quarenta anos mais tarde o estadista norte-americano Alexander Hamilton (1757-1804) só abranda um pouco a avaliação de Montesquieu, embora viva sob condições novas, isto é, numa república. Ele denomina o "Judiciário o poder incomparavelmente mais fraco dentre os três poderes" (Federalist Papers. 1788, n. 78), pois, à diferença do Executivo, ele não teria nenhuma influência na espada e, em oposição ao Legislativo, não teria poder de comando no erário público.

Entrementes, as relações de poder sofreram um desloca­mento fundamental e duradouro em benefício do Poder Judiciário. Um primeiro fortalecimento está contido no aperfeiçoamento ima­nente do Estado de direito em Estado judicial e de recursos proces­suais. Hoje, os tribunais, por assim dizer, têm competência para quase qualquer ação. Na condição de tribunais de contenciosos administrativos, previdenciários e fazendários, eles também têm competência para o Poder Executivo. Um segundo fortalecimento é devido ao desenvolvimento do Estado de bem-estar social. Como o Executivo não aparece aqui armado com a espada, mas com a cor­nucópia, ou seja, com os recursos do erário público, ficando sujeito a regras detalhadas nas suas prestações de serviço, viu-se conside­ravelmente reduzido o poder do Executivo de moldar a sociedade. Em terceiro lugar, "o poder de comando no erário público" perdeu o seu poder de moldar, em parte devido aos custos salariais e pre­videnciários, juridicamente vinculantes, em parte por causa do ele­vado nível da dívida pública, não em último lugar em virtude do fato de a cota de participação do Estado no Produto Social Bruto

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ser muito elevada. E o poder do Judiciário aumenta onde o poder do Executivo e do Legislativo diminui.

Na medida em que tais fortalecimentos do poder do Judici­ário servem ao Estado de direito, resulta um quarto fortalecimento de uma timidez que o legislador manifesta na regulamentação de determinadas áreas e por meio da qual ele se enfraquece desneces­sariamente. Especialmente no direito trabalhista o Judiciário se converteu, por assim dizer, em legislador supletivo. Um quinto fortalecimento do poder, desejável em termos de teoria da justiça, reside no direito do ·indivíduo de recorrer contra intervenções in­constitucionais do poder estatal ao tribunal constitucional ou ao Superior Tribunal Federal, e.g., apresentando recursos de incons­titucionalidade.

No entanto, um sexto acréscimo de poder, especialmente relevante, não é destituído de problemas: refiro-me ao direito de um tribunal constitucional ao controle abstrato das normas, rejeita­do por sociedades democráticas, como a da Grã-Bretanha, da Sué­cia e da Suíça. Mesmo onde um tribunal é investido da competên­cia de decidir sobre a compatibilidade de leis com disposições constitucionais, ele deve submeter-se ao "etos da autovinculação" e restringir-se a uma segunda interpretação controladora. Não tendo competência para decidir acerca de inovações políticas. ao tribunal constitucional só pertence averiguar se o legislador se atém à Constituição. Também aqui é mister uma reserva rigorosa. Se uma coletividade se qualifica como Estado "democrático e social" (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, Art. 20, § 1), mas só explica mais detalhadamente o elemento democrático, dei­xando em aberto a determinação do elemento social, dever-se-ia deixar a cargo do legislador efetuar determinações mais pormeno­rizadas, em conformidade (a) com as exigências da época; (b) as possibilidades legislativas próprias; (c) uma ponderação de bens com outras tarefas do Estado; (d) em atendimento às convicções de maiorias cambiantes. Nenhum tribunal constitucional pode desen­volver uma autocompreensão expansiva que de longe se aproxime de uma variante do governo dos filósofos, de Platão, isto é, de um governo de juízes.

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Em vez disso, o tribunal constitucional deve lembrar-se da intenção originária do Judiciário constitucional, ou seja, da resis­tência a crassa injustiça.

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VIII

PARA A FUNDAMENTAÇÃO DA JUSTIÇA POLÍTICA

Habitualmente pergunta-se a propósito da justiça política pelas condições em que é justo um ordenamento jurídico e estatal. Mas uma reflexão rigorosa não inicia com essa justiça que norma­tiza o direito e o Estado. Ela começa com a justiça que legitima o direito e o Estado, a saber, com a pergunta por que, de maneira ge­ral, o direito e o Estado podem existir. De qualquer modo, eles restringem a liberdade das pessoas e reivindicam assim uma com­petência ao exercício da coação. Quem justifica tal dominação do homem pelo homem supera duas vertentes filosóficas conflitantes: um anarquismo rigoroso, que considera ilegítima toda e qualquer dominação, e um rigoroso positivismo do direito e do Estado, que tem por legítima qualquer dominação. Há dois modelos de argu­mentação para essa superação.

1. O modelo da cooperação (Aristóteles)

O primeiro padrão de argumentação da justiça legitimado­ra, isto é, o modelo da cooperação, remonta até à Antiguidade, es­pecificamente a Platão (República, 11 369 ss.) e sobretudo a Aris­tóteles (Política I, 2). Confirmam-no e desenvolvem-no tanto co­nhecimentos da antropologia filosófica quanto a teoria das institui­ções. Este modelo parte do fato de os homens não serem autárqui­cos, mas, muito pelo contrário, reciprocamente dependentes: como recém-nascidos, eles dependem da ajuda dos adultos. e, como pes-

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soas idosas e fragilizadas, eles dependem dos filhos entrementes adultos; para a reprodução unem-se homem e mulher; a divisão do trabalho e a especialização facilitam a sobrevivência e uma vida confortável, não apenas na economia; e, por fim, necessita o ser humano do reconhecimento recíproco. À medida que as relações assentam na reciprocidade, elas se caracterizam por uma justiça elementar, tanto constitutiva quanto legitimadora da cooperação.

De três relações fundamentais - homem e mulher, pais e filhos, amo e servo ou, em termos mais neutros, homens com dis­tinto talento econômico - surge a instituição fundamental que, du­rante muito tempo, predominou na história, uma família que é si­multaneamente uma unidade econômica: a casa (em grego, oikos [oiKoçJ). Visto os filhos adultos fundarem as suas próprias casas, o singular se transforma em plural. Como segundo estágio de coope­ração forma-se uma comunidade de casas da mesma descendência, uma aldeia, no sentido de uma parentela ou clã.

No sistema jurídico e estatal, pressuposto o terceiro está­gio, o elemento decisivo não é mais a consangüinidade. A unidade social maior pode potenciar a vantagem da divisão do trabalho e da especialização, o lucro econômico e cultural. Este terceiro estágio confere um peso preponderante sobretudo às representações con­juntas de direito e de injustiça, e à sua realização conjunta, "públi­ca". Isso conduz a um deslocamento da tarefa diretriz. Se, de iní­cio, estavam em primeiro plano a sobrevivência e, mais tarde, a vida confortável e segura, tais tarefas agora não são postas de lado, mas reordenadas de acordo com sua posição hierárquica. A justiça legitimadora de um sistema jurídico e estatal vincula a reciprocida­de na cooperação com o que é comum quanto ao direito e quanto ao que é incorreto.

2. O modelo do conflito (teorias contratualistas)

O segundo padrão de argumentação, o modelo do conflito, complementa o modelo de cooperação. Enquanto teoria do contrato social, em duas palavras, teoria contratualista, ele radicaliza a questão da legitimação. Objeto das teorias contratualistas não são

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contratos históricos, nem acordos expressos ou tácitos. Desde Thomas Hobbes (Leviatã, especialmente caps. 13-18) até John Lo­cke ( 1632-1704: Second Treatise o f Government I Segundo tratado sobre o governo) (cf. Cap. VIII 3-4), passando por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778: Le Contrat Social I O contrato social) até Kant, até à sua revitalização mais recente, o contrato social é um experimento intelectual para fins legitimatórios. Não é qualquer sociedade o seu objeto, mas a "sociedade civil" (societas civilis, ci­vil society), no sentido da teoria do Estado: o contrato social con­siste num contrato político originário, sem o qual nem seria possí­vel justificar um sistema jurídico e estatal. Para tanto são necessá­rios três pontos de vista de um contrato:

Em primeiro lugar, os participantes têm liberdade para as­sumirem um sistema jurídico e estatal. Em conformidade com o princípio do direito volenti non fit iniuria (ao que anui não aconte­ce nenhuma injustiça), considera-se legítima somente a coação voluntariamente assumida, ou seja, a "contratual". Para que nin­guém sofra uma injustiça, nenhuma maioria basta, nem a mais qualificada. A teoria contratualista é uma teoria do consenso na sua forma superlativamente rigorosa. Ela demanda uma anuência de todas as partes, embora não em termos histórico-fáticos. Muito pelo contrário, cada qual deve poder assentir de modo refletido, o que se dá no caso de uma comprovável "vantagem para cada indi­víduo". Por isso, o critério formal do livre assentimento se trans­forma no critério substancial da comprovável "vantagem para cada indivíduo", isto é, da "vantagem distributiva". Como essa vanta­gem também é atribuída à coletividade, o critério pleno se denomi­na "vantagem distributivo-coletiva". Esta não pode ser compreen­dida de forma excessivamente restrita ou em termos meramente econômicos. Ao passo que os críticos da teoria contratualista su­põem que ela visa um interesse privado egoísta, o que importa, na verdade, é que ninguém seja sacrificado aos interesses de outros, ainda que o número desses outros seja imenso: cada indivíduo vale como pessoa de direitos iguais.

Em segundo lugar, para comprovar a vantagem, a teoria contratualista inicia no seu oposto, num estado de absoluta isenção

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de dominação, denominado estado de natureza. Deve-se compre­ender por ele, não a forma de vida dos assim chamados povos pri­mitivos, mas um convívio desprovido de direito e de Estado. De posse da plena liberdade de ação, cada indivíduo pode perseguir os seus fins com quaisquer meios. Ele tem "direito a tudo", mas o "di­reito" carece de qualquer reconhecimento e garantia. Como nem a integridade física nem a vida nem o patrimônio estão protegidos, esse "direito a tudo", visto mais de perto, revela ser a falta de di­reito a qualquer coisa, um "direito a nada". Assim uma liberdade irrestrita de ação evidencia ser algo impossível na perspectiva soci­al. Os limites da liberdade humana não advêm primeiramente de fora, de destinos pulsionais, de necessidades concorrentes, de uma natureza resistente ou escassa em bens. Eles se fundamentam muito mais no fato de vários seres capazes de ação ou de liberdade parti­lharem o mesmo espaço de vida.

Para uma vida em conjunto, o modelo de cooperação men­ciona boas razões. O modelo de conflitos completa-as com a des­coberta de que se convive também onde não se coopera, mas onde se partilha o mesmo espaço de vida e se restringe reciprocamente a liberdade de ação. A justiça exige agora que as inevitáveis restri­ções à liberdade não sejam efetuadas ao estilo da natureza, de acordo com os respectivos potenciais de poder e ameaça. Disso poderiam resultar extremados privilégios e discriminações. Para que, ao contrário, cada pessoa seja elementarmente tratada de modo igual, cada uma desiste do alegado "direito a tudo" e recebe em contrapartida liberdades correspondentes. O contrato político originário cifra-se, por isso, em uma transmissão recíproca de di­reitos e deveres que, com vistas à justiça, se dá de acordo com os mesmos princípios, quer dizer, de acordo com princípios univer­sais.

O pertinente princípio de justiça, o da liberdade igual, é formulado por Kant na sua Rechtslehre I Doutrina do direito(§ B). O seu conceito moral do direito retoma o cerne da idéia de justiça, vale dizer a rigorosa imparcialidade. Ele vincula o princípio moral geral ("lei universal da liberdade") à condição de aplicação do di­reito, isto é, ao convívio: "O direito é, portanto, a quintessência das

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condições sob as quais o arbítrio de um pode ser unido ao do outro, consoante uma lei universal da liberdade". E Kant considera esse direito das pessoas a "menina dos olhos de Deus sobre a Terra" (Vorlesung über Padagogik I Preleção sobre pedagogia, p. 490).

Esse princípio legitima tão-somente o direito, mas ainda não a sua ordem pública, o Estado. Ele supera o estado originário da natureza, livre tanto do direito quanto do Estado, e deixa esse estado secundário da natureza desprovido de Estado. Nele o direito ainda permanece abandonado à auto-ajuda, quer dizer, à justiça privada. Mas faz parte do conceito pleno de direito que a restrição recíproca da liberdade deve ser determinada nos seus pormenores e ao mesmo tempo em comum, "publicamente", que ela deve ser im­posta em comum e que os litígios sejam dirimidos por uma autori­dade.

Como o sistema jurídico e estatal consiste na quintessência desses três poderes públicos - da legislação, do governo e admi­nistração, e do sistema dos tribunais - ele çomprova ser, em prin­cípio, legítimo, em oposição a um rigoroso anarquismo. Porém, em constraste com um rigoroso positivismo do direito e do Estado, esse sistema não pode ser moldado a bel-prazer, mas está compro­metido com o princípio da igualdade da liberdade. Por conseguinte, a legitimação do direito e do Estado combina-se com a sua limita­ção: poderes públicos justificam-se apenas na medida em que ser­vem a uma coletividade formada segundo leis universais. Por ser isso vantajoso para cada um em particular e, ademais, também para a coletividade, cada indivíduo pode concordar livremente, após madura reflexão sobre o assunto. Isso, porém, corresponde à auto­limitação livre, e, precisamente por essa razão, à figura jurídica de um contrato (social).

Em terceiro lugar, estamos vinculados ao contrato, depois de celebrá-lo, em conformidade com o princípio jurídico "contratos devem ser cumpridos" (pacta sunt servanda).

Considerada na sua totalidade, a teoria contratualista revela o caráter rigorosamente subsidiário do Estado: ele serve aos seus cidadãos, máxime à gramática do seu convívio, isto é, ao direito. De modo inverso, o Estado, como instituição dos cidadãos organi-

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zados, deve provar a sua necessidade, tanto genericamente quanto no caso individual. A sociedade civil ou dos cidadãos, ultimamente muito invocada, consiste no fato de os cidadãos, como indivíduos e nos seus nexos institucionais (famílias, relações de vizinhança. empresas, clubes, associações, movimentos de cidadãos, etc.) to­marem, na medida do possível, a gestão dos seus problemas nas próprias mãos, em parte por intermédio da co-atuação política, da democracia participativa, em parte no âmbito dessa transferência de tarefas estatais para a sociedade, que podemos denominar resso­cialização do Estado ou desestatização da sociedade. Aqui o desen­cargo mais relevante do Estado efetuam-no aquelas pessoas e gru­pos sociais que não formulam a ele nenhuma exigência que eles mesmos podem cumprir.

3. Justiça como eqüidade (Rawls)

A revitalização mais influente da teoria contratualista é efetuada por John Rawls (* 1921). De acordo com a sua Teoria da justiça (1971 ), cada pessoa possui uma inviolabilidade que não pode ser desrespeitada e supressa, nem em nome do bem-estar de toda a sociedade. Mais especificamente, Rawls desenvolve dois princípios de justiça, mostra como eles podem ser definidos mais detalhadamente numa argumentação em quatro etapas, esboça uma teoria da desobediência civil e um desenvolvimento do senso de justiça em três graus. A sua obra termina com reflexões sobre a vantagem da justiça.

Como aqui Rawls recorre às teorias da escolha racional (teoria da decisão e teoria do jogo), ele ganha uma grande influên­cia sobre as ciências econômicas e sociais no mundo inteiro. De acordo com a idéia básica da escolha racional, perseguimos o oposto da justiça, visando uma maximização do interesse próprio. Mas Rawls esboça uma situação de escolha, o estado originário ("original position"), no qual, premidos pela necessidade, decidi­mos de modo imparcial, conseqüentemente justo. Já por se tratar de princípios e, ademais, de bens sociais básicos necessários a cada pessoa, chega-se assim a uma justiça subsidiária, ao tratamento

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igual: todos os casos são decididos consoante as mesmas regras de segundo grau, e todas as pessoas podem seguir os seus próprios planos de vida. Por fim, um "véu de ignorância" ("veil of ignoran­ce") assegura uma escolha na qual ninguém é influenciado por cir­cunstâncias ou acasos da natureza. Como os princípios de justiça escolhidos sob essas condições conferem a cada indivíduo a maior vantagem possível, Rawls fala de "justiça enquanto eqüidade".

Seus dois princípios de justiça rezam assim: "1. Cada indi­víduo goza do mesmo direito ao sistema global mais abrangente das mesmas liberdades fundamentais, que é possível para todos. 2. Desigualdades sociais e econômicas devem ser dimensionadas de modo que (a), segundo a restrição do princípio justo da economia, tragam aos menos favorecidos a maior vantagem possível e (b) es­tejam vinculados a posições e cargos abertos a todos, em confor­midade com oportunidades equitativamente iguais". Somados, os dois princípios justificam um Estado liberal e democrático de di­reito, uma democracia constitucional na qual se integra uma eco­nomia baseada na concorrência. Ao passo que os princípios 1 e 2b não são controvertidos, o princípio 2a, o assim chamado princípio da diferença ("difference principie"), é objeto de discussão: não a justiça referente a gerações futuras, postulada no princípio da eco­nomia, mas a exigência de que as desigualdades econômicas, em última instância, devem poder beneficiar os menos favorecidos.

Enquanto Rawls valoriza a condição do Estado de bem­estar social, um oponente, Robert Nozick (* 1938), defende o Es­tado-vigilante do liberalismo clássico. Mediante recurso a Locke ele considera injustificada toda e qualquer natureza de Estado de bem-estar social, a não ser que seja uma existência da justiça cor­retiva. Na teoria das pretensões de Nozick ("entitlement theory"), o debate em torno dos fundamentos não recebe a devida atenção. Concebendo a aquisição originária de posses como apropriação de objetos sem dono, essa teoria declara tacitamente a natureza intacta como um bem sem dono que se transforma em propriedade pela tomada de posse e pelo beneficiamento. Mas é no mínimo igual­mente plausível a hipótese de a natureza ser a propriedade originá­ria de toda a humanidade, de modo que qualquer tomada de posse e

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beneficiamento teria apenas o grau hierárquico de uma apropriação secundária, não primária. De acordo com essa concepção alternati­va, toda a humanidade, inclusive as gerações futuras, é titular de um privilégio (coletivo), de um "direito à participação" no planeta e nos seus frutos.

4. Justiça como troca

Para Rawls, a justiça é antes de tudo uma tarefa de distri­buição. Visto, porém, o que deve ser distribuído não cair do céu como maná, mas dever primeiramente ser produzido pelo trabalho, recomenda-se um outro padrão de argumentação, uma mudança de paradigma que parte da reciprocidade ou, em termos de pars pro toto, da troca (v. Hoffe. Politische Gerechtigkeit I Justiça política. 1987) e reconhece como complementação necessária a justiça cor­retiva. O novo enfoque a partir da troca já possui a vantagem, em termos de estratégia de argumentação, de que os princípios da dis­tribuição são controvertidos, diferentemente do princípio da justiça comutativa, isto é, da equivalência no dar e receber. Não se deve, porém, operar com um conceito de troca demasiado estreito, me­ramente econômico, pois, além das vantagens materiais, existem também as ideais: segurança, poder, reconhecimento, talvez tam­bém auto-estima, de modo especial também liberdades e oportuni­dades de realização pessoal. Demais isso, não se deve operar com aquele conceito de troca demasiado "impaciente", que negligencia adiamentos de fases na troca.

Partindo do fato antropológico de que o ser humano está desamparado, tanto no início quanto, via de regra, também no fim da sua vida, podemos "compensar", posteriormente, mediante a prestação de ajuda aos mais velhos, os auxílios recebidos depois do nascimento e na idade de crescimento. Vista na perspectiva de evolução histórica, essa troca transcorre, num primeiro momento, no seio da família e da grande família. Ela corresponde a um con­trato (tácito) entre pais e filhos, celebrado com vistas a uma ajuda, deslocada em fases e mesmo assim recíproca. Num conceito sufici­entemente amplo a troca evidencia que não é nem a forma mater-

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nalista, nem a forma paternalista, mas, antes, a forma fraternal de cooperação. E nessa medida também é democrática.

Nessa base, condição de carecer de direito e de Estado, que é a situação natural de inevitáveis conflitos de liberdade, desvan­tajosa para todas as pessoas, é superada por um contrato político originário que tem o caráter de uma troca, tanto negativa quanto também (relativamente) transcendental. Ela é negativa, por consis­tir na desistência recíproca do exercício da violência, e ela é (rela­tivamente) transcendental, na medida em que ocorre num plano do qual nenhuma pessoa pode abrir mão, sem o qual a condição hu­mana nem seria possível. Note-se que ela aponta para regras, quer dizer, para algo genuinamente social, mas cujo reconhecimento não apenas beneficia o bem comum, senão também cada indivíduo. Por conseguinte, ela atende ao critério elementar da justiça, a vantagem distributivo-coletiva, pois, dentre as regras vantajosas para a cole­tividade, importam as que são proveitosas para cada indivíduo. Essa condição indubitavelmente exigente é satisfeita onde retroce­demos ainda para aquém do critério de Rawls, para os bens sociais fundamentais, e nos voltamos, em primeiro lugar, para os interes­ses transcendentais: as condições de possibilidade da capacidade e da liberdade de agir; e onde, em segundo lugar, selecionamos aqueles interesses que só são satisfeitos na e por meio da reciproci­dade.

Mesmo pela troca transcendental supera-se, em primeiro lugar, apenas o estado natural primacial, mediante a fundamenta­ção de direitos elementares, os direitos humanos enquanto direitos de liberdade e enquanto direitos sociais funcionais com relação à liberdade. O estado natural secundário remanescente é superado apenas naquela segunda troca, que fundamenta o Estado como "gládio da justiça", como quintessência dos poderes públicos sub­sidiários para a realização da justiça. Nos dois estágios do contrato ou da troca supera-se a habitual alternativa "egoísmo ou altruís­mo". Como a vantagem pessoal tem peso, não se carece de altru­ísmo, e como ela somente se realiza pelo esforço conjunto, fica eliminado um egoísmo que vê as pessoas como meros concorreo-

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tes. Em lugar dele, prevalece uma comunicação presidida por inte­resses (cf. sobre a justiça da troca também Cap. IX 3).

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IX

, , PRINCIPIOS INTERMEDIARIOS:

DIREITOS HUMANOS

1. Direitos humanos e direitos fundamentais

Por um lado, o princípio da liberdade igual obriga cada membro da comunidade jurídica a reconhecer as condições univer­sais de coexistência da liberdade; por outro, impõe a cada coletivi­dade o dever de garantir esse reconhecimento. Aos membros da comunidade jurídica cumpre conceder as condições, ao Estado o dever de assegurá-las. Vistas a partir do indivíduo titular de direi­tos, as condições universais não possuem somente o grau hierár­quico de "direitos de cidadania", próprios apenas da respectiva comunidade de cidadãos. São, antes, direitos humanos: direitos que cada pessoa merece de modo inalienável, pela só condição de ser humano, e que nesse sentido não-biológico de moral jurídica são denominados direitos inatos, naturais, inalienáveis e invioláveis.

Os direitos humanos não se fundamentam apenas em ações voluntárias decorrentes de um favor social ou político. Trata-se de direitos que os membros da comunidade jurídica devem uns aos outros e que, subsidiariamente, a ordem jurídica e estatal deve a todas as pessoas. Nenhuma coletividade e também nenhuma ordem jurídica internacional pode abrir mão da positivação na forma de direitos fundamentais ou também na forma de objetivos funda­mentais do Estado. Por isso, elas possuem dois modos de existên­cia complementares, mas fundamentalmente distintos quanto ao método. No interior da moral devida, da justiça, eles são "apenas

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direitos humanos": pretensões suprapositivas, que, no entanto, uma vez reconhecidas como direitos positivos, se tornam "direitos hu­manos enquanto direitos fundamentais" de uma coletividade fun­dada em direito positivo.

Parte desses direitos até se mostrou ser indispensável para a definição do direito (Cap. 111 1), pois, sem uma certa proteção de bens jurídicos, como a incolumidade física e a vida, a propriedade e a honra, não é possível distinguir conceitualmente entre direito e crime organizado. O correspondente mínimo de direitos funda­mentais tutelados pelo direito penal já pertence à justiça definidora do direito: um reconhecimento parcial dos direitos humanos possui um caráter definidor do direito, normatizador jurídico de um reco­nhecimento pleno.

2. Um olhar sobre a história das idéias

De acordo com urna concepção recorrente e muito difundi­da, os direitos humanos se fundamentam em idéias específicas da Revelação judaico-cristã e do pensamento da Antiguidade greco­romana. Fosse verdadeira essa opinião, o espaço geográfico da nossa cultura deveria, por um lado, ter desenvolvido muito mais cedo urna relação afirmativa face aos direitos humanos; por outro lado, tais direitos estariam vinculados, não obstante o seu conceito de "direitos humanos", a urna determinada cultura, não podendo, por conseguinte, ser exigidos de todas as culturas. Mas na realidade a história transcorreu de modo mais complexo. Mais especifica­mente: outras culturas dispõem de módulos tão nitidamente reco­nhecíveis, para a elaboração da idéia dos direitos humanos, que o Ocidente não pode ser considerado seu único fiel depositário.

Um primeiro módulo está contido no direito penal que em quase todas as culturas tutela certos direitos de dignidade em ter­mos de direitos humanos. Um outro módulo pode ser visualizado naquela crítica ao governo injusto, que remonta até aos primórdios da história, e.g., até ao poema épico Gilgamesh (por volta de 2000) o qual exorta o personagem principal, o rei de Urduk, a não abusar do seu poder, ou até ao poema épico nacional da Índia, o Maha-

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bharata (século XVI a. C.), que exige do governante proteção do seu povo com todos os meios. Mais pertinente ainda é o terceiro exemplo, uma opinião confuciana, que remonta ao segundo pensa­dor clássico mais importante da China, Mong Dsi (Mestre Meng, século IV a. C.), segundo a qual cada pessoa possuiria uma digni­dade inata. Especialmente impressionante é o quarto exemplo: uma federação dos índios iroqueses (primeira metade do século XV), que declarou todos os membros das tribos iroquesas pessoas livres e iguais nos seus privilégios e direitos. E isso deu-se, mais de três centúrias antes da primeira declaração ocidental dos direitos huma­nos (cf. Morgan. League ofthe Iroquis I Liga dos iroqueses. 1851). Além disso, o Alcorão (Sura 2, 257) afirma contra o perigo da in­tolerância religiosa: "Na religião não deverá ser exercida nenhuma coação". E, não em último lugar, não devemos esquecer a demo­cracia consensual da África Ocidental, isto é, a instituição da deli­beração.

Por duas outras razões, não se deve sobrestimar a contri­buição do judaísmo e do cristianismo aos direitos humanos. Por um lado, o Antigo Testamento declara que cada ser humano foi feito à imagem de Deus, mas relativiza o potencial de direitos humanos contido nessa idéia pela opinião da existência de um único povo eleito. De outra parte, o cristianismo universaliza a idéia da elei­ção, mas não lhe extrai conseqüências de ordem jurídica; antes, mantém o instituto da escravidão e a desigualdade jurídica da mu­lher. E o conceito do direito subjetivo, imprescindível para os di­reitos humanos, remonta à Idade Média, embora não ao seu pen­samento genuinamente cristão, mas ao direito humanista do século XII. O conceito ali empregado apenas de passagem não é, porém, investido de uma dignidade hierárquica fundamental, que tanto justifica quanto limita a ordem jurídica e estatal. Juntamente com os elementos judaicos e cristãos ele faz parte tão-só da pré-história dos direitos humanos.

Dois pontos de vista atuam em conjunto na parte principal dessa história. À multiplicidade de desafios suscitados pela história social os direitos humanos proporcionam respostas ou terapias igualmente múltiplas. Antes da Reforma, os hereges litigam com a

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Igreja oficial; a partir da Reforma, as diferentes confissões conten­dem entre si na pretensão de professarem a verdadeira fé cristã, en­sejando o problema da liberdade religiosa. Além disso, a tentativa de impor à força a própria pretensão de verdade entra em concor­rência com o interesse de sobrevivência dos outros, remetendo ao direito à vida e à incolumidade física. Não em último lugar, países como a Alemanha, durante a Guerra dos Trinta Anos, se transfor­mam em cenários bélicos de potências estrangeiras, de modo que já no Velho Mundo está em jogo um direito que no Novo Mundo ain­da é mais duramente violado pela colonização: o direito à autode­terminação política e cultural. Não há dúvida de que partes do ideá­rio cristão se fazem presentes na resposta a essas tarefas. Mas os conceitos decisivos não são a semelhança à imagem de Deus ou o valor infinito da pessoa redimida pela ação salvífica de Cristo, mas o estado natural e o contrato social, a liberdade de ação e a recipro­cidade ou Regra de Ouro.

Embora a primeira declaração da liberdade religiosa (1572), nos Países Baixos, também beneficie os católicos, predo­mina no catolicismo, durante muitos séculos, a rejeição dela. O Papa Leão XIII, ao qual a doutrina social católica deve transforma­ções profundas, ainda identifica nos direitos humanos a presença de um espírito subversivo (lmmortale Dei. 1.11.1885). Também o protestantismo condena o espírito da Idade Moderna e se mantém em sua maior parte à distância dos direitos humanos. E mesmo o jovem Karl Marx, no seu tratado Sobre a questão judaica ( 1844 ), tem em mente sobretudo os direitos de propriedade e ignora as ou­tras chances de liberdade dos direitos humanos, à exceção das li­berdades religiosa e confessional, com as quais ele concorda.

3. Direitos de liberdade, direitos sociais e culturais, di­reitos de participação e co-gestão

Perduram até hoje os debates em torno da determinação mais precisa dos direitos humanos, mas quase não se discutem as suas determinações fundamentais. Desde os seus primórdios gre­gos, a antropologia filosófica sabe que a capacidade de agir está

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vinculada a três fatores, visíveis em três determinações fundamen­tais, válidas para toda pessoa de cada civilização: cada indivíduo é (1) um ser dotado de corpo e vida (zôon [(wov ]respectivamente animal), que (2) se distingue pela faculdade do pensamento e da fala (zôon lógon échon [(wov Ã.Óyov EXOV] respectivamente animal rationale) e (3) carece da comunidade e da sua ordem política (zô­on politikón [(wov noÀLnKÓv] resp. animal sociale). Como as duas primeiras determinações estão vinculadas a pré-requisitos negati­vos e positivos, podemos distinguir três grupos principais de direi­tos humanos: direitos negativos de liberdade, direitos positivos de liberdade, ou direitos sociais e culturais, e direitos (democráticos) de participação e co-gestão.

Os direitos negativos de liberdade podem ser fundamenta­dos facilmente por meio da mencionada idéia de uma troca trans­cendental: como o ser humano tanto é vulnerável quanto capaz de violência, pode ser tanto autor como vítima da violência que amea­ça a sua capacidade de ação. A fim de, não obstante, preservar o seu interesse transcendental pela capacidade de ação, ele deve con­cordar com uma desistência recíproca, que corresponde a uma tro­ca e fundamenta os pertinentes direitos humanos: se cada pessoa desiste de violar a incolumidade física e de matar, é concedida a cada uma o direito à incolumidade física e à vida. Na medida em que uma pessoa não impede a prática da religião dos outros, ela obtém o direito da liberdade religiosa, etc. Fixados no Estado ab­solutista, os direitos de liberdade são compreendidos preponderan­temente como direitos de defesa contra o Estado. Mas na realidade os membros da comunidade jurídica concedem-nos a si mesmos, ao passo que o Estado assume tão-somente a tarefa subsidiária, embora também imprescindível da garantia.

Meras desistências da violência ainda não possibilitam a capacidade de ação. A liberdade real demanda também realizações positivas de bens, serviços e oportunidades. Na medida em que são praticamente indispensáveis à liberdade, como direitos em parte sociais, em parte culturais, elas são investidas da dignidade hierár­quica de direitos positivos de liberdade e não ficam atrás dos di­reitos negativos de liberdade, no âmbito dos direitos humanos. Não

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obstante, distinguem-se consideravelmente dessas liberdades: visto não mais implicarem prestações negativas, quer dizer, desistências, mas prestações positivas, elas estão sujeitas ao problema da escas­sez. Contrariamente aos direitos negativos de liberdade, elas não podem ser cobradas em todas as circunstâncias. Por isso, seria mais adequado tratar os direitos positivos de liberdade menos como di­reitos individuais subjetivamente cobráveis perante os tribunais do que como exigências programáticas ou objetivos do Estado, e co­meter ao legislador sua elaboração mais minudenciosa, em con­formidade com as respectivas possibilidades.

De resto, tais prestações não precisam ser geradas por to­das as pessoas. Tão logo um único indivíduo se recusa a abrir mão da violência contra um outro, eo ipso estão em risco a vida e a in­columidade física dessa outra pessoa. Se, porém, alguém recusa es­sas prestações, outras poderão via de regra ocupar sem dificuldades o seu lugar. Por essa razào, cabe logo perguntar a quem cumpre pagar a "dívida a ser saldada, por conta e risco próprio, com o cre­dor"? Ela pode ser respondida do seguinte modo: aos "agentes na­turais da [referida] prestação". Assim, para crianças, a competência primacial está nas mãos dos pais, pois eles puseram-nas no mundo sem a sua anuência e como seres carentes de amparo.

Apesar dessas e de outras diferenças, os direitos positivos concordam com os direitos negativos de liberdade no padrão dele­gitimação, na troca transcendental: de tão elementares, determina­das ajudas são imprescindíveis, em parte com vistas à mera sobre­vivência, em parte com vistas à capacidade de ação em regime de responsabilidade própria. Por serem as ajudas prestadas assimetri­camente pelos capazes de ajudar os necessitados de auxílio, parece faltar a segunda condição de legitimação, ou seja, a reciprocidade. Mas isso muda, tão logo atentarmos para os adiamentos de fases.

Visto a dominação política somente se justificar a partir dos implicados (cf. Cap. VIII), assiste-lhes o direito à participação no governo político, seja diretamente em eleições e votações, seja indiretamente por meio de representantes eleitos. Conseqüente­mente, existe um terceiro grupo de direitos humanos, os direitos (democráticos) de participação e co-gestão.

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A título de exemplo, ressaltemos alguns direitos humanos:

(1) Tudo indica que os direitos negativos de liberdade proíbem a escravidão, inclusive a servidão no sentido de dependência total do dono da gleba e a servidão hereditá­ria, além disso o trabalho forçado. (2) Ilegitímas com igual evidência são discriminações por motivos de raça, cor, sexo, religião, convicções políticas e origem social. Fica especialmente proibida uma remunera­ção desigual de homens e mulheres. (3) Em conformidade com o direito negativo de liberdade à integridade física e à vida, é ilegítimo um trabalho que cause danos à saúde, devido à poluição sonora, às condi­ções de luminosidade ou atmosféricas, por causa de odores ou raios, também em virtude de um modo de trabalho que leve ao esgotamento e à insensibilidade, ou em razão da duração excessiva do trabalho (diário, semanal e anual). Num sentido mais abrangente isso inclui também a proibi­ção do trabalho infantil. (4) Do direito à propriedade pessoal deriva a proibição de uma desapropriação arbitrária e sem indenização. (5) De um direito social elementar, a saber, do direito à sobrevivência, resultam salários mínimos, cuja determina­ção mais precisa depende, entretanto, de fatores regionais, como custos de manutenção da vida, e do padrão habitual de vida, bem como dos respectivos recursos. (6) Também providências elementares quanto ao status familiar, à doença, a acidentes, ao desemprego e à terceira idade integram os direitos sociais elementares. Mais uma vez é mister reconhecer diferenças regionais: onde comu­nidades solidárias, clãs ou corporações ainda são vivas, precisa-se exigir menos do que em sociedades nas quais essas instituições perderam a sua força [de agregação], em virtude da individualização da vida. Também não se deve ignorar que ajudas sociais não apenas compensam a perda de poder de comunidades solidárias, mas podem até causá-

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la. De resto, mesmo ajudas sociais justificadas somente ca­bem em casos excepcionais como donativos, sem correla­tas contrapartidas, pois, à diferença do amor aos homens, a justiça está dimensionada com vistas à reciprocidade. Por isso, no âmbito das suas possibilidades, a prestação de ser­viços comunitários pelo beneficiário de ajuda social não é inadequada - uma vez que ela pode potenciar a sua auto­estima (as pessoas fazem por merecer a ajuda que rece­bem). (7) A liberdade de associação e de coalização requer que se admitam associações sindicais, profissionais e empresa­riais. (8) De importância é um padrão social em benefício das gerações futuras. Mas ele não pode ser restringido a temas ecológicos; deve, pelo contrário, incluir recursos sociais e culturais. De acordo com o princípio da justiça intergeraci­onal, nenhuma geração pode consumir mais recursos do que ela mesma produz em recursos equivalentes ou subs­titutos. Deve-se abolir por inteiro o consumo excessivo de recursos não-renováveis ou dificilmente renováveis. (9) Enquanto o trabalho profissional continuar sendo o caso normal, para ganhar o sustento adequado para si e sua família, enquanto ele, ademais, oferecer oportunidades im­portantes para cultivar a auto-estima e a de terceiros, bem como para promover a realização pessoal, mas a oportuni­dade para o trabalho profissional depender da formação, é necessário assegurar a todas as pessoas oportunidades ade­quadas de formação profissionalizante. De mais isso, a po­lítica econômica e tributária deve ser comprometida com o objetivo da redução do desemprego.

No âmbito dos direitos humanos, devemos distinguir, no mínimo, três segmentos: (a) direitos humanos tout court, que são atuais para cada pessoa, em qualquer época da sua vida; (b) direitos humanos relativos a fases (da vida), como os direitos das crianças e dos idosos, relevantes apenas na respectiva quadra da vida; e (c)

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paradoxalmente até direitos dependentes da cultura. Dependente da cultura não é, porém, a base de legitimação, e sim apenas seu di­mensionamento pormenorizado. Numa cultura, cuja consciência comunitária é tão fortemente desenvolvida, como a de algumas re­giões da África Negra, poderia ser considerado como violação dos direitos humanos o que no Ocidente se tem como punição legítima, a saber, isolar alguém numa prisão por muitos anos. Em condições especiais, o direito pode até converter-se no seu oposto, isto é, em sem-razão, em injustiça. Em virtude da igualdade de homens e mulheres, uma forma de vida como a poligamia se afigura incondi­cionalmente proibida e, não obstante, poderia ter um lugar legítimo numa ética da solidariedade no âmbito do clã, e.g., para incluir as mulheres que, de outro modo, permaneceriam solteiras, o que, se­gundo parece, é dificilmente imaginável para uma mulher em al­gumas culturas da África Negra. Aqui os direitos humanos permi­tem uma identidade na diversidade (cf. Cap. XIII).

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X

JUSTIÇA PENAL

O direito penal também fornece evidente prova contra um relativismo cultural empírico. A modalidade da punição é, na ver­dade, extremamente variada, de acordo com a sociedade e época. Mas o fato de coletividades, de um modo geral, reivindicarem uma competência punitiva é encontradiço em quase todas as culturas. Considerados pela rama, o direito penal, os tribunais e processos penais constituem um traço comum da humanidade, um universal que abrange todas as sociedades e épocas. Universal é também grande parte dos ilícitos penais. Delitos de homicídio, contra a pro­priedade e a honra, a proibição de incêndios, a falsificação de pe­sos, medidas e documentos, delitos sexuais, e até ilícitos penais contra a integridade do meio ambiente são praticamente conheci­dos em todos os lugares.

1. Definição da pena

Críticos radicais reputam o direito penal uma vingança sancionada. Outros vêem em atos criminosos desabafos de agres­sões pelos quais a responsabilidade última não cabe ao autor, mas à sociedade. "Críticos da ideologia", que consideram o direito penal uma instituição de vingança da sociedade, ignoram a prestação elementar de justiça contida em uma pena pública imposta pelo Estado. Definido pelo legislador, aplicado pelo juiz e implementa­do pelo Executivo, em tudo isso comprometido com rigorosas re­gras formais e procedimentais, o direito penal enfrenta aquela vin­gança privada, inclusive a vendeta, as rixas entre famílias, clãs ou

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grupos sociais, e a justiça privada, que paga a injustiça sofrida por conta própria e reage amiúde desmedidamente, orientada por sen­timentos de ódio.

Mas a uma pena imposta pelo Estado acrescem freqüente­mente outras de caráter social. O condenado perde os seus amigos e conhecidos, só a muito custo conquista novos amigos e conheci­dos e enfrenta dificuldades na busca de um emprego. Além disso, pessoas absolvidas, por boas razões, não raro, são proscritas. Não em último lugar, freqüentemente até os membros da família, isto é, pessoas inocentes também sofrem punição. Tais penas adicionais, que não são nem justificadas, nem imparciais, nem autorizadas, nem controladas, são claramente injustas. Visto o direito penal es­tatal pelo menos gerar um proveito, no que tange à justiça, a maio­ria das discussões não fixa a sua atenção na abolição da competên­cia punitiva, mas nos fins justificadores da punição. Quatro formas fundamentais ocupam o centro das atenções: (1) a retaliação; (2) a providência negativa ou prevenção, a intimidação; (3) a prevenção positiva (fidelidade ao direito, confiança no direito, pacificação) e (4) a reinserção na sociedade, a ressocialização.

Proscrita como instinto primitivo de vingança social, a re­taliação está sempre de novo na mira do fogo cruzado da crítica, que acaba por envolver filósofos tão importantes como Kant e He­gel, pois eles defenderam uma teoria da retaliação. Já a partir do seu conceito, a pena criminal possui um caráter retaliativo, pois é, em primeiro lugar e de modo trivial, um mal que, em segundo lu­gar, é imposto por coação, diferentemente, e.g., de um tratamento dentário. Além disso, penas criminais são impostas depois de e por causa de uma violação do direito. Por conseguinte, fazem parte do seu conceito, em terceiro lugar e diferentemente de medidas de quarentena, um post hoc menos exigente e, em quarto lugar e de maneira diversa de catástrofes naturais ou da exação de tributos, um propter hoc mais exigente. E justamente por isso a pena cons­titui uma retaliação [Vergeltung], no sentido originário e ao mesmo tempo neutro. Em sentido etimológico aparentada com "dinheiro" [Geld], a expressão "retaliação" remete, na língua alemã, a uma forma fundamental das relações interpessoais, à troca. Retaliação é

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cada contrapartida por serviços recebidos, cada "paga" que, no caso de serviços positivos, se traduz em uma remuneração [Ent­gelt] e, apenas no caso de serviços negativos, em "paga" de um mal ou em uma pena.

2. Normatização da pena

O conceito neutro de retaliação já contém um elemento importante da justiça penal: a proibição de punir inocentes. Como princípio de culpa ele até possui validade categórica e não admite exceções; soluções de meio-termo com o bem-estar coletivo ou a razão de Estado a proibição não admite: punível é somente quem comete uma (grave) violação do direito, do ponto de vista objetivo, e é pessoalmente (subjetivamente) responsável por ela.

A punição estatal também pode atuar para prevenir (atuar preventivamente). De acordo com um princípio já defendido por iluministas, como Montesquieu e Cesare Beccaria (1738-1794 ), o princípio juspenalista "nenhum crime, nenhuma pena sem lei" (nullum crimen, nulla poena sine lege; cf. Código Penal da Repú­blica Federal da Alemanha, § 1; inclusive a Lei Fundamental, Art. 103, inc. 2), a regra, cuja violação é seguida pela pena, deve ser previamente conhecida e simultaneamente bem-definida. Com as suas quatro proibições- a do direito consuetudinário, a da retroati­vidade, a da analogia e a de leis penais indeterminadas -, o princí­pio fundamental protege todos os cidadãos contra o arbítrio, de parte do Estado. E já por causa desse princípio, a punição, embora imposta ex post facto, desenvolve inevitavelmente uma força pre­ventiva, servindo, por conseguinte, às finalidades segunda e tercei­ra da pena. Por um lado, ela intimida, causando aos potenciais vi­oladores do direito um medo da pena e minimizando, tanto o risco de tentativas perigosas de imitação, quanto efeitos de atração. Por outro lado, o direito penal, na medida em que é implementado, en­coraja à observância do direito, fortalece a confiança nele e atende às necessidades da pacificação jurídica.

Há quem prefira argumentar em favor dessa prevenção du­pla, negativa e positiva, porquanto ela visa o futuro, em vez de es-

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tar fixada no passado, como a retaliação. Mas isso não é nenhuma vantagem, do ponto de vista da teoria da justiça, pois, como res­posta a uma violação passada do direito, mesmo a pena, na sua concepção preventiva, permanece uma retaliação no sentido neu­tro. Em contrapartida, a prevenção representa um efeito colateral tão inevitável quão bem-vindo. A asserção utilitarista "punitur ne peccetur" ("pune-se, para que o direito não seja violado") sempre pressupõe a afirmação, em termos de teoria da retaliação "punitur quia peccatum est" ("pune-se, porque o direito foi violado"): uma pena- assim também a retaliação em geral- somente é justa quan­do imposta depois de e por causa de uma grave violação do direito.

Uma pena justa tem caráter retaliativo ainda num segundo sentido: no tocante ao grau da pena. Pressupõe-se, porém, que a retaliação (ius talionis) não seja compreendida no sentido literal do "olho por olho, dente por dente" (Ex 21, 24) e "sangue por sangue" (e.g., Ésquilo, Oréstia, Parte 11, versos 274 e 312s), mas apenas na perspectiva formal:

Na retaliação específica, uma pena justa define-se pelo grau de gravidade da ação. Ela não "instituirá um exemplo" para fins intimidatórios nem punirá mais duramente do que o crime me­rece, considerada a sua dimensão objetiva, isto é, a gravidade da violação do direito, e consoante a sua dimensão subjetiva, a culpa; tampouco ela abrirá mão da pena, sobretudo em crimes graves, onde uma intimidação se tornou supérflua, quando o criminoso, e.g., há muito tempo se portou em conformidade com as prescri­ções do direito.

A idéia (neutra) da retaliação deixa indeterminada a espé­cie da pena e da sua execução. Por isso, as outras finalidades da punição podem entrar supletivamente em jogo: com o impedimento de ilícitos penais e o fortalecimento da observância do direito, a dupla prevenção atende ao objetivo diretor exigido pela justiça, vale dizer à manutenção de um ordenamento jurídico. E, caso não tenha sido possível evitar a violação do direito, devem ser envida­dos todos os esforços para obviar uma reincidência do violador da lei e oferecer-lhe uma nova oportunidade para a integração na soci­edade e na atividade profissional.

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O direito penal distingue-se da compensação juscivilista e deve, não obstante, ter em mente, não só o autor, mas, por uma ra­zão de justiça, também a vítima. Já que a coletividade proíbe rigo­rosamente a justiça privada, deve ela assumir as suas tarefas legí­timas, isto é, providenciar para que um culpado receba o merecido castigo e a vítima seja indenizada, na medida do possível. Merece igualmente uma indenização quem tiver sido preso para fins de averiguações policiais e judiciais, mas depois não tiver sido conde­nado, ou quem recebe uma pena prisional menor do que o período de permanência na prisão para fins de averiguações policiais e ju­diciais. Não em último lugar, os meios de comunicação devem uma indenização a quem eles "acusam" e "condenam" apressadamente.

3. Legitimação da pena

O instituto jurídico da pena criminal justifica-se pela com­binação de três argumentos. O primeiro evidencia as proibições com cominações penais como o reverso de pretensões legítimas, em última instância referentes aos direitos humanos e, nessa medi­da, universalmente válidas: como cada pessoa possui um direito à vida e à integridade física, é proibido o exercício da violência con­tra ela; para que possa haver uma margem para a liberdade de ação, faz-se mister a existência da propriedade (funcional com relação à liberdade), de modo que o furto é inadmissível, etc. Esse argu­mento não representa uma procuração universal para o direito pe­nal, mas vincula a justificação a uma limitação rigorosa: é difícil justificar o direito penal enquanto ultima ratio da coação estatal onde não estão em jogo bens jurídicos, cuja dignidade se situa no patamar hierárquico dos direitos humanos.

Embora o reconhecimento dos direitos humanos beneficie a todos, a sua violação pode ser vantajosa no caso individual. Para contra-arrestar esse hábito de usufruir as benesses do ordenamento jurídico sem pagar por elas, o Estado - eis o segundo argumento -impõe à violação do direito uma desvantagem que deve, em princí­pio, ser dimensionada em grau tão elevado que ela sobrepuje a vantagem. A rigor, o dano esperado, isto é, o produto a partir da

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punição esperável e da probabilidade de ser punido, deve ser maior do que o lucro esperado, pois somente então quem cometer consci­ente e intencionalmente a violação do direito sabe que ela não compensa.

A pena criminal ainda não se justifica pelos dois primeiros argumentos, de natureza preventiva, pois a finalidade da preven­ção, ou seja, a garantia do ordenamento jurídico, representa um interesse coletivo ao qual ninguém pode ser sacrificado por razões de justiça. A fim de ninguém se tornar um mero meio da coletivi­dade, necessita-se, à guisa de terceiro argumento, da retaliação: retaliação pelo fato de alguém ter violado o ordenamento jurídico e ser punido exclusivamente devido a essa violação do direito, bem como devido à gravidade da sua culpa.

4. Suspensão da pena?

De maneira geral, não cabe à justiça a palavra final (cf. Cap. XV). Por isso, afirma-se no campo da justiça penal uma idéia que surpreendentemente é defendida por Nietzsche, o virulento crítico da moral (Genealogia da moral, Cap. li 10): "Com o au­mento do poder, uma coletividade não leva mais tão a sério as in­frações do indivíduo". A razão é a seguinte: as infrações "não são mais consideradas como perigosas e subversivas para a subsistên­cia do todo social na mesma medida de outrora[ ... ]. Se o poder e a autoconsciência de uma sociedade crescem, também se atenua sempre o direito penal". Uma coletividade que leva essa atenuação até ao seu extremo desiste inteiramente da pena. Ela até se propõe o objetivo de uma "auto-suspensão da justiça", "que porta o 'belo nome' [ ... ] 'clemência'" e constitui "o privilégio do mais podero­so". Mas uma coletividade somente dispõe de tal poder onde ela não é abalada nos seus fundamentos, isto é, talvez na criminalidade do cotidiano, mas certamente não nos crimes dos grandes e pode­rosos que cometem violações do direito em grande estilo, na con­dição de políticos, chefes militares ou executivos em posições de comando, não em último lugar como instigadores do crime organi­zado. E, mesmo na criminalidade cotidiana, não devemos esquecer

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as vítimas. Para que não se abuse delas como meros meios de uma graça concedida pela coletividade, a auto-suspensão da justiça pe­nal deveria partir eventualmente da própria vítima e, caso esta ti­vesse sido morta, de pessoas que lhe tivessem sido próximas. Elas é que deveriam perdoar o respectivo autor, e não as pessoas que não foram diretamente afetadas.

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XI

JUSTIÇA SOCIAL

Muitos consideram a justiça social como a própria norma da ação política da democracia. Conquanto a filosofia conheça, desde Aristóteles, "várias justiças", a expressão da justiça social aparece nela muito tardiamente, e, ademais, de modo tão incidental que é quase impossível assinalar a sua primeira manifestação. De­pois de alguns precursores na Itália, posteriormente na França e Alemanha, ela é por fim assumida pela ética social cristã: de come­ço pelas encíclicas sociais dos papas (Quadragesimo anno de Pio IX), mais tarde pelo teólogo reformador Emil Brunner (Gerechtig­keit I Justiça. 1943). A primeira obra filósofica de maior enverga­dura é do economista Friedrich von Hayek. Sob o título eloqüente A ilusão da justiça social I The Mirage of Social Justice (1976), ela se manifesta contra os excessos do Estado de bem-estar social e de­fende um Estado mínimo ou o Estado-vigia.

Hoje falamos da justiça social em dois sentidos. No sentido inespecífico, o adjetivo "social" afirma apenas que algo de social está em pauta. Compreendida no significado específico, a justiça social se ocupa com dificuldades que ou reapareceram ou recru­desceram ou então foram pela primeira vez claramente conscienti­zadas nos séculos XVIII e XIX. Enfeixadas na expressão "questão social", são ali consideradas as dificuldades causadas pelo desem­prego, pela falta de proteção em casos de doença e na velhice, pela falta de educação formal ou formação profissionalizante, até mes­mo pela fome e pauperização, que afetam, sobretudo, o operariado nas cidades em vias de crescimento, mas ao lado deles também

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uma importante parcela da população rural. Quem quiser responder a tais dificuldades, não apenas com vistas à paz social ou a partir de um amor cristão ao próximo, mas em nome da justiça, deverá identificar as obrigações devidas às pessoas em questão.

1. Justiça comutativa

Freqüentemente pensa-se na justiça apenas em questões de distribuição. Fala-se de distribuição, alocação, denominam-se pro­blemas de alocação as tarefas correspondentes e espera-se da justi­ça "social" ou uma distribuição igual ou uma distribuição de acor­do com as necessidades. Mas os recursos a serem distribuídos pre­cisam antes do mais ser gerados pelo trabalho e trocados recipro­camente, no caso de uma divisão do trabalho. Devido a essa verda­de banal, recomenda-se a mencionada mudança de paradigma: sem contestar todas as razões que justificam a distribuição, deve-se co­meçar com a reciprocidade ou a troca - na pressuposição de não se usar um conceito de troca meramente econômico, como ocorre em Mareei Mauss (Essai sur le don I Ensaio sobre a dádiva. 1923/24 ).

A favor da mudança de paradigma coloca-se o fato de o bem a ser distribuído não cair do céu como o maná. Antes de re­partir o bolo, deve-se assá-lo, e isso exige tanto os ingredientes quanto a energia, que por sua vez devem ser gerados. Quem rastre­ar esse processo até às suas verdadeiras origens, certamente acaba por encontrar o fundamento inicial de todo e qualquer beneficia­mento, um material preexistente, do qual as pessoas extraem os in­gredientes e a energia. Porém, a questão social não diz respeito apenas a esse primeiro princípio, mas a desenvolvimentos posterio­res, que são mais importantes para os fenômenos da permuta.

Contra a idéia da distribuição como padrão primacial existe o argumento de que a instância que responsabilizamos pela justiça social, ou seja, o Estado, essencialmente só é capaz de prestações secundárias e subsidiárias. Se ele tutela bens jurídicos elementares, mediante leis penais, e ordena as atividades sociais e comerciais, por meio de prescrições formais, com recursos oriundos da arreca­dação de tributos, (co-)financia instituições educacionais, fundos

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previdenciários ou ramos da economia por si só inviáveis, todas es­sas prestações pressupõem as dos cidadãos. Ora, sobretudo na de­mocracia os cidadãos, num primeiro instante, estão organizados em relações de coordenação, não de subordinação. Ao passo que cada distribuição, em virtude da sua assimetria, se assinala por um ca­ráter maternalista ou paternalista, com mentalidade assistencialista, o padrão básico da cooperação de pessoas iguais cifra-se na reci­procidade, quer dizer, na troca.

O fato de a troca se prestar perfeitamente à justificação da justiça social, respectivamente do Estado de bem-estar social que lhe corresponde, pode ser percebido em uma outra tarefa social clássica, isto é, na responsabilidade pela geração mais idosa. Aqui existem três formas fundamentais de troca. Na forma mais simples, positiva e sincrônica, as pessoas mais velhas e mais jovens inter­cambiam as suas capacidades, experiências e também relações es­pecíficas da idade. A segunda troca, diacrônica e negativa, estende­se a desistências do uso da violência com defasagem no tempo. Para que possam crescer, as crianças estão interessadas em que a sua fraqueza não seja objeto de abuso; o mesmo vale para os pais com saúde fragilizada, que querem envelhecer com dignidade. Como o ser humano nasce, não apenas impotente, mas também extremamente necessitado do auxílio e, depois de um período de relativa independência, de novo deixa o mundo carente de ajuda, existe, em terceiro lugar, a troca diacrônica positiva: as ajudas re­cebidas no início da vida são "compensadas" mais tarde pelo am­paro dado aos mais idosos. Em perspectiva evolucionista, a troca correspondente ocorre, de começo, no âmbito da família e da gran­de família, da parentela, equivalendo a uma espécie de contrato entre pais e filhos, celebrado com vistas a uma ajuda com defasa­gem de tempo e, não obstante, recíproca.

2. Justiça compensatória

Outras razões em benefício da justiça social resultam da complementação necessária para a efetivação da justiça da troca, vale dizer da justiça compensatória (corretiva). Um primeiro argu-

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mento lembra a necessidade de amparo dos recém-nascidos, postos no mundo sem a sua própria vontade. Encontram-se em uma situa­ção emergencial causada por terceiros e para cuja superação os responsáveis, os pais, devem assisti-los.

Há muito tempo, o "contrato familial'' se transformou num "contrato intergeracional" suprafamilial, em parte porque as rela­ções sociais se tornaram mais complexas, em parte devido à perda de força da moral familial garantidora da troca com defasagem no tempo. Mais uma vez, essa extensão da abrangência do contrato familial é recomendada pela justiça compensatória, pois as coleti­vidades, instituições de segunda ordem, tiraram o poder das insti­tuições primárias, da (grande) família ou da parentela (ou do clã), também de comunidades solidárias secundárias, como as corpora­ções e os municípios, no concernente aos seus direitos próprios e ao seu peso próprio, bem como no tocante à sua dotação financeira. Cabe ao Estado nacional pagar uma indenização na forma de uma fiança para a cobertura de déficits, assumindo aquelas tarefas que as instituições destituídas de poder ou não podem mais cumprir ou só podem cumprir de modo insatisfatório. Torna-se, porém, impe­rativa não tanto uma assistência- muitas vezes tuteladora- quanto uma "ajuda para a auto-ajuda", em parte indiretamente, pela via dos seguros previdenciários, em parte diretamente, e.g., pela via de uma política econômica e social, que cuida do bem-estar de toda a sociedade, ou pela via de uma política educacional, que não pro­porciona a todos as mesmas chances educacionais e de formação profissionalizante, mas as chances adequadas ao talento de cada um. Vale genericamente este princípio: a justiça social não exige resultados iguais ("justiça de resultados", melhor: igualdade de re­sultados) pela simples razão de eles poderem ser malbaratados por culpa própria. Ela também exige que não neguemos nem diferenças de talento, nem diferenças de "empenho no trabalho". Outras tare­fas de indenização resultam de violações do direito cometidas no passado: da escravidão, da servidão da gleba e da servidão heredi­tária, da colonização, do imperialismo e de um tratamento multis­secular desigual da mulher.

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Existem, outrossim, desenvolvimentos civilizatórios, como a industrialização, a urbanização e a especialização do trabalho, também a globalização, que produzem um complexo de oportuni­dades e riscos, cujo saldo geral é considerado proveitoso, do ponto de vista coletivo, mas que acabam colocando alguns grupos em si­tuação desvantajosa, levando a merecê-los uma indenização. O valor desta depende da medida da situação mais vantajosa dos ou­tros: aproximativamente, da situação do orçamento público. Por isso, cortes condicionados pela escassez não são por si só injustos. De resto, não se deve perder o senso das proporções. Diante das di­ficuldades atuais, não deveríamos esquecer que as do século XIX foram muito maiores.

Segundo esse padrão de argumentação, uma grande parte daquelas tarefas do Estado de bem-estar social, que o jurista Ernst Forsthoff (Verwaltung I Administração. 1938) resume no conceito "Estado de Provisão da Existência", provam ser um dever de com­pensação e uma responsabilidade estatal socorrer os desfavoreci­dos. Aparentemente. o Estado de bem-estar social pode afigurar-se uma comunidade solidária ou uma comunidade baseada na justiça distributiva, mas no seu cerne ele se legitima, no aspecto normati­vo, a partir da justiça da troca e da justiça compensatória e, no as­pecto descritivo, a partir de relações sociais alteradas. De acordo com a Constituição, a Alemanha é um Estado "social" (Lei Fun­damental, Arts. 20, inc. 1, e 28, inc. 1). Aprecia-se detalhar essa declaração lapidar, mediante a enumeração de quatro tarefas: (1) a garantia de um mínimo necessário à existência, (2) a produção de maior igualdade (via de regra se pensa na dimensão financeira), (3) a garantia de maior segurança e (4) o aumento do bem-estar e a di­fusão da participação nele. Enquanto as tarefas (1) e (3) resultam com relativa facilidade da argumentação esboçada, o cumprimento das tarefas (2) e (4) se afigura mais difícil.

3. Justiça entre as gerações

Mesmo com relação à "nova questão social", isto é, a pro­teção do meio ambiente, o raciocínio, em termos de troca, não é

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falho. Por um lado, a natureza natural é uma grandeza preexistente que não deve ser trocada, mas distribuída. Por outro, a parte pre­ponderante dos processos sociais e civilizatórios consiste em trans­formações da natureza nas quais importam a justiça comutativa e a justiça compensatória. Se, e.g., o modo pelo qual o meio ambiente natural é transmitido à geração seguinte co-determina as oportuni­dades e os riscos de vida dessa geração, um contrato entre as gera­ções somente é justo, se à próxima geração não forem legadas hi­potecas, sem ao mesmo tempo legar fianças de valor correspon­dente. De acordo com isso, e.g., a exploração de fontes não­renováveis de energia somente é justa sob o pressuposto de que a exploração não se dê mais rapidamente do que o acesso a novas fontes.

Visto a natureza natural representar um dado primigênio, então considerá-la como bem comum da humanidade, pertencente por igual a cada geração, afigura-se intuitivamente plausível. Ela se comporta como um capital de cujos juros cada geração pode viver, sem tocar o próprio capital. Não importa se indivíduo, grupo ou ge­ração - quem toma para si algo pertencente à propriedade comum está obrigado a dar de retorno algo equivalente. E tal como os pais preferem transmitir aos seus filhos uma herança maior, assim uma geração generosa lega uma Terra mais rica à próxima, na medida do possível.

O dever comum a todos não se estende apenas ao meio ambiente natural, mas também ao meio ambiente cultural, social e técnico. Ele diz respeito a conquistas da cultura, incluindo a língua, a literatura, a arte, a música e a arquitetura; além disso, concerne à infra-estrutura civilizatória, como vias de comunicação, canaliza­ção, sistema educacional e de saúde; outrossim, refere-se à quali­dade arquitetônica das cidades e ao valor do lazer da paisagem; respeita, ademais, ao conhecimento científico, médico e técnico, às instituições jurídicas e sociais e, não em último lugar, à acumula­ção do capital e ao desenvolvimento demográfico. Em todas essas áreas, cada geração deve cultivar uma poupança tridimensional, de modo nenhum apenas econômica: uma "poupança preservadora", isto é, uma preservação de instituições e recursos; uma "poupança

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investidora" (de capitais, infra-estrutura, técnicas do futuro, etc.) e uma "poupança preventiva", isto é, o impedimento de guerras, ca­tástrofes ecológicas, colapsos econômicos e sociais.

O fato é que realmente ocorre o contrário. No âmbito do Produto Social Bruto, aumentaram as atuais despesas (encargos so­ciais, custos do sistema de saúde, encargos com aposentadoria por idade e o pagamento da dívida pública), ao passo que as despesas para o futuro (investimentos no sistema educacional e em outras áreas da infra-estrutura social e material) diminuíram. Esse deslo­camento da parcela de investimentos para a parcela de consumo (no sentido amplo desse termo) equivale a uma injustiça contra as gerações futuras. A distância cada vez maior, sobretudo na Alema­nha, entre as rendas e o patrimônio crescente das pessoas mais ido­sas e a evolução regressiva dos investimentos na educação, não é apenas uma ameaça para o futuro; infringe também a justiça entre as gerações. O presente vive a expensas do futuro.

Também as providências para pais jovens fazem parte da justiça entre as gerações. Eles, sobretudo as mulheres. necessitam de regras mais t1exíveis da jornada de trabalho, ocupação remune­rada de tempo parcial e salários-família bem melhores, inclusive de jardins de infância e creches. Por fim, os jovens devem ser incluí­dos em tempo hábil na responsabilidade econômica, social e políti­ca, em vez de estarem expostos a uma crescente gerontocracia, ao acúmulo de cargos e posições de uma parcela cada vez mais idosa da população (cf. Cap. XIII 5).

4. Justiça e solidariedade

Muitas vezes, a justiça social é sinonimizada com a solida­riedade. Em verdade, esta última ocupa uma posição intermediária normativa entre a justiça não mais devida e o amor voluntário às pessoas.

Originariamente, no direito romano, a solidariedade (obli­gatio in solidum) foi sinônimo de obrigação comunitária. De acor­do com a fórmula "um por todos e todos por um", o indivíduo aju­da a comunidade, quase sempre a uma família, assim como esta

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ajuda o indivíduo. Aproximadamente no fim do século XVIII esse rigoroso conceito de obrigação é estendido a relações não­jurídicas, embora o cerne conceitual seja mantido. Desde então, solidariedade significa (1) uma responsabilidade recíproca, a obri­gação recíproca (2) em situações de risco e emergência (3) em gru­pos que se caracterizam por relações estreitas de seus membros, em parte involuntariamente, como no caso de irmãos, em parte por li­vre escolha, e.g., enquanto membros de uma expedição, ou devido a um destino casual como, por exemplo, uma catástrofe natural. Comunidades solidárias são comunidades em situações de perigo, cujos membros "estão sentados no mesmo barco" e nessa situação (4) desenvolvem vínculos emocionais entre si que são tanto mais fortes quanto mais comovente for o destino compartilhado.

Mas a solidariedade não é requisitada em todas as situa­ções emergenciais. Por um lado, alguém que é co-responsável pela miséria alheia deve ajudar, por razões de justiça; por outro lado, a ajuda é um imperativo de amor à humanidade, nos casos de miséria com exclusiva culpa das vítimas. Mas a solidariedade é recomen­dada onde a alternativa culpa alheia ou própria não existe e onde estamos mais ou menos diante de um destino. De acordo com sua característica, podemos distinguir três tipos de solidariedade: (1) a "solidariedade cooperativa", segundo o modelo da seguridade soci­al, procura enfrentar riscos individuais em conjunto, onde somente o tipo do risco, e.g., a doença, o acidente e o desemprego são pre­visíveis, mas não a pessoa afetada, nem o momento da ocorrência e o seu impacto; (2) a "solidariedade antagônica" persegue interesses coletivos contra coletividades concorrentes, v.g., na resistência contra inimigos; (3) a "solidariedade contingente" serve à supera­ção de golpes imprevistos do destino, mas coletivos, como, por exemplo, catástrofes naturais.

Como ajuda a título de reciprocidade, a solidariedade si­gnifica uma fraternidade que, porém, não segue o modelo assimé­trico segundo o qual os irmãos maiores ajudam os menores. Por essa razão, a sua idéia fundamental é estendida na direção do amor à humanidade, onde aos mais fortes cabe o dever de defender os mais fracos, embora aqueles, por serem nitidamente e por longo

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prazo superiores, quase nunca experimentem uma contrapartida. E mesmo se existem margens de interpretação e de avaliação, jamais se deve abandonar o significado nuclear: a ajuda a título de reci­procidade numa comunidade portadora de um destino comum, da qual eventualmente nos beneficiaremos também.

5. Justiça com animais?

A proteção dos animais tem uma longa tradição. Mas sob a suposição de que a justiça somente desempenha um papel entre se­res hierarquicamente iguais, ela é via de regra localizada fora da justiça, por exemplo na compaixão que merecem todos os seres ca­pazes de sentir dores e sofrer. Porém, ao menos na domesticação ocorre uma relação de reciprocidade, razão pela qual se deve falar de justiça.

Dentro dos limites que as espécies biológicas e os fins dos seres humanos traçam, surge, no curso da domesticação, uma coo­peração na qual ambas as partes tanto se adaptam uma à outra quanto provêem muitas vantagens, pois, por um lado, o animal se torna, no sentido literal do termo, um doméstico, isto é, um criado, acolhido no domus, no espaço de vida do homem. Por outro lado, o homem também se ajusta às necessidades do animal, complemen­tando, e.g., a sua casa com um estábulo e uma pastagem.

Não sem razão Aristóteles admite que os animais domesti­cados vivem melhor do que os animais selvagens (Política, I 5, 1254b 10-13 ), pois animais domesticados são exonerados da obri­gação de lutar pela sobrevivência e, além disso, fomentados no seu bem-estar: um bom pastor protege as ovelhas do lobo, procura boas pastagens e cuida das fêmeas de cria e dos seus recém-nascidos. Nesse sentido, ele com efeito exerce a justiça, pois facilita a vida do animal em troca da vantagem que dele aufere. De acordo com a conhecida doutrina de Aristóteles (Ética a Nicômaco, VIII 2), pode-se falar aqui de uma amizade com vistas a vantagens recípro­cas. No caso de animais domésticos, chega-se inclusive a uma mútua afeição, que é subsumível à amizade, por causa de experiên­cias agradáveis que ela proporciona. Em ambas as relações, é sub-

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vertida a alternativa entre "pessoa ou coisa", predominante desde o direito romano. No caso da amizade para fins de vantagem, o ani­mal é tratado como um parceiro comercial, quase como um sócio numa empresa, e, no caso da afeição recíproca, a parceria trans­cende em muito as relações comerciais.

De acordo com o princípio da compaixão, todos os animais capazes de sentir dor e de sofrer merecem a mesma amigável aten­ção, embora não tenham direito a ela. De acordo com a idéia da justiça, há diferentes graus de responsabilidade e ao menos germi­nalmente também um direito: como o homem, no curso da domes­ticação, torna os animais dependentes de si, ele tem por eles uma responsabilidade maior do que pelos animais selvagens. No que tange à domesticação, impende ao homem maior responsabilidade pelos animais que vivem no seu próprio espaço vital do que pelos que vivem fora desse âmbito. Mas uma certa obrigação de justiça existe também com animais selvagens, pois uma civilização, que lhes restringe crescentemente o espaço de vida, deve-lhes uma compensação, e.g., na forma de reservas com espaços amplos para a fauna.

A recente industrialização da criação de animais alterou fundamentalmente a relação com eles. Por um lado, não rompeu de todo os vínculos de cooperação, mas deteriorou, de modo drástico, o balanço das vantagens e desvantagens para os animais. Aqui se faz mister um movimento de reação. Uma criação de animais mais adequada às necessidades das respectivas espécies é imperiosa, não apenas no interesse próprio do ser humano, e.g., para dispor de carne mais saudável e saborosa, mas também por razões de justiça.

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XII

JUSTIÇA NO PLURALISMO: TOLERÂNCIA

A maioria das sociedades do presente caracteriza-se por uma múltipla justaposição e contraposição, por um pluralismo multifacetado, não apenas em termos políticos, mas também em termos sociais, religiosos e culturais, e não em último lugar por um pluralismo de concepções axiológicas orientadoras. Essa multipli­cidade não é apenas um fato, mas possui também um certo valor. Sem cair num relativismo, que reconhece em cada forma de vida as mesmas oportunidades de auto-realização humana, não há como negar que o pluralismo deixa emergir uma riqueza maior de possi­bilidades humanas do que indivíduos e grupos homogêneos poderi­am viabilizar por si sós. Como quer que seja, nenhuma instituição com o poder de coagir tem o direito de obrigar seus membros, que sempre são pessoas auto-responsáveis e cidadãos emancipados, a determinadas formas de vida. Na medida em que o pluralismo dei­xa às pessoas mais diversas imagináveis a liberdade para a sua própria forma de vida e a todas a concede, ele está defendendo a justiça. Sem ser um valor em si ou um fim em si mesmo, o plura­lismo se legitima a partir do princípio orientador da justiça política, ou seja, do direito igual à liberdade.

Possui tolerância quem reconhece livremente o pluralismo. O seu estágio fundamental, uma tolerância mais passiva, consiste na aceitação e acatamento das peculiaridades alheias. Como as pes­soas se distinguem nas suas necessidades, interesses e talentos e como de resto ninguém está imune a enganos, preconceitos e erros,

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a tolerância passiva integra as condições de um convívio civilizado com outras pessoas.

A tolerância ativa vai muito além. Ela não apenas deixa a outra pessoa viver como quer, o que aliás é exigido por lei. Assente também espontaneamente ao direito do outro à sua vida, liberdade e vontade de desenvolvimento. Fundamentada na liberdade e di­gnidade de todo homem, essa tolerância combina a capacidade para a própria alteridade com o reconhecimento do outro como sendo de igual valor. A partir de uma liberdade intrínseca, a pessoa ativa­mente tolerante não mais busca uma vida dimensionada com vistas à conversão violenta do oponente ou à vitória sobre ele, mas, ao contrário, um convívio, fundamentado na igualdade e no entendi­mento. A sua tolerância somente finda onde é violado o funda­mento de legitimação: a liberdade e dignidade de todas as pessoas, manifesta nos direitos humanos.

A tolerância cívica ainda vai um passo além da tolerância ativa. Reconhecendo o direito de todos os concidadãos de desen­volver convicções próprias, consciente do perigo de sucumbir a er­ros ou preconceitos nas próprias convicções, e consciente de que, apesar de convicções iniciais concorrentes, é necessário chegar por fim a uma decisão vinculante para todos, ela tanto é capaz quanto também está disposta a submeter à discussão as convicções própri­as e, se for o caso, a abrir mão delas. Naturalmente não importam todas as convicções, mas apenas as relevantes para a criação e ma­nutenção de um ordenamento jurídico comum. Quem desenvolve essa tolerância apenas por razões estratégicas ou pragmáticas, v.g., para não atrair sobre si a fama de inimigo da democracia, abandona a democracia justamente no momento em que ela mais necessita da tolerância cívica: em momentos de insatisfação crescente e genera­lizada diante da democracia. Uma tolerância cívica não apenas fundamentada em argumentos pragmáticos pertence às condições de possibilidade de uma democracia pluralista. Recomenda-se dis­tinguir três graus, com vistas à elaboração de um conceito mais preciso de democracia pluralista:

O grau mais baixo, que é a competência legalista, consiste na capacidade e disposição de observar as leis vigentes de uma

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democracia pluralista. Ele corresponde a uma virtude cívica ele­mentar, isto é, ao senso do direito. No segundo grau, em uma com­petência deliberativa, as pessoas têm capacidade e disposição de se distanciar das suas convicções mais íntimas e discuti-las a partir desse distanciamento. No terceiro e mais elevado grau, no da com­petência dispositiva, as pessoas aceitam até abrir mão das suas convicções e eventualmente alterá-las com base em argumentos bem-ponderados.

Tudo indica que o cidadão ideal de uma democracia plura­lista se move no terceiro grau, no da plena tolerância cívica. Ape­sar disso, ela não deve ser exigida, pois a democracia se distingue nitidamente do Estado autoritário, por não exigir dos seus cidadãos que abram mão do núcleo mais recôndito das suas convicções, as quais de qualquer modo formam o conteúdo da sua consciência. Ela nem sequer exige plenamente o segundo grau da tolerância cí­vica, ou seja, que cada um discuta abertamente as suas convicções mais íntimas. Satisfaz-se com uma competência deliberativa fraca, com a disposição de deliberar consigo mesmo e aconselha-se com seus amigos. Porém, mesmo isso não pode ser obtido por coação, nem pode ser exigido, mas pelo menos esperado. Pode-se, no en­tanto, impor a exigência de que não sejam defendidas em público convicções que contradigam os fundamentos do Estado democráti­co de direito ou representem uma conclamação à violência. Resistir ao inimigo radical da democracia não só é lícito, mas imperioso.

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XIII

JUSTIÇA GLOBAL

Estranhamente é do gosto dos filósofos falar sobre o uni­versal e não obstante negligenciam a justiça da comunidade políti­ca universal, a de toda a humanidade. Na Antiguidade greco­romana não são Platão e Aristóteles, os eminentes representantes da filosofia política, que refletem sobre uma república universal, uma cosmópole, mas só os estóicos. Porém, o cosmopolitismo es­tóico é quase sempre apolítico. Na Idade Moderna o desiderato se repete. A primeira e até hoje única exceção entre os clássicos da filosofia é Immanuel Kant, com o seu projeto filosófico A Paz per­pétua (1795) e as pertinentes passagens da Doutrina do direito (§§ 53-62). Para Kant, a idéia de uma ordem universal de paz e de di­reito não representa um tema ocasionalmente relevante, mas cons­titui um motivo fundamental de todo o seu pensamento. Hoje, na era de uma globalização múltipla, esse pensamento reveste-se de especial atualidade.

1. Uma república federativa universal

A idéia ainda pouco familiar de uma ordem universal, in­ter- e supra-estatal, que assegure o direito e a paz, justifica-se a partir dos princípios da justiça política, conhecidos já dos Estados individuais, cuja justiça assenta no governo de regras, quer dizer no direito. Visto regras não se efetivarem a si mesmas, são necessári­os, em segundo lugar, poderes públicos. O terceiro princípio da justiça, a democracia, deriva do povo; o quarto declara os direitos humanos como critérios aos quais os poderes públicos em qualquer

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caso hão de subordinar-se. Uma coletividade que reconheça estes quatro princípios - o direito, os direitos humanos, os poderes pú­blicos e divididos, bem como a democracia - pode denominar-se democracia constitucional, Estado de constituição democrática ou, numa palavra, república.

A partir dessa comunidade jurídica familiar, intra-estatal, acedemos à figura não-familiar, inter- e supra-estatal, com ajuda de um princípio de ligação, a saber, a descoberta de que os Estados se comportam isoladamente como indivíduos se comportam no to­cante a aspectos importantes. É certo que eles não são totalidades orgânicas, mas sujeitos coletivos capazes de tomar decisões e agir. Por isso, os argumentos de justiça em favor de um Estado indivi­dual valem também para a relação entre os Estados. É necessário, pois, um um ordenamento jurídico mundial com uma certa estati­zação mundial, quer dizer, de uma república mundial (cf. Héiffe. Demokratie im Zeitalter der Globalisierung I Democracia na era da globalização. 1999).

Na opinião de (hiper-)globalistas, deve até existir um Esta­do mundial único, agora global, um império mundial estatalmente homogêneo. Como ele absorveria todos os Estados individuais, estaria ameaçada a integridade social e cultural de comunidades ju­rídicas existentes e, simultaneamente, a multiplicidade social e cultural da humanidade.

Outras objeções não se dirigem apenas contra um império mundial, mas contra toda e qualquer espécie de Estado mundial. Enfatizam a sua distância do cidadão comum, outrossim a sua in­governabilidade ou o risco de uma burocratização excessiva e a falta de pressupostos necessários, tais como convicções global­mente comuns sobre o direito e a justiça e uma esfera pública glo­bal no terreno da política. Além disso, bastaria que todos os Esta­dos evoluíssem e se transformassem em democracias, pois estas se­riam pacíficas diante de ordenamentos políticos de igual natureza e, por intermédio da formação de uma rede de organizações gover­namentais e não-governamentais inter- e supranacionais, e de um direito internacional mais ampliado e detalhado, viabilizariam uma

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ordem global sem Estado, por assim dizer um Estado ultramínimo em escala global.

A oposição aqui sugerida entre o império universal esta­talmente homogêneo dos (hiper-)globalistas, por um lado, e do es­tado universal ultramínimo, por outro, pode ser dissolvida medi­ante recurso a um princípio duplamente escalonado de economia política: de acordo com o primeiro estágio, não se deve criar ne­nhuma unidade política que não se mostre necessária. Isso vale para uma determinada medida de estatização mundial. Pois, por um lado, ocorre há anos uma globalização de dimensões múltiplas que de modo nenhum se restringe aos mercados econômicos e financei­ros. Pelo contrário, ela se estende a três dimensões: a uma "comu­nidade global da violência" (com respeito a guerras, ao crime or­ganizado e aos danos ambientais); a uma "comunidade global da cooperação" (no tocante à economia e às finanças, ao mercado de trabalho, ao turismo e, sobretudo, também à educação, ciência e cultura); por fim, a uma "comunidade global em termos de desti­no" (no que se refere a grandes movimentos migratórios, a catás­trofes naturais e ao subdesenvolvimento de amplas regiões do mundo).

Nessas três áreas surge agora uma grande demanda global de ações, impossível de ser satisfeita apenas pelos países individu­almente. Para muitas tarefas, basta uma cooperação entre os países e unidades políticas de porte médio, como a União Européia, quer dizer, estágios intermediários macrorregionais ou (sub)continen­tais. Outras tarefas, porém, não podem ser solucionadas desse modo ou não podem sê-lo satisfatoriamente. Isso vale não menos para uma ordem internacional fundada na paz do que para uma proteção internacional do meio ambiente, máxime do clima, para a criação de tribunais internacionais e a definição de critérios míni­mos sociais e ecológicos. Ora, para que essas tarefas sejam cum­pridas, segundo o padrão da conquista moral-política da moderni­dade, o Estado democrático, social e ecológico de direito, a idéia de um Estado ultramínimo deve ser rejeitada, fazendo-se necessá­rio organizar uma certa medida de Estado de direito em escala glo­bal e de democracia global, isto é, uma república mundial.

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De acordo com o segundo estágio da economia política, novas unidades políticas, se for provado serem necessárias, não mais deveriam receber competências essenciais; elas possuem le­gitimidade meramente subsidiária. Por isso, o oponente direto do Estado ultramínimo, o Estado mundial (hiper-)global, não é mister, pois ele dispõe de um excesso de Estado mundial. Imperiosamente necessária, por motivos de justiça, é somente aquela república mundial subsidiária que não dissolve os Estados individuais, nem os estágios intermediários continentais (europeus, africanos, etc.), mas, antes, os reconhece como coletividades primárias ou secundá­rias, em termos de teoria da legitimação. Assim a república mundi­al exigida do ponto de vista da justiça não é nenhum Estado mun­dial centralista que absorve todos os países individuais e busca dominar todo o mundo a partir de uma metrópole, e.g., como a Roma antiga ou a Comunidade Britânica em época mais recente. Ela não é nenhum Estado centralista, mas uma federação mundial. Denominamos soft law, direito suave, as regras que não satisfazem o conceito rigoroso do direito. Correspondentemente o ordena­mento jurídico mundial inicia como soft world republic, como re­pública mundial suave, quer dizer, como rede política global já determinada por regras ("Legislativo suave"), que logram impor-se de um ou outro modo ("Executivo suave") e já conhecem germes de um sistema judicial global, ao menos de um sistema arbitral global ("Judiciário suave"). O próximo passo pode ser uma federa­ção mundial de países que, pouco a pouco, e apenas em lapsos mais longos de tempo, se desenvolve na direção de uma república mundial federativa. E como unidade estatalmente subsidiária e fe­deral, ela tem competência tão-só para tarefas que nem os países individuais nem os estágios macrorregionais intermediários podem realizar, seja isoladamente ou em regime de cooperação, valendo o mesmo para a sociedade global dos cidadãos.

2. O direito à diferença

Na opinião de uma vertente mais recente da filosofia soci­al, o assim chamado comunitarismo, um nivelamento perigoso pai-

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ra como ameaça sobre a humanidade na era da globalização. À gui­sa de contraponto, seria necessário contra ele um fortalecimento generalizado das particularidades e no seu âmbito uma proteção dos Estados individuais. Com efeito, muitos Estados individuais vivem a partir de uma história comum e possuem a sua tradição, cultura e língua determinadas ou um plurilingüismo bem-definido. Quem, por conseguinte, dissolve Estados, não apenas restringe sensivelmente a riqueza da humanidade, mas coloca também em risco a identidade daqueles que, em última instância, importam: a dos indivíduos, que, porém, não estão isolados. Apesar de toda a individualidade ou, muitas vezes, precisamente com vistas a esse fim, eles pertencem a comunidades subglobais que, por sua vez, têm direito à peculiaridade, direito à diferença. De outra parte, os Estados individuais atualmente existentes não são um fim em si mesmos, digno de proteção incondicional. Eles podem dissolver­se, recompor-se e assim transformar-se, tanto em unidades menores quanto em unidades maiores. Sobretudo, tal como os indivíduos e os grupos, essas unidades não podem desobrigar-se dos quatro princípios mencionados da justiça política. Estados também estão sujeitos aos imperativos universais do direito e da democracia.

Podemos conceber três estratégias de argumentação para uma justificativa democrática de uma federação mundial, em últi­ma instância de uma república mundial. De acordo com a primeira legitimação, exclusivamente cidadã, a democracia mundial (subsi­diária e federativa) resulta da vontade do povo de um Estado glo­bal, que compreende toda a população mundial. Como os indivídu­os são a última instância de justificativa, poder-se-ia considerar adequada essa estratégia, pois os interesses de Estados são legiti­mados pelos dos seus cidadãos, de modo que poderíamos excluir os Estados individuais como instância autônoma. Opõe-se, porém, a isso, o direito à estatalidade individual, combinado com a cir­cunstância de os interesses de grupos não poderem ser reduzidos à soma dos interesses dos seus membros.

De acordo com a estratégia contrária, isto é, a legitimação exclusiva do Estado, o único fator a decidir é a vontade de todos os Estados individuais, pois eles representam os interesses, tanto dos

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cidadãos individuais como os da cidadania enquanto totalidade. Tal afirmação, porém, é impugnada pelo simples fato das filiações que se colocam na contramão da estatalidade, e.g., religião, língua e profissão, hobbies exigentes ou aqueles interesses político-sociais representados por organizações como a Anistia Internacional ou Médicos sem Fronteiras, outrossim a situação de diáspora, e.g., de irlandeses, judeus e curdos.

Já em virtude dessas "filiações que contra-arrestam o Esta­do", a segunda legitimação também é eliminada, de modo que se faz necessária uma terceira estratégia, de natureza combinada: a junção da justificação da cidadania com a justificação do Estado. De acordo com ela, todo e qualquer poder de Estado do Estado mundial emana do seu duplo povo estatal: da comunidade de todas as pessoas e da de todos os países e unidades macrorregionais. Essa dupla estratégia deve refletir-se na organização da república mun­dial. Assim, para citar um exemplo, seu órgão supremo, o legisla­dor mundial enquanto parlamento mundial, deve consistir de duas câmaras, de uma Dieta Mundial. como Câmara dos Cidadãos, e de um Conselho Mundial como Câmara dos Países. A dupla estratégia reflete-se também numa nacionalidade múltipla de novo tipo. Se uma pessoa é primacialmente alemã, italiana ou polonesa e só de­pois cidadã européia, caberá às democracias européias decidi-lo nos próximos anos. Em primeiro lugar, as pessoas são, de qualquer modo, ou cidadãs do seu país ou cidadãs da Europa; secundaria­mente, elas possuem a outra identidade, por conseguinte as duas identidades de modo escalonado; e por último elas são cidadãs do mundo: cidadãs da república mundial subsidiária e federativa.

3. Tarefas globais do direito

Muitas tarefas a sociedade mundial pode deixar a cargo da evolução social e da livre concorrência, inclusive da concorrência entre as instituições. Mas, para que o preço da globalização não seja um retrocesso nos planos do direito e da democracia, a globa­lização é responsável pelos "direitos humanos ou fundamentais dos Estados": pela tutela da sua autodeterminação política e cultural e

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pela sua integridade territorial, inclusive ambiental. Outras tarefas se localizam nas seguintes áreas:

Judiciário mundial. A globalização não elimina a crimina­lidade. Nem o terrorismo, nem o contrabando de armas, nem o trá­fico de drogas, nem o de pessoas, respeitam as fronteiras entre os Estados. Igualmente transestatal é o imperativo de justiça contido no conceito do Judiciário. Mesmo se o direito penal é essencial­mente matéria de competência dos Estados individuais, não se lhe deve subtrair a criminalidade transnacional. Por causa disso neces­sita-se de um Poder Judiciário global, de um Judiciário mundial. no sentido de um direito penal mundial, que pode ser instituído de modo tridimensional. Algo análogo vale para as outras áreas de um Judiciário global:

(1) Um "direito penal nacional de caráter mundial" atenta para a validade intercultural, tanto no tocante aos delitos dignos de punição como no respeitante aos princípios pro­cessuais, às penas e à execução das mesmas. Quando essa condição é satisfeita, e.g., com base em uma legitimação e limitação comprometida com os direitos humanos, existe uma competência fundamentada em termos de moral jurí­dica para condenar pessoas que, por um lado, são originá­rias de outras culturas jurídicas, mas cometeram o seu de­lito no país em questão. (2) Um "direito penal mundial transnacional"- mais uma vez graças a uma justiça penal interculturalmente válida -dispõe-se a aplicar o direito penal em caráter substitutivo. De acordo com isso, um grande traficante de drogas, que comete o seu delito no país A, mas é preso no país B, pode ser perfeitamente julgado e condenado no país B. (3) Uma "justiça de caráter mundial" ou "justiça cosmo­polita" ocupa-se com "crimes contra o humanum" pelos quais, com razão, a "humanidade" se sente responsável e que ela persegue, caso determinados governos não os per­sigam e talvez até eles próprios os cometam.

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Proteção da cidadania mundial. O novo gênero de outros compromissos não pode desviar a atenção da dupla tarefa funda­mental: que todas as pessoas devem ter assegurada, em todos os lugares do mundo, a mesma proteção dos direitos humanos. Es­trangeiros pacíficos já na fronteira não podem ser espoliados, arbi­trariamente presos ou mesmo escravizados - pelos órgãos públicos ou com sua anuência -, nem podem, uma vez admitidos no país, ser subtraídos à proteção do direito civil e do direito penal. No caso de eventuais déficits na proteção jurídica nacional, deve-se poder acionar, não apenas o próprio governo perante o Judiciário, mas também apresentar sua queixa, além das instâncias intranacionais, perante um tribunal mundial.

Como na república federativa mundial o direito de cidada­nia mundial não supera, mas apenas complementa o direito de ci­dadania nacional, não é ilegítimo restringir outros direitos, e.g., os de estrangeiros, à aquisição de imóveis ou obras de arte, o direito à participação democrática ou o direito irrestrito de ir e vir. Por um lado, o país de origem não pode proibir aos seus cidadãos a emi­gração, nem a troca da nacionalidade, pois, de acordo com um en­tendimento mais amplo da liberdade religiosa e de consciência, eles têm o direito de preferir as particularidades (sociais, políticas e culturais) de outro Estado. Por outro lado, não existe uma preten­são de direito de poder ficar permanentemente em qualquer Estado, participar com direitos iguais da sua estrutura e usufruir as benes­ses do seu bem-estar social; em resumo, não existe um direito hu­mano à imigração.

O mercado mundial também funciona de acordo com for­ças anônimas ou, dito em termos simplificados, segundo a lei da oferta e da procura. Quem, pois, pretende abrir mão de toda e qual­quer ordem planejada ignora que as forças promotoras da prosperi­dade, como o risco e o esforço, devem ser conquistadas na luta contra uma inércia natural. Assim uma "inércia esclarecida" busca reduzir o risco e o esforço e com isso distorcer a concorrência. Por essa razão, distorções da concorrência são praticamente inevitáveis num mercado que é livre num sentido empírico e está entregue à

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sua própria dinâmica. A justiça que a isso se opõe pode ser deno­minada justiça econômica.

A distorção criminosa da concorrência, a fraude e a violên­cia ("métodos mafiosos") já são contra-arrestadas pela proteção ju­rídica convencional. Uma ordem global fundada no mercado opõe­se a três outras distorções: aos monopólios e oligopólios, aos car­téis e à concorrência desleal. Com vistas a isso, ela promulga um ordenamento da concorrência em escala mundial e institui um ór­gão mundial de combate aos cartéis, o qual, no entanto, não atua de forma centralista, mas subsidiariamente, avocando, portanto, so­mente aquelas tarefas residuais que os órgãos nacionais e macror­regionais (e.g., europeus) de combate aos cartéis não podem assu­mir.

Estado de bem-estar social e Estado de proteção ambiental em escala global? Fazem parte da justiça global critérios elementa­res de proteção social e ambiental e, não em último lugar, uma po­lítica de desenvolvimento que devem, ambos, ser desenvolvidos, a partir da idéia dos direitos humanos, para validade intercultural.

No caso dos critérios sociais, a república mundial só tem competência subsidiária, a saber, onde as coletividades não os re­conhecem espontaneamente. Aliás, o fato de a república mundial ser competente nessa matéria resulta de dois argumentos: o primei­ro argumento, cosmopolita, é relevante onde os ganhos da econo­mia nacional beneficiam quase que exclusivamente uma tênue ca­mada superior da sociedade. No seu papel de cidadãos do mundo, os prejudicados por essa economia podem invocar a república mundial e dela esperar ajuda para a implementação de condições sociais mínimas. O segundo argumento, localizado no direito das gentes, parte da concorrência entre as economias ou condições na­cionais: visto os países isoladamente, empenhados em atrair mais capital e empresas, procurarem ficar em níveis de critérios sociais e ambientais inferiores aos dos concorrentes, tais critérios são quase que forçosamente enfraquecidos. Como no âmbito de acordos vin­culantes em nível mundial se faz mister preferir medidas livres de coação, os países socialmente responsáveis podem criar sponte sua

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macrorregiões de comércio eqüitativo que só dão acesso aos con­correntes cumpridores das exigências sociais e ambientais míni­mas, e, além disso, abrem mão de barreiras comerciais alfandegári­as e não-alfandegárias e ajudam a desenvolver as indústrias expor­tadoras nos países mais pobres.

Não há dúvida de que a riqueza do planeta está distribuída de modo desigual. Nesse contexto causa assombro que freqüente­mente os países mais ricos em recursos naturais sofrem os efeitos da pobreza: miséria material, um baixo nível de educação e forma­ção profissionalizante, falta de um sistema de saúde elementar e ausência de proteção jurídica elementar. O simples amor aos seres humanos já ordena ajudar os necessitados. Mas esse imperativo não faz parte dos deveres jurídicos devidos, de modo que o fato da existência de países ricos e pobres ainda não encerra um argumento de moral jurídica para a redistribuição. É certo que um "dogma do debate internacional em torno da justiça" considera a justiça distri­butiva o cerne exclusivo da justiça e refere a distribuição ao res­pectivo resultado, não às condições iniciais. Mas a hipótese de que haveria uma quantidade previamente dada de recursos a serem dis­tribuídos da forma mais igualitária possível, entre todos os países, ignora o fato de que o que deve ser distribuído precisa, na sua mai­or parte, ser gerado pelo trabalho, de modo que as pessoas são co­responsáveis pela situação existente e a repressão da co­responsabilidade até equivale a um passe livre para atitude falha. De importância decisiva não é o estado atual da distribuição, mas uma combinação da distribuição originária com o trabalho próprio, desde as origens, e a correção de injustiças.

Ao passo que a distribuição originária se perde "nas trevas da pré-história", o homem pôde desde então adaptar-se às suas condições externas e assegurar uma vida suportável, mesmo sob condições extremas da natureza circundante, por meio do seu pró­prio esforço, e.g., por sua cultura do trabalho e do convívio social, inclusive por sua evolução demográfica. Do ponto de vista da jus­tiça, e num primeiro momento, as coletividades hão que ser consi­deradas responsáveis pelo seu próprio sustento, devendo-se, em determinados casos, supor um fracasso da política, ainda que isso

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soe duro. Com efeito, são numerosas as causas de desenvolvimen­tos falhos, e.g., a negligência do desenvolvimento de regiões rurais, as vantagens concedidas aos latifundiários e atacadistas, em detri­mento dos pequenos agricultores e varejistas, e o fomento da aqui­sição de objetos que dão prestígio, mas fazem pouco sentido. Co­responsáveis são também os reduzidos impostos sobre a renda e o patrimônio dos ricos, sem falar da "má gestão e corrupção" am­plamente difundidas e, não em último lugar, do crescimento demo­gráfico.

A culpa de muitos desses fatores, porém, é menos dos ci­dadãos em sua totalidade do que de uma elite do poder interessada na preservação do poder e na locupletação, em vez do bem comum. E nisso a ordem mundial tem uma certa co-responsabilidade, pois todo grupo que num país controla uma excessiva quantidade de meios de poder pode contar em ser reconhecido como governo le­gal e receber simultaneamente duas competências: de um lado, o poder de dispor das matérias-primas do país, inclusive o de trans­mitir direitos de propriedade sobre as matérias-primas, de forma ju­rídica internacionalmente válida; por outro lado, o direito de con­trair empréstimos em nome do Estado e onerar os cidadãos com a amortização dessas dívidas, independentemente da alternância de governos. Como as duas competências despertam a ganância de poder e dinheiro, elas levam freqüentemente à corrupção continua­da, mesmo na sucessão dos governos. Não sempre uma pessoa que está em dificuldades tem o direito a uma ajuda devida, por razões de justiça, mas, isso sim, onde, conforme aponta uma primeira ra­zão, as dificuldades tiverem sido co-causadas por instâncias exter­nas; e ela terá direito à ajuda na medida da co-causação. Nesse sentido, urge uma mudança da compreensão atual de soberania, tão-somente orientada segundo o poder, para um padrão mínimo de Estado democrático de direito.

A par das causas pelas quais nós mesmos somos responsá­veis e das causas pelas quais fatores externos são co-responsáveis, a falta de desenvolvimento remonta a um terceiro feixe de fatores, isto é, a uma injustiça maciça advinda de fora. Na colonização, na escravização e na dispersão de espaços de vida habitados, a justiça

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corretiva manda indenizar (compensar). No entanto, nem toda a sociedade pobre pode invocar indiferenciadamente a injustiça do passado, nem todo o mundo mais rico deve indenizar indiferencia­damente injustiças cometidas no passado. De acordo com o princí­pio do causador, a instância competente é antes a pessoa ou insti­tuição respectivamente responsável.

Um outro argumento da justiça corretiva resulta do fato de a vantagem coletiva do mercado mundial liberalizado não benefici­ar em igual medida todos os grupos e todos os povos. Por isso, o direito a uma compensação assiste tanto aos grupos quanto também às coletividades que assumem um risco maior da liberalização, quer passageira, quer permanentemente.

Não importa se estamos tratando dos recursos naturais ou da proteção do clima: mesmo uma extrapolação cautelosa da "situ­ação ambiental do mundo" projeta perspectivas tão sombrias que a proteção ambiental, no ordenamento jurídico mundial, merece o mesmo grau hierárquico da garantia de padrões sociais em escala global. Por um lado, poder-se-ia invocar a soberania do Estado contra a responsabilidade global. De outra parte, sempre que o meio ambiente é um bem que transcende as fronteiras, ele não pertence aos Estados individualmente. Em casos de excessos de poluentes, que se estendem além-fronteiras, a medida indicada não é a desistência de soberania, mas o respeito pela soberania dos ou­tros países. É certo que o princípio da subsidiariedade permanece válido: onde instâncias locais ou nacionais prometem bons resulta­dos, a república mundial deve atuar discretamente. Mas, no caso de perspectivas suficientes de lucro, e.g., com vistas a empregos ou ao imposto industrial, os diretamente afetados assumem riscos que os indiretamente implicados recusam com boas razões. Por isso, as instâncias inferiores nem sempre se comportam de modo justo. As gerações subseqüentes também estão expostas a uma injustiça cor­respondente. Enquanto a geração agora viva é simultaneamente prejudicada e beneficiada, as gerações futuras muitas vezes são apenas prejudicadas.

Aqui se faz necessária a já mencionada justiça entre as ge­rações (v. Cap. Xl.3): como a natureza natural, não-criada por ne-

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nhuma geração, é patrimônio comum da humanidade, cada geração e cada Estado individual, que tomam para si alguma coisa dessa propriedade comum, devem devolver de outro modo algo equiva­lente. Por isso, o princípio norteador da justiça reza assim: a soma da natureza natural e de equivalentes artificiais ("técnicos"), o ba­lanço ambiental, não pode deteriorar-se. Aqui não importa o valor absoluto, mas o valor per capita. Uma geração, que se arroga o di­reito de onerar mais o meio ambiente com uma população cres­cente, tem o dever de melhorar o balanço ambiental, considerado na sua totalidade, na mesma medida em que ela ameaça poluir mais o meio ambiente. Como aqui e em muitas outras áreas o presente vive às custas do futuro, e isso não ocorre apenas em escala regio­nal, mas também na rede global, a república mundial uma vez mais se vê conclamada a entrar em ação.

4. Justiça anamnética

À guisa de contraponto, faz parte da primeira dimensão da globalização, da "sociedade do poder global", uma "memória críti­ca do mundo", que mantém na lembrança as grandes violências e cultiva a justiça na sua evocação. Só uma memória mundial que não mais preserva os crimes com seletiva parcialidade, como até agora, e que ademais lembra a compensação, em alguns lugares du­radoura, em outros, porém, inexistente, só tal memória mundial justa ajuda a obviar futuras ações violentas.

No mínimo tão importante quanto esse ponto de vista pre­ventivo é o próprio argumento da justiça: a eqüidade com relação às vítimas exige da sociedade mundial que ela não se satisfaça com a recordação de alguns crimes especialmente graves e de modo ne­nhum os registre de forma seletiva. O fato de determinados geno­cídios estarem profundamente gravados na memória mundial, ao passo que outros são de preferência amesquinhados ou reprimidos, constitui uma "injustiça anamnética" elementar, frente às vítimas.

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S. Um senso de direito mundial e justiça mundial

Além de instituições, uma república mundial necessita também de virtudes de cidadania. Antes do mais, uma primeira virtude da cidadania mundial, o senso do direito mundial, é mister entre os países considerados individualmente, pois, com freqüên­cia, os cidadãos esperam dos seus titulares de cargos políticos que a legislação mundial só seja assumida de forma seletiva, onde ela serve ao interesse próprio (coletivo), quando muito ainda onde não são exigidos grandes sacrifícios. Para a república mundial, vale, portanto, o seguinte em analogia com o Estado individual: se o número preponderante dos cidadãos, na maioria dos casos, não caminha voluntariamente em conformidade com a legislação mun­dial, à medida que esta é integrada ao seu próprio ordenamento ju­rídico e implementada, por intermédio da administração pública e do Judiciário, a capacidade de implementação do direito da repú­blica mundial esbarra logo em limites. Além disso, existe também a ameaça dessa mentalidade de usufruir benesses, conhecida das Nações Unidas, organização mundial até agora existente: certos países aproveitam as vantagens sem ajudar a arcar com as desvan­tagens, isto é, em parte as contribuições financeiras, em parte a participação em missões da república mundial. E é sabido que um Estado, a Suíça, alberga instituições globais, sem aderir às Nações Unidas.

De Estados democraticamente constituídos seria lícito es­perarmos uma disposição mais intensa para a formação de um sen­so do direito mundial. Mas a psicologia social nos ensina a respeito da diferença entre comportamento interior e exterior: o que uma democracia cultiva internamente, a solução de conflitos em con­formidade com a lei, ela não o transfere como algo evidente às re­lações com o exterior. Além disso, uma democracia não é apenas um Estado de direito para tutelar bens jurídicos universalistas, mas também uma arena de combates para a consecução de interesses particulares. Nesse sentido, cidadãos habilidosos podem buscar vantagens especiais para si, eventualmente sob o pretexto de deso­bediência federativa mundial.

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Mesmo na república mundial as pessoas não estão apenas sujeitas às leis, mas colaboram na elaboração e promulgação das leis, pela intermediação de correspondentes organizações gover­namentais e não-governa.mentais. Como aqui aparecem problemas estruturalmente idênticos aos do Estado individual, necessita-se, aqui como ali, não apenas de medidas contrárias de natureza insti­tucional, mas também de um novo senso da justiça: para o parla­mento dos cidadãos mundiais é mister um senso cosmopolita de justiça; para o parlamento dos países do mundo requer-se um senso de justiça em termos de federação mundial.

Num Estado individual, o senso de justiça cumpre três tare­fas: a criação de um Estado democrático de direito, o seu aperfei­çoamento e a atuação dentro das balizas institucionais e legais. Es­sas três tarefas reaparecem na república mundial. Em termos obje­tivos, o primeiro estágio, caracterizado por um senso iniciatório de justiça mundial, ajuda a encaminhar um ordenamento jurídico mundial e a estabelecer, ao fim e ao cabo, a república federativa mundial. Com vistas a essa finalidade, todas as pessoas (tal é a afirmação do senso cosmopolita de justiça mundial) e todos os Es­tados (eis o que assevera o senso de justiça mundial em termos de federação mundial) devem também reconhecer-se reciprocamente como titulares de direitos iguais. Não lhes é lícito oprimir ou ex­plorar outros, nem reivindicar privilégios para si mesmos. Para o aperfeiçoamento da república federativa mundial não depender apenas da respectiva distribuição do poder, necessita-se, em segun­do lugar, de um senso legislatório da justiça mundial. Por fim, há mister um senso aplicativo da justiça mundial, para combater, em medida igual, a injustiça e a opressão em todo o mundo. Na sua forma exigente, o senso de justiça mundial chega até a transformar­se nesse sentimento de eqüidade diante de outras nações, postulado por Johann Gottfried von Herder (1744-1803) nas Cartas para a promoção da humanidade (Carta 119, in: Obras, v. VII, p. 723): Cada nação "sinta-se no lugar de qualquer outra" e "odeie o inso­lente transgressor de direitos alheios" tanto quanto "o ofensor atre­vido de costumes e opiniões alheios, o homem que se vangloria das suas próprias vantagens e as impõe a povos que não as cobiçam".

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6. Uma visão realista

De modo nenhum a idéia de uma república mundial repre­senta um ideal distante da vida, uma mera utopia, como temem al­guns. Embora muitos progressos avancem em passo de tartaruga, não se pode ignorar o quanto já foi atingido. Há muito tempo a mera oposição entre os Estados deu lugar a uma densa rede de acordos e organizações que já prescreve, com vistas ao convívio global, regras e, em algumas áreas, até acena com possibilidades de implementação, por meio de um sistema sutilmente escalonado de sanções. Dessa forma, ocorre uma perda quase insensível, mas cada vez mais significativa, da soberania. Ela é reforçada onde são instituídas inspeções internacionais, talvez mesmo instâncias inter­nacionais de arbitragem, ocasionalmente até tribunais. E não há como ignorar uma certa estatalidade global, tão logo as sentenças dos tribunais são dotadas de poder de implementação. Com isso a república mundial prova não ser uma utopia exaltada de um nenhu­res como tal, mas uma utopia do "ainda-não". Ela é um ideal polí­tico, cuja realização não é devida somente em termos de justiça, mas em cuja direção efetivamente já caminha a sociedade mundial. Ela prova ser uma visão realista, estimulada pelas poderosas forças propulsoras da globalização: (1) pelos resultados, de saldo positivo, da medicina, técnica e economia racional; (2) pela cultura científi­ca global a ela vinculada; (3) por uma curiosidade ínsita ao ser hu­mano; (4) pelo fato de a economia e a ciência poderem prosperar melhor sob as condições do direito e da democracia; (5) pelo fato de uma gestão justa demandar o combate à criminalidade (lavagem de dinheiro, sonegação de impostos, reproduções piratas em grande estilo, desconsideração de patentes, etc.), e à concorrência desleal ("paraísos fiscais"); e (6) pelo fato de o direito, os direitos huma­nos e a democracia, quando não oprimidos à força, serem "fenô­menos políticos movidos por autopropulsão".

Se, por ocasião da primeira instituição de Estados demo­cráticos de direito, falamos de revolução republicana, a instituição de uma república mundial pode ser denominada segunda revolução

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republicana. À diferença da primeira, ela não se dá pela via de transformações golpistas, que acarretam injustiça multiforme com base na astúcia e violência. Ela transcorre em moldes que escapam ao terror jacobino tanto quanto às violências, durante e após a re­volução de outubro, ou seja, pela via das reformas. Faz-se mister traduzir, tema por tema, isto é, em muitos pequenos passos, os con­flitos advenientes em figuras jurídicas implementáveis. Talvez também a ordem republicana entre Estados de constituição republi­cana - a república mundial - por muito tempo será tão-somente a quintessência de todas essas figuras jurídicas internacionais, paula­tinamente instituídas.

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XIV

ESTRATÉGIAS ESPECIAIS

Princípios de justiça não possuem a dignidade hierárquica de premissas maiores para uma dedução lógica. Mesmo os direitos humanos são princípios médios de justiça, que prescrevem em es­cala apenas reduzida ações ou omissões concretas, mas, via de re­gra, representam diretivas para a faculdade do juízo, isto é, princí­pios de avaliação e configuração. De acordo com a medida vincu­lante delas, as situações dadas são percebidas, avaliadas e eventu­almente submetidas a melhorias. Demais isso, hão que ser conside­radas leis inerentes à própria coisa em questão, de modo que três elementos fundamentalmente distintos, em termos de método, de­vem ser intermediados: princípios de justiça, como os direitos hu­manos, com as exigências funcionais à política, sociedade e eco­nomia e com a situação concreta. Em duas etapas dá-se a media­ção: os discursos da justiça política determinam princípios mais minudenciosos de justiça, implementados mediante estratégias de justiça política.

As estratégias possuem dois lados: um referente ao saber, outro atinente ao querer; o primeiro diz respeito à determinação, o segundo ao reconhecimento mais pormenorizado. Corresponden­temente existem duas estratégias de justiça, que, no entanto, não apenas se complementam, mas também se imbricam: ao passo que estratégias de ajuizamento determinam a figura correta para os princípios de justiça específicos da área, as estratégias de positiva­ção asseguram o reconhecimento historicamente concreto. Na sua estrutura ambas são processos de comunicação metodicamente or-

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ganizados, nos quais a perícia (científica) e a política trabalham em conjunto, sendo que os fatores situacionais co-responsáveis se ma­nifestam de maneira distinta, em diferentes países e épocas. Visto também as orientações jurídicas precisas se diferenciarem, as es­tratégias de justiça política não demandam uma configuração idên­tica das situações em todo o mundo, mas, antes, elas corroboram o direito à diferença.

Mostremos por dois exemplos como os discursos de justiça política se ocupam com a liceidade de estratégias especiais de jus­tiça política.

1. Desobediência civil

No pensamento jurídico ocidental, o direito à resistência e seu irmão menor, a desobediência civil, são matérias de violentas controvérsias. Ao passo que a Antígona de Sófocles se empenha mais por um direito de resistência, Sócrates considera injusta are­sistência mesmo contra uma pena capital de modo injusto, imposta quando o cidadão, até àquele momento, esteve essencialmente de acordo com a sua coletividade. No cristianismo constitui-se um di­reito à resistência, a partir do conflito entre a exigência de obedecer à autoridade instituída por Deus (Rm 13, 1) e o imperativo de obe­decer mais a Deus do que aos homens (At 5, 29). De acordo com o direito feudal germânico, o vassalo pode recusar a fidelidade ao su­serano e resistir-lhe, no caso de violações flagrantes do direito. Na Idade Média, tal competência constituiu-se em instrumento de controle dos governantes, ao qual, porém, somente tinham acesso os estamentos: a nobreza, o clero e o patriciado. Somente Locke concede um direito a resistência também às pessoas de direito pri­vado, ao passo que Kant o rejeita por razões de teoria constitucio­nal.

Nas condições de um Estado democrático de direito só pode ser justificado um direito de resistência- quando se pode! -em casos excepcionais, e mesmo neles somente com rigorosos condicionamentos. Para não evocar o falso patos de uma resistên­cia contra a ditadura e tirania, preferimos falar da desobediência

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civil. Mas, mesmo nesse caso, surgem ainda três objeções: (1) uma "desobediência legalizada", permitida pelo direito, afigura-se con­traditória num Estado de direito, por razões de teoria jurídica. Como "direito contra o direito", ius contra legem, ele não integra o ordenamento jurídico, mas é, antes, um "direito fora do direito", um ius extra legem. (2) O monópolio da violência exercido pelo Estado moderno priva a desobediência civil das suas oportunida­des, a não ser que ela encontre uma adesão avassaladora, que, po­rém, altera então o ordenamento jurídico, quando não chega a sub­vertê-lo. (3) A desobediência civil torna-se supérflua devido à au­tolegislação do povo, da democracia, e do reconhecimento de di­reitos humanos e fundamentais.

Bem consideradas, das três objeções não resulta nenhum veto absoluto, mas uma série de critérios: a primeira objeção só é pertinente contra um direito legalizado, positivo e cobrável perante os tribunais. Por isso, quem se envolve com a desobediência civil invoca preferencialmente obrigatoriedades pré- e suprapositivas. Além disso, tal pessoa deve ter consciência de estar violando o di­reito vigente, não podendo, por conseguinte, revoltar-se contra os efeitos jurídicos resultantes da aplicação da lei. Na melhor das hi­póteses, ela pode tentar convencer o Judiciário ou a sua instância precedente, o legislador, e esperar então ficar livre da pena. Como a desobediência é motivada pela moral jurídica, a pessoa não preci­sa - isto quanto à segunda objeção - temer o poder avassalador do Estado. De resto - e com isso chegamos à terceira objeção - o Es­tado é bifronte. Em vez de apenas servir aos direitos das pessoas e dos cidadãos, mesmo Estados democráticos de direito não estão imunes de injustiças. Daí segue-se indiretamente um outro critério. Uma desobediência legítima deve voltar-se contra a injustiça cras­sa, não podendo ela mesma, nesse empenho, cometer injustiças.

No âmbito de Estados democráticos de direito, a única de­sobediência legítima deveria ser definida, e.g., pelos seguintes elementos: (1) suas motivações são de ordem moral-política, (2) ela ocorre em público, (3) sem violência e (4) com emprego de meios proporcionais. (5) Ela infringe o direito vigente, mas (6) ser­ve de direito emergencial a uma minoria com que ela recorre a uma

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"maioria obstinada" para que reexamine decisões que (7) põem em risco princípios fundamentais da justiça, tais como os direitos hu­manos e de cidadania. Como, via de regra, há controvérsias quanto à pertinência da última condição e como, além disso, minorias po­dem abusar da sua desobediência, empregando-a como meio es­tratégico para obter vantagens especiais, duas condições adicionais devem ser satisfeitas: (8) as formas legais do protesto e da oposi­ção já devem ter sido exauridas. E (9), para provar, ao menos indi­retamente, a sinceridade da moral política, deve-se estar disposto a aceitar desvantagens. Um último ponto de vista resulta do fato de uma desobediência bem-sucedida convencer o legislador da neces­sidade de reformas: (10) à medida que a coletividade se reforma, a desobediência civil perde o seu direito.

2. Intervenção humanitária

Assim como um indivíduo, também uma coletividade pos­sui o direito à autodefesa. Controvertida é somente a questão se é também lícito pegar em armas, quando não defendemos a nós mesmos e os nossos direitos, mas outras pessoas e seus direitos: em outras palavras, a assim chamada intervenção humanitária é legíti­ma?

A resposta positiva recorre a uma analogia: comete injusti­ça, não quem ajuda outrem em estado de legítima defesa, mas muito mais aquele que recusa ajudar outrem em caso de necessida­de. A omissão de prestar auxílio, em casos de necessidade, não é expressão de uma moral superior. Ou somos demasiado fracos ou, por outras razões, incapazes de dar assistência; ou nos "furtamos", por comodismo, oportunismo ou medo. Mas quem assume o ônus da ajuda na necessidade distingue-se por com-paixão e pela dispo­sição de assumir as conseqüências dessa com-paixão. Porém, as condições são visivelmente rigorosas. A motivação deve ter emba­samento jurídico, o que vale também para quem realiza a interven­ção e, não em último lugar, para o modo da sua execução. E as três condições juntas devem ser satisfeitas em medida igual; por mais

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legítima que seja a motivação, ela não permite uma execução me­nos legítima.

Somente em caso de grave e induvidosa injustiça a motiva­ção permanece indiscutível. No sentido da ajuda emergencial, só é lícito intervir onde o direito inequívoco é violado de maneira ine­quívoca e flagrante, como é o caso em repetidas e graves violações dos direitos humanos, máxime em delitos interculturalmente pros­critos, como o estupro de mulheres, a expulsão de populações civis e a execução de pessoas desarmadas.

A resposta legítima à injustiça inequívoca é também ine­quívoca: por um lado, a vítima da injustiça deve recuperar os seus direitos, e.g., uma população expulsa deve poder retornar à sua pá­tria e ter nela assegurada uma existência pacífica. Por outro lado, os autores culpados devem ser responsabilizados, sobretudo os próprios autores, e de modo devido também os cúmplices. Uma das características principais do Estado moderno, a soberania, parece contradizer isso, porque, conforme se diz, não permite intervenções de fora. Porém, mesmo Jean Bodin, a quem o conceito remonta, subordina o soberano a obrigações jurídico-morais, de modo que a legitimação do poder estatal também aqui sempre se vincula à sua limitação. A soberania nunca foi sinônimo de um poder soberano absoluto, irrestrito, por assim dizer um direito à ditadura, à tirania ou a um Estado totalitário.

Avanços mais recentes no direito internacional, nomeada­mente a Carta das Nações Unidas e os dois acordos sobre direitos humanos, de 1966, corroboram essa situação e impossibilitam en­veredar pelo apreciado "caminho de fuga", segundo o qual as per­tinentes obrigações jurídico-éticas poderiam convencer, na melhor das hipóteses, sob a vigência de premissas européias.

Mediante o reconhecimento de tais acordos, por conse­guinte também da autovinculação, os direitos humanos foram uni­versalmente validados e infirmaram assim o argumento de que vi­olações dos direitos humanos constituiriam um assunto puramente interno de cada país.

Tudo indica que os dois primeiros grupos de condições são muito exigentes e, não obstante, são insuficientes para prover a le-

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glttmação, pois, como toda e qualquer justiça privada equivale a injustiça, a vítima de uma violação do direito deve dirigir-se aos poderes autorizados, isto é, públicos. Estes, porém, não existem nos planos inter- e supra-estatal. E um estágio preliminar, a Orga­nização das Nações Unidas, padece, desde a sua criação, de uma grave falha de nascença, que chega mesmo a ser uma contradição em termos jurídico-éticos: por um lado, a sua Constituição, a Car­ta, obriga-se ao respeito dos direitos universais da pessoa; por ou­tro, ela cimenta no Conselho de Segurança privilégios particulares, uma hegemonia coletiva de cinco grandes potências.

Por isso, uma intervenção humanitária não-sustentada por uma coletividade em escala global é apenas o segundo melhor ca­minho: uma solução emergencial, na falta de melhores possibilida­des. Mas ela- e esta é, nessas circunstâncias, a terceira condição­pode ser admissível como direito emergencial, permitido em ana­logia à legitima defesa intra-estatal onde ajudamos uma pessoa com direito à legítima defesa no âmbito dessa legítima defesa. Po­rém, a assistência, no caso de legítima defesa, se vê ameaçada pelo espírito partidário, como, e.g., pela política interna do Estado as­sistente, outrossim pelo perigo de uma mescla com interesses eco­nômicos e, não em último lugar, por sentimentos de afinidade étni­ca, religiosa ou política. Por isso, as graves violações dos direitos humanos, que ocorrem em muitos lugares do mundo, mostram que a humanidade há anos deixa de fazer o seu mais importante "tema de casa": a criação de um ordenamento jurídico mundial, com po­deres públicos que zelam com imparcialidade e eficazmente pelo direito, onde os responsáveis primaciais pelo direito, os poderes públicos dos Estados individuais, violam sistemática e gravemente o direito.

Uma intervenção humanitária legítima ainda deve satisfa­zer um quarto conjunto de condições. O "bom samaritano" não deve violar uma condição mínima de justiça e cometer, ele próprio, injustiças em nome do restabelecimento do direito, e.g., caçar civis ou mesmo destruir cidades inteiras; nem devem as medidas causar danos maiores do que os que previnem. Em vez disso, elas devem ser tomadas com prudência e bom senso, ademais em tempo hábil

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e, não em último lugar, também só como ultima ratio, isto é, so-(' mente ao termo de uma série de medidas pré-militares.

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XV

MAIS DO QUE A JUSTIÇA: SENSO COMUNITÁRIO E AMIZADE

A justiça política significa muito e, não obstante, repre­senta demasiado pouco para um bom convívio, pois limita-se ao que as pessoas devem umas às outras. Não apenas a moral pessoal exige mais, e.g., a liberalidade, benevolência e generosidade. A justiça política também não é suficiente para a vida "bela", isto é, agradável, boa e humana da coletividade.

Faz parte da democracia viva uma sociedade de cidadãos, também denominada sociedade civil, que não co-atue vigorosa­mente apenas no campo da política, mas também no campo social, que abranja desde os cuidados dispensados aos idosos, doentes e moribundos, passando pela assistência a requerentes de asilo, a bolsistas e estudantes estrangeiros, até as múltiplas formas da auto­gestão na ciência, na pesquisa e nas instituições culturais, devendo­se mencionar, não em último lugar, a participação no corpo volun­tário de bombeiros, em associações de caridade ou clubes de cida­dãos engajados em causas sociais. A assunção de tarefas de utili­dade pública, em regime de responsabilidade própria, permite atin­gir dois objetivos: por um lado, os cidadãos organizados iniciam um movimento contrário à crescente "estatização da sociedade". Uma efetiva sociedade de cidadãos resiste à crescente responsabi­lidade do Estado e aos seus aspectos negativos, à regulamentação, à burocratização, à especialização e à fragmentação da coletivida­de, ademais restringe os encargos financeiros do Estado. Além dis­so, a correspondente ajuda não é dispensada sob coação, como no

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caso dos tributos ou dos serviços militar ou civil, mas em caráter voluntário. Não se trata mais de um senso comunitário decretado pelo Estado, mas de um senso comunitário livre, conseqüentemente do indício daquilo que no grego lembra liberalidade: a eleutlzerió­tês [EÃEu8EpLÓ-:11ç] é a postura que caracteriza o homem livre. Quem é livre. no senUdo enfático da palavra, não está colado nos seus bens materiais, também não se deixa "devorar" por seu tempo de trabalho e por seu tempo de lazer. Muito pelo contrário, ele lida soberanamente com eles e doa uma parcela de ambos, onde isso lhe parece adequado: doa dinheiro e tempo.

(llustr.6: Ambrogio Lorenzetti. Alegoria da Concórdia. De: O bom regime. 1338/40. Siena, Pala~o Pubblico)

O senso comunitário livre também não atua burocratica­mente. mas de modo pessoal. Cria relações não-institucionais e promove aquela amizade que, segundo Aristóteles, um dos grandes teóricos da justiça, chega a ser mais importante para urna sociedade

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do que a própria justiça. Para Aristóte les, importa, com razão, não apenas a amizade romântica das almas, mas também a multiplici­dade de outras relações pessoais: a camaradagem e hospitalidade, as relações malrimoniais, familiares e vicinais, a vida associativa, mesmo as súcias e, não em último lugar, as relações de ajuda mú­tua (Ética a Nicômaco, Livros VIII-IX). Todos esses vínculos de amizade logram o que as instituições por si só não são capazes de realizar: promovem um entrelaçamento das pessoas caracterizado pelo zelo em prol da coesão e concórdia, em vez da discórdia e vi­olência. Ao mesmo tempo, contribuem à promoção do bem comum da coletividade, quase sempre sem patos, mas com grande eficácia.

Ao lado do senso comunitário social, existe uma segunda figura. de natureza cultural. Ela diz respeito aos elementos comuns, mas não necessariamente exclusivos, como a língua, a literatura, a música, as artes e a arquitetura. Quem assume a responsabi lidade por gerações futuras fará um uso parcimonioso de slogans como " nação da cultura" ou " povo dos poetas e pensadores"*, mas levará a sério o objeto ao qual eles se referem, engajando-se pela cultura da sua própria sociedade e dando o seu contributo, para que às ge­rações vindouras seja legado um capital de língua e cultura no mí­nimo tão rico quanto ele mesmo herdou. E um terceiro senso co­munitário, de natureza ecológica. se faz imperioso. sobretudo na forma atual de civilização. Tal como é do agrado dos pais transmi­tir aos seus ftlhos uma herança maior do que a recebida por e les. assim uma forma de sociedade tão potente que logrou assenhorear­se de tal modo das forças da natureza, como a nossa civilização fundada na ciência e na técnica, deveria, com orgulho, empenhar­se em transmitir aos seus filhos e aos filhos destes um balanço am­biental de melhor qualidade.

• O autor cita aqui dois tradicionais clichês. nos quais a Alemanha con­servadora se comprazia no passado. muitas vezes com inequívoco viés chauvinista [nota do tradutor].

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146 Coleção Filosofia- 155

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O que é justiça?

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Coleção Filosofia- 155 147

Page 145: HÖFFE, Otfried - O que é justica

Otfried HOffe

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148 Coleção Filosofia- 155

"

Page 146: HÖFFE, Otfried - O que é justica

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Adriano VI, 64 Agostinho, 40, 41 Aristóteles, 7, 8, 24, 25, 26, 27,

35,49,67,68, 73,101,109, 115, 142, 151, 153

Assmann, 16, 17, 145 Beccaria, C. 95 Bloch, E. 47 Bodin,J.137 Brunner,E.101 Caméades, 11 Cícero, M. T. 60, 67 Dante Alighieri, 25 Dürrenmatt, Fr. 36, 145 Engels, Fr. 44, 147 Ésquilo, 21, 63,96 Forsthoff, E. 105 Goethe, J. W. v. 12, 25, 145 Grócio, H. 46 Habermas, J. 54, 145 Hamilton, A. 69 Hamurabi, 15, 18, 63 Hart, H. L. A. 40 Hayek, Fr. v. 101 Hegel, G. W. Fr. 46 Herder, J. G. v. 129 Hesíodo, 20, 21 Hobbes, Th. 40, 75 Hoffe, o. 39, 80, 116 Homero, 20, 21 Hume, D. 29, 146 Justiniano, 57 Kant, I. 34, 46, 49, 51, 57, 58,

59,64,68, 75, 76,94, 115, 134, 146, 151, 153

Kelsen, H. 40

Coleção Filosofia- 155

Leão XIII, 86 Locke, J. 46, 75, 79, 134, 146 Lorenzetti, A. 50, 142 Luhmann, N. 41 Lutero, 64 Marx, K. 44, 86, 147 Mauss, M. 102 Mill, J. St. 35, 43 Maomé, 36 Mong Dsi, 85, 147 Montesquieu, Ch. de 65, 69, 95,

147 Morgan, L. 85, 147 Nietzsche, Fr. 15, 98, 147 Nozick, R. 79 Pascal, B. 11, 12, 147 Pio IX, 101 Platão, 7, 22, 23, 24, 29, 34, 36,

60, 70, 73, 115, 151, 153 Pufendorf, S. 46 Radbruch, G. 41 Rawls, J. 78 Rousseau, J.-1.46, 75 Shakespeare, W. 25 Simônides, 59 Sócrates, 35, 36, 134 Sófocles, 26, 45, 134 Tomás de Aqui no, 24 Thomasius, Chr. 46 Trasímaco, 36 Ulpiano, D. 57 Wagner, 5, 55, 148

149

Page 147: HÖFFE, Otfried - O que é justica

ÍNDICE ANALÍTICO

alma, 23, 60 altruísmo, 44, 81 amor aos homens, 44, 90 animais, 8, 30, 31, 109, 110 antropologia, 73, 86 bem comum, 26, 32, 43, 44, 81,

106, 125, 143 bem-estar, 20, 27, 31, 32, 39,

44,69, 78, 79,95, 101,104, 109, 122, 123

coação,33,40,47,68, 73, 75, 85, 94, 97, 113, 123, 141

coletividade, 20, 21, 23, 25, 26, 27,33,39,43,44,45,46,63, 70, 75, 77,81,83,97,98, 116, 134, 136, 138, 141, 143

compensação, 14, 68, 97, 105, 11 O, 126, 127

comunitarismo, 118 contrato, 68, 76, 77, 80, 81, 103,

104, 106 contrato social, 74, 86 criminalidade, 40, 98, 121, 130 deveres de direito, 32 deveres de virtude, 32 dignidade, 58, 84, 85, 87, 97,

103, 112, 133 direito, 7, 9, 11, 14, 16, 17, 18,

19,20,22,25,26,27,31,32, 33,35,39,40,41,42,45,46, 47,48,49,51,53,55,57,58, 59,61,63,64,65,67,68, 70, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 81, 84,85,86,87,88,89,91,93, 94,95,96,97,98, 104,110, 111,112,113,115,116,117,

150

118, 119, 120, 121, 122, 123, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 134, 135, 136, 137, 138

direito romano, 107, 110 direitos fundamentais, 8, 14, 43,

46,83,84 direitos humanos, 30, 43, 46,

81,83,84,85,86,87,88,89, 90, 97, 112, 115, 120, 121, 122, 123, 130, 133, 135, 136, 137, 138

divisão dos poderes, 30, 42, 46, 69

egoísmo, 81 eqüidade,8, 18,67,68, 78, 79,

127, 129 Escassez, 7, 29 Estado, 8, 16, 20, 31, 33, 35, 40,

42,43,46,47,48,49,51,53, 60,61,69, 70, 73, 75, 76, 77, 79,81,83,87,88,93,94,95, 97, 101, 102, 104, 113, 116, 117, 118, 119, 120, 122, 123, 125, 126, 127, 128, 129, 134, 135, 137, 138, 141

Estado de bem-estar, 79, 103, 105

Estado de direito, 34, 69, 70, 117, 128, 135

Estado mundial, 116, 118, 120 Estado-vigia, 101 Estado-vigilante, 79 exigência, 11, 39, 44, 47, 58,

60, 78, 79, 113, 134 filosofia, 22, 29, 34, 39, 46, 47,

49, 101, 115, 118, 152

Coleção Filosofia- 155

Page 148: HÖFFE, Otfried - O que é justica

governo dos filósofos, 24, 70 honra,22,25,27,41,58,84,93 igualdade, 12, 14, 22, 25, 30,

43, 68, 77, 91, 104, 105, 112 império universal, 117 indivíduo, 16, 20, 24, 30, 31,

32,33,39,44,48,60, 70, 75, 76, 77, 79,81,83,87,88,98, 106, 107, 136

injustiça, 14, 35, 60, 67, 71, 74, 75, 91, 94, 107, 125, 126, 129, 131, 135, 136, 137, 138

injustiça anamnética, 127 iustitia commutativa, 25 iustitia correctiva, 25, 27 iustitia distributiva, 25 iustitia universalis, 24 juiz, 26, 34, 55, 56, 64, 65, 66,

68,93 justiça, 7, 8, 9, 11, 12, 14, 15,

16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24,25,26,27,29,30,31,32, 33,35,36,39,40,41,42,43, 44,46,47,50,51,53,54,55, 56,57,58,59,60,63,64,65, 66,67,68, 70, 73, 74, 76, 77, 78, 79,80,81,83,84,90,93, 94,95,96,97,98, 101,102, 103, 105, 107, 108, 109, 110, 111, 115, 116, 118, 121, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 130, 133, 134, 136, 138, 141, 142, 152. 154

Justiça anamnética, 9, 127 justiça compensatória, 14, 25,

103, 104, 105, 106 justiça comutativa, 14, 80, 106 justiça corretiva, 27, 80, 126 justiça da troca, 25, 82, 103, 105 justiça divina, 16, 36

Coleção Filosofia- 155

O que é justiça?

justiça econômica, 123 justiça global, 123 justiça institucional, 33, 35 justiça intergeracional, 90 justiça mundial, I 29 justiça objetiva, 18 justiça ordenadora, 25 justiça penal, 21 justiça pessoal, 16, 34, 35, 36,

58,64,68 justiça política, 16, 33, 43, 63,

111, 119, 133, 134, 141 justiça privada, 21, 63, 94, 97,

138 justiça procedimental, 53, 54,

56,64 justiça social, 20, 101, 104 justificação, 39, 43, 51, 97, 103,

120 lealdade, 19 liberalismo, 34, 79 liberdade, 8, 25, 27, 35, 40, 42,

50, 73, 75, 76, 77,81,83,86, 87, 88, 89, 90, 97, 111, 112, 122

meios, 31, 35, 76, 85, 97, 99, 125, 135

metafísica, 24 moral, 16 moral jurídica, 51, 58, 68, 83,

121, 124, 135 natureza, 20, 22, 24, 26, 29, 30,

31,40,45,47,48,49,51,64, 76, 77, 79,98, 106,116,120, 124, 126, 129, 143

ordem jurídica, 41, 83, 85 ordenamento jurídico, 20, 35,

40,41,42,53, 73,96,97,98, 112, 116, 118, 126, 128, 129, 135, 138

151

Page 149: HÖFFE, Otfried - O que é justica

Otfried Hoffe

paz, 19, 20, 21, 50, 102, 115, 117

poder estatal, 35, 46, 70, 137 positivismo jurídico, 7, 39, 41,

47 pretensão, 44, 49, 86, 122 pretensões, 30, 43, 63, 79, 84,

97 prevenção,94,95,96,98 princípios de justiça, 42, 78, 79,

133 princípios jurídicos, 47, 48 probidade, 57, 58 razão de Estado, 95 religião, 16, 24, 85, 87, 89. 120 república mundial, 116, 117,

118, 119, 120, 123, 126, 127, 128, 129, 130

ressocialização, 78, 94 retaliação, 94, 95, 96, 98

152

sociedade civil, 75, 78, 141 solidariedade, 8, 16, 17, 19, 32,

91, 107' 108 subsidiariedade, 126 teoria contratualista, 47, 74, 75,

77, 78 teoria da decisão, 78 teoria do jogo, 78 teoria sistêmica, 7, 41 tolerância, 9, 111, 112, 113 troca, 8, 32, 80, 81, 87, 88, 94,

102, 103, 104, 105, 109, 122 utilitarismo, 7, 32, 39, 43, 44 vingança, 17,93,94 violação do direito, 94, 96, 98 violações de direitos humanos,

59 violência, 21, 40, 63, 81, 87, 88,

97, 103, 113, 117, 123, 131, 135, 143

~ EllPUCRS

Coleção Filosofia- 155

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