a produção do espaço na favela - ufrj

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  IVAN ZANATTA KAWAHARA A produção do espaço na favela elementos para a análise do mercado imobiliário Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós- Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Orientador: Prof. Dr. Fabrício Leal de Oliveira Rio de Janeiro 2018

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Page 1: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

IVAN ZANATTA KAWAHARA

A produção do espaço na favela

elementos para a análise do mercado imobiliário

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Fabrício Leal de Oliveira

Rio de Janeiro 2018

Page 2: A produção do espaço na favela - UFRJ

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

K22pKawahara, Ivan Zanatta A produção do espaço na favela: elementos para aanálise do mercado imobiliário / Ivan ZanattaKawahara. -- Rio de Janeiro, 2018. 238 f.

Orientador: Fabrício Leal de Oliveira. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Instituto de Pesquisa ePlanejamento Urbano e Regional, Programa de PósGraduação em Planejamento Urbano e Regional, 2018.

1. favela. 2. mercado imobiliário. 3. renda daterra. 4. propriedade fundiária. 5. urbanização. I.Leal de Oliveira, Fabrício, orient. II. Título.

Page 3: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

IVAN ZANATTA KAWAHARA

A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NA FAVELA:

elementos para a análise do mercado imobiliário.

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Fabrício Leal de Oliveira

Aprovado em: BANCA EXAMINADORA

____________________________________ Prof. Dr. Fabrício Leal de Oliveira Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR-UFRJ ____________________________________ Prof. Dr. Adauto Lúcio Cardoso Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR-UFRJ ____________________________________ Prof. Dr. Cristina Lontra Nacif Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – EAU-UFF ____________________________________ Prof. Dr. Rafael Soares Gonçalves Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica – DSS-PUC

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Aos que resistem à barbárie fascista

Page 5: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

Agradecimentos

Sempre há muitos a agradecer e pouco espaço para isso. Dessa forma,

espero que o próprio resultado desse trabalho possa retribuir à altura.

Os primeiros a quem devo a própria possibilidade de desenvolver este

trabalho são os seres humanos que compõem o todo complexo aqui estudado.

Os que, mesmo sob duras condições impostas à sua existência, conseguem

constituir um modo de vida diverso e contraditório, nem composto apenas de

virtudes, nem completamente precário, mas absolutamente complexo; o que

nos permite após mais de meio século de estudos ainda encontrar

possibilidades de desenvolvimento. Dentre os moradores das favelas devo um

agradecimento especial aos entrevistados que apresentaram seus

depoimentos, sendo uns muito agradáveis, outros assustadores, alguns

entediantes, parte deles animadores; uns confirmaram premissas, outros

abriram campos completamente novos de estudo. Mas posso dizer que no

todo, tive acesso, com a realização das entrevistas, a um material bastante

esclarecedor e com informações que possibilitaram a maior parte do conteúdo

original dessa dissertação.

À Luciana, companheira de vida que, além de parte importante do

cotidiano é influenciadora direta dos meus trabalhos e deu grande apoio na

realização das entrevistas. Aos meus pais e irmãos que sempre deram apoio

às minhas escolhas. Ao Richard, Bia, Toni e Vitor companheiros com quem

divido casa pelas longas divagações políticas e teóricas nos almoços, jantares,

faxinas, viagens de ônibus, etc. Ao orientador Fabrício pelas longas e

atenciosas orientações. À orientadora do curso de sociologia urbana da UERJ

Lia da Mattos Rocha. À companheira de estudos de longa data, Cristina Nacif.

Aos companheiros do GEPOC (e puxadinho) e do NIEP-Marx que têm

modificado toda a minha forma de ver a ciência. Ao IPPUR que me propiciou

um processo de onde certamente eu saí melhor. À turma de 2016 que tornou

menos solitário esse processo. Ao CnPQ que financiou esses estudos.

Page 6: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

Você já ouviu falar da febre amarela? Tem a febre negra que é bem pior! Espalha rápido e quase todo mundo já tem! Fica no sangue e tem que se vacinar! As coisas estão ruins, mas bota dinheiro para ver se não funciona. O capitalismo está em todo lugar!

(Depoimento coletado no trabalho de campo)

Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso.

Karl Marx

Page 7: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

RESUMO

O presente trabalho busca complexificar a análise das relações entre os

agentes locais e entre os agentes locais e os supralocais que estabelecem a

dinâmica do mercado imobiliário nesses territórios. Essas relações são

constituídas por conflitos, coalisões e diversas formas de sombreamento a

depender da conjuntura no espaço e no tempo. Defendemos que as estruturas

de poder local são de suma importância na configuração desse mercado, mas

que elas, ao mesmo tempo, são altamente dependentes dos processos

desenvolvidos em outras escalas e da dinâmica geral imposta pelo capitalismo

(e sua dinâmica específica em cada território).

A singularidade do desenvolvimento sócio-histórico de cada favela torna

necessário mesmo em estudos mais gerais considerar uma diversidade inter-

favelas que não é resultante somente da sua inserção na malha urbana. Ao

mesmo tempo, é necessário não perder de vista que os seus desenvolvimentos

singulares são, em grande medida, dependentes da cidade como um todo e

que a favela é parte intrínseca da urbanização moderna brasileira, também

sendo modificador de sua estrutura.

A partir de experiência em campo no Turano, Manguinhos, Tijuquinha,

Rocinha, Babilônia e Chapéu Mangueira, e entrevistas realizadas em duas

favelas localizadas na zona sul do Rio de Janeiro, que por questão de

segurança das fontes não serão identificadas, esse estudo busca debater

sobre as condições impostas pelos territórios de favela que diferenciam esse

mercado imobiliário do restante da cidade. Ao mesmo tempo, busca a

identificação de aspectos que estão no campo do desenvolvimento singular de

cada favela, a fim de levantar elementos para a análise do mercado imobiliário.

Para enfrentar este desafio, foram eleitos como eixos de análise: as formas de

instituição e regulação da propriedade da terra nas favelas, a formação dos

estoques imobiliários e os agentes estruturadores do espaço.

Palavras Chave: Favela. Mercado imobiliário. Renda da terra. Propriedade fundiária. Urbanização.

Page 8: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

ABSTRACT

The present work seeks to enrich the analysis of the relations between

the local agents and between the local and supralocal agents that establish the

dynamics of the real estate market in these territories. These relations are

constituted by conflicts, coalitions, depending on the conjuncture in space and

time, with various forms of shading. We argue that local power structures are

extremely important in the configuration of this market, but that they are at the

same time highly dependent on the processes developed at other scales and

the general dynamics imposed by capitalism (and its specific dynamics in each

territory).

The singularity of the socio-historical development of each favela makes

it necessary, even in more general studies, to consider an inter-favela diversity,

which is not only the result of its insertion into the urban fabric. At the same

time, it is necessary to keep in mind that, to a large extent, its singular

developments are dependent on the city as a whole and that the favela is an

intrinsic part of modern Brazilian urbanization, also modifying its structure.

Based on field experience in Turano, Manguinhos, Tijuquinha, Rocinha,

Babilônia and Chapéu Mangueira, and interviews conducted in two favelas

located in the southern zone of Rio de Janeiro, which due to security of sources

will not be identified, this study seeks to discuss the conditions imposed by

favela territories that differentiate this real estate market from the rest of the city.

At the same time, it seeks the identification of aspects that are in the field of the

singular development of each favela, in order to raise elements for the analysis

of the real estate market. To meet this challenge, the following were chosen as

axes of analysis: the forms of institution and regulation of land ownership in

favelas, the formation of real estate stocks and the structuring agents of space.

Keywords: Slum. Real estate market. Land rent. Land ownership.

Urbanization.

Page 9: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Favelas do Rio de Janeiro. ................................................................ 21

Figura 2: Favelas onde o autor trabalhou no âmbito do programa de regularização urbanística e fundiária (não foi realizado o trabalho de campo em Borel, Formiga, Tijuaçu e Mata Machado). ...................................................... 22

Figura 3: Área onde se localizam as favelas onde ocorreram as entrevistas. .. 23

Figura 4: Município do Rio de Janeiro: distribuição das indústrias e favelas em 1960. ................................................................................................................ 83

Figura 5: morfologia - área loteada do Bairro Barcelos em contraste ao restante da Rocinha. .................................................................................................... 130

Figura 6: morfologia - área loteada da Formiga em contraste ao restante da favela. ............................................................................................................. 131

Figura 7: Formiga - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes. ....................................................................................................... 132

Figura 8: Morro do Turano - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes. ........................................................................................... 132

Figura 9: Paraisópolis - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes. ........................................................................................... 133

Figura 10: Sobreposição de lotes (caso 1). .................................................... 134

Figura 11: Sobreposição de lotes (caso 2). .................................................... 135

Figura 12: Subdivisão da UH, fotos dos porões. ............................................ 169

Figura 13: Subdivisão da UH, possibilidade de ventilação dos porões. ......... 170

Figura 14: Subdivisão do lote (caso 1). .......................................................... 173

Figura 15: Subdivisão do lote (caso 2). .......................................................... 173

Figura 16: Esquema de venda de laje. ........................................................... 177

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Concentração de imóveis na Tijuquinha. ........................................ 185

Tabela 2: Concentração de imóveis na Babilônia. ......................................... 186

Tabela 3: Imóveis alugados na Tijuquinha e Babilônia .................................. 186

Tabela 4: Quadro síntese de aspectos levantados para as duas favelas. ..... 223

Page 11: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 

1.1 Problema central ...................................................................................................... 18 

1.2 Recorte espacial ...................................................................................................... 21 

1.3 Caracterização das Favelas e dos entrevistados no trabalho de campo . 24 

1.4 Construção do objeto de pesquisa e estruturação do trabalho de campo ............................................................................................................................................. 28 

1.5 Estrutura .................................................................................................................... 34 

1.6 Quadro categorial utilizado ................................................................................... 35 

2 CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO: EM BUSCA DE UM PONTO DE PARTIDA ..... 39 

2.1 Notas sobre a renda da terra .................................................................................... 39 

2.2 Sobre o mercado imobiliário .................................................................................... 53 

2.3 Periferia, informalidade, zonas de exceção e espaços cinzentos .................. 63 

2.4 A favela como categoria ............................................................................................ 67 

2.4.1 Das caracterizações correntes à sua crítica ...................................................... 68 

2.4.2 Notas sobre o papel das favelas na urbanização brasileira ............................ 80 

2.4.3 As Frações de classe no interior da favela......................................................... 87 

2.5 O mercado imobiliário em favelas .......................................................................... 92 

2.5.1 O acesso à terra e a estruturação do espaço urbano ...................................... 93 

2.5.2 Caracterização do mercado imobiliário nas favelas ......................................... 97 

2.5.3 Formação dos estoques imobiliários ................................................................. 100 

2.5.4 Notas críticas sobre a caracterização do mercado imobiliário nas favelas . 102 

3 CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA A FORMAÇÃO DE UM MERCADO IMOBILIÁRIO EM FAVELAS ............................................................................................... 105 

3.1 A propriedade da terra ............................................................................................. 105 

3.1.1 Notas sobre a relação entre Estado e favela ................................................... 109 

3.1.2 Breves notas sobre a renda fundiária na favela .............................................. 120 

3.1.3 Condicionantes precedentes .............................................................................. 125 

3.1.4 Segurança da relação entre compradores e vendedores .............................. 135 

3.1.5 Os limites ............................................................................................................... 138 

3.1.6 Mecanismos de endividamento .......................................................................... 144 

3.2 Contratos de aluguel ................................................................................................ 145 

3.2.1 Documentos .......................................................................................................... 145 

3.2.2 Inadimplência ........................................................................................................ 149 

Page 12: A produção do espaço na favela - UFRJ

  

3.3 Regulação da construção ........................................................................................ 153 

3.3.1 O direito ampliado da “cria da comunidade” .................................................... 161 

4 FORMAÇÃO DOS ESTOQUES IMOBILIÁRIOS .......................................................... 164 

4.1 Ocupação ..................................................................................................................... 165 

4.2 Subdivisão ................................................................................................................... 168 

4.2.1 Subdivisão da unidade habitacional .................................................................. 168 

4.2.2 Subdivisão do lote ................................................................................................ 171 

4.2.3 Aproveitamento da laje ........................................................................................ 174 

4.3 Promotores imobiliários .......................................................................................... 178 

5 AGENTES ESTRUTURADORES DO ESPAÇO ........................................................... 190 

5.1 Associações de Moradores .................................................................................... 190 

5.2 Narcotráfico varejista ............................................................................................... 200 

5.3 Estado ........................................................................................................................... 207 

5.4 As cisões permanentes e conjunturais na “comunidade” ............................. 216 

6 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 224 

7 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 231 

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1 INTRODUÇÃO

Pode-se dizer que a existência de um mercado imobiliário em favelas está

conectada com suas origens. Além da autorização dos militares para a ocupação do

morro da Favela, hoje conhecido como morro da Providência, essa mesma favela,

assim como diversas outras, tiveram a ocupação autorizada por proprietários de

terrenos que passaram a explorar o aluguel no alto dos morros, devido à restrição

cada vez mais intensa à exploração dos alugueis em cortiços (GONÇALVES, 2011).

Há, na realidade, um longo processo onde, ao que parece, as primeiras favelas

tiveram algum tipo de autorização ou mesmo incentivo (SILVA, 2005). Com o passar

dos anos a mediação por um suposto proprietário das terras ou mesmo pelo Estado

vai deixando de existir, em especial por conta das medidas que passaram a

restringir a exploração dos alugueis nas favelas, tendo como marco o código de

obras de 1937. Por fim, a generalização do mercado imobiliário, dessa vez não mais

mediada por proprietários oficiais (ou ditos proprietários oficiais) ou pela autorização

direta do Estado, parece estar relacionada à queda do modelo remocionista e crise

da produção habitacional dos anos 80. No fim dos anos 90 e início dos anos 2000,

Abramo e Faria (1998) já assumem que o acesso à moradia nas favelas é

estruturalmente mediado por um mercado imobiliário.

Mesmo observando a existência de um mercado imobiliário na gênese das

favelas, podemos considerar que a generalização do acesso à moradia por um

mercado imobiliário definido, em grande medida, por agentes locais que produzem e

regulam o espaço é um fenômeno relativamente recente. Os estudos que

buscassem entender o mercado imobiliário em favelas no final do século XIX ou no

início do século XX, provavelmente poderiam fazê-lo a partir da análise do mercado

imobiliário em geral. No entanto, a partir de determinado momento esse mercado

passou a assumir formas próprias de produção e regulação. Em meados do século

XX, certamente o mercado imobiliário das favelas já assume uma dinâmica própria,

na qual ganham importância os agentes locais e suas formas de regulação e

produção nesse ramo. Nos últimos 30 ou 40 anos, podemos considerar a

consolidação dessa dinâmica interna de produção e regulação no mercado

imobiliário como forma dominante de acesso à habitação nas favelas.

O poder público, por mais que os técnicos não acreditem mais nisso, trata as

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14  

favelas como bolsões de pobreza compostos exclusivamente por proprietários1 e

com todos os tipos de precariedade, sejam elas de natureza legal, urbanística ou

social. Com essas premissas, mesmo não sendo pouca coisa, bastaria a

regularização urbanística, fundiária e de serviços para garantir a consolidação dos

direitos universais para os favelados e a “integração” do território à cidade “formal”.

A única preocupação fora desse escopo seria uma possível atuação predatória de

especuladores imobiliários na favela “urbanizada”. No entanto, a existência de um

mercado imobiliário interno consolidado, indica que o acesso à terra nas favelas já é

mediado pelo valor2 e que a ação dos agentes locais interfere na forma como se

distribuem as riquezas e o acesso à terra. O não reconhecimento da dinâmica desse

mercado imobiliário e de uma concentração de recursos e terra pré-estabelecida,

frequentemente gera uma série de problemas que já se apresentam no momento da

implementação das políticas.

O primeiro problema que chama a atenção nos trabalhos de campo realizados

já é consolidado por alguns autores (DAVIS, 2006, p. 51 e 52) como a

“invisibilização” dos locatários das favelas. Os locatários das favelas são

sistematicamente escamoteados em processos que envolvem remoção, como

“urbanização de favelas”, controle de risco geotécnico ou proteção de áreas de

preservação ambiental. Nesses casos, os locatários não recebem indenização3, nem

sequer a promessa de benefício por qualquer programa público de moradia. O

mesmo acontece nos programas de regularização urbanística e fundiária. As

prefeituras têm como meta o maior número de titulações possível, enquanto as

empresas contratadas buscam cumprir os contratos com o menor custo possível.

Dessa forma, os contratos tendem a exigir apenas o cadastramento de situações

                                                            1 Por entender que as relações sociais concretas se sobrepõem às formas jurídicas nas dinâmicas de produção do espaço e do mercado imobiliário, nesta dissertação trataremos como propriedade, a terra que assim se apresenta no mundo, ou seja, o monopólio de uma porção do globo que tenha seu uso direto separado do direito de uso. Quando a propriedade como relação social e a propriedade jurídica coincidirem na figura de um proprietário ou conjunto de proprietários, trataremos como “propriedade oficial”, ou “propriedade jurídica”. Foi considerado o uso do termo “posse” na ausência da propriedade jurídica, porém o conceito é inapropriado para tratar a separação entre uso e direito de uso. 2 No capitalismo, o valor é o quantum de trabalho mensurado pelo tempo e intensidade que progressivamente se interpõe nas relações sociais. Segundo Duayer e Araújo (2015): “O valor é a forma específica que a riqueza assume no capitalismo e, simultaneamente, uma forma de mediação social singular”. Assim sendo, a generalização da inserção do valor como forma de mediação de algum aspecto da vida significa a sua mercantilização e tem por consequência a intensificação da dominação do homem pelo tempo. 3 Nesses casos os proprietários das benfeitorias são indenizados. Há uma sobreposição do direito de propriedade sobre o direito a moradia.

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passíveis de regularização, enquanto do ponto de vista da empresa contratada, o

trabalho não exigido em contrato significa um desperdício e, portanto, não é

efetuado. O resultado é o cadastramento exclusivo dos proprietários das

benfeitorias4, ou seja, se já não havia política específica direcionada para o locatário

do imóvel em favela, a forma de cadastramento tende a reforçar o desconhecimento

das suas condições, o que dificultará a inserção desse sujeito em ações futuras.

Além disso, as situações de inabitabilidade costumam ser registradas, mas sem o

cadastramento do proprietário da benfeitoria ou do inquilino. Outro resultado

importante, e que torna o inquilino ainda mais invisível, é a distribuição de imóveis

entre parentes. Os programas de regularização urbanística e fundiária limitam a

titulação a uma unidade por beneficiário. Ao saberem disso, os proprietários de mais

de uma unidade contornam esta situação nomeando parentes próximos como

proprietários no momento do cadastro junto à equipe técnica. Esse arranjo, que

ocorre rotineiramente, acaba por esconder a situação de aluguel de grande parte

dos imóveis e a centralização destes sob o domínio de alguns proprietários. Como

exemplo, relata um morador de favela entrevistado no processo de pesquisa sobre o

momento do cadastramento.

É... na verdade, pra fazer a legitimação da posse, você só pode ter um. Aí aqui eu botei o nome do meu filho e lá no prédio eu botei o meu nome. Vou botar uma bronca nele e falar: — “a casa é minha hein?”. Botei no nome dele e do meu mais novo. Eu devia ter dado pra mãe, porque automaticamente no futuro era deles. Dando pra eles, eles casam... No meio do caminho pode dar confusão. Eles brincam comigo... Solteiro, mas imagina uma nora aí que não se entenda bem5.

Em 2015, durante o trabalho de regularização urbanística e fundiária realizado

para a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, em reunião na Gerência de

Regularização Urbanística e Fundiária da Secretaria Municipal de Habitação (GRUF-

SMH-PMRJ), recebemos orientação para que, em casos onde todas as unidades

habitacionais de um lote (sejam elas dez ou cinquenta) fossem de um único

proprietário, se cadastrasse o lote todo como uma única unidade6. É muito comum a

                                                            4 “Proprietários das benfeitorias” é a forma como são tratados os beneficiários dos projetos de regularização urbanística e fundiária ou indenizados em casos de remoção. Essa definição se dá pelo entendimento que sujeito é proprietário da edificação, porém não o é da terra onde se encontra sua edificação. 5 Para resguardar a identidade dos entrevistados, eles serão apresentados pela categoria desenvolvida para as entrevistas seguida por um número que diferencie entrevistados de uma mesma categoria, conforme será apresentado mais adiante. 6 Nessa reunião a gerência deu a entender que essa era uma prática que já acontecia há mais tempo.

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ocorrência de edificações com duas ou três unidades habitacionais e um único

proprietário, fazendo com que seus inquilinos desapareçam dos cadastros oficiais.

No entanto, em determinados casos essa orientação significa o desaparecimento de

dezenas de famílias e unidades habitacionais que compõem uma única edificação

de um único proprietário.

Quando o Estado investe na urbanização ou em equipamentos públicos nas

favelas, a possibilidade de valorização dos imóveis7 torna necessário desenvolver

estratégias e políticas para a manutenção da população nessas áreas. Grosso

modo, a lógica é a seguinte: se o Estado investe intensivamente em determinada

área da cidade, essa melhoria pode ser capturada via valorização fundiária pelos

proprietários de terra. É prática sistemática do incorporador imobiliário a antecipação

dessa valorização para auferir ganhos fundiários. Isso significa que as áreas em

valorização da cidade, seja em função do investimento do Estado ou da mudança de

uso promovida pelo próprio capital imobiliário, estão propícias a auferir esse tipo de

ganho, pelo menos até a consolidação da área quando os proprietários passam a ter

capacidade de antecipação desses ganhos. Nessa lógica, a intervenção estatal nas

favelas as tornaria um possível alvo para a ação do capital imobiliário.

Uma das formas mais difundidas de combater a atividade predatória do

capital imobiliário nas favelas é a delimitação de Áreas de Especial Interesse Social

(AEIS), cuja regulamentação pode incluir a limitação de gabarito e remembramento

de lotes a fim de impedir a realização de grandes empreendimentos e até mesmo o

interesse de uma classe mais alta que exigiria lotes maiores. Mesmo que não haja

uma fiscalização sistemática de remembramento de lotes, ou mesmo um franco

interesse do capital imobiliário em atuar em alguma favela, o estabelecimento de

parâmetros urbanísticos que reforcem um caráter de lotes individuais deve ter uma

eficácia relativa. Porém, o que as políticas públicas não têm levado em consideração

é que as favelas já têm um mercado imobiliário consolidado. As pesquisas de

Abramo (2005) identificaram um mercado regular nas favelas do Rio de janeiro e

com uma rotatividade ligeiramente superior ao dos bairros da cidade. Isso significa

que o acesso à moradia nas favelas já é regulado por um mercado que deve

responder às mudanças de posição relativa da favela nos mapas de acessibilidade

da cidade e, dessa forma, coordenar a localização das famílias segundo seus

                                                            7 Mais tarde desenvolveremos como os investimentos públicos podem ser capturados pelos proprietários de terra na forma de renda fundiária.

Page 17: A produção do espaço na favela - UFRJ

17  

rendimentos.

Com esses elementos apontados, pode-se concluir que, se o Estado de

alguma forma pretende investir na melhoria das condições de moradia nas favelas e

ao mesmo tempo impedir a substituição da sua população, é necessário não apenas

entender a forma de atuação dos agentes externos que podem se impor de forma

predatória nas favelas, mas, também entender a forma de atuação dos agentes

locais. Através de mecanismos mais gerais de uma sociedade capitalista, ou mais

específicos em substituição, por exemplo, às formas jurídicas inexistentes nas

favelas, esses agentes locais devem cumprir um papel no mercado imobiliário e na

produção do espaço na favela.

O relativo silenciamento8 sobre o mercado imobiliário em favelas não está só

presente no discurso do Estado e na formulação de políticas públicas, mas a própria

academia, apesar de ter uma tradição quase secular de estudos sobre a

estruturação urbana e grande volume de estudos (ainda que mais recentes) sobre o

mercado imobiliário e sobre favelas, deu pouca atenção ao fenômeno. Segundo

Abramo:

Ainda que os trabalhos sobre a lógica de mercado e o uso do solo tenham uma grande tradição e um enorme número de instituições (revistas, centros de pós-graduação, institutos de pesquisa e governamental, etc.) praticamente a totalidade desses estudos tem como objeto o mercado fundiário e imobiliário formal ou legal. Apesar do mercado informal de terras existir na maior parte das cidades latino-americanas e ser o mecanismo de acesso à terra urbana de uma parte considerável da população pobre dessas cidades, praticamente não há estudos sistemáticos e abrangentes sobre esse tema. Com exceção de algumas reportagens de natureza jornalística e estudos monográficos de âmbito bastante restrito, constata-se um grande vazio nos estudos urbanos, e em particular de economia urbana, sobre o mercado informal de terras urbanas. A importância atual desse mercado e a perspectiva do seu crescimento em função da redução expressiva dos processos de ocupação de terras urbanas impõem a urgência de trazê-lo como uma das prioridades de objeto de estudo (ABRAMO, 2003, p. 4).

Dentre a bibliografia pesquisada, os trabalhos mais sistemáticos sobre o

mercado imobiliário em favelas foram os desenvolvidos pelo professor Pedro

Abramo e a rede Observatório Imobiliário e de Políticas do Solo (OIPSOLO).

Entretanto, esses trabalhos se concentraram no estudo da demanda por habitações

em favelas, ou seja, na racionalidade dos demandantes e suas preferências

                                                            8 Existem algumas produções mais sistemáticas dos quais destaco o trabalho desenvolvido pela rede OIPSOLO e que serão trabalhadas mais afrente. Mas, ao que parece, o reflexo dessa produção na formulação de políticas públicas ainda é restrito.

Page 18: A produção do espaço na favela - UFRJ

18  

locacionais e no seu reflexo na transformação da estrutura sócio-espacial,

considerando uma estrutura dada. Pouca atenção foi dada ao desenvolvimento da

propriedade da terra nas favelas, à dinâmica de formação dos estoques e aos

agentes produtores do espaço, seja pelo entendimento de que eles mobilizam seus

recursos apenas para complementar renda, seja por entender que estes não teriam

poder de intervenção na estrutura dos territórios de atuação.

Como mostram os trabalhos de campo em favelas, é possível identificar certa

concentração de recursos. Há uma pequena parcela da população capaz de

acumular recursos monetários, políticos e simbólicos. Essa fração da população

favelada foi identificada por Machado da Silva (2016 [1967], p. 35) como uma

“burguesia favelada”. É evidente que essa acumulação, ainda que por vezes

apresente um caráter monopolista, não é capaz de formar verdadeiros capitais.

Longe disso, são agentes pulverizados que concentram comércios, imóveis, às

vezes serviços e controle de instituições como igrejas, Associações de Moradores

etc. e que são altamente dependentes de recursos externos e incapazes de

concorrer com os grandes capitais da cidade como um todo. Dessa forma, nossa

primeira hipótese é que parte dos imóveis ofertados para venda ou para aluguéis

têm origem em operações já identificadas por Abramo (subdivisão de lotes,

subdivisão de edificações e venda de laje), porém, há uma parcela, não sem

importância, de operações imobiliárias que por vezes resultam em prédios com

dezenas de apartamentos. Havendo um movimento de produção e/ou de

centralização dos estoques imobiliários, torna-se importante o estudo da atuação

dos agentes locais e supralocais que produzem e regulam o espaço e do

desenvolvimento das formas específicas de propriedade. Esses estudos podem

revelar elementos importantes do mercado imobiliário em favelas.

1.1 Problema central

Através da análise da dinâmica dos agentes produtores e reguladores do

espaço em nível local em duas favelas do Rio de Janeiro, buscamos complexificar a

leitura desses territórios a fim de dar suporte a análises do mercado imobiliário nas

favelas. O fato de as favelas, de forma geral, terem uma regulamentação precária

(mesmo que às vezes mais restritiva) por parte do Estado, sobrepuja a importância

dos agentes locais se comparados aos agentes que atuam localmente em outros

espaços da cidade. Dessa forma, ainda que, em condições particulares que as

Page 19: A produção do espaço na favela - UFRJ

19  

determinam9 em grande medida, as singularidades de cada favela tem uma

importância inflada. Entendendo essa importância, buscamos compreender como se

constituem as relações entre os agentes locais e entre agentes locais e supralocais

(em especial o Estado e seus agentes especializados). Daí, pretendemos extrair a

forma como as coalisões e conflitos determinados nas diversas escalas, em especial

a escala local, influenciam na produção de habitação e no mercado imobiliário das

favelas.

O objetivo do presente estudo não é, e nem poderia ser a apreensão do

funcionamento da dinâmica imobiliária nas favelas. A insuficiência dos dados

levantados por instituições públicas ou por grupos de pesquisa no Brasil exigiria um

esforço empírico que está fora do alcance do desenvolvimento de uma dissertação

de mestrado. Tampouco é um estudo de caso, que não permitiria a incorporação de

uma experiência diversificada em campo para nos concentrarmos em uma área (e,

ainda assim, não teríamos condição de levantar dados empíricos suficientes para a

análise da dinâmica imobiliária em um caso específico). Esse estudo busca reunir

elementos que não podem a princípio ser entendidos como características de toda e

qualquer favela, mas que podem se mostrar como contraponto à visão simplificadora

do mercado imobiliário nessas áreas, em especial a que resume a produção

imobiliária à autoconstrução e ignora a influência das relações de poder

estabelecidas no território na dinâmica imobiliária. Dessa forma, buscamos levantar

elementos da relação particular entre Estado e favelas e do desenvolvimento

singular de cada favela que influenciem na dinâmica do mercado imobiliário.

O estudo está concentrado em três elementos que consideramos de

fundamental importância para a compreensão da dinâmica imobiliária das favelas.

Em primeiro lugar, as condições impostas pelos territórios de favela que determinam

um desenvolvimento particular da propriedade e das relações de poder e

diferenciam este mercado imobiliário do restante da cidade. Se pudermos, ao longo

do estudo, identificar essas condições, podemos fazer um esforço para diferenciar

quais delas são resultados do tratamento particular dado às favelas pelo Estado e

pelo conjunto da sociedade e quais delas se apresentam como singularidades

                                                            9 Consideramos determinação, nessa dissertação, no sentido marxiano. Como partes constitutivas dos ser. Dessa forma, um determinante não é algo que sozinho define o objeto concreto, singular, mas esse objeto é síntese de múltiplas determinações. Sendo assim, quanto mais determinações têm o objeto observado, mais se aproxima do concreto/singular quanto menos, mais se aproxima do abstrato/universal.

Page 20: A produção do espaço na favela - UFRJ

20  

decorrentes do desenvolvimento da estrutura local de poder e suas relações com a

estrutura de poder oficial e formas jurídicas de cada território.

De partida, podemos considerar a hipótese de que a constituição de um

mercado imobiliário regular necessita da instituição de uma forma de propriedade

que, se não é oficialmente reconhecida pelo Estado, depende de uma relação mais

complexa entre as formas de poder estabelecidas no território e o Estado. Mas não

qualquer forma de propriedade, é necessária a constituição, de fato, da forma da

propriedade privada específica do capitalismo, ou seja, ela deve garantir o direito de

monopólio sobre uma porção do globo, deve ser alienável e deve ter o seu uso

direto separado do direito de propriedade, de forma que, em troca de dinheiro, o uso

possa ser cedido sem que ocorra a cessão do direito. Essa forma de propriedade

deve ter um nível de segurança que permita a confiança no contrato entre

compradores e vendedores, ou locadores e locatários, ou seja, o direito de

propriedade na favela não pode ser facilmente abalado pelas mudanças na estrutura

de poder.

Em segundo lugar, os meios de formação dos estoques imobiliários. Ainda

que a bibliografia pesquisada sobre o mercado imobiliário em favelas pouco toque

nesse assunto, as observações feitas no trabalho de campo demonstram que a

produção imobiliária em diversas favelas (e não apenas o mercado secundário)

também é dinâmica, dessa forma, tentar apreender a dinâmica imobiliária das

favelas sem esse aspecto significa se ater a uma fração desse mercado.

Em terceiro lugar, a configuração do poder local, os seus agentes e a relação

desses poderes e agentes com os poderes e agentes supralocais. Essas relações

vão, em grande medida, determinar a constituição de mecanismos de instituição e

regulação da propriedade privada, assim como da produção imobiliária. Dessa

forma, é importante enfatizar que os três elementos se inter-relacionam em todos os

momentos.

Esses são os três elementos que foram considerados importantes destacar,

tanto pela importância na apreensão da dinâmica do mercado imobiliário, como por

terem sido pouco explorados nos trabalhos pesquisados sobre o mercado imobiliário

das favelas. É nesse sentido que o título da presente dissertação busca ser preciso

na descrição do tema proposto. Não pretendemos aqui produzir uma análise do

mercado imobiliário das favelas como um todo, das favelas do Rio de Janeiro ou das

duas favelas onde foi realizado o trabalho de campo, mas, a partir das análises já

Page 21: A produção do espaço na favela - UFRJ

21  

produzidas, buscamos identificar as lacunas e complexificar os pressupostos

estabelecidos adicionando novos elementos que contribuam para futuras análises do

mercado imobiliário nas favelas.

1.2 Recorte espacial

Figura 1: Favelas do Rio de Janeiro.

 Fonte: IBGE (Aglomerados Subnormais), Google Earth.

São necessárias algumas considerações sobre o recorte espacial do presente

trabalho, pois tivemos à nossa disposição, materiais de campo de qualidades

distintas.

O primeiro foi resultado do que chamamos de reconhecimento de campo e foi

realizado em seis favelas do Rio de Janeiro (Babilônia, Chapéu Mangueira,

Manguinhos, Rocinha, Tijuquinha e Turano) no âmbito de programa de regularização

urbanística e fundiária onde o autor trabalhou como arquiteto no período de 2013 a

2015. A Figura 2, a seguir, representa a localização dessas favelas no Rio de

Janeiro.

Page 22: A produção do espaço na favela - UFRJ

22  

Figura 2: Favelas onde o autor trabalhou no âmbito do programa de regularização urbanística e fundiária (não foi realizado o trabalho de campo em Borel, Formiga, Tijuaçu e Mata Machado).

 Fonte: IBGE (Aglomerados Subnormais), Google Earth.

O segundo foi resultado das entrevistas semiestruturadas realizadas em 2017

e 2018 em duas favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, não identificadas para

resguardar a identidade dos entrevistados.

Page 23: A produção do espaço na favela - UFRJ

23  

Figura 3: Área onde se localizam as favelas onde ocorreram as entrevistas.

 Fonte: IBGE (Aglomerados Subnormais), Google Earth.

Dessa forma, já há aqui duas delimitações qualitativamente distintas. Nas seis

favelas incluídas no reconhecimento de campo a presença nos locais foi muito maior

(de segunda feira a sexta feira durante vários meses em cada uma delas), mas o

trabalho não tinha um olhar direcionado para essa dissertação. Ou seja, o material

levantado sobre essas favelas é o reaproveitamento de um trabalho executado

tendo em vista a sua regularização urbanística e fundiária. Nas favelas onde foram

realizadas as entrevistas, foram feitas cerca de cinco visitas em cada uma delas,

porém, como as visitas e as entrevistas foram planejadas e realizadas visando o

presente trabalho foi gerado um material mais amplo que serviu como material

principal da dissertação. Dessa forma, as visitas e as entrevistas semiestruturadas

formam a espinha dorsal do material empírico de fonte primária, sendo por diversas

vezes complementada pelo material levantado no reconhecimento de campo. As

complementações não se restringem aos dados empíricos primários, tendo sido

utilizados dados secundários de fontes públicas, de caráter acadêmico ou

jornalístico. As complementações acontecem: 1) quando há a necessidade de

demonstrar algo que não foi possível observar nas favelas onde foram realizadas as

entrevistas; 2) quando o material do reconhecimento de campo ou das fontes

secundárias é mais adequado, seja por ter a informação de forma mais clara, seja

Page 24: A produção do espaço na favela - UFRJ

24  

pela possibilidade de identificar a favela; 3) quando foi necessário demonstrar a

existência do mesmo fenômeno em outras favelas; 4) quando foi necessário

demonstrar que o mesmo fenômeno foi observado por outros autores.

Apesar desses dois limites do trabalho de campo, consideramos em diversos

momentos a possibilidade ampliação do conjunto fenomênico a ser explicado. Por

exemplo, se identificamos uma tendência que tem sua fonte na política do Estado

nacional para as favelas ao longo da história, podemos considerar que essa

tendência está presente em todas as favelas do país, ainda que ela tenha

expressões diversas para cada favela e em cada tempo histórico. Para deixar o

exemplo mais concreto, Boaventura de Sousa Santos (1999) defende que, devido à

centralidade da mercadoria terra no capitalismo e frente à precariedade com que o

Estado atua na instituição e defesa da propriedade privada nas favelas, há uma

tendência geral a que as favelas busquem através de mecanismos próprios a

compensação dessa precariedade, ainda que essa tendência se expresse de

maneiras distintas para cada contexto.

Outra forma de ampliação do universo do fenômeno apresentado (sempre

buscando entender os seus limites) foi a busca por dados secundários. Por exemplo,

notícias de jornal, dados levantados no reconhecimento de campo e outras

pesquisas acadêmicas foram utilizados para destacar a presença de agentes

especializados na produção imobiliária em outras favelas, caracterizando esse

fenômeno como um fenômeno mais amplo que as favelas onde foram realizadas as

entrevistas.

O capítulo 1 e a primeira parte do capítulo 2 buscam questões mais gerais

sobre as favelas a partir da bibliografia pesquisada, enquanto o restante da

dissertação busca complexificar os aspectos da escala local, por vezes, apontando

para a possibilidade de ampliação do poder explicativo de determinado argumento

para um número mais expressivo de fenômenos, sempre com a cautela apontada.

1.3 Caracterização das Favelas e dos entrevistados no trabalho de campo

Com o objetivo de resguardar a identidade dos entrevistados, adotamos

designações para as duas favelas onde houve entrevistas, a cada uma delas

correspondendo designações específicas para os entrevistados, segundo sua

relação com o mercado imobiliário ou inserção social.

Page 25: A produção do espaço na favela - UFRJ

25  

Favela 1 e Favela 2

As favelas, onde foi realizado o trabalho de campo, foram designadas “Favela

1” e “Favela 2”. As duas favelas se localizam na Zona Sul, principal área de

concentração da população de alta renda do município do Rio de Janeiro. A Favela

1 é uma favela populosa, tendo mais que o dobro da população da Favela 2. As

duas favelas têm Associações de Moradores presentes nos seus cotidianos. Apesar

de a Associação de Moradores da Favela 2 parecer ser mais legitimada pela

população em geral que a da Favela 1, a Associação de Moradores da Favela 1

parece exercer maior poder. Houve indicações de uma coalisão estabelecida entre

Associação de Moradores e narcotráfico varejista na Favela 1, enquanto na Favela 2

essa relação não foi nem cogitada pelos entrevistados. As duas favelas têm como

característica a presença do narcotráfico varejista com relativa estabilidade, tendo

mantido as suas atividades mesmo com a instalação das Unidades de Polícia

Pacificadora (UPPs), ainda que de forma mais restrita. O narcotráfico varejista na

Favela 1 parece ser maior e exercer um poder mais constante que na Favela 2,

tendo interferência maior no mercado imobiliário, mediação de conflitos, etc. Ambas

as favelas têm certo movimento turístico e são consideradas por seus moradores

como favelas com o custo de vida elevado. São favelas que têm a maior parte de

seus territórios em declive e com áreas de alta densidade populacional, sendo que a

Favela 2 apresenta áreas com baixa densidade.

Proprietário 1 Favela 1

O Proprietário 1 da Favela 1 é uma antiga liderança da favela. Essa posição o

garantiu certo acesso a instituições supralocais, tendo ocupado cargo público e

sendo chamado para auxiliar ou trabalhar em projetos que aconteceram na favela. O

Proprietário 1 da Favela 1 possui cerca de 11 imóveis na Favela 1 sendo que mora

em um deles e aluga o restante.

Proprietário 2 Favela 1

O Proprietário 2 da Favela 1 é representante de uma distribuidora de gás na

Favela 1. Localizamos, também, em pesquisa por Cadastro Nacional de Pessoa

Jurídica (CNPJ), duas lojas de material de construção em seu nome, porém não

sabemos se estão ativas. O entrevistado foi candidato não eleito a deputado

Page 26: A produção do espaço na favela - UFRJ

26  

estadual em 2014 e possui cerca de 25 imóveis na Favela 1, sendo todos alugados,

visto que ele mora fora da favela. Segundo o Proprietário 1 da Favela 1, o

Proprietário 2 é um “testa de ferro” do narcotráfico varejista na produção de imóveis.

A entrevista foi realizada em condições bastante adversas. Esperamos mais

de duas horas pelo entrevistado e a entrevista foi realizada de pé no galpão da

distribuidora de gás, onde havia muito barulho da carga e descarga dos caminhões.

Como a entrevista não pôde ser gravada, pudemos apenas capturar o conteúdo

geral da entrevista transcrevendo apenas alguns trechos no momento da entrevista.

Imobiliária 1 Favela 1

O corretor da Imobiliária 1 da Favela 1 mora nela desde 1972 . Já possuiu

outros estabelecimentos comerciais na favela, mas hoje possui apenas a imobiliária.

Foi candidato não eleito a vereador em 2012 e deputado estadual em 2014 e

pretende ser candidato em 2018. Assumiu cargo na Associação de Moradores de

2008 a 2010. A imobiliária tem 10 anos de atividade na favela.

Imobiliária 2 Favela 1

O corretor da Imobiliária 2 da Favela 1 mora desde que nasceu na mesma

casa na Favela 1, onde atua com administração de imóveis há 19 anos na Favela 1.

Imobiliária 3 Favela 1

O corretor da Imobiliária 3 da Favela 1 nasceu na Favela 1 onde morou na

maior parte da vida, tendo morado fora apenas para trabalhar ou estudar, mas diz

que nunca deixou de frequentar a favela. Atua com administração de imóveis há 12

anos na Favela 1.

Associação de Moradores 1 Favela 1

A Associação de Moradores 1 da Favela 1 é uma associação atuante no

cotidiano da favela, principalmente em relação à fiscalização e mediação de

conflitos, porém, ao que parece, tem uma legitimidade mais questionada se

comparada à Associação de Moradores 2 da Favela 2.

Como não foi autorizada a gravação da entrevista da entrevista à Associação

de Moradores 1 da Favela 1, o conteúdo geral e alguns trechos foram registrados à

Page 27: A produção do espaço na favela - UFRJ

27  

mão no momento da entrevista. Tivemos que aguardar cerca de 40 minutos

enquanto a Associação realizava um atendimento e a entrevista foi interrompida

para outro atendimento. Mesmo assim, o questionário foi integralmente realizado,

ainda que as últimas questões não tenham sido desenvolvidas da melhor forma.

Proprietário 3 Favela 2

O Proprietário 3 da Favela 2 nasceu em outra favela do Rio de Janeiro, mas

já frequenta a Favela 2 desde pequeno. Vendeu sua casa na favela onde nasceu

para comprar um terreno na Favela 2, favela onde hoje vive com os pais e trabalha

em uma loja de materiais construção própria, em um bar de propriedade do pai e em

uma academia onde troca os serviços pelas aulas dos dois filhos. O entrevistado

possui, em sociedade com o irmão, a loja de materiais de construção onde trabalha

e um terreno onde estão sendo construídos 4 quitinetes e 2 apartamentos. Em

acordo com um terceiro que está auxiliando na construção, foi decidido que um dos

apartamentos ficará com esse terceiro e, em troca, sua casa que se localiza em

outra parte da Favela 2, será dividida em duas quitinetes que serão de propriedade

do entrevistado e seu irmão.

A entrevista foi interrompida em determinado momento por uma demanda da

loja de materiais de construção, mas o questionário já havia sido cumprido em sua

integridade.

Proprietário 4 Favela 2

O Proprietário 4 da Favela 2 foi presidente da Associação de Moradores 2 da

Favela 2 e funcionário público. Ele nasceu na Favela 2 e vive lá desde então. Em um

terreno comprado de um cunhado, ele construiu um hostel que após um mês foi

convertido em seis apartamentos que hoje aluga. Na laje da sua casa está

construindo mais dois apartamentos destinados ao aluguel.

Proprietário 5 Favela 2

O Proprietário 5 da Favela 2 apontou como de sua propriedade cerca de cinco

apartamentos, sendo um deles onde mora, um pequeno mercado e lanchonete e um

espaço cedido para a igreja. Outro morador indicou outros espaços como de sua

propriedade. O entrevistado é aposentado pelas forças armadas. Outro morador

Page 28: A produção do espaço na favela - UFRJ

28  

havia indicado que o entrevistado foi chefe do narcotráfico varejista na favela, mas

que não é mais envolvido há muitos anos.

A entrevista foi realizada em uma de suas propriedades, mas não pudemos

gravar e a entrevista foi interrompida. Há uma “boca de fumo” localizada em frente à

propriedade, onde foi realizada a entrevista. Segundo o entrevistado, em um conflito

do narcotráfico varejista com a polícia uma bala atingiu alguma estrutura de

fornecimento de energia. Em poucos minutos, a partir do início da entrevista, a Light

chegou para resolver o problema e tivemos que abandonar a entrevista, pois se

estabeleceu um momento de negociação entre funcionário da Light, o entrevistado e

o narcotráfico varejista.

Essa entrevista não foi utilizada na dissertação pela quantidade de

contradições entre o discurso do entrevistado e de outros informantes sobre o

entrevistado e pelas condições em que a entrevista foi realizada.

Associação de Moradores 2 Favela 2

A Associação de Moradores 2 da Favela 2 parece ter uma legitimidade

perante a população maior que a Associação de Moradores 1 da Favela 1 apesar

de, em nossa impressão, ela ser mais questionada a partir desse último ano (2018).

A Associação de Moradores 2 da Favela 2 tem um poder de fiscalização e regulação

menor que a da Favela 1, em grande medida limitada pela atuação do Estado e do

narcotráfico varejista.

A entrevistada é secretária eleita da Associação de Moradores 2 da Favela 2.

É nascida e mora desde então na Favela 2.

Comerciante 1 Favela 2

O Comerciante 1 da Favela 2 é nascido e mora desde então na Favela 2. É

filho de uma antiga liderança da favela. O entrevistado mora em uma casa térrea

com a mãe e possui um imóvel de dois andares onde funciona o restaurante que é

proprietário e administra.

1.4 Construção do objeto de pesquisa e estruturação do trabalho de campo

A construção do objeto de pesquisa foi feita em conjunto com a estruturação

do trabalho de campo. Dessa forma, para não alongar o texto de forma

Page 29: A produção do espaço na favela - UFRJ

29  

desnecessária e torná-lo mais fluído, resolvemos expor os dois processos em

conjunto.

O procedimento pode ser dividido nas seguintes atividades: reconhecimento

de campo; levantamento de artigos acadêmicos que tratam do mercado imobiliário

em favelas; coleta de entrevistas não estruturadas com pesquisadores da área;

coleta de entrevistas não estruturadas com moradores das favelas selecionadas e

coleta de entrevistas semiestruturadas com os agentes selecionados de cada favela.

O presente trabalho nasce da identificação em campo dos problemas

causados pelo relativo silenciamento sobre a dinâmica do mercado imobiliário nas

favelas na formulação de políticas públicas voltadas para esses territórios. Deparei-

me com esses problemas principalmente quando estive atuando como estagiário ou

arquiteto urbanista em programas de regularização urbanística e fundiária no Rio de

Janeiro. Fui estagiário durante o ano de 2009 no programa de regularização

urbanística e fundiária da Rocinha e, depois de formado, atuei nos programas de

regularização urbanística e fundiária do Complexo da Tijuca (Turano, Borel,

Formiga, Tijuaçu e Mata Machado), Manguinhos, Tijuquinha e Babilônia e Chapéu

Mangueira entre 2013 e 201510.

Como o presente trabalho é fruto também de experiências passadas, o

próprio cotidiano em campo durante a execução dos projetos de regularização

urbanística e fundiária que participamos foi um ponto de partida para a estruturação

do objeto e para as estratégias de pesquisa. O contato inicial com o campo

aconteceu nas favelas Rocinha, Turano, Manguinhos, Tijuquinha, Babilônia e

Chapéu Mangueira e não teve um olhar direcionado para esse estudo. Porém, a

experiência trouxe elementos que tiveram grande importância na formulação do

objeto de pesquisa e serão acionados durante o texto indicando de qual favela se

trata. No trabalho de campo nessas favelas, foram realizados os cadastros dos

moradores, o levantamento de suas casas e lotes, pesquisa fundiária, reuniões com

a Gerência de Regularização Urbanística e Fundiária da Secretaria Municipal de

Habitação (SMH) da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e outras atividades de

menor importância para o nosso estudo11. Com esse primeiro contato que durou

                                                            10 Não foi realizado trabalho de campo em Borel, Formiga, Tijuaçu, Mata Machado e Chapéu Mangueira nesse período. 11 Os dados coletados não nos interessam muito, apenas os que serão apresentados na próxima nota de rodapé e os apresentados no capítulo 3, subcapítulo 3.3, mas este trabalho foi importante para as escolhas do trabalho de campo e alguns casos observados durante esse cadastramento serão

Page 30: A produção do espaço na favela - UFRJ

30  

cerca de três anos, foi possível identificar: 1) a grande proporção de locatários12; 2) a

existência de proprietários com estoques imobiliários de 20 a 50 apartamentos; e 3)

a concentração do contato com autoridades supralocais em determinados sujeitos

ou organizações locais. O contato com o campo permitiu, de partida, uma ruptura

com o senso comum, tanto popular como acadêmico, que vê a favela como um

espaço predominantemente de proprietários autoconstrutores cuja formação de

estoque imobiliário é limitada à subdivisão de casa ou lote, verticalização ou

herança.

Durante o primeiro trabalho de campo13, chamou atenção os recentes

investimentos feitos pelo poder público na Babilônia em policiamento e urbanização

e a sua capacidade de atrair pequenos investidores privados com interesse no

potencial turístico proveniente de sua beleza natural, localização no Leme (bairro

nobre da zona sul do Rio de Janeiro) e do próprio “ser favela” como um “exotismo”

atraente. Assim, foram distribuídos hostels, restaurantes e pontos de apoio aos

turistas por toda a Babilônia. Se já havia sido identificada uma alta taxa de locatários

e certa concentração de recursos (imóveis, estabelecimentos comerciais, etc.), os

investimentos tenderiam a por em concorrência o uso habitacional predominante

com os novos usos, o que tenderia a aumentar o preço dos imóveis e, dessa forma,

acirrar a relação entre proprietários e locatários. Nessa relação, os locatários

tenderiam a ter o seu custo com habitação e outros bens relacionados,

progressivamente aumentados, o que geraria a diminuição do seu poder de

consumo e, no limite, a evasão do território.

O segundo passo foi o levantamento dos trabalhos produzidos sobre o

mercado imobiliário em favelas. Nesse momento, houve um primeiro contato com os

trabalhos produzidos por Pedro Abramo, Nelson Baltrusis e outros pesquisadores

vinculados à rede OIPSOLO. Esse levantamento foi importante para a confirmação

do mercado imobiliário em favelas como objeto de estudo viável, através da

identificação de um mercado volumoso e regular, e para dar um primeiro passo na

caracterização das relações intra e inter favelas e com o mercado imobiliário da

cidade como um todo na conformação do mercado imobiliário em favelas.

                                                                                                                                                                                          acionados ao longo da dissertação. 12 Na Babilônia, em uma amostra de 165 imóveis, foram identificados pelo menos 76 (46%) imóveis alugados. Já na Tijuquinha, foram levantados 674 imóveis, dos quais 435 (65%) estavam alugados. 13 Todo o trabalho desenvolvido pelo autor de 2013 a 2015 no âmbito de programas de regularização urbanística e fundiária em favelas cariocas.

Page 31: A produção do espaço na favela - UFRJ

31  

Entretanto, os trabalhos levantados deram ênfase à estrita relação entre

compradores e vendedores e à análise do mercado imobiliário pela demanda e,

dessa forma, abriram mão das especificidades do mercado imobiliário em favelas

que resultam das relações específicas de poder, reduzindo a abrangência da

produção imobiliária a subdivisões e pequenas verticalizações, quando já se pode

identificar pelo trabalho de campo a produção de prédios de apartamentos e

quitinetes (LEITÃO, 2004).

Dessa forma, aparece como questão a relação particular de poder em cada

território e os agentes que estruturam o espaço e o seu reflexo na dinâmica de

produção dos estoques imobiliários. Outra questão que surge da própria busca de

particularidades da produção habitacional em favelas é o desenvolvimento singular

das formas de propriedade. Se a propriedade privada capitalista não é plenamente

assegurada pelo Estado, a constituição de um mercado imobiliário regular exige a

criação de mecanismos locais que garantam essa forma de propriedade.

Com o primeiro contato em campo e com uma primeira análise dos trabalhos

mais sistemáticos sobre o mercado imobiliário em favelas, realizamos entrevistas

não estruturadas com os professores pesquisadores Gerônimo Leitão e Maria Laís

Pereira da Silva, ainda em busca de um delineamento melhor do objeto de pesquisa

e de formas de acesso ao trabalho de campo. Essas entrevistas resultaram na

ampliação da bibliografia a ser analisada, no contato com outros trabalhos de campo

em favelas e estratégias para o início do trabalho de campo. Uma indicação de

fundamental importância para este trabalho foi o contato de uma pessoa que nos

levou aos corretores imobiliários da Favela 1. A concentração de informações sobre

o mercado imobiliário nessas empresas garantiu um ponto de partida para o trabalho

de campo.

Antes de partir propriamente ao trabalho de campo, realizamos duas

entrevistas não estruturadas, uma na Favela 1 e outra na Favela 2 em busca dos

agentes a serem entrevistados. Foi entrevistado na Favela 1 um líder comunitário

que mora na favela há mais de 30 anos. Na Favela 2, foi entrevistada uma

integrante de uma família que é moradora desde a década de 1950 e que guarda

relações familiares com alguns ex-presidentes da Associação de Moradores. O

resultado dessas entrevistas foi o levantamento de cinco imobiliárias na Favela 1

das quais três foram entrevistadas, um proprietário de apartamentos que foi indicado

Page 32: A produção do espaço na favela - UFRJ

32  

por ser ligado ao narcotráfico varejista e exercer um papel de “testa de ferro”14 para

os investimentos imobiliários da organização, um representante de Associação de

Moradores localizada na Favela 1 e o próprio primeiro entrevistado da Favela 1, que

é um pequeno proprietário, possuindo cerca de 10 imóveis alugados. Na Favela 2,

foram levantados três proprietários de imóveis (dois deles historicamente ligados à

Associação de Moradores), a própria associação de moradores e um comerciante

(também historicamente ligado à associação) e um corretor imobiliário15.

A partir do levantamento dos agentes a serem entrevistados, foram

formulados quatro roteiros de entrevistas, para proprietários de imóveis, para

Associação de Moradores e outras instituições, para corretores e administradores de

imóveis e para comerciantes. Os roteiros foram estruturados em seis partes: 1)

caracterização do entrevistado; 2) vínculo com o território; 3) propriedade da terra e

formalização das transações; 4) formação dos preços imobiliários; 5) formação dos

estoques imobiliários; e 6) regulação do território. Os roteiros foram aplicados sem

grande rigidez, mas houve o cumprimento de todo o questionário em todas as

entrevistas. Nas oportunidades em que apareceram elementos que interessam à

pesquisa e que não foram previstos no roteiro, esses elementos foram incentivados

com novas perguntas. Ao mesmo tempo, quando as respostas para determinadas

perguntas do roteiro não foram completas ou satisfatórias elas foram refeitas, ou

reformuladas no momento da entrevista. As entrevistas duraram cerca de uma hora

cada.

As entrevistas foram transcritas e os trechos selecionados de acordo com a

estrutura do trabalho. A partir desse painel foi possível contrapor de forma constante

as entrevistas com o desenvolvimento do texto.

Considerando as observações feitas no trabalho de campo, nas entrevistas

com pesquisadores, nas entrevistas não estruturadas com moradores da Favela 1 e

da Favela 2 e no levantamento bibliográfico, o objeto de pesquisa sofreu diversas

alterações. Em primeiro lugar, a pesquisa deixa de estar centralizada nos possível

processo de valorização e acréscimo dos custos relacionados à habitação em

decorrência de diversificados tipos de investimentos públicos nas favelas da zona

                                                            14 Na Favela 1, foi apontada a atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário. Para dificultar a identificação dessa atividade o narcotráfico atua através de agentes que não atuam no varejo. A esses agentes que interpõem a relação entre locatário/comprador de imóveis e narcotráfico varejista com o objetivo de esconder a relação, os moradores da favela 1 designam “testas de ferro”. 15 Este corretor não foi entrevistado, pois não compareceu para a entrevista em nenhuma das três oportunidades agendadas.

Page 33: A produção do espaço na favela - UFRJ

33  

sul e passa a estar centrada na dinâmica imobiliária como um todo da favela. Por

outro lado, a pesquisa deixa de estar centrada nos locatários, como possíveis

despossuídos no processo de valorização, e passa a estar centrada nos agentes

produtores e reguladores do espaço.

A escolha pela entrevista de caráter qualitativo se deu pela adequação ao

objeto pesquisado e pelos limites impostos pelas condições materiais em que a

pesquisa foi realizada. Considerando a busca pelos agentes locais e a dinâmica de

funcionamento configurada por esses agentes e o caráter exploratório da pesquisa

torna-se necessário o levantamento de um material que permita a extração das

categorias e da lógica de produção do espaço do próprio campo.

Por questão de segurança das fontes, decidimos não identificar as duas

favelas. Foram entrevistados na favela 1 dois proprietários, três imobiliárias e uma

associação de moradores, enquanto na favela 2 foram entrevistados três

proprietários, uma associação de moradores e um comerciante, totalizando 11

entrevistas.

Foram também realizadas revisões bibliográficas sobre a renda da terra

baseada, sobretudo, na análise de David Harvey; sobre o mercado imobiliário, tendo

como base a produção de Pedro Abramo; sobre as categorias de análise para o

estudo da favela, com base em Ananya Roy; sobre a produção da categoria “favela”,

com base em Maria Laís Pereira da Silva, Luiz Antonio Machado da Silva, Gerônimo

de Almeida Leitão e Rafael Soares Gonçalves; sobre o mercado imobiliário em

favelas, baseado na produção de Pedro Abramo e do grupo OIP-SOLO; e sobre a

relação entre estado e favela com base, sobretudo, em Boaventura de Sousa

Santos.

Diversos autores destacam a importância quantitativa da produção

habitacional das favelas para o acesso à moradia nas grandes cidades brasileiras.

Para esses autores, o acesso à moradia nas favelas se dá, sobretudo, via mercado

imobiliário.

Na produção acadêmica brasileira sobre o mercado imobiliário das favelas

pouco foi produzido sobre a estrutura de poder local, ainda que, como defendemos,

essa seja uma escala de fundamental importância no entendimento da sua

dinâmica. Pouco também foi produzido, sobre as estratégias dos agentes locais na

produção de moradias em função do entendimento de que esses agentes não

interferem na estrutura espacial das favelas.

Page 34: A produção do espaço na favela - UFRJ

34  

Nesse trabalho, pretendemos contribuir para a caracterização dos agentes

produtores do espaço na favela e suas relações. Para isso, é necessário avançar no

que diz respeito ao mapeamento dos interesses permanentes ou conjunturais de

cada agente e sua forma de atuação. Porém, além disso, é importante entender

como esse conjunto conforma uma dinâmica imobiliária própria.

1.5 Estrutura

O trabalho foi estruturado em cinco capítulos, além dessa introdução:

O capítulo 2: “Caracterização do objeto, em busca de um ponto de

partida” trata da caracterização do objeto de pesquisa e está dividido em: 1)

levantamento teórico-bibliográfico sobre a natureza da renda fundiária, buscando as

condições mínimas para a apropriação da renda, as formas de apropriação e o seu

papel na estruturação do espaço e na acumulação do capital (MARX, 2017;

HARVEY, 2013; CARCANHOLO, 2013; TOPALOV, 1984; BOTELHO, 2008); 2)

levantamento teórico bibliográfico sobre a articulação entre as frações do capital

imobiliário, suas formas de ganho e lógica de atuação sob o comando do

incorporador, indicações sobre a estruturação do espaço pelo capital imobiliário e as

disputas e alianças entre proprietários, incorporadores e o Estado (ABRAMO, 1988;

LOGAN; MOLOTCH, 1987; DAVIS; 2007); 3) discussão sobre informalidade em sua

pluralidade de condições e a transitoriedade entre o formal e o informal (ROY, 2011;

YIFTACHEL, 2011; ROLNIK, 1997; CARDOSO, 2003); 4) a construção da favela

como categoria através da crítica ao senso comum das instituições do Estado e

debate sobre o seu papel como fenômeno constituinte e permanente na urbanização

capitalista brasileira (MACHADO DA SILVA, 2016; PEREIRA DA SILVA, 2009;

LEITÃO, 2009; SOUZA E SILVA, 2009; VALLADARES, 2005; GONÇALVES, 2013;

OLIVEIRA, 2003, 2006; ARUTO; TONIN, 2016; SANTOS, 1979; LOPES, 2006;

ABRAMO, 2001); e 5) levantamento do “estado da arte” sobre o mercado imobiliário

em favelas, em especial com base no trabalho mais sistemático desenvolvido por

Abramo e a rede OIP-SOLO (ABRAMO, 2001,2003, 2003b, 2005, 2007, 2007b,

2012; BALTRUSIS, 2004, 2004b, 2009; LONARDI, 2007).

O capítulo 3: “Condições necessárias para a formação de um mercado

imobiliário em favelas” trata das instituições necessárias para a formação de um

mercado imobiliário em favelas e está dividido em: 1) a análise do desenvolvimento

da forma da propriedade da terra, buscando inserir os agentes produtores e

Page 35: A produção do espaço na favela - UFRJ

35  

reguladores do espaço e seus mecanismos de regulação com base, sobretudo, na

análise de Magalhães (2010) sobre o debate em torno do direito de pasárgada de

Sousa Santos (1999); 2) os contratos de aluguel e sua segurança jurídica, onde

tratamos da separação da propriedade da terra e seu uso através dos mecanismos

de registro e de recuperação dos imóveis em caso de inadimplência; 3) os agentes e

mecanismos que atuam na regulação da construção.

O capítulo 4: “Formação dos estoques imobiliários” trata da formação dos

estoques imobiliários e está dividido em: ocupação, subdivisão, venda da laje e

promoção imobiliária. Na segunda parte serão tratados os limites impostos pelas

formas específicas de propriedade nas estratégias dos proprietários investidores.

O capítulo 5: “Agentes estruturadores do espaço” trata dos agentes

estruturadores do espaço e suas inter-relações e está dividido em: associação de

moradores, narcotráfico varejista e Estado. O último subcapítulo está destinado à

análise das rupturas permanentes ou conjunturais no interior da “comunidade”.

Esses cortes determinam grupos dentro das favelas que podem se opor ou formar

coalisões a depender do contexto.

O capítulo 6: “Conclusão” é um esforço de identificar, na caracterização

desenvolvida no curso da pesquisa, quais elementos se apresentam como

particularidades das favelas e quais se apresentam como singularidades das favelas

pesquisadas e que devem se desenvolver de forma diferenciada a depender de

aspectos geográficos, sociais e históricos de cada favela.

1.6 Quadro categorial utilizado

Não pudemos desenvolver de forma detida algumas categorias que foram

utilizadas ao longo da dissertação. Não nos propomos a fazê-lo nesse momento,

porém algumas advertências são importantes para que essas categorias não sejam

entendidas apenas como um uso fortuito e descuidado das palavras.

Forma e conteúdo, aparência e essência16

Marx (MARX; ENGELS, 2011 [1844]) demonstra como a partir das maçãs,

peras, amêndoas, etc. podemos chegar na substância “fruta”, porém apenas a partir

da constatação da substância “fruta” podemos entender que essa totalidade possui

                                                            16 (Cf. MARX, 2013 [1867]; MARX; ENGELS, 2011 [1844])

Page 36: A produção do espaço na favela - UFRJ

36  

um conteúdo próprio e a essência “fruta” aparece na forma de maçãs, peras,

amêndoas, etc. Marx (2013 [1867]) apresenta essa diferenciação em diversos

momentos ao longo d’O Capital ela está na diferenciação entre valor e valor de troca

ou preço, entre mais-valor e lucro, valor da força de trabalho e salário, etc.

Um exemplo largamente usado está no primeiro parágrafo d’O Capital, onde

Marx afirma que “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção

capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’” (MARX, 2013

[1867], p. 113). O termo “aparece” não é fortuito. Ao construir a frase dessa forma,

Marx aponta que na aparência a riqueza nas sociedades onde reina o modo de

produção capitalista são mercadorias. Ao longo da obra o autor vai demonstrar que

a mercadoria representa a riqueza apenas como suporte de valor, ou seja, a riqueza

no capitalismo é valor em essência ou uma relação social fundada no tempo de

trabalho socialmente necessário. Daí a constatação de Postone (2014) que o

imperativo lógico do capital (o valor em valorização) é a dominação do homem pelo

tempo.

Com isso constatado, podemos destacar que a essência não é algo que sai

da mente do pesquisador e serve como instrumental para a análise dos fenômenos,

mas é parte da realidade que não pode ser constatado empiricamente, mas tem que

partir do empírico. Ainda, aparência e essência ou forma e conteúdo estão sempre

em relação e são partes imprescindíveis da realidade. A aparência não é uma

mentira que esconde a essência, mas as duas são partes da unidade que é o ser

concreto, ainda que se contradigam. Ninguém negaria que a gravidade continua

operando sobre um balão de ar quente ou de gás hélio que se distancia da terra,

ainda que a gravidade opere no sentido contrário, isso porque múltiplas

determinações operam sobre o fenômeno.

Universal, particular e singular17

O singular coincide com o fenômeno, ou seja, com o empiricamente

apreensível. Dessa forma, tudo que o mundo nos oferece de forma imediatamente

sensível é algo singular. Ocorre, porém, que o fenômeno não oferece a totalidade

dos processos. Há múltiplas determinações e legalidades que não podem ser

empiricamente reconhecidos, mas que unem os fenômenos em uma mesma

                                                            17 (Cf. PASQUALINI; MARTI, 2015; MOSELEY, 2016)

Page 37: A produção do espaço na favela - UFRJ

37  

totalidade. Essas legalidades que operam sobre os fenômenos estão na dimensão

do universal que coincide com a essência. O particular é, dessa forma, a mediação

entre o singular, aparente, fenomênico, etc. e o universal, essencial, conteudístico,

etc.

Podemos voltar ao exemplo da fruta e considerar que a fruta, como um

universal, se apresenta nas formas particulares de maçãs, peras, amêndoas, etc. e

que cada maçã, pera, amêndoa, etc. é uma expressão singular do universal fruta.

Da mesma forma, podemos considerar que o universal capitalismo tendo como

imperativo o valor em valorização apresenta como tendência a acumulação pela

urbanização. No entanto, o fenômeno urbanização vai se apresentar de forma

particular em cada país até chegarmos em cada caso singular. Da mesma forma,

podemos entender como parte particular da urbanização a favela e cada exemplar

de favela como um singular.

Importante destacar que o universal é sempre relativo, é questão de grau.

Ainda que o universal capitalismo compreenda um amplo leque de fenômenos, é

apenas uma das formas em que as sociedades se organizaram ao longo da história

da humanidade.

Absoluto, relativo e relacional18

As concepções de absoluto, relativo e relacional utilizadas nessa dissertação

são baseadas na divisão tripartite de espaço-tempo desenvolvida por David Harvey

em “O espaço como palavra-chave”. Harvey (2015) considera espaço absoluto, o

espaço cartesiano do mapeamento cadastral ou da propriedade privada. Nessa

concepção o espaço é fixo, ou seja, nenhum espaço coincide com outro. Esse é o

espaço livre de abstrações, é a dimensão do singular na leitura do espaço. O espaço

relativo põe diversos pontos em relação. Aqui, já é necessário um nível de

abstração, pois só podemos ver a relação entre pontos no espaço de os isolarmos e

assumirmos um ponto de vista. Nesse nível de abstração, diferentes espaços podem

ocupar o mesmo espaço relativo. Se formos considerar a distância em linha reta a

partir de um ponto, por exemplo, teremos um círculo de espaços relativos iguais. No

entanto, o espaço relativo não se dá apenas pela distância geométrica. Podemos

considerar da mesma forma a distância pelos eixos rodoviários, se formos pensar

                                                            18 (HARVEY, 2015)

Page 38: A produção do espaço na favela - UFRJ

38  

diversos modais podemos pensar pelo tempo de transporte, custo, etc. Se

quisermos pensar um extremo para essas relações, podemos admitir que, para

determinadas atividades, a rede mundial de computadores colocou todas as partes

do mundo que têm livre acesso a rede no mesmo espaço relativo. Enquanto no

espaço relativo podemos ver como um ponto no espaço se põe em relação a outro,

no espaço relacional podemos ver como dois pontos no espaço se relacionam.

Dessa forma, os eventos não aconteceriam no espaço, mas definiriam o seu próprio

quadro espacial. Se quisermos retornar ao exemplo da rede mundial de

computadores veremos que nem todos os espaços com acesso à rede estão em

relação, mas apenas os que se conectam durante determinado evento. Da mesma

forma, uma atividade posta no espaço não se relaciona com todas as atividades

postas no entorno, apenas com algumas e de forma determinada.

Aqui, utilizaremos essa divisão tripartite não apenas para a análise espaço-

temporal de determinados fenômenos, mas também no estabelecimento de relações

entre categorias concebidas como duais. Esse é parte do significado do método

marxiano entender o movimento do objeto a partir de suas relações.

Local, supralocal e externo

Este conjunto categorial foi utilizado para o estudo das relações entre a favela

e o restante da cidade. Consideramos “locais” os eventos, fenômenos, agentes, etc.

que tem uma abrangência interior à favela. Isso não significa negar a relação com os

eventos, fenômenos, agentes, etc. em outras escalas, mas quando chamamos

atenção para essa escala, estamos atentos para os seus efeitos nela. Podemos

considerar os diversos agentes enraizados no território como Associação de

Moradores ou narcotráfico varejista e, mesmo que estejam articulados em centrais

ou facções em escalas mais amplas, consideramos sua atuação prioritariamente na

escala local. Consideramos “supralocais”, os eventos, fenômenos, agentes que têm

uma abrangência maior (município, estado, país), mas que atuam diretamente na

escala local. Podemos considerar os fiscais como agentes do município que atuam

na escala local ou a UPP como agentes do estado que atuam na escala local. Como

“externo”, consideramos algo de fora que não estabelece relação direta à priori com

o interior das favelas. Podemos dar como exemplo os incorporadores, onde a sua

atuação predatória têm sido uma preocupação para as políticas públicas nas

favelas, mas essa relação não está de fato estabelecida.

Page 39: A produção do espaço na favela - UFRJ

39  

2 CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO: EM BUSCA DE UM PONTO DE

PARTIDA

Se vamos analisar o funcionamento do mercado imobiliário em favelas, é

necessário, antes de tudo, apresentarmos as nossas bases teóricas fundamentais, a

fim de lançarmos um ponto de partida que possa ser reconhecível ao leitor. Algumas

categorias como “favela” e “informalidade” foram apropriadas de diversas formas por

estudos acadêmicos, políticas de Estado ou pelo senso comum. Sendo assim, é

necessário apresentar a nossa perspectiva de análise para esses objetos.

Este capítulo pode ser dividido em três partes abrangentes que agregariam

tópicos mais específicos: 1) o lançamento da base teórica com algumas notas sobre

a renda da terra e o funcionamento do mercado imobiliário; 2) a análise mais detida

das categorias “favela” e “informalidade” e 3) a apresentação crítica da produção

existente sobre o mercado imobiliário em favelas.

2.1 Notas sobre a renda da terra19

O estudo sobre renda da terra é fundamental para qualquer análise da

estruturação do espaço urbano capitalista. A renda fundiária é elemento essencial

das estratégias de atuação dos capitais imobiliários, como também da distribuição

das atividades no espaço. Dessa forma, a produção do espaço no capitalismo deve,

em todos os momentos e em todos os lugares, sofrer pressão coordenadora dessa

forma de ganho. Evidentemente, essa força “encarnada” no proprietário fundiário

apresentará contradições conjunturais ou permanentes com as demais classes e

outras formas de mediação da sociabilidade, como, por exemplo, o caso da

segregação racial no espaço, tema bastante explorado pela literatura norte

americana.

A terra aparece no capitalismo como uma mercadoria especial, uma

mercadoria imóvel, irreprodutível, e indispensável para qualquer atividade humana20.

Ora, se pretendemos partir da teoria do valor de Marx, não basta que o objeto de

uso possa ser levado ao mercado, lá sejam estabelecidas as relações de

equivalência e que esse objeto de uso seja trocado para ser uma mercadoria. Esse

movimento contemplaria a órbita da circulação de mercadorias, porém, é necessário

                                                            19 A abordagem desse subcapítulo está, em grande medida, baseado em Harvey (2013 [1980]). 20 Seja ela produtiva ou não. O próprio ser exige uma ocupação no espaço que é ancorada na terra.

Page 40: A produção do espaço na favela - UFRJ

40  

a substancia valor na constituição da mercadoria. Para Marx, a fonte de todo o valor

é o trabalho abstrato socialmente necessário para a produção do objeto de uso. A

terra como um bem irreprodutível não pode ter trabalho incorporado na sua

produção, pois não há trabalho que produza terra, ainda que haja a possibilidade de

incorporar mercadorias a ela. O resultado disso é que, para Marx, a terra não é uma

mercadoria. Não contendo valor, o pagamento efetuado ao proprietário da terra, seja

por transação ou arrendamento, deve ter a sua origem no processo de produção de

mercadorias, ou seja, para Marx (2017 [1894], p. 675): “uma parte do mais valor

produzido pelo capital recai no proprietário da terra”.

Outra característica fundamental da terra no capitalismo é o fato dela ser

monopolizável. Essa característica é ao mesmo tempo um desdobramento de sua

irreprodutibilidade e da propriedade do direito privado de uso da terra21. Mas não é

qualquer propriedade do direito de uso da terra. Para ser monopolizável, a terra

deve poder ter seu direito de uso separada de seu uso direto. Essa é uma

característica fundamental da propriedade no capitalismo e, para Marx, é o que

caracteriza a conversão da propriedade fundiária em propriedade moderna e é

condição essencial para o desenvolvimento do modo de produção e da sociabilidade

típicas do capitalismo22. Em sua análise final, a renda é simplesmente um

pagamento feito aos proprietários pelo direito de uso da terra e seus recursos

naturais e incorporados (HARVEY, 2013 [1980], p. 428). Ela é um adiantamento dos

ganhos futuros associados ao uso da terra.

Harvey (2013 [1980], p. 447) chama a atenção para a grande diversidade de

proprietários de terra, desde o Estado e igrejas, passando por instituições

financeiras, até os próprios trabalhadores. Mas, em meio a essa diversidade, vemos

que há uma caraterística que direciona o comportamento de todos esses agentes

econômicos, que é a tendência crescente de tratar a terra como um bem financeiro.

                                                            21 A irreprodutibilidade não é absolutamente necessária para extração de renda. Leda Paulani (2016, p. 17) nos demonstra como a renda extraída no caso da propriedade do conhecimento pode ser produzida por uma escassez artificial. A autora se apoia no exemplo da distribuição de softwares. Mesmo o produto tendo sua reprodução a custo zero, ou seja, sem produção de valor, o direito jurídico pode gerar a escassez necessária para a extração de renda. Comparando o caso da terra com o caso dos softwares vemos que o aspecto essencial da geração de renda na propriedade privada não está no direito de uso, mas na negação desse direito para o restante da sociedade. Entretanto a irreprodutibilidade da terra é importante por diversos outros aspectos a serem trabalhados. 22 No capítulo 24 do livro 1 d’O Capital, Marx explora o papel da propriedade moderna na separação do trabalhador direto dos seu meios de produção. A criação de um exército de reserva seria essencial para generalizar o trabalho sob o domínio do capital e, dessa forma, a sociabilidade mediada pelo valor.

Page 41: A produção do espaço na favela - UFRJ

41  

Isso porque qualquer fluxo de renda pode ser considerado um juro sobre o capital

fictício, já que se trata de receita sobre os lucros futuros, ou seja, sobre o trabalho

futuro. Mas o recolhimento da renda não é uma escolha, ele é inexorável à condição

de proprietário. Dessa forma, todos os esforços em problematizar a especulação

imobiliária desvinculando-a da dinâmica de acumulação capitalista e da propriedade

moderna, e individualizando a análise, dividindo especuladores e proprietários que

destinam a terra a um uso, recai numa dimensão moral, que pode ser útil para uso

político em casos específicos, mas como categoria de análise cria mais confusão do

que explica. Mesmo que a terra seja tratada como um mero bem financeiro, ela não

pode ser despojada de seu poder de monopólio sobre qualidades especiais. Esse

poder de monopólio cria oportunidades para a apropriação da renda que não surgem

para outros tipos de bens financeiros, a não ser em casos muito especiais

(HARVEY, 2013 [1980], p. 449).

Apesar de irreprodutível, a terra pode ser modificada de diversas formas, seja

melhorando sua qualidade para o plantio, fixando construções ou melhorando sua

conexão com outros atributos (naturais ou produzidos) fixados à terra. As melhorias

na terra são, certamente, fruto do trabalho humano, ou seja, a atividade capaz de

modificar a terra deve ser atividade produtora de valor. Um componente da renda

pode então ser tratado como caso especial de juros sobre o capital fixo23 aprisionado

à terra ou sobre o fundo de consumo (HARVEY, 2013 [1980], p. 428). Mas, por

enquanto, vamos manter o foco de análise no pagamento à terra bruta, na renda

fundiária.

Os atributos especiais da terra podem ser extraídos na forma de valores de

uso (extração), utilizados como força motriz para a movimentação de máquinas ou

geração de energia (eólica ou hidráulica, por exemplo) ou utilizados como base na

reprodução contínua (como na agricultura ou silvicultura). Nos dois primeiros casos a

terra é fonte dos meios de produção, no último, além de fonte dos meios de

produção (nutrientes da terra) a própria terra funciona como um meio de produção

(HARVEY, 2013 [1980], p. 432).

                                                            23 O capital fixo é a parte do capital constante que corresponde aos meios de produção que permanecem na produção, ou seja, não circulam na forma de mercadoria. Essa forma de capital transmite valor para a mercadoria na mesma medida em que o valor se desprende de seu valor-de-uso, ou seja, o valor do capital fixo circula aos poucos enquanto o restante se mantém por períodos maiores ou menores na esfera da produção. Parte desse capital fixo está aprisionado à terra, seja por ser naturalmente imóvel, ou por sua movimentação ter um preço mais alto que a sua produção. Para maiores informação ver Marx (2014 [1885], p. 239-266).

Page 42: A produção do espaço na favela - UFRJ

42  

Esses atributos especiais da terra são em grande parte variáveis em sua

quantidade e qualidade. A produtividade da força de trabalho varia sob

circunstâncias monopolizáveis e não reprodutíveis. Essas qualidades podem ser

acumuladas por capitalistas que vão poder auferir mais-valor relativo. Entretanto, o

mais-valor relativo aqui é permanente e não efêmero como no caso da vantagem

tecnológica (HARVEY, 2013 [1980], p. 433). Quando o mais-valor relativo é

proveniente de uma vantagem determinada pelo acesso a um recurso natural

monopolizável, os proprietários fundiários ficam em condições de reivindicar os

lucros extras, convertendo-os em renda fundiária, sem de modo algum diminuir o

lucro abaixo da média. Porém, quando a tecnologia que determina a produtividade

média de determinado ramo torna obsoleto o acesso a determinado recurso, essa

vantagem tende a desaparecer junto com o mais-valor relativo. Dessa forma, não é

o atributo da terra em si que determina o mais-valor relativo, mas a atividade

produtiva e a forma como ela se relaciona com os atributos da terra.

Deve ser enfatizado que a força natural “não é a fonte do lucro excedente, mas sua base natural”, e os lucros excedentes existiriam mesmo sem sua conversão em renda fundiária. A circulação do capital, e não a propriedade da terra, é o fator ativo nesse processo (HARVEY, 2013 [1980], p. 434).

Na agricultura, os investimentos em melhorias do solo, se adequados, tentem

a se acumular, ao contrário da indústria, onde o investimento em novas tecnologias,

com frequência, envolvem a desvalorização de equipamentos antigos. Outra

característica importante é que o investimento em melhoria do solo pode criar

propriedades como se a pertencessem naturalmente. Capital fixo incorporado à

terra, nesse caso, se confunde com sua produtividade natural. Marx conclui que os

recursos provenientes da terra são tanto produto da história como da natureza

(HARVEY, 2013 [1980], p. 435).

Outro atributo que deve ser considerado na caracterização da terra é a

localização. A princípio, a propriedade privada da terra como poder exclusivo sobre

determinada porção do globo envolve uma concepção absoluta do espaço.

Nenhuma propriedade da terra no capitalismo pode ocupar o mesmo espaço que

outra24. No entanto, as diversas atividades relacionam pontos diferentes no espaço

                                                            24 Ainda que haja exceções que nos mostram que o monopólio de uma porção do globo não é a única forma de demarcação possível. Segundo Porto Gonçalves, “A Reserva Extrativista consagra todos os princípios ideológicos que Chico Mendes propugnava posto que, ao mesmo tempo, que cada família

Page 43: A produção do espaço na favela - UFRJ

43  

de diferentes formas. A atividade produtiva, por exemplo, deve trazer meios de

produção e força de trabalho para o local da produção e levar o produto acabado ao

mercado. Da mesma forma, o trabalhador deve ir da sua casa ao trabalho onde

recebe o seu salário, vai ao mercado onde gasta o seu salário, etc. Esses

movimentos podem ser mais bem definidos por uma concepção relativa do espaço.

Nessa concepção, apesar de não ocuparem o mesmo espaço absoluto, várias

indústrias podem se fixar à mesma distância do mercado, ocupando o mesmo

espaço relativo. Da mesma forma, vários trabalhadores podem transitar da casa

para o trabalho com a mesma facilidade. O espaço relativo não vai necessariamente

ter base na distância absoluta. Para o capitalista que não paga as horas de

translado do trabalhador, mas o custeia, o custo vai ser mais importante, enquanto

para o trabalhador o tempo é dimensão essencial. Dessa forma, não apenas as

características imanentes à terra, como a fertilidade, mas também a sua posição

relativa, podem ser convertidas em vantagens. Produtores com menor custo de

transporte podem auferir lucros extraordinários passíveis de serem convertidos em

renda fundiária. Lembremos que há múltiplas atividades humanas e cada uma delas

converte condições específicas em vantagens, sejam elas características imanentes

da terra ou localizações relativas (HARVEY, 2013 [1980], p. 438).

Se o salário é estabelecido em um nível necessário para garantir a reprodução do trabalhador que vive mais longe (como pode às vezes acontecer em condições de escassez de mão de obra), todos os outros trabalhadores recebem um salário um pouco acima do valor. Em consequência disso, aqueles que são proprietários de terra podem converter o excesso do salário em renda fundiária sem de modo algum perturbar o valor da força de trabalho (HARVEY, 2013 [1980], p. 438 e 439).

Podemos concluir que os atributos imanentes e as localizações relativas da

terra são específicos para cada atividade humana. Dessa forma, além dos atributos

imanentes variarem de acordo com o investimento de capital fixo incorporado à terra

e as localizações variarem de acordo com o investimento de capital em terras

próximas ou com a instalação de meios de comunicação e transporte, cada

vantagem só serve a determinadas atividades humanas que também são resultado

sócio-histórico e geográfico. Essa dimensão da localização pode ser mais bem

                                                                                                                                                                                          detinha a prerrogativa de usufruto da sua colocação com sua casa e com suas estradas de seringa, a terra e a floresta eram de uso comum, podendo mesmo cada um caçar e coletar nos espaços entre as estradas de cada família, ideia comunitária inspirada nas reservas indígenas” (PORTO-GONÇALVES, 2005).

Page 44: A produção do espaço na favela - UFRJ

44  

definida por uma concepção relacional do espaço. Sendo assim, na medida em que

atividades humanas podem desaparecer, surgir ou se modificar, as vantagens

relacionadas à terra estão sujeitas ao mesmo movimento. As vantagens se

modificam tanto pelo investimento de capital como podem ser afirmadas ou negadas

socialmente. Considerando que diferentes atividades disputam entre si o uso do

espaço, essa dimensão ganha importância. Esses fatores vão aparecer de forma

combinada na atuação do capital incorporador imobiliário, em especial nos ganhos

fundiários.

As características especiais presentes na terra e sua natureza são

determinantes nas formas que a renda assume no capitalismo. Marx (2017 [1894])

identifica quatro formas diferentes: monopolista, absoluta e dois tipos de renda

diferencial (RD-1 e RD-2). As formas de renda em Marx são classificadas de acordo

com a fonte do valor que pode ser convertido em renda fundiária.

Toda a renda é um poder monopolista, porém, os proprietários competem

livremente por terras de qualidades e localizações diferentes e, dessa forma,

disputam a renda que podem controlar. Ao mesmo tempo os usuários têm um

grande leque de opções onde dispõem de grande variedade de condições. A renda

monopolista aparece quando essas condições competitivas não prevalecem. Harvey

(2013 [1980], p. 451) aponta duas situações em que a renda monopolista pode

aparecer: em primeiro lugar, quando alguns proprietários controlam terras de

qualidade ou localização tão especial para determinada atividade, que podem extrair

renda de monopólio pela falta de opções dos que desejam usar a terra; em segundo

lugar, em casos de escassez de terra, os proprietários podem se negar a

disponibilizar terras improdutivas, pressionando o preço acima do normal (HARVEY,

2013 [1980], p. 451).

A renda absoluta surge como barreira ao fluxo de mais-valor proveniente do

movimento de equalização das taxas de lucro. Por exemplo, há uma forte

probabilidade que a composição orgânica do capital25 na agricultura seja menor que

                                                            25 O capital empregado na produção pode ser decomposto em capital constante e capital variável. A parte variável desse capital é a responsável pela produção do valor, dessa forma, os ramos produtivos que empregam proporcionalmente maior quantidade capital variável que os outros, produzem, consequentemente, quantidade maior de valor em relação ao capital aplicado. Se admitirmos uma equalização das taxas de lucro, os capitais que produzem quantidade maior de valor em relação ao capital investido tendem a receber menos lucro do que o referente ao valor produzido, enquanto os que produzem quantidade menor de valor se apropriam de uma porção maior de lucro do que o referente ao valor produzido. Isso se dá porque a produção de valor se dá pela quantidade de capital variável aplicado enquanto o lucro pelo capital total. A composição orgânica do capital, em

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45  

a média social. Se for admitida uma equalização na taxa de lucro, um capital na

agricultura produz mais-valor maior do que recebe na forma de lucro; isso porque os

setores contribuem com a massa social de mais-valor segundo a força de trabalho

que empregam, mas recebem o lucro segundo o capital que adiantam. Mas essa

suposição admite que não há barreiras para a equalização das taxas de lucro e se

baseia “na distribuição proporcional em constante mutação do capital social total

entre as várias esferas da produção, na entrada e saída contínuas dos capitais”

(HARVEY, 2013 [1980], p. 452). A renda absoluta pode surgir quando a propriedade

fundiária ergue uma barreira sistemática a esse fluxo de mais valor. Em

consequência disso, os produtos agrícolas podem ser comercializados de forma que

o lucro se ponha acima da taxa média de lucro e produzir renda absoluta, embora

vendendo abaixo ou no nível dos valores produzidos. Uma renda absoluta pode

existir sem infringir a lei do valor. Parte do mais-valor excedente produzido é

capturada pelo proprietário da terra de forma que não entra na equalização das

taxas de lucro (HARVEY, 2013 [1980], p. 452).

A renda absoluta depende então do poder dos proprietários de terra para criar

uma barreira à equalização da taxa de lucro e da persistência de uma composição

orgânica do capital abaixo da média. Se a composição orgânica se tornar igual ou

mais alta que a média social a renda absoluta desaparece (HARVEY, 2013 [1980],

p. 453).

A renda diferencial é uma forma que encontra similaridades com o mais-valor

extraordinário. De forma simplificada, os atributos específicos de cada porção de

terra do globo, seja ela produto do trabalho (capital fixo incorporado à terra), ou não

(localização, fertilidade natural, rios, etc.), podem ser apropriados pelos capitalistas

como vantagens capazes de reduzir o custo de produção, gerando26 mais-valor

extraordinário que pode ser convertido em renda fundiária. “Em outras palavras, ela

[a renda diferencial] é entendida como a diferença entre a rentabilidade das terras de

distinta qualidade (considerando também a distância ao mercado), com relação à

pior terra” (CARCANHOLO, 2013, p. 162). A renda diferencial na obra de Marx é

separada em dois tipos: renda diferencial de tipo 1 (RD-1) e renda diferencial de

                                                                                                                                                                                          suma, é a razão entre o capital constante e o capital variável. 26 Segundo Carcanholo (2013, p. 160), dependendo da relação entre o preço e valor do produto, parte do mais-valor que flui na terra sob a forma de renda diferencial, pode ser produzida em outro setor da economia, como pode também ser produzida no próprio setor, dessa forma, não se aplica o conceito de produção nem de apropriação à renda. O autor propõe o conceito de geração.

Page 46: A produção do espaço na favela - UFRJ

46  

tipo-2 (RD-2).

A renda diferencial de tipo 1 (RD-1) aparece como a forma mais simples de

renda. Suponhamos a aplicação igual de capital e trabalho em terras de igual

extensão. Se o produto final de cada capitalista ao final do processo produtivo for o

mesmo, podemos assumir que não há lucro extra e as terras, mesmo sendo

qualitativamente distintas, têm efeitos semelhantes sobre a produção. Quando há

uma diferenciação de produtividade para estas mesmas condições, pode-se dizer

que essa diferenciação está relacionada aos efeitos distintos que cada terra

qualitativamente distinta tem sobre a produção. Nesse caso, a diferença de

produtividade é relativamente permanente e pode ser convertida em lucro extra que,

na medida em que o mesmo capital empregado apresenta resultados diferentes para

cada terra, pode ser convertido em renda da terra, no caso, RD-1. O valor de

mercado dos produtos onde a terra é utilizada como um meio de produção básico é

fixado pelo preço da pior terra, por isso os produtores das terras melhores recebem

lucros excedentes. Podemos desdobrar o mesmo raciocínio para os casos em que

quantidades desiguais de capital e trabalho aplicados em terras de extensão

desigual, basta que comparemos os resultados de partes alíquotas de mesma

grandeza, isto é a taxa de lucro (MARX, 2017 [1894], p. 713).

As causas gerais dos resultados desiguais, no exemplo clássico de Marx, que

geram RD-1 são fertilidade27 e localização. As duas causas têm movimentos

independentes, ou seja, um terreno bem localizado pode ser mais fértil ou menos

fértil, o mesmo pode ocorrer com o de pior localização. Além disso, localização

relativa e fertilidade, como já vimos, são resultados sócio-históricos. A geração de

mercados locais e a distribuição de meios de comunicação e transporte podem ter

efeito nivelador sobre a localização, assim como a criação de grandes centos de

produção podem aumentar a diferenciação (MARX, 2017 [1894], p. 715). Da mesma

forma, fertilidade pode variar com investimento de capital e desgaste do solo.

A renda diferencial de tipo 2 (RD-2) é resultado dos investimentos de capital

incorporados na terra para aumentar a produtividade. A economia extensiva cresce

de acordo com o aumento da área produtiva, enquanto o desenvolvimento da

economia intensiva exige sucessivos investimentos de capital (fertilização,

aperfeiçoamento de maquinário, etc.) nas mesmas terras. O caso que poderíamos

                                                            27 Podemos entender a fertilidade como um atributo natural da terra que representa qualquer vantagem natural no interior da terra.

Page 47: A produção do espaço na favela - UFRJ

47  

considerar mais simples da renda diferencial de tipo 2 (RD-2), se expressa nas

aplicações diferenciadas de capital em terras de igual fertilidade. As terras onde

houve um investimento maior de capital tendem a constituir uma base melhor para o

próximo investimento. Aí, há uma relação com os contratos de arrendamento, pois,

na medida em que o capitalista investe, o proprietário fica à espera do fim do

contrato para incluir a renda adicional relativa às benfeitorias no próximo contrato.

Assim como, se todas as terras fossem de igual fertilidade e a localização não

fizesse diferença, a RD-1 deixaria de existir, também se todos os produtores

investissem exatamente o mesmo capital em suas terras, a RD-2 deixaria de existir.

Se alguns produtores investirem acima do normal e receberem retorno em escala

sobre o capital que investem, toda ou parte dessa diferença pode ser apropriada

como RD-2. A diferença está no preço de produção individual que será inferior ao

dos demais (HARVEY, 2013 [1980], p. 456).

A RD-2 é proveniente do mais valor relativo gerado pelo investimento de

capital. Assim, quando esse investimento de capital torna-se suficientemente geral

para ser considerado normal, o preço normal de produção cai e o mais valor relativo

deixa de existir junto com a base para a RD-2. Dessa forma, RD-2 tem um caráter

transitório assim como o mais valor relativo gerado pela inovação tecnológica.

O investimento de capital que gera a base para RD-2 pode destruir o

investimento anterior ou não. Há investimentos em que o capital gera melhorias

permanentes, ou seja, o capital implementado não desvaloriza o anterior. Essas

melhorias apesar de fruto do investimento de capital passam a ter o mesmo efeito

que as diferenças naturais das terras, e, dessa forma, se tornam base para a

apropriação da RD-1. RD-2 se torna RD-1 (HARVEY, 2013 [1980], p. 458). Torna-se

impossível para o proprietário distinguir de onde é proveniente a renda diferencial,

ou seja, qual se deve ao fluxo de capital e qual se deve aos efeitos permanentes das

diferenças naturais.

A propriedade da terra aparece até o momento como negatividade sobre a

circulação de capital. Ela tira do capitalista parte do valor que seria reinvestido e

retornaria à circulação e pode retirar parte das terras da produção apenas para em

seguida exigir preços extorsivos. Segundo Harvey (2013 [1980], p. 462), Marx

apresenta três papeis para a propriedade privada da terra: transferir parte do mais

valor para o bolso dos proprietários; exercer pressão sobre o capital no processo de

produção e negar a terra para os trabalhadores. Esse último papel é de grande

Page 48: A produção do espaço na favela - UFRJ

48  

importância no livro 1 d’O capital, quando Marx expõe as formas históricas de

acumulação primitiva do capital. Evidentemente, se a produção capitalista necessita

da separação do trabalhador de sua terra, essa condição deve se manter.

Para Harvey, embora o capital fundiário imponha uma barreira para o fluxo de

capital e cause impactos negativos para a acumulação, verifica-se um importante

papel a desempenhar na pressão para a alocação adequada do capital à terra. Se o

proprietário da terra aufere a renda segundo o uso mais lucrativo para aquela terra,

a tendência é que o preço da terra limite seu uso apenas para aquele mais favorável

à acumulação de capital. Topalov identifica esse papel. Para o autor, a função

primordial da renda da terra é o uso capitalista do espaço na sua forma mais

lucrativa, ou seja, dispor as atividades humanas pelo território de forma a criar as

melhores condições para o lucro dos capitalistas individuais. Para o autor, ainda, a

propriedade não é fonte de contradições, mas carrega as contradições da lógica do

capital.

Esta propriedade do solo é totalmente interna ao modo de produção capitalista. Constitui a mediação que garante o uso capitalista ótimo do espaço urbano: constrange cada capital particular a localizar-se nos pontos do espaço onde se maximiza o nível do sobrelucro privado. Por conseguinte, a propriedade capitalista do solo não é a fonte das contradições no processo de urbanização. Reflete de maneira mais ou menos fiel, a lógica mesma do capital. Porém essa lógica, ela sim é a fonte de profundas contradições sociais, especialmente a segregação das atividades e das classes sociais (TOPALOV, 1984, p.658 e 659)28.

Apesar de carregar fortes contradições da lógica mais geral da produção de

valor, a propriedade no capitalismo carrega contradições próprias resultantes da

oposição do proprietário fundiário ao usuário da terra (o capitalista, o rentista e o

próprio trabalhador).

Quando apontamos para a alocação adequada do capital no espaço, não

significa que cada atividade específica irá localizar-se no seu local de melhor

rendimento. As localizações mais adequadas para diversas atividades podem                                                             

28 Esta propiedad del suelo es totalmente interna al modo de producción capitalista. Constituye la mediación que garantiza el uso capitalista óptimo del espacio urbano: constriñe cada capital particular: a localizarse en los puntos del espacio donde se maximiza el nivel de la sobreganancia privada. Por consiguiente, la propiedad capitalista del suelo no es la fuente de las contradicciones en el proceso de urbanización. Refleja de manera más o menos fiel, la lógica misma de capital. Pero esta lógica, ella sí es la fuente de profundas contradicciones sociales: especialmente la segregación de las actividades y de las clases sociales.

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49  

coincidir e essa coincidência deve acontecer sempre ou quase sempre com

capitalistas do mesmo ramo. Dessa forma, há concorrência entre as classes, entre

as frações de classe e entre capitalistas e trabalhadores individuais pelo espaço. O

resultado dessa concorrência tende a ser a alocação dos indivíduos e suas

atividades no espaço de forma que cada terra receba o seu uso mais lucrativo, mas

não que cada atividade se aloque na terra que garante a maior produtividade. Se

formos pensar na distribuição das atividades no espaço de forma a garantir maior

qualidade de vida para os cidadãos, acesso aos direitos fundamentais, manutenção

de tradições, etc. podemos concluir que a propriedade fundiária moderna e a renda

da terra atuam de forma autônoma em relação a esses valores, podendo ser

radicalmente hostis a alguns deles. As mazelas que essa tendência pode causar

podem ser mais ou menos controladas dependendo do momento histórico e da luta

de classes.

As rendas absoluta e monopólica devem ser consideradas sempre negativas

sobre a alocação adequada do capital a terra, formação de preços de mercado

válidos e à sustentação da acumulação, por isso o capital em geral tem interesse de

mantê-las sob controle. Já as duas formas de renda diferencial podem ter efeitos

positivos, negativos ou neutros sobre “a formação dos preços de mercado, a

concentração e a dispersão de capital e a acumulação” (HARVEY, 2013 [1980], p.

464).

Há um sentido na renda diferencial que melhora a competição ao invés de

limitá-la. O proprietário da terra opera para igualar a taxa de lucro entre os

produtores concorrentes. Dessa forma em vez de se aproveitar das vantagens

naturais, os produtores que concorrem devem fazê-lo tendo por base novos

métodos. Porém não há como assegurar que cada um vai recolher o que lhe é

devido. A opacidade antes demonstrada da distinção entre RD-1 e RD-2 torna

confusa, contraditória e irracional a luta entre proprietários de terra e capitalistas

(HARVEY, 2013 [1980], p. 464).

A renda da terra surge com os papéis positivos, para a acumulação de capital,

de separar os trabalhadores de seus meios de produção e coordenar a alocação do

capital no espaço de forma adequada à produção de valor e o papel negativo de

criar uma barreira ao reinvestimento produtivo. Munidos dessas formulações

preliminares podemos pensar como essas contradições aparecem na produção da

cidade.

Page 50: A produção do espaço na favela - UFRJ

50  

O espaço é produção sócio-histórica, onde cada processo tem como ponto de

partida a base natural-geográfica e o trabalho passado incorporado. A cidade, que

tem como característica específica a aglomeração de população humana, tem esse

processo intensificado e o resultado é alta concentração de trabalho incorporado à

terra. Para Marx, a renda fundiária urbana seria elevada em função dessas duas

características específicas da cidade.

Não só o crescimento populacional e, com ele, a crescente necessidade de moradias, mas também o desenvolvimento do capital fixo – que se incorpora à terra ou nela cria raízes, nela repousa, como todos os edifícios industriais, as ferrovias, os armazéns, os galpões de fábricas, as docas etc. -, aumentam necessariamente a renda imobiliária (MARX, 2017 [1894], p. 834).

Segundo Botelho (2008), para Marx, a renda diferencial tem influência

decisiva da localização e o desenvolvimento da cidade é continuamente capturado

pelos proprietários de terra por essa forma de renda. Já a aglomeração progressiva

leva a um aumento de demanda por terra que favorece a apropriação da renda a

preços de monopólio.

Marx, ainda que de forma resumida, analisou o papel da renda nos terrenos urbanos para construção, sendo que ela se caracterizaria: 1) pela influência decisiva da localização sobre a renda diferencial; 2) pela exploração pelo proprietário do progresso do desenvolvimento social para o qual nada contribui e no qual nada arrisca; 3) pelo predomínio do preço de monopólio (MARX, 1989). A renda fundiária urbana seria elevada pelo rápido e intenso crescimento da população nas grandes cidades, e pela consequente necessidade crescente de habitações daí resultante e também pela implementação de capital fixo que se incorporaria à terra (como edifícios, rodovias, ferrovias, armazéns, estabelecimentos fabris e comerciais, docas etc.) Nas cidades de grande crescimento, o que constituiria o objeto principal de especulação no setor imobiliário não seria o imóvel construído, mas a renda fundiária cobrada pelos proprietários (MARX, 1988) (BOTELHO, 2008, p. 26).

Ainda que a aglomeração progressiva não seja mais uma realidade para parte

importante das grandes cidades, a progressiva incorporação de capital à terra que

configura a acumulação pela urbanização, ainda terá importantes desdobramentos

na produção do espaço e na forma como se distribuem as rendas fundiárias. Adiante

desenvolveremos mais sobre a relação entre os investimentos de capital e as rendas

fundiárias, mas podemos adiantar aqui que a concentração da aplicação de capital

em determinados espaços da cidade tende a aumentar a importância das rendas

diferenciais como coordenadoras da localização dos indivíduos na cidade pelo seu

Page 51: A produção do espaço na favela - UFRJ

51  

poder aquisitivo. A concentração mais radical dos investimentos no espaço pode

chegar ao ponto de criar situações análogas às das rendas de monopólio. Por serem

sensíveis a esse fato, os proprietários e investidores urbanos podem aplicar os seus

capitais de forma concentrada, assim como pressionar o Estado a fazer o mesmo.

A renda individual da terra no mercado fundiário urbano está em grande

medida relacionada com atividades realizadas em outros terrenos que tenham

relação com o seu uso, ou seja, é determinada por fatores externos e relacionais. A

localização, dessa forma, é atributo crucial na formação das rendas fundiárias

urbanas, e mais, sendo ela relacional, o grande volume de capital e trabalho

intensivamente incorporados na terra nas cidades, dá um caráter dinâmico à renda

da terra na cidade. Para Cunha e Smolka (1980), a cada mudança de uso de um

terreno, modificam-se as características de todos os outros. Grandes investimentos

de capital e trabalho fixados à terra, obsolescência, criação ou modificação de

atividades humanas; ou mudanças relacionadas às preferências da sociedade ou de

parte dela podem modificar completamente a configuração das localizações relativas

dos terrenos da cidade.

O caso clássico dos grandes investimentos está ligado à atuação do poder

público na implementação de infraestrutura, obras de aterramento, contenção e

construção de redes de transporte e comunicação. É inegável o papel do poder

público na expansão da malha urbana do Rio de Janeiro, por exemplo, nos

aterramentos que levaram a aristocracia carioca para a rua do Lavradio, nos

desmontes do morro do Senado, Santo Antônio e do Castelo, na canalização do

Saco de São Diogo ou na modernização do Porto e do Centro da cidade. O

investimento do poder público tem especial importância na literatura, pois expõe a

forma como os proprietários e incorporadores se apropriam sistematicamente dos

investimentos públicos pelo valor que circula na terra. Mas não são somente os

investimentos públicos que operam na reestruturação das localizações relativas dos

terrenos. Podemos recordar, por exemplo, o papel das associações

bonde/loteamento que deram resultado a bairros como Vila Isabel (ABREU, 2010). É

evidente que, mesmo para esses casos, foram necessários investimentos públicos

em aterramentos, o que demonstra como investimentos públicos e privados podem

ser apropriados indiscriminadamente. Apesar da especulação sobre os

investimentos públicos terem grande importância nas estratégias de apropriação

pela terra do valor produzido, a ação combinada de agentes privados também

Page 52: A produção do espaço na favela - UFRJ

52  

aparece como fator relevante na mudança de localização relativa. A mudança do

perfil social da população, a proximidade de centros comerciais, supermercados,

“polos gastronômicos”, etc. podem refletir na apropriação progressiva da renda nos

terrenos impactados. Esse fator é importante, pois demonstra uma tendência à

concentração dos investimentos.

Sobre a obsolescência, criação ou modificação de atividades humanas, há

também um caso clássico: a mudança tecnológica. Podemos ilustrar esse caso com

a transformação da atividade de carregamento e descarregamento de navios pelo

advento do container. No Rio de Janeiro, a mudança tecnológica tornou obsoleta

toda estrutura de capital fixo incorporada na região do antigo porto, transferindo a

atividade para o bairro do Caju. O abandono da atividade portuária nessa região foi

um dos fatores que influenciou o processo de franca desvalorização da terra em

uma das áreas mais centrais da cidade durante quase cinquenta anos.

As mudanças de localização relativa relacionadas às preferências da

sociedade se aplicam principalmente ao caso da habitação, ainda que outras

atividades sejam recorrentemente atraídas pela produção habitacional. Essas

mudanças podem ser causadas por mudanças externas à dinâmica produtiva dos

capitais imobiliários, como no caso de mudanças culturais. Um exemplo é a

mudança da preferência da burguesia carioca da aglomeração do centro para o

clima ameno das praias. O fato de a burguesia passar a frequentar as praias fez a

diferença. Mas essas preferencias podem também ser direcionadas por

incorporadores através de inovações, como no caso dos condomínios fechados em

áreas periféricas, onde a fonte da mudança de preferencia é a campanha publicitária

dos capitais imobiliários na valorização do novo modelo (que vende privacidade,

tranquilidade, exclusividade, etc.) e degradação dos estoques existentes

(representados em seus discursos pela violência, barulho, usos indesejados no

entorno, etc.). Mesmo que a habitação seja um exemplo mais recorrente, o interesse

da sociedade por determinadas atividades culturais, seja por modismo ou de forma

mais permanente, podem mover uma demanda considerável por comércios e

serviços diversos.

É evidente que as causas para as mudanças de localização relativa não se

encerram por aí; surtos de violência, acidentes naturais, etc., podem causar o

mesmo efeito. Além disso, os fatores não limitam um ao outro, eles podem se

combinar das mais variadas formas. Um exemplo é a combinação entre as obras de

Page 53: A produção do espaço na favela - UFRJ

53  

urbanização, aumento da sensação de segurança aos visitantes e a gradativa

transformação das favelas em locais de visitação turística. A ampliação da demanda

que deixa de ser apenas local por determinados serviços e comércios e passa a

atender visitantes, tende a transformar o uso mais lucrativo de determinados

terrenos (lembremos que a renda é determinada pelo seu uso mais lucrativo), além

de modificar o acesso de outros terrenos a esses serviços, alterando a renda. As

dimensões relativas e relacionais da localização como atributo gerador de renda

diferencial para a terra apresentam uma dinâmica específica para a terra urbana.

Essa dinâmica como veremos a seguir será determinante nas estratégias dos

capitais imobiliários.

2.2 Sobre o mercado imobiliário29

A construção civil tem especificidades em relação ao processo produtivo de

outras mercadorias no capitalismo. Enquanto para outras mercadorias a maior parte

do capital fixo está aprisionado à terra e o capital circulante é transportado para o

mercado, no caso do capital imobiliário ocorre exatamente o oposto: o capital fixo

(barracões de obra, tratores, betoneira, ferramentas, etc.) tem que se locomover a

cada processo produtivo, se estabelecendo no local onde a mercadoria oferecida

pela construção civil (edificação) será incorporada à terra de forma inseparável. O

capital fixo é móvel e o capital circulante é imóvel na construção civil. Essa

característica específica da construção civil determina uma dinâmica para esse

setor, onde em cada processo produtivo a terra entra como meio de produção e sai

para a circulação de mercadorias. Em cada processo produtivo uma nova terra é

transformada.

Toda atividade produtiva tem necessidade de uma base espacial; portanto, todo produtor deve dispor de um poder de propriedade do solo. Segundo o caso, o solo pode ser um elemento da produção - como no caso da agricultura ou pode ser uma simples base da produção - como na maioria das indústrias, porém, a produção habitacional é o único setor para o qual cada processo produtivo implica o uso de um novo solo; ao terminar a obra a empresa construtora deve dispor de um novo terreno (TOPALOV, 1979, Apud, ABRAMO, 1988, p. 44).

Se o proprietário fundiário e o capitalista concorrem pela apropriação do mais

                                                            29 A abordagem desse subcapítulo está, em grande medida baseado na dissertação de mestrado de Pedro Abramo (1988).

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54  

valor produzido pelo conjunto da sociedade, para os capitais imobiliários este

confronto não aparece apenas a cada vencimento do contrato de arrendamento

como nas outras indústrias, mas a cada processo produtivo. No entanto, o confronto

entre capitalistas e proprietários fundiários, que para os outros capitais aparece

como uma barreira para o processo produtivo, para o capital imobiliário vai aparecer

como uma oportunidade para o surgimento de uma forma de ganho diferente da

extração direta de mais-valor: o ganho fundiário. Essa forma de ganho permite o

surgimento de uma fração do capital imobiliário: o capital incorporador. Dessa forma,

a atividade construtiva aparece já nesse momento, dividida em dois capitais que

exercem dois tipos ganhos diferentes. O capital industrial/construtor recebe o lucro

sobre a produção da edificação, enquanto o capital incorporador recebe a renda

decorrente da mudança de uso do solo realizada pela atividade construtiva e/ou pela

mudança na localização relativa do terreno durante o tempo de incorporação. Mas,

se a renda é o pagamento pelos rendimentos futuros de um terreno, esses

rendimentos não poderiam ser apropriados por alguém que não o proprietário, a não

ser que ele não pudesse prever todo ou parte desse rendimento futuro.

Abramo (1988) demonstra em seus esquemas analíticos como, para o capital

imobiliário, a equação de Marx D-M-D’30, se desdobra em duas equações que

indicam a atuação de duas frações diferenciadas do capital: o capital construtor, que

opera com o processo industrial clássico D-M-D’ e o capital incorporador, que opera

com a mudança de uso do solo, resultando em D-T-MU-T’-D’, onde “T” representa a

terra e MU a mudança de uso.

O incorporador-promotor dispõe de capital monetário (DI), do qual uma parte será imobilizado na aquisição do terreno (T). De posse do direito de uso do solo, os incorporadores redefinirão este uso através da produção de um edifício (E). Os capitais construtores serão contratados para produzirem o edifício, mas somente poderão produzi-lo se os incorporadores colocarem o terreno a sua disposição. Liberado o terreno, os construtores transformarão seu capital dinheiro (DC) em força de trabalho e meios de produção como o processo de produção do edifício foi encomendado pelos incorporadores, serão estes a efetuarem a transformação de (E) em sua expressão monetária (D’C), ou seja, uma parte do capital adiantado pelos incorporadores (DI) assumirá a forma de (D’C).

De posse do edifício e seu suporte terra transformado (E+T’), (imóvel), o

                                                            30 Que pode ser desdobrada em D-MP+FT-P-M’-D’ onde o capitalista aplica o dinheiro inicial (D) em meios de produção (MP) e força de trabalho (FT), seguido do processo de produção (P) que resulta na mercadoria M’, que será por fim vendido por um D’, onde a diferença entre D e D’ corresponde ao mais-valor extraído do processo produtivo. Ver Marx (2013 [1867]).

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55  

incorporador procurará realizar a passagem para sua expressão monetária (D’I) onde D’I>DI. (ABRAMO, 1988, p. 49 e 50).

O processo de mudança de uso operado pelo capital incorporador passa

necessariamente por uma operação de edificação envolvendo, portanto, a atuação

dos capitais construtores. Contudo, são os incorporadores que assumirão o “controle

econômico” do processo de produção da moradia, “definindo as características da

mercadoria produzida, sua demanda potencial, estratégias de realização (venda),

localização, etc. enquanto os capitais construtores irão deter o ‘controle técnico da

produção’” (ABRAMO, 1988, p. 46 e 47). O poder sobre a definição das

características do produto é fundamental, pois sua mercadoria é imóvel, o que faz

com que incorpore as externalidades de seu entorno e produza relativa rigidez na

estrutura espacial. “A particularidade do capital incorporador é então determinada

por sua prática de ‘definir o produto certo para o lugar certo no momento certo’”

(ABRAMO, 1988, p. 47). A partir desse controle, esse capital busca definir uma

estratégia em que o produto incorpore as vantagens locacionais de forma mais

significativa. Essas vantagens se expressarão como rendas fundiárias, maximizando

as possibilidades de gerar ganhos excepcionais31. Os capitais construtores, nos

processos que envolvem a incorporação, não têm autonomia sobre as decisões de

produzir, dependendo das decisões dos capitais incorporadores em operarem

mudanças de uso do solo. Isso tem grande importância, pois se os incorporadores

comandam o processo de produção imobiliária, essa produção tende a ser

direcionada prioritariamente para as áreas e uso do solo que garantam a maior

geração da renda fundiária.

O alto valor e o longo processo produtivo habitacional e, ainda, o alto valor do

produto final moradia, tornam necessário o aparecimento de uma terceira fração do

capital: o capital de circulação. Esse capital financia uma parte do volume inicial da

forma dinheiro das outras frações de capital envolvidas e, como contrapartida, se

apropria de uma parcela do ganho de incorporação e construção que aparecerá na

forma de juros. Como o valor individual do produto moradia supera em muito o valor

individual dos rendimentos de sua demanda potencial, o credor também se torna

                                                            31 A decisão de investir do capital incorporador acontece em um contexto que Abramo (2007b) nomeou de “incerteza urbana radical”, ou seja, assume um caráter de aposta que pode ser ou não sancionada pelo mercado. Logan e Molotch (1987) demonstram como, para diminuir a incerteza os capitais imobiliários muitas vezes intervêm ativamente nas decisões do Estado. Parte do trabalho de Abramo (1988) está dedicado a demonstrar que a ação coordenada dos incorporadores podem causar o mesmo efeito.

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necessário no momento da circulação do produto, pois a transformação do capital

mercadoria em capital dinheiro, no geral, se realiza ao longo da vida útil da

edificação (ABRAMO, 1988, p. 50).

O capital de circulação assume duas formas: o capital imobiliário rentista e o

capital de empréstimo, que, por sua vez, se articulam com as duas formas de

circulação: o aluguel e o acesso à propriedade (ABRAMO, 1988, p. 50 e 51).

Por mais que o incorporador possa assumir o controle sobre os ganhos de

comercialização e ganhos fundiários, podemos identificar duas frações distintas do

capital, uma que aufere ganhos pela mudança de uso do solo e apropriação de

externalidades e outro que aufere ganhos da comercialização de mercadorias, ou

seja, da transformação de M’ em D’.

Finalizamos o círculo imobiliário com a participação de quatro frações do

capital com suas formas de ganho distintas: 1) o capital industrial-construtor que

aufere ganhos industriais (lucro); 2) o capital comercial que aufere ganhos

comerciais; 3) o capital de circulação que aufere ganhos financeiros (juros); e 4) o

capital incorporador que aufere ganhos fundiários (renda). O incorporador, por

exercer um papel coordenador do processo produtivo, pode, em diversos momentos,

se apropriar de ganhos de outra natureza.

O ganho industrial apresenta a forma clássica da produção de valor e está

sujeita à mesma dinâmica apresentada anteriormente: a apropriação direta de mais-

valor. Dessa forma, o ganho industrial é determinado pela taxa média de lucro da

sociedade sobre o capital adiantado, podendo se apropriar de lucros extraordinários

de duas formas: por inovações tecnológicas ou pela apropriação de vantagens

oferecidas pela terra para a produção32 (sem abrir mão de formas de acumulação

primitiva como intensificação e extensão do trabalho, sub-remuneração, etc.). O fato

de o processo produtivo ser contratado e controlado pelo incorporador permite a

esse agente, em determinados momentos, apropriar-se de ganhos provenientes de

inovações aplicadas pelo capital industrial construtor. O ganho comercial surge da

especialização do capital comercial na aceleração da transformação da mercadoria

(M’) em dinheiro (D’). O retorno à liquidez no processo produtivo permite o

reinvestimento reiniciando o processo. A aceleração da circulação da mercadoria

                                                            32 É importante chamar a atenção que o capital industrial só pode se apropriar de vantagens oferecidas pela terra se essas vantagens aumentarem a produtividade da atividade construtiva e se essas vantagens, não puderem ser previstas pelo capital incorporador que comanda o processo.

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57  

permite o encurtamento temporal do ciclo dos capitais, favorecendo a acumulação.

O ganho comercial normal será determinado pelo tempo normal de circulação e, se

o empreendimento for vendido em um tempo inferior, surgem ganhos

extraordinários. Porém, o tempo pode mudar os qualificativos de uma edificação,

como, por exemplo, por meio de melhorias de infraestrutura, construção de

equipamentos públicos ou privados, etc. Como o incorporador tem o poder de

comando sobre os outros capitais imobiliários, se o ganho fundiário da venda em um

momento futuro for maior do que o ganho comercial da venda imediata, o capital

incorporador pode retirar as mercadorias de circulação até o momento em que

considerar mais vantajoso. No fim, o poder de coordenação do capital incorporador

permitirá o controle do tempo dos outros capitais a fim de aumentar os seus ganhos.

Os ganhos financeiros se dão pelo diferencial entre a taxa de juros ofertada na

capitação dos recursos e em sua aplicação. Essa forma de ganho aparece em dois

momentos diferentes, na mudança de uso33 e na realização da mercadoria. No

primeiro momento, se configura uma operação de curto ou médio prazo, e, no

segundo, uma operação financeira de longo prazo. Sobre os ganhos fundiários,

como já indicamos, a luta entre proprietário fundiário e comprador ou arrendatário

pela renda, se dará pela capacidade de previsão/realização desses ganhos. No

momento da venda o proprietário buscará cobrar o preço referente ao uso mais

lucrativo para o terreno que ele consegue prever. Se o incorporador conseguir

realizar um empreendimento mais lucrativo que o previsto pelo proprietário (seja se

apropriando de externalidades ou pela mudança de uso empreendida, ou mesmo

pela previsão de modificações futuras) ele poderá se apropriar da diferença entre o

previsto e o realizado. Sendo assim, a possibilidade de apropriação da renda

fundiária pelo incorporador, dependerá da incapacidade de o proprietário prever o

uso mais lucrativo (além de todas as formas coercitivas econômicas ou extra

econômicas). Porém, o capital incorporador tende a estabelecer uma taxa de lucro

mínima de viabilidade para realizar a mudança de uso do solo. Como em grande

parte dos casos a renda futura que estabelece o preço mais alto necessita da ação

dos capitais imobiliários articulados pela figura do incorporador na transformação do

uso do solo, o proprietário fundiário está coagido a abrir mão de parte da renda para

realizar a outra parte. Dessa forma, na transação entre proprietário e incorporador,

                                                            33 Financiamento para o incorporador na compra do terreno e financiamento para o capital industrial construtor para a aquisição de meios de produção e força de trabalho.

Page 58: A produção do espaço na favela - UFRJ

58  

parte da renda se encontra em disputa entre proprietário e incorporador, mas outra

parte deve estar reservada para o incorporador para garantir a transação entre

proprietário e incorporador e a realização da renda (ABRAMO, 1988, p. 56-97).

A renda fundiária, que será disputada entre proprietário fundiário e o

capitalista incorporador, apresenta, além das formas apresentadas anteriormente,

duas formas adequadas à análise da dimensão temporal das rendas: a renda

fundiária real e a renda fundiária prevista. Do ponto de vista do proprietário

vendedor, os ganhos provenientes da compra e da venda do terreno (D-M-D’)

aparecem sob duas formas: a diferença entre a renda prevista pelo proprietário

anterior e a renda real proveniente das mudanças ocorridas no tempo em que

manteve os direitos sobre a terra somada à renda prevista no momento da venda34

(ABRAMO, 1988, p. 99). Do ponto de vista do incorporador, a dinâmica é a mesma,

porém a transformação da renda prevista no início do processo em renda real deve

acontecer a curto ou médio prazo. O incorporador é ativo no processo de

transformação e, para esse agente, o processo só faz sentido na medida em que ele

aufere ganhos fundiários, enquanto para o proprietário as motivações são múltiplas.

Nessas condições, o capital incorporador atua prioritariamente em áreas onde

podem alterar os padrões de ocupação e com baixo poder de previsão dos

proprietários com relação às rendas futuras.

Como o capital incorporador comanda o processo de produção da habitação,

as formas de atuação do capital imobiliário serão definidas por um conjunto

complexo de interesses que é direcionado prioritariamente pela busca de ganhos

fundiários extraordinários. Partindo da natureza dos ganhos fundiários e do poder de

comando do capital incorporador, Abramo (1988) monta um esquema analítico, onde

o processo de transformação de determinada área abre um campo de atuação para

o capital imobiliário, onde seria possível auferir ganhos fundiários extraordinários, e

sua atuação seria limitada pelo crescente poder de previsão das rendas futuras dos

proprietários dessa mesma área. O poder de previsão dos proprietários é dado pelo

grau de consolidação da área. Abramo denomina “ciclo de vida” o período entre o                                                             34 A renda prevista na primeira transação não precisa ser completamente realizada, ou completamente transformada em renda real, ela pode continuar sendo, em parte ou por completo, renda prevista. Para o proprietário vendedor obter ganho fundiário, basta que a renda prevista somada a renda real na segunda transação seja maior que a renda prevista somada a renda real na primeira. Dessa forma, mesmo que a renda prevista na primeira transação seja superior à renda real na segunda, o proprietário vendedor ainda pode obter ganhos, mas quanto maior a relação entre renda prevista e renda real no segundo momento, mais o vendedor vai depender de sua capacidade de previsão para obter ganhos.

Page 59: A produção do espaço na favela - UFRJ

59  

início da transição e a consolidação da transformação empreendida na área. A partir

do momento de consolidação, os ganhos fundiários seriam limitados aos ganhos

normais, com esporádicas possibilidades de ganhos extraordinários provenientes de

transformações em outras áreas, mas esse tipo de ganho extraordinário é bem mais

limitado. Para Abramo, o capital imobiliário tem papel ativo no deslocamento da

demanda. Esse papel ativo se dá pela necessidade de transformar constantemente

diferentes áreas da cidade para auferir ganhos fundiários extraordinários. Dessa

forma, a cidade deveria ser analisada, não de forma estática, mas dinâmica, onde

cada área se encontra em um ponto diferenciado do “ciclo de vida” e cada um

desses ciclos modifica permanentemente os mapas de acessibilidade da cidade. A

dinâmica do capital imobiliário se apresenta como um movimento constante de

homogeneização-heterogeneização dos estoques imobiliários, onde a difusão de

uma forma específica do produto moradia indica um processo de homogeneização,

permeado por inovações que diferenciam os novos estoques dos antigos e

deterioram “moralmente” a produção anterior (ABRAMO, 1988, p. 97-180).

Abramo descreve a estrutura interna do capital imobiliário e um padrão de

ação coordenada, mas há importantes agentes que não se apresentam como

compradores ou vendedores, e que influenciam na distribuição das rendas fundiárias

e devemos considerar que o capital imobiliário considera esses agentes e suas

formas de atuação na formulação de suas estratégias. Para a inclusão desses

agentes, mais a frente lançaremos mão das leituras de Logan e Molotch (1987) e

Davis (2009 [1990]).

Não pretendemos nos aprofundar mais no padrão de transformação da cidade

empreendida pelo capital imobiliário, pois o objetivo aqui é encontrar aspectos da

natureza do mercado imobiliário que deem suporte para a análise da sua dinâmica

nas favelas. As duas formas que ganham importância na leitura de Abramo sobre as

estratégias dos capitais incorporadores são: a atuação coordenada do capital

incorporador na mudança de uso do solo de determinada área e a inovação através

do investimento em novas formas de morar. Nesses casos, um capitalista do setor

imobiliário pode atuar isoladamente “puxando” outros capitalistas que buscarão

aplicar a mesma inovação. Porém, na prática, o capital imobiliário tem outras formas

de atuação que não podem ser explicadas apenas pela livre concorrência entre

capitais ou entre capitalistas do mesmo setor. Há importantes agentes que não se

apresentam nessa relação estrita e que influenciam na distribuição das rendas

Page 60: A produção do espaço na favela - UFRJ

60  

fundiárias, como o Estado, e devemos considerar que o capital imobiliário interage

com esses agentes e processos. O próprio Abramo, que não se propõe a fazer uma

análise detida do papel do Estado no mercado imobiliário, destaca sua importância.

Quando o autor expõe as formas de ganho fundiário extraordinário, o Estado

aparece de forma ativa em duas das três formas apresentadas pelo autor.

O ganho fundiário aparecerá sob a forma de sobrelucro de urbanização se a mudança de uso for da ocupação agrícola para urbana, o ganho assumirá a forma de sobrelucro de antecipação se as mudanças forem entre usos urbanos, com a intervenção do Estado modificando o ambiente construído e/ou as normas da legislação urbanística e, se a mudança de uso alterar o ambiente construído a partir da ação transformadora do incorporador, a forma do ganho imobiliário fundiário será a de sobrelucro de inovação comercial (ABRAMO, 1988, p. 103 e 104).

Vemos que na classificação de Abramo dos sobrelucros fundiários, no caso

do sobrelucro de urbanização e de antecipação, o sobrelucro é diretamente ligado à

ação do Estado e, no sobrelucro de inovação, essa relação pode ser direta ou

indireta. Se o Estado aparece como agente ativo da mudança da distribuição das

rendas fundiárias, a atividade do Estado é elemento chave para a previsão das

rendas futuras. Dessa forma, o Estado é um componente de grande importância a

ser incorporado na nossa analise. Outro fato importante é que, se a renda da terra é

influenciada por aspectos sociais e culturais, as mudanças de preferência podem ser

induzidas e exercerão forte influência sobre o mercado imobiliário. A valorização ou

depreciação dos espaços por esse mecanismo pode ser exercida pelo Estado ou

instituições privadas, como a mídia. O terceiro componente a ser incorporado são as

formas de acumulação primitiva (MARX, 2013 [1867]) que percorrem toda a história

do capitalismo e se apresentam de forma estratégica no mercado de terras urbano.

Outro fator importante é a luta entre incorporadores e proprietários de terras. Nem

sempre o uso mais lucrativo da terra coincide com seu uso mais nobre. Por vezes, a

intensificação do uso do solo, por exemplo, pode acirrar os conflitos entre

proprietários ricos e incorporadores. O Estado aparece, dessa forma, não apenas

como o agente que promove a valorização da terra a ser incorporada pelos

incorporadores, mas também um defensor do modo de vida dos proprietários. Mas

os proprietários também buscam defender o valor de suas propriedades. Eles

recorrem frequentemente ao Estado, pois as formas que podem surgir como

negativas para o valor da propriedade, de forma geral, são de administração do

Page 61: A produção do espaço na favela - UFRJ

61  

poder público, como riscos naturais, violência ou a presença da população pobre no

entorno. Dessa forma, a população com maior poder político tende a atrair os

investimentos do Estado na defesa do valor de suas propriedades (DAVIS, 2009

[1990]).

O agente mais essencial nas estratégias dos agentes do mercado imobiliário

é o Estado. O papel mais fundamental do Estado para a formação de um mercado

imobiliário, chamam a atenção Logan e Molotch (1987, p. 27), é a garantia do direito

de monopólio de uso sobre uma porção específica do globo. Mas o papel do Estado

não se limita a isso. É preciso lembrar que o mercado imobiliário é muito mais

regulado se comparado à produção de mercadorias em geral e o Estado é um

componente importante na produção do espaço urbano. O Estado, dessa forma,

pode redistribuir a renda urbana por mudança da regulamentação, redistribuição de

serviços ou incorporação de trabalho a terra, ou seja, na alocação direta de recursos

do conjunto da sociedade na terra urbana. Esse componente da atuação do Estado

já foi trabalhado ao longo do texto. O importante aqui é chamar a atenção para a

tendência do Estado, como regulador e importante produtor de espaço

(infraestruturas, serviços, atividades culturais, etc.), para criar as bases mais

adequadas à acumulação de capital. Logan e Molotch (1987), através da alegoria da

máquina de crescimento fazem uma caracterização dos diversos usuários da cidade

e seus interesses específicos no crescimento urbano. Demonstram que, apesar do

crescimento levar com frequência ao aumento do custo e piora das condições de

vida (poluição, desemprego, violência, etc.), todos esses usuários têm motivos

(relacionados à ampliação de poder político, dos seus negócios ou do valor de suas

propriedades) para defender o crescimento. Agentes cruciais como o Estado ou a

mídia são essenciais para a construção do que os autores chamaram de consenso

pelo crescimento. Davis (2009 [1990]), como contraponto, apresenta os movimentos

de Los Angeles pelo crescimento lento. O estudo é importante aqui porque os

usuários da cidade frequentemente reagem ao crescimento ao tentarem manter os

seus modos de vida. A remoção e outras formas de acumulação primitiva são uma

alternativa frequente para derrubar esse tipo de barreira, mas Davis vai tratar em

especial dos subúrbios enriquecidos de Los Angeles, onde essa contradição

aparece como um problema de mais difícil resolução para políticos locais. Davis

(2009 [1990]) demonstra como a defesa do valor das propriedades e da “utopia

burguesa” - “criação de enclaves econômica e racialmente homogêneos glorificando

Page 62: A produção do espaço na favela - UFRJ

62  

a moradia de família individual” (DAVIS, 2009 [1990], p. 187 e 188) -, põem em

conflito proprietários fundiários entre si e o capital imobiliário com proprietários

fundiários. O conflito entre proprietários fundiários aparece na redefinição de limites

dentro da cidade. Se tivermos, por exemplo, dentro de um mesmo bairro, áreas com

valores imobiliários diferenciados, a divisão desse bairro poderia redistribuir os

valores favorecendo a área mais cara em detrimento do restante (Cf. DAVIS, 2009

[1990], p. 168-176)35. O conflito entre proprietários fundiários e incorporadores está

relacionado à manutenção da “utopia burguesa” e a defesa do valor da unidade

habitacional. A ação dos capitais imobiliários na promoção da aceleração do

crescimento, com frequência significa a intensificação do uso do solo, o que resulta

que, por mais que o valor do solo tenda a crescer, o padrão habitacional tende a

diminuir nas áreas abastadas de subúrbio, e o senso burguês de comunidade

apontado por Davis tende a desaparecer.

Logan e Molotch (1987) nos propõem também dar maior atenção aos

proprietários fundiários, dessa forma, classificam os “empresários da terra” em três

tipos: empreendedores acidentais, são os que se tornaram coletores de renda por

herança ou outras condições fortuitas, são agentes essencialmente passivos;

empresários ativos, compradores de terra que especulam sobre o futuro, buscam a

renda em lugares estratégicos e buscam antecipar as tendências de

desenvolvimento; e os especuladores estruturais, que não apenas antecipam o

futuro, mas o fazem sobre sua própria capacidade de intervenção na preferência da

demanda e nas decisões governamentais (lobby) (LOGAN; MOLOTCH, 1987, p. 23-

28). As categorias desenvolvidas por Logan e Molotch são importantes para chamar

a atenção à possibilidade dos proprietários de terra assumirem um papel ativo

mesmo perante o capital imobiliário. No entanto, podemos considerar essas

categorias, não de forma estanque, enquadrando determinados indivíduos em uma

categoria específica, mas de forma dinâmica, onde cada uma das categorias é parte

do comportamento dos proprietários fundiários em geral, a depender da conjuntura e

sua capacidade de atuação. Por exemplo, um “empresário acidental” pode mover

recursos contra uma intervenção estatal que ameace o valor de sua propriedade.

Para nós, basta a ideia que o proprietário fundiário tende a usar os meios ao

                                                            35 Davis mostra que parte dos moradores de Canoga Park fizeram uma petição para renomear a área onde moram como West Hills, o boato era que se suas residências 400 mil dólares fossem separadas na designação oficial das outras de 200 mil dólares, o valor de suas residências aumentaria automaticamente em 20 mil dólares.

Page 63: A produção do espaço na favela - UFRJ

63  

seu alcance para defender o valor de suas propriedades e tem um papel ativo na

estruturação das cidades, e que esses meios, com frequência, incluem a previsão da

atuação do mercado imobiliário e do Estado e a influência direta sobre as decisões

dos poderes de Estado.

É necessário, principalmente se vamos falar de favelas, dar uma atenção

maior aos agentes e dinâmicas que estruturam a produção do espaço. A

concorrência entre proprietários fundiários, entre capitalistas, entre capitalistas e

proprietários, os agentes centralizadores das decisões políticas e a estruturação de

poder são aspectos importantes dessa dinâmica.

2.3 Periferia, informalidade, zonas de exceção e espaços

cinzentos36

Ananya Roy, em seu artigo “Slumdog cities: rethinking Subaltern Urbanism”,

busca romper com o caráter estanque e topológico das categorias que qualifica

como “metonímias do subdesenvolvimento”, das quais enumera: “megacidade, a

favela, a política de massa e o habitus dos despossuídos”. Para isso, a autora utiliza

as categorias de periferia (SIMONE, 2010; HOLSTON e CALDEIRA, 2008),

informalidade (ROY; ALSAYYAD, 2004), zonas de exceção (ONG, 2006) e espaços

cinzentos (YIFTACHEL, 2011). Esses conceitos funcionariam, segundo a autora,

como “pontos de fuga” que, apesar de inalcançáveis, podem servir para

deslocarmos o ponto de vista e chegarmos a uma visão mais apropriada do objeto.

Para a autora, cada categoria funciona como um “exterior constitutivo”, ou seja, são

categorias de fora e que se aplicam para muito além da favela, mas que também

são determinantes constitutivos da favela.

Para a autora, periferia é uma categoria que assume um caráter multivalente

e se refere tanto às cidades que se encontram às margens da “teoria urbana”, como

ao nunca inserido nas trajetórias de desenvolvimento que caracterizam o centro

(ROY, 2017, p. 15). Nessa concepção, periferia não é um lugar, mas “fraturas” ou

“dobradiças” disseminadas pelo espaço urbano. Informalidade para Roy, não se

restringe às favelas e ao trabalho desproletarizado/empreendedor, mas é um modo

de produzir o espaço que conecta favela e subúrbio. Ao mesmo tempo, esse modo

de produzir o espaço não se restringe ao mundo dos pobres. Ricos e pobres                                                             36 A abordagem desse subcapítulo está, em grande medida baseado em artigo de Ananya Roy (2017).

Page 64: A produção do espaço na favela - UFRJ

64  

produzem informalidade, no entanto, o poder político os distingue ao atender apenas

as exigências por “infraestrutura, serviços e legitimidade” dos mais ricos (ROY, 2017,

p. 16). A autora destaca a arbitrariedade com que o Estado trata a relação

cambiante entre o formal e informal, o que confere à informalidade um caráter

heurístico (ROY, 2017, p. 16 e 17). As zonas de exceção são fragmentações

espaciais orientadas pelo Estado. Essa fragmentação possibilita o emprego desigual

do poder estatal (ROY, 2017, p. 17). Os espaços cinzentos são caracterizados por

serem potencialmente legalizado/aprovado/assegurado e potencialmente

despejado/destruído/morto. O espaço cinza evidencia a arbitrariedade do poder

estatal. Esses espaços também podem ser mantidos e tolerados como espaços

cinzentos, mas apenas “enquanto encarcerados dentro de discursos de

‘contaminação’, ‘criminalidade’ e ‘ameaça pública’ para a desejada ‘ordem das

coisas’” (YIFTACHEL, 2009, p. 89, Apud, ROY, 2017, p. 18).

Mas como podemos trabalhar a favela nesse arcabouço categorial? Segundo

Roy (2017), apesar de Simone (2010) caracterizar a zona entre o rural e o urbano

como uma periferia, o seu significado não topológico parece mais interessante, o

que se confirma para o nosso estudo. Dessa forma, a favela não se apresenta como

a periferia de uma cidade partida, dicotômica, mas as favelas podem apresentar

níveis diferentes de acesso a serviços, às instituições de Estado ou na maior ou

menor capacidade de interferência em disputas políticas. Ao mesmo tempo, os

indivíduos ou grupos no interior das favelas apresentam níveis diferentes de

inserção no que poderíamos considerar o centro da sociedade e da sociabilidade.

Essa configuração, onde surge uma diferenciação intra e inter favelas, nos permite

complexificar o problema. Podemos considerar que alguns estratos mais altos de

determinadas favelas ocupam um espaço mais central na sociedade que estratos

mais baixos do restante da cidade, ainda que essa não seja a regra.

Sobre a informalidade, podemos fazer um paralelo com a irregularidade

urbanística e fundiária trabalhada por Adauto Lúcio Cardoso (2003) em pesquisa

sobre o município do Rio de Janeiro37. O autor complexifica a dicotomia entre regular

                                                            37 A pesquisa conduzida por Adauto Cardoso no início dos anos 2000 tinha como universo, diversos tipos de processo em tramitação na Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura do Rio de Janeiro (SMU/PCRJ) que permitiram a caracterização de diferentes situações de irregularidade (fundiária, documental, urbanística, edilícia, etc.). Como as situações localizadas em favela apenas muito raramente geram algum tipo de processo administrativo na SMU, as irregularidades observadas referem-se a situações observadas na produção de loteamentos irregulares ou clandestinos e, também, nas áreas caracterizadas como parte da cidade “formal”.

Page 65: A produção do espaço na favela - UFRJ

65  

e irregular apresentando uma série de situações de irregularidade. Segundo o autor:

A partir da literatura existente e dos resultados da pesquisa pode-se sugerir a existência dos seguintes tipos: 1 A irregularidade da propriedade da terra ou do imóvel como resultado de processos de ocupação de terra ou de ocupação de imóveis construídos; 2 A irregularidade parcial ou inadequação da documentação de propriedade existente que não configure processos de ocupação, mas que apresentam problemas de registro ou assemelhados; 3 A irregularidade de processos de produção de loteamentos (diferenciando-se os clandestinos – aqueles que não contam com processo de licenciamento na Prefeitura; e irregulares – aqueles que apresentam problemas na tramitação do processo de licenciamento, sem conclusão efetiva); 4 A irregularidade da edificação, por sua inadequação à legislação urbanística (e que também pode ser diferenciada entre edificações clandestinas – aquelas que não contam com processo de licenciamento na Prefeitura; e irregulares – aquelas que apresentam problemas na tramitação do processo de licenciamento, sem conclusão efetiva); 5 Um outro tipo, complementar, refere-se aos casos de superposição dos diferentes tipos de irregularidade, fundiárias e edilícias (CARDOSO, 2003, p. 11 e 12)38.

Segundo o autor, em 70% da irregularidade analisada o fator que a define é a

falta de licença. Para o autor, isso significa que a maior parte da irregularidade se dá

por falta de conhecimento do poder público pela população e falta de capacidade de

enforcement da legislação. Ou seja, a deslegitimação do poder público, encorajada

pela impunidade, configura um quadro quase geral de irregularidade.

Dessa forma, a informalidade urbana não é uma exclusividade das favelas

ainda que somemos a elas os loteamentos clandestinos. A informalidade permeia

todos os estratos da sociedade. Sendo assim, ainda que a informalidade seja em

parte explicativa da condição das favelas as áreas informais não necessariamente

são favelas. Há uma ampla variedade de situações de informalidade.

Outro elemento interessante trazido por Roy é que a relação entre

informalidade e formalidade é sempre cambiante e tem um fator de arbitrariedade.

Para a autora a informalidade é um lugar indefinido entre a legitimação e a

criminalização, sendo assim, o poder político define se tratará a área informal no

sentido da legitimação ou da criminalização. Segundo a autora:

A urbanização informal é tanto a competência dos citadinos ricos quanto dos favelados. Essas formas de informalidade urbana – das casas de campo de Delhi e das novas cidades de Calcutá aos shoppings de Mumbai – não são mais legais do que a favela metonímica. Mas elas são

                                                            38 Segundo o autor, os números alarmantes de informalidade se dão em parte pela indiferenciação entre os diferentes casos e a consequente indiferenciação do peso dado para cada tipo de caso.

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expressões de poder de classe e, portanto, podem exigir infraestrutura, serviços e legitimidade. Mais importante, elas são designadas como “formais” pelo Estado, enquanto outras formas de informalidade continuam sendo criminalizadas (ROY, 2017, p. 16).

Segundo Roy (2017), para Ong (2006) as zonas de exceção são

fragmentações do espaço urbano que permitem o emprego desigual do poder

estatal. Sendo assim, a formação de zonas de exceção pode criar desde espaços de

privilégio até espaços criminalizados. O exemplo mais comum da formação de zonas

de exceção está no zoneamento funcional moderno, mas podemos considerar ainda

como um exemplo o espaço privilegiado de investimento intensivo pelo Estado

formado pelas Operações Urbanas Consorciadas (OUCs). No entanto, o que nos

importa aqui é o outro lado da formação de zonas de exceção. Para as favelas do

Rio de Janeiro, por exemplo, podemos pensar nas Áreas de Especial Interesse

Social (AEIS). Apesar dessa forma de zoneamento ser frequentemente defendida

como forma de democratização do acesso à terra, de legitimação das formas de

morar encontradas na favelas e de criação de barreiras para a atividade predatória

do capital imobiliário, ela assume, via flexibilização dos parâmetros urbanísticos, que

aquela população pode viver sob parâmetros de qualidade ambiental abaixo do

presente no restante da cidade. É também comum que a regulamentação de AIES

estabeleça parâmetros urbanísticos e normas mais restritivos que na cidade formal,

como o congelamento da produção habitacional ou a proibição de remembramento,

o que impediria a entrada de investidores mais ricos, mas isso, contraditoriamente

pode, em grande medida, impedir a melhoria dos espaços internos das habitações,

visto que alguns lotes com muito pouca área necessitam de remembramento para a

melhoria dos espaços internos e que a proibição da produção de novas unidades

pode gerar subdivisões internas para suprir necessidades familiares ou

complementar rendimento via aluguel.

Podemos dar diversos exemplos da criação de zonas de exceção para os

espaços de favelas e nem sempre elas envolvem a forma tradicional de

zoneamento, como os mandados de busca coletivos, a proibição de alugueis em

favelas pelo código de obras de 1937 (Decreto Municipal n° 6000 de 1º de julho de

1937), entre outros. No entanto, podemos chamar a atenção que o próprio status de

favela, ou seja, o fato de o Estado caracterizar como favela ou aglomerados

subnormais - entre outras denominações - determinadas partes da cidade, já indica

um tratamento diferenciado. A diferença da atuação do Estado na resolução de

Page 67: A produção do espaço na favela - UFRJ

67  

situações de risco (por exemplo, deslizamentos de encostas) na área formal onde o

risco é extinto (contenção de encosta) e nas favelas onde, com frequência, as

edificações ameaçadas são removidas é um dos exemplos mais claros das

implicações da definição de uma determinada área como favela.

Segundo Roy (2017), a categoria espaços cinzentos atravessa as outras

categorias. É essa categoria que evidencia a flexibilidade do poder do Estado sobre

os espaços. Yiftachel (2009) está interessado em compreender como os espaços

cinzentos podem caminhar para a legitimação ou destruição total e observa que,

apesar de parte importante das irregularidades serem relacionadas à construção de

edificações de alto padrão, as ameaças de remoção atingem apenas espaços

empobrecidos e criminalizados.

Quando desenvolvemos alguns argumentos sobre a informalidade,

chamamos a atenção para a arbitrariedade apontada por Roy (2017) que definiria

sobre a criminalização ou legitimação do espaço informal/irregular. Não podemos

considerar, no entanto, essa arbitrariedade como uma autocracia desvinculada das

condições materiais que a envolvem. Por exemplo, o processo histórico de

criminalização da classe trabalhadora, dos pobres urbanos, dos negros, dos

favelados é fator fundamental da constituição de uma política permanente de

remoções. Já a mesma política para áreas ricas ou de classe média (mesmo que

irregulares) seria inimaginável. Dessa forma, um governo ou o bloco dominante

inserido no governo define de forma arbitrária sobre diversos assuntos, porém

limitado às possibilidades sócio-historicamente constituídas.

No entanto, consideramos importante também refletir sobre como pode ser

importante a manutenção de espaços cinzentos, sem legitimá-los completamente e

sem destruí-los completamente. Após mais de um século de criminalização, as

favelas permanecem, mesmo com as diversas investidas remocionistas. Isso indica

que a favela não é apenas uma forma de resistência ou um problema de gestão e

planejamento, mas está ligada de forma visceral à urbanização e à forma de

desenvolvimento do capitalismo brasileiro. É uma necessidade que se desenvolve

de formas diversas nos diferentes países do capitalismo periférico.

2.4 A favela como categoria

Falar sobre favelas acarreta já a princípio um problema conceitual que tem

Page 68: A produção do espaço na favela - UFRJ

68  

gerado bastante debate no meio acadêmico (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967];

SILVA, 2009; LEITÃO, 2009; SOUZA E SILVA, 2012; VALLADARES, 2005;

GONÇALVES, 2013). Para Maria Laís Pereira da Silva, o conceito de favela na sua

história tem sido “‘escondido’ ou ‘escamoteado’ por uma série de representações,

imagens e estigmas” (2009, p. 30) que dificultam um olhar mais adequado sobre a

questão. Nossa intenção aqui não é construir um conceito de favela, muito menos

esgotar essa discussão, mas podemos aqui identificar alguns desses estigmas,

mesmo sem nos aprofundarmos nas suas construções históricas, apenas para

questioná-los em seguida. Trata-se aqui de produzir um delineamento mínimo do

objeto de pesquisa apresentando alguns pressupostos que conduzem a análise.

2.4.1 Das caracterizações correntes à sua crítica

Jailson de Souza e Silva (2012, p. 8) nos mostra que a definição oficial trata a

favela primordialmente através da ideia de precariedade. O autor chama a atenção

que, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)39

estabelece que o “aglomerado subnormal”40 é um:

Conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.), ocupando – ou tendo ocupado – até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular); dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos e essenciais41.

A definição do Instituto Pereira Passos (IPP)42 também aborda a favela pela

precariedade, tratando-a como uma:

Área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação clandestina e de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e alinhamento irregular, ausência de parcelamento formal e vínculos de propriedade e construções não licenciadas, em desacordo com os padrões legais vigentes43.

Na definição oficial, a precariedade aparece tanto como característica das

                                                            39 O IBGE é o órgão federal responsável pelo Censo Demográfico e principal provedor de dados e informações do Brasil (https://www.ibge.gov.br/). 40 Denominação institucional dada às favelas. 41 http://censo2010.ibge.gov.br/materiais/guia-do-censo/glossario.html 42 O IPP é uma autarquia criada no âmbito do poder executivo municipal que tem, entre outras atribuições, a sistematização, produção e disponibilização de dados sobre o Município do Rio de Janeiro (http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp). 43 http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp/exibeconteudo?id=4782931

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unidades habitacionais, como decorrente da falta de serviços básicos. Além da ideia

de precariedade já exposta por Souza e Silva, as definições apresentadas ainda

revelam outros aspectos importantes, sejam elas: a ilegalidade da terra, a densidade

habitacional, a “desordem” do aspecto morfológico e a predominância habitacional

de baixa renda.

Outra representação dominante da favela é apresentada no Programa de

Integração de Assentamentos Precários Informais – Morar Carioca, definido pelo

Instituto de Arquitetos do Brasil, núcleo do Rio de Janeiro (IAB-RJ)44, da seguinte

maneira:

O Programa de Integração de Assentamentos Precários Informais – Morar Carioca foi concebido para integrar-se ao Plano Municipal de Habitação de Interesse Social do qual será instrumento de regularização urbanística e fundiária, articulado a ações que contribuam para a integração efetiva dos assentamentos atendidos, em consonância com o disposto no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro45.

Aqui aparece uma questão fundamental estruturante do senso comum e das

intervenções do poder público: o paradigma da integração. A noção de integração

pressupõe que a favela é um território a parte da sociedade global46, assim como as

pessoas que lá vivem. Da mesma forma que a integração, a urbanização de favelas

também pressupõe que algo é necessário para que a favela se torne urbe, se torne

cidade. Aparentemente, a “solução” para a “integração” necessária passaria

prioritariamente pelo tratamento morfológico e infraestrutural das favelas. É uma

constante no discurso institucional a questão das favelas ser vinculada a um suposto

abandono histórico do Estado que deve ser compensado.

A percepção de que o Estado não está presente nas favelas não aparece

apenas nos discursos que enfatizam a precariedade infraestrutural e construtiva,

mas também nos que identificam a favela como um lugar onde o crime se

desenvolve de uma forma específica. Ideia também presente no discurso

institucional. Segundo o site da Unidade de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro

(UPP-RJ), o programa visa a “retomada” do território.

                                                            44 Organizador do concurso que selecionou os escritórios que se responsabilizaram por desenvolver os projetos urbanos referentes ao programa. 45 http://www.iabrj.org.br/morarcarioca/o_programa/ 46 Machado (2016 [1967]) considera sociedade global a sociedade como uma totalidade, em oposição aos cortes de classe, raça, gênero e, em especial o corte que distingue favelados e não favelados.

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O Programa engloba parcerias entre os governos – municipal, estadual e federal – e diferentes atores da sociedade civil organizada e tem como objetivo a retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico, assim como a garantia da proximidade do Estado com a população.

A pacificação ainda tem um papel fundamental no desenvolvimento social e econômico das comunidades, pois potencializa a entrada de serviços públicos, infraestrutura, projetos sociais, esportivos e culturais, investimentos privados e oportunidades (o grifo é meu)47.

Aqui a imagem da precariedade se repete, mas dessa vez justificada pelo

domínio territorial pelo narcotráfico varejista e apontando como solução a “retomada

permanente” do território. A imagem da favela como um “reduto dos criminosos”

aparece desde os primeiros relatos de escritores e jornalistas sobre as favelas

(VALLADARES, 2000), mas vai ganhar a dimensão do domínio territorial pelo tráfico

de drogas a partir do final da década de 80 e início dos anos 90 no Rio de Janeiro.

Dessa forma, apenas no discurso institucional recente, podemos enumerar

algumas características da construção imagética da favela pelo Estado, sendo elas:

1) o traçado orgânico e desordenado, 2) a alta densidade demográfica, 3) a

ilegalidade da terra, 4) a falta de saneamento, 5) a autoconstrução e a baixa

qualidade construtiva das habitações, 6) a predominância habitacional e a ideia que

a favelas se constituem em bolsões homogêneos de pobreza, 7) o domínio territorial

por grupos criminosos, 8) a ausência histórica do Estado e 9) a falta de integração

entre o desenvolvimento das favelas e o de outros espaços da cidade.

Apresentadas algumas características gerais do discurso do próprio Estado

sobre as favelas buscaremos, em alguns autores que questionam total ou

parcialmente alguns desses pontos, elementos que possam ajudar a construir uma

visão mais adequada do objeto em questão tendo em vista os propósitos dessa

dissertação.

Maria Laís Pereira da Silva nos apresenta elementos importantes para a

delimitação do nosso objeto. Para a autora, os diversos estigmas construídos

historicamente sobre as favelas impedem a visão do desenvolvimento das favelas

como parte da urbanização brasileira (SILVA, 2009, p. 30). Aqui há dois fatores

importantes a serem destacados: a noção de que é necessário que nos

concentremos em identificar as representações estigmatizadas, para que possamos

enxergar o objeto com maior rigor; o segundo se trata do desenvolvimento das

                                                            47 http://www.upprj.com/index.php/faq

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favelas e da cidade como um todo como processos conectados de forma

inseparável. Deixaremos as considerações mais gerais para um momento posterior

e, por enquanto, nos concentraremos na forma como os autores tratam os aspectos

específicos levantados.

Silva (2009), numa abordagem histórica, parte de aspectos que particularizam

e assemelham as favelas com relação ao restante da cidade e busca uma

generalização dessas formações no ponto de vista histórico. Gerônimo Leitão (2009)

busca desfazer os mesmos estereótipos associados às favelas destacando as

transformações que ocorreram ao longo da história, principalmente ao longo das

décadas de 80 e 90. Na sua visão, alguns estereótipos são resultado da

manutenção no imaginário popular e do poder público de algumas características

que já existiram em algum momento, mas que deixaram de existir total ou

parcialmente.

Silva (2009, p. 32) busca um primeiro indicador da particularidade das favelas

em aspectos ligados à morfologia. A autora afirma que muitas favelas surgiram a

partir de traçados regulares, seja porque se desenvolveram a partir de loteamentos

ou parques proletários, ou porque foram ocupações dirigidas e planejadas na sua

totalidade ou em parte.

Leitão (LEITÃO, 2009, p. 38), apresenta a visão de diversos autores (BOSCHI

e GOLDSCHIMIDT, PERLMAN) que, sob perspectivas diferenciadas, também

apontam para uma grande diversidade nas favelas. O estudo de Boschi e

Goldschimidt apresenta a diversidade morfológica das favelas segundo o clima, a

topografia e a inserção na cidade e demonstra que as favelas das áreas centrais

podem se diferenciar muito das favelas de áreas periféricas chegando a apresentar

modos de vida rural nos limites da cidade. Já Pearlman indica que as morfologias

em favelas são as mais diversas: há favelas com ocupação mais densa ou mais

rarefeita, com o traçado relativamente regular e espaços livres, além daquelas com

maiores investimentos nas habitações e nas áreas públicas. Para Pearlman, a

grande diferença das favelas para a cidade oficial é a propriedade formal da terra

(LEITÃO, 2009, p. 38).

Sobre a situação legal, as favelas apresentam certa diversidade histórica.

Segundo Silva (2009, p. 33), a característica de invasão e ilegalidade se generalizou

como característica de qualquer favela, especialmente no final da década de 40 e

início da década de 50, acompanhando a expansão do mercado imobiliário e as

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disputas por terra que se aceleraram junto às pressões sociais no meio urbano e

rural.

Sobre essa diversidade histórica, Rafael Gonçalves (2011) apresenta

exemplos de favelas que foram ocupadas com o consentimento de autoridades

militares ou de supostos donos dos terrenos.

Desde o fim do século XIX, as favelas são associadas à ilegalidade e à marginalidade. Diante das medidas higienistas de erradicação dos cortiços e às diferentes reformas urbanas das primeiras décadas do século XX, os favelados teriam pouco a pouco ocupado os terrenos vazios, principalmente aqueles situados nos morros próximos ao Centro da Cidade. Ora, se é incontestável que uma grande parte das favelas se estruturou a partir da ocupação dos terrenos abandonados na cidade, o processo de formação das primeiras favelas foi, na verdade, muito mais complexo, e não se resumiu simplesmente a essas ações. Amplamente difundida, a história, daquela que é considerada como a primeira favela da cidade, revela que os soldados provenientes de Canudos se instalaram no morro da Providência com o consentimento do Exército. Este mesmo consentimento das autoridades militares permitiu, igualmente, o surgimento da favela de Santo Antônio (Gonçalves, 2010: 37). Em suma, esses primeiros habitantes só permaneceram ali em virtude do apoio ativo das autoridades militares. Da mesma forma, como afirma Vaz (1988: 48-50), inúmeras favelas foram formadas por iniciativa dos próprios donos de terrenos. É o caso, especialmente, da favela da Providência, após a erradicação do cortiço Cabeça de Porco, em 1893. Para escapar ao controle higienista, os proprietários de cortiços continuaram suas atividades em áreas dos morros, alugando o solo ou os casebres. De fato, as primeiras favelas se assemelhavam muito aos cortiços da época (GONÇALVES, 2011, p. 116).

Na verdade, “há fortes indícios, segundo Maria Laís Pereira da Silva (2005, p.

101), de que cerca de 40% das favelas do Rio de Janeiro, antes de 1964, se

desenvolveram graças a certo tipo de autorização prévia, concedida pelos ditos

proprietários ou, no caso de terrenos públicos, por funcionários” (GONÇALVES,

2011, p. 127). A complexidade das formas de acesso à moradia em favelas parece

demonstrar que a identificação de favelados como invasores é errônea. Outro

aspecto importante é que, segundo Gonçalves, a criminalização da situação

fundiária na favela tem uma construção histórico-jurídica. O primeiro marco jurídico a

ser destacado é o Código de Obras de 1937 (Decreto Municipal n° 6000 de 1º de

julho de 1937), que procurou combater os aluguéis em favelas. Segundo o autor “um

dos meios de se manter o aspecto provisório e precário das favelas era justamente

recusando toda e qualquer apreciação judicial dos contratos de locação no interior

das favelas” (GONÇALVES, 2011, p. 118).

Segundo Silva (2009), a visão da favela como área de habitações “precárias”

ou “degradadas” a torna facilmente sujeita à “erradicação”. Mas não é somente uma

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visão externa de precariedade, pois parte das precariedades é concreta e é

resultado do déficit de investimento do Estado. Essa é uma das faces do que

consideramos anteriormente como a manutenção das favelas como espaços

cinzentos. Isso diminui os custos políticos de uma ação negativa do Estado sobre

esses espaços. Podemos considerar também que esse tipo de poder permite ao

Estado manter a população sob controle em possíveis convulsões sociais e facilita a

formação de “currais” eleitorais.

Por vezes, a tensão entre a resolução de determinada forma de precariedade

e a remoção de edificações em favelas aparece de forma mais evidente. Se o

contra-laudo do Fórum Comunitário do Porto48 estiver correto, o custo das remoções

previstas pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro na Providência superam em

muito o custo da extinção do risco via tratamento das encostas. Da mesma forma, o

teleférico previsto pela prefeitura para amenizar os problemas de transporte da

favela envolve remoções e um custo mais alto de construção e manutenção do que

o elevador proposto pelo fórum que não envolveria nenhuma remoção.

Em contraposição à visão de degradação e sujeição à erradicação, a autora

argumenta que a favela, mesmo sendo vista pelo Estado como um fenômeno

passageiro, permanece na urbanização brasileira e que, como parte da cidade,

como espaço produzido socialmente, também vai ter um sentido de representar um

patrimônio, construído tanto pelo trabalho dos moradores, como pelos investimentos

públicos.

Essa ideia da construção de um patrimônio no interior das favelas, para

Boaventura de Sousa Santos, vai aparecer não apenas como a busca pela melhoria

da qualidade de vida no interior das favelas, mas também como uma estratégia

coletiva de manutenção do assentamento. Segundo o autor, o desenvolvimento

interno das favelas faz crescer os custos políticos das remoções.

Perante isto, os habitantes das favelas sempre procuraram organizar-se de modo a melhorar as condições de habitabilidade, criando várias redes de água e de electricidade administradas pelos utentes, constituindo brigadas de trabalho (sobretudo nos fins de semana) para melhoria das ruas e outras infrastruturas colectivas. Procuraram, sobretudo, maximizar o desenvolvimento interno da comunidade e garantir a segurança e a ordem

                                                            48 Relatório sobre as visitas técnicas realizadas nas comunidades do Morro da Providência e da Pedra Lisa nos dias 23/8 e 7/9/2011 e Parecer Técnico sobre os motivos alegados pela Prefeitura do Rio de Janeiro para a remoção de 832 famílias nessas duas comunidades, acessível no site: https://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2011/12/relatc3b3rio-morro-da-providc3aancia_final-1.pdf

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nas relações sociais entre os habitantes com o objectivo de, fortalecendo as estruturas colectivas, fazer subir os custos políticos e sociais para o aparelho de estado de uma eventual destruição ou remoção forçadas (SOUSA SANTOS, 1988, p. 13).

Gerônimo Leitão (2009) chama a atenção para o fato de as favelas não serem

mais um espaço residencial, mas um espaço complexo, com as mais variadas

formas de uso e um mercado bastante diverso. Outro ponto destacado por Leitão é a

qualidade das habilitações: a favela deixa de ser o lugar da precariedade construtiva

e passa a ter uma predominância de casas de alvenaria que não se via nas suas

origens. Da mesma forma, as habitações não são mais autoconstruídas como foram

em outros tempos. Apesar da autoconstrução ainda ter importância, a provisão de

habitação assume as mais diversas formas (contratação e mão de obra, construção

para aluguel ou venda, divisão de casas, sessão de lajes etc.). Há um mercado

imobiliário expressivo que ao mesmo tempo se assemelha e se diferencia do

mercado da cidade “oficial”. Pode-se observar também uma crescente diferenciação

intrafavela. Para o autor, a entrada de uma determinada classe média nas favelas

“empurra as classes mais pobres para as áreas mais precárias enquanto [as classes

médias] se apropriam das mais servidas” (LEITÃO, 2009, p. 36). Esse movimento

seria responsável tanto pela segregação interna quanto pelo crescimento do

mercado imobiliário.

Tomando esses aspectos mais gerais, Silva (2009) busca o que seria então

mais específico nas favelas em relação ao restante da cidade e aponta um aspecto

importante: a representação da propriedade e da posse da terra assumem formas e

agentes que por vezes diferem da ordem jurídica oficial. Para a autora:

De fato, o que representa a propriedade, a posse, ou o que é reconhecido como legítimo/legal, as várias formas e contratos referentes a lajes ou formas de locação, significam, por vezes, outras ordens ou conceitos que diferem da ordem jurídica e envolvem novos atores: a Associação de Moradores, agentes imobiliários específicos, formas particulares de definição de lotes, entre outros, e que parecem expressar a diversidade da favela (SILVA, 2009, p. 34).

Esse aspecto apresentado por Maria Laís Pereira da Silva demonstra que a

dificuldade da busca pelas determinações da categoria “favela” não se encontra

apenas nas representações diversificadas e às vezes contrapostas ou nos estigmas

e estereótipos. O fenômeno se apresenta de forma bastante distinta para cada caso

e, frequentemente, de forma semelhante às áreas que não são consideradas como

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favelas. Seja no aspecto morfológico, jurídico, infraestrutural ou social podemos

demonstrar que as representações institucionais são apenas parcialmente

verdadeiras porque elas não conseguem dar conta da diversidade em que o

fenômeno se apresenta e, ao que parece, o que define os aspectos empíricos nas

favelas é, de fato, a sua diversidade. É evidente que essa diversidade apresenta

certos limites, pois jamais poderíamos considerar um conjunto de arranha-céus

comerciais como uma favela, independente de sua condição jurídica, mas esses

aspectos não definem por si só a favela. Mas retornemos ao último aspecto

levantado pelas definições institucionais sobre a favela: o paradigma da integração.

A ideia da favela como um espaço apartado do restante da cidade é bastante

presente no senso comum e incorporado em diversos estudos e na formulação das

políticas públicas. Num breve resgate histórico, vemos que as favelas no fim do

século XIX e nas primeiras décadas do século XX, foram tratadas pelo discurso

hegemônico como situação indesejada, em contraste à ordem urbana e, dessa

forma, excluídas das ações públicas e privadas. Ao longo da primeira metade do

século XX, a favela passa a ser efetivamente tratada como um “problema” pelo

poder público, sendo mencionada pela primeira vez em uma legislação no código de

obras de 1937, sendo alvo de recenseamento municipal entre 1947 e 1948, e

incluídas como categoria no censo demográfico de 1950. Com o golpe de 1964 e a

instauração do regime militar, passa a dominar a ação direta do Estado na extinção

das favelas. Na segunda metade da década de 60, no Rio de Janeiro, acontecem as

primeiras iniciativas do Estado para a manutenção das favelas nas experiências da

Operação Mutirão e da Companhia de Desenvolvimento das Comunidades

(CODESCO)49. Na década de 70, começa a ganhar projeção e escala nacional a

ideia de que o modelo excludente imposto pelas remoções deveria ser substituído

por um modelo de manutenção das famílias em suas localidades. A remoção como

modelo predominante não deixa de existir, mas outras formas de atuação passam a

ser discutidas e executadas em paralelo ou mesmo integradas às remoções.

Mesmo a ideia de “integração” da favela aos demais espaços da cidade

pressupõe uma separação que pode ser assumida em parte, já que sua relação com

o restante da cidade não se dá de igual para igual, mas esconde a relação intrínseca

e complementar da favela a processos mais globais.

                                                            49 O único projeto finalizado pela CODESCO foi o projeto de Brás de Pina, realizado pelo grupo “Quadra” integrado pelo arquiteto urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos.

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Para este tema iremos nos basear em estudo desenvolvido em 1967 por Luiz

Antonio Machado da Silva. No entanto, é necessário chamarmos a atenção para

dois aspectos que são de fundamental importância no texto em questão e que são

fortemente marcados pelo contexto histórico, exigindo maior cautela ao transpor

para o nosso estudo. Em primeiro lugar, a posição hegemônica das teorias da

marginalidade nos estudos sobre favelas. Machado as combate dando ênfase à

diversificação interna e ao nível de qualificação de determinados estratos das

favelas. Em determinados momentos essa ênfase pode soar como uma

indiferenciação entre favela e o restante da cidade, o que não invalida sua crítica ao

conceito de marginalidade. Em segundo lugar, a política da “bica d’água” que

limitava deliberadamente o acesso dos favelados às instituições de Estado,

condicionando-o à intermediação de determinados agentes. Essa configuração

favorece o controle territorial por determinados candidatos ou agentes eleitos do

Estado a fim de formar “currais eleitorais”. Apesar de muito da prática da política da

“bica d’água” ainda se manter e de ainda haver bloqueios entre favelados e

instituições de Estado, o nível e as forma de acesso se modificaram

substantivamente do momento em que Machado desenvolve seu estudo até hoje.

Isso desloca a forma de atuação do que Machado identificou como “burguesia

favelada”50.

Para Machado da Silva, a forma como a questão das favelas é tratada em

políticas públicas e em estudos acadêmicos costuma ter um viés pragmático e,

segundo o autor, estão sob dois tipos de análise: “a que pretende propor ‘soluções’

para o ‘problema social das favelas’ e a que pretende traçar linhas de ação político-

ideológicas − esta em muito menor quantidade”51 (MACHADO DA SILVA, 2016

[1967], p. 33). Machado da Silva segue afirmando que a primeira abordagem parte

do pressuposto de que é preciso “integrar” a favela à comunidade nacional, o que

implica em entender a favela como autônoma, expressa em termos de

“marginalidade”.

Machado da Silva imediatamente refuta essa abordagem. Para o autor há

                                                            50 A “burguesia favelada”, para Machado, é constituída por sujeitos que concentram os recursos internos da favela e utilizam seu poder político e acesso às instituições de Estado para assumir uma posição privilegiada, seja para atender a interesses próprios ou coletivos. Esse termo em nada se assemelha à burguesia que se opõe ao proletariado na teoria marxiana, a identificação serve apenas como analogia. 51 Importante ressaltar que no momento em que Machado escreve esse artigo, os estudos específicos sobre favelas ainda eram escassos.

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certa razão no conceito de marginalidade pela dificuldade de acesso aos meios de

consumo coletivo, mas a favela tem íntimas vinculações com o sistema global,

dependendo mais de condições estruturais da sociedade global do que dos

mecanismos internos para mantê-la, Além disso, a noção de “comunidade marginal”

caracteriza um julgamento de valor que dá origem a uma atitude paternalista

assistencialista e fornece as bases para a tentativa de imposição de soluções por

grupos que detém maior poder de escolha. Nas palavras do autor:

A favela não é uma comunidade isolada: sua própria existência depende muito mais de determinadas condições estruturais da sociedade global do que dos mecanismos internos desenvolvidos para mantê-la. Em segundo, porque a noção de que a favela é uma “comunidade marginal” não passa de um julgamento de valor que, por um lado, dá origem a uma atitude paternalista e assistencialista e, por outro, fornece as bases “teóricas” para tentativas de imposição das normas e valores dos grupos de classe média que detêm o poder de escolha das “soluções” adotadas por eles (e não pelos próprios favelados), consideradas as mais adequadas para aquele “problema social das favelas”. Trata-se, assim, de uma visão deformada da realidade desses locais (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967], p. 33).

Entretanto, a condição de dependência é insuficiente para o entendimento da

relação das favelas com a sociedade global. As favelas devem ser entendidas como

parte da urbanização brasileira. Não à toa, mesmo com constantes formas de

criminalização e tentativas de extermínio via Estado, elas se apresentam como um

fenômeno permanente e generalizado nas grandes cidades do chamado capitalismo

dependente. A permanência das favelas é uma questão importante na obra de Maria

Laís Pereira da Silva. Para a autora:

Uma das importantes hipóteses discutidas pela literatura, e em parte comprovada, é a de que, dependendo das conjunturas políticas, prevaleceram ou medidas de repressão, ou atitudes de maior tolerância que permitiram a permanência das favelas na cidade. Vamos enfatizar o contrário disso: como foi possível essa permanência, mesmo em momentos de extrema repressão? (SILVA, 2005, p. 22).

Parece importante destacar que se entendemos a favela como forma

permanente e estruturante das grandes cidades brasileiras, elas não devem ser

vistas como simples reflexo conjuntural (ineficiência da produção habitacional ou

permissividade de determinado governo) ou como simples consequência de

processos como o rápido êxodo rural. É evidente que esses fatores são de flagrante

importância, mas não podem ser explicativos do fenômeno. Dessa forma, a questão

levantada por Silva ganha importância fundamental, pois ela chama a atenção para

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a existência de tendências permanentes que atuam na reprodução das favelas e que

se impõem mesmo em momentos de fortes contratendências. Essa formulação nos

faz repensar a ideia da favela como uma herança de processos passados e

entender que o fenômeno é parte da urbanização e da reprodução do capitalismo

periférico. É necessário, portanto, tratar a favela de modo integrado à cidade,

mesmo que de forma subordinada, mas com o seu papel ativo no processo global de

acumulação e na estruturação do espaço urbano carioca. As favelas devem ter,

dessa forma, um papel ativo no desenvolvimento do capitalismo brasileiro.

Desafio maior é identificar essas tendências em meio às particularidades de

cada cidade. As favelas como parte desses processos particulares, vão surgir e se

desenvolver como parte do processo de urbanização, “tanto no que se refere ao seu

caminhar geográfico e no tempo histórico, quanto nos processos em que se

inserem” (SILVA, 2009, p. 31).

Portanto, são áreas que tiveram (e tem) uma produção e uma densidade sócio-espacial, política e cultural. Em algumas áreas desenvolveram um capital social importante, e que vai dar base para movimentos sociais de décadas mais recentes. Portanto, produziram (e produzem) o espaço social da cidade (SILVA, 2009, p. 32).

Mas não apenas as particularidades dos processos de urbanização das

diferentes cidades determinam as favelas. As singularidades das condições

materiais em que cada favela se constituiu e se reproduz determinam aspectos

peculiares para cada favela, ainda que sejam muito próximas e numa mesma

cidade52. Ou seja, dentro de uma mesma cidade a localização e o desenvolvimento

sócio histórico específico de cada favela devem ser aspectos importantes a serem

considerados.

Para Gonçalves (2011, p. 114), “não existe a favela, mas uma miríade de

favelas exibindo, cada uma, um diversificado dinamismo econômico, uma acentuada

estratificação social e uma diversidade de estatutos fundiários”. No caso da

propriedade fundiária, que é de especial interesse para nosso estudo, se o Estado,

que é o agente garantidor do direito de propriedade, não atua sistematicamente na

sua manutenção nas favelas, mecanismos próprios devem ser criados. E esses

                                                            52 Quem teve a oportunidade de conhecer, por exemplo, Babilônia e Chapéu Mangueira consegue entender o impacto de processos sócio históricos distintos em favelas de localização muito próxima. Podemos observar o mesmo nas distintas áreas dentro das grandes favelas, como em Manguinhos, Rocinha ou nos Complexos do Alemão e da Maré.

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mecanismos serão resultado do desenvolvimento sócio-histórico singular de cada

favela53. Dessa forma, um dos aspectos que se apresenta como particular das

favelas (a criminalização da situação fundiária) apresenta, ao mesmo tempo, grande

diversidade entre as favelas.

Outra questão da categoria e suas determinações é o seu deslocamento no

tempo e no espaço. O que é considerado uma favela hoje na zona sul do Rio de

Janeiro é diferente do que é considerado uma favela na Baixada Fluminense dos

dias de hoje ou no próprio Rio de Janeiro de tempos passados54. Dessa forma, é

necessário entender a categoria de forma relativa a fim de não desloca-la do seu

contexto. No entanto, em alguns casos, a favela apresenta aspectos muito parecidos

com o seu entorno. Se nos mantivermos no exemplo do Rio de Janeiro, a

diferenciação entre favela e entorno é clara na área central ou na zona sul da

cidade, porém, quanto mais nos afastamos dessas áreas em direção aos bairros

periféricos, essa diferença diminui55. Nesses casos, a indiferenciação entre favela e

entorno torna insuficiente entender a favela apenas de forma relativa. É necessário

também entender as relações dos diversos agentes com a favela.

Rafael Soares Gonçalves (2013) analisa o processo histórico de construção

do conceito jurídico de favela e identifica um processo permanente de criminalização

da situação fundiária da favela. Já Adrelino Campos (2005) apresenta a

criminalização das favelas como uma “transmutação” da criminalização dos espaços

quilombolas, um processo também permanente que intitula de “produção do espaço

criminalizado”, no qual a mesma população continuaria a ser criminalizada, primeiro

no quilombo depois na favela. É importante chamar a atenção que as análises de

distintos aspectos do processo histórico apresentam a reprodução da favela como

um espaço subalterno é resultante de um processo permanente de criminalização, o

                                                            53 Aqui não se trata de um descolamento dos processos sócio-históricos das favelas com relação ao restante da cidade ou mesmo do capitalismo de forma geral, mas de reconhecer que, se o Estado abre mão de cumprir determinadas funções no interior das favelas, surge uma autonomia relativa local. A autonomia é relativa porque o Estado, mesmo sem uma atuação condizente com o restante da cidade, atua sistematicamente de forma direta e indireta. Formas de dominação ideológica aqui são de fundamental importância. Boaventura de Sousa Santos (1988, p.14) já havia observado a tendência do direito da favela mimetizar o direito oficial. 54 Essa parece uma constatação simples, mas trabalhos de grande difusão como o Planeta Favela de Mike Davis assumem um conceito absoluto de favela o que tem como resultado a afirmação de populações faveladas de mais de 90% “na Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também com 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)”. 55 Por exemplo, o aspecto morfológico se aproxima tanto pelo aumento das dimensões das propriedades individuais nas favelas, quanto pela diminuição dos investimentos nas edificações da não favela, mas poderíamos ver essa aproximação também pelo nível de renda, infraestrutura, serviços etc.

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que nos trás de volta a ideia da permanência como resultado de processos que não

cessaram ao longo da história. Mais importante aqui é a noção de processo

permanente de criminalização, que traz a dimensão relacional do nosso objeto, cujo

agente mais importante certamente é o Estado. No entanto, tanto Gonçalves (2013),

que, apesar de estar focado na relação entre Estado e favela, também apresenta

muitos relatos da grande mídia, quanto Campos (2005) trabalham a relação não

apenas do Estado, mas da sociedade em geral com as favelas.

Para diminuirmos o risco que corremos de isolarmos nossa análise do

mercado imobiliário em favelas dos processos acumulação do capital e da

estruturação das grandes cidades brasileiras e retomarmos a questão da

permanência das favelas, buscaremos construir algumas notas preliminares, através

da leitura de alguns autores que discutem os diversos papéis que as favelas

desempenham nesses.

2.4.2 Notas sobre o papel das favelas na urbanização brasileira

Uma das interpretações mais difundidas e também das mais polêmicas é a de

Francisco de Oliveira, apresentada primeiro no ensaio “A economia brasileira: crítica

à razão dualista”, publicado em 1972, e reforçado em “O vício da virtude:

Autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”, publicado na revista Novos

Estudos Cebrap em 2006. Francisco de Oliveira (2003 [1972]; 2006) se contrapõe à

representação de que a favela é simplesmente um espaço depositário do

lumpenproletariat. Haveria um exército de reserva, ocupado em atividades informais

e responsável pela autoconstrução, uma forma de produção de habitações

amplamente atribuída às favelas. Para o autor, a autoconstrução teria um papel

essencial no rebaixamento do custo da reprodução da força de trabalho, para ele,

um dos pilares da aceleração da industrialização no Brasil.

(...) Daí derivou uma explicação para o papel do “exército de reserva” nas cidades, ocupado em atividades informais, que para maior parte dos teóricos era apenas consumidor de excedente ou simplesmente lúmpen, e para mim fazia parte também dos expedientes de rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho urbana. O caso da autoconstrução e dos mutirões passou a ser explicativo do paradoxo de que os pobres, incluindo também os operários, sobretudo os da safra industrializante de 1950, são proprietários de suas residências – se é que se pode chamar assim o horror das favelas -, e assim reduzem o custo monetário de sua própria reprodução. (OLIVEIRA, 2003 [1972], p. 130).

Page 81: A produção do espaço na favela - UFRJ

81  

Nos termos de Marx, se o valor da força de trabalho equivale ao tempo de

trabalho socialmente necessário para produzir determinados bens que fazem parte

de um mínimo determinado sócio-historicamente para a sua reprodução, haveria

duas formas de aumentar o mais-valor absoluto: 1) aumentando a jornada de

trabalho, já que o valor da força de trabalho não é sensível à extensão da sua

exploração, ou 2) diminuindo o valor da força de trabalho (além é claro das formas

de acumulação primitiva). A solução que Marx dá para essa segunda forma é a

inovação tecnológica nos ramos industriais que produzem os bens necessários para

a reprodução da força de trabalho. No processo descrito por Francisco de Oliveira,

as duas formas aparecem de modo complementar. O trabalho além das horas

contratuais empregado na construção da casa seria uma forma análoga à extensão

da jornada de trabalho, enquanto o auto empreendimento barateia a produção da

habitação pelo fato de, por vezes, se livrar da apropriação de parte do mais-valor

pelo capital industrial-construtor, fundiário e pelo Estado, além da possibilidade de

produzir habitações com padrão abaixo do normal (sócio-historicamente definido).

Oliveira (2006) nos mostra como realmente o item habitação vai quase

desaparecer dos cálculos governamentais para a determinação do salário mínimo.

Nas pesquisas sobre custo de vida, hoje bastante amplas (naquele tempo já eram suficientemente sofisticadas, feitas em diversos níveis e graus de abrangência diferentes), o item habitação quase desaparece. Isso vai se refletir diretamente na avaliação do custo de sobrevivência. (...) Quando os governos, para orientar a política econômica, calculam o salário mínimo, o custo da habitação desaparece e influencia na fixação do valor. É isso que tem o efeito de rebaixar o salário. (...) Desse ponto de vista, a autoconstrução era estranhamente um mecanismo de acumulação primitiva, pois a casa construída daquela forma não se transformava em capital (OLIVEIRA, 2006, p. 68).

A percepção de que há uma massa de trabalhadores remunerados abaixo do

valor da sua força de trabalho, nesse caso, funciona da seguinte forma: a habitação

é sócio-historicamente consolidada como um dos bens mínimos para a reprodução

da força de trabalho, o que, do ponto de vista do capitalista, é um custo a ser pago

na forma de salário. Se abre-se um precedente para que o trabalhador passe horas

além das suas horas normais de trabalho construindo sua própria casa em uma terra

não remunerada, o custo de reprodução da força de trabalho é diminuída no que se

refere ao trabalho incorporado na construção da casa, à remuneração que

normalmente é paga pelo uso da terra ao seu proprietário e os outros custos já

Page 82: A produção do espaço na favela - UFRJ

82  

comentados. Dessa forma, o capitalista pode baixar os salários no que seria

referente a esses itens, porém, o trabalhador é obrigado a trabalhar horas a mais

que o normal socialmente estabelecido, além de arcar ele próprio com toda forma de

risco que pode representar a terra (“ilegal”, “informal”) não remunerada. Isso, no fim

das contas quer dizer que as horas trabalhadas a mais foram indiretamente

apropriadas pelo capitalista.

Nesse sentido, a superexploração da força de trabalho mediante a não inclusão da moradia na cesta de consumo dos trabalhadores e a transferência de fundos dos trabalhadores aos fundos do capital configuram as principais determinações da renda da terra no espaço urbano nos países dependentes.

Diante do fato de que a moradia, enquanto mercadoria central para a reprodução da força de trabalho, não entra no consumo dos trabalhadores, a solução da habitação por parte deles passa por uma série de mecanismos que variam conforme o padrão de reprodução do capital, o papel do Estado e o contexto histórico-social (TONIN, 2015; MIOTO, 2015). São exemplos desses mecanismos a habitação em cortiços, favelas, coabitação, autoconstrução, loteamentos clandestinos, entre outros. O resultado é uma permanente segregação sócio-espacial e periferização da classe trabalhadora. Sob essas condições, o grau de exploração dos trabalhadores latino-americanos é ampliado, seja porque a periferização aumenta o tempo de deslocamento casa - local de trabalho, seja porque muitas vezes o trabalhador tem que destinar parte do seu tempo livre para prover sua habitação. Mais do que isso, essas formas concretas de superexploração se tornam fontes primordiais de lucro para frações de capital, como no caso do transporte e comércio (TONIN e ARUTO, 2016, p. 10).

A tese de Oliveira que as favelas se tornam meio essencial de barateamento

da força de trabalho parece se confirmar pelo desenvolvimento do espaço urbano

carioca no período de grande industrialização da década de 1950 e 1960. Se

observarmos os mapas desenvolvidos por Maurício Abreu, veremos que a

localização das favelas coincide com a das indústrias. Evidentemente, os eixos

ferroviários são grandes condutores da localização tanto das indústrias como das

favelas, mas a industrialização também parece conduzir a formação de favelas. É

conhecido o fato de os trabalhadores buscarem a moradia em favelas pela

proximidade do trabalho (ABRAMO, 2001, p. 1566) e a correspondência entre a

localização das favelas e das indústrias no momento de franca industrialização

parece um sinal afirmativo das premissas de Oliveira. Com baixo poder de

mobilidade, a classe trabalhadora só poderia se instalar próximo aos postos de

trabalho ou aos eixos de mobilidade que os levariam ao trabalho.

.

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83  

Figura 4: Município do Rio de Janeiro: distribuição das indústrias e favelas em 1960.

 Fonte: Abreu (2010, p. 104 e 128), censo de 1960 e Google Earth.

Além dos já conhecidos esforços industrializantes promovidos pelo Estado, a

autoconstrução aparece em Oliveira como sua base fundamental.

Eu diria que a industrialização brasileira foi sustentada por duas fortes vertentes. A primeira foi a vertente estatal, pela qual o Estado transferia renda de certos setores e subsidiava a implantação industrial. E a segunda eram os recursos da própria classe trabalhadora, que autoconstruía sua habitação e com isso rebaixava o custo de reprodução (OLIVEIRA, 2006, p. 66).

Não se trata de aplicar a análise de forma individualizada: é evidente que

qualquer fenômeno que seja capaz de rebaixar o valor da força de trabalho só pode

fazê-lo se for capaz de se generalizar. O sujeito que autoconstrói terá êxito em

diminuir os seus custos com habitação e poupar ou priorizar outros gastos, porém, a

partir do momento em que essa atividade se generaliza para a força de trabalho de

determinado ramo, os seus salários estarão ameaçados. Tampouco a

autoconstrução é responsável pela industrialização ou pelo rebaixamento dos

salários, mas os três aspectos (autoconstrução, industrialização e rebaixamento dos

Page 84: A produção do espaço na favela - UFRJ

84  

salários) tem como momento fundante a urbanização moderna brasileira.

É importante aqui chamar a atenção para a relação entre a classe dos

capitalistas e a classe dos proprietários fundiários. A terra é um componente de

grande importância no custo da habitação, ou seja, esse item específico que

compõe o valor da força de trabalho põe em confronto capitalista e proprietário

fundiário. Capitalista e proprietário fundiário, um pela redução dos salários e outro

pelo aumento do preço da terra ou dos aluguéis56, buscam a apropriação maior do

valor produzido pelo conjunto da sociedade, o primeiro na forma de lucro e o

segundo na forma de renda. Dessa forma, ainda que a autoconstrução retire do

custo de reprodução da força de trabalho o capital variável empregado na

construção da casa, o custo relativo à renda da terra só pode ser amenizado se

forem ocupados terrenos precários (geologicamente, juridicamente, etc.). Isso

explica porque a população pobre favelada cada vez mais contrate mão de obra

para construir, ainda que na favela. O resultado é que a fuga do confronto entre

essas duas classes apropriadoras do mais-valor pode ter uma importância maior do

que a autoconstrução nesse processo.

Oliveira, no entanto, prossegue seu argumento apontando que o problema da

autoconstrução seria que ela, no lugar de atacar o problema da habitação via capital,

ela o faz por meio dos trabalhadores pobres e dessa forma não cria um mercado

imobiliário.

O mutirão é uma espécie de dialética negativa em operação. A dialética negativa age assim: ao invés de elevar o nível da contradição, ela o rebaixa. Elevar o nível da contradição significaria atacar o problema da habitação pelos meios do capital. Rebaixar o nível da contradição significa atacar o problema da habitação por meio dos pobres trabalhadores. E aí se chega ao seguinte paradoxo: não se cria um mercado imobiliário. Mercado imobiliário no Brasil só existe da classe média para cima. Nas classes populares, não existe. É impossível existir, porque você está de posse exatamente daquilo que não é mercadoria. A casa não pode ser trocada, não tem valor de troca, tem apenas valor de uso, a finalidade de habitar (OLIVEIRA, 2006, p. 72).

E prossegue:

A habitação popular não tem valor de troca porque é impedida por dois processos. Impedida, em primeiro lugar, pelo próprio rebaixamento. Se

                                                            56 Importante lembrar que dentre os provedores dos insumos básicos para a reprodução da força de trabalho, o proprietário fundiário é o único que não pode buscar o aumento dos seus ganhos pelo aumento da produtividade, ou seja, o aumento dos seus ganhos sempre necessita do aumento da renda coletada por unidade.

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85  

decompusermos o custo de uma habitação popular, ele é basicamente força de trabalho do próprio futuro e feliz proprietário. Aí chegamos ao paradoxo de que isso não cria valor, não se constitui em mercadoria (OLIVEIRA, 2006, p. 72).

A casa autoconstruída não é resultado de uma forma de produção capitalista

e, por isso, o capitalista empregador do autoconstrutor pode se apropriar de uma

parte maior do valor, já que não assume mais o custo de remuneração dos

capitalistas envolvidos na produção da casa, mas a visão da casa autoconstruída

como não-mercadoria e não constituída de valor é bastante problemática. Parte do

que pode ser levantado sobre essa questão já foi feito por Sérgio Ferro em artigo de

resposta a Francisco de Oliveira também na revista Novos Estudos. Sérgio Ferro

mostra que há um mercado imobiliário de habitações autoconstruídas.

Em outro ponto de seu artigo, Chico deduz que, em função da autoconstrução e da pobreza, não há mercado imobiliário entre as classes populares. Quando escrevi o texto que citei, havia — e pelo que vi depois, há. Aluguéis de cômodos, barracos, extensões visando locação, vendas, etc. às vezes, trata-se de simples troca de serviços, mas aparece também dinheiro circulando. No começo, o autoconstrutor só pensa em si e sua família. Mas, pouco a pouco, espremido pela miséria, seu valor de uso passa a contar também como valor de troca.

Estudos da mesma época (ABRAMO, PULICI, BALTRUSIS), demonstram que

há um mercado imobiliário em favelas e, em muitos casos, com maior rotatividade

que o mercado imobiliário no restante da cidade. Além disso, é evidente que o

material empregado na construção é mercadoria em sua plenitude, que o trabalho

do autoconstrutor é um trabalho produtor de valor na medida em que é trabalho

socialmente necessário e que, o monopólio do direito de uso da terra gera renda

mesmo sem a existência de um documento jurídico oficial de propriedade57.

João Marcos Lopes, em artigo também em resposta a Francisco de Oliveira,

nos mostra como mesmo no momento da autoconstrução a casa pode ser

construída tendo em vista ganhos posteriores.

“Veja só, gastei quatro anos da minha vida, lutando e trabalhando por este projeto. Investi aqui mais ou menos 400 reais de dinheiro meu durante estes quatro anos. O financiamento vai ficar em 18.500 reais, aproximadamente, e quero pagá-lo no máximo em doze anos...”. E aí concluía: “e veja você: fácil, fácil vendo este apartamento, hoje, por 50 mil reais. Não é ótimo?” (LOPES, 2006, p. 223).

                                                            57 Esta discussão será mais desenvolvida ao longo do capítulo 2.

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86  

A declaração acima demonstra que esse tipo de cálculo não é uma atitude

esporádica e nem faz parte de um fenômeno recente. É evidente que se o

autoconstrutor citado por João Marcos Lopes tem a capacidade de calcular o preço

de venda do imóvel construído, só pode ser um palpite construído a partir de

experiências anteriores e minimamente regulares.

Para além da racionalidade dos indivíduos auto construtores, a realização do

trabalho incorporado à terra enquanto valor apresenta uma dinâmica diferenciada

com relação aos produtos em geral. Os valores de uso incorporados à terra, no

capitalismo, se realizam como valor na forma de renda. Marx (MARX, 2017 [1894], p.

684 e 709) anuncia que a coleta da renda não é uma alternativa do proprietário

fundiário e demonstra através do exemplo do capitalista proprietário. Segundo o

autor, o que aparece para o capitalista como um lucro a mais pelo não pagamento

de tributos na forma de renda a um terceiro, no movimento geral aparece como

renda que compõe os ganhos do proprietário capitalista. Da mesma forma, o

trabalhador que não paga o tributo na forma de renda a um terceiro, e por isso retêm

uma parte maior do salário, apenas tem os seus ganhos decompostos em salário e

renda. Essa renda contempla, tanto o exercício do monopólio sobre a terra em que

se assenta a casa auto construída como o valor do produto imobiliário.

Para Abramo, mesmo que a favela ou a construção mantenha suas

características, as alterações territoriais na cidade podem alterar as posições

relativas das favelas. Ou seja, a posição na cidade como um atributo da edificação é

fator de valorização ou desvalorização dos imóveis e, de alguma forma, devem estar

incorporadas nas estratégias familiares.

Uma favela pode apresentar uma melhoria/piora em sua posição relativa com as alterações territoriais da cidade ainda que ela mantenha ao longo do tempo suas características. Essa característica reflexa das favelas transforma a residência dos favelados (tal qual os ativos imobiliários da cidade formal) em um “capital locacional” que se valoriza/desvaloriza no tempo. A estratégia familiar incorpora esse elemento em seus cálculos inter-temporais orçamentários e passa a acompanhar a evolução da posição relativa do seu “capital locacional” (imóvel-residência) na hierarquia intra-urbana, avaliando, dessa forma, os possíveis benefícios/perdas de eventuais deslocamentos territoriais da unidade residencial familiar (mobilidade residencial) na estrutura intra-urbana. Assim, um reposicionamento desse capital locacional tanto pode significar uma mobilidade ascendente da família, quanto uma queda na qualidade da vida familiar (ABRAMO, 2001, p. 1574).

A imagem que Francisco de Oliveira faz da favela como um espaço

Page 87: A produção do espaço na favela - UFRJ

87  

autoconstruído e habitado pelos mais pobres moradores das cidades é

extremamente simplificadora e torna sua análise insuficiente. Ela esconde a

heterogeneidade dos moradores e a dinâmica dos mercados existentes na favela.

Os dados levantados pela rede OIPSOLO (ABRAMO, BALTRUSIS) demonstram

justo o contrário do que Oliveira apresenta sobre o acesso à moradia nas favelas, ou

seja, que o acesso à moradia em favelas se dá principalmente por relações

comerciais (compra e venda ou aluguel).

Mesmo com os problemas apresentados, a formulação onde a favela aparece

como forma necessária para o rebaixamento do valor da força de trabalho é de

essencial importância para a nossa análise. Afinal, mesmo que o trabalhador acesse

a moradia na favela por outros meios, como aluguel, aquisição, contratação de

serviço para a construção, etc., acreditamos que os custos relacionados à moradia

tendem a ser menores nas favelas se comparados a outros imóveis com posição

semelhante no mapa de acessibilidade da cidade. Dessa forma, além da

autoconstrução em terrenos ocupados (sem relações comerciais), o acesso à

moradia em favelas se dá através de uma classe de proprietários que age dentro

das favelas, algo que Machado (2016 [1967]) optou por chamar de “burguesia

favelada”. Pensar a redistribuição do mais-valor, resultado e resultante da

generalização da favela na urbanização brasileira, tornaria necessário pensar a sua

apropriação por uma pequena burguesia favelada rentista-fundiária, industrial-

construtora, comercial, de serviços etc. Algo no sentido que Milton Santos (2009)

atribuiu aos circuitos inferiores do capital.

2.4.3 As Frações de classe no interior da favela

Para entendermos as lutas em torno do ambiente construído no capitalismo, é

necessário partirmos das contradições de classes. Ainda que existam outros pontos

de partida importantes, entendemos que, devido à tendência à priorização da

dimensão econômica no capitalismo, a divisão de classes estabelecida por ela tem

certo destaque. Partiremos do corte econômico da sociedade que contém menos

determinações, seja ela: capitalistas e trabalhadores.

Para Harvey (1982, p. 7), o capital tende a tratar o espaço construído como

meio de produção e acumulação de capital, e, como o próprio ambiente construído

exige um processo produtivo, ele se torna um dreno para o capital excedente. Em

contraposição, o trabalhador trata o ambiente construído como meio de consumo e

Page 88: A produção do espaço na favela - UFRJ

88  

reprodução de sua vida. Isso produz a tendência à produção de capital fixo a ser

utilizado na produção e circulação em contraposição à produção de fundo de

consumo, a ser utilizado no consumo. No entanto, essa relação apresenta já num

primeiro momento uma série de contradições. Em primeiro lugar, capital e trabalho

não podem existir fora de sua relação. Dessa forma, ainda que o capital trate o

ambiente construído como mero meio de acumulação de capital, todas as formas

específicas de produção de valor exigem a aplicação de trabalho vivo (ou seja, da

mercadoria força de trabalho), por isso, o capital não pode destruir por completo os

meios de reprodução da força de trabalho, incluindo os fundos de consumo. Da

mesma forma, o trabalhador busca valorizar a sua mercadoria (força de trabalho)

para ter acesso a maior quantidade e variedade de bens e fundos de consumo. No

entanto, de forma geral, a luta pela valorização da força de trabalho exige a

produção de melhores condições para a acumulação, ainda que possa existir uma

luta direta pela apropriação do valor na forma de lucro ou salário. Assim, o

investimento em capital fixo pode ser legitimado perante os trabalhadores como

forma de gerar empregos e valorizar a força de trabalho e o investimento em fundo

de consumo pode ser legitimado perante os capitalistas como forma de desvalorizá-

la. Em segundo lugar, o capitalista também precisa reproduzir seu modo de vida, o

que exige o consumo de bens e de espaço, dessa forma, a produção de fundo de

consumo também é uma necessidade do capitalista. O consumo, ainda, é forma

importante de geração de demanda efetiva, isso significa que o capital

superacumulado pode encontrar no aumento dos salários uma forma de realizar o

valor dos seus produtos. Sendo o próprio fundo de consumo um produto do trabalho,

ele pode gerar o mesmo efeito.

Conforme descemos para o terreno do local/singular, torna-se necessário

adentrar as classes para entender como se dão as disputas em torno do ambiente

construído. Aumentando as determinações, veremos uma divisão já exposta por

Marx (2017 [1894], p. 877-894). Aqui, o autor inclui o proprietário fundiário como

uma das classes que se apropriam do montante de valor produzido pela sociedade.

Dessa forma, a apropriação do valor se daria na forma de salário, lucro e renda.

Essa conformação desvela novas contradições. Ao mesmo tempo em que, a

propriedade fundiária se apresenta como um empecilho para a acumulação

capitalista, já que a parte do lucro convertida em renda não pode ser reinvestida e

que aumenta o valor da força de trabalho, pois parte da reprodução da força de

Page 89: A produção do espaço na favela - UFRJ

89  

trabalho necessita do acesso a terra; ela tem um papel positivo para a acumulação,

pois impede o acesso do trabalhador à terra como meio de produção e contribui para

que a terra tenha o seu uso mais produtivo. A partir disso, podemos observar que a

barreira que a propriedade cria ao trabalhador tem um caráter positivo e negativo

para o capital. Isso se dá pelo seu duplo caráter de meio de produção e condição de

vida.

No caso da habitação, a contradição pode transitar da relação entre

trabalhador e rentista (terra como condição de vida) para a relação entre capitalista e

rentista (terra como parte da inversão em capital variável) ou mesmo para a relação

entre capital e trabalho (valor da força de trabalho) a depender da luta de classes.

No caso do Rio de Janeiro, onde foi realizado o trabalho de campo, podemos

considerar uma constante fuga da contradição entre capitalistas e proprietários

fundiários, tensionando as relações entre capitalista e trabalhador e entre

trabalhador e proprietário fundiário e, consequentemente, pressionando de forma

violenta as condições de vida da classe trabalhadora. Harvey (1982, p. 10) aponta a

periferização como estratégia da classe trabalhadora para reduzir a apropriação dos

salários via renda. Poderíamos acrescentar para o nosso caso a formação de

cortiços que garante a altos rendimentos e baixos salários e a favela como fuga das

contradições entre renda e salário e renda e lucro.

A transformação de trabalhadores em proprietários de suas residências (seja

pela produção habitacional via Estado ou por empreendimentos dos próprios

trabalhadores em favelas) pode ser vista como vantajosa para os capitalistas, pois

possibilita aos capitalistas se apropriarem da parte do mais-valor que fluiria para as

mãos dos proprietários das casas dos trabalhadores; divide a classe trabalhadora

em proprietários e locatários e fortalece a propriedade privada como forma

dominante de mediação entre valor-de-uso e sua apropriação (HARVEY, 1982).

Finalmente nos deparamos com a contradição que pretendemos focar no

nosso estudo: uma fração da classe trabalhadora que é proprietária de sua

residência e outra que é sujeita ao inquilinato. Harvey (1982, p. 14) aponta que,

mesmo pertencendo à classe trabalhadora, o proprietário está preso no jogo da

coleta de renda e tende a agir em defesa do seu aumento. Mesmo aquele que não

pretende obter rendimentos através de sua propriedade deve buscar impedir a sua

deterioração, pois ela pode implicar em perda de mobilidade residencial ou mesmo

na depreciação dos valores-de-uso incorporados a terra. Essa primeira configuração

Page 90: A produção do espaço na favela - UFRJ

90  

já coloca em lados opostos essas duas frações da classe trabalhadora, na medida

em que uma defende o aumento do fluxo de valor para o seu imóvel enquanto a

outra depende da sua manutenção ou queda para manter o seu modo de vida.

No entanto, essa não é a única decorrência possível da transformação de

parte dos trabalhadores em proprietários, parte deles pode alugar suas propriedades

para outros trabalhadores. Isso pode acontecer por que o trabalhador acumula mais

de um imóvel ou porque mesmo com apenas um imóvel o proprietário se põe na

condição de locador e locatário, seja para escolher o local e a estrutura da casa

onde vive ou para complementar renda com a diferença dos alugueis. Essa

configuração se diferencia da primeira, pois põe em confronto direto os

trabalhadores na condição de locadores e os trabalhadores na condição de

locatários, já que a renda do primeiro aumenta na medida em que reduz o salário

que o segundo consegue reter. Isso trás consequências adicionais, pois: 1) o

proprietário nesse caso está mais pressionado a agir em defesa da renda que

coleta, já que parte dos seus ganhos passa a depender disso; 2) o conflito torna-se

mais aparente, visto que o contrato de aluguel passa a definir qual parte do salário

de um trabalhador será convertida em renda para o outro e; 3) o proprietário pode se

utilizar de estratégias comerciais com base em seu poder de monopólio para extrair

renda adicional.

Nos dois primeiros casos, apesar de os proprietários se utilizarem de

manobras comerciais para acrescer a sua renda, a propriedade ainda aparece

apenas como reserva de valor com ganhos apenas esporádicos. Porém, assim

como em diversos outros setores (em especial os que dizem respeito à circulação) o

trabalhador toma uma roupagem empreendedora através da informalidade, parte

dos trabalhadores assume essa mesma roupagem e se especializa na produção de

edifícios e extração de renda se apropriando como pode do grande patrimônio

produzido informalmente pelo conjunto da classe trabalhadora, além da sua posição

relativa no restante da cidade. Para além do volume de investimentos, a diferença

qualitativa desse tipo de produção no segmento informal, em relação aos dois

modelos que trabalhamos até agora, se encontra na busca de ganhos construtivos

provenientes da produção do edifício e ganhos fundiários provenientes em especial

da intensificação do uso do solo. Isso tem reflexos importantes na produção do

espaço. Visto que os agentes aqui identificados são capazes de reinvestir os seus

ganhos, podemos conferir a eles uma capacidade de reprodução ampliada e, por

Page 91: A produção do espaço na favela - UFRJ

91  

consequência, de transformação mais centralizada do ambiente construído. Outro

ponto importante a destacar é a busca por ganho fundiário. Em cada tempo-espaço

se estabelece uma tipologia mais lucrativa a depender da cultura, legislação

características geográficas, tecnologia, etc. Dessa forma, a renda da terra carrega a

tendência à homogeneização do produto imobiliário em um espaço-tempo

determinado. A identificação de um agente capaz de modificar de forma significativa

o espaço e que busca em sua atividade produtiva o ganho fundiário deve ter essa

mesma tendência de intervir de forma homogeneizadora sobre o espaço.

A “burguesia favelada”

Os conflitos no interior dos territórios favelados são sistematicamente

encobertos, não apenas no campo ideológico, mas também pelos processos reais

que envolvem o tema favela. Os confrontos diretos que envolvem a população

favelada trazem à tona com muito mais clareza a contradição entre trabalho e

Estado. Podemos exemplificar com os grandes ciclos de remoção, os projetos de

urbanização de favelas, as incursões policiais, a relação largamente estabelecida

entre o fracasso dos programas habitacionais e o crescimento das favelas, etc.

Grande mérito do Francisco de Oliveira (2003 [1972]; 2006) é encontrar na

contradição entre capital e trabalho outros determinantes ofuscados por essa

relação.

A centralidade na contradição entre trabalho e Estado, no caso das favelas,

frequentemente faz com que favela e Estado transformem, ao menos no discurso,

favela em um meio homogêneo. Podemos identificar essa tendência, por parte do

Estado, tanto nas ofensivas contra as favelas como na tentativa de legitimar projetos

que visem sua manutenção. Quando a pauta é a destruição das favelas, os

moradores são vistos como “vagabundos”, “invasores”, “bandidos”, etc. Diminui-se a

condição de cidadania de toda a população. Onde se busca a manutenção, o senso

de “comunidade” torna possível uma aparência de consenso em torno do projeto.

Mesmo em casos como o policiamento comunitário ou as incursões a ideia de

“comunidade” também é acionada, dessa vez em oposição aos “bandidos” ou “não-

cidadãos”. O consenso é criado destruindo a condição de cidadania da parte que se

deseja combater.

Já, do ponto de vista dos trabalhadores favelados, a ideia de “comunidade”

constrói uma cidadania e um poder de atuação que só é possível para eles em

Page 92: A produção do espaço na favela - UFRJ

92  

organizações coletivas. Dessa forma, a construção de um senso de um consenso no

interior dos territórios favelados é útil na defesa de, ou na resistência contra

determinados projetos encampados pelo Estado. Para Machado da Silva (2016

[2002]), após a implementação do programa favela bairro, as favelas do Rio de

Janeiro entraram em uma conjuntura de concorrência pelos projetos de

infraestrutura que, entre outras coisas, fortalece a noção de “comunidade” no interior

das favelas e, ao mesmo tempo, dificulta a organização de um movimento das

favelas em geral.

No entanto, a população favelada contém grande diversidade, não apenas

inter-favelas, mas também intra-favela. Essa população diversa tem interesses

também diversos que em determinados contextos podem se opor. Não vamos aqui,

nos estender no debate sobre essa diversidade, porém para uma melhor análise da

relação entre inquilinos e proprietários é de fundamental importância entendermos o

processo onde uma fração da classe trabalhadora se destaca, se apropriando dos

recursos produzidos pelo conjunto dos trabalhadores nas favelas.

O conceito que mais se aproxima dessa ideia, é o de “burguesia favelada”,

cunhado por Machado da Silva (2016 [1967]). Esses seriam agentes capazes de

capitalizar os recursos internos das favelas através de pequenas produções,

comércios, serviços, ou, no nosso caso, a produção, venda e aluguel de imóveis.

É importante destacar que, por mais que Machado (2016 [1967]) caracterize

como “burguesia favelada” o agente local que concentra o acesso às instituições

supralocais e os meios de acumulação dentro da favela, nenhum dos agentes se

constitui num capitalista nos termos marxistas, para quem a cisão fundamental de

classe se dá entre os que vendem para comprar (M-D-M) e os que compram para

vender (D-M-D), ou trabalhadores e capitalistas. Dessa forma, a “burguesia favelada”

é uma fração da classe trabalhadora, e não uma fração do capital que atua nas

favelas.

Em meio à “burguesia favelada”, há uma fração que nos interessa

especialmente, a que explora o mercado imobiliário. Para cada setor em que opera a

“burguesia favelada”, os conflitos com o restante da população favelada, ou mesmo

com outros setores onde essa “burguesia” opera, aparecem de forma diferente. Para

o nosso caso podemos avançar a partir dos conflitos entre proprietários e inquilinos.

2.5 O mercado imobiliário em favelas

Page 93: A produção do espaço na favela - UFRJ

93  

Neste subcapítulo trataremos da produção acadêmica sobre o mercado

imobiliário em favelas. Identificamos nos trabalho da rede OIPSOLO os trabalhos

mais sistemáticos sobre o assunto no Brasil, em especial os trabalhos de Pedro

Abramo e Nelson Baltrusis que serão tratados a seguir. A análise se desenvolverá

em torno dos seguintes eixos: (1) o acesso à terra e a estruturação do espaço

urbano; (2) caracterização do mercado imobiliário nas favelas e a (3) formação dos

estoques imobiliários. Em seguida traremos algumas notas críticas sobre a produção

acadêmica analisada.

2.5.1 O acesso à terra e a estruturação do espaço urbano

É bastante consolidada a representação do espaço urbano brasileiro como

espaço segregado, tanto no que diz respeito à diferenciação entre níveis de renda e

classes sociais, quanto à distribuição de meios de consumo coletivos públicos e

privados. A distribuição das pessoas ou grupos na cidade e o acesso a esses meios

de consumo coletivos estão diretamente relacionados, no capitalismo, às formas de

acesso à terra.

Sem negar a importância das heranças de um passado colonial,

patrimonialista-escravista e profundamente excludente58, Pedro Abramo (2003, p. 3)

identifica grande importância para a coordenação da ocupação do espaço urbano

em duas lógicas do mundo moderno: o Estado nacional e a generalização da lógica

mercantil. A primeira lógica põe o Estado como coordenador das relações entre

indivíduos e grupos e define a forma e magnitude de acesso à riqueza do conjunto

da sociedade. O acesso ao solo urbano por meio do Estado exigiria dos indivíduos

ou grupos algum acúmulo de capital, seja ele institucional, político, simbólico ou de

outra natureza, que permitisse o seu reconhecimento como sujeito no jogo da

distribuição de riqueza. A segunda lógica seria mediada unicamente pelas relações

de troca, o que no capitalismo resulta na produção ou apropriação do valor como

forma inexorável de acesso à riqueza. A lógica do mercado é unidimensional, a

possibilidade e magnitude do acesso à terra é mediada diretamente pelo acúmulo de

valor na forma monetária dos indivíduos ou grupos (ABRAMO, 2003, p. 1).

No interior da lógica de mercado, o acesso à terra urbana teria duas

expressões institucionais diferentes. “A primeira delas está condicionada por um

                                                            58 Evidentemente essas marcas não aparecem como cicatrizes de um passado colonial, mas são reproduzidos no Brasil moderno.

Page 94: A produção do espaço na favela - UFRJ

94  

marco normativo e jurídico regulado pelo Estado na forma de um conjunto de direitos

(civil, comercial, trabalho, urbanístico, etc.) que estabelecem o marco das relações

econômicas legais” (ABRAMO, 2003, p. 1). A segunda se daria justamente pelas

relações econômicas que se encontram à margem do sistema legal e que definiriam

o campo da economia informal. “Assim, a lógica de mercado de coordenação social

de acesso à terra urbana se manifesta através de relações legais ou ilegais”

(ABRAMO, 2003, p. 1). Como vimos anteriormente, essa relação é bem mais

complexa do que as dualidades formal/informal ou legal/ilegal podem apreender.

Segundo o autor, nos países latino-americanos, bem como em parte da África

e da Ásia, devido à urbanização acelerada, disparidades sociais e dificuldades

financeiras dos Estados, além das condições políticas dos países e dinâmicas

globais, surge uma terceira lógica: a “lógica de necessidade”59. A lógica da

necessidade seria um impulsionador para uma forma de acesso à terra que não

exigiria capital político institucional ou monetário.

A lógica da necessidade é simultaneamente a motivação e a instrumentalização social que permite a coordenação das ações individuais e/ou coletivas dos processos de ocupação do solo urbano. A diferença das outras duas lógicas, o acesso ao solo urbano a partir da lógica da necessidade não exige um capital político, institucional ou pecuniário acumulado; a princípio, a necessidade absoluta de dispor de um lugar para instaurar-se na cidade seria o elemento para acionar essa lógica de acesso à terra urbana (ABRAMO, 2003, p. 2).

A lógica da necessidade moveria um conjunto de ações individuais e coletivas

que promovem a construção das “cidades populares” expressa pelo processo,

ocupação, autoconstrução, autourbanização e, por fim, consolidação dos

assentamentos populares. Em países onde o Estado de Bem-estar promoveu a

produção de habitação, temos a produção de moradias em conjuntos habitacionais

ou lotes urbanizados. Na maioria dos países da América Latina, onde a provisão

estatal de moradias é frágil e descontínua a lógica da necessidade na sua forma

ocupação popular paulatinamente se transformaria na forma dominante de acesso

dos pobres à terra urbana. As três lógicas operariam simultaneamente, sendo a

estrutura intra-urbana resultado do funcionamento das três lógicas de coordenação

social. Nesse modelo teórico, o mercado imobiliário em favelas seria uma variante

que une a lógica do mercado com a lógica da necessidade (ABRAMO, 2007, p. 26).

                                                            59 Apresentaremos em um momento posterior uma crítica à categorização apresentada por Abramo para as lógicas de acesso à terra urbana. Em especial à lógica da necessidade.

Page 95: A produção do espaço na favela - UFRJ

95  

O tensionamento explicitado pelo autor entre a ocupação popular e a provisão

estatal de habitação apresenta sérios problemas se isolados de outros aspectos

impulsionadores da ocupação como forma de acesso à terra. Podemos exemplificar

com três momentos históricos no Rio de Janeiro. No final do século XIX, as primeiras

leis de incentivo à construção de vilas higiênicas populares vieram acompanhadas

da perseguição à forma predominante de habitação das classes populares, o cortiço.

A chamada “guerra aos cortiços” foi amplamente associada por estudos acadêmicos

(ABREU, 2010; VALLADARES, 2005; SILVA, 2005; GONÇALVES, 2013) à

consolidação das primeiras favelas do Rio de Janeiro. O Estado Novo de Vargas

(1930-1945) foi o principal promotor de habitações populares até então, mas a

industrialização acelerada, somada à sub-remuneração na cidade e destruição dos

empregos no campo acelerou o crescimento das favelas ao invés de diminuir. Da

mesma forma, o grande volume de habitações produzidas no Rio de Janeiro pelo

Banco Nacional de Habitação (BNH) e pelo Programa Minha Casa Minha Vida

(PMCMV) de forma alguma freou a demanda por habitação nas favelas e é

amplamente questionado quanto a localização e qualidade construtiva60. Em suma,

as políticas estatais de produção de habitação popular não significam

necessariamente a retração ou diminuição de demanda nas favelas. Nos temos do

Abramo: o crescimento do acesso à moradia popular pela lógica do Estado, não

necessariamente retrai o acesso à moradia pela lógica da necessidade ou pela

lógica do mercado informal.

É evidente que, mesmo que as políticas de provisão de habitação não

melhorem as condições dos trabalhadores nem freiem o processo de ocupação

popular, a sua retirada pode significar um agravamento desses processos, até

porque nada garante que o processo responsável pelo aumento de demanda por

habitação popular vai cessar junto com a produção habitacional, ainda que os

processos de remoção tenham sido em muitos casos apoiados em políticas de

produção de habitação popular. Para Abramo, a crise da produção estatal de

habiutações dos anos 80 nos países latino-americanos se apresenta como causa da

aceleração da ocupação das favelas e consolidação de um mercado imobiliário

informal.

                                                            60 Ainda que seja significativo o número de famílias retiradas de situações de precariedade e risco para os conjuntos do Programa Minha Casa Minha Vida as avaliações da localização dos conjuntos comparada com a das antigas residências apontam para um processo de precarização em contrapartida.

Page 96: A produção do espaço na favela - UFRJ

96  

A crise dos anos oitenta e dos sistemas nacionais de provisão habitacional em praticamente todos os países latino-americanos terá duas grandes consequências. A primeira foi um incremento do ciclo de ocupação e sobretudo o seu aparecimento em alguns países onde esse fenômeno não era muito presente (Uruguai, Paraguai). A segunda consequência da crise dos anos oitenta foi a consolidação e a potencialização de um mercado informal de terras urbanas (ABRAMO, 2007b, p. 27).

Abramo (2003) subdivide o mercado de terras informal popular em dois

grandes submercados: o submercado de loteamentos e o submercado de áreas

consolidadas. O submercado de loteamentos opera nas periferias das cidades,

fracionando glebas e constituindo-se em principal vetor de expansão da malha

urbana e dinâmica de periferização marcada pela inexistência ou precariedade de

infraestrutura, serviços e acessibilidade urbana.

A estrutura oligopólica na formação dos preços é um dos fatores da alta rentabilidade mercantil dessa atividade, mas a flexibilidade no ajuste dos produtos e na adequação familiar às formas de financiamento informal é um fator de atratividade para os setores populares. Essas duas características articulam o aspecto de modernidade oligopólica e de flexibilidade pós-moderna em relação à oferta de lotes informais com uma dimensão tradicional de personalização da relação mercantil, definindo um nexo moderno-tradicional de natureza nova no mercado informal que assegura a sua atratividade tanto para os “urbanizadores piratas” quanto para a demanda popular. Os produtos desse sub-mercado de loteamentos são relativamente homogêneos, e os seus principais fatores de diferenciação nos remetem a dimensões físicas, topográficas e às externalidades exógenas relativas à posição do loteamento na hierarquia de acessibilidades e de infraestrutura urbana. Nesse sentido, a produção informal de lotes pode adquirir uma certa economia de escala, ainda que a temporalidade da venda destes lotes seja muito instável e depende de fatores externos às variáveis do próprio mercado informal (ABRAMO, 2007, p. 35).

O submercado de áreas consolidadas apresenta aspectos bem distintos do

submercado de loteamentos. Este submercado opera na compra, venda e aluguel

de imóveis existentes e sua ampliação se dá predominantemente pela intensificação

do uso do solo, ou seja, na densificação das favelas, seja por fracionamento de lotes

e edificações ou por verticalização. Abramo aponta dois processos que alimentam a

densificação das favelas: a transformação de moradores em locadores informais

através de ampliações e subdivisões e a preferência dos locatários informais por

imóveis pequenos devido a sua reduzida capacidade aquisitiva (ABRAMO, 2007, p.

39). A limitação apresentada para a ampliação desse mercado o torna um mercado

com estrutura concorrencial, porém com oferta racionada, ou seja, a oferta nas

áreas populares informais consolidadas é inelástica. Abramo (2007, p. 37) aponta

Page 97: A produção do espaço na favela - UFRJ

97  

também que este mercado apresenta externalidades específicas e destaca duas

delas, a primeira é a liberdade construtiva, sem mediação do Estado; a segunda é o

que o autor chama de “externalidade comunitária”, está ligada aos laços de

vizinhança e vantagens relacionadas ao estabelecimento de uma rede social.

Essa divisão dos submercados informais têm se apresentado como uma

questão mais complexa. O fato de as novas favelas hoje surgirem, em sua maioria,

na periferia, torna difícil a diferenciação entre as duas tipologias. Ao mesmo tempo,

as periferias podem ter um processo de consolidação mais ou menos avançado e as

novas favelas apresentam características que tendem a ser distintas das

apresentadas por Abramo.

2.5.2 Caracterização do mercado imobiliário nas favelas

Abramo (2003, p. 7; 2005, p. 12); aponta para três resultados das pesquisas

empíricas61 sobre o mercado imobiliário nas favelas: 1) as favelas possuem um

volume de transações ligeiramente maior que o mercado imobiliário formal, 2) o

gradiente de preços do mercado imobiliário informal não acompanha o gradiente de

preços dos bairros legalizados contíguos às favelas e 3) não foi encontrado um

padrão absoluto de proximidade moradia-trabalho para os moradores de favelas.

O primeiro resultado é importante, pois demostra que há um mercado

consolidado, ou seja, ele não é ocasional. Outro aspecto, que se desdobra desse, é

que o mercado imobiliário informal em áreas consolidadas não é errático, ele

obedece a uma lógica.

Quando vemos o percentual de rotação do estoque imobiliário do mercado informal nas favelas, verificamos que ele apresenta, em média um patamar ligeiramente superior ao do mercado formal sinalizando uma relativa regularidade no funcionamento desse mercado. Da mesma maneira, quando tabulamos os preços praticados no sub-mercado de assentamentos consolidados confirmamos a hipótese de um mercado onde os preços não apresentam um comportamento errático; eles obedecem uma certa lógica e regularidade revelando que ha efetivamente um funcionamento não-aleatório no mercado informal em favelas. Em outras palavras, o volume e o patamar de preços das transações imobiliárias confirmam a sua existência enquanto mercado regular que regula o acesso a terra urbana nas favelas consolidadas, e portanto a possibilidade de definirmos um objeto de pesquisa (ABRAMO, 2005, p. 12).

                                                            61 Segundo o autor, “das 15 favelas de diferentes tipos e localização selecionadas em toda a cidade para compor um conjunto representativo das favelas cariocas, foram entrevistados moradores que estavam vendendo seus imóveis, e aqueles que haviam acabado de comprar ou alugar um imóvel” (ABRAMO, 2003).

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98  

Há polêmica sobre o segundo resultado. Segundo Abramo, haveria uma

lógica interna de formação dos preços e que deveria ser identificada e a partir de

variáveis e características do território das favelas. O descolamento da formação dos

preços nas favelas e em seus bairros contíguos se daria pela insubstitutibilidade

entre o produto moradia na favela e o produto moradia nos bairros contíguos. Isso

não quer dizer que quando intervenções modificam toda uma região da cidade os

preços não possam variar conjuntamente. Por exemplo, com a implementação das

UPPs, houve uma sensível valorização dos imóveis dos bairros do entorno. Seria

difícil imaginar que intervenções como o Porto Maravilha também não

influenciassem no mercado imobiliário das favelas do porto, mas realmente há de se

reconhecer uma barreira relacionada à insubstitutibilidade entre favela em área

central e seu entorno. No entanto, essa barreira deve diminuir em áreas mais

periféricas. Além disso, ao que parece, a amostra levantada por Abramo não permite

esse tipo de conclusão. Não teríamos aqui, condições de confrontar esses dados,

além de, esse não ser o ponto central da pesquisa.

O terceiro resultado, em parte pode ser associado à precarização dos

contratos de trabalho. Se o emprego não é garantidor da reprodução do trabalhador

de forma integral ou por um tempo mais prolongado, pode ser mais vantajoso estar

próximo a oportunidades de complementação da renda (que podem se tornar a

renda integral do trabalhador em determinados momentos), do que morar próximo

ao posto de trabalho. Ao mesmo tempo, o próprio posto de trabalho pode se alterar

num ritmo em que pode não ser vantajoso o processo de mudança. Outro fator

importante é que, apesar da atividade geradora de renda ter peso fundamental na

vida do trabalhador, há outras dimensões que podem pesar na escolha do local de

moradia, como laços familiares, redes sociais, atividades de estudo, de lazer,

religiosas, etc. A maior mobilidade do trabalhador, se relacionada a momentos

históricos passados, permite que o trabalhador considere outras dimensões da vida

na escolha do local de moradia.

Para uma parcela das novas gerações, a noção de proximidade de uma fonte de rendimento perde a sua dimensão territorial stricto senso e passa a adquirir uma conotação de rede de relações. A oportunidade de um eventual rendimento estaria vinculada a amplitude e as possibilidades abertas pela rede (de relações parentais, pessoais ou religiosas). Essa rede, em geral, se manifesta de forma difusa em termos territoriais. Nesse sentido, a oportunidade de emprego não estaria necessariamente vinculada a proximidade física de uma demanda por mão de obra como no caso de

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99  

uma fabrica (favela Nova Brasília nos anos 40 e 50 e favela Fernão Cardim nos anos 50 e 60), canteiro de obras da indústria da construção civil (favela da Rocinha e Vidigal nos anos 70 e 80), mercado de trabalho para domésticas (favelas da Zona Sul) (ABRAMO, 2001, p. 1567).

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, segundo Abramo (ABRAMO, 2001, p.

1567 e 1568), verificou-se que importante parcela da população trabalhava na

própria favela. Isso implica que a favela não apenas tem uma concentração de

atividades no ramo produtivo, de comércio e de serviços, mas, também, que essas

atividades empregam preferencialmente os moradores da própria favela. Segundo o

autor, confiança e reciprocidade são importantes atributos nas atividades mercantis

endógenas nas favelas, o que reafirma a baixa impessoalidade das relações de

mercado nas favelas indicada por Machado.

Abramo62 constata que a renda dos compradores é um pouco mais alta que a

dos vendedores, “indicando uma tendência de consolidação das faixas

intermediárias nas favelas pesquisadas, isto é, uma tendência de redução do

percentual das faixas de rendimento dos extremos e uma perspectiva de maior

homogeneidade em termos de rendimento familiar (com a exceção das

comunidades que apresentaram o grau de violência sistemático e/ou sazonal forte)”

(ABRAMO, 2003, p. 10). O grau de instrução dos locatários é em média superior ao

grau de instrução dos compradores e vendedores, o que, segundo Abramo, pode ser

um fato explicativo para os altos preços dos aluguéis. No entanto, pode também

significar um reflexo das diferenças geracionais entre os segmentos analisados e a

diferença do grau de instrução entre as gerações. Outro aspecto está relacionado à

forma de pagamento, onde temos em 66,5% dos casos de compra nas favelas

pesquisadas o pagamento “à vista”, enquanto em 16% das transações há algum

mecanismo de parcelamento63. Quanto à origem dos recursos, predominam a venda

de outro imóvel (27%), empréstimos de parentes (25%) e poupança (18%), enquanto

que “a indenização trabalhista responde a apenas 11,5% da poupança para a

aquisição do domicílio nas favelas” (ABRAMO, 2003, p. 11). As operações de

compra e venda, no geral, predominam na razão de 2 para 1 em relação aos

aluguéis. Porém, em favelas pesquisadas onde o mercado de imóveis é

completamente inelástico, como Tijuquinha e Pavão-Pavãozinho, a relação se

                                                            62 Fonte dos Dados: Abramo,2002. OIPSOLO/IPPUR/UFRJ. 63 Abramo (ABRAMO, 2003) não deixa claro em que situação está o restante da porcentagem, mas dá a entender que se divide entre troca direta e “sem informação”.

Page 100: A produção do espaço na favela - UFRJ

100  

inverte. Outro dado da pesquisa é que 72% dos compradores de imóveis obtiveram

informações do imóvel adquirido através de amigos e parentes. Reforçando nosso

pressuposto de que há uma lógica mercantil nas favelas anterior à existência de

práticas recorrentes de mercado, Abramo (2003), em seus resultados empíricos,

constata que os imóveis ofertados já haviam sido objeto de transação de

compra/venda no passado. Finalmente, a pesquisa informa que o padrão de

mobilidade residencial (tanto na favela como na cidade formal) se dá dentro da

própria área. Nas favelas, 57% dos compradores de imóveis tinham domicílios

anteriores na mesma favela.

2.5.3 Formação dos estoques imobiliários

Segundo Abramo (2007b, p. 40), “a oferta de locação, em geral, resulta de

fracionamentos e/ou extensão da unidade residencial ou da subdivisão do lote

original com edificação”. Assim, a resultante em ambos os casos seria a

intensificação do uso do solo. Abramo acaba descartando, já nos pressupostos, a

possibilidade de aquisição de lotes e unidades, ou seja, a centralização do estoque

já existente. É evidente que a maximização dos ganhos, mesmo nesse movimento

de centralização dos estoques, levaria a uma tendência de intensificação do uso do

solo, porém, a aquisição em condições favoráveis e a desproporção entre os preços

de aluguel e os preços de compra/venda podem em si gerar ganhos significativos. O

próprio autor chama a atenção para o fato de o preço dos aluguéis nas favelas do

Brasil, em 2006, ser, em média 2,37% do preço de comercialização, enquanto os

preços dos imóveis nos mercados formalizados tendem a estar abaixo de 1%

(ABRAMO, 2007b, p. 40 e 41).

Fato importante é que a locação ganha importância no acesso à moradia em

favelas. Segundo Abramo (2007, p. 39), a participação do mercado de locação

passa de 15%, em 2002, para 29%, em 2006. Esse crescimento estaria associado à

precarização do mercado de trabalho e à incapacidade de poupança familiar para

adquirir casa ou lote, mesmo no mercado informal.

Abramo (2007b) desenvolve uma caracterização do processo de formação

dos estoques imobiliários em favelas. Para o autor, a produção da moradia nas

favelas é resultado de um esforço familiar que pode envolver a autoconstrução ou a

contratação de mão de obra, mas, de qualquer forma, não envolve um agente

especializado na produção recorrente e sistemática de moradia nas favelas.

Page 101: A produção do espaço na favela - UFRJ

101  

Nos APIs [área popular informal] a produção da moradia é o resultado do esforço familiar após a aquisição de um lote, uma laje ou um lote com alguma benfeitoria edificada. Esse esforço pode se realizar por um trabalho de autoconstrução, por uma poupança familiar que permite a contratação de mão de obra que edifica a moradia (produção por encomenda) ou por uma combinação dos dois procedimentos anteriores. Nesse caso, a oferta de moradias novas informais por um agente especializado na sua produção e comercialização e que atua de forma recorrente nesse mercado não é a forma mais corrente e a sua manifestação é uma exceção na maior parte dos MIS [mercado informal de solo] das grandes cidades latino-americanas. Assim, a oferta do bem habitacional no mercado informal é uma edificação que foi construída por um processo individualizado e sob o comando de uma família que normalmente habita ou habitou essa edificação como sua moradia (ABRAMO, 2007b, p. 5).

Na citação acima fica evidente que, para o autor, o mercado imobiliário em

favelas é alimentado por moradias construídas a priori para a moradia da própria

família construtora. Dessa forma, o autor aponta como forma única de expansão dos

estoques imobiliários informais o fracionamento e ocupação de glebas urbanas e

peri-urbanas.

Propomos como uma hipótese de trabalho que o mercado primário do MIS seja definido exclusivamente pelo mercado fundiário. Em outras palavras, o mercado primário do MIS é composto de um mercado que oferece lotes informais e irregulares a partir do fracionamento e/ou ocupação de glebas urbanas ou peri-urbanas.(...) Quando o acesso ao lote se realiza por comercialização (transação de compra e venda), podemos identificar um mercado primário do MIS. A atividade desse mercado primário não modifica o estoque edificado informal, porém cria as condições necessárias para o seu crescimento, pois permite o acesso das famílias pobres a um solo urbano (ABRAMO, 2007b, p. 6).

Isso implica que, para o autor, os imóveis do mercado primário informal são

vendidos apenas na forma não edificada. Dessa forma, o crescimento do estoque

edificado se daria por processos individuais após a compra de imóveis não

edificados em áreas peri-urbanas, enquanto o mercado secundário informal se daria

pelas operações de compra e locação de imóveis nas favelas consolidadas.

Essas famílias serão os agentes efetivos do crescimento do estoque edificado informal e esse crescimento, normalmente, não é motivado por uma comercialização imediata e recorrente que caracterize essas famílias como “produtores” de bens habitacionais para o mercado. O crescimento do estoque edificado informal é o resultado de uma infinidade de processos individualizados, descentralizados e autônomos de produção de habitações objetivando o uso privado e familiar por aqueles que comandam a sua edificação. (...) Assim, a comercialização de habitações informais, em sua grande maioria é com imóveis existentes do estoque imobiliário informal. Os imóveis novos informais produzidos para serem comercializados, geralmente, representam um fracionamento do lote original familiar, seja verticalizando, seja ocupando parte do lote e/ou casa (produção de

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102  

quartos), e a manutenção da residência da unidade familiar original (ABRAMO, 2007b, p. 6).

Dessa forma, Abramo identifica uma primeira grande diferença do mercado

informal em relação ao formal: a ausência de promotores imobiliários que atuem de

forma regular. Haveria uma grande circulação do estoque existente e um

considerável mercado primário de terras em áreas peri-urbanas, porém, a produção

das edificações seria pulverizada e individual pela falta de tal estrutura.

Em relação às características de funcionamento do mercado, o MIS apresenta uma primeira grande diferença em relação ao mercado formal. A inexistência de promotores imobiliários que atuem de forma regular na produção de imóveis novos informais para a comercialização em mercado e a pequena magnitude de imóveis novos informais produzidos por unidades familiares para comercialização, transforma as transações do estoque imobiliário informal na verdadeira oferta habitacional do MIS (ABRAMO, 2007b, p. 6).

2.5.4 Notas críticas sobre a caracterização do mercado imobiliário nas favelas

As notas críticas apresentadas a seguir giram em torno de um eixo: a relativa

homogeneização dos moradores das favelas.

Quando Abramo apresenta o que identifica como lógicas de acesso à terra

urbana coordenadas pelo Estado, pelo mercado e pela necessidade, imprime a

noção de necessidade aos assentamentos ditos informais e, dessa forma, ao

mesmo tempo em que associa toda a ilegalidade urbana à pobreza (já que os

pobres só poderiam acessar a terra pelo Estado ou pela necessidade enquanto os

ricos e a classe média acessariam pelo mercado), o autor os absolve identificando o

Estado como responsável pela falta de opção, já que a lógica do Estado seria a

única forma de acesso à moradia na cidade “formal” para as classes populares.

Porém, a ilegalidade da terra não é exclusividade dos assentamentos populares e,

como foi argumentado durante esse primeiro capítulo, há uma diversidade intra e

inter favelas para a qual a “lógica da necessidade” de Abramo se mostra suficiente.

Dessa forma, a caracterização de uma lógica da necessidade se torna um juízo valor

que obscurece os agentes que produzem o espaço na favela e vai ter

desdobramentos na análise de Abramo. Além disso, a necessidade é categoria

dinâmica e sócio-histórica condutora do metabolismo entre homem e natureza. No

capitalismo, a necessidade aparece como componente fundamental dos valores de

uso, ou seja, da lógica de mercado. Reduzir a necessidade a um mero componente

Page 103: A produção do espaço na favela - UFRJ

103  

da pobreza, ou seja, da falta de acesso ao capital monetário, político, etc.

empobrece a categoria.

Como defendemos antes, as favelas devem ser entendidas como partes

imanentes da urbanização moderna brasileira. A formação das favelas carrega como

componentes históricos o racismo herdado pela sociedade escravista e reproduzido

de forma estrutural pela sociedade moderna e a criminalização (e em alguns casos a

extinção) das formas de habitação dos trabalhadores pobres da cidade. Porém, o

componente histórico não basta para explicar a manutenção e reprodução dessa

forma de organização ao longo de mais de um século. Sua manutenção deve ser

explicada pela própria estrutura da sociedade moderna. Dada a estrutura

extremamente desigual das grandes cidades brasileiras e os baixos níveis salariais,

podemos dizer que o alto valor das propriedades causado pela tradição rentista

patrimonialista somado ao histórico pressionamento para baixo dos níveis salariais

causa um conflito entre capitalistas produtivos e rentistas fundiários onde a produção

da habitação locados em terrenos frágeis ou de baixo valor comercial se apresentam

como opção de fuga do conflito estabelecido. Dessa forma, não se pode negar os

diversos aspectos da formação das favelas (culturais ou como forma de resistência)

que dão a elas seu caráter particular. Porém, a permanência histórica da favela

como fenômeno comum às grandes cidades do capitalismo periférico pode ser

entendida como forma de pressionar os salários para baixo impactando apenas

indiretamente no valor da terra.

Fica evidente no decorrer da produção de Pedro Abramo, que o levantamento

dos dados e a explicação para os resultados estiveram estruturados nas

preferências dos demandantes e essa preferência no mercado de trabalho. A

demanda estaria resumida aos trabalhadores com pouca mobilidade. No polo oposto

das transações se encontram vendedores e locadores fortuitos, meros

complementadores de renda. A formação dos estoques se limitaria a subdivisões e

pequenas ampliações. Essa simplificação na caracterização dos compradores e

vendedores das favelas faz com que Abramo dê pouca importância aos agentes

internos. A crença na impossibilidade de intervenção desses agentes na produção

do espaço transforma a favela em espaço estático, onde a única dinâmica possível

se encontra nas mudanças de preferência da demanda e na mobilidade residencial

dos moradores. Evidente que o mercado imobiliário nas favelas não é estruturado

por grandes capitais imobiliários, mas as diversas formas em que se desenvolvem

Page 104: A produção do espaço na favela - UFRJ

104  

os poderes e se distribuem os recursos devem ter forte influência na dinâmica do

mercado. Dessa forma, é necessário caracterizar os agentes, os poderes e os

dispositivos de regulação, tanto para complexificar o estudo da forma mais geral de

funcionamento do mercado imobiliário em favelas quanto para lançar bases para

trabalhos específicos sobre cada território. Os próximos capítulos se dedicam a essa

tarefa.

Page 105: A produção do espaço na favela - UFRJ

105  

3 CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA A FORMAÇÃO DE UM

MERCADO IMOBILIÁRIO EM FAVELAS

Este capítulo está dedicado ao desenvolvimento da discussão sobre as

condições necessárias para o desenvolvimento de um mercado imobiliário regular,

que, não sendo providas de forma plena pelo Estado, apresentam desenvolvimento

particular nas favelas. Duas dessas condições foram identificadas no capítulo

anterior, sejam elas: a propriedade da terra e a separação entre propriedade e

usufruto. A terceira é a regulação da construção. Essas três condições identificadas

conformam três subcapítulos a serem trabalhados nesse capítulo.

3.1 A propriedade da terra

Como foi discutido no subcapítulo “1.1 notas sobre a renda fundiária”, a

propriedade fundiária moderna é condição indispensável para que parte do valor

produzido pelo conjunto da sociedade flua na terra. Isso significa que, de alguma

forma, devem ser criadas as condições mínimas para o desenvolvimento dessa

forma específica de propriedade, pelo menos nas favelas onde existe um mercado

imobiliário regular. Dessa forma, consideramos que, assim como a propriedade

fundiária moderna pôde se desenvolver de forma particular em cada país, o fato de

as propriedades nas favelas serem apenas parcialmente (muitas vezes

indiretamente) regulamentadas e fiscalizadas pelo Estado faz com que o

desenvolvimento da propriedade nessas áreas apresente particularidades com

relação à propriedade plenamente formalizada pelo Estado e ao mesmo tempo

apresente singularidades para cada favela. É importante destacar que não há uma

ausência absoluta do Estado no que diz respeito à regulamentação e fiscalização da

propriedade nas favelas, pois os valores éticos e morais que sustentam a

propriedade são mantidos pelo Estado. Além disso, instituições como a polícia e a

justiça são acionadas de forma recorrente pelos moradores das favelas para a

manutenção de suas propriedades. Como já apontamos no início do presente

trabalho, a propriedade fundiária aqui é entendida como relação social e não como

forma jurídica oficial. Assim, nessa dissertação, o proprietário da terra é quem detém

o monopólio de uma parte delimitada do globo e coleta renda, e não o proprietário

oficial que por algum motivo não exerce o direito sobre sua propriedade.

Apresentados esses primeiros pressupostos, é imperativo que a análise se

Page 106: A produção do espaço na favela - UFRJ

106  

inicie pela precariedade da regulação da terra e da construção pelo Estado no

interior das favelas e as formas de “compensação” desenvolvidas na escala local.

Boaventura de Sousa Santos (1999, p. 2) defende que, devido à centralidade da

mercadoria terra em nossa sociedade, o mais esperado é que os desenvolvimentos

das formas jurídicas nas favelas busquem a compensação dessa precariedade.

Segundo o autor, “A intervenção da Associação de Moradores neste domínio visa

constituir como que um ersatz64 da protecção jurídica oficial de que carecem”

(SOUSA SANTOS, 1988, p. 14).

Em qualquer sociedade moderna ou em vias de modernização, a terra tende a ser considerada como um recurso de muito valor, tanto em áreas urbanas como em áreas rurais. Desta maneira, o sistema jurídico tende a desenvolver medidas e estratégias através das quais a segurança e a estabilidade das relações sociais que envolvem a terra estejam garantidas. Como diz W. S. Holdsworth, “as regras que regem a maneira pela qual a terra pode ser possuída, usada ou alienada devem ser sempre de muita importância para o Estado. A estabilidade do Estado e o bem-estar dos seus cidadãos em todas as épocas dependem consideravelmente do direito de propriedade sobre as terras”65. (An Historical Introduction to the Land Law, Oxford, 1927, p. 3.) Não admira, pois, que em Pasárgada se tenham desenvolvido mecanismos jurídicos informais e não oficiais destinados a garantir o mínimo de segurança e de estabilidade das relações sociais centradas na terra e na habitação, uma vez que, pelas razões apresentadas no texto, tal estabilidade e segurança não podiam ser garantidas pelo direito oficial brasileiro (SOUSA SANTOS, 1999, p. 2 e 3).

É importante ressaltar que, segundo o autor, esses mecanismos jurídicos

aparecem como uma mimese mais ou menos bem sucedida dos mecanismos

jurídicos oficiais, ou seja, não aparecem como formas divergentes do direito oficial.

Se considerarmos que as favelas são formadas por sujeitos inseridos dentro de uma

mesma sociedade que, mesmo com suas particularidades, compartilham da mesma

forma de sociabilidade, não é de se espantar que os mecanismos jurídicos locais

apresentem tendências a reproduzir a forma de sociabilidade típica do capitalismo

com as especificidades dos territórios em que estão inseridos66. Boaventura de

Sousa Santos aponta para essa tendência. Segundo o autor, o direito de

                                                            64 Algo que substitui, pode ter um significado pejorativo de suplência ou não. 65 Hodsworth descreve a propriedade privada moderna. Essa descrição não pode ser considerada trans-histórica como quer o autor. O uso da terra deve ser socialmente gerido “para o bem estar dos seus cidadãos”, porém o direito de propriedade não é trans-histórico, muito menos o Estado ou a necessidade de regras de alienação da terra (o que presume a propriedade privada). 66 As favelas brasileiras só podem tomar como referência o direito brasileiro, não por falta de conhecimento de outras formas, mas porque é o direito oficial que o legitima perante a sociedade em que está inserida (SOUSA SANTOS, 1988).

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107  

Pasárgada67 faz uma inversão da norma básica da propriedade, onde:

A ocupação ilegal (segundo o direito do asfalto) transforma-se em posse e propriedade legais (segundo o direito de Pasárgada). Efectuada esta inversão, as normas que regem a propriedade no direito do asfalto podem ser selectivamente incorporadas no direito de Pasárgada e aplicadas na comunidade (SOUSA SANTOS, 1988, p. 14).

Alex Magalhães (2010), em sua tese de doutoramento, resgata os conceitos

do direito de Pasárgada e busca uma atualização trazendo à tona o debate em torno

da posição de Boaventura de Sousa Santos. Um dos autores levantados para esse

debate é Luciano Oliveira (2003), autor que constrói apontamentos no mesmo

sentido. Para Oliveira (2003; MAGALHÃES, 2010, p. 121) o pluralismo jurídico ou

sociológico não se apresenta como uma positividade própria, mas como uma

consequência de uma negatividade, ou seja, o direito da favela não se põe em

contraposição ao direito oficial, mas o afirma, ocupando os seus vazios.

Magalhães (2010) traz também a posição de Eliane Junqueira, que, no

mesmo sentido de Oliveira, afirma que o direito da favela não tem a capacidade de

concorrer com o direito oficial.

No caso brasileiro, o fenômeno da pluralidade não constitui movimento originado a partir da necessidade de estabelecer polos de regulação concorrentes à regulação pelo Estado (como no caso dos EUA), nem de substituir um Estado regulamentador por outro tão somente regulador (como no caso da França). Aqui, o Direito só seria produzido de forma paralela à ordem jurídica estatal, em razão do profundo vazio de poder derivado da ausência de um Estado regulamentador, que nunca se preocupou em fazer-se presente nas áreas marginalizadas, a não ser através da polícia (MAGALHÃES, 2010, p. 123).

Para a autora, o sentido em que atua o “direito comunitário” é de fundamental

importância.

No caso europeu, aquilo que Boaventura Santos designou Direito comunitário representaria uma estratégia de saída do Estado, em direção à sociedade civil, formalizando-se um outro Direito, criado pelas camadas populares e não pelo Estado, num movimento centrífugo. Já no caso brasileiro, e também latino-americano, o movimento seria centrípeto, visto

                                                            67 Sousa Santos define o direito de pasárgada como: “um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interacção jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam os moradores das favelas, por ser o direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto, com pavimentos asfaltados)” (SOUSA SANTOS, 1988, p. 14). Apesar de trata-lo em sua definição como um direito paralelo, Sousa Santos estabelece relação entre o direito de Pasárgada e o direito jurídico estatal e constrói o conceito de direito de Pasárgada mais como um direito que ocupa as brechas do direito estatal do que como um direito que corre em paralelo.

Page 108: A produção do espaço na favela - UFRJ

108  

que procura incorporar o Direito comunitário no ordenamento jurídico estatal (MAGALHÃES, 2010, p. 123).

Não queremos fazer uma discussão aqui sobre a validade ou não das teorias

da pluralidade jurídica ou mesmo debater sobre a capacidade emancipatória do

direito da favela, mas nos é muito importante a convergência desses autores na

ideia de que o direito se desenvolve aproximando-se do direito jurídico oficial. Ou

seja, o direito da favela tende a afirmar o direito de Estado68. Por exemplo, segundo

Magalhães, as pesquisas em Recife teriam mostrado que os invasores não

contestam o direito de propriedade, mas, sim, querem se tornar proprietários, do

mesmo modo que todas as demais pessoas que vivem sob o sistema capitalista

(MAGALHÃES, 2010, p. 125). O direito negativo ao Estado seria possível em

insurgências revolucionárias ou no direito de outras formas de sociedade, como no

caso das comunidades indígenas.

No entanto, para Alex Magalhães, o direito da favela não pode ser visto como

mera transposição do direito estatal, mas um processo complexo e conflituoso.

Em nossa compreensão, a “normalização do Direito de Pasárgada” representa mais do que a mera oficialização do Direito da favela, que seria pura e simplesmente transposto ou incorporado ao sistema normativo estatal, mas significaria, sobretudo, a sua transformação conflituosa, ditada pelo processo de reconhecimento, ao qual se submete, o qual, igualmente, também não ocorre de maneira mecânica ou neutra, mas configura um processo complexo e contraditório (MAGALHÃES, 2010, p. 142 e 143).

Se não há um agente centralizador no desenvolvimento do direito da favela

como o Estado que age na unificação do território nacional, esse desenvolvimento

vai depender em parte dos desenvolvimentos sócio-históricos singulares de cada

favela, ou seja, das suas condições materiais. Essa formulação não se põe em

oposição à tese de que o direito da favela é tendencialmente afirmativo em relação

ao direito oficial, mas chama a atenção para as determinações locais. Podemos

fazer um paralelo com a noção de que as “características organizacionais das

favelas parecem fazer com que elas funcionem como uma espécie de agentes

refratores de certos fatores da sociedade global que influenciam as atividades e o

comportamento político de seus moradores” (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967], p.

35). No entanto, podemos pensar essa relação no sentido inverso, pois as

                                                            68 Essa situação se aproxima do que Charterjee (2004, p. 40) classificou como sociedade política e que, segundo Ananya Roy (2017, p. 10), envolve reivindicações por habitação e subsistência por “grupos da população cuja própria subsistência ou moradia envolvem a violação da lei”.

Page 109: A produção do espaço na favela - UFRJ

109  

características organizacionais de ordem local estão presentes não apenas nas

favelas. O que faz com que essas características se sobressaiam nas favelas é

exatamente o vazio institucional deixado pelo Estado, ou seja, a negatividade

apontada por Oliveira (2003), e que passa a ser ocupado pelas organizações de

nível local. Dessa forma, as características organizacionais de nível local

determinariam as singularidades das formas jurídicas de cada favela, mas o que

determinaria o caráter “refrator” das favelas estaria na relação entre Estado e favela.

Podemos entender como “refratores” no caso da propriedade fundiária, os agentes

que de certa forma estabelecem as “normas” e “regras” para a sua regulação. Esses

agentes têm formas de atuação e interesses específicos e isso deve se refletir na

instituição das normas que regulam a propriedade.

Podemos, dessa forma, dividir os determinantes da propriedade fundiária na

favela em dois níveis. O primeiro nível é aquele que condiciona as suas

particularidades, ou seja, que faz da propriedade fundiária na favela uma forma

particular de propriedade. Seus determinantes estão na relação entre sociedade

(incluindo favelados) e favela, e o agente privilegiado dessa relação (ainda que não

seja o único) é o Estado. O segundo nível condiciona as singularidades da

propriedade fundiária em cada favela. Seus determinantes estão nas formas locais

de organização e na forma como elas se relacionam com os agentes supralocais.

3.1.1 Notas sobre a relação entre Estado e favela

Como já comentamos, a relação entre sociedade global e favela se destaca

pela produção do espaço criminalizado (CAMPOS, 2005) ou pela criminalização da

situação jurídica da favela (GONÇALVES, 2013), ou seja, por um tratamento

diferenciado que, entre outras coisas, configura um status jurídico diferenciado para

a propriedade fundiária na favela69. Porém, como foi enfatizado nos parágrafos

anteriores, há também uma tendência à reafirmação do direito oficial na favela. Essa

tendência não se apresenta de forma unilateral. Além de, as instituições internas

serem parte da sociedade global e por isso reproduzirem a sua forma de agir, as

formas de agir que contradizem as normas da sociedade global tendem a ser mais

coibidas e criminalizadas do que aquelas que condizem com essas normas. Essas

últimas tendem a ser toleradas mesmo que sejam consideradas informais ou ilegais.

                                                            69 Esse é um elemento bastante presente nas categorias de análise propostas por Roy (2017).

Page 110: A produção do espaço na favela - UFRJ

110  

Isso explica porque um terreno comprado de um “invasor” parece ser considerado

mais legítimo (dentro e fora da favela) do que um terreno “invadido” (SILVA;

HUGUENIN, 2014 [2011], p. 268 e 269). A troca como forma predominante de

mediação das relações sociais no capitalismo parece ter a capacidade de legitimar

perante a sociedade o acesso à propriedade mesmo nos casos em que a forma

jurídica da propriedade não corresponde com a do direito jurídico oficial. Sendo

assim, a troca como relação social aparece com tal nível de desenvolvimento e

generalização que se apresenta com relativa autonomia das formas jurídicas oficiais.

Conforme Silva e Huguenin (2014 [2011]), “a negociação ou a transação de um

terreno ou imóvel acaba por legitimá-lo frente às regras da favela”. Assim, podemos

considerar que, mesmo que se configure um espaço criminalizado como um todo, os

agires são diferenciados e podem ser coibidos ou tolerados com base nas normas

da sociedade global tanto pelos agentes locais como pelos supralocais.

Como apontamos anteriormente, o Estado é o agente privilegiado dessa

relação que se constitui não somente pela negação do direito oficial de propriedade,

mas por um processo contraditório de negação e afirmação da propriedade fundiária

moderna. A negação é sistematicamente apontada por diversos autores. Ela se

encontra no não aparecimento das favelas na política oficial da segunda metade do

século XIX, no status de forma de moradia provisória das classes populares em que

aparece a partir da década de 30 do século XX na legislação, na política de

extermínio na ditadura militar, nos ciclos de remoção que ainda hoje perduram, no

histórico déficit de investimentos em infraestruturas e equipamentos urbanos nessas

áreas, além dos sucessivos fracassos da política de regularização urbanística e

fundiária e a persistente negação do direito jurídico oficial de propriedade nas

favelas. Já a afirmação da propriedade privada moderna na favela tem menos

recorrência, mas podemos extrair dos autores trabalhados acima (Boaventura de

Sousa Santos, Luciano Oliveira, Eliane Junqueira e Alex Magalhães) a ideia de que

o direito da favela funciona como um substitutivo do direito oficial negado nessas

áreas e investigar como isso acontece.

Um primeiro canal por onde se reproduz a lógica da propriedade fundiária

moderna e do direito jurídico oficial está no contato direto entre favelados e o

restante da cidade. Um exemplo se encontra no trecho da entrevista realizada com

um corretor imobiliário atuante na Favela 1.

Page 111: A produção do espaço na favela - UFRJ

111  

Na verdade, assim, a gente procura sempre trabalhar dentro da lei, porque, mesmo aqui sendo [Favela1], nós trabalhamos muito com empregada doméstica, aí faz o contrato e leva para o patrão ver, aí se você fizer uma coisa errada, aí roda errada pra tudo que é lugar, entendeu, então é sempre bom fazer o seu. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

O contrato a que se refere o entrevistado é o contrato de aluguel e de compra

e venda. No entendimento do entrevistado o compromisso que o corretor imobiliário

na favela tem com a legislação oficial brasileira na formulação dos contratos é um

compromisso moral. Existe o certo e o errado, ambos balizados pelo direito jurídico

oficial, porém, não existindo uma fiscalização das instituições oficiais de Estado, o

receio do corretor é que se difunda (“rode”) pela favela a informação que os

contratos formulados pela corretora são “errados”. Há dois pontos importantes a

serem destacados nesse caso: 1) o direito jurídico oficial, mesmo sendo, nessa

situação, inoperante de forma direta, se torna um legitimador das ações na favela,

ou seja, o direito jurídico opera como uma norma moral que mesmo sem uma

fiscalização sistemática limita as ações dentro da favela; 2) o conhecimento do

direito jurídico oficial, nesse caso, se dá pelo contato cotidiano dos favelados com os

não-favelados.

A facilidade de acesso a esse tipo de informação e a quantidade crescente de

favelados graduados nas mais diversas áreas do conhecimento tornam o exemplo

da empregada doméstica e seu patrão apenas uma alegoria que representa uma

das formas de “entrada” do conhecimento do direito jurídico oficial. Segundo o

Proprietário 4, na Favela 2 a maioria dos moradores tem acesso à justiça por

vizinhos formados na área, via Associação de Moradores ou defensoria.

A maioria tem algum acesso, a gente tem um juizado aqui perto, você sempre tem, por incrível que pareça, muitas pessoas que estudaram, se formaram em direito, tiraram a carteira da OAB e continuam morando na comunidade. A associação tem sempre uns bons encaminhamentos pra quem precisa, além da defensoria tem algumas pessoas que prestam esse serviço também (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Além disso, longe de negar as barreiras entre as favelas e o restante da

sociedade, é necessário destacar que as porosidades são intensas e estão

presentes, não apenas relações de trabalho, mas também nas relações comerciais,

no sistema educacional, nos vínculos de amizade, familiares etc. e não é de se

surpreender o acesso que os favelados têm ao conhecimento do direito jurídico

oficial. Mais importante aqui é como esse direito jurídico coage as instituições

Page 112: A produção do espaço na favela - UFRJ

112  

internas a reproduzirem suas normas.

O movimento de reprodução das formas jurídicas oficiais tem sido mais

representado em estudos acadêmicos na figura da Associação de Moradores, talvez

pela importância do estudo desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos em

Pasárgada. Junqueira (MAGALHÃES, 2010) desenvolve, a partir de exemplos

demonstrativos que ilustram as formas de registro e taxação da transmissão de

propriedade e regulação da construção, a ideia de que a Associação de Moradores

reproduz os institutos jurídicos estatais.

Quanto ao padrão de atuação da Associação de Moradores, enquanto agência jurídica local, Junqueira afirma que essa, dentro das especificidades da localidade, reproduz e obedece à lógica de funcionamento do ordenamento jurídico estatal. As Associações de Moradores das favelas trabalhariam com um “código de conduta que, inspirado no direito oficial, reproduzia institutos jurídicos estatais”, a partir dos quais “Boaventura Santos identificou um ‘direito paralelo não oficial’, uma ‘subcultura jurídica’ fundamentada na prevenção e na resolução de conflitos” (JUNQUEIRA, 1993, p. 167). Essa autora arrola alguns exemplos demonstrativos da alegada reprodução, tais como:

O processo de transmissão da propriedade reproduz aquele dos cartórios oficiais de registros públicos.

A taxa de 5% sobre o valor de venda, cobrada pela associação, para “legalizar” as transmissões – isto é, para fornecer um documento comprobatório dessas transações – reproduz o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), cobrado pelas municipalidades, em idêntico percentual.

Diante da inaplicabilidade das posturas municipais e do Código de Obras, para as edificações realizadas nas favelas, produz-se aí uma “versão oral” desse Código.

Assim, por meio desse conjunto de mecanismos, conferir-se-ia alguma legalidade àquilo que “o Estado, ao se recusar a reconhecer, induz a ser anômico e desorganizado” (JUNQUEIRA; RODRIGUES, 1988, p. 129; e 1992, p. 13; JUNQUEIRA, 1993, p. 169) (MAGALHÃES, 2010, p. 134 e 135).

É importante notar que, mais do que reproduzir a ordem estatal, a Associação

de Moradores assegura mecanismos que são desejáveis para a formação de um

mercado de terras, sejam eles: o registro da propriedade, o registro da transferência

e um código de conduta que impede os construtores de

prejudicarem/desvalorizarem a propriedade alheia.

O constrangimento sofrido pelas Associações de Moradores para reproduzir

formas jurídicas oficiais dentro da favela deve ser duplo. Se os moradores da favela

já conhecem e legitimam o direito jurídico oficial, a Associação de Moradores que

quiser manter sua posição de representante oficial na favela também deve

responder diretamente às instituições estatais. Uma indicação da necessidade de se

Page 113: A produção do espaço na favela - UFRJ

113  

apoiar no direito jurídico oficial em busca de legitimação apareceu em uma das

entrevistas feitas para o presente trabalho. Quando indagado sobre a forma de

resolução de conflitos em torno da construção, um representante da Associação de

Moradores 1 da Favela 1 respondeu que a argumentação é sempre técnica e que,

em casos onde a associação não é capaz de responder tecnicamente, são

acionados órgãos da prefeitura, como o Posto de Orientação Urbanística e Social

(POUSO)70, ou a Região Administrativa (RA).

Sousa Santos, sobre a importância da referência ao direito jurídico oficial no

discurso retórico da Associação de Moradores, comenta que:

Isto não significa que, no decurso da discussão do caso, se não façam frequentes referências às leis do direito do asfalto, quer às que no direito oficial regulam as matérias em discussão, quer, ainda que mais raramente, às que regulam as atividades da Associação de Moradores. Tais referências, no entanto, nunca são necessitantes das decisões, o que, por outro lado, não significa que sejam arbitrárias ou inúteis. De facto, são parte integrante do discurso tópico-retórico e têm por função criar uma atmosfera de oficialidade e de normatividade — uma retórica institucional, em suma — que reforça os objetivos retóricos e sublinha as linhas do discurso no seu percurso para a decisão (SOUSA SANTOS, 1988, p. 19).

A forma de organização que frequentemente se encontra nas favelas e que

provavelmente mais entra em conflito com o direito jurídico oficial é o tráfico varejista

de drogas. No entanto, como veremos, esse agente também tem o interesse de

manter as transgressões sob controle. Se o comércio e as prestadoras de serviço

locais, como no caso das imobiliárias, devem responder ao direito jurídico oficial

como forma de se legitimar perante a população e as instituições internas de caráter

oficial, como é o caso das Associações de Moradores, ficam numa encruzilhada

entre a legitimação da população e as instituições de Estado, o tráfico varejista de

drogas, pelo caráter conflitante com o direito jurídico oficial, atua de forma

relativamente autônoma. Na realidade essa forma de organização deve conciliar a

busca da legitimação da população local com os interesses de sua atividade

principal. Outro ponto que deve ser destacado é que o narcotráfico varejista é

formado por indivíduos inseridos nessa mesma sociedade que deve influenciar a sua

noção de justiça. Como exemplo, podemos nos apropriar dos casos analisados por

                                                            70 Instituído em 1996 no âmbito do Programa Favela-Bairro tem, segundo o decreto que o institui (Decreto nº 15259 de 14 de novembro de 1996), a função de “orientar a execução de novas construções ou ampliações das existentes, bem como o uso dos equipamentos públicos implantados e exercer fiscalização urbanística e edilícia”.

Page 114: A produção do espaço na favela - UFRJ

114  

Eliane Botelho Junqueira e José Augusto de Souza Rodrigues.

CASO 1 - o morador da favela aciona a boca-de-fumo por causa do furto de uma bomba d'água da sua casa. Menos de vinte e quatro horas depois, o ladrão é identificado e a bomba d'água devolvida, cabendo ao morador decidir sobre a aplicação da penalidade, que poderia ser, por exemplo, um tiro na mão. CASO 2- devido à desordem causada por crianças que atiravam pedras, o morador incomodado recorre à boca-de-fumo, que envia um dos seus empregados para impor a ordem. CASO 3 - um menor de dezesseis anos mata uma criança de sete anos durante um assalto a um autocarro. Perante o risco de se ter uma investigação policial na favela, o chefe da quadrilha toma a iniciativa de identificar e eliminar o assassino, cujo corpo é deixado na entrada da favela para ser encontrado pela polícia. CASO 4 - o estuprador de uma moradora da favela é imediatamente identificado pela boca-de-fumo e, como penalidade, castrado. CASO 5 - dois moradores discutem sobre a edificação de uma parede, e um deles, para coagir o vizinho, recorre à boca-de-fumo. A simples ameaça de intervenção do chefe de tráfico de drogas “concilia” os vizinhos (JUNQUEIRA; RODRIGUES, 1992, p. 13 e 14).

Importante notar que mesmo que as punições sejam absolutamente

condenáveis do ponto de vista do direito jurídico legal, as ações a serem punidas

violam códigos jurídicos e morais da sociedade como um todo. Podemos pensar

sobre dois interesses diretos do tráfico na repressão a esse tipo de ação. O primeiro

foi explicitado anteriormente e se trata da busca pela legitimidade perante a

população local. O segundo está explicitado na própria citação, e se trata de evitar a

entrada da polícia, o que poderia significar o início de um conflito ou a repressão das

atividades do tráfico varejista de drogas. São dois interesses que pressionam o

tráfico a agir de forma a afirmar o direito jurídico oficial. Não é excessivo destacar

que não há nenhuma garantia de que o tráfico varejista vá atuar reproduzindo o

direito estatal ou evitando conflitos com a polícia. Essas tendências só se

confirmarão em ato se não houverem contratendências mais fortes. Por exemplo,

um momento de relação mais acirrada com a polícia, um conflito com uma facção

rival, um domínio territorial tão estável que diminua o receio da entrada da polícia,

etc. podem gerar uma suspensão desse tipo de comportamento.

Magalhães, reforçando Junqueira e Rodrigues indica como o narcotráfico

varejista afirma o direito estatal e o compara com a prática das instituições policiais

marcados pelo vigilantismo.

Até mesmo no caso do crime organizado, a outra agência jurídica interna da favela, admitida por Junqueira e Rodrigues, nota-se o mesmo processo de

Page 115: A produção do espaço na favela - UFRJ

115  

reprodução do modus operandi das instituições oficiais, porém, nesse caso, as comparações se concentram na instituição policial e não nas agências propriamente administrativas do Estado. Eles sustentam que, do ponto de vista microssociológico, o crime organizado representaria uma espécie de contrapartida informal do papel desempenhado, na sociedade abrangente, pelas agências estatais de controle social, assim como “salta aos olhos a extrema semelhança entre as práticas de polícia – ou, mais precisamente, de distribuição de justiça – dos traficantes de drogas e da instituição policial, marcada pelo vigilantismo” (JUNQUEIRA, 1993, p. 172). O padrão de atuação das duas agências seria comparável, também, na medida em que “em ambos os casos as ações são movidas pelo ideal de combate ao crime, cujo arquétipo comum talvez seja o xerife de fronteira norte-americana, esse lugar onde já chegaram os homens mas não as instituições” (MAGALHÃES, 2010, p. 135).

Um caso extremo em que poderíamos pensar a reprodução da estrutura

jurídica oficial e, ao mesmo tempo, uma suspensão mais radical do direito de Estado

pelo tráfico varejista de drogas está presente nos tribunais do Primeiro Comando da

Capital (PCC)71, com a formulação de estatuto, formação de um corpo social

especializado e um padrão de atuação (DIAS, 2009). Camila Caldeira Nunes Dias

trabalha com as categorias de Le Roy de ordem aceita, negociada imposta e

contestada72. Para a autora, a disseminação dos tribunais do PCC indicaria a

passagem de uma ordem contestada para uma ordem negociada, enquanto:

a generalização dos tribunais, a importância da mediação dos conflitos por terceiros e a consequente recorrência às normas preestabelecidas podem indicar o desenvolvimento em direção à ordem imposta, marcada pela transformação dos conflitos em litígios, nos quais é central a atuação do juiz, encarregado de definir sanções e punições de acordo com as regras codificadas no estatuto do PCC (DIAS, 2009, p. 98).

Essa transmutação é caracterizada pela substituição de categorias individuais

ou de grupos por categorias sociais e por uma aproximação das práticas do direito

jurídico oficial. É importante destacar que a aproximação que apontamos aqui dos

diversos agentes atuantes nas favelas ao direito oficial é precária no caso do                                                             71 O PCC é uma “organização de criminosos” que surge no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté em 1993. O grupo se expandiu continuamente dominando o presídio onde nasce, a maior parte das unidades prisionais paulistas, em seguida, vários bairros e favelas pobres da região metropolitana de São Paulo, hoje se expandindo para outras partes do país, como Fortaleza. Segundo Dias (2009), “Nas áreas sob sua influência, o PCC controla desde o tráfico de drogas até o roubo de cargas e de bancos, sequestros, assaltos a empresas de transporte de valores e a prédios de luxo, etc.”. 72 “Esquematicamente, o autor aponta quatro visões de ordem social: ordem aceita, na qual as partes regulam suas próprias diferenças; ordem negociada, na qual a intervenção de um terceiro é necessária na resolução dos conflitos e na qual as normas jurídicas são modelares, embora não sejam imperativas; ordem imposta, em que os conflitos se transformam em litígios, submetidos a um juiz que deve aplicar o direito positivo; ordem contestada, em que as normas jurídicas são completamente ignoradas e não há autoridade que se interponha entre as partes em conflito, cada qual utilizando os meios que tem à sua disposição, prevalecendo, assim, a lei do mais forte” (DIAS, 2009, p. 87).

Page 116: A produção do espaço na favela - UFRJ

116  

narcotráfico varejista quase exclusivamente baseado na violência e na coação.

Nenhuma dessas organizações ou a soma delas é capaz de configurar uma

estrutura de Estado.

Podemos ainda destacar a atuação dos próprios agentes de Estado no

mesmo sentido. Nos trabalhos de campo, foram observadas as atuações, mesmo

que de forma também precária, da polícia, fiscais da prefeitura, oficiais de justiça,

funcionários do Posto de Orientação Urbanística e Social (POUSO), da Região

Administrativa (RA), etc. Seria redundante descrever o compromisso dos agentes do

Estado com o direito jurídico oficial. Importante agora é chamar a atenção para a

precariedade com que os agentes internos ocupam as “brechas” (DIAS, 2009)

deixadas pelo Estado nas favelas e a precariedade com que atuam também os

agentes de Estado nessas áreas, se destacando em determinados momentos por

suspensões de direito como nos casos dos mandados de busca coletivos.

Segundo Magalhães (2010), Luciano Oliveira destaca a arbitrariedade com

que operam os diversos agentes dentro das favelas. Essa característica estaria

presente nas organizações estatais ou não estatais. Para o autor: “as conclusões de

Luciano Oliveira constituem mais uma evidência de que o caráter despótico, ou

arbitrário, está presente e imbricado nas diversas formas jurídicas, não sendo algo

exclusivo ou peculiar das práticas jurídicas das agências internas da favela”

(MAGALHÃES, 2010, p. 117).

Um dos exemplos disso seriam as práticas judiciárias da polícia, estudadas Luciano Oliveira, que afirma que elas “não configuram apenas uma inocente instância apaziguadora de brigas de vizinhos; elas também são práticas que reproduzem o arbítrio e a dominação” (MAGALHÃES, 2010, p. 116).

Parte da arbitrariedade pode ser explicada pela precariedade do acesso da

população às instituições do Estado. Tal precariedade coloca as organizações que

atuam localmente na posição de mediadores, como demostra o depoimento de um

morador da Favela 1.

A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] resolvia tudo, o cara estava precisando de uma manilha, falou com o major, no dia seguinte estava pronto, “mas não é papel dele, tem que falar com a RA, [...] mas falar com a RA é o mesmo que nada”. Você tira o tráfico e bota a polícia, ela decide tudo, mas não é ela que tem que resolver as coisas (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Page 117: A produção do espaço na favela - UFRJ

117  

Houve um caso Morro do Turano73 onde, devido a uma chuva, um poste havia

caído na entrada da casa de uma moradora que em seguida acionou a Light.

Segundo a moradora, a empresa deu como resposta o prazo de seis meses a um

ano para resolver o problema. Não podendo aguardar, a moradora acionou a

Associação de Moradores que entrou novamente em contado com a Light que,

dessa vez, resolveu o problema no mesmo dia. No caso, a arbitrariedade está

presente também na forma de agir do agente supralocal. Se já existe um

componente de arbitrariedade nas instituições oficiais de Estado, ela se potencializa

com a estigmatização da área. A barreira entre o morador e os agentes supralocais

faz com que os casos, ou parte deles, sejam resolvidos no nível local.

A mediação com relação a sujeitos e agentes supralocais exercida por

agentes locais pode se apresentar como uma forma de diminuir as barreiras aos

direitos sociais e potencializar as reivindicações e realizações em nível local ou

supralocal. Esse é o caso quando o agente local de mediação (geralmente

Associações de Moradores) consegue promover certo nível de coesão social e se

configurar como instância de representação. Mas também pode ser capitalizada por

determinado grupo e se tornar um meio de dominação no nível local. Nesse caso, a

mediação do agente local se configura em mais uma fonte de arbitrariedade que

pode ser capitalizada e chegar ao nível de ser transformada em pequenas

negociatas acerca de favorecimentos.

Para ilustrar a segunda situação podemos apresentar casos em que os

benefícios das obras de urbanização e os reassentamentos foram capitalizados por

organizações locais. Vamos nos ater a um depoimento. No seminário interamericano

de regularização urbanística e fundiária da cidade do Rio de Janeiro, organizado

pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro em parceria com o Lincoln Institute Land

Policy, uma moradora da favela Indiana, localizada aos pés do Morro do Borel, na

Tijuca, relata o processo na favela onde mora e indica que há outros casos

semelhantes em outras favelas. Segundo a moradora, a prefeitura, com recorrência,

deixa a distribuição dos apartamentos para a Associação de Moradores ou negocia

com o “poder paralelo”.

Favela Indiana. O laudo da Geo-Rio de 2010 é de baixo risco, então nós todos (eu não sou engenheira) entendemos que se é baixo risco tem que

                                                            73 O caso ocorreu durante a execução do trabalho de regularização fundiária do Morro do Turano, do qual o autor participou.

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entrar e fazer obra, até médio risco tem lá as características, as condicionalidades, [...] e tem o alto risco que aí realmente tem que remover. Mas no caso da favela Indiana (baixo risco), especulação imobiliária. A secretaria entrou na comunidade Indiana a todo vapor com o poder coercitivo. A lógica era doar apartamentos pelo Morar Carioca MCMV [Minha Casa Minha Vida]. Isso se tornou um pesadelo pra nós, porque o que acontece? Simplesmente nós estávamos entendendo que para cada família que fosse ser removida, não tem laudo, não tem nada que justifique a remoção da favela Indiana, não tem um projeto que justifique a remoção da favela Indiana na gestão passada, e ainda não tem, e o que acontece? — “Não, tem que sair! Tem que remover! Está do lado do rio! Está na beira do rio!”. E tem apartamentos, tem prédios dentro do rio, mas estão lá. Moram juízes, moram professores, moram engenheiros, então não mexe, com favelado tem que remover. O que entendemos então? uma casa, um apartamento. Não! Uma casa, até 11 apartamentos foram sendo distribuídos e as pessoas lá da secretaria de habitação negociavam também, apartamentos, com o “poder paralelo”. Isso não acontece só na Indiana não, mas na Indiana foi muito explícito. O que eu quero dizer pra vocês, é dinheiro público. O que eu quero dizer pra vocês, é falta de ética. O que eu quero dizer pra vocês, é falta de respeito com os moradores. O que eu quero dizer pra vocês, é a falta de respeito até com as instituições federais, por que dão a um presidente de Associação de Moradores: — “olha, quando você quiser seus apartamentos, você pega eles com o presidente da Associação de Moradores”. É assim que se distribui apartamentos? É assim? Então assim, eu espero realmente que as construções que saiam daqui, realmente a gente passe a fiscalizar, a observar mais [...] está entendido? Agora está entendido mais ou menos? Deu pra entender? Essa coisa do “poder paralelo”. O poder público entrar e ficar negociando com o “poder paralelo”, desrespeitando o morador.

Chama a atenção no depoimento da moradora como a prefeitura desrespeita

parâmetros da política pública redirecionando um recurso que deveria servir à

garantia de direito dos moradores em privilégios para a Associação de Moradores e

tráfico varejista de drogas. Essa cessão de privilégios tem o poder de desmobilizar

possíveis reações aos projetos de remoção promovidos pela prefeitura e, ao mesmo

tempo, aumenta os poderes das instituições beneficiadas. É importante chamar a

atenção também para a demanda pelo acesso direto aos direitos pelos moradores,

ou seja, a rejeição da Associação de Moradores como agente mediador.

Para nós, nesse momento, não importa o impacto desses processos na

distribuição da moradia. O que queremos chamar a atenção é como a abstenção do

Estado na resolução de determinados conflitos abre caminho para que determinados

agentes locais atuem de forma arbitraria ou até mesmo chantageiam os moradores.

Isso não significa que o Estado não possa atuar de forma arbitrária (a própria

negação da resolução do conflito já é uma forma de arbitrariedade) ou que os

agentes locais não possam utilizar critérios rigorosos e justos de distribuição74.

                                                            74 Segundo o jornal O Globo, o atual presidente da Associação de Moradores da Babilônia, André

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Inclusive, a delegação desse tipo de decisão para grupos autogeridos coesos e

representativos (podemos encontrar exemplos nos diversos movimentos de luta por

moradia) tem se mostrado uma possibilidade democrática. Porém, fazer o mesmo

em áreas onde não há essa coesão pode significar uma simples distribuição de

poderes para determinados grupos através das instituições que eles dominam e o

fortalecimento de mecanismos de dominação no nível local.

Outro fato importante é que os agentes locais, no caso das favelas, não são

capazes de formar um sistema de normas e nem corpos técnicos especializados que

garantam um padrão de resolução de conflitos. Isso significa que as questões

edilícias, disputas de propriedade, etc. que são resolvidas localmente, são resolvidas

caso a caso e pelo mesmo grupo de pessoas que pode ser a Associação de

Moradores, o tráfico varejista, etc. e que estão comprometidos com o fim de suas

atividades (política, comercial, etc.). A negociação com o narcotráfico varejista nesse

caso só pode significar o fortalecimento de mecanismos de opressão, já que esse

agente não teria a possibilidade de se configurar num agente de coesão e

representação e detém como característica essencial o poder coercitivo armado.

Esses exemplos se afastam, de certa forma, do tema da instituição da

propriedade fundiária, mas servem para demonstrar como a estigmatização e

criminalização de determinados espaços (falamos das favelas, mas poderíamos

buscar outros exemplos) criam zonas de exceção que podem ou não ganhar um

caráter oficial, mas que permitem ao Estado agir com um nível maior de

arbitrariedade nesses espaços. Isso se reflete nas remoções injustificadas, como no

caso exposto aqui do Morro da Providência, nos mandados coletivos de busca que

ferem direitos constitucionais, no bloqueio de acesso às instituições supralocais

(inclusive estatais), entre outros incontáveis exemplos, e confere aos agentes locais

um poder de determinação sobre assuntos que, de forma geral, estão a cargo do

Estado. Assim como no caso exposto sobre o atendimento da Light, outras

instituições supralocais também têm acesso quase exclusivo via Associação de

Moradores, como na atuação observada em campo dos oficiais de justiça.

Essa configuração confere uma importância para os agentes locais nas

favelas que vai para além do que normalmente é encontrado em outras partes da

                                                                                                                                                                                          Constantine, entende que os apartamentos deviam ser distribuídos a partir de dois critérios, idade e risco da moradia anterior. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-entrega-na-sexta-feira-primeiras-16-unidades-de-predio-verde-em-favela-do-leme-7834945

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cidade. Por exemplo, enquanto a regulação da atividade construtiva nas favelas está

geralmente nas mãos da Associação de Moradores, no caso da Babilônia essa

mesma competência, na maior parte da favela, esteve nas mãos do exército até os

anos 80, o que configurou regras completamente diferentes. Segundo uma

moradora, o filho que saísse de casa não poderia construir na favela, teria que sair.

Isso se reflete na configuração espaçada e rarefeita das construções nessa parte da

Babilônia. Isso demonstra a heterogeneidade da estrutura do mercado imobiliário

nas favelas e como essa heterogeneidade é reflexo da descentralização de

determinadas decisões e da atuação diferenciada dos diferentes agentes que atuam

localmente nas diversas favelas.

Assim como os agentes locais têm motivos para reproduzir em grande medida

o direito jurídico estatal eles têm motivos para transgredi-la, assim como acontece na

cidade formal. Mas os constrangimentos às transgressões tendem a ser menores

nas favelas, visto que os sistemas de controle social inexistem ou são muito

precários, além da já comentada impossibilidade da formação de instituições

especializadas que criem normas e solucionem conflitos baseados em parâmetros

técnicos.

A precariedade do controle estatal e do controle social terá rebatimento nas

possibilidades de regulação da construção nas favelas e na forma como se

desenvolvem suas rendas fundiárias e é desse assunto que trataremos de forma

breve no próximo subcapítulo.

3.1.2 Breves notas sobre a renda fundiária na favela75

Tratávamos no subcapítulo anterior da precariedade do controle social e do

controle estatal e da falta de parâmetros estabelecidos pelo conjunto da população

para a solução de conflitos nas favelas. Um rebatimento dessa forma de

organização na regulação da construção e na forma como se desenvolve a

propriedade fundiária e, por consequência, as suas rendas, está na baixa

capacidade de estabelecimento de parâmetros construtivos no que diz respeito à

volumetria das construções e na quase nula ou nula capacidade no que diz respeito

                                                            75 Importante destacar que esse subcapítulo é composto por reflexões ainda pouco amadurecidas sobre a renda fundiária na favela. Não tivemos contato com nenhum trabalho que refletisse sobre as formas de renda nas favelas. Dessa forma, nos baseamos nos trabalhos levantados sobre o mercado imobiliário em favelas, sobre as rendas fundiárias de forma geral e nas entrevistas realizadas para essa dissertação.

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ao interior das construções. Podemos dizer que, se na cidade formal estabelecemos

uma série de normas e parâmetros que podem ser usados para diversos fins,

inclusive o papel de restringir a liberdade dos proprietários e contribuir para a melhor

qualidade dos espaços internos e externos, nas favelas a liberdade construtiva tende

a ser menos restringida. A essa característica, Abramo (2007, p. 37) atribuiu a

qualidade de externalidade que seria própria da favela.

As favelas das áreas centrais ou com alto valor dos imóveis no entorno têm

uma configuração peculiar. Suas localizações são inacessíveis pelo mercado

imobiliário formal para a maior parte da população e a liberdade construtiva dessas

favelas permite a construção de moradias com baixo padrão de materiais, baixa

metragem das unidades, etc. Essa configuração permite disponibilizar habitações a

preços acessíveis para uma população que jamais teria acesso a essa localização,

mantendo alto o preço do metro quadrado construído. A consequência disso é que o

proprietário dos imóveis dessas favelas (pelo menos o que constrói para o extrato

mais baixo da favela) é posto em uma posição onde detém o importante papel de

produzir habitação para uma população que de outra forma não teria acesso a essa

localização e, ao mesmo tempo, o coloca na condição de cobrar o preço mais alto

dentro das possibilidades do comprador/locatário. Esse é o comportamento típico

das rendas de monopólio, mas, ao contrário dos casos clássicos onde a

compra/locação se dá por moradores de alto padrão ou a compra/arrendamento se

dá por produtores cujo produto é muito raro ou exige um alto nível de

especialização, aqui os moradores são pressionados pela concorrência da demanda

e pela impossibilidade de acessar outras moradias a sacrificar o máximo possível os

seus ganhos. Esse seria um dos fatores explicativos da proliferação dos prédios de

quitinetes nas favelas.

Essa hipótese tem consequências importantes. A renda não apenas é um

determinante dos preços praticados para o tipo específico de residência, como é um

importante determinante que atua sobre o tipo de construção a ser produzida. Assim

como nos grandes centros urbanos, o alto preço da terra é um importante

determinante para a construção dos monólitos verticais76 que aproveitam ao máximo

                                                            

76 Segundo Lukács (Apud, DUAYER, 2008, p. 108) “Destruidora e abstrativamente sobre a missão social confiada à arquitetura. O efeito útil social concreto de cada construção perde sua peculiaridade sensível, isto é, pode realizar-se - no que diz respeito à utilidade pura - com toda comodidade, sem ter que determinar um espaço interno e externo que levem à intenção visual aquela função. Por isso

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o terreno, a construção de grandes monumentos da arquitetura contemporânea é

resultado da busca por rendas de monopólio (ARANTES, 2010). Uma renda de

monopólio resultante da liberdade construtiva na favela pode ser um forte

determinante de uma tipologia construtiva que se aproprie dessa externalidade.

Dessa forma, seria a construção de unidades de dimensão mínima uma forma de

extração de rendas de monopólio em favelas com o entorno caracterizado pelo alto

valor da terra. No entanto, a extração da renda de monopólio, nesse caso, só é

possível se houver uma massa demandante que tenha acesso exclusivamente por

esse mercado. Dessa forma, se a demanda estiver abaixo de certo nível - seja

porque seus ganhos passaram a possibilitá-los acessar outros mercados ou porque

os outros mercados passaram a atingir a sua faixa de renda -, a renda de monopólio

deve desaparecer. Por isso, essa deve ser uma forma de renda exclusiva das

favelas localizadas nos centros urbanos e áreas valorizadas.

Igualmente se tem defendido que tem surgido uma nova forma de extrair

rendas de monopólio nas favelas a partir de um marketing urbano capaz de

transformar as favelas em um patrimônio único inigualável. Podemos retomar o caso

da arquitetura contemporânea onde a criação de emblemas únicos e irreprodutíveis

garantem a geração das rendas de monopólio. Segundo Arantes:

O Guggenheim Bilbao é bem-sucedido não apenas como surpreendente aparato técnico/estético, como também, ou sobretudo, enquanto estratégia rentista. Ao ser divulgado pelos canais midiáticos como o ápice da produção arquitetônica recente, gerou fabulosas rendas de monopólio para os diversos agentes envolvidos (ARANTES, 2010, p. 95).

O desvalorizado porto de Bilbao, ao receber o monumental projeto de Frank

Gehry, passa por um processo de ressignificação que associa “as marcas

                                                                                                                                                                                          um estabelecimento público de banhos pode ter um mesmo aspecto que uma oficina, uma fábrica ou uma igreja, ou ao contrário, sem deixar de oferecer por isso do, ponto de vista geométrico, uma solução perfeita. (Isto mostra até que ponto se trata de uma forma complementar da arquitetura eclética da segunda metade do século XIX. A contraposição completa dos princípios construtivos, do conteúdo emocional das superfícies apresentadas etc., não suprime esse profundo parentesco, que é a decadência da concreta missão social até chegar em uma abstração indiferente para com toda a objetividade). A decadência da missão social, ou melhor dizendo, sua conversão em algo totalmente abstrato, como a exigência da construção vertical em consequência do encarecimento da renda do solo urbano, aporta uma “liberação” em relação de todos os postulados “antiquados”, ou seja, em relação à tarefa de criar um espaço concreto próprio para o homem. Assim, pois, na medida em que as formas construtivas não estão dominadas por uma excentricidade completamente caprichosa - o que não ocorre senão em casos excepcionais - um tal predomínio do geométrico é facilmente compreensível”.

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Guggenheim, Bilbao, Gehry, Dessault numa alavancagem midiática conjunta”

(ARANTES, 2010, p. 95). No caso descrito por Arantes, apesar de existirem outros

fatores envolvidos, a obra construída é fundamental para a criação do emblema. No

caso das favelas do Rio de Janeiro, apesar do investimento na urbanização,

policiamento, teleféricos, etc. o fundamental para a produção de uma marca única

está na localização, na peculiaridade da formação geográfica e na população local e

seu patrimônio. Ou seja, no caso das favelas a produção do emblema exige o

mesmo esforço midiático, porém o que as torna potencialmente especiais já está

dado de antemão, podendo-se abrir mão de grandes investimentos construtivos. Se

consideramos o espaço construído da favela como um patrimônio construído pelos

seus moradores e, também, em grande medida, pelo Estado, podemos entender que

em grande medida esse processo se trata da ressignificação e apropriação privada

desse patrimônio. No entanto, passados a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos

Olímpicos de 2016 e recuados os investimentos públicos nas favelas do Rio de

Janeiro, podemos considerar que, não houve grandes avanços no que diz respeito à

“invasão” de grandes incorporadores e especuladores, ainda que a valorização

imobiliária nesse período ainda deva ser averiguada.

Sobre as rendas diferenciais e como elas funcionam no interior das favelas,

não é necessário fazer muitas considerações, mas, nas entrevistas realizadas nas

favelas pesquisadas, surgiram dois aspectos que parecem ter maior importância na

apropriação das rendas diferenciais: a proximidade às ruas onde é possível o

acesso de carros e a menor densidade construtiva. Importante destacar que na

maioria dos casos essas são características que se opõem.

Sobre a localização em relação à rua, o corretor da Imobiliária 1 aponta que a

dificuldade de acesso no momento da construção já é um aspecto que reduz os

ganhos. Para ele, o investimento inicial já vai ter que ser maior e o retorno após a

venda menor.

Você sabe mais ou menos quanto vale qualquer coisa, porque vive o dia a dia daquilo, ajudou a construir a favela, não importa se o cara gastou... Se um cara, vamos supor gasta 30 mil pra construir aqui embaixo, se ele construir a mesma casa lá no meio da favela, ele vai gastar 60, isso não quer dizer que amanhã ele queira vender lá e que ele nem tire o seu dinheiro, você gastou, gastou em um lugar impróprio, em um lugar inadequado, para você ter um valor do seu imóvel. Quer vender, vai vender, mas não achando que você gastou milhão e vai tirar o seu milhão, aí foi porque você investiu no lugar errado, problema é seu. Então passa a vida morando nele (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

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O custo para a produção da casa em locais sem acesso de carro também foi

enfatizado por diversos entrevistados na Favela 1 e na Favela 2. Na Favela 2,

inclusive, é utilizado um jargão que diz que no morro, pra construir uma casa, tem

que ter dinheiro pra duas ou três.

Pra fazer casa aqui, você tem que fazer duas pra morar em uma, você paga pra fazer pro pedreiro e paga pra subir. É diferente de na rua. Na rua, você joga o material ali, o cara faz rapidinho, pronto, acabou. Aqui não. Aqui você tem que botar nas costas mesmo e haja peso, né? (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2)

Porque se você quiser fazer uma casa em uma comunidade, você tem que ter dinheiro pra fazer três. Uma pra você morar, o equivalente você vai pagar pra um pedreiro e o equivalente você vai pagar pra alguém carregar o material pra você. Porque um saco de cimento de 50 kg ninguém sobe uma área de 100, 150 metros de altitude com menos de 15, 20 reais: você paga 25 reais num saco de cimento e paga mais 20 pro cimento chegar na sua casa. A dificuldade é enorme (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Sobre a construção, as favelas em declive têm agravantes. Em primeiro lugar,

a subida é mais desgastante que o transporte em áreas planas. Em segundo, as

ferramentas para transporte de materiais foram desenvolvidos para áreas planas.

Em Manguinhos, em uma área sem acesso de carro, presenciamos o transporte de

10 sacos de cimento de 50 kg em um carrinho por apenas uma pessoa. O mesmo

método de carregamento jamais poderia ser aplicado em escadas ou mesmo

ladeiras devido ao peso, forçando o transporte sem instrumentos ou com

instrumentos suspensos pelo trabalhador, como a padiola.

Além do custo de construção o acesso a bens de consumo apareceu como

um aspecto importante também.

— Não tem jeito, têm que consumir, as pessoas precisam consumir. É um refrigerante, é uma cerveja, é um cigarro, é um biscoito, é um óleo. O cara não quer ir lá na rua comprar. Se ele for na rua, ele vai ter que caminhar ou pagar um moto táxi ou pagar uma Kombi. Aí o gasto é maior. Aí você tem que fazer essas contas: — “se eu for lá na rua, eu vou pagar um real a menos que aqui, ainda vou pagar a moto ou a kombi que é 3, então prejuízo já é de 477“, então compra aqui mesmo. — Aqui é mais caro do que lá em baixo? — Aqui é mais caro, com certeza, mas aí você tem essa avaliação. Porque se não você vai comprar lá na rua pensando que vai pagar a menos, mas aí você já pagou a diferença no transporte, já pegou chuva ou então já pegou um calorão tremendo, já andou mais, isso vai trazendo uma série de

                                                            77 O entrevistado somou o custo de transporte com o desconto na compra quando na verdade deveria subtrair. No caso, considerando o desconto de 1 real comprando “na rua”, o prejuízo seria de 2 reais se o suposto comprador pagasse apenas o trecho de subida (o que é comum) ou 5 se pagasse os dois trechos.

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análises que você tem que fazer, até pra influenciar no aluguel. É o que eu te falo, um contrato vai melhorando o outro (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Mesmo após a construção, o custo de vida na casa deve ser afetado pelo

local em que se encontra em relação à rua.

Em contraposição, a baixa densidade das áreas mais altas dessas favelas

também é vista como um atrativo.

[Parte alta da Favela 1] é o pulmão da [Favela 1], não sei se é a área mais cara, mas é a melhor (PROPRIETÀRIO 1, FAVELA 1).

O melhor lugar é próximo à ladeira você acha? Em tese, se imagina que é melhor, né? Mas, dependendo do ponto de vista, tem pessoas que estão vindo morar aqui que querem morar na parte mais alta, porque vai morar no meio da mata, vai morar com vista pro mar... (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2)

Não temos informação sobre os preços dos imóveis próximos à rua em

relação ao preço dos imóveis nas áreas de mais baixa densidade. No entanto,

podemos dizer que as vantagens dos imóveis próximos à rua e a procura por esses

imóveis foram muito mais enfatizadas nas entrevistas do que o mesmo para as

áreas de baixa densidade.

O próximo subcapítulo destina-se à análise de alguns condicionantes que

precedem a formação das favelas e que podem influenciar no nosso objeto, em

especial nas formas de percepção da propriedade fundiária.

3.1.3 Condicionantes precedentes

A tese geral do marxismo de que os homens fazem a sua própria história, ainda que não sob circunstâncias que eles mesmos escolhem, vale, portanto, não só para a humanidade como um todo, não só para complexos sociais que a constituem, mas também para a vida de cada homem singular (LUKÁCS, 2013, p. 433).

As singularidades de cada favela são produzidas pelo seu desenvolvimento

sócio-histórico, constituindo suas formas de organização, estruturas de poder,

cultura, etc. No entanto, nada surge numa tábula rasa e a favela como um fenômeno

urbano específico da modernidade, não poderia ser diferente. As condições de

existência e desenvolvimento das favelas são estabelecidas pelas condições gerais

do capitalismo em sua totalidade (universal, categorias da essência), que aqui temos

examinado por meio de categorias como a acumulação primitiva, renda da terra, etc.

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Ao mesmo tempo, há condicionantes determinados pelo desenvolvimento particular

do capitalismo em cada país, com suas estruturas fundiárias, legislações, etc.

Poderíamos falar também da estrutura urbana ou da política municipal. O que

queremos destacar aqui é que existe uma série de condicionantes que estão

presentes em categorias que vão desde a totalidade que é o capitalismo até as

singularidades de cada território favelado e que parte desses condicionantes já

estão postos antes mesmo da formação das favelas. O próprio surgimento da favela

em determinado terreno depende de parte desses condicionantes. São terrenos

desvalorizados, abandonados, com fragilidades geológicas, alagadiços, com

conflitos jurídicos, etc. Sendo assim, a partir da ocupação do primeiro indivíduo ou

grupamento, a favela passa a constituir sua própria história, certamente

condicionada por inúmeros aspectos da realidade, mas também transformadora

dela.

Os determinantes em nível local são os mais variados e abrangem aspectos

culturais, sociais, históricos, etc. No caso do Rio de Janeiro, escolhemos destacar a

localização, a situação jurídica e a topografia, por se tratarem de aspectos de fácil

identificação e com melhor possibilidade de generalização. Isso nos permite variar

os exemplos e permite ao leitor relacioná-los com casos conhecidos, além de serem

aspectos que, nos trabalhos de campo, pudemos relacionar a formas de percepção

da propriedade pelos moradores. Não é de nosso interesse aqui desenvolver

longamente sobre esses determinantes locais, porém é importante tratar de alguns

exemplos.

Localização

Podemos começar pelo aspecto que já foi comentado antes, a diferença entre

as favelas inseridas em áreas com alto preço da terra e as favelas inseridas em

áreas com baixo preço da terra. A primeira coisa a chamar a atenção é a mais fácil

delimitação das favelas nas áreas com alto preço da terra em contraposição à quase

indiferenciação das favelas em áreas com baixo preço da terra. Segundo Luciana

Andrade78, durante os anos da implementação do programa Favela-Bairro, alguns

bairros periféricos requisitaram o programa visto que as favelas que receberam o

programa passaram a apresentar infraestrutura superior à de determinados bairros.

                                                            78 http://piniweb17.pini.com.br/construcao/noticias/favela-bairro-84614-1.aspx

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Outro fator importante é a tendência das favelas inseridas em áreas com alto

preço da terra apresentarem densidade mais alta e disponibilidade de terra mais

baixa. Abramo (2007) caracterizou essas favelas como consolidadas e inelásticas,

porém, encontramos em algumas dessas favelas, apesar da indisponibilidade de

terra, um movimento considerável de demolição-construção densificando e

verticalizando algumas áreas. Não temos maiores informações do quanto essa

disponibilização de novas residências é significativa, mas devemos considerar essa

possibilidade.

Outros fatores também influem de forma flagrante na densidade da favela e

em determinados momentos contradizem a relação com o preço da terra no entorno.

Por exemplo, a proximidade de alguma centralidade. Favelas localizadas na zona

portuária, ou seja, próximas à Central do Brasil79 e ao Centro da cidade, ou favelas

localizadas ao longo das estradas de ferro e da Avenida Brasil80, ou seja, perto de

importantes meios de transporte e onde se localizaram diversas indústrias,

apresentam densidades maiores que favelas localizadas na Barra da Tijuca, que

exerce uma centralidade há bem menos tempo. Outro exemplo é a Babilônia, que

apesar de se encontrar em uma das áreas mais valorizadas da cidade e próxima ao

importante centro de comércios e serviços de Copacabana, foi regulada pelos

militares desde a sua formação até a década de 80.

Situação jurídica

Já chamamos a atenção nessa dissertação para o fato de significativa parte

das favelas terem sido ocupadas com algum tipo de autorização do dono do terreno

(SILVA, 2005, p. 101). Mas no que isso pode rebater no desenvolvimento das

favelas, ou, pelo menos no entendimento dos moradores sobre a propriedade da

terra? Faz alguma diferença se os moradores da Vila Autódromo81 bradam: “nós não

somos favela!” e os da Favela 1 dizem: “aqui nós não somos donos, donos da casa,

não da terra”?

                                                            79 Principal estação de trem do Rio de Janeiro. Concentra todas as linhas ferroviárias que partem para a periferia metropolitana norte e oeste. Além disso, se encontra próxima a um dos mais importantes terminais de ônibus da cidade e a principal estação de integração entre as linhas verde e laranja do metrô. 80 Com 58,5 km é a principal via da cidade. Liga o centro ao norte e oeste do município e algumas das principais rodovias da região, como a Rio-Santos e a Washington Luís. 81 A Vila Autódromo é uma favela localizada em uma área hoje valorizada. Historicamente engajada na luta contra a remoção, conquistou em 1997 a titulação de 104 famílias pelo Governo do Estado.

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Silva e Huguenin (2014 [2011]) demostram que a percepção da legitimidade

da propriedade vai ser reforçada não apenas pelo processo de troca, como exposto

anteriormente, mas também pela forma de acesso à terra pelos moradores originais.

É o que mostra o caso do Bairro Barcelos, localidade da Rocinha loteada pela

Companhia Cristo Redentor, empresa que nunca conseguiu regularizar situação do

loteamento frente aos órgãos públicos. Hoje, parte dos moradores recebeu o

documento de Legitimação de Posse82, porém, no momento do estudo, isso ainda

não havia ocorrido. Em entrevista coletada por Leitão (2004) e exposta por Silva e

Huguenin (2014 [2011]), um morador da Rocinha expõe a situação.

Quando vendeu aqueles terrenos, a Companhia de terrenos Cristo Redentor passou essa ideia para os moradores: vocês são diferentes, são melhores do que o restante da Rocinha. O segundo ponto é que, bem ou mal, existia esgoto no bairro Barcelos (...). As casas do bairro Barcelos eram todas em alinhamento, o arruamento era bom. O pessoal de cima tinha raiva do pessoal de baixo, que queria ser diferente (SILVA; HUGUENIN, 2014 [2011], p. 267).

Alguns depoimentos que coletamos indicam a mesma dualidade no discurso

de moradores que compraram seus terrenos de loteamentos e “invasores”. O

depoimento reproduzido a seguir é de um corretor imobiliário atuante na Favela 1.

A parte baixa hoje tem um documento que a prefeitura forneceu, quase chama termo de posse e moradia, é uma escritura... Escritura “simbólica”... Aqui embaixo não é posse, na verdade aqui é da [retiramos o nome da empresa loteadora para manter o sigilo da favela]. Aí eles foram vendendo, mas nunca desmembraram, por isso não existe escritura definitiva, mas aí ele deu... Fizeram o cadastramento dos proprietários... (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

A ideia de que “aqui não é posse”, em contraposição ao restante da Favela 1,

é sintomático dessa dualidade. A forma como funcionam as transações imobiliárias

na parte que foi loteada pela empresa e no restante da favela não parece se alterar

significativamente, mas aparece claramente no discurso o entendimento que na área

loteada os proprietários são donos da casa e do terreno e no restante são donos

apenas da casa, ou seja, da benfeitoria. Segue a fala do mesmo corretor quando

questionado sobre as propriedades nas áreas que não fizeram parte do loteamento.

                                                            82 Instrumento de reconhecimento da legitimidade da posse que registra a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse. Esse instrumento deve ser convertido em direito real de propriedade com a efetivação da regularização fundiária, o que dura cerca de 2 anos. Sobre o processo na rocinha ver: https://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-da-titulos-de-legitimacao-de-posse-de-imoveis-moradores-da-favela-da-rocinha-14776353

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129  

Existe uma benfeitoria, quem construiu não tem... Aí se recomenda a fazer um registro, quem não tem nada, se recomenda fazer um registro depois de construído, a associação não registra terreno, faz o registro da benfeitoria, e muitas vezes nem faz, faz o compra e venda, ele que construiu mesmo, é a mesma coisa, faz o particular de compra e venda e passa para o outro, e assim vai passando (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

A ideia de que os proprietários de imóveis nas favelas são donos da

benfeitoria, mas não da terra, é algo bastante difundido. Essa ideia apareceu

também nas entrevistas na Favela 2. A entrevista reproduzida a seguir foi concedida

por uma secretária eleita na Associação de Moradores da Favela 2.

Por exemplo, aqui nós não somos donos, donos da casa, não da terra, então aqui não tem escritura, o que a gente faz é ficha do morador constando onde ele mora. Não tem uma documentação específica. Só venda, quando você vai vender uma coisa... Você tem uma casa, aí você não tem escritura daquela casa. É um documento pra comprovar que você transferiu aquela casa pra outra pessoa, porque na verdade aquilo perante a justiça não tem valor, porque não tem um título, você não é dono da terra, então perante a justiça aquilo não é nada (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

É difícil saber precisamente como é difundida com tanta clareza a separação

entre propriedade fundiária e a propriedade da benfeitoria e a imagem que os

proprietários de imóveis em favelas não são proprietários da terra, mas podemos

considerar que a remoção como política permanente83 do Estado no Rio de Janeiro

há cerca de um século contribui para essa difusão. Nos processos de remoção, essa

separação aparece claramente quando os cálculos de indenização desconsideram a

terra e o trabalho investido na construção, ou seja, o cálculo é feito com base no

apenas custo dos materiais empregados.

Outra característica importante relacionada à origem do processo de

ocupação é a morfologia. O fato de o processo de parcelamento, por mais que seja

ilegal, ser centralizado, aumenta as chances dos loteamentos terem maior

regularidade. Podemos seguir no caso do Bairro Barcelos em relação ao restante da

Rocinha. Segundo Leitão (2004), alguns relatos já apontaram para essa diferença na                                                             83 Segundo Galiza, Vaz e Silva (2014, p. 535), “sobre o deslocamento de moradores pobres nestes contextos, observa- se que apesar de assumir crescentes dimensões e visibilidade em função dos grandes eventos e obras, a análise em diferentes momentos revela uma ação política que se mostra historicamente permanente,- mesmo se considerando as diferentes denominações e conjunturas. A obra de uma via, uma construção em área que se valoriza no mercado imobiliário, a “limpeza” de áreas especiais, enfim uma variedade de interesses e motivações cotidianas são fatores que as justificam, quer sejam expulsões, despejos judiciais ou remoções forçadas. A cotidianidade e a permanência da “solução remoção” no imaginário de autoridades públicas e classes altas e médias, faz refletir sobre a existência de uma “cultura de remoção” desde o final do século XIX até os dias de hoje”.

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130  

morfologia.

O quadro de estratificação sócio-espacial descrito por Drummond (1981) é também apontado numa extensa reportagem sobre a Rocinha, publicada pelo Jornal do Brasil, em 197984. De acordo com a reportagem, o Bairro Barcelos, situado na parte baixa da favela, junto à auto-estrada Lagoa-Barra, se destaca na paisagem da comunidade pela “maior disciplina das edificações” (LEITÃO, 2004).

As imagens de satélite do Google Earth deixam bem clara a diferença no

traçado, como mostra a imagem a seguir. A área contornada é a área loteada do

Bairro Barcelos.

Figura 5: morfologia - área loteada do Bairro Barcelos em contraste ao restante da Rocinha.

 Fonte: Google Earth.

A Formiga na Tijuca apresenta esse mesmo contraste.

                                                            84 “Rocinha, Cidade aberta: à luta, à vala e ao mutirão”, 31 de maio de 1979.

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131  

Figura 6: morfologia - área loteada da Formiga em contraste ao restante da favela.

 Fonte: Google Earth.

Essa diferença é importante porque o traçado reticulado parece ser de mais

fácil fiscalização, tanto por agentes locais como supralocais e a persistência desse

traçado em diversas favelas é um sinal de que ele impõe dificuldades à transgressão

dos lotes por seus proprietários, ou seja, é mais visível qualquer avanço de

edificação sobre a via pública ou sobre um lote vizinho.

Topografia

A topografia é um condicionante importante da produção do traçado urbano,

assim como da forma como é tratada a propriedade. Sobre o traçado urbano, o

mesmo do que foi tratado no ponto sobre as áreas originadas de loteamentos vale

aqui também. No entanto, a dificuldade da produção do traçado reticulado nas áreas

de encosta não é determinada pela forma de organização da ocupação, mas pela

própria topografia. Essa dificuldade pode ser demonstrada pelo resultado da

aplicação desse tipo de traçado em áreas de encostas. Podemos retomar o exemplo

da Formiga, onde a persistência do padrão reticulado resultou em ruas

extremamente íngremes, mas há diversos outros exemplos, como um loteamento no

Morro do Turano, na Tijuca. O caso de Paraisópolis, no Morumbi, em São Paulo,

único exemplo levantado de fora do município do Rio de Janeiro, e merece ser

destacado, pois é emblemático já que o traçado reticulado foi feito posteriormente e

corta de forma violenta o traçado original.

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132  

Figura 7: Formiga - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes.

 Fonte: Google Earth.

Figura 8: Morro do Turano - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes.

 Fonte: Google Earth.

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133  

Figura 9: Paraisópolis - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes. 

 Fonte: Google Earth.

Sobre a questão da propriedade, nos trabalhos de campo em que

participamos nos projetos de regularização urbanística e fundiária, em especial no

Turano, Babilônia, e Rocinha, foi comum aparecerem casos em que, em um primeiro

momento, encontramos acessos e fachadas que delimitavam os prédios com

clareza, mas no levantamento interno dos prédios, foi constatado que parte das

unidades habitacionais que eram acessadas por um prédio se encontrava em parte

ou como um todo ocupando a mesma terra do prédio vizinho. Ao perguntarmos aos

proprietários o que fazia parte de qual lote, percebemos que, em diversos casos, o

acesso interessava mais que a terra em que a edificação ocupava.

Os desenhos a seguir são esquemas de casos reais considerados

representativos dessa forma de pensar a propriedade e da influência da topografia

nesse arranjo. Importante ressaltar que foram encontrados casos semelhantes em

favelas planas como Manguinhos e Tijuquinha, porém em menor número.

O primeiro exemplo, apresentado a seguir, foi encontrado na Babilônia. São

dois conjuntos de casas que denominamos nesse estudo de lote A e lote B, os dois

cercados. O segundo pavimento de uma das edificações é acessado pelo lote A

enquanto o primeiro pavimento dessa mesma edificação é acessado pelo lote B,

sem que em nenhum momento o lote A tenha sequer um contato visual com lote B.

Os donos de ambos os lotes afirmam que um lote não tem nada a ver com o outro e

que são propriedades separadas. Essa configuração onde em determinada

Page 134: A produção do espaço na favela - UFRJ

134  

edificação o acesso de pavimentos diferentes se dão por ruas nos seus respectivos

níveis é bastante comum em favelas em declive, porém o cercamento de conjuntos

de casas em condomínios complexifica a situação. Nesse caso, aparentemente, o

cercamento dos condomínios foi posterior, o que fez com que a intercessão entre os

lotes comprometesse mais unidades habitacionais.

Figura 10: Sobreposição de lotes (caso 1).

 Fonte: desenvolvido pelo autor.

O segundo exemplo também foi encontrado na Babilônia e apresenta uma

configuração diferente. Nesse caso, os proprietários também reconhecem seus lotes

como lotes distintos. São dois prédios com acessos separados e localizados em

uma encosta. Ambos têm acessos diretos e separados para unidades habitacionais

localizadas no nível da rua e unidades em pavimentos superiores, porém, as

unidades habitacionais localizadas em pavimentos inferiores ao nível da rua em

ambos os prédios são acessados por dentro do prédio do lote B. Nesse caso,

podemos levantar duas hipóteses: a primeira é que o dono do lote B construiu os

pavimentos inferiores de ambas as edificações e vendeu a laje de uma delas ou a

segunda onde o dono do lote B aproveitou seu acesso aos níveis inferiores para

construir no espaço livre deixado pelos alicerces da edificação do lote A.

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135  

Figura 11: Sobreposição de lotes (caso 2).

 Fonte: desenvolvido pelo autor.

É importante não nos deixarmos levar pelo mecanicismo tão presente nos

estudos que colocam o aspecto morfológico no centro da análise. As condições

materiais onde se desenvolvem os processos sociais são inumeráveis e mesmo que

pudéssemos analisar todas as determinações que se assentam sobre a sociedade,

ainda resultaria em um leque infindável de possibilidades. Dessa forma, podemos

nos defrontar com uma leitura diferenciada da propriedade que se baseia nos

acesso à unidade habitacional e não necessariamente na terra que ocupa e a partir

dessa configuração entender o papel da topografia nesse processo. Mas jamais

poderíamos olhar um morro e extrair dele a definição desse tipo de configuração.

Não é a topografia que define o processo social, mas a partir da análise do processo

podemos ver o papel da topografia.

3.1.4 Segurança da relação entre compradores e vendedores

O desenvolvimento da propriedade nas favelas exige desses territórios uma

organização local que a afirme. Essa organização se constrói tanto no nível da

Page 136: A produção do espaço na favela - UFRJ

136  

vizinhança, com a criação de redes de solidariedade, como no território como um

todo, com as Associações de Moradores e outras formas de organização como o

narcotráfico varejista. Uma das formas de organização mais recorrentes é a emissão

de documentos na forma de escrituras ou registros de compra e venda pela

Associação de Moradores. As organizações locais não funcionam apenas como um

cartório, mas, com frequência, agem na mediação de conflitos e se utilizam da força

própria ou de sua posição privilegiada de acesso à instituições de Estado

(supralocais). Este subcapítulo está dedicado a expor algumas formas de

organização internas que permitem uma segurança relativa da propriedade da terra.

Não pretendemos abordar toda a diversidade dessas formas de organização, nem

caracterizá-las de forma mais detida. O último capítulo dessa dissertação se dedica

a complexificar a análise da relação entre esses agentes. Aqui, basta demonstrar a

sua importância na constituição de uma segurança relativa da terra e, dessa forma,

na consolidação de um mercado imobiliário.

Sendo o mercado imobiliário algo tão generalizado nas cidades capitalistas,

podemos nos perguntar se há algum lugar que não reúna as condições mínimas

para o desenvolvimento do mercado imobiliário. Podemos fazer um breve exercício.

Tivemos uma rápida experiência em um conjunto habitacional construído pela

prefeitura denominado SOEICOM e localizado em Marechal Hermes85. Sendo o

conjunto construído pelo Estado, a situação jurídica estava mais próxima da oficial

do que a situação que geralmente encontramos nas favelas. No entanto, a

população não tinha nenhuma espécie de vínculo com o território, nem com os

responsáveis pela atividade de varejo do narcotráfico que em seguida se

estabeleceu no local. O resultado é que, no momento em que a equipe de

cadastramento chegou ao local para o trabalho de campo, grande parte das casas

estava tomada pelos varejistas do narcotráfico, o que constitui um grau de

insegurança dos contratos entre vendedores e compradores e locadores e locatários

que impossibilita a regularidade de transações desse porte. Algumas vendas

isoladas podem acontecer nesse contexto, porém em volume menor. Melhorias,

ampliações ou construções novas ficam praticamente impossibilitadas, pelo menos

até que se alcance alguma estabilidade. Dessa forma, algo incontornável é um nível

                                                            85 Marechal Hermes é o único conjunto ainda existente dos três planejados pelo governo Hermes da Fonseca. Fundado em 1913, é considerado o primeiro bairro operário planejado do Brasil. Hoje é um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, próximo à Madureira.

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137  

mínimo de segurança do contrato entre as partes da transação imobiliária e a

segurança da propriedade. Podemos observar, nesse caso, também, que mesmo

sendo de importância central em nossa sociedade, a forma jurídica não determina

de forma absoluta as relações sociais de propriedade.

Para Abramo, onde o Estado não garante as relações contratuais, o papel das

organizações locais no mercado imobiliário é o de garantir a confiança contratual

entre os dois lados da transação.

Quando a lei não se constitui no elemento de garantia das relações contratuais de mercado, outras formas de garantia devem se desenvolver para restabelecer uma relação de confiança entre as partes envolvidas na relação contratual de mercado. Quando não há confiança que os contratos serão respeitados e não há mecanismos coercitivos de cumprimento contratual entre as partes, os contratos de mercados deixam de existir, ou seja, o mercado não se reproduz a partir de relações mercantis e deixa de existir como mecanismo de coordenação das ações individuais (Bruni, 2006). No caso do mercado informal e popular de solo urbano, outras formas de garantias devem se construir socialmente para que as partes estabeleçam uma relação de confiança em respeito aos termos contratuais estabelecidos entre compradores e vendedores no mercado de comercialização, e entre locatários e locadores no mercado de locação. Do contrário, a relação de troca mercantil não se realiza em razão da desconfiança mútua de um eventual rompimento unilateral do contrato informal. Em outras palavras, sem as instituições formais, o mercado informal de solo deve estabelecer as suas próprias instituições reguladoras, incluindo os mecanismos coercitivos, no caso de rompimento contratual unilateral de uma das partes (Abramo, 2009). Essas instituições do mercado informal permitem que os contratos implícitos estabelecidos entre as partes sejam respeitados em termos inter-temporais e inter-generacionais (ABRAMO, 2007, p. 30 e 31).

A compreensão, exposta anteriormente, de que o processo de troca legitima a

relação de propriedade e a reprodução dessa forma de relação tem certa autonomia

nos indica que as relações de troca em determinados contextos podem não

necessitar de aparelhos coercitivos ou instituições reguladoras para serem

reproduzidos, porém, nos casos que estudamos, eles têm um papel ativo.

Nessa dissertação elegemos a Associação de Moradores, o narcotráfico

varejista e os agentes de Estado como os agentes locais reguladores que vamos

analisar. Porém os agentes são os mais diversos: podem ser igrejas, ONGs, milícias,

proprietários fundiários, etc. É importante lembrar que, excetuando determinados

agentes do Estado, nenhum desses agentes tem a função específica de regular as

construções, mediar conflitos, documentar propriedades, etc. Cada agente tem a sua

função específica e pode atuar em defesa da segurança da propriedade ou não, a

depender do contexto. No caso exposto sobre SOEICOM, a existência de um

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narcotráfico varejista sem nenhuma coesão com a população local gerou um

contexto em que esse agente atua de forma hostil à propriedade fundiária. Ao

mesmo tempo, os agentes do narcotráfico podem agir, como já apresentamos, na

mediação de conflitos a fim de evitar a entrada de agentes do Estado, em especial a

polícia. A Associação de Moradores também pode ou não registrar as compras e

vendas, mediar os conflitos, e, ao mesmo tempo, pode agir na retenção ou

distribuição de terrenos desestabilizando o mercado imobiliário local.

3.1.5 Os limites

Apesar de o acesso às autoridades oficiais do Estado existir e ser acionado

com frequência, e da população organizar seus próprios dispositivos de controle da

propriedade, há limites para a centralização de imóveis decorrentes dessa forma de

organização. A dependência das redes de solidariedade e a fragilidade das

organizações locais exigem do proprietário a sua presença no local onde se

encontram suas propriedades para a manutenção delas. Alguns mecanismos, como

a manutenção das redes sociais ou influencia sobre instituições locais para a

manutenção apareceram como alternativa para os proprietários que já não moram

nas favelas onde se encontram suas propriedades. Outro fator importante é que a

fragilidade do direito de propriedade exige a demarcação da terra com a ocupação

por edificação. Apenas em casos especiais os proprietários conseguem manter um

terreno vazio por longo período86, e mesmo a manutenção de um imóvel construído

e desocupado apresenta dificuldades. Nas entrevistas realizadas na Favela 1,

encontramos dois casos em que a ausência do proprietário na favela acabou

resultando na apropriação do imóvel por outra pessoa, nesses casos o próprio

inquilino. O primeiro depoimento é de um corretor imobiliário, que conta o caso de

um inquilino que se apropriou da casa que alugava. Isso ocorreu na época em que o

entrevistado era vice-presidente da Associação de Moradores da Favela 1.

                                                            86 Há casos em que o morador da favela herda ou é responsável por cuidar de uma propriedade que tem ou já teve um caráter legal, como exemplificamos a partir de dois casos no Rio de Janeiro e em Florianópolis. 1) Um morador do Morro do Turano ficou responsável por impedir o avanço da favela para dentro do terreno Colégio Santa Dorotéia hoje um prédio na Rua do Bispo, 191, confrontante com a favela do Turano, e, em troca, foi autorizado a construir a sua casa dentro do terreno, no limite com a favela. 2) Lonardoni (2007) apresenta um caso na Serrinha, em Florianópolis, onde um casal ficou responsável por vigiar as terras de um proprietário que quando morreu cedeu a terra ao casal. Em um casamento posterior a mulher que herdou a terra e seu novo marido lotearam e venderam as terras.

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Teve do morador ir embora, alugar o seu imóvel pra outra pessoa e de repente a pessoa não mandar o pagamento, e ele vir saber porque não está mandando e chegar, se deparar com outra pessoa dizendo que é dona, que comprou dele. Aí foi... mal caráter né (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

O mesmo entrevistado demonstra uma fragilidade no sistema de registro de

compra e venda da Associação de Moradores. Segundo o entrevistado, a

Associação tem dificuldade de averiguar a legitimidade da solicitação das pessoas

que vão registrar suas propriedades.

Lá passou esses casos assim, uma vez ou duas, aí eles vão e entram em um entendimento, pra quem comprou e foi de boa fé, já que a pessoa já está fora também, termina pagando um percentual, pra não perder e negociam, foi negociado. Se o dono não quisesse negociar, quem tivesse lá ia perder. Mas fez documento da associação e tudo, associação ia adivinhar... Você não vai adivinhar. Vai fazer o que? O cara está falando. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)

Ainda na Favela 1, outro entrevistado descreveu um caso parecido.

Um cara me procurou e disse que tinha alugado uma casa e que o cara tinha vendido a casa dele (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)87.

Na Favela 2, uma moradora entrevistada integrante de uma família que mora

no local desde a década de 50 expôs um caso recente onde um morador de uma

área determinada da favela88 passou um longo período de tempo fora e quando

voltou sua casa havia sido vendida, segundo a moradora, por um agente do

narcotráfico varejista. Segundo a entrevistada, a dona da casa conseguiu reavê-la

com a intermediação da Associação de Moradores, mas o comprador perdeu o

dinheiro investido.

Em todos os casos apresentados, o elemento em comum é a ausência da

fiscalização do proprietário, o que nos mostra que a resolução dos conflitos pela

Associação de Moradores deve se dar principalmente através de denúncias, e não

por uma fiscalização ativa e que a presença do locador na área é de fundamental

importância para a manutenção de suas propriedades. Entre os proprietários de

imóveis alugados entrevistados, todos disseram estar sempre presentes na favela

onde se localizam suas propriedades.

Uma possibilidade que apareceu em algumas entrevistas - e que podem

                                                            87 Esse caso será tratado no item 4.1 88 Parte baixa da Favela 2. É a área mais adensada da favela e, aparentemente, uma das áreas que concentra a população de baixa renda.

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140  

permitir o proprietário se afastar por mais tempo de suas propriedades - é a

manutenção de um vínculo com a vizinhança. Ao que parece, tanto Associação de

Moradores como corretores buscam informações com os vizinhos no momento de

realizar as transações.

A gente procura fazer uma investigação, se foi ele que construiu, o tempo em que ele está ali, o vizinho... (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

Porém, a insegurança para o proprietário não está apenas na possibilidade

de alguém tomar o seu imóvel. Os corretores imobiliários com frequência apontaram

a necessidade se diminuir as exigências dos contratos de aluguel para aumentar a

demanda. Segundo os corretores entrevistados, não é possível cobrar dos locatários

na favela o mesmo que se cobra no “asfalto”. Independente da pertinência de todas

as cobranças efetivadas no “asfalto”, ao que parece, no caso de um locatário

acumular dívidas e se mudar, o proprietário ou a corretora não têm uma forma de

agir padronizada e em muitos casos fica sem poder de ação.

Houve um momento em que algumas pessoas que saíam até devendo até sair do imóvel, depois a gente vê que saiu e foi embora. Mas nada de confusão. O proprietário compreender que ficou 2 meses ali, aconteceu, mas muito raramente. E aí, quando acontece, a gente passa a ter mais precaução com as pessoas que estão alugando. Se a gente vê que a gente não tem como ficar perguntando: — “ah, você trabalha? Trabalha aonde? Cadê seu contracheque?” isso lá embaixo no “asfalto” é assim né, pede contracheque... A gente só pede identidade e CPF, mais nada. E o pagamento, entra pagando. Tem área que a gente cobra 2 meses, um mês e um mês de depósito e tem áreas que a gente só cobra o mês de entrada. Não existe pagar depois, se você mora até o dia 29, seu prazo é até o dia 30, dia 29 você desaparece, morou na minha casa então, qual foi o resultado. Paga pra entrar, em todo lugar é assim. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

O pagamento adiantado aparece como uma forma de amenizar os riscos,

mas, como não há uma forma padrão de despejos, o maior ou menor risco que

envolve as operações continua dependendo fortemente da influência sobre a

vizinhança e instituições locais e do poder de retórica dos proprietários ou dos

corretores. A forma de gestão dos alugueis, incluindo as formas de cobrança e de

despejo, será tratada mais a frente. Aqui, basta dizer que mesmo com o pagamento

adiantado os proprietários e corretores nem sempre tem poder de ação em casos de

períodos mais longos de inadimplência. O depoimento a seguir é de um corretor,

que fala como sua atuação depende da retórica e do poder de convencimento e

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como perde o poder de ação quando o inquilino toma uma atitude mais drástica.

Você tem que ter um jogo de cintura, de como lidar com aquelas pessoas, por que você lida com o ser humano, você lida com uma “obra prima” [matéria-prima, imóvel em favela] complicada. Comunidade, então você tem que ter muita sutileza, muito jogo de cintura [...] Você conta uma história pra mim, eu vou entendendo. Aí passa uma semana, passa duas, daqui a pouquinho tem um mês e o proprietário me cobra: “Fulano, e o dinheiro, o aluguel”. Entendeu? Então mudou um pouco o perfil. Agora, quanto às regras, “direitos e deveres”, é cobrado, existem cláusulas, onde a gente penaliza o cara de todas as formas, mas a gente não age com rigor! A gente procura agir com sutileza. Sentar pra conversar, tentar negociar. — “Quantos meses de atraso o senhor tem?” Tentar negociar isso aí, o cara vem com um pelo menos, ou vem com a metade, promete daqui a dez dias me pagar o resto... A gente vai fazendo acertos, pra tentar atender às necessidades das pessoas. Mas tem outros também que usam de má fé, se aproveitam da situação e quando menos você espera, ele vai embora, mesmo com todas as regras (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).

Esse parece ser um limite com o qual os proprietários se deparam com certa

frequência. Os agentes locais (Associação de Moradores, narcotráfico varejista, etc.)

parecem ter certo poder de atuação nesses casos quando o sujeito ainda se

encontra dentro da favela, mas, quando ele sai, a causa parece se dar por perdida.

O cara vai embora, não paga a conta de luz... Tem inquilino que, infelizmente, está te devendo e viaja na calada da noite. O problema é sério, e você tem que conviver com isso, porque o cara fala que vai te pagar hoje, amanhã você está cobrando, daqui a pouco o cara se manda, se muda, quantas mudanças já fizeram na calada da noite. O pessoal ate brinca comigo, — “Olha o inquilino teu lá!” Esta descendo uma mudança né? Se presume que seria alguém que está se mudando porque não pagou o aluguel. Essa é a dificuldade que a gente está vivendo. (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1)

Outra questão em relação à propriedade na favela é a necessidade do

investimento em construção para a sua demarcação. Nos casos estudados, a forma

de o proprietário se manter como proprietário é a construção, podendo ele ceder seu

uso a outros ou usar ele mesmo. Ainda assim, a existência de terrenos vazios não é

uma impossibilidade nas favelas e de fato eles existem. Esses terrenos podem ser

ocupados diretamente por novos proprietários, mas isso ocorrerá através de

construção. Vamos aprofundar sobre as estratégias de ocupação no próximo

capítulo. No entanto, apareceu no decorrer do estudo uma forma de comportamento

que poderíamos comparar com o comportamento de proprietários de terrenos vazios

da cidade como um todo. Nos casos que vamos apresentar, a manutenção como

proprietário não tem origem em uma compra e venda ou em um direito jurídico, mas

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142  

foi necessária a manutenção de uma posição de poder dentro da favela. Quando a

posição de poder desaparece, desaparece também o poder sobre os terrenos.

Um caso importante e que ganhou certa repercussão foi descrito por Silva e

Huguenin (2014 [2011], p. 269), onde o exercício do poder de presidente da

Associação de Moradores garantiu a possibilidade de distribuir terrenos

provavelmente em troca de prestígio político e da possibilidade de manutenção da

posição de poder. Esse caso se passou na Rocinha e se refere ao presidente da

Associação de Moradores, “Zé do Queijo”.

Outra forma recorrente de acesso à moradia é pela doação de casas e, principalmente, de terrenos. Essa prática foi observada no Laboriaux, já nas áreas próximas ao limite da Floresta da Tijuca, onde muitos moradores declararam que os terrenos onde construíram suas casas foram doados pela Associação de Moradores, a maioria através do presidente “Zé do Queijo”, importante liderança local no início dos anos de 1980 (SILVA; HUGUENIN, 2014 [2011], p. 268 e 269).

No entanto, a Associação de Moradores não é o único agente que consegue

exercer esse tipo de poder. Na Favela 2, uma representante da Associação de

Moradores 2 nos aponta que a ocupação de novos terrenos na favela se dá através

da venda dos terrenos, mas diz não saber quem são os vendedores.

— Quando se ocupa um terreno vazio, você acha que, em alguma hipótese, alguém consegue vender ou sempre é ocupação direta? — Tem dos dois, geralmente alguém vende escondido, por debaixo dos panos, essas coisas. — Mas como faz? Você sabe como é o processo? — É risco deles mesmos, porque não passa por aqui. — Você não sabe? — Só sabe quando a casa está em pé, aí essa casa não é cadastrada, ela não pode ser cadastrada aqui (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

Um elemento importante aqui é que, nesse caso, a Associação de Moradores

não cadastra os imóveis em terrenos novos, tanto por ter se posicionado contra a

ocupação desses terrenos em diversas oportunidades alegando o risco de

sobrecarregar a infraestrutura, quanto para não correr o risco de entrar em conflito

com a prefeitura. Não sabemos se, com o passar do tempo, quando alguém comprar

uma casa em um terreno que está sendo ocupado agora se essa mesma gestão ou

uma próxima vai seguir negando o cadastramento ou o documento de compra e

venda. Isso vai depender dos parâmetros que a associação vai utilizar para definir a

Page 143: A produção do espaço na favela - UFRJ

143  

legitimidade da ocupação nesse contexto.

O depoimento a seguir é de um comerciante e morador da Favela 2. Ele

também não consegue apresentar com clareza quem são os vendedores das terras,

porém nos aponta os mecanismos utilizados pelos novos proprietários para

desfazerem a contestação de outros moradores, da associação ou dos próprios

agentes do Estado. Segundo o entrevistado, as pessoas que estão construindo em

terrenos novos utilizam um discurso de autoridade associando a atividade

construtiva e o direito sobre os terrenos a nomes de agentes do narcotráfico

varejista. Dessa forma, entendendo que se contrapor ao narcotráfico varejista é

expor a vida de seus integrantes, nenhum dos agentes locais assume o risco da

contestação.

— Então a Associação de Moradores, só pra entender, ela antes tentava segurar pra não ter mais gente e só ia movendo as pessoas de lugar quando precisava botar em um lugar melhor. — Mas hoje em dia não, hoje em dia as pessoas estão invadindo realmente, está uma verdadeira baderna que a prefeitura tirou pessoas que estavam naqueles locais e realocou em outros lugares e aí o que acontece aquelas áreas onde morava gente que a casa foi destruída, agora as pessoas estão voltando a construir lá. — E a associação não consegue mais intervir nisso? — Não consegue por causa da influência diretamente do tráfico. — Mas o tráfico está autorizando e desautorizando as construções? — As pessoas usam o nome de pessoas envolvidas pra poder construir, e aí você complica a situação por que você não pode expor sua vida, você não tem segurança, porque a UPP não passa da quadra, a UPP não vem mais aqui, toma café comigo mais cedo, a UPP ela sequer atravessa a rua, [...] porque se ela atravessa a rua dá tiro. — Então o cara relaciona a construção com um nome do tráfico. — Tenta usar o nome de pessoas pra se beneficiar (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Finalmente, um morador da Favela 2 em uma conversa89 nos indica que o

próprio tráfico a partir do momento que assumiu um domínio territorial mais estável,

passou a vender os terrenos que já eram vazios e os que foram destinados a praças

ou são resultados de remoções.

Nesse caso, a possibilidade de exercer poder sobre os terrenos vazios,

mantendo-os sem ocupação desautorizada ou vendendo, provém do poder armado

do narcotráfico varejista. Um caso semelhante foi observado em São Paulo por

Nazareth e Zuquim (2016, p. 15), onde o “crime” passou a construir um “parque

imobiliário” nas áreas vazias resultantes de obras públicas. Esse caso será                                                             89 Esse morador não foi entrevistado, o dado vem de uma conversa informal realizada na casa do morador.

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144  

apresentado no capítulo 4, subcapítulo “4.2 narcotráfico varejista”.

3.1.6 Mecanismos de endividamento

Ainda que a prática de compra à vista seja bastante comum nas favelas, a

ampliação da possível demanda para a compra de imóveis exige algum mecanismo

de endividamento. Como já foi exposto no capítulo 1, o produto imobiliário tem um

alto custo, provavelmente muito alto para a maior parte da possível demanda poder

pagar à vista. Talvez o baixo acesso ao crédito pela população favelada, somado ao

alto preço unitário do produto imobiliário seja um dos determinantes do baixo preço

de venda em relação ao preço de aluguel dos imóveis em favelas apontados por

Abramo (ABRAMO, 2007, p. 40 e 41). No entanto, o fato de que a renda fixa é mais

importante para conseguir um empréstimo do que a propriedade imobiliária nos faz

acreditar que o morador de favela tem um relativo acesso às instituições financeiras.

Ainda assim, há formas de acesso a empréstimo dentro da favela, que, mesmo que

não tenhamos a dimensão da utilização desses mecanismos, vale a pena expor

ainda que rapidamente.

O primeiro relato é de um morador da Favela 1, que, descreve duas formas

de endividamento. A primeira se dá numa relação mais formal e impessoal, onde o

comprador paga uma entrada e divide o resto em prestações via nota promissória. A

segunda forma aparece numa relação mais informal e pessoal de empréstimo, onde,

num acordo entre amigos para a compra de um imóvel, um pagou o imóvel completo

e o outro pagou a metade que devia ao primeiro em prestações.

Foi compra né, dei uma entrada e fiquei pagando. O primeiro que foi o prédio do lado, eu dei uns 10% de entrada e paguei o resto em 40 prestações. Aí já aqui eu comprei a vista. Uma casa, o vizinho queria me vender, eu dizia que não, um dia ele chegou pra mim: “se você não comprar hoje eu vou vender pra outro”. Eu morava de aluguel na outra rua e tinha o prédio aqui. Aí ele me oferecia porque era colado com o prédio. Comprei juntou com o outro vizinho que eu disse que me ajudou. [...] Eu paguei tudo no começo e ele foi me pagando depois. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

A prática mais comum encontrada foi o lançamento de notas promissórias

onde o próprio construtor/proprietário admite a perda temporária de liquidez em troca

de juros e do aumento da demanda solvável. O segundo depoimento é de um

proprietário de imóveis que não mora na Favela 1, mas vai lá todo dia. Possui uma

concessionária de gás na favela e tem a prática de acumular recursos do comércio e

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145  

de aluguel para construir novas casas. Segundo o entrevistado, ele compra uma

casa térrea, demole e constrói prédios de apartamentos. A sua preferência é alugar

os seus imóveis, mas já vendeu quatro deles a fim de comprar e construir outros.

Segundo o entrevistado, as vendas foram feitas com notas promissórias com 30% a

40% de entrada e as parcelas dependem da condição do comprador.

Essa forma de cessão/acesso ao crédito tem como limite a capacidade do

vendedor de abrir mão de liquidez por um tempo determinado e da sua capacidade

de cobrar o comprador ou de retomar a casa no caso de não pagamento. Porém,

apesar de o parcelamento aumentar a potencial demanda dos vendedores e esses

vendedores poderem cobrar juros dos seus compradores, provavelmente o baixo

acesso ao crédito nas favelas, de uma forma geral, devem pressionar os preços dos

seus imóveis para baixo, visto que eles competem com proprietários que não tem

condições de ceder crédito.

3.2 Contratos de aluguel

Importante elemento da propriedade privada no capitalismo é a separação do

direito à propriedade de seu uso direto. Dessa forma, para a formação de um

mercado imobiliário em favelas, é necessário, além de um determinado nível de

segurança da propriedade, dispositivos que permitam essa separação. Esses

dispositivos específicos (mediação de agentes internos como a Associação de

Moradores, narcotráfico varejista ou corretoras) se combinam com o acesso às

instituições supralocais (justiça comum).

Já apresentamos alguns limites da atuação dos agentes locais na segurança

dos contratos para os locadores. Agora é importante destacar os mecanismos

utilizados para garantir uma segurança relativa. Esse subcapítulo está baseado no

depoimento de proprietários de imóveis e corretores imobiliários das favelas

pesquisadas.

3.2.1 Documentos

Os contratos de locação em favelas apresentam grandes semelhanças com

os contratos do restante da cidade. Mesmo que os contratos sejam feitos sobre

propriedades que não são registradas e oficializadas pelo Estado, esse tipo de

contrato facilita o acesso às autoridades jurídicas oficiais e não oficiais. Dessa

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forma, uma das preocupações apresentadas pelos corretores e proprietários é a de

apresentar um padrão condizente com o direito oficial.

É o padrão, tudo que a gente usa é padrão, não existe nada que... a gente tem uma orientação jurídica, a gente não pega um papel e vai fazendo as coisas sem conhecimento de causa não. É por uma questão de segurança, então tudo que eu estou falando pra você, tudo que eu passo para o inquilino, ou que eu passo para o proprietário, existe uma orientação jurídica. Não faço nada sem uma orientação jurídica. Quando eu não sei alguma coisa, eu vou a quem pode me dizer alguma coisa pra me orientar, eu não faço nada sem uma orientação nesse sentido, até por uma questão de segurança e credibilidade. (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1)

Eu busco direto no Globo, na internet e moldo do meu jeito, pego o principal e mantenho (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

Podemos lembrar o caso exposto anteriormente em que o corretor busca a

forma do direito jurídico oficial para os contratos, porque eles “rodam” nas mãos de

empregadas domésticas que facilmente têm acesso ao padrão do restante da

cidade. Porém, na prática de locação, o que aparece como especificidade dos

alugueis em favelas são as exigências para o início do contrato. Os locadores em

geral consideram que a demanda nas favelas tem menor capacidade de cumprir as

exigências feitas no restante da cidade, como propriedade na cidade que sirva como

garantia, seguro fiança, caução, etc. Os três corretores entrevistados apontaram a

necessidade de reduzir as exigências dos contratos de locação para adequá-los à

população demandante de habitações nas favelas. O primeiro aspecto apontado é o

nível de renda da população demandante. Dessa forma, seria inviável a cobrança de

fiador, seguro fiança, etc.

Então, a gente aqui procura fazer a coisa de uma forma que facilite a vida de quem está alugando. Porque eu entendo o seguinte: não adianta você cobrar do inquilino o máximo que ele não pode dar, tem que trabalhar de acordo com a situação de cada um, porque o perfil dos inquilinos de comunidade, da nossa comunidade, até que é um pouquinho mais alto, mas a maioria ganha 3, 4 ou 5 salários mínimos, no máximo, então você vai explorar essas pessoas? Não tem como! Então você tem que “fazer” um aluguel compatível com o que eles ganham (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).

Outro corretor aponta que, pelo mesmo motivo abre mão da investigação pelo

SPC e SERASA, indicando que a quantidade de devedores na favela é alta.

Essa coisa de receber o aluguel, administrar, depositar. O que acontece, como nós vivemos numa área carente, muitas pessoas tem nome no SPC, muitas pessoas têm nome no SERASA, muitas pessoas não querem fazer o

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negócio com compromisso... quanto menos compromisso a pessoa tiver, menos papelada a pessoa tiver, melhor (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1).

O corretor da Imobiliária 3 aponta que a fiança fica inviabilizada pela

ilegalidade dos imóveis na favela, mas que faz um levantamento do perfil do

inquilino antes de alugar.

A gente amarra de todas as formas, dentro do que é possível. Por exemplo, você comentou a respeito do depósito, nós aqui não cobramos fiança, não cobramos porque o imóvel não é legalizado. Então se aqui é comunidade e não tem como você cobrar fiança, você vai cobrar fiança de quem? Então a gente faz um contrato flexível, aonde facilita o acesso do morador. O cara que vem alugar o imóvel, certo? Eu faço um levantamento do cadastro daquele inquilino, eu vejo que aquele futuro inquilino tem o perfil que é preciso. Na época em que eu faço este levantamento, ele está “OK”, mas daqui a dois, três meses, ele muda de comportamento, muitas das vezes, o cara por estar precisando, ele aceita as condições de proposta, depois é que você vai ver quem é quem, se ele paga em dia, se ele atrasa. Aí o cara vai mudando de perfil, dois meses, três meses, quatro meses, ele funciona bem, daqui a pouco ele começa a pisar na bola, acontece agora com vários inquilinos que eu estou tendo agora (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).

No entanto, o corretor da Imobiliária 1 alega que em todos os contratos o

pagamento é adiantado e que, em alguns casos, além de cobrar adiantado cobra

mais um depósito. Para esse corretor, o pagamento adiantado e o depósito são

mecanismos de segurança contra calotes. Para o entrevistado, o risco de o inquilino

desaparecer parece alto.

Já o corretor da Imobiliária 3 diz cobrar o depósito por significar uma

segurança contra danos ao imóvel.

Então, a gente cobra o depósito não é nem pelo aluguel, é mais em face de uma garantia de bem imóvel, ou seja, você tem um patrimônio, eu não conheço você, você quer me alugar um imóvel, eu vou te entregar um imóvel, vistoriado, tudo bonitinho, tal... Qual o acordo? Você me entregar o imóvel todo bonitinho, como você está recebendo. Esse depósito que lhe é cobrado, é uma garantia apenas para qualquer perda ou dano que advir do contrato, não é para aluguel. Se por acaso a pessoa não me der problema nenhum, eu cobrei de você dois meses de depósito e ao fim do contrato você não me deu problema, o que vai acontecer? A gente faz uma vistoria dentro do imóvel, só um detalhe, quando eu alugo pra você, eu digo pra você o seguinte, você vai me entregar o imóvel de acordo como recebeu, de que forma? Pintado, parte de utensílio toda legal... Agora, se por ventura você não me entregar dentro do que é combinado, vai ter um abatimento (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).

Ao que parece, é mais importante constatar que o depósito de fato serve para

assegurar os proprietários contra danos, dívidas ou calotes proporcionados pelos

inquilinos do que entender a intenção dos proprietários ao cobrá-lo. Na Favela 2 a

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mesma estratégia foi identificada.

É isso: olha, tem que pagar o adianto de um mês pra garantir que se você sair a gente tem uns 30 dias aí pra conseguir sossegado. Mas se não conseguir pagar também está aqui olha, acabou você sai, entendeu, é assim, mas as pessoas geralmente pagam um mês antes (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

Muitos proprietários se apropriam de contratos padrões e dão pouca

importância para o conteúdo dos contratos. É o caso do Proprietário 1, orientado por

uma advogada a quem teve acesso a fazer os contratos para se resguardar. No

entanto, para o Proprietário 1, o conteúdo do contrato e o cumprimento de suas

cláusulas tem pouca importância. O documento garante o registro da transação com

o consenso de ambas as partes, podendo ser usado em tentativas de roubo do

imóvel, calotes ou longos períodos de inadimplência frente à justiça oficial. Dessa

forma, o contrato, nesse caso, é utilizado não como um código de postura, mas

como um mecanismo de segurança em caso de conflito.

— E como são feitos os acordos de aluguel lá no prédio? — Ah, eu faço contrato, nem todo mundo, pessoal antigo, muito antigo... Teve o rapazinho que entrou agora que eu não fiz contrato. É um risco, mas eu mesmo administro. — Você tem modelo de contrato? — Compro em papelaria. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

Uma questão que é específica das propriedades fundiárias irregulares frente

ao direito jurídico oficial e que rebate nos aluguéis em favelas de forma particular é o

fato de os proprietários de imóveis não poderem ceder a titularidade dos contratos

com as concessionárias de água e energia elétrica sem correrem o risco de o

inquilino ser visto como proprietário legitimo frente ao direito jurídico oficial. Dessa

forma, a cobrança das contas referentes às concessionárias acaba por ser feita de

forma mediada pelos proprietários dos imóveis ou pelo corretor responsável.

— O problema maior que nós temos aqui na comunidade é problema de inadimplência que está muito alta e lidar com a parte de conta de luz, conta de luz é um fator que atrapalha demais o nosso trabalho. — Mas são vocês que administram? — Não seria o correto nós administrarmos, mas por uma questão de compromisso que a gente tem com o proprietário, a gente muitas das vezes é obrigado a ficar pegando no pé do inquilino pra que ele nos apresente a conta de luz mês a mês. Isso nos trás um desconforto muito grande, por que quem tem que estar se preocupando com a conta de luz não é a administradora, é a Light, mas ela muitas das vezes peca nesse sentido e aí o camarada que se aproveita da situação, acaba não pagando. Isso trás pra

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nós um transtorno muito grande. Administrar uma coisa que você não tem controle, fica muito mais difícil. Mesmo você colocando normas, se você coloca em contrato, essas coisas todas. [...] Tem a conta de 100 reais, mas tem a conta de 200, 300, mas se o cara não pagar 3 meses, você já está perdendo 900 reais. E como administrar isso se a responsabilidade de cobrar conta de luz não é minha? A gente fica com esse problema (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).

Na Favela 2, um dos proprietários de imóveis aponta a dificuldade de lidar

com a questão. O entrevistado, nesse momento, respondia uma questão sobre o

acesso dos moradores à justiça e uma das indicações que o entrevistado dá é que,

para ele, o meio de resolução desse tipo de conflito é a justiça comum.

Vêm, tem que resolver. Algumas áreas as pessoas ficam com medo de atuar ou às vezes até de denunciar uma irregularidade que está acontecendo dentro da tua casa. às vezes o cara está morando lá e não quer pagar o aluguel, a conta de luz geralmente está na conta do proprietário e aí o cara acaba sendo acionado pela light, o nome do cara vai pro SPC, o inquilino vai lá, faz um gato e aí como é que você fica? (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2)

O acesso ao direito jurídico oficial é, provavelmente, o motivo para a

preocupação com a adequação dos contratos a essa forma de direito. Isso não

impede que, em determinadas ocasiões, os proprietários e corretores não se utilizem

dos meios que tem à disposição dentro da favela, às vezes, inclusive, utilizando

violência, mas os procedimentos enquadrados nos meios legais também existem.

Trataremos a seguir das formas de procedimento dos proprietários e corretores em

casos de inadimplência dos alugueis.

3.2.2 Inadimplência

Conforme foi exposto anteriormente, a recuperação dos imóveis em casos de

inadimplência com frequência é feito acionando o Estado, que se faz presente

através dos oficiais de justiça. No entanto, alguns mecanismos de recuperação de

imóveis são desenvolvidos por proprietários e corretores de imóveis de forma a

agilizar o processo e evitar a dificuldade de acesso às autoridades oficiais. Em

primeiro lugar, é necessária a constatação de que há um volume considerável de

inadimplência. Segundo os corretores entrevistados esse volume aumenta em

tempos de crise, falta de empregos, etc.

Eu tenho tido problemas de inadimplência em função das dificuldades que a gente está vivendo atualmente. A inadimplência aumentou bastante, não foi

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pouco não. De dois meses pra cá, no meu caso, não sei os outros, estou realmente com muitos problemas (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).

A primeira forma de proceder que surgiu em todas as entrevistas foi a

retórica. No caso dos corretores, a mediação entre proprietário e inquilino. Num

primeiro momento, há sempre uma tentativa de não gerar atrito.

O procedimento é sempre na parte amigável, tentar chamar a parte interessada a uma conversa e fazer a cobrança sempre de uma forma amigável, mostrando pra essa pessoa que é importante a gente manter o aluguel rigorosamente em dia e quando há uma insistência a gente manda aviso de cobrança. A praxe normal. Se a pessoa insistir em não cumprir com a obrigação, aí a gente solicita a restituição do imóvel, de uma forma sempre amigável, não existe outra maneira (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).

Outra característica presente nas entrevistas é uma tendência a tratar os

inquilinos caso a caso. Os inadimplentes que comprovam a incapacidade de pagar

tendem a ser tratados com maior tolerância. Essa provavelmente é uma forma de

adequação do procedimento dos proprietários e corretores ao mercado informal de

trabalho e a falta de regularidade nos ganhos dos inquilinos. Os corretores também

alegam que é melhor manter um inquilino que já é conhecido na expectativa de

receber futuramente do que deixar o imóvel vazio em busca de um próximo inquilino.

O interessante aqui também é que o corretor da Imobiliária 2 considera a

possibilidade de tornar a cobrança impessoal em instituições como o SPC. Para o

corretor, essa é a forma de manter o inquilino no imóvel sem que ele deixe de ser

pressionado. Além disso, ele continuaria sendo cobrado após o seu desligamento do

imóvel.

Na verdade, a locação ela começa quando a pessoa que vai alugar não tem condições de alugar. Pessoa que tem nome no SPC, lógico que às vezes a gente vê isso, a pessoa cumpre com isso tudo, mas atrasa. O que a gente faz é o seguinte, fazendo de tudo pra pessoa sair pela porta da frente. Já aconteceu de pessoas ficarem aqui 4 meses sem efetuar o pagamento, mas provar que não estava conseguindo pagar e a gente: — “beleza, consegui convencer o proprietário”, porque, a maioria dos proprietários, se a pessoa chegar lá: — “não estou de sacanagem, não estou de má fé, não estou em condições de pagar”, falando direitinho, sentando aqui com o proprietário, o proprietário nem esquenta, e a gente também. Não somos pessoas que criam problemas também não, entendeu? O chato é que no imóvel não bota nome no SPC né? Esse é o grande diferencial, um grande avanço do imóvel seria colocar o nome no SPC (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1).

O Proprietário 1 da Favela 1 também diz que a retórica é o principal recurso

em caso de atraso nos alugueis. No entanto, aponta para a importância dos

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contratos para o acesso a justiça comum e conta que as imobiliárias comumente

acionam esse recurso.

Atraso de aluguel vai no papo. O pessoal das imobiliárias vai pra justiça. Justiça comum. De vez em quando, vem me pedir pra levar o oficial de justiça na casa do sujeito. O juiz não pede documentação nenhuma, o contrato tem o contrato, o contrato em si já é... quando você vai fazer o contrato... o contrato legitima né... o contrato entre as partes. Agora quem não tem contrato... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

A presença dos oficiais de justiça parece ser uma constante nas duas favelas

pesquisadas, apesar de ter-se indicado que na Favela 2 os oficiais de justiças são

acionados mais para conflitos familiares que para despejos. Esses oficiais de justiça

em alguns casos vão direto à casa a ser atendida, porém, os entrevistados das

Associações de Moradores das duas favelas apontaram que o procedimento mais

comum é passarem na Associação de Moradores. Segundo o entrevistado da

Associação de Moradores 1 da Favela 1, os despejos na favela são uma constante.

Muito despejo, toda hora, várias vezes no mesmo mês, quase todo dia. O oficial de justiça passa na associação. Também procuram a associação pra mediar, a associação não tem autonomia pra tirar ninguém. O [corretor imobiliário não entrevistado] às vezes procura a gente, nós mandamos ele entrar na justiça. Vem muita gente sem contrato, mas aí o oficial de justiça não resolve. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 1, FAVELA 1)

Outra indicação importante no depoimento do representante da Associação

de Moradores é que a instituição não tem poderes sobre os despejos, o que de certa

forma indica que não há um procedimento padrão para os despejos que acontecem

dentro das favelas que não tenham a mediação do direito jurídico oficial. As

entrevistas indicam que o maior volume dos despejos ocorre via justiça comum,

porém, outros procedimentos foram expostos nas entrevistas e vale a pena expô-los

aqui, inclusive porque acreditamos que nem todas as favelas tem tanto acesso à

justiça comum e nelas devem predominar estratégias em nível local.

No primeiro caso, o Proprietário 1 da Favela 1 executou o despejo sem o

auxílio de nenhuma instituição local ou supralocal.

Eu só tive um cara... peguei as coisas dele e botei pra fora. Hoje eu não faria isso. Eu tinha uns 25 anos, 28... aí o cara não pagou, demorou, tinha que fazer uma obra... aí juntou as duas coisas. Aí um dia eu falei “o senhor tira suas coisas se não eu vou tirar”. Depois eu fiquei com pena dele, peguei as coisas dele e botei do lado de fora, na rua, quebrei a porta... aí ele falou que ia na polícia, aí eu falei: — “você vai, mas leva os recibos”. — “Como eu

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vou levar recibo que eu não tenho”. Aí eu falei: —”então...”. Tem dessas coisas (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

É importante notar que não é qualquer proprietário que pode tomar esse tipo

de atitude. Esse proprietário necessita de certo reconhecimento frente à vizinhança

e instituições locais para agir com o nível de violência presente nesse caso. Se o

inquilino tem uma ligação com a Associação de Moradores, tráfico de drogas ou

milícia, provavelmente o proprietário também não teria essa mesma facilidade para

realizar o despejo.

No segundo depoimento, talvez o que mais impressiona, o corretor da

Imobiliária 2 da Favela 1 descreve o procedimento padrão da imobiliária em casos

em que o despejo se faz necessário. Segundo o corretor do estabelecimento, eles

cobram normal até o segundo mês, no terceiro mês ele começa a sabotar o imóvel

com o inquilino dentro, a fim de criar constrangimentos e as estratégias são

diversas: cortes de luz, cortes de água, sabotagens nas caixas d’água, etc.

— Na verdade é assim, o seguinte: a pessoa atrasou o primeiro mês, atrasou o segundo e estamos lá cobrando, aí a gente já tem que tomar uma posição enérgica. Tem situações que a gente tem que cortar água e luz. A gente pode fazer isso? Não pode, mas as pessoas podem atrasar? Pode, mas não pode ficar três meses, e depois de três meses é ação de despejo, então você imagina o proprietário ficar três meses em ação de despejo. — E como vocês fazem o corte de água e luz? — Tem que contratar um pedreiro. — Você chama um pedreiro, ele vai lá na rua e...? — É porque na verdade é o seguinte: a gente pode fazer isso? Não podemos, é ilegal cortar a água e luz, quem tem que cortar água é a Cedae e quem tem que cortar luz é a Light. Sendo que o que acontece, você vai chamar a Light pra cortar a luz aqui o que vai acontecer? Vai cortar luz daquela pessoa, mas vai cortar de outras também. Se você chamar a Cedae... Porque na verdade cortar água, o que é cortar água? Já aconteceu várias situações, eu durante uma semana tirar a boia do cara, vazando água pra caramba, - está vazando água! absurdo! Aí vem na administradora, aí a gente fala ah..., no outro dia a gente tirava a boia de novo, ficava uma semana caindo água lá, provocar algum constrangimento. Da luz a gente cortava o cara ligava, a gente cortava o cara ligava de novo. A gente arrancava o relógio, está entendendo? Tem que fazer alguma coisa. Até porque eu estou te falando assim, o seguinte, muito dos nossos imóveis são senhoras, que são proprietárias... (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

A violência com que são realizados, no âmbito local, os despejos nas favelas,

demonstra o pouco poder de reação dos inquilinos diante desse tipo de atitude. É

possível que os moradores mais antigos (donos de comércio, envolvidos com a

Associação de Moradores ou com tráfico, etc.) sejam proprietários dos imóveis em

que moram e os inquilinos no geral sejam os moradores mais pobres e com menos

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acesso às instituições locais e supralocais. Esse pode ser um dos determinantes da

possibilidade do uso da força pelos proprietários e corretores.

3.3 Regulação da construção

Os casos estudados nos apresentam uma variedade de agentes locais e

supralocais que mediam os conflitos. Esses agentes são o Estado (que apresenta

em si uma diversidade de agentes), Associação de Moradores e narcotráfico

varejista. É nesse imbróglio que é realizada a regulação da construção, onde os

casos são resolvidos de modo descentralizado e dois ou mais agentes podem atuar

simultaneamente, um limitando a atuação do outro. Isso acontece porque os agentes

são múltiplos e seu papel pouco delimitado e porque a fiscalização é feita, na

maioria dos casos, por denúncias, o que faz com que os moradores possam acionar

para o mesmo caso agentes diferentes a depender de onde tem mais influência ou

de quem resolve de forma mais eficiente o caso.

Nos dois casos estudados há um marco regulatório do uso e ocupação do

solo. Na Favela 1, limita-se apenas gabarito e alguns usos muito específicos. Na

Favela 2, além do gabarito, congela-se a produção de habitações, proibindo novas

construções e ampliações que resultem em novas unidades habitacionais. A

proibição da produção de novas unidades em construções já existentes na Favela 2

nunca teve eficácia, mas a proibição de novas construções foi eficaz durante um

período. Podemos levantar dois motivos para a maior eficácia da proibição de novas

construções em relação à de novas unidades: a maior facilidade de fiscalização e a

demanda da produção de novas unidades para a complementação da renda ou

alocação de filhos recém-casados.

Organizamos esse subcapítulo por agentes e sua relação com outros

agentes. Vamos começar pelos agentes representantes de Estado e os primeiros

serão os fiscais da prefeitura. Esses técnicos são os únicos especializados em

fiscalização do cumprimento das normas edilícias que atuam nessas favelas.

Segundo o Proprietário 1 da Favela 1, os fiscais chegaram a ter alguma atuação,

demoliram uma casa, segundo o entrevistado, “pra mostrar serviço”.

Prefeitura regula as construções. Tem um cara da prefeitura que fica direto. Setor desse cara tinha 20 pessoas. O prefeito chegou a demolir uma casa que estava fora do padrão... Esse prédio aqui mesmo foi denunciado (o prédio da frente). O vizinho denunciou. O cara às vezes vai na Associação

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de Moradores, reclama... O cara às vezes vai na RA também, mas a RA não faz nada. Eles dizem ‘ah, não sei o que... não tem gente pra ver...’ (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

Dois dados desse trecho de entrevista merecem ser destacados: a visão da

ineficácia da atuação da RA na Favela 1 e a variedade de instituições que os

moradores procuram para fazer o mesmo tipo de denúncia. Mas, voltando à atuação

dos fiscais da prefeitura, os depoimentos apontam que a atuação desses

funcionários foi durou pouco. Segundo o Proprietário 1 da Favela 1:

Quando veio a UPP, tinha uns 20 caras aí perturbando. Deu uns 3 a 4 meses, ficou um fiscal que ficava duas vezes por semana, ele era fiscal e orientador ao mesmo tempo, mas não adiantava nada. Quando tinha denuncia ele ia lá e segundo os caras, porque todo mundo que tocou obra dava um dinheiro a ele. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

Segundo o entrevistado, essa configuração onde há apenas um fiscal e o

Estado tem o poder de polícia dentro das favelas abriu espaço para esse tipo de

corrupção. Segundo o corretor da Imobiliária 1, o primeiro momento de fiscalização

mais dura serviu apenas para demonstrar poder e posteriormente chantagear quem

quisesse construir a pagar suborno.

— Pela regra da prefeitura do tempo do Eduardo Paes era dois andares mais cobertura, mas foi só um momento de choque de ordem, isso não manteve, tem prédio aí de 8 andares feito. [...] — Não tem mais embargo de obra? — Teve unzinho só, pra mostrar que... “aquilo ali era uma questão financeira” de como quem diz assim: — “você até hoje fez e ganhou só você, daqui pra frente você vai fazer, mas a gente tem que ganhar”. Aqui não foi tanto, mas nas outras áreas que eu te falei era assim, tem que morrer com 20, com 30, aonde teimavam eles iam e quebravam a porra toda. Você tem que pagar. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)

O Proprietário 1 prossegue com a denúncia.

Decreto e nada é a mesma coisa. Chegaram a tentar fazer, mas não tinha gente. [...] o cara construiu do lado da UPP, aí foi esse cara que falou, dei 50 mil pro fiscal da prefeitura, quero meu dinheiro de volta (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

No entanto, não é apenas a corrupção dos funcionários do Estado que

aparece como barreira à aplicação de parâmetros técnicos ou dos parâmetros

estabelecidos nos marcos regulatórios. Segundo o corretor da Imobiliária 2, os

fiscais não têm a segurança necessária para exercer o seu trabalho de forma isenta.

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Pode, mas não pode, porque ele pode fazer, mas ele tem que fazer pra todo mundo. Ah, pro zé das couves não pode construir, mas pro boi bravo pode? E, às vezes, boi bravo em grande maioria. Fiz a metáfora da arma, mas não é a arma, o cara chega lá, pô, pode chegar com... — “o que é que foi?” (IMOBILIÁRIA 2 FAVELA 1)

Na Favela 2, a fiscalização da prefeitura, ao que parece, teve uma eficácia

maior, porém sofreu com o mesmo desmonte. Além disso, mesmo um número

reduzido de funcionários é capaz de fiscalizar de forma considerável. Os

entrevistados associam o recuo da fiscalização à diminuição da atuação da UPP e à

segunda diminuição do número de funcionários na favela após a mudança de

governo em 2017. Provavelmente, o avanço da ostensividade do narcotráfico

varejista também criou novas barreiras à atividade dos fiscais.

Embarreiravam, agora não estão embarreirando mais, porque isso era mais na época do Eduardo Paes (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

Os fiscais que atuaram na Favela 2, segundo uma representante da

Associação de Moradores, atuaram em conjunto com os funcionários do POUSO.

Esse pode ser também um determinante da maior eficácia nessa favela. No entanto,

a mudança de governo diminuiu o número de funcionários do POUSO de 2 para 1 e

diminuiu a frequência do funcionário que permaneceu.

— E quem regula? — Tinha um engenheiro do POUSO que além de fazer a fiscalização ele também orientava. Se você chamasse ele lá na sua casa ele te ajudava a fazer uma planta-baixa, fazer uma estrutura, pra você ter uma orientação urbanística melhor, entendeu? — E ele está aqui ainda? — Ele vem, com menos frequência, porque depois da mudança da gestão do Crivella alguns serviços foram mais reduzidos ainda, então aquele funcionário que ficava aqui diariamente já não fica mais, ele vem uma vez por semana, ou de 15 em 15 dias, ou se houver alguma necessidade (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

O POUSO na Favela 2 tem uma atuação muito maior quando comparado com

o caso da Favela 1. Em todas as entrevistas, o POUSO foi a maior referência no que

se refere à regulação e orientação da construção, ao contrário da Favela 1, onde foi

pouco citado. Todos os entrevistados da Favela 2 em algum momento foram

orientados pelo engenheiro do POUSO.

O curioso é que muitas construções novas e ampliações que geraram prédios

de apartamentos foram orientadas pelo engenheiro do POUSO, mesmo existindo um

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156  

decreto proibindo a construção de qualquer unidade habitacional nova. Entre as

entrevistas, há o caso de um jovem que, ao casar, herdou uma laje da família e

construiu com orientação do engenheiro no local. Há também o caso de um dono de

loja de materiais de construção que construiu um prédio com quatro quitinetes e

recebeu a mesma orientação. Há outro caso onde um antigo presidente da

Associação de Moradores, o Proprietário 4, que recebeu orientação para a

construção de um prédio com seis apartamentos destinado para aluguel.

Tive auxílio do POUSO. Aqui tem alguns profissionais que realmente sabem construir, mas não dá pra arriscar construir um prédio de três andares com curioso, por que se não você vai perder o seu patrimônio e vai acabar colocando as pessoas em risco. Por isso é sempre bom estar bem orientado (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Em nenhuma das entrevistas houve qualquer indício de que o engenheiro do

POUSO tenha recebido qualquer tipo de propina, seja pela orientação ou para não

embarreirar a construção. Ao que parece, a transgressão do decreto pelo funcionário

de Estado e moradores da favela está mais relacionada à inaplicabilidade da norma

do que a qualquer vantagem que possa ser tirada de acordos ilícitos.

Ao contrário, na Favela 1, o POUSO foi citado para descrever sua

inoperância.

O POUSO é pra ter assistente social, um monte de coisa, só tem o engenheiro. Agora tem o engenheiro permanente, é pra vir todo dia, mas eu não vejo ele em lugar nenhum, vejo ele sentado todo dia. Pergunta: e aí, com estão as obras: — “vou ficar vendo obra de bandido”. Porque os caras que constroem e que têm dinheiro é do tráfico. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

Aqui, fica mais claro como o tráfico pode, em alguns contextos, impedir o

trabalho do POUSO. Como já expusemos aqui, em algumas oportunidades, o tráfico

foi apontado por alguns entrevistados como importante agente da produção

imobiliária nas favelas pesquisadas. No caso, o entrevistado faz uma crítica ao

funcionário público, mas ao mesmo tempo expõe uma possível razão para a sua

inoperância.

Como expusemos anteriormente, a RA que cobre a área da Favela 1 também

foi citada apenas para expor sua inoperância. Segundo o mesmo morador, a

inoperância da RA inclusive abriu espaço para que a UPP começasse a exercer

certas funções que seriam da RA. Ao parecer mais eficiente procurar a UPP para

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157  

resolver problemas de manutenção de infraestrutura, o morador resolve desistir de

acionar a RA.

A UPP resolvia tudo, o cara estava precisando de uma manilha, falou na RA várias vezes, não resolveu, falou com o major, no dia seguinte estava pronto. — “mas não é papel dele, tem que falar com a RA”. — “mas foi a RA mesmo que fez, mas falar com a RA é o mesmo que nada” (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Segundo o Proprietário 4 da Favela 2, lá a UPP também exercia papéis que

iam para além da segurança pública e chegavam à regulação edilícia. Segundo o

entrevistado, a UPP passou a atuar em diversos casos na mediação de conflitos.

Nesse caso, o conflito estava relacionado ao limite de dois lotes. Uma moradora

denunciou a construção do vizinho supondo estar invadindo o seu terreno.

Na realidade, a UPP ficou muito desprotegida também. Eles estão aí meio à deriva, sem recurso, sem dinheiro, sem recurso humano. Ela já até teve esse papel, com especialista vindo de pessoas da polícia militar que atuavam no ministério público nesses projetos e até tentaram fazer isso e foram muito bem sucedidos. Eu tive o primeiro caso, quando eu comecei a construir a minha casa lá que virou o hostel. Uma vizinha que alegava que eu tinha invadido o terreno dela, e aí eu provei que não e que a indenização que ela queria era indevida e que ela deveria me indenizar, porque a casa dela era uma casa muito precária não tinha banheiro, não tinha saneamento básico. Eu fiz um acordo com ela. Pra você ter uma ideia eu gastei 20 mil reais fazendo melhoria na casa dela e depois ela ainda me acionou. Eu levei o pessoal lá pra ver a condição, por que eu fiz tudo, registrado com foto, documentei tudo, desde o início da construção. Era uma área que era da minha sogra. O policial que era da UPP e que tinha essa experiência e essa parceria da UPP com o ministério público. Porque o que se decidia aqui era homologado pelo juiz, eles foram preparados pra fazer essa resolução de conflitos. Eles não decidiram, nós sentávamos, as partes, deliberávamos e era homologado, era feito um relatório e era levado para o ministério público, aí o juiz homologava (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Além dos agentes do Estado, foi identificada a atuação da Associação de

Moradores no interior das favelas estudadas. Segundo os entrevistados, a atuação

da Associação de Moradores na regulação da construção se dá principalmente

através de denúncias, onde a associação intervém mediando o conflito e buscando o

acordo. No caso do conflito não se encerrar com a mediação, a Associação de

Moradores encaminha para os órgãos competentes.

Segue reproduzido o trecho da entrevista com uma representante da

Associação de Moradores 2 da Favela 2.

— A gente tenta fazer o intermediário, que eles entrem em um acordo, mas às vezes eles não entram em acordo, o que a gente aconselha, justiça: vai

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158  

pra justiça. Porque muitas vezes o morador vem aqui: o fulano está jogando não sei o que... A gente tem que ir lá, falar. entendeu? A gente tem que mediar. Ajudar um pouco o morador nos conflitos. Nessa gestão já ajudamos a construir duas casas, vias públicas, isso a gente tenta ajudar, tenta fazer da melhor maneira possível. — Geralmente revolve? — Alguns casos sim, outros têm que ir pra justiça por que às vezes é brabo. — Aí vai pra justiça comum mesmo? — Vai pra comum, aí eles brigam lá (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

O depoimento a seguir é de um representante da Associação de Moradores 1

da Favela 1.

Nós fazemos mediação. Quando vizinho invade parte do terreno, ou fecha a janela do outro. Em último caso eles entram na justiça. [...] Saindo do conhecimento técnico do pessoal da associação, acionamos a RA ou o POUSO. Tentamos resolver por argumentos técnicos. É muita gente que vem nos procurar, principalmente por problemas de privacidade, ventilação, vazamentos. O comércio não dá muito conflito. Isso é papel do governo, a gente faz porque o governo não faz. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 1, FAVELA 1)

Apesar de ter sido apontado por outros entrevistados que os moradores

buscam instituições diferentes a depender de quem é o morador e qual é o contexto,

é interessante observar que a Associação de Moradores busca as instituições

técnicas do Estado responsáveis nos casos em que não tem a competência técnica

para propor uma solução. Dessa forma, apesar de os agentes que cumprem a

mesma função em diversos momentos limitarem um ao outro, em outros podem agir

em parceria, aumentando o poder de atuação.

Essa mesma relação foi apontada entre a Associação de Moradores 2 e o

POUSO da Favela 2.

Sim, por exemplo, o morador tem uma casa aí ele fala assim: eu vou aumentar a minha casa para ali e pra cá. Aí o presidente vai lá e fala assim: você está dentro do seu quintal está tudo certo, você pode fazer, o engenheiro vai lá, orienta, o [agente do POUSO] faz uma planta pra pessoa, a pessoa vai comprar o material certo, vai fazer a casa correta. Tem também uma orientação. Agora, se ele fizer a casa do jeito dele, da maneira dele e acontecer alguma coisa, a gente não tem nada com isso, foi dado o aviso, se ele seguiu ou não (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

Alguns proprietários e as Associações de Moradores, em especial a da

Favela 2, apresentaram a preocupação de diminuir o crescimento, ou crescer com

planejamento, tendo como preocupação principal as condições da infraestrutura. O

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159  

depoimento a seguir é do Proprietário 1, uma antiga liderança da Favela 1.

Tem muita construção nova. É complicado, se por um lado as pessoas precisam morar, por outro quando você amplia demais, você tem o problema da carga de esgoto, a água não dá pra todo mundo, a luz elétrica tem que remodelar... Eu acho que tem que dar uma estagnada. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

Na Favela 2, o Comerciante 1, filho de um antigo representante da

Associação de Moradores, também reivindica um controle de novas construções

pelo mesmo motivo.

Eu confesso que eu acho que deveria ter um controle também. Eu acho que seria bem interessante. Eu sempre falei sobre isso, porque eu lembro que antigamente a gente enchia uma caçamba de lixo em uma semana, hoje são três por dia, quatro por dia, então chega uma hora que você não comporta mais o número de pessoas. É o que estava acontecendo naquele momento, o consumo de água maior, rede de esgoto se utiliza mais, mais lixo, enfim, tudo passa a ser... (COMERCIANTE 1, FAVELA 2)

A Associação de Moradores 2 da Favela 2 também se engajou nos últimos

anos na retenção do crescimento fazendo campanhas de conscientização e

contribuindo na identificação de novas construções.

Um elemento importante, que surgiu na entrevista com a representante da

Associação de Moradores 2 da Favela 2, foi a percepção de que a partir do

momento em que prefeitura passou a assumir parte da regulação da construção,

tornou-se um risco para a associação cumprir o mesmo papel. Quando a prefeitura

deixou de cumpri-lo, criou-se um vácuo na regulação edilícia da favela. Segundo a

entrevistada:

— A associação não tem o poder de chegar e impedir de você chegar e construir ali, quem tem esse poder é a prefeitura. A prefeitura vem aqui e impede você de construir ali, a associação não tem essa autoridade. [...] — Se for uma casa nova vocês não cadastram? — Não, porque, como é que você conseguiu esse lugar pra construir, qual a procedência disso, se não disser, a gente não tem como registrar, a gente só registra imóvel que, por exemplo, eu tenho uma casa, aí eu vendi a parte de cima, a gente registra a parte de cima pra outra pessoa, mas num terreno que a gente não sabe de onde veio... Como que vai... É uma casa ilegal, se a prefeitura derrubar, a gente não tem nada com isso, porque a casa que está registrada aqui, se for derrubada, a associação tem como defender o morador, agora essas dai, qual a procedência desse terreno? (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2)

Como já foi exposto antes, vários entrevistados da Favela 2 indicaram a

diminuição do número de fiscais da prefeitura e funcionários do POUSO após a

Page 160: A produção do espaço na favela - UFRJ

160  

mudança de gestão como principal motivo do aumento das construções no último

ano. Mas, uma possibilidade é que, além de ter diminuído a fiscalização da

prefeitura, o poder de ação da Associação de Moradores tenha diminuído pelo risco

de a prefeitura demolir uma casa autorizada pela associação. Para o Proprietário 4

da Favela 2, a fiscalização deixa de ser responsabilidade da Associação de

Moradores no momento que em existe um marco regulatório municipal de uso e

ocupação do solo.

Apareceram, nos últimos três anos houve um avanço tremendo. Por quê? Primeiro porque isso não cabe mais à associação fiscalizar, quando você tem uma legislação municipal, quem tem que fazer a fiscalização é o município e a fiscalização praticamente não existe, então virou, desculpe a expressão, uma terra arrasada né? Que as pessoas fazem o que querem, sem orientação nenhuma, muitas das vezes colocando o seu patrimônio e a sua vida em risco, porque tem algumas áreas que realmente oferecem um risco iminente, no período de chuva, entendeu? Então falta uma fiscalização e orientação mais presente (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Ao mesmo tempo existe outro agente que a depender do contexto pode

limitar o poder de ação da Associação de Moradores, assim como de todos os

outros agentes em menor ou maior grau. Esse agente é o narcotráfico varejista.

— Hoje na verdade a Associação de Moradores ela acaba não opinando quando deveria, hoje a gente vê realmente que quem manda é um poder paralelo. [...] — E a associação não consegue mais intervir nisso? — Não consegue por causa da influência diretamente do tráfico (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Ao que parece, da mesma forma que um dos entrevistados apontou a falta de

segurança dos funcionários como justificativa para a falta de poder de atuação das

instituições de Estado na regulação da construção na Favela 1, a segurança dos

membros da Associação de Moradores também está ameaçada ao confrontar-se

com essa situação. Segundo o comerciante entrevistado “as pessoas usam o nome

de pessoas envolvidas pra poder construir e aí você complica a situação por que

você não pode expor sua vida” (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Ao contrário do que apareceu nos depoimentos na Favela 2, o narcotráfico

varejista na Favela 1, segundo o depoimento do Corretor 2, utiliza do seu poder de

impedir as construções para tirar vantagens. No caso exposto pelo entrevistado, o

narcotráfico chantageou o sujeito que estava construindo a lhe ceder dinheiro ou

apartamentos para que a construção não fosse importunada.

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161  

Pagou almoço pra todo mundo, bota uma mulher de um traficante pra morar, logo ele: — “ah me paga 700, faz alguma coisa”. Na verdade o que você vai fazer? Muitas das coisas nas nossas vidas dependem muito de quem é, porque está fazendo, quem é a pessoa. — “Quem é o cara que está construindo aí?” — “ah, é fulano de tal” — “ih, rapaz, não vou nem me meter nisso”. Complicado pra caramba e acabou. Depende muito da situação que a pessoa está construindo agora pro cara construir um prédio grande ali o cara tem que ter algum cacife né? (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

Um dado importante é que o narcotráfico varejista, em determinados

contextos, pode limitar a atuação de todos os outros agentes e também se tornar

uma “chave” para burlar as regras determinadas por esses agentes. Num caso

extremo, apenas os que pagam ou que têm algum acordo ou proximidade com o

tráfico poderiam construir.

3.3.1 O direito ampliado da “cria da comunidade”

Já expusemos antes que a falta de câmaras técnicas especializadas e

normas que parametrizem as decisões sobre conflitos ou mesmo sobre a regulação

social, aumentam a necessidade de decisões arbitrárias. Nesse contexto, há a

tendência que as decisões, uma vez tomadas por agentes que buscam a

legitimidade perante a população local, favoreçam essa mesma população, em

especial a população mais antiga ou que possui uma rede interna mais ampla.

Dessa forma, há uma espécie de norma de conduta, que pode ser ou não racional,

que determina esse tipo de comportamento e gera categorias locais como a “cria da

comunidade” ou “não esculachar morador”, no caso da relação do narcotráfico

varejista com o morador. Essa forma de comportamento faz com que, em

determinados momentos, as decisões sobre taxas, instalação de comércio ou

construção sejam determinadas pela relação do sujeito da ação com o território.

A figura da “cria da comunidade”, designa os sujeitos nascidos e crescidos na

favela. Houve dois exemplos vivenciados em campo onde essa relação se tornou

argumento para a realização de determinado empreendimento. Em um deles, um

morador queria construir sobre uma laje que obstruiria a vista de outra casa. O fato

de ser “cria da comunidade” foi essencial para o convencimento e o próprio técnico

da prefeitura, apesar de a legislação não permitir aquela construção, fez “vista

grossa” e orientou a obra. Outro caso envolveu a instalação de uma barraca para

comércio de rua. A Associação de Moradores se apresentou para proibir a atividade,

mas o argumento mais uma vez garantiu a manutenção do comércio.

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162  

Segundo o corretor da Imobiliária 2 da Favela 1, a taxa de emissão do

instrumento particular de compra e venda tem um preço negociável e a possibilidade

de abaixar o seu custo vai depender do seu prestígio dentro da favela.

Cobra 3% [taxa de produção do instrumento particular de compra e venda emitido pela Associação de Moradores]. Mas é um valor também negociável. Chega uma pessoa lá: — “pô, estou vendendo, pô não tem como pagar, fica muito pesado”, vamos supor, vendeu por 30 mil, o documento vai ser 900, mas se a pessoa for associado da associação, for de muito prestígio, quer dizer, tem uma... (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

Na Favela 2, o Proprietário 4, que é um antigo presidente da Associação de

Moradores, confirma que a Associação de Moradores busca favorecer os moradores

mais antigos.

— A permissão pra construir é mais fácil pra quem já mora aqui? — Não, com certeza, por exemplo, se você vem de um núcleo familiar onde não tem espaço pra você, aí é lógico que a associação tem que dar atenção. É mais fácil. Você é um nativo daquela área, ao contrário de quem vem de fora. Uma pessoa que não tem relação nenhuma com a comunidade chega aqui: — “ah não, vou construir aqui”, lógico que você vai estar tirando espaço de uma família que está ali primeiro que você, que está estabelecida naquela comunidade. Isso realmente existia, e continua existindo, não tem como você se livrar disso. — Sim, então as coisas são mais facilitadas pra quem é daqui? — Com certeza, quem é morador daqui tem uma vantagem a mais daquele que não é. Você já tem toda uma afetividade, lembra do que eu te falei, você já tem uma relação afetiva com toda uma comunidade estabelecida (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Os motivos que fazem os agentes locais favorecerem os moradores mais

antigos são diversos. A ideia de que há uma relação de afetividade já estabelecida é

bastante acionada pelos moradores, mas não deve ser o único determinante. Já

mencionamos os motivos que fazem a Associação de Moradores e o narcotráfico

varejista buscarem se legitimar perante a população local. Dessa forma, a busca por

legitimidade, no caso da associação representada no voto, pode ser adicionada nos

determinantes desse tipo de comportamento.

O Comerciante 1 da Favela 2, reclama dos moradores novos que “já chegam

querendo sentar na janela”. Ele se refere a um morador novo que está envolvido

com a Associação de Moradores. Segundo o comerciante, os moradores novos não

estão comprometidos nem com o passado nem com o futuro da favela, o que faria

com que as suas atitudes estivessem condicionadas apenas a interesses próprios

ou imediatos. Para ele, são pessoas que, no primeiro momento ruim, tem a liberdade

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pra ir embora.

Na verdade são pessoas que vieram pra cá pra morar aqui porque estavam perto do trabalho, enfim tentavam alugar alguma coisa mais perto, mas são pessoas que não têm raízes na favela, não têm vínculo com a gente, não têm instrução no desenvolvimento da favela, são pessoas que vêm aqui só por conta disso, então se está bom ou se está ruim, amanhã ou depois ele põe a trouxa dela nas costas e ai embora, aí não faz diferença como está ou como vai ficar (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Então, quem vem pra cá, que não tem o conhecimento, que não tem origem aqui não valoriza isso, está se lixando pra essas campanhas de não crescimento urbanístico. E quem mora quer preservar as áreas verdes, os espaços livres... (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2)

A visão da moradia em favela como uma situação transitória deve existir

principalmente entre os locatários. Essa não é uma condição apenas da favela, mas,

nas favelas pesquisadas, os entrevistados apontaram as vantagens da produção de

quitinetes por atingir o público mais pobre que, segundo eles, é a principal demanda

do mercado de aluguel. Se isso é verdade, ao mesmo tempo em que favorecer a

“cria da comunidade” pode significar uma forma de defesa contra a substituição da

população em possíveis processos de valorização decorrentes de intervenções

públicas, modismos, etc. pode significar também um agravamento da situação dos

locatários que é a população que tende a ser mais rotativa e que por consequência

tente a ter menor suporte de redes de solidariedade, organizações políticas etc.

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164  

4 FORMAÇÃO DOS ESTOQUES IMOBILIÁRIOS

Este capítulo está dedicado a uma categorização das formas de ampliação

dos estoques imobiliários em favelas. A maior parte dessas categorias já é

consolidada na literatura sobre favelas, porém há dois elementos que se

apresentaram no trabalho de campo e que gostaria de destacar, sejam eles: as

estratégias de ocupação de novos terrenos e a prática de compra de imóveis,

intensificação de uso do solo e disponibilização para aluguel.

Entender a autoconstrução da moradia como forma única de construção na

favela seria entender que qualquer morador tem o conhecimento e habilidade

necessários para construir uma casa em tempo e qualidade condizentes com as

necessidades, além disso, seria entender que quaisquer trabalhos formais ou

informais dos moradores das favelas pagassem menos do que o serviço dos

pedreiros e mestres de obra. Em um dos casos encontrados na Favela 2, um

morador iniciou um processo de autoconstrução e logo em seguida preferiu

contratar, pois economizava menos construindo a própria casa do que ganhava

aproveitando esse mesmo tempo no serviço de moto táxi da região. Se o serviço de

moto taxista paga o suficiente para que contratar seja mais vantajoso do que

construir a própria casa na favela, podemos supor que um número considerável de

moradores se encontra nessa mesma posição.

Ao mesmo tempo, nem todas as ocupações permitem dispor de horário livre

para executar a própria construção. O Comerciante 1 da Favela 2 é dono de um

restaurante e provavelmente a manutenção do funcionamento regular do seu

empreendimento exige a contratação de mão de obra.

Contratou mão de obra pra construção? Sim, apesar de ter conhecimento técnico pra isso, porque eu já trabalhei em obra a vida inteira com o meu pai, mas eu não tinha tempo pra execução então eu preferi realmente pagar e comandar, né, o serviço (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Outra questão que certamente pesa na hora de contratar mão de obra é a

divisão do trabalho. Por mais que grande parte dos moradores de favela, em algum

momento da vida, tenha aprendido o ofício de construção civil ou mesmo trabalhado

no ramo, a realização uma obra bem executada pode exigir a contratação de mão de

obra especializada em determinados serviços.

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165  

Não, um dos sócios ele é pedreiro, então tipo assim, ele já fazia isso, mas a gente contratou também, porque não dá pra fazer tudo sozinho. A gente contratou três ou quatro pedreiros bons e fomos fazendo. Olha, bora fazer a fundação, fazer as colunas, ferro, estribo... E aí vai fazendo. O carpinteiro pra fazer o caixonete certinho, a forma. A laje a gente bateu na betoneira, botamos a betoneira aqui e levamos a borracha até lá em cima, em dois minutos os caras bateram, 2 minutos, 20 minutos, uma hora na verdade. Foram dois caminhões daqueles pra bater a laje. As duas lajes foram assim (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

A contratação de serviços especializados certamente fez o Proprietário 3

ganhar algum tempo no serviço e possivelmente o fez economizar em determinados

momentos. Ainda, as habitações construídas para aluguel certamente reivindicam,

dentro do possível, o tempo mais curto de construção, pois o empreendimento só

passa a auferir rendimentos após a conclusão da obra. A celeridade da obra exige a

certa quantidade de trabalhadores, possível apenas via contratação.

Dessa forma, é necessário considerarmos em todos os momentos a

possibilidade da contratação de mão de obra para as formas de construção e

ampliação que serão expostas a seguir em especial no último subcapítulo onde

trataremos das formas mais sistemáticas de produção imobiliária.

4.1 Ocupação

Nas favelas consolidadas, a ocupação de novos terrenos é bastante limitada,

porém a prática ainda persiste, tanto tensionando os limites de expansão do território

dos assentamentos, como na ocupação de espaços que não haviam sido ocupados

ou que resultaram de remoções em obras de urbanização. Em ambos os casos, uma

das estratégias observadas foi a construção gradativa da edificação de forma que se

possa demarcar o terreno e, ao mesmo tempo, garantir a redução dos prejuízos se

alguma autoridade vier a demolir. A segunda estratégia envolveu algum agente local

com o poder de assegurar a realização da construção.

Comecemos pela primeira estratégia, e o primeiro exemplo, tomamos

emprestado de outro trabalho de campo realizado por Luciana Ximenes (2018). O

trecho é extraído de uma entrevista semiestruturada realizada com um técnico da

Light. Esse trecho descreve um dos procedimentos para a fiscalização das linhas de

alta tensão da Light, no caso em que uma dessas linhas de transmissão corta uma

favela. O técnico entrevistado conta a sua estratégia para evitar a ocupação das

linhas nas áreas contíguas às favelas.

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166  

Teve um caso no ramal Areia Branca, esse eu estava. O cara fez um alicerce, um baita de um alicerce imenso, pra fazer uma casa imensa. Eu estava lá, fui lá com o pessoal da demolição, tinha um cara lá em pé.— “amigo vem cá, de quem é esse alicerce?”, — “não sei de quem é não, já vi feito ai”. — “Ah é, está bom. Não sabe de quem é? Então procura ai”. O pessoal procurou, não achou. Eu falei: — “Quebra!”. Metemos a marreta, quebramos tudo. — “Bom não achou, o dono vai aparecer”. Passou uma semana, ai o pessoal chegou pra mim: — “aquele alicerce começaram a fazer de novo”. Falei: — “ah é, quer fazer deixa fazer”. Então todo dia alguém passava lá e falava: — “[nome omitido], oh, já acabaram o alicerce e começaram a levantar as paredes”. Aí falei: — “Deixa, quando tiver começando a botar a laje me avisa”. Aí quando os caras estavam em ponto de botar a laje na casa, parede, tudo pronto, falei: — “vamos lá!”. Fomos lá e quebramos. Ai vem o cara, aquele mesmo cara que eu vi em pé lá e que disse que não sabia de quem era a casa. — “Ei, pera ai, a casa é minha”. Falei: — “pera ai que eu perguntei a você e você disse que não sabia de quem era”. [...] Falei: — “vou quebrar de novo”. Aí quebraram a casa. Daí, estamos quebrando a casa e está ele discutindo comigo. Aí ele falou: — “mas vem cá, porque tu não quebrou antes?”, — “Porque eu queria dar um prejuízo maior, e é o seguinte, fica avisado o seguinte, vamos quebrar tudo, deixar no chão, se você construir de novo agora vamos esperar você botar a laje. Quando você colocar a laje eu venho aqui e quebro. Agora minha briga é contigo, eu quero te dar prejuízo”. Nunca mais ele construiu ali90.

Uma questão interessante, mas que não cabe discutir nessa dissertação é a

carta branca que a Light tem para, na gestão das linhas de transmissão, demolir as

casas que ocupam as linhas de forma arbitrária e autoritária, sem passar pelo

procedimento legal necessário em outros casos. A liberdade do funcionário de Light

de gerar um prejuízo maior para o ocupante não repetir a ação também impressiona.

No entanto, para o nosso trabalho o outro ponto de vista é mais útil. A pergunta do

construtor-ocupante: “mas vem cá, porque tu não quebrou antes?”, nos indica que o

ocupante-construtor busca demarcar o terreno e construir de forma lenta a fim de

“testar” a fiscalização. Se o órgão fiscalizador resolver demolir o prejuízo é menor, se

não acontecer o construtor ocupante segue construindo.

Segundo o mesmo entrevistado, em determinados contextos o narcotráfico

varejista permite o prosseguimento do trabalho da Light e, às vezes, até contribui

com ele a fim de evitar a entrada da polícia que atrapalharia os seus negócios.

Dá conflito, dá discussão, principalmente dentro de favela. Mas graças a Deus a gente tem conseguido fazer isso. Por quê? Primeiro o cara da favela, ele não quer a polícia lá dentro... Os traficantes, não querem. E eles sabem o seguinte, se não ajudarem a gente ou então fingirem que a gente não existe, a gente vai chamar a polícia. Se a gente chamar a polícia atrapalha o negócio deles. É um atrito de interesses. [...] É uma situação meio complicada. Não vou te dizer que é tão simples de resolver quanto eu

                                                            90 Entrevista realizada em 2017 com o responsável pela manutenção das linhas de transmissão da Light em trabalho de campo realizado por Luciana Alencar Ximenes. Este material ainda não está publicado.

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167  

estou te falando não91.

Na Babilônia, no trabalho que realizamos para a regularização fundiária,

acompanhamos uma casa que ficou só na fundação ao longo de todo o ano de

2015. Em algum momento o proprietário sentiu segurança92 em terminar a casa e a

finalizou.

O Proprietário 3 da Favela 2 aponta o mesmo processo para outras casas.

Essa casa aqui não podia, essa a prefeitura já tinha derrubado, porque ia fazer não sei o que aí, aí não fez, aí neguinho está fazendo as casas aos poucos, a outra praça já ocuparam também. Ali são pessoas que já foram indenizadas e continuam lá. A prefeitura deu dinheiro pra sair, mas ficou lá, deu dinheiro e com o dinheiro construiu a casa (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

Algumas formas de ocupação foram de alguma foram autorizadas. No

entanto, não vamos considerar aqui as ocupações autorizadas pelos donos oficiais

da terra ou pelo Estado, mas as ocupações autorizadas por agentes locais das

favelas, ou seja, que não são os donos oficiais da terra, mas que de alguma forma

conseguem garantir a permanência das casas e das famílias que autorizou ocupar.

A Associação de Moradores foi identificada como um dos agentes que em

determinados momentos pode assumir esse papel. Um dos casos já foi mencionado

duas vezes nessa dissertação a fim de demonstrar pontos diferentes. É o caso do

“Zé do Queijo”, uma antiga liderança da Rocinha que distribuiu terrenos no

Laboriaux. O Comerciante 1 da Favela 2 também chama a atenção para o poder de

determinação do local das construções pela Associação de Moradores. Segundo o

entrevistado:

Antigamente quem poderia dar autorização seria só a Associação de Moradores. A Associação de Moradores ela não dá mais e ela nunca deu, por que se der uma, ela vai ter que dar pra todo mundo. às vezes assim, você morador, você está numa área de risco, estava caindo, ele tentava te realocar pra uma área mais segura não necessariamente te dava, te trocava de lugar (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Esse poder de determinação é conjuntural, como foi apresentado

anteriormente no subcapítulo “3.1.5 Os limites” e pode ser em determinado momento

                                                            91 Idem. 92 Essa segurança tem a ver com a precarização da fiscalização e do policiamento na favela, além de poder ter relação com o esquema de venda de terrenos pelo narcotráfico varejista exposto anteriormente no item 3.1.5, onde o próprio narcotráfico assegura a construção.

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limitado pelo estado ou pelo narcotráfico varejista.

Os casos que envolvem o narcotráfico varejista também já foram tratados

nessa dissertação no mesmo subcapítulo, portanto vamos apenas relembrá-lo aqui.

Essa relação do narcotráfico com as ocupações apareceu na Favela 2 através da

comercialização de terras vazias. O fato de os ocupantes-construtores relacionarem

a atividade a nomes envolvidos no narcotráfico varejista foram suficientes para

impedir a fiscalização dos funcionários da prefeitura e a ação da Associação de

Moradores. Na Favela 1, essa relação apareceu muito mais vinculada à regulação

de construções em terrenos já ocupados, porém os mecanismos para impedir a

ação dos funcionários públicos e da Associação de Moradores foram os mesmos.

4.2 Subdivisão

Na bibliografia sobre o mercado imobiliário em favelas, a subdivisão aparece

como a forma mais importante de ampliação dos estoques imobiliários. Num quadro

de inelasticidade da oferta de terras, a densificação aparece como uma forma que,

apesar de limitada, tem capacidade de gerar renda capaz de auxiliar os salários ou

mesmo gerar novos investimentos no mercado imobiliário. As formas de ampliação

do estoque que não necessitam da aquisição ou ocupação de novos terrenos são:

subdivisão da edificação, subdivisão do lote ou aproveitamento da laje.

4.2.1 Subdivisão da unidade habitacional

Essa forma de ampliação dos estoques é a de mais difícil percepção, seja

pela fiscalização da prefeitura ou organizações locais e, com frequência, significa a

produção de espaços cada vez mais precários. Dividimos essa modalidade de

produção habitacional em dois: o aproveitamento de um porão ou depósito e a

subdivisão da planta da casa.

Os porões sem ventilação da Rocinha se tornaram uma preocupação da

saúde pública veiculada na mídia93 em razão dos casos de tuberculose. Porém,

casos muito parecidos foram encontrados em especial em favelas localizadas em

áreas de declive, como no Turano, Babilônia e Chapéu Mangueira. As construções

em declive geram um espaço sob as construções que no geral são usados durante a

                                                            93 Folha de São Paulo, Na Rocinha, uma mesma rua vive diferentes extremos da tuberculose, 21/11/2016, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2016/11/1833657-na-rocinha-uma-mesma-rua-vive-diferentes-extremos-da-tuberculose.shtml

Page 169: A produção do espaço na favela - UFRJ

169  

obra como depósito de materiais aberto. Com o tempo o proprietário o converte em

um porão fechado e num terceiro momento se torna uma possibilidade de ganho via

aluguel e se converte em unidade habitacional (UH).

A seguir, trazemos o registro fotográfico dessas três situações, em diferentes

imóveis. No primeiro, a casa está em obra e o espaço abaixo da construção é usado

como depósito de materiais de construção; no segundo, um espaço semelhante se

tornou um depósito, mas, o proprietário declarou que já havia alugado o espaço e a

janela também indica que já foi habitado; e o terceiro é um espaço que está sendo

habitado. A foto do último caso está com o enquadramento ruim, pois não foi tirada

para essa dissertação, mas há uma escada que sobe para o acesso à casa e uma

escada que desce para o porão habitado.

Figura 12: Subdivisão da UH, fotos dos porões.

 Fonte: Acervo do autor.

Esses espaços muitas vezes não têm ventilação/iluminação ou têm de forma

precária. No terceiro caso da foto acima, não há nenhuma possibilidade de

ventilação.

Nos casos apontados, a casa está acima do acesso público e, por

consequência, a UH de porão se encontra no nível da rua, porém, em muitos casos

o porão está abaixo do nível da rua. No primeiro caso, a possibilidade de aberturas

se dá pela fachada de acesso (quanto maior ela for maior a possibilidade). No

segundo caso a possibilidade de abertura para ventilação/iluminação se dá pelo

Page 170: A produção do espaço na favela - UFRJ

170  

afastamento das construções de fundos.

O desenho a seguir ilustra as duas condições. No entanto esse esquema,

diferentemente dos outros apresentados, se trata de um caso ideal representativo

dos casos observados.

Figura 13: Subdivisão da UH, possibilidade de ventilação dos porões. 

 Fonte: Desenvolvido pelo autor.

A segunda forma de subdivisão da unidade habitacional é o particionamento

da casa em si. Apesar de termos presenciado alguns casos onde o proprietário

dividiu a própria casa onde mora, segundo a representante da Associação de

Moradores 2 da Favela 2, a maioria dos moradores não mexe na própria casa.

O que eu estou entendendo é assim, a pessoa está passando dificuldade aí diminui a casa pra alugar. Não, aqui não, eles constroem pra alugar, mas a casa deles permanece (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

No entanto, outros entrevistados nos indicaram que, mesmo que a

intervenção não seja feita na casa onde o proprietário mora, os proprietários em

determinados casos dividem a casa que alugam em busca da maior rentabilidade

oferecida pelas quitinetes. Segundo o Comerciante 1 da Favela 2:

Uma casa com 2 quartos, sala, cozinha, banheiro, você alugava uma casa assim por 700 reais. Em determinado momento as pessoas em uma casa com dois quartos fazia duas quitinete e alugavam por 700 cada uma, dividia ela no meio (COMERCIANTE 1, FAVELA 2)94.

                                                            94 Não temos um levantamento dos preços na favela, mas temos informações dos proprietários entrevistados que possuem imóveis em áreas próximas. O Proprietário 3 da Favela 2 afirmou alugar uma quitinete por 600 reais, enquanto o Proprietário 4 da Favela 2 afirmou alugar um apartamento de 2 quartos por 900 reais.

Page 171: A produção do espaço na favela - UFRJ

171  

Ainda segundo o mesmo entrevistado, a estrutura do apartamento não muda

de forma significativa o seu preço, por isso a quitinete vale mais a pena. Segundo o

entrevistado, mesmo que a quitinete assuma um caráter transitório pra quem mora,

ela não deixa de ser alugada.

Sim, porque com um apartamento você faz 700, com duas quitinetes você faz 1400. Com um você fazia dois, não aumenta muito por você ter uma estrutura melhor. As pessoas se adaptam cara, eu acho que de acordo com a necessidade da pessoa, você vai pegar o que tiver, precisa pegar e aí tinha umas pessoas que alugavam, ficavam dentro e depois dali esperavam pra pegar um melhor, entendeu. Ficava ali só pra estar aqui, depois pegava melhor (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Há um fator que se soma aos outros. Todos os entrevistados na Favela 2

indicaram que os preços abaixaram após a mudança de governo, pois a UPP teria

reduzido a sua presença e o tráfico avançado. No contexto de insegurança, a

potencial demanda para aluguel na Favela 2 seria uma demanda com poder

aquisitivo mais baixo que a de períodos anteriores. As condições financeiras da

potencial demanda, dessa forma, imporiam um preço mais baixo da unidade

habitacional e a forma de manter os ganhos dos proprietários de imóveis seria a

divisão dos apartamentos em quitinetes.

Porque você acha que quitinete dá mais grana? Eu acho que dá... Porque, vou te falar assim... Pela situação que está hoje, não adianta você fazer uma casa grande e alugar por 1200, porque hoje ninguém vai ter. Agora, um quitinete, se você dividir a casa, você consegue pelo menos 600, dá pra fazer dois por 600 no mesmo espaço de uma casa grande, só tem que investir mais no material, é uma despesa que vale a pena. 1200 o cara não vai poder entrar, mas 600 todo mês vai pagar. Agora, você bota 1200, o cara no primeiro mês paga, no segundo mês paga, no terceiro mês ele já vai achar uma coisa melhor e vai sair fora, e aí seu investimento... Você vai ficar com a casa vazia (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

É importante destacar a preocupação em manter um preço que o inquilino

possa pagar para evitar a inadimplência. Esse foi um aspecto bastante frisado pelo

corretor da Imobiliária 3 da Favela 1.

4.2.2 Subdivisão do lote

A subdivisão do lote apareceu no nosso trabalho de campo em duas

situações. A primeira se trata de proprietários com lotes com área livre. Esses

proprietários podem vender uma parte de seus terrenos para que outro interessado

Page 172: A produção do espaço na favela - UFRJ

172  

possa construir. A segunda situação aparece quando dois ou mais interessados

somam seus recursos para adquirir um único lote e construir lotes separados ou

subdividir sobre o construído.

Em algumas favelas, é raro um proprietário ter um quintal de um tamanho

razoável para realizar uma construção. Na Favela 1, por exemplo, a própria

existência de praças e outros tipos de espaços públicos é escassa. Porém, na

Favela 2, o seu processo sócio-histórico permitiu a existência de áreas livres no

espaço público e privado. O quintal foi a única forma observada de um indivíduo,

sem uma articulação específica com agentes que exercem alguma forma de poder

no território, reter uma área vazia por longos períodos e vende-la. A venda de terras

vazias, como vimos, apareceu mais como uma possibilidade de agentes como

Associação de Moradores e narcotráfico varejista.

Numa entrevista com a representante da Associação de Moradores, a

entrevistada indica que, mesmo a associação reconhece e cadastra as construções

novas alocadas em quintais já existentes, mas não se arrisca a cadastrar ou emitir

documentos de construções em outros tipos de espaço vazio.

— Se for uma casa nova vocês não cadastram? [...] — A não ser que seja o quintal de um morador, o morador tem um quintal, aí vendeu um pedaço do quintal dele, construiu uma casa, mas aí o morador veio aqui e contou a história, mas um terreno que a gente não sabe a procedência... (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2)

Isso demonstra o vínculo entre a legitimidade do poder de determinação

sobre um terreno por um indivíduo e a ocupação edilícia por esse indivíduo, mesmo

que o proprietário não faça uso do local, mas ceda a outro via aluguel ou qualquer

outra forma. A legitimidade da propriedade se dá mais pelo trabalho incorporado na

terra como algo de propriedade do indivíduo/proprietário do que no próprio uso

direto. Dessa forma, a capacidade de acumular terra, de alguma forma também

estaria relacionada com a capacidade de investimento.

O esquema a seguir ilustra a venda de um quintal formando um novo lote. No

esquema, o proprietário do lote A no primeiro desenho, é proprietário da área toda

do desenho, no segundo ele vende a área livre do lote transformando-o na área do

lote B.

Page 173: A produção do espaço na favela - UFRJ

173  

Figura 14: Subdivisão do lote (caso 1).

 Fonte: Desenvolvido pelo autor.

No segundo caso observado, a subdivisão do lote se deu através de ação

conjunta de duas famílias que somaram recursos para adquirir um lote e

posteriormente tiveram que construir individualmente. Essa é uma forma de

intensificar o uso mantendo a estrutura das casas independentes. Segundo o

entrevistado, as duas famílias pretendiam construir conjuntamente, por economia ou

pela possibilidade de produzir espaços com maior qualidade, mas o descompasso

da disponibilidade de recursos ou de tempo disponível para realizar a construção fez

com que um deles construísse antes.

Aqui era uma casa baixa, eu comprei com outra pessoa pra construir dois andares, um pra cada um e, no meio do caminho, ele quis dividir porque queria construir logo, eu estava demorando, ele construiu pra lá, eu construí pra cá. Aí tive que fazer 3 andares pra caber tudo (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

O esquema abaixo ilustra esse tipo de situação, onde um proprietário vente o

terreno para duas ou mais famílias que desmembram o terreno para construir de

forma independente.

Figura 15: Subdivisão do lote (caso 2).

 Fonte: Desenvolvido pelo autor.

Page 174: A produção do espaço na favela - UFRJ

174  

Devemos considerar também a possibilidade de um mesmo proprietário que

comprou de outro ou que já era proprietário do imóvel, fazer o desmembramento por

alguma questão técnico-construtiva ou de disponibilidade de recursos.

4.2.3 Aproveitamento da laje

A laje pode ser destinada à comercialização (venda ou locação) ou ao

usufruto familiar (ampliação da casa ou construção de um novo imóvel para a

família). A prática de destinação da laje a novas construções é um dos sinais de que

a terra e a casa nas favelas se apresentam como uma opção de reserva de valor. Se

pensarmos que, para dispor a laje é necessário um investimento maior na

construção da casa, entendemos que essa prática necessita previsão. Ou seja, a

possibilidade de vender a autorização para construir na laje ou a construção pelo

próprio dono da casa para venda, aluguel ou cessão, exige a previsão de ampliação

e de maiores investimentos desde os alicerces.

A dos apartamentos começou a ser construída em 2009, o primeiro andar já foi construído pensando no segundo e possivelmente no terceiro, porque você começa a construir uma estrutura que não aguenta peso, depois você quer construir aí você vai ter um outro custo, você vai ter que quebrar, reforçar a estrutura (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Uma das formas de aproveitar a laje é para ampliações, mantendo-se como

imóvel da mesma família. As ampliações podem acontecer acompanhando a

disponibilidade de recursos, caso em que a família constrói aos poucos até o imóvel

estar condizente com as necessidades da família, ou pode acontecer

acompanhando as mudanças de necessidade da família. No caso da ampliação ser

feita pela mudança de necessidade, há duas situações qualitativamente diferentes.

Na primeira, a necessidade de área construída aumenta mantendo-se o núcleo

familiar. Isso pode acontecer por razões diversas, como filhos que crescem e

necessitam de quartos separados, necessidade de novo espaço para trabalho

(comércio, manufatura, etc.), aumento do número de indivíduos na família, etc. No

caso exposto abaixo, um dos filhos do entrevistado cresceu e apresentou a

necessidade de um quarto separado e a laje foi aproveitada para suprir tal

necessidade.

Aqui eu fiz primeiro dois andares, duas salas e um quarto. Um dia a gente estava entrando de férias, aí meu filho, dos mais novos, falou: — “pai, ao

Page 175: A produção do espaço na favela - UFRJ

175  

invés de fazer viagem, eu preferia que você juntasse dinheiro e me desse um quarto”. Dormiam na cama comigo os dois. Ou dormiam no sofá na sala, ou dormiam na cama comigo. Aí a gente deu uma parada de viagem, não viajou mais. Em uns dois anos, eu juntei um dinheirinho e construí um quarto pra eles. Tem dois quartos, duas salas e três banheiros. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

Na segunda situação, a necessidade de ampliação da área construída se dá

pela constituição ou o deslocamento de outro núcleo familiar. Por exemplo, quando

um filho se emancipa da família (casa-se, tem filhos, etc.), quando o proprietário

recebe familiares, etc. No exemplo exposto abaixo pelo corretor da Imobiliária 2, a

filha engravida e o pai libera a laje para a moradia do casal com o filho.

Muitos dos imóveis assim, a pessoa começou o relacionamento - estou grávida! Aí o pai libera pra construir em cima da casa, aí não tem documento. Aí separa, aí aluga, está entendendo? Pra dividir a renda, enfim... é meio complicado... [...] essa é a grande diferença de um casal lá do Baixo Gávea pra um casal da [Favela 1]. O casal lá no Baixo Gávea, engravidou, — “putz grila, como vamos fazer? Como vai alugar um apartamento? Como vai mobiliar? Tem que ganhar 10 mil, cada um”, aqui na [Favela 1], engravidou, ainda mais se o rapaz for um cara legal, ou até se for canalha também, o pai libera pra construir, aí depois separa e aluga (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1).

Um morador da Favela 2 com quem tivemos contato herdou uma laje e com

os recursos do trabalho de moto táxi está construindo a casa onde já está morando.

Na nossa exposição, as formas de aproveitamento da laje, até então, não

haviam envolvido nenhuma forma de operação comercial-imobiliária. No entanto, o

entrevistado na reprodução acima apresenta uma forma em que o proprietário pode

utilizar o espaço da laje para produzir imóveis. Apesar de, no caso, a ampliação do

estoque imobiliário do proprietário ser fortuita, o proprietário pode construir com o

intuito primeiro de alugar ou vender. É o caso do Proprietário 4 na Favela 2.

— Estou fazendo uma obra pra também alugar. — Aí é outro terreno? — Não, em cima da minha casa onde eu moro (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Segundo a representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2, as

pessoas que constroem na favela evitam prejudicar a própria moradia na produção

de novas unidades e uma forma de fazê-lo é aproveitando a laje ao invés de

subdividir a casa ou o lote.

Page 176: A produção do espaço na favela - UFRJ

176  

Não, eles constroem mais. Constrói mesmo, não tem essa de diminuir sua casa pra alugar, eles têm a casa deles do tamanho normal pra eles sobreviverem e eles constroem outro pavimento pra alugar. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

Nos casos onde a unidade habitacional foi ampliada, onde se produziu uma

nova unidade habitacional para ceder a familiares ou quando a unidade construída

está destinada para aluguel, as unidades continuam sendo propriedade do

proprietário inicial. Porém, há ainda a possibilidade de uma unidade habitacional no

andar superior ser vendida ou da laje ser vendida para construção.

Nos dois casos, o acordo no momento da compra define de quem é o direito

de construir acima da laje da casa vendida (já construída ou a ser construída).

Segundo a representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2, o documento

emitido pela Associação de Moradores descreve de quem é o direito de construir

sobre a laje superior, ou seja, se, no momento da transação, o valor foi cobrado

unicamente pela unidade habitacional ou se inclui o direito de construir sobre a laje

superior.

É o acordo, no acordo diz a casa, as condições da casa, se você vendeu a casa com a laje, com o quintal, não sei o que, tudo aquilo é específico no papel (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

No segundo caso, onde o proprietário da construção-base95 vende sua laje

ainda sem construção, o direito de construir sobre a laje resultante da construção

empreendida pelo comprador também é definido previamente no momento da venda

da laje. Silva e Huguenin (2014 [2011], p. 274) resumem o processo através do

esquema reproduzido abaixo, onde demonstram inclusive que a venda da laje pode

significar a possibilidade do proprietário da construção-base acumular recursos para

construir mais pavimentos.

                                                            95 Construção-base é o termo usado pela Lei Nº 13.465, de 11 de Julho de 2017. O termo define a construção existente no momento em que foi cedido o direito de laje. O sistema apresentado aqui não tem nenhum compromisso com o direito real de laje estabelecido pela lei, porém entendemos que o termo é adequado em ambos os casos.

Page 177: A produção do espaço na favela - UFRJ

177  

Figura 16: Esquema de venda de laje.

Fonte: (SILVA; HUGUENIN, 2014 [2011]).

Magalhães, em sua tese de doutoramento, extrai de documentos de compra e

venda cláusulas que definem o direito de construir na laje. No caso escolhido, o

direito de construir sobre a laje foi separado da propriedade da unidade habitacional

sob a laje.

OBS. J. E. L. M., RG 2326146, e A. B. S., RG 11935649-1, estamos ciente que a laje de minha propriedade pertence ao Sr. F. C. L. RG 06234195-3. (02/04/2000) (MAGALHÃES, 2010, p. 372).

É importante chamar a atenção para o fato de, em diversos casos, a laje

aparecer como reserva de valor. E esse não é um fato completamente casual. O

proprietário só pode usar a laje para construir ou ceder para outro fazê-lo se na

própria construção isso estiver previsto, pois exige determinado reforço na estrutura

da construção-base. A presença dos ferros de espera96 também pode ser

considerada um sinal dessa previsão. Dessa forma, há um investimento a mais a ser

feito no momento da construção que permite que seja construído um imóvel para

venda ou aluguel, que o direito de construir na laje seja vendido e que, mesmo sem

nenhum acréscimo, o imóvel seja vendido com um valor a mais pela possibilidade de

construir mais pavimentos sem ter que demolir o imóvel para reconstruir.

O Comerciante 1 entrevistado na Favela 2 nos mostra que o cálculo é feito

mesmo quando não se pretende construir. Segundo o entrevistado, ele não tem

interesse de construir um terceiro andar, mas a estrutura permite.

Além de construir esse meu segundo andar eu posso construir o terceiro,

                                                            96 Ferro de espera é a ponta do vergalhão de aço que é deixada exposta na laje para fazer a amarração dos pilares dos andares superiores em obras futuras.

Page 178: A produção do espaço na favela - UFRJ

178  

porque a estrutura aqui permite e está dentro dos padrões que a prefeitura permite (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Esse parece ser um investimento que “vale a pena” em quase todos os casos,

visto que, mesmo quando não se pretende vender ou construir, a estrutura é feita

com essa previsão. A laje pode ser usada em momentos em que o proprietário

necessita de liquidez, seja para uso próprio ou para novos investimentos.

4.3 Promotores imobiliários

A forma de produção de habitação que chamamos de promoção imobiliária

combina a centralização dos estoques imobiliários com as formas de intensificação

do uso do solo expostos ao longo desse capítulo além da demolição para a

verticalização. A centralização dos estoques se dá de duas formas: compra e

herança. A herança pode aparecer como oportunidade para o início de uma prática

mais sistemática de centralização, mas não pode ela por si mesma ser prática

sistemática. A compra aparece de duas formas: a manutenção do edifício adquirido,

na qual o edifício aparece apenas como reserva de valor; e a intensificação do uso

do solo, onde o comprador visa a renda gerada pela operação.

Vamos tratar primeiro da herança que, apesar de ser uma forma casual ou

acidental (LOGAN; MOLOTCH, 1987) de propriedade, é uma forma que pode

resultar em processos de intensificação do uso do solo tendo em vista o aumento

dos ganhos. Sobre a importância desta forma de acumular imóveis, o corretor da

Imobiliária 2 dá certa importância para o número de herdeiros.

— Como, no geral os proprietários tem acesso às casas que são colocadas pra alugar? Construção, subdivisão... — Olha, divide por 3, um terço, — “estou grávida, nem casei”. Aí o pai da noiva vai construir em cima. [...] Herdeiro, tem muito herdeiro aqui na [Favela 1], [Favela 1] é terra dos herdeiros. O outro terço é que compra, compra pra investir, já compra pronto, entendeu? (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 2)

Não temos informações mais precisas sobre a importância da herança na

centralização dos imóveis nas favelas, mas a visão do bem imóvel como importante

meio de acumulação e constituição de patrimônio a ser repassado para as próximas

gerações apareceu ao longo das entrevistas. Segundo o Proprietário 3 da Favela 2,

a “casa não se vende”, pois, para ele, a casa é o patrimônio mais seguro, com

rendimento certo e é algo para passar para os filhos em momentos de dificuldades.

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179  

Casa não se vende. Eu só vendi a minha lá pra comprar essa daqui, entendeu? Casa não se vende, casa é o seu patrimônio, seu ganha pão, se der qualquer coisa aí você já tem a casa. Tem os filhos também, mal ou bem a gente acaba pensando neles também, e aí, qualquer coisa tem a sua casa aí, fica com uma quitinete dessas aí pra resolver sua vida. Vender não, fazer pra vender acho que não vale a pena, até porque o preço que você faz a casa aqui, não é o preço que você vende. Você vai botar um piso de qualidade, um acabamento de qualidade, pra depois você vender por mixaria. Aí ah, 300 mil, ninguém vai dar, então não vale a pena, então você tem que fazer uma coisa pra alugar mesmo. É mais fácil você ter 600 todo mês, que eu acho que é até mais que a poupança, a poupança está 1%, sei lá, se você botar o dinheiro na poupança, o aluguel vai render mais que a poupança, todo o mês vai te dar 600 reais, 700 reais. Você sabendo trabalhar e administrar, você consegue. Lá pra frente, você vai ter um dinheirinho. Eu penso dessa forma (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

Houve um caso entre as entrevistas na Favela 2 onde a transmissão do bem

não foi propriamente por herança, mas algo parecido ocorreu. Na realidade, o

entrevistado comprou a terra do filho do cunhado que havia herdado do pai morto e

não queria ficar com o imóvel. O entrevistado construiu um prédio de 6

apartamentos no local da casa.

Alugo, eu tenho 6 aluguéis, eu construí numa área que era uma residência familiar. A minha sogra dividiu a área que ela tinha e deu um pedaço pra cada filho, um desses filhos veio a construir uma pequena moradia e faleceu. O filho dele que não tem interesse em construir mais nada me vendeu (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Interessante notar no trecho reproduzido que a herança pode na realidade ser

uma forma de centralização ou de descentralização, como no caso da distribuição

das terras entre os filhos. No entanto, o mais importante aqui é como o Proprietário

4, através da compra do imóvel de um familiar e um recurso acumulado

anteriormente, conseguiu aumentar o seu estoque de 1 imóvel, onde morava para 7

imóveis, onde 6 estão alugados. É importante notar também que, por mais que o

imóvel não tivesse sido comprado e sim herdado diretamente, seria necessário um

acúmulo de recurso inicial para a construção do prédio de apartamentos. No caso do

entrevistado, ele foi funcionário público e alega que o salário era suficiente para reter

esse recurso. Porém, a própria condição de proprietário pode ser uma fonte para o

recurso aplicado em investimentos posteriores. Identificamos um caso no Turano

onde uma proprietária de uma unidade habitacional alugava a sua casa e morava

em uma pior alugada para juntar o dinheiro da diferença dos alugueis. As formas

que apresentamos anteriormente de intensificação do uso do solo também podem

ser consideradas formas de gerar rendimentos pela condição de proprietário que

Page 180: A produção do espaço na favela - UFRJ

180  

podem ser utilizados em investimentos futuros.

Segue abaixo a resposta do corretor da Imobiliária 1 sobre quem são os

investidores da produção imobiliária.

Quem já tinha imóvel mesmo. Tem o investidor também, mas a maioria tinha um, foi comprando outro, comprando outro, a maioria é assim, investidor mesmo. Tem muito cara aí construindo e vendendo, construindo e vendendo. Fizeram muito prédio aí (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

Há dois elementos importantes, o primeiro é que, segundo o entrevistado há

uma parcela da população que se especializou na produção imobiliária, o segundo é

que quem passou a exercer esse tipo de atividade já era proprietário. Isso não exclui

a possibilidade de o investidor ter acumulado a partir de melhores salários, por

possuir comércios ou manufaturas, etc., mas mostra que, pelo menos no ponto de

vista do entrevistado, a terra é uma importante fonte para os recursos iniciais dos

produtores de imóveis.

Outra forma importante de acesso a recursos para o investimento no setor

imobiliário e recorrente entre os entrevistados é o comércio local. Dentre os 5

proprietários entrevistados, 3 são comerciantes e os outros dois foram importantes

lideranças nas favelas onde vivem e ocuparam cargos públicos em determinado

momento da vida. A presença maior de comerciantes entre os proprietários

entrevistados pode estar relacionada ao fato de os comerciantes serem pessoas

mais conhecidas e com a vida mais pública, mas, ainda assim, essa deve ser uma

forma importante de acumular recursos para investir em construção de imóveis. O

Corretor da Imobiliária 2 identifica os comerciantes como proprietários de imóveis.

Quem tem imóvel hoje é quem é herdeiro e quem tem comércio. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

O Proprietário 3 da Favela 2 vendeu a casa que morava e era proprietário em

outra favela da Zona Sul para comprar um terreno, segundo o entrevistado, “tête-à-

tête”, na Favela 2. O recurso para construir o prédio de quitinetes provém do

comércio de materiais de construção que possui na favela. Segundo o entrevistado,

assim que concluir as primeiras unidades, o aluguel passa a ser mais uma fonte de

recursos para a construção das outras unidades.

Page 181: A produção do espaço na favela - UFRJ

181  

O Proprietário 2 da Favela 1 é representante de uma distribuidora de gás97 e,

apesar de o Proprietário 1 afirmar que os recursos para construção do Proprietário 2

provém do narcotráfico varejista (vamos tratar mais disso no capítulo 5), afirma que

seus recursos são provenientes do comércio de gás e, conforme foi construindo,

também do aluguel dos imóveis que construiu anteriormente. Afirma também que

sempre prefere alugar, mas já vendeu 4 apartamentos para terminar alguma obra ou

comprar novos terrenos.

Após a compra do terreno, o novo proprietário pode manter o edifício da

forma que é. Nesse caso, a terra pode servir como reserva de valor ou objeto de

especulação, apesar de alguns estudos apontarem que o aluguel na favela tem um

rendimento em relação à venda maior que no restante das cidades (LEITÃO;

DELECAVE; KEUCHKARIAN, 2015; ABRAMO e FARIA, 1998). No entanto, o

proprietário também pode demolir e construir uma edificação melhor ou maior, ou

mesmo ampliar a partir da construção existente. Nesses casos, há um ganho

construtivo na operação. Segundo o corretor da Imobiliária 1:

Alguns compram pronto, outros já fizeram, já é antigo, outros estão construindo aí, casa velha que tinha terreno bom. De 5 anos pra cá construíram muito na [Favela 1], muita construção. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)

Nenhum dos entrevistados que comprou imóveis os alugou sem fazer

intervenções. No entanto, o Proprietário 1 da Favela 1 foi o único entre os 5 que não

fez investimentos para intensificar o uso do solo e manteve a edificação existente no

momento da compra, apesar de ter feito grandes modificações nas plantas dos

pavimentos e determinado acréscimo. O entrevistado conta que comprou um prédio

com 18 apartamentos e fez uma reforma para melhorar as suas condições de

moradia. A reforma resultou num decréscimo de 18 apartamentos para 10 apesar de

ter construído três apartamentos na cobertura.

Fiz algumas reformas, construí três quartos, em cima, no terraço. Internamente eu fiz uns ajustes, porque quando eu comprei eram 18 quartos, 18 moradias, aí eu quebrei e transformei, eu falei 8, mas acho que é 10. Eram 18, eu transformei em 10. Juntei um com o outro... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

                                                            97 Buscamos os CNPJs ativos do proprietário e encontramos, além da distribuidora de gás, mais duas lojas de materiais de construção. Não averiguamos se essas duas lojas estão em funcionamento.

Page 182: A produção do espaço na favela - UFRJ

182  

Outros três proprietários de imóveis entrevistados construíram os prédios de

apartamentos desde a fundação.

O Proprietário 3 da Favela 2 comprou um terreno vazio para construir quatro

quitinetes e dois apartamentos. Para a construção do prédio o Proprietário 3 ainda

negociou com um amigo que morava em outra região da favela para auxiliar na obra

e ficar com uma casa no prédio. Em troca, a casa desse amigo será dividida e posta

para alugar e, dessa forma, a obra resultará em seis quitinetes e dois apartamentos,

sendo que um apartamento ficará com esse amigo. O outro apartamento está

destinado ao seu irmão que é sócio no comércio e no investimento imobiliário.

A princípio assim, as que a gente estava fazendo são duas em baixo e duas em cima. Na verdade são quatro quitinetes... Não, dois, quatro, seis! É porque uma o nosso amigo está morando, saiu lá do [região baixa da Favela 2], a gente botou lá pra quando for fazer em cima ele voltar pra cima e dividir a casa que ele tem, aí fica quatro quitinetes ali no meio, duas em baixo perto do bar e as duas casas em cima (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

Aos companheiros de investimento são destinados os apartamentos e as

quitinetes são destinadas para o aluguel. O tipo de investimento feito pelo

Proprietário 3 é qualitativamente diferente do anterior, pois há aqui um movimento

para gerar um ganho construtivo. Além disso, a intensificação do uso do solo e a

forma do produto imobiliário (no caso, a quitinete) foram escolhas baseadas na

busca por lucros mais elevados.

Porque você preferiu fazer quitinete? É o que dá dinheiro, o quitinete... Mas é um quitinete grande, é um quitinete é... Com quarto, sala, cozinha e banheiro. A única coisa é que é cozinha americana com a sala, mas quarto e banheiro é separado (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).

O Proprietário 4 da Favela 2 comprou uma casa e demoliu para construir um

hostel, que posteriormente foi reformado configurando um prédio com 6

apartamentos. Segundo o entrevistado, o hostel durou o mês da Copa do Mundo de

2014.

Eu fiz uma experiência pra Copa do Mundo. Recebi algumas pessoas num hostel que durou um mês, depois eu ampliei um pouco mais e fiz 6 apartamentos (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

A fala do entrevistado demonstra certa preocupação com o comportamento

Page 183: A produção do espaço na favela - UFRJ

183  

do mercado imobiliário. Em primeiro lugar, é provável que a “experiência” do hostel

durante a Copa do Mundo tenha rendido mais que vários meses de aluguel. Em

segundo lugar, pode ter rendido uma rede de contatos que permite ao proprietário

alugar seus apartamentos para uma demanda além da que normalmente busca os

imóveis na favela.

Eu não costumo alugar casa pra morador daqui, aí, por exemplo, tem duas famílias de argentinos morando lá, mas tem um brasileiro também, tem um professor de educação física, tem uma comerciante que fechou uma loja em Copacabana, tem um casal de colombianos, tem um gaúcho, varia muito, entendeu? Mas eu não costumo alugar casa pra morador da comunidade (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Segundo o entrevistado, apesar do aluguel de quitinetes ter um rendimento

maior, ele preferiu construir apartamentos, pois um dia pode precisar morar em um

deles e não quer ter que quebrar paredes depois. No entanto, o apartamento pode

se tornar um produto imobiliário diferenciado e mais adequado no caso em que o

proprietário é capaz de atingir uma demanda de mais alto padrão.

O Proprietário 2 da Favela 1 comprou três casas, demoliu e construiu três

prédios resultando em 25 apartamentos. Dentre os entrevistados, o proprietário 2 foi

o construtor mais sistemático e afirma que havendo oportunidades posteriores ele

continuará construindo.

Esse tipo de atividade sistemática caracteriza a formação de um agente

especializado na produção imobiliária nas favelas. Esse agente especializado difere

do capital imobiliário atuante no restante da cidade não apenas pelo volume da

produção, mas também pelo nível de especialização, pela estratégia de atuação,

pelo poder de direcionamento da demanda, etc. No entanto, o volume de produção

de alguns desses agentes é considerável e sua forma de atuação é qualitativamente

distinta dos proprietários fortuitos ou dos que constroem e compram para

complementar renda ou evitar a depreciação de recursos acumulados.

Em artigo sobre o mercado de alugueis em favelas, Magalhães et al,

baseados em evidências empíricas coletados em especial nas favelas Parque Royal

e Quinta do Caju apontam a existência de proprietários com grandes volumes de

imóveis.

Nos casos estudados, já aparecem alguns “grandes proprietários”, como o de um comerciante que possui vinte imóveis em seu nome conforme os cadastros da Prefeitura, sem contar aqueles em nome de seus filhos

Page 184: A produção do espaço na favela - UFRJ

184  

(MAGALHÃES; CEZAR, et al., 2012, p. 5).

O corretor da Imobiliária 1 comenta sobre um caso, segundo ele, bastante

conhecido em algumas favelas, do dono de uma loja de materiais de construção

chamada Martelão, localizada na Muzema. Segundo o entrevistado, o dono do

Martelão é proprietário de cerca de 380 imóveis na favela.

Compra, demole, área mesmo invadida, invadiram muito, [...] antes do Paes sair eles, parece que, fecharam os olhos. Tijuquinha, Muzema fizeram muito. Muzema não podia fazer nada e está lá, prédio de 8 andares. O dono do Martelão fez 380 imóveis na Muzema, 380 apartamentos só num local, perto daquele posto de gasolina, vai lá pra você ver, é loja, é Dominus, é o diabo, apartamento que só o caralho, está fazendo ainda, construindo. Aquela área está arrebentando imóvel, vem muito imóvel do Rio das Pedras, aquelas casas que o governo tinha feito, tinha dado pro povo, os cara foram comprando as casas dos fudidos, dos coitados e levantaram aquela porra toda de prédio. É muito imóvel98 (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

Outros casos estiveram na mídia, como o caso do “Minhocão” “prédio que,

segundo reportagem do jornal O Globo99 possuía 22 quitinetes com cerca de 16m²

cada e foi embargado e demolido pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro) e o

caso do “Empire State” (prédio que, segundo reportagem do mesmo jornal100, possui

11 andares com 77 quitinetes) ambos localizados na Rocinha.

O “Empire State” parece ser uma exceção no contexto das favelas. No

entanto, na área cadastrada da Tijuquinha, foram identificados pelo menos 21

prédios com mais de 15 unidades habitacionais, sendo que 7 deles possuíam mais

de 20 unidades, ou seja, bem próximo ou com mais unidades que o “Minhocão”.

A partir dos dados levantados em campo no cadastramento para

Regularização Urbanística e Fundiária, montamos tabelas que nos permitem ter uma

ideia da concentração de imóveis nas mãos de determinados proprietários na

Tijuquinha e na Babilônia. As tabelas foram construídas com base nas informações

levantadas pelos cadastros e apresentam o número que proprietários por faixa de

quantidade de imóveis que possui, a proporção que cada faixa representa em

relação ao total de proprietários e em relação ao total de imóveis cadastrados, o

                                                            98 A Muzema apresenta um notável crescimento do número de domicílios. Segundo o censo do IBGE em 2000 possuía 110 residências em 2010 passou para 1528. 99 O Globo, 26/03/2009, Demolição total do Minhocão da Rocinha deve demorar sete dias, disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1059614-5606,00-DEMOLICAO+TOTAL+DO+MINHOCAO+DA+ROCINHA+DEVE+DEMORAR+SETE+DIAS.html 100 O Globo, 12/11/2011, disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/empire-state-da-rocinha-especulacao-imobiliaria-na-favela-3222882

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185  

número de imóveis que cada faixa de proprietários detém e sua proporção em

relação ao total de imóveis. É importante ressaltar que, como o trabalho não foi

finalizado em nenhuma das favelas, é possível que os proprietários tenham mais

imóveis em outras áreas das favelas. Outro ponto importante é que não tivemos

informações para agregar proprietários da mesma família, o que pode causar certa

distorção, pois como nos cadastros para regularização fundiária nenhum proprietário

pode ser beneficiado por mais de uma unidade habitacional, é prática frequente a

distribuição de unidades pela família. Um imóvel alugado pode aparecer na nossa

tabela como próprio, porque o proprietário cadastrou no nome de um cônjuge ou um

filho. Esses fatos podem distorcer o número de alugueis e de unidades associadas a

determinado proprietários, mas a tendência é distorcer sempre de forma a diminuir o

número de imóveis alugados e esconder a concentração de imóveis.

Tabela 1: Concentração de imóveis na Tijuquinha.

 

Fonte: Acervo do autor.

Na Tijuquinha foram cadastrados 674 imóveis, onde 35% são ocupados por

proprietários e 65% por locatários. Importante notar também que 3% das famílias

cadastradas detêm 36% das unidades habitacionais cadastradas. Nesse universo,

foram encontrados 3 proprietários com mais de 20 unidades habitacionais.

Na Babilônia, o trabalho de campo resultou em dados menos representativos,

pois um número menor de unidades habitacionais em relação ao total foi cadastrado.

Isso pode explicar a inexistência de proprietários com 9 ou mais unidades

habitacionais, apesar de a concentração de imóveis ter se mostrado

consideravelmente mais baixa como podemos observar na tabela abaixo.

Page 186: A produção do espaço na favela - UFRJ

186  

Tabela 2: Concentração de imóveis na Babilônia.

 

Fonte: Acervo do autor.

Um dos motivos da mais baixa concentração de imóveis pode ser a

fiscalização mais forte que a Babilônia sofreu ao logo da história em relação à

Tijuquinha e às favelas de forma geral. Os maiores prédios na Babilônia têm cerca

de 10 unidades habitacionais, enquanto na Tijuquinha há prédios de 20 unidades.

Na amostra coletada, a Babilônia apresentou 46% dos imóveis em situação de

aluguel, enquanto na Tijuquinha 65% dos imóveis encontram-se nessa condição.

Tabela 3: Imóveis alugados na Tijuquinha e Babilônia

 

Fonte: Acervo do autor.

O levantamento feito na Babilônia não nos permite tirar maiores conclusões,

mas serve como contraponto ao alto nível de centralização da Tijuquinha. Apesar

disso, mesmo na Babilônia o índice de aluguel é alto se comparado à região

metropolitana do Rio de Janeiro (17,5% segundo o censo do IBGE de 2010) ou do

restante do Brasil (na maior parte das cidades brasileiras não passa de 20%). A alta

taxa de aluguel nessas favelas pode estar relacionada a duas características

levantadas nesse estudo. Em primeiro lugar, o acesso à moradia depende, em

grande medida, da produção de imóveis por investidores locais, seja por ampliações

e subdivisões dos seus imóveis ou pelo movimento de centralização seguido por

verticalização. Em segundo lugar, os proprietários de imóveis preferem, por

questões econômicas, alugar do que vender os imóveis produzidos porque, segundo

os proprietários entrevistados, a baixa capacidade de pagamento e de acesso ao

financiamento da demanda limitam mais o preço da venda que o preço do aluguel.

Page 187: A produção do espaço na favela - UFRJ

187  

Não é o caso aqui de defender que o mercado imobiliário em favelas se

configura em pobres explorando pessoas ainda mais pobres (DAVIS, 2006) ou uma

barreira para o acesso à moradia à população pobre (ABRAMO), mas, assim como

no restante da cidade, há uma relação contraditória de afirmação e negação do

acesso. Na relação de troca, o valor de troca de qualquer objeto produzido ao

mesmo tempo em que nega o valor de uso para o produtor necessita afirmar o valor

de uso no polo oposto da relação. Numa sociedade onde o valor de uso é

tendencialmente reduzido à suporte de valor, ou seja, o processo produtivo é

comandado pela busca do valor e não pela necessidade imediata do objeto de uso

moradia, a forma, a utilidade, o direcionamento da demanda, etc. dado pelo

produtor, será o que dá a ele a maior capacidade de se apropriar do valor, o que não

necessariamente significa a produção de unidades habitacionais direcionado a uma

demanda com maior poder aquisitivo. As entrevistas apresentaram em todos os

casos a possibilidade de potencializar os ganhos dos proprietários de imóveis

reduzindo as unidades habitacionais e intensificando o uso do solo. Segundo os

entrevistados, essa é a fórmula utilizada para ofertar habitação para a camada mais

pobre sem de forma alguma afetar os ganhos. Essa configuração, ao mesmo tempo

em que nega o acesso a terra e coloca duas frações da classe trabalhadora em

posições antagônicas (uma que busca o aumento da apropriação do valor via renda

e outra que busca aumentar o seu acesso aos bens de consumo protegendo o

salário da apropriação via renda), permite o acesso à moradia, ainda que muitas

vezes precária, a uma população que teria dificuldades de acumular recursos

mesmo para a autoprodução.

A produção de uma unidade habitacional barata, ao mesmo tempo, não

significa a produção de unidades habitacionais com uma relação preço/área também

barata. Foram encontradas, no trabalho de campo, unidades habitacionais de 3m² a

6m² com o preço do aluguel de 300 a 400 reais (de 50 a 133 reais por metro

quadrado), o que configura uma relação preço/área mesmo se comparada ao

mercado formal (31,87 reis por metro quadrado em média na cidade do Rio de

Janeiro101), porém um preço unitário acessível. O corretor da Imobiliária 2 da Favela

1 considera um preço um pouco mais baixo, mas, segundo os seus parâmetros de

preço, a unidade habitacional perde o valor por metro quadrado conforme cresce a

                                                            101 Segundo dados da SECOVI. Conferir: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/rio-perde-o-posto-de-cidade-com-o-aluguel-mais-caro-do-brasil.ghtml

Page 188: A produção do espaço na favela - UFRJ

188  

unidade.

São vários imóveis que a gente vai administrando e ainda mais durante um tempo, você vai pegando uma bagagem. Quarto com banheiro costuma ser 300 a 400 reais, um quitinete é de 500 a 650, um quarto e sala é de 700 a 800... (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

Se considerarmos as quitinetes da Favela 1 e da Favela 2 no mesmo padrão

que as de 16m² como as do “Minhocão” a 650 reais, a relação preço/área continua

alta. Abramo, apesar de dar outra explicação para o fenômeno, corrobora com a

constatação de que os preços dos alugueis nas favelas são relativamente altos.

Assim, a externalidade de vizinhança, apesar de ser um atributo locacional, transforma-se em um elo importante entre a decisão de localização residencial e as estratégias de sobrevivência das famílias de baixa renda. Esse nexo, em muitos casos, explica o valor excessivamente elevado dos preços dos imóveis nas favelas (ABRAMO e FARIA, 1998, p. 448).

A ideia de uma externalidade de vizinhança de fato esteve presente em

alguns discursos que coletamos. No entanto, não sabemos o quanto isso é resultado

da disseminação de uma imagem de “comunidade” atribuída às favelas, o quanto os

moradores das favelas contam realmente com uma rede de apoio, nem o quanto

essas redes são realmente inexistentes fora das favelas. Ainda assim, entendemos

que as estratégias dos agentes internos associadas às condições materiais das

favelas (como a precariedade da regulação edilícia) são momentos explicativos mais

importantes.

A representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2 apresenta uma

faixa de preço próxima. Segundo a entrevistada, os proprietários preferem produzir

quitinetes porque é mais em conta e tem mais demanda. Dessa forma, a quitinete

não fica “parada”.

— Você sabe que tipo de casa se constrói, se é mais quitinete, ou se é apartamento? — Mais quitinete. — Sabe por que constroem mais quitinete? — Quitinete, porque são menores e mais em conta pra alugar. Por exemplo, entre pagar 600 reais e 1200, eu prefiro pagar 600. — Pra quem constrói dá mais dinheiro construir quitinete? — É mais fácil de alugar uma quitinete do que uma casa de dois quartos ou de um quarto que é mais caro. O poder povo está pouco. — Então as casas grandes ficam mais paradas? — Mais paradas. Geralmente essas casas grandes, eles alugam anual, às vezes a pessoa fica 2 ou 3 anos, famílias, entendeu? As quitinetes são mais rotativas, o estudante vem aqui e passa uma temporada, aí aluga uma

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189  

quitinete depois vai embora. As casas não, geralmente ficam famílias. — Você tem ideia de quanto custa uma quitinete? — Quitinete está em torno de... A mínima está em torno de 500 reais a 800, uma casa dependendo da localidade está de 600 a 1200. Dois quartos, sala, banheiro, cozinha, um lugarzinho de lavar roupa, está nessa faixa (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

Certamente, é importante entender em que medida, em cada conjuntura, a

depender da favela e do tempo histórico, o mercado imobiliário se apresenta como

barreira ou canal de acesso dos pobres à terra urbana. No entanto, também é

importante destacar como o mercado imobiliário e a renda da terra determinam, em

grande medida, o produto imobiliário e as formas de vida. A forma como a quitinete

se proliferou nas favelas cariocas, em especial nas áreas centrais ou valorizadas,

indicam que o que determina a produção dessa forma de moradia não está apenas

na dinâmica interna e singular de cada favela, mas há na dinâmica imobiliária da

cidade algo que produz esse tipo de tendência.

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5 AGENTES ESTRUTURADORES DO ESPAÇO

Muito sobre os agentes já foi adiantado no capítulo 2. A análise da relação

entre a favela e a cidade como um todo, assim como a análise das formas de

organização internas e a regulação da construção exigiram que adiantássemos parte

do que será tratado aqui. No entanto, aqui trataremos um a um dos agentes e suas

relações.

Os agentes variam a depender do território a ser analisado. Isso vale para as

favelas, assim como para qualquer outro território. Dessa forma, elegemos agentes

que já aparecem com recorrência em outros estudos e esperamos que a análise dos

resultados da pesquisa de campo ajude a complexificar a relação muitas vezes

contraditória entre os diversos agentes.

Parte da bibliografia analisada no decorrer dessa dissertação distingue os

agentes por:

Função: por exemplo, a Associação de Moradores como instância

representativa, mediadora e institucional-cartorária e o narcotráfico

varejista como agente mercantil.

Forma em que exerce poder: por exemplo, a associação como um

poder político retórico e narcotráfico varejista como bélico-violento.

No entanto, veremos que, nos casos estudados os agentes do Estado

também fazem parte e alteram a relação entre os agentes locais. Veremos também

que essas relações são permeadas por disputas e coalisões, em parte, resultantes

de sombreamentos causados pela falta de agentes especializados (por exemplo, a

regulação da construção, pode ser exercida ao mesmo tempo por agentes do

Estado, Associação de Moradores e narcotráfico varejista em colaboração ou em

conflito a depender do contexto). Ao mesmo tempo, esses agentes podem formar

coalisões a fim de se fortalecerem.

5.1 Associações de Moradores

Alguns temas discutidos em capítulos anteriores da dissertação exigiram

análises e observações sobre as formas de atuação das Associações de Moradores

e suas relações com outros agentes aqui tratados. A fim de avançar na análise dos

agentes podemos apenas apontar onde elas se localizam, já que não seria

pertinente retomá-las aqui. No capítulo 2, quando tratamos da relação entre o

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191  

Estado e os agentes locais, discutimos como as associações são coagidas a

reproduzir o direito jurídico oficial, segundo Sousa Santos, formando um ersatz que,

em parte, compensa a precariedade dessa forma de direito nas favelas. Essa

discussão foi desenvolvida com foco na reprodução da propriedade fundiária

moderna. Nesse momento, trabalhamos o papel da associação como o agente que

registra as propriedades. No subcapítulo sobre os limites da propriedade fundiária na

favela indicamos seu papel na mediação dos conflitos que envolvem as questões

fundiárias e construtivas. No subcapítulo sobre a inadimplência discutimos com foco

nesse assunto a mediação exercida pela associação nesses casos entre locador e

proprietário ou mesmo entre esses agentes e os agentes do estado, como os oficiais

de justiça. No subcapítulo sobre a regulação da construção vimos como apesar de

ter certo poder de ação ele muitas vezes fica limitado pela ação do narcotráfico

varejista ou mesmo pelo Estado. Vimos também como a associação pode formar

coalisões com ambos os agentes a fim de fortalecer seu poder de ação.

As Associações de Moradores têm aparecido até agora como uma instância

representativa, além de instituição mediadora de conflitos e cartorária. Por ser o

fórum reconhecido de representação nas favelas, têm posição privilegiada de

acesso às instituições supralocais, ou seja, é o espaço mais privilegiado para o

acesso de agentes supralocais aos locais e vice versa. Além disso, detém um poder

de regulação das atividades no interior das favelas (comércio, construção, etc.) que,

a depender da conjuntura, pode estar em disputa ou em colaboração com o Estado

ou o narcotráfico varejista. A terceira característica é a emissão dos documentos de

propriedade. Esse tipo de documentação, apesar de passar ao largo das instituições

oficiais de Estado, é reconhecido na resolução dos conflitos internos e, inclusive, em

momentos de intervenções estatais (urbanização, regularização fundiária, etc.).

O primeiro questionamento que devemos fazer é como se dá a

representatividade da Associação de Moradores. As Associações de Moradores têm

papel representativo bastante diversificado a depender das forças que se

apresentam para a disputa. Dessa forma, as Associações de Moradores podem

representar, de forma geral, o interesse da população das favelas; um grupo

específico dentro da favela (tráfico, proprietários, etc.), agentes supralocais (Estado,

“padrinhos políticos”, etc.); ou, ainda, coalisões que podem combinar interesses da

forma mais variada.

O fato de a Associação de Moradores ter acesso privilegiado tanto aos

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192  

agentes locais como aos supralocais a coloca em uma posição como a de um “pivô”

que intermedia tanto o acesso dos agentes e moradores locais aos agentes

supralocais, como intermedia o acesso dos agentes supralocais aos locais e

moradores. Essa característica coloca a Associação de Moradores em uma posição

estratégica que pode ser de interesse dos diversos agentes, como veremos mais a

frente.

Para pensarmos a representatividade podemos partir do nível de adesão dos

moradores. Em 1967, Machado já identificava um problema nesse sentido, para o

autor:

A falta de participação pode ser facilmente comprovada, na grande maioria das favelas, pela baixa percentagem de sócios das Associações de Moradores (que funcionam como uma espécie de centro de decisões políticas, tanto de natureza interna quanto externa), cujas diretorias em geral são eleitas com votações ridículas se comparadas com o número do corpo eleitoral potencial (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967], p. 36).

Essa questão, ao que parece ainda persiste, ao menos nas favelas

pesquisadas. Segundo a representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2

entrevistada, o número de associados é baixíssimo e devido o baixo custo da

anuidade, a cada eleição vários moradores quitam as suas dívidas para votar.

— Tem mensalidade, uma mensalidade que hoje em dia é até piada, 5 reais mensal, só que nem 10% paga. — Tem ideia mais ou menos de quantas pessoas? — Se eu falar você não vai nem acreditar. 2%, 2% paga, o resto não paga, 98% não paga. — E quando vocês fazem a eleição vocês abrem pra todos os moradores? — Não, só para os associados que pagam, está no estatuto, a gente tem que seguir o estatuto, muita gente no ano de eleição vem pagar pra votar (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).

Esse tipo de configuração, onde há uma baixa adesão nos processos de

decisão e o baixo custo da anuidade permite aos concorrentes formar grupos para

votar, facilita o domínio de determinados grupos sobre as Associações de

Moradores. Isso não significa que grupos mais representativos e democráticos não

possam assumir a associação. A representação que encontramos na Favela 2 no

momento da pesquisa, mesmo que tenha dificuldade na adesão aos seus projetos,

parece buscar representar os interesses da favela como um todo.

Entretanto, os representantes das Associações de Moradores podem

aparentar a busca do exercício da representatividade da favela como um todo e

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193  

estar envolvidos em projetos políticos para fora da favela. É conhecida a formação

dos “currais eleitorais” nas favelas. Segundo Rocha: “a compreensão de que é

necessário um ‘padrinho’ para ter acesso aos bens públicos é resultado da

experiência de décadas dos moradores de favelas (e de bairros populares, em geral)

com o poder público” (ROCHA, 2008, p. 8). Segundo a autora, a prática de troca de

votos por favorecimentos pessoais (visibilidade política, cargos, etc.) ou coletivos

(como obras públicas, regularização fundiária, etc.) é uma herança da política da

“bica d’água” que persiste, ainda que os dirigentes de Associações de Moradores

hoje (ainda que, com dificuldade) tenham acesso direto ao poder público e não mais

obrigatoriamente pela intermediação de um “padrinho político” (ROCHA, 2008, p. 9).

Nas nossas entrevistas essa relação apareceu em diversos momentos, ainda

que em algumas não tenha envolvido diretamente a Associação de Moradores. No

primeiro caso, o Proprietário 4 da Favela 2 entende que a permissividade do Estado

para determinadas construções na favela é constituída na base da troca por votos.

É lógico, porque vira uma moeda de troca. Olha, nós não vamos mexer com vocês não, mas eu sou o fulano, lembra de mim, daqui a pouco tem eleição e o cara faz um churrasco com o cara que ele deixou ficar lá, ou faz um encontro com alguém da assembleia de Deus ou de alguma denominação de igreja que às vezes aproveita e se estabelece também. Infelizmente, as comunidades se estabelecem a partir daí (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

Já o Comerciante 1 da Favela 2 condena o a venda de votos por

favorecimentos pessoais (feijoada, churrasco, etc.). No entanto, o bem da

comunidade (infraestrutura, posto de saúde, etc.) justificaria o mesmo

comportamento.

Eu sempre escolho o que é melhor pra minha favela, pra minha comunidade, e eu digo pra eles o seguinte: — “quem chegar e fizer a melhor proposta para o morador vai ser muito bem aceito”, porque eu acho que falta aqui posto de saúde, falta aqui dentista uma clinica de dentista, que a gente tem aqui e está desativada. Então imagina assim, se um cara realmente quer fazer um trabalho, bacana e trouxer uma infraestrutura, eu garanto que ele vai colher bons frutos. Agora o favelado não está mais trocando o voto dele por uma feijoada, um churrasco não, isso aí está acabando, entendeu? Eu acho que as pessoas estão buscando um pouco mais de respeito pelo seu voto (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Já o corretor da Imobiliária 2 naturaliza completamente esse tipo de acordo,

inclusive com benefício pessoal. No entanto, avisa sobre os perigos desse tipo de

comportamento.

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194  

— O diferencial aqui na [Favela 1] vai ser agora as eleições. O cara que se juntar com algum político, o cara tem que se juntar assim: —”pô, beleza irmão, quero um carro, uma moto e uma casa!”. Sabe por quê? Eu vou te falar o seguinte, teve umas pessoas aqui na [Favela 1], que recebeu uma grana, e isso pegou mal pra caramba, entendeu, pegou muito mal. — Nessa última agora? — Nessa última agora! Ainda mais do Sérgio Cabral. Eu tenho um grupo aqui que eu participo, ele ofereceu uma grana pra gente calar a boca. Se a gente tivesse recebido, a gente estava ferrado. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

O “pegar mal” provavelmente tem relação com perder campo de influência e

mobilizar menos votos, o que dificultaria a capitalização desses votos em anos

posteriores. Certamente o “pegar mal” também poderia influenciar negativamente ou

seus negócios com a corretagem de imóveis.

Uma das entrevistas foi interrompida por uma discussão entre o corretor da

Imobiliária 2 e uma mulher que fez a campanha de Marcelo Crivella na eleição de

2016. Ele reclamava que ela trabalhava de graça no gabinete do prefeito depois de

tanta dedicação na sua campanha e ela afirmava que continuava trabalhando no

gabinete do prefeito porque lá ela tinha acesso às instituições, conseguia “botar”

gente da “comunidade” dentro do gabinete do prefeito. Após a saída da mulher, o

corretor indica que ela tirou vantagem da forma errada.

Ela trabalhou com o prefeito, eu trabalhei também, ela está tentando uma vaga lá desde que o prefeito entrou e está fazendo serviços ainda voluntários, serviço pra prefeitura. Isso está bom? Mãe de tantos filhos passando necessidade. Salário nenhum cara! E o chefe de gabinete chama ela e esse outro [nome omitido] e vai fazer as coisas de graça. [...] Ela está jogando na minha cara que eu fui no gabinete do prefeito por causa dela né? Tem nada a ver, ela tem tanto acesso que está desempregada hoje. Mas porque ela não está empregada? [...] Sabe por que eles não deram emprego pra ela ainda? Eu sou falador, mas eu prendo as coisas que eu devia falar logo na cara! Porque ela trabalhou para o prefeito, mas ela recebeu e quem recebe trabalhando pra político não tem direito a emprego e ele só bota lá se quiser. Porque tu me pagou porra! Eu não posso te cobrar nada. Tu fez uma campanha, me tratou, tanto pra você trabalhar, botar seu grupo pra trabalhar. Tu vai ficar me devendo alguma coisa depois da campanha? Tu me deve algum favor? Tu me pagou! Mas eu não, eu não recebi um tostão do prefeito nem de ninguém, ele me pediu, fui numa reunião com ele no Palace Hotel em Copacabana e ele me pediu ajuda e eu fiquei aqui trabalhando ajudei, no dia da eleição eu fiquei carregando gente de Jacarepaguá, fui levar gente pro caju pra votar, vim trazer pra [Favela 1], o dia todinho. E aí? Ele está me devendo favor, eu botei ele lá na cadeira e não me deu nada, não me deu emprego, meu documentos ainda estão lá (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

Os crimes eleitorais que envolvem o prefeito não são o foco aqui, mas o

interessante é que, para os moradores entrevistados da Favela 1, as eleições são

uma grande oportunidades de crescimento político e de melhoria nas condições de

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195  

vida. O potencial eleitoral da favela é capitalizado pelas pessoas influentes, seja

para tirar vantagens para si, seja para conquistar projetos que entendem servirem à

“comunidade”.

Outro caso importante veio, não das entrevistas, mas dos projetos de

regularização urbanística e fundiária que participamos. Um desses projetos foi

desenhado para a campanha de um dos candidatos a prefeito, o que era assumido

pelos funcionários da prefeitura como o “contrato do candidato”. Esse desenho só foi

possível porque a favela que foi escolhida já era uma favela “apadrinhada”, inclusive

o presidente da associação já ocupava um cargo no governo e o candidato era

apoiado pelo prefeito na época. Dessa forma, foi possível formular um projeto

financiado exclusivamente com recursos da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e

com a entrega dos títulos prevista para a véspera das eleições municipais de 2016.

O conchavo com “padrinhos políticos” não é a única forma de

“aparelhamento” da Associação de Moradores. Em uma das entrevistas que

realizamos, o Proprietário 1 da Favela 1 indica que a Associação de Moradores da

favela tem uma relação intrínseca com o narcotráfico varejista. Segundo o

entrevistado, a associação representa os interesses do narcotráfico perante o

Estado.

— A Associação de Moradores tem alguma ligação com o tráfico? — Os que estão aí é porque querem, mas, se não quiserem, vão ter na marra. A Associação de Moradores que for eleita, o trafico vai interferir, porque interessa a eles ter um órgão oficial pra negociar as coisas mais pesadas. [...] Isso é aqui e em qualquer lugar. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Segundo o entrevistado, essa coalisão pode resultar ainda na taxação de

determinados serviços dentro da favela. Segundo o entrevistado, o narcotráfico

consegue taxar o gás em associação direta com o proprietário da distribuidora, mas

os ambulantes são taxados pela Associação de Moradores em ação combinada com

o poder coercitivo do tráfico. O entrevistado ainda prevê a taxação dos lojistas visto

que a associação já iniciou ao cadastramento do comércio.

Eles estão cadastrando o comércio todo: comércio, ambulante... Eles não estão taxando ainda, eles estão cadastrando, e não é a toa né? Os ambulantes eles já taxam, ele pagam um valor lá, não sei quanto, pra eles, agora o cara lá estabelecido eles estão cadastrando, vão cobrar (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Page 196: A produção do espaço na favela - UFRJ

196  

É importante destacar que os interesses do “padrinho político”, do narcotráfico

varejista ou da população da favela em geral, nem sempre são antagônicos. O

narcotráfico varejista pode adotar determinados interesses da favela em busca de

legitimidade, o mesmo pode acontecer com o “padrinho político” em busca de voto, a

associação pode mediar a relação entre tráfico e padrinho político a fim de

implementar um projeto que beneficie a população como um todo, etc. Em todos os

casos, os agentes podem representar diversos interesses e ainda agir para atender

favorecimentos pessoais. No entanto, nem sempre essa conjuntura é possível e não

é simples identificar se um benefício pontual para a favela como um todo que

envolva esse tipo de negociação será benéfico a longo prazo, sobretudo porque

esse tipo de negociação nunca é feita de forma aberta e que envolva decisões

amplamente democráticas.

Sendo assim, por mais que tenhamos apontado no início dessa

argumentação que a adesão às eleições são baixas e que é comum a realização

desses processos em chapa única, a disputa pela influência sobre a Associação de

Moradores pode acontecer de outras formas, inclusive a influência de agentes

externos102 pode ser um impeditivo para a disputa eleitoral por outros grupos.

A preocupação de Andrelino Campos com a generalização da ligação entre

tráfico e Associação de Moradores ou do aparelhamento do Estado ou dos

“padrinhos políticos” (2005, p.154 e 155) sobre essas instituições é de fundamental

importância e deve ser levantada aqui. Porém, a generalização que o autor faz da

Associação de Moradores como forma de resistência também é problemática. A

Associação de Moradores como instância representativa pode ser ocupada por

diversos setores e, além de poder representar interesses externos à prática da

associação, como os exemplos já levantados aqui, a população das favelas

apresenta certa heterogeneidade. Existem comerciantes, trabalhadores informais,

empresários, proprietários, locatários, etc. e determinados grupos podem ter

interesses antagônicos. É dessa forma, que uma Associação de Moradores pode

alinhar-se com proprietários e comerciantes apoiando projetos remocionistas que

aumentem a lucratividade do comércio e o valor dos imóveis, prejudicando a parte

removida da população e os locatários, pelo aumento da demanda por habitação e

                                                            102 Consideramos externos nesse subcapítulo os agentes que são exteriores a representação da Associação de Moradores. Os agentes de fora da favela seguirão sendo tratados como supralocais. Dessa forma, o narcotráfico varejista exerce uma influência externa a Associação de Moradores ainda que seja um agente local.

Page 197: A produção do espaço na favela - UFRJ

197  

aumento dos aluguéis.

Trabalhamos até agora as coalisões que podem ser feitas pelas Associações

de Moradores, seja no intuito de favorecimentos pessoais ou coletivos, seja com

relação ao domínio de grupos externos sobre a Associação de Moradores. No

entanto, as relações entre Associação de Moradores e tráfico, Estado, “padrinhos

políticos”, etc. podem ser de limitação com relação ao outro. O trecho reproduzido

abaixo descreve um processo de mediação exercido pela Associação de Moradores

1 da Favela 1.

Um cara me procurou e disse que tinha alugado uma casa e que o cara tinha vendido a casa dele. Lá da [área da Favela 1]. — “O que podia fazer?” Eu disse: — “vai à Associação de Moradores. Você tem algum documento que prova que o imóvel é seu? Que o cara está alugando?” Ele disse: — “ah, mas disseram que o cara é ligados ‘aos cara’” [narcotráfico varejista]. — “E aí... fica difícil, mas tenta”. Ele resolveu! (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

No caso apresentado, a relação entre narcotráfico varejista e Associação de

Moradores assume um caráter hostil. Nesse caso específico, parece que a

Associação de Moradores consegue cumprir o seu papel, mas nota-se que o

entrevistado indica uma dificuldade maior da associação cumprir seu papel em

casos que envolvem o narcotráfico varejista. Aparece também aí, uma medida de

poder. Há uma dúvida sobre a capacidade da Associação de Moradores intervir no

caso. Isso demonstra que, em determinadas conjunturas, em determinados casos, a

Associação de Moradores deixa de atuar por não ter força contra o narcotráfico

varejista.

Vale a pena retomar a entrevista do Comerciante 1 da Favela 2 onde ele diz

que a Associação de Moradores não consegue atuar no embargo de obras por

causa da influência do narcotráfico varejista.

E a associação não consegue mais intervir nisso? Não consegue por causa da influência diretamente do tráfico (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Mesmo sendo muito mais difícil em função do caráter coercitivo do

narcotráfico varejista, a Associação de Moradores pode, em determinadas

conjunturas, agir de forma negativa à atuação do narcotráfico varejista, em especial

se puder agir em conjunto com o Estado. Provavelmente, houve casos assim na

implantação das UPPs, porém não temos material para analisar esses casos.

Page 198: A produção do espaço na favela - UFRJ

198  

O Estado é outro agente que pode estar em aliança ou em conflito com a

Associação de Moradores. A aliança pode ser desenvolver de diversas formas. Ela

pode se desenvolver em torno de um projeto proposto pela prefeitura ou conquistado

pela organização da favela. Nesse caso, os dois agentes podem negociar em

relativa paridade de condições. Pode se desenvolver em torno de benefícios

pessoais, tanto para algum representante do Estado, como para um representante

da associação. Nesse caso, uma ação para a favela como um todo pode beneficiar

individualmente um representante do Estado, assim como uma política de Estado

pode beneficiar individualmente um representante da Associação de Moradores ou

mesmo o benefício individual pode vir de ambas as parte, ou seja, cada polo da

relação pode movimentar recursos das suas instituições em benefício individual ou

social. O Estado como um todo, ou grupos atuantes no Estado, podem cooptar

lideranças comunitárias ou as associações como um todo. Nesse caso, a relação se

apresenta de forma desigual e o Estado impõe as suas regras. As Associações de

Moradores também podem em algum momento impor a sua política para o Estado,

mas esse tipo de atuação exige a mobilização de um volume de recursos que uma

Associação de Moradores ou mesmo o conjunto delas geralmente não tem a

disposição.

Alguns exemplos sobre como a Associação de Moradores pode atuar em

conjunto com o Estado como no caso da fiscalização de obras ou na implementação

de obras e projetos estatais já foram apresentados. Já indicamos também como

acontecem os conchavos com “padrinhos políticos” seja em benefício próprio ou da

favela como um todo. Resta indicar a forma como a associação nega determinadas

políticas de Estado.

Os casos que tiveram mais repercussão recentemente no Rio de Janeiro

envolveram a política de remoção do governo de Eduardo Paes (2009-2016). Na

realidade, houve resistências de Associações de Moradores organizados em

articulação com outros movimentos e instituições a processos de remoção em todo o

Brasil. Os movimentos se organizaram em fóruns, manifestações, eventos, debates

públicos, contra laudos técnicos, etc. Esse é um bom exemplo, pois os movimentos

sociais conseguem reunir uma parte, ainda que pequena, das Associações de

Moradores em torno da luta contra uma ação específica, mas que, em determinados

momentos, se desenrola em uma luta contra as políticas do governo.

Esse tipo de articulação exige a formação ou a existência prévia de

Page 199: A produção do espaço na favela - UFRJ

199  

resistências locais. Podemos destacar a Comissão de Moradores da Providência e a

Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo (AMPAVA). A primeira,

organizada no Fórum Comunitário do Porto, resistiu a um projeto que previa a

remoção de 832 casas, sendo que pelo menos 140 foram removidas segundo o

Fórum103. A segunda tem uma história de resistência à remoção total que se trava

desde o início da década de 90 até que a luta se acirra em 2012 com as primeiras

remoções. Nesse contexto, a AMPAVA se articula com o Comitê Popular da Copa e

Olimpíadas do Rio de Janeiro e setores da academia. O processo de remoção se

intensifica em 2015 restando apenas 50 casas em 2016. O plano apresentado pelo

prefeito em resposta a articulação prevê a construção de 30 casas. Essas relações

entre movimento social e Associações de Moradores em articulação contra políticas

do governo certamente não são inteiramente virtuosas como pode parecer aqui.

Uma série de contradições permeia esses processos brevemente relatados, mas

não teremos condições de complexificar essas relações e apresentar suas

contradições aqui.

Em contraposição à resistência como forma de oposição ao Estado, podemos

utilizar o exemplo apresentado anteriormente, onde a Associação de Moradores age

conjuntamente com o narcotráfico varejista na taxação de determinadas atividades

dentro das favelas. Podemos perceber que, se o narcotráfico varejista em coalisão

com a Associação de Moradores pretende manter o controle sobre o transporte,

comércio, distribuição de gás, TV a cabo, etc. é necessário embarreirar

determinadas políticas de Estado. Dessa forma, a Associação de Moradores pode

se opor a determinadas políticas de Estado apenas para manter formas de

espoliação da população favelada, ainda que esse tipo de oposição deva aparecer

mais na forma de negociações sigilosas do que em manifestações públicas, debates

populares, etc.

Outra dimensão que deve ser tratada diz respeito aos diversos extratos a

serem representados pela Associação de Moradores. Esse é um tema difícil, pois os

estudos ao longo da história tenderam a homogeneizar os moradores dentro das

favelas e o discurso da comunidade tem reforçado a ideia da favela como um meio

homogêneo. Mesmo assim, diversos autores buscaram diferenciar os moradores de

favelas, seja identificando uma “burguesia favelada” (MACHADO DA SILVA, 2016

                                                            103 https://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2013/06/aqui.pdf

Page 200: A produção do espaço na favela - UFRJ

200  

[1967]), seja pela divisão entre locadores e locatários (DAVIS, 2006), moradores

novos e antigos (ROCHA, 2008), etc. Na Vila Autódromo, parte dos moradores dizia

não se sentir representada pela AMPAVA. Ao mesmo tempo, quando a Associação

de Moradores da Babilônia se posiciona contra a “gentrificação”, escolhe uma parte

da população para representar excluindo outra. Essa é uma condição de qualquer

instância representativa: ela pode representar seus associados como um todo desde

que não haja interesses antagônicos. No entanto, a heterogeneidade das favelas

nos obriga a pensar quais interesses se antagonizam e como essa disputa se

apresenta na Associação de Moradores da favela estudada. Dessa forma, assim

como agentes externos podem disputar ou hegemonizar a Associação de

Moradores, interesses que se mostram antagônicos dentro do corpo representado

pela Associação de Moradores podem disputar ou hegemonizar o espaço

representativo.

Tratamos aqui de algumas das diversas relações estabelecidas pelas

Associações de Moradores. Importante destacar que existem outras importantes que

não serão abordadas nesse trabalho, como a relação entre associação e milícia (que

deve ser diferente da relação entre associação e narcotráfico varejista), a relação

entre associação e igreja, etc. Importante destacar também que, aqui, ao tratar de

uma relação, abstraímos outras, porém essas relações podem e devem aparecer de

forma combinada e complexa.

5.2 Narcotráfico varejista

Sobre a relação entre as Associações de Moradores e o narcotráfico varejista,

o que foi apresentado é suficiente para os objetivos dessa dissertação.

Apresentamos como eles podem se limitar reciprocamente na mediação de conflitos

ou na regulação da construção e, como os dois agentes podem formar coalisões

para essas mesmas atuações ou mesmo para taxar os moradores das favelas.

Sobre a relação entre o narcotráfico varejista e o Estado, expusemos a limitação

recíproca na regulação da construção. Sobre a mediação de conflitos, vimos como o

narcotráfico varejista pode se adiantar ao Estado simplesmente para evitar a entrada

de agentes oficiais, incluindo a polícia, que pode atrapalhar a atividade de varejo. A

ocupação territorial será tratada no próximo subcapítulo sobre o Estado. Aqui basta

ressaltar que apesar da presença do narcotráfico varejista, Estado (UPPs, exército,

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201  

etc.) e milícia se limitarem reciprocamente, a coexistência também é uma realidade e

nem sempre é conflituosa. Entre os diversos outros aspectos da atuação do

narcotráfico varejista, vamos focar nesse subcapítulo nas formas de ganho

exercidas pelo narcotráfico varejista, em especial o ganho com o mercado

imobiliário.

Primeiro é importante lembrar que a presença do narcotráfico varejista está

longe de ser uma característica geral das favelas e, ainda que somássemos as

áreas de milícia, tal generalização ainda seria falsa. A presença do narcotráfico

varejista, também não carrega em si a espoliação da população local via taxação

dos serviços. Inclusive, essa forma de atuação é muito mais desenvolvida na Favela

1 do que na Favela 2. Na Favela 1, segundo as entrevistas, são taxados o gás, a TV

a cabo, o moto táxi, a van e o comércio ambulante, enquanto o comércio lojista está

em vias de ser taxado. O caso especial que iremos estudar é dos investimentos no

setor imobiliário com produção de estoques habitacionais e liberação para aluguel.

Na Favela 2, não encontramos indícios da taxação de serviços, porém houve da

venda dos terrenos vazios em especial os liberados pela obra do Programa Morar

Carioca.

O Proprietário 1 fala sobre a taxação dos serviços. Para ele, o fato de o

narcotráfico varejista, por vezes, resolver problemas que outras instituições deveriam

resolver constrói certa legitimidade para esse tipo de taxação. A violência ou a

ameaça da violência devem ser fator importante de imposição dessas taxas.

O povo quer alguém que resolva. O povo ainda tem a ilusão que “os cara” [narcotráfico varejista] ajuda, ajuda como? Paga mais caro a moto, paga mais caro a van, paga mais caro o gás... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Outro serviço que ele aponta é o “gatonet”.

Com a UPP o que entrou aqui foi a TV paga, mas o “gatonet” voltou. Tem um que é do próprio chefe do tráfico (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Como apontamos anteriormente, parte dos serviços só pode ser cobrado em

coalisão com a Associação de Moradores. Segundo o entrevistado, a Associação de

Moradores 1 da Favela 1 é ligada ao narcotráfico varejista e eles atuam em uma

ação conjunta na taxação dos vendedores ambulantes e dos lojistas. No esquema

apresentado, a Associação de Moradores cadastra e cobra dos comerciantes e o

Page 202: A produção do espaço na favela - UFRJ

202  

narcotráfico serve como ameaça para os que deixarem de pagar. Segundo o

entrevistado os ambulantes já são cobrados, mas os lojistas ainda estão sendo

cadastrados.

A associação não chega pra negociar, chega dizendo que não pode e a autoridade é pelo tráfico. Eles estão cadastrando o comércio todo. Comércio, ambulante... Eles não estão taxando ainda, eles estão cadastrando, e não é a toa né? Os ambulantes eles já taxam, ele pagam um valor lá, não sei quanto, pra eles, agora o cara lá estabelecido eles estão cadastrando, vão cobrar (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Sobre a atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário, o

Proprietário 1 apresenta o tráfico como o agente que tem dinheiro pra construir.

Além disso, ele o apresenta como o agente que não sofre com a intervenção de

outros agentes locais ou supralocais, mas comanda a regulação.

— O tráfico constrói muito aqui? — Constrói. Dá licença, faz qualquer coisa. — E aluga? — Muito (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Sobre o padrão construtivo, segundo o Proprietário 1 da Favela 1 o

narcotráfico varejista constrói predinho, ou seja, busca, além de aplicar os ganhos

com o varejo de drogas no mercado imobiliário gerando ganhos da propriedade de

imóveis, gerar ganhos pela intensificação do uso do solo. Segundo o entrevistado:

“eu sei mais de casas que eles quebram e constroem o prédio”.

Segundo o Proprietário 1, as casas não são construídas, contratadas ou

gerenciadas diretamente pelos traficantes, mas por “laranjas” escolhidos pelo

narcotráfico varejista e que recolhem uma parte pelo serviço prestado.

— Qual é o padrão que eles constroem? — Predinho! Normalmente é construído com um “testa de ferro”. Não é o tráfico em si é um cara que constrói no nome dele, mas que ele não é o dono, sempre um testa de ferro, o cara que está aí hoje é o [nome omitido], não é o prédio do [nome omitido], é o prédio do João, do Pedro, mas na verdade é do [nome omitido]. Tem sempre um laranja né? — Mas ele funciona só de laranja ou ele gerencia o prédio e cobra uma taxa? — Gerencia e devolve o dinheiro pro cara né? Cuida, toca a obra, faz tudo. Agora, se acontece alguma coisa, se der uma zebra e derrubar né? O poder chega né? Quer dizer... Sempre tem um laranja. Você não paga aluguel para o tráfico, paga a um terceiro. — E ai ele repassa. — Fica com uma parte (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Page 203: A produção do espaço na favela - UFRJ

203  

É interessante notar que os exemplos que o proprietário 1 dá são sempre de

comerciantes locais, “o cara do gás”, “o cara da loja de móveis”, etc. Outra indicação

importante é que as pessoas que estão no esquema que indicam as pessoas novas.

Ultimamente que eles têm feito mais isso. Tem um cara que tem uma loja de móveis, que é o mais antigo testa de ferro, tem vários prédios construídos. E têm outros caras novos que vão aparecendo, eles vão indicando novos “testa de ferro” (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Outra indicação importante na fala do Proprietário 1 é que os “laranjas”

podem ser dispersos, mas alguns deles concentram vários prédios. O Proprietário 1

indica também que os fiscais nem sempre são intimidados pelo narcotráfico

varejista, mas este para, evitar qualquer tipo de conflito, pode subornar aquele.

— Mas às vezes tem um deles que concentra vários prédios? — É tem um que concentra vários, os outros não sei exatamente como é que funciona, sei que é sempre “testa de ferro”. A prefeitura chegou a derrubar metade de um prédio do tráfico, lá na [parte da Favela 1]. O prédio tinha 7 andares, derrubaram 2, deixaram 5, teve um acordo e parou, a mesmo esquema de compra de fiscal. Pessoa comum eu só conheço um cara que está fazendo um prédio grande que é o dono daquele de 12 andares, que está fazendo outro mais ou menos do mesmo tamanho, que está embargado... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Segundo o Proprietário 1, a regulamentação da prefeitura, pelo fato de

conseguir embargar ou demolir as obras exceto as ligadas ao narcotráfico varejista

(seja por subornarem ou intimidarem os fiscais), gerou um monopólio do narcotráfico

varejista para esse padrão construtivo.

— A maioria dos novos são ligados ao tráfico? — Ou do tráfico ou de alguém ligado ao tráfico. Porque como teve a... Coisa grande né? Doze andares... Reforma de um andar não. Mas quando é prédio de 5, 6, 7 andares, os novos... Porque teve uma época que a prefeitura meio que parou, não podia construir nada, então foram eles que abriram... Quebraram as regras (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Como indicado em outros momentos, ainda que o narcotráfico varejista

espolie a população das favelas de diversas maneiras, as normas de conduta da

cidade oficial tendem a ser reproduzidas. No mercado imobiliário, por mais que o

narcotráfico varejista utilize de seu poder bélico e da capacidade de subornar os

fiscais para fugir das formas de regulação da construção no território, a relação do

narcotráfico varejista com a população no caso do mercado imobiliário parece não

ser mais de imposição, apesar de ter sido em certo momento, mas uma relação de

Page 204: A produção do espaço na favela - UFRJ

204  

troca com igualdade jurídica como qualquer outra.

— E eles tomam terreno de alguém? — Não, geralmente compram. Teve um período que eles tomavam laje, tomavam laje e botavam uma criatura pra morar lá, construíam, mas isso acabou, há uns 10 anos atrás. É no período que eles pediam bebida no comércio pra fazer festa... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Inclusive, ao que parece, o narcotráfico varejista busca evitar qualquer tipo de

conflito com a população. Nesse caso que o entrevistado nos apresenta, um

membro de uma família vendeu um prédio para o narcotráfico varejista sem o

consentimento do restante da família. Segundo o entrevistado, o narcotráfico desfez

a operação sem maiores prejuízos.

— Eles compram prédio pronto também? — Teve um prédio que eles compraram pronto e devolveram. Era uma família, aí um membro da família vendeu, o resto se reuniu e foi lá e falou: — “ah, a gente não quer vender não, fez besteira, não é pra vender”, ele: — “ah, então me dá o dinheiro em 8 dias”. Aí a pessoa deu o dinheiro (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

A relação do Proprietário 2 com o narcotráfico varejista não ficou muito clara.

Em determinado momento, o Proprietário 1 o apresentou como um dos “laranjas” e,

em outros momentos, como alguém que tem outros acordos com o narcotráfico

varejista e por isso detém o “aval” para construir sem sofrer restrições da prefeitura,

da Associação de Moradores ou do próprio narcotráfico varejista. De qualquer forma,

o trecho a seguir configura outra forma de acordo onde o Proprietário 2, por ser dono

da distribuidora de gás, já ser taxado por essa atividade e manter boa relação com o

narcotráfico varejista, detém o direito de ser um “protegido” do narcotráfico varejista.

Tem um outro cara que constrói muito aí... Muito, tem uns três prédios... É o cara do gás, que é um... Ele é independente, tem o gás dele, mas ele paga uma taxa pro tráfico, então ele é um cara que tem uma benção do tráfico. Ele tem dois prédios, mas está construindo outro. O que ele está construindo agora dizem que é de 7 andares. Está na fundação. Quer dizer, não é o tráfico, é um cara que tem o aval, quer dizer, é um aval comprado, porque ele paga não sei quanto por cada bujão de gás vendido. Porque o gás num lugar comum está 50 reais aqui é 81,40, deve dar uns 15 a 20. A lenda que o tráfico ajuda a comunidade é ao contrário, ele tiram. Tiram do gás, tiram da van, tiram da moto, tudo isso eles tiram, né, não ajudam. Quando eles fazem uma pequena ajuda, eles fazem com o dinheiro do próprio povo (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Segundo o Proprietário 1, essa não é uma prática exclusiva da Favela 1,

sendo comum em outras favelas e não é uma atividade tão nova. Segundo ele, tem

Page 205: A produção do espaço na favela - UFRJ

205  

pelo menos 10 anos que o narcotráfico varejista atua no mercado imobiliário dessa

forma.

— Eles fazem isso em todo canto! Tudo que dá dinheiro eles fazem. — Mas eles fazem há muito tempo aqui? — Uns 10 anos. É um pouco a cópia da milícia, gatonet, van, tudo que dá dinheiro... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Não sabemos, ao certo, a dimensão da atividade do narcotráfico varejista no

setor imobiliário. Segundo o entrevistado, há apenas uma pessoa que ele conhece

que constrói os “predinhos” e não tem esse tipo de relação com o narcotráfico

varejista. Mesmo assim, o corretor da Imobiliária 2 indicou que esse construtor teve

que favorecer pessoas envolvidas com o narcotráfico varejista para construir sem

maiores constrangimentos. Realmente, após a restrição do número de pavimentos

por decreto municipal fiscalizado pelos agentes da prefeitura, o agente com maior

capacidade de “furar” o bloqueio, seja via suborno ou via ameaças, é o narcotráfico

varejista, além de ser o agente com maior volume de recursos para atuar no

mercado imobiliário de forma sistemática, onde um “laranja” indica outro

configurando um efeito multiplicador. Em contraposição, os construtores que

empreendem tendo como estrutura a própria família, apesar de por vezes

concentrarem dezenas de unidades habitacionais, parecem ter como limite, além

dos recursos muito mais limitados, a própria capacidade de administração. No

entanto, esse tipo de atividade é sigilosa. Mesmo para moradores de longa data e

com vivência política na favela, como o Proprietário 1, a relação entre construtor e

narcotráfico varejista deve ser difícil de identificar. Por mais que o narcotráfico

varejista concentre vários “laranjas”, a estrutura que aparece para o pesquisador ou

para os moradores, é a de empreendedores familiares isolados. Portanto, mesmo

que o Proprietário 1 associe o monopólio desse tipo construtivo ao narcotráfico

varejista com argumentos coerentes do ponto de vista lógico, é necessário certa

cautela no uso dessa informação.

Na Favela 2, não encontramos indícios da cobrança de qualquer taxa sobre

serviços, nem de investimentos no setor construtivo. O que encontramos foram

indicações de que o narcotráfico varejista passou a vender os terrenos vazios

existentes na favela. É interessante que, nesse caso, assim como no caso da Favela

1, a restrição do gabarito pode ter garantido o monopólio do tráfico sobre esse tipo

construtivo, enquanto a restrição da ocupação dos terrenos pela legislação e

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206  

atuação dos fiscais da prefeitura, contraditoriamente, pode ter gerado um monopólio

do narcotráfico varejista de acesso aos terrenos.

Diferentemente da Favela 1, onde uma limitação de gabarito exercida pelo

narcotráfico varejista geraria um desgaste político indesejável, o narcotráfico

varejista poderia reter os terrenos para a venda sem maiores conflitos com a

população no caso da Favela 2. No entanto, na Favela 2, a prefeitura passou alguns

anos coibindo as construções com embargos e demolições e o tráfico retomou parte

do poder sobre o território. Nesse contexto, a necessidade do narcotráfico varejista

passa a ser a garantia da segurança da construção contra o Estado nos terrenos

vendidos e não a de coibir a ocupação dos terrenos não vendidos.

Um dos terrenos liberados via remoção pelas obras do Morar Carioca foi

ocupado durante o período de atuação mais intensa da UPP no território. Porém,

durante a construção da casa a prefeitura embargou e demoliu a edificação. Quando

a UPP perdeu força no território, o terreno foi reocupado e, no momento da pesquisa

de campo, estava com a estrutura e as paredes completas, faltando os

revestimentos, as esquadrias e o acabamento.

Em artigo intitulado “Núcleo urbanizado: uma nova (velha) cidade?” Miguel

Nazareth e Maria de Lourdes Zuquim relatam o que podemos considerar uma

combinação das atividades desenvolvidas na Favela 1 e na Favela 2. A favela

pesquisada chama-se Nova Jaguaré. Em seu relato, o “Crime” está constituindo um

grande “parque de locação” nas áreas livres resultantes das obras públicas

realizadas na favela.

Pouco a pouco, começaram a surgir ocupações em outras partes, a maioria capitaneada pelo Crime com fins de venda ou aluguel, mas outras também empreendidas por outros atores, com fins de estabelecer comércio ou construir garagens. Das tentativas de impedir o avanço das ocupações e a degradação das novas áreas livres, duas se destacam: a construção de um parque infantil e o cercamento de acesso a um conjunto habitacional. No entanto, são iniciativas residuais e as ocupações do Crime seguiram avançando. Recentemente, começaram a tomar a praça que, em pouco tempo, se transformará em um grande “parque de locação” (NAZARETH; ZUQUIM, 2016, p. 15).

No estudo de Lia de Mattos Rocha na favela do Abacateiro, localizada em

área central do Rio de Janeiro, a autora apresenta uma configuração próxima com a

apresentada pelos entrevistados da Favela 1 e da Favela 2. Segundo a autora, a

ação restritiva exercida pelo POUSO limitou a ação da Associação de Moradores de

Page 207: A produção do espaço na favela - UFRJ

207  

tal forma que os moradores que pretendiam construir preferiam buscar o narcotráfico

varejista, transformando-o na referência principal de regulação local da construção.

Em um caso relatado durante o trabalho de campo, a Prefeitura, através do programa Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso), da Secretaria Municipal de Urbanismo, não estaria liberando a construção de novas casas dentro da favela. Segundo ele, quando queriam construir os moradores buscavam a associação para que esta interferisse junto à Prefeitura. Entretanto, como o presidente afirmava não dispor de autoridade para modificar decisões relativas à ocupação do espaço, eles acabavam pedindo autorização aos traficantes (ROCHA, 2008, p. 12).

Segundo a autora, a presença de construções novas pode ser um sinal de

que não apenas as proibições não são eficientes, como o apoio dado pelo

narcotráfico varejista gera a segurança necessária para o investimento construtivo

(como já chamamos a atenção um investimento relativamente alto).

Vale ressaltar, porém, que foram construídas novas casas na favela – isso pode demonstrar não apenas que a proibição da Associação de Moradores não tem efeito prático, mas também que alguns moradores constroem por se sentirem apoiados pelos traficantes (embora não se possa descartar que as construções sejam realizadas à revelia de ambos os poderes locais) (ROCHA, 2008, p. 12).

A atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário é algo que muda

qualitativamente a análise desse mercado. A presença de um agente com grande

capacidade de aplicar recursos e de montar uma rede de colaboradores trás a

necessidade de pensar parte da produção imobiliária como algo centralizado e com

ganhos a serem reinvestidos. O caráter coercitivo-violento do narcotráfico varejista é

outra característica que trás novas preocupações para a análise do mercado

imobiliário. Não identificamos roubos ou constrangimentos sobre moradores para

vender determinado terreno, ao que parece há um respeito à igualdade jurídica na

troca de mercadoria. No entanto, a capacidade de regulação da construção exige

que, de alguma forma, qualquer pesquisador ou interventor que deseje compreender

o mercado imobiliário das favelas enfrente essa questão.

5.3 Estado

A ideia de que o Estado é um agente ausente nas favelas foi bastante

difundida. Hoje essa é uma posição menos aceita, apesar de ainda ser apresentada

como uma presença absolutamente policialesca. Magalhães nos apresenta uma

Page 208: A produção do espaço na favela - UFRJ

208  

preocupação sobre como é vista a relação entre Estado e favela.

Com relação à atuação do Estado, entendemos que ocorreram importantes mudanças na maneira desse se fazer presente nas favelas, não se podendo afirmar que o Estado – seja o Estado legal (ou regulamentador), seja o Estado provedor de serviços públicos – esteja ausente das favelas cariocas, que não esteja preocupado em se fazer presente nelas ou que elas estejam “abandonadas à sua própria sorte”, em que pese a precariedade real da atuação do Estado nas favelas. Parece-nos que a questão a ser debatida, sobretudo nos tempos atuais, deve incidir sobre a maneira como o Estado se faz presente, em outras palavras, nas especificidades da presença do Estado nas favelas. Além disso, o fato a ser percebido e analisado, hoje, é que o braço repressor do Estado não se faz presente apenas via polícia, mas, também, via controles urbanísticos e ambientais, que na técnica jurídica são denominadas de polícia administrativa (MAGALHÃES, 2010, p. 142).

O Estado, como vem sendo defendido ao longo do presente trabalho, apesar

de não garantir o caráter oficial da propriedade e do mercado fundiário, é agente

fundamental de seu funcionamento. A atuação do Estado nas favelas é bastante

diversa e se desdobra em uma diversidade de agentes (polícia, fiscais, oficiais de

justiça, “urbanizadores”, etc.). Destacamos, porém, as formas de atuação que

tiveram mais presença na nossa pesquisa de campo.

Tratamos no capítulo 2 sobre como o Estado interfere, mesmo que por vezes

de maneira indireta, na defesa ideológica da propriedade privada moderna e como

os agentes internos são coagidos a seguir as normas do direito oficial mesmo com a

limitação da atuação do Estado, algo que Sousa Santos chamou de troca desigual

de juridicidade (SOUSA SANTOS, 1999, p. 88). Também vimos a polícia agindo na

resolução de problemas que deveriam ser resolvidos por outros agentes do Estado

como no caso da colocação da “manilha” (que já expusemos) e como agia na

resolução de conflitos e, por consequência, em alguns casos de regulação da

construção. No mesmo capítulo, expusemos sobre as formas de recuperação dos

imóveis em casos de inadimplência, onde a atuação dos oficiais de justiça no

território apareceu como importante meio. Na análise da regulação da construção

nos deparamos mais uma vez com agentes do Estado, no caso os fiscais da

prefeitura e os POUSOs. Vimos também como a atuação desses agentes pode ser

fortalecida pela atuação da Associação de Moradores ou pode limitar essa atuação e

como os agentes do Estado podem ser limitados pela presença do narcotráfico

varejista até se tornarem inoperantes aos olhos da população. Fizemos também no

capítulo 1 a análise de como o Estado trata as favelas através do discurso de suas

Page 209: A produção do espaço na favela - UFRJ

209  

instituições sobre as políticas públicas. Falamos também da produção do espaço

criminalizado. Já nesse capítulo, apresentamos como representantes em cargos

eleitos ou candidatos a esses cargos se convertem em “padrinhos políticos” quando

agentes locais “capitalizam” o seu potencial eleitoral.

Já apresentamos alguns elementos da relação entre Associação de

Moradores e Estado, porém a relação inversa tem elementos que se diferem. Por

exemplo, se o representante da Associação de Moradores pode se apresentar como

um agente centralizador do potencial eleitoral da favela, o “padrinho político” se

apresenta como um agente capaz de influenciar nos projetos de governo, distribuir

cargos ou levar infraestrutura para a favela.

A inversão do ponto de vista de análise nos trás novas consequências.

Segundo Rocha (2008), baseada em pesquisas com dirigentes de Associações de

Moradores, “existiria uma disputa entre favelas no mercado político, uma vez que os

investimentos não seriam homogeneamente distribuídos entre todas as áreas

pobres da cidade”. Isso significa que o investimento desigual do Estado nas favelas

e a prática de “apadrinhamento” das favelas por determinados agentes de cargos

eleitos do Estado faz com que as favelas utilizem de seu potencial eleitoral para

disputar entre si. Segundo Rocha (2008) com base em Machado da Silva (2016

[2002]), essa configuração pulveriza a luta dos favelados, pois cada favela passaria

a defender os seus interesses individuais.

A idéia de uma competição entre favelas por recursos públicos é apresentada por Machado da Silva (2016 [2002]), ao comentar a relação entre o poder público, no caso o municipal, e os representantes de diferentes favelas a partir da implantação do Programa Favela-Bairro. Segundo ele, tal política pulveriza a luta por melhorias, pois cada favela passa a defender seus interesses separadamente, o que “enfraquece o conjunto das mobilizações e despolitiza as reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa e técnico-financeira na qualidade de pequenos lobbies (...)” (MACHADO DA SILVA, 2016 [2002], p. 171) (ROCHA, 2008, p. 10).

Da mesma forma, se vemos a relação entre Associação de Moradores e

Estado do ponto de vista da Associação de Moradores, vemos a mediação entre

morador ou o conjunto dos moradores e Estado na facilitação do acesso às

instituições ou na reivindicação de melhorias. Se invertermos o sentido dessa

relação, vemos a busca do Estado pela realização de processos decisórios

participativos que legitime seus projetos, geralmente espaços esvaziados pela

Page 210: A produção do espaço na favela - UFRJ

210  

população local ou mesmo pelo Estado e com pouco poder deliberativo, visto que os

contratos entre o poder público e a empresa privada prestadora de serviços já está

firmado e inclui uma série de restrições (Cf. KAWAHARA; XIMENES, 2015, p. 14).

Outra característica dessa relação apontada por Rocha é a necessidade de o Estado

negociar com o narcotráfico varejista e, ao mesmo tempo, negar essa relação. A

saída dessa contradição se encontra na mediação da relação entre esses dois

agentes via Associação de Moradores. Essa mediação, mesmo que não seja

desejada pela Associação de Moradores, torna-se condição da implementação de

projetos.

A participação dos moradores nas decisões (alvo das ações, tipo de ação, atores envolvidos) parece ser pequena. Segundo os relatos coletados, as Associações de Moradores não foram ouvidas, somente chamadas para auxiliar no processo de execução. A questão da segurança pública permanece sendo deixada apenas para a Secretaria de Segurança Pública do Estado, e a mediação junto aos traficantes de drogas continua sendo uma das principais funções das associações neste processo (Cf. MIRANDA e MAGALHÃES, 2004 e SILVA e ROCHA, 2008). No entanto o momento atual traz uma novidade ainda mais perniciosa para a representação coletiva dessas localidades: a repetição do modelo clientelista de política pública, tornando as associações simples mediadoras para garantir a anuência dos bandos de traficantes locais, tem por conseqüência acusações – nem sempre justificadas – de conivência dos líderes com a criminalidade violenta, aumentando sua estigmatização e minando sua legitimidade dentro e fora das favelas (Cf. MACHADO DA SILVA, 2004 e MACHADO DA SILVA; LEITE, 2004) (ROCHA, 2008, p. 17).

É dessa forma que o Estado passa para a Associação de Moradores o ônus

da negociação com o narcotráfico varejista.

Em certos casos são os próprios representantes do poder público ou outras instituições que, para poderem agir nas favelas, solicitam a mediação dos líderes locais. Miranda e Magalhães (2004:52) sugerem que esta é a forma encontrada pelos atores externos para manter distância dos traficantes, salvando as aparências e dando a impressão de que o contato não existiu (ROCHA, 2008, p. 15).

A relação entre o narcotráfico e o Estado é extremamente complexa e

perpassa diversas escalas. Podemos pensar em nível mundial a estrutura de

produção e transporte de drogas e armas (por exemplo, a arma que é produzida na

Suíça, vendida nos Estados Unidos da América e chega até o Rio de Janeiro

escondido em aquecedores de água para piscinas104). Na escala nacional, podemos

                                                            104 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/policia-chegou-a-frederik-barbieri-que-enviava-fuzis-para-o-brasil-rastreando-aquecedores-que-camuflavam-armas.ghtml

Page 211: A produção do espaço na favela - UFRJ

211  

lembrar que a própria forma de proibição das drogas configura o narcotráfico de

determinada maneira e que a política de controle das fronteiras é importante

componente dessa escala. Na escala estadual, encontramos as diversas políticas de

segurança pública que definem a forma de repressão ao varejo da droga. Parte da

segurança pública é definida junto aos municípios, como foi o caso das UPPs.

Finalmente, há a escala local, onde encontramos as incursões policiais, ações que

visam o domínio territorial (UPPs, exército, força nacional), os mandados de busca

coletivos, os autos de resistência, etc. Por mais que a legislação brasileira obrigue o

Estado como um todo, além de seus funcionários e representantes eleitos, a se

posicionarem oficialmente de forma a limitar o narcotráfico, a relação do Estado e

seus agentes com o narcotráfico é contraditória. Segundo a Folha de São Paulo, o

relatório da CPI do narcotráfico de 2000105 indiciou “mais de 800 pessoas, entre elas

dois deputados federais, 14 estaduais e seis desembargadores, [além de] prefeitos,

delegados de polícia, policiais civis, militares e empresários”. A apreensão de 450

quilos de cocaína no helicóptero do Senador José Perrella (MDB-MG)106, é outro

exemplo da atuação de funcionários e representantes eleitos no fortalecimento do

narcotráfico. O Estado como um todo ainda pode agir com certa conivência tendo

em vista os ganhos a determinados agentes gerados, direta ou indiretamente, tanto

pela venda de drogas como pela guerra às drogas.

Na escala local, que é a escala onde o problema do narcotráfico e da guerra

às drogas atinge diretamente o mercado que estamos estudando, a grande

diferença da política da UPP com o que vinha sendo praticado na política de guerras

às drogas no Rio de Janeiro está na manutenção do grupamento policial no

território. A prática das incursões policiais, caracterizada por invasões periódicas

com alto grau de letalidade, foi em grande medida substituída por uma estratégia de

desarticulação do controle do território pelo narcotráfico varejista armado107 (CANO;

BORGES; RIBEIRO, 2012, p. 8).

A tomada do controle do território como estratégia fundamental das UPPs

trouxe com ela a ideia de que a presença da polícia negaria completamente a ação

                                                            105 http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u16039.shtml 106 https://veja.abril.com.br/brasil/o-helicoptero-de-perrella-e-as-acoes-controladas/ 107 Segundo o livro “os donos do morro” de Ignacio Cano, et al. “o estado do Rio chegou a experimentar outros modelos alternativos de policiamento, como o Policiamento Comunitário no Morro da Providência e em Copacabana ou, mais recentemente, o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), mas nenhum desses projetos recebeu suficiente investimento ou teve a sua continuidade assegurada o tempo suficiente para ter um impacto significativo”.

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212  

ostensiva do narcotráfico varejista, porém, nas duas favelas pesquisadas a

continuidade da atividade de varejo de drogas, permitiu a volta de sua ação

ostensiva. No Turano, quando trabalhamos com regularização fundiária, mesmo que

a UPP estivesse presente no território durante todo o tempo do projeto, passamos

por momentos em que o varejo de drogas acontecia sem a ostentação de armas e

fora da Rua Joaquim Pizarro (Rua principal do Turano), o varejo passou para a Rua

Joaquim Pizarro e, finalmente, o tráfico passou a ostentar armas. Dessa forma, a

coexistência entre narcotráfico varejista e UPP é uma realidade e essa relação deve

ser tratada.

A primeira advertência necessária é que a forma de atuação do narcotráfico

varejista é repleta de singularidades a depender da relação construída entre o

narcotráfico varejista e a população local, onde o perfil do “chefe do tráfico” é

fundamental. Da mesma forma, “nas UPPs, como nos batalhões tradicionais, tudo

depende da atitude do comandante local” (CANO; BORGES; RIBEIRO, 2012, p. 4).

Dessa forma, assim como apresentamos uma variação no tempo da fronteira

imposta pela UPP à atividade do narcotráfico varejista, deve haver uma variação

importante para a relação entre esses dois agentes em cada território.

Selecionamos entre as entrevistas os trechos onde os proprietários ou

corretores demonstram sua percepção do momento onde houve alguma ruptura que

modificou a relação entre UPP e narcotráfico varejista e que interferiu no mercado

imobiliário. É importante destacar que a conjuntura de ambas as favelas (Favela 1 e

Favela 2) era de transição em diversos sentidos. Por exemplo, nos dois casos, as

favelas receberam a UPP e investimentos em infraestrutura, mas também a UPP já

havia declinado e já haviam estourado alguns conflitos armados nas favelas e os

jornais apontavam sintomas da crise econômica no país108. Dessa forma, alguns

discursos pareceram contraditórios, como a ideia de que a instalação de

determinada infraestrutura fez cair o preço dos imóveis, ou na mesma favela um

entrevistado dizer que estava tendo conflito o tempo todo e outro dizer que apenas

de vez em quando. Com várias mudanças ocorrendo em pouco tempo a associação

entre e o fato ocorrido e sua consequência foi bastante dificultada.

Na Favela 1, segundo os entrevistados houve um aumento do preço dos

                                                            108 A crise política e econômica que se desenvolve a partir de 2014, além da implementação de reformas que atingem diretamente os trabalhadores (como a reforma trabalhista e previdenciária) trazem um grau de incerteza que pode afetar a percepção sobre o mercado imobiliário.

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213  

imóveis após a ocupação da favela pela UPP. No entanto, os preços voltaram a cair

em seguida. Importante destacar que em 2013 o mercado imobiliário brasileiro

atinge seu ápice em número absoluto de imóveis financiados, mas nesse mesmo

ano esse mercado dá sinais de desaquecimento, tendo a maior queda em 2015109.

As UPPs foram implementadas na Favela 1 e na Favela 2 entre 2009 e 2011 (o ano

exato não foi informado para a manutenção do sigilo). Dessa forma, a queda do

valor dos imóveis pode estar mais relacionada a queda geral brasileira no setor do

que qualquer mudança no âmbito local.

— Quando chegou a UPP teve reflexo no valor dos imóveis? — Teve, a gente tem 19 anos, deixa eu te falar... A UPP ajudou, ajudou em tudo, porque aumentou muito, aí depois que aumentou muito, abaixou, ficou mais organizado... Mas ajudou. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)

Segundo o Proprietário 1 da Favela 1, UPP em determinado momento

conseguiu desmobilizar parte da ação do narcotráfico varejista, em especial parte

das taxas que cobravam dos serviços. Para o entrevistado, uma das causas da

diminuição da atuação da UPP foi a sua descredibilização e consequente redução

do poder de ação.

A UPP foi muito apoiada, arma aqui estava demais. A UPP mexeu com o moto táxi, a polícia proibiu de pagar o tráfico, mas a UPP perdeu o crédito e voltou tudo. [...] A polícia perdeu total a moral o cara passa aí qualquer hora usa droga em qualquer lugar, onde quiser (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).

Porém para o Proprietário 1 a UPP não tem nada a ver com aumento ou

diminuição do preço dos imóveis. Segundo o entrevistado:

UPP não mudou nada, única coisa que mudou com a UPP é que essa esquina aqui onde meu filho está vendendo roupa tinha maconha, então isso não vende mais abertamente. [...] Nos jornais parece que tudo começou com a UPP. [...] Aqui é caro porque é na Zona Sul, tem praia, não é porque tem UPP (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)

Segundo o corretor da Imobiliária 1, o aumento e queda dos preços foram

resultado de uma ilusão. Segundo sua percepção, a UPP aumentou os preços dos

imóveis e das mercadorias em geral, mas diminuiu o movimento de negócios.

Piorou depois de a UPP entrar. Aumentou os preços e abaixou os movimentos de negócio, então quando você entra em uma coisa que não

                                                            109 https://glo.bo/1Xh747q

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214  

tem um crescimento, você cresce o preço da matéria prima, você tem que construir, mas você não vende o que você constrói, não vai ter crescimento, vai morrer. Ela entrou, alterou os preços de venda de imóvel, alterou o preço de aluguel, muito e tal... E depois o engano profundo onde teve uma queda de 40 a 60% do PIB da favela, vamos dizer... De faturamento, e aí vai ser um engano pra população e pro povo lá fora que acha que veio, muitas pessoas vieram, entraram, pagaram caro, e depois eles saíram tristes e tiveram que fechar seu espaço (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).

Segundo o entrevistado, a queda das vendas se deu exatamente pela

capacidade da UPP, no início do processo, reprimir a venda de drogas. Na sua

percepção, o narcotráfico varejista fazia circular muito dinheiro dentro da favela. A

falta desse dinheiro rodando fez baixar o volume das vendas na favela.

Se tivesse há 6 anos atrás o aluguel estava dobrado e a pessoa estaria pagando na boa, mas hoje... Ele está passando sufoco pra pagar, a [Favela 1] vem melhorando de um tempo pra cá, mas ela caiu seu potencial em 60% aí com a vinda da UPP pra cá e a saída do tráfico, praticamente, saiu entre aspas. Uma área de muito movimento que seria uma área dessa aqui embaixo, pra vender muito pó, muita coisa e vinham os ricos, vinha milionário, vinha apanhar de carrão aqui na porta, não vem mais né e o povo gastava muito dinheiro aqui dentro, gastava de mala, então todo mundo fazia negócio, era botar lixo pra vender ali que estava vendendo, hoje não está assim. Está difícil. [...] A sustentabilidade da comunidade era aquela movimentação [do narcotráfico varejista] que tinha. Quem sobreviveu a queda do comércio está aí, hoje se equilibrando. Tinha 4 ou 5 funcionários, tirou 3, passou a manter 2 e assim foi, se equilibrou. E outra coisa, de 8 meses pra cá a questão imobiliária despencou. A ponto da gente passar uns 3 meses sem vender um barraco, você acha que isso é fácil? E baixando os preços... (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)

Na Favela 2, parece que há um consenso maior com relação ao impacto da

UPP. Para o Proprietário 4, os dois fatores que mais influenciam no preço são o

acesso à infraestrutura e a segurança.

Nós temos um fator que influencia muito no preço, que é a questão da segurança. A onda da UPP elevou bastante o valor dos aluguéis, hoje ele está com uma realidade menor. Por exemplo, eu já aluguei imóvel por 1400 reais, hoje eu alugo esse imóvel por 900 por causa da segurança (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

A queda apontada é relacionada pelo entrevistado à diminuição do poder de

ação da UPP. Interessante notar que, no trecho a seguir, o entrevistado diz que o

narcotráfico varejista em si não influencia nos preços, mas a presença das armas

sim. Dessa forma, por mais que a UPP não tenha reprimido o varejo de drogas, a

ausência da ostensividade das armas faz subir a procura e os preços.

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215  

Inicialmente, as comunidades foram ocupadas durante décadas pelo tráfico. Depois com o projeto da UPP alguns chegaram a retirar a ostensividade da comunidade, as armas, o tráfico continua de maneira mais escondida, mas hoje a gente vive uma crise de segurança no Brasil inteiro, o tráfico voltou pra algumas comunidades e voltou pesado e isso tem influenciado muito nessa questão dos aluguéis (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).

O Comerciante 1 da Favela 2 aponta para a mesma questão das armas.

Segundo o entrevistado, ele ou seus clientes nunca tiveram problema de violência

na favela, mas a ostensividade das armas afasta os clientes. Outro ponto importante

exposto pelo entrevistado é quando ele identifica o início do declínio da UPP.

Segundo o Comerciante 1 a UPP começou a perder qualidade com a sua rápida

ampliação.

É, na verdade no início era um número bem maior, na medida em que eles foram ocupando outras favelas eles foram diminuindo os efetivos e isso aí atrapalhou muito, perdeu a qualidade, até na formação dos policiais, os policiais eles estavam sendo formados muito rápido, isso aí atrapalhou muito o processo, mas a gente vê que as pessoas generalizam a violência na favela, mas eu confesso a você, eu nunca fui assaltado na favela, nunca fui abordado, nunca tive problema com nenhum cliente aqui, com relação à questão da segurança, mas as pessoas se assustam quando veem algo que o intimida, mas fico decepcionado, porque acho que o estado presente, acho que traria um pouco mais de segurança, a gente ficaria um pouco mais confortável (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

O Comerciante 1 também percebe uma mudança na procura por imóveis a

depender da capacidade de atuação das UPPs.

Antigamente [no início da UPP], você não tinha uma casa pra alugar porque a procura todo dia era de 10, 15 pessoas aqui me perguntando quem tinha uma casa pra alugar. Agora eu já tenho entre 5 e 10 pessoas por dia me dizendo: olha, eu tenho uma casa pra alugar, se você souber quem quer (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

Segundo o Proprietário 4 da Favela 2, um dos problemas da diminuição da

efetividade da UPP, além da diminuição dos investimentos e do efetivo, é a perda do

caráter de polícia de aproximação e a vinculação da UPP ao batalhão regional.

— Está tendo muito conflito? — Não, de vez em quando, isso depende muito mais acho que do plantão que está na área, de quem está lá na UPP. — Tem algum dos comandantes que causa mais conflito? — Na realidade nós tivemos troca de comando de uma desvirtuação do projeto da UPP, que voltou a ser comandada pelo batalhão da área. Então ela já perdeu a finalidade, daquela polícia de aproximação, ela praticamente já não existe mais. Agora é o batalhão da área que comanda a UPP que está estabelecida naquela região. Quem está aqui no posto é subordinado

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ao [XXº] batalhão. — E muda dependendo do... — Muda toda hora, é uma rotatividade tremenda, você não consegue mais identificar o comandante da UPP como era no início. Já não tem mais aquela relação com a comunidade como existia antes (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2.

O Estado é representado por uma grande diversidade de agentes na escala

local, Nas entrevistas realizadas, se fizeram presentes os fiscais da prefeitura,

POUSOs, RAs, UPPs, oficiais de justiça e “padrinhos políticos”. Há outros que não

foram abordados aqui, mas que deverão ser abordados a depender do tema

pesquisado, como os funcionários dos postos de saúde, os agentes do juizado de

menores, funcionários das escolas públicas, etc. Além dessa diversidade de agentes

atuantes na escala local, o Estado influencia diretamente cotidiano das favelas com

políticas determinadas em outras escalas como a criminalização da situação jurídica

das propriedades nas favelas, política de formalização do trabalho informal,

criminalização das drogas, etc. Dessa forma, a análise do Estado como agente

atuante na favela exige por diversas vezes a mudança do ponto de vista e da escala

de análise, o que contribuiu para que a análise desse agente tenha se distribuído ao

longo da dissertação.

5.4 As cisões permanentes e conjunturais na “comunidade”

Além dos agentes locais e supralocais aqui apresentados, a população das

favelas apresenta uma diversidade que, em determinados momentos se apresentam

como cortes na dita “comunidade”. Esses cortes determinam grupos dentro das

favelas que podem se opor ou formar coalisões a depender do contexto. Uma das

formas de distinção já foi apresentada e se encontra na formação de uma “burguesia

favelada”.

A concentração de recursos nas favelas e a concentração do acesso às

instituições exógenas são movimentos que se retroalimentam. Ao que parece,

mesmo que a forma principal de acumulação de recursos de determinado agente

não esteja relacionada aos favorecimentos advindos das relações pessoais com os

agentes locais e supralocais cruciais na produção e regulação do território, esses

investidores se verão pressionados a manter uma relação amistosa com todos esses

agentes para a manutenção e ampliação de seus negócios. Aqui trataremos mais

detidamente dos locadores de imóveis e dos proprietários de estabelecimentos

Page 217: A produção do espaço na favela - UFRJ

217  

comerciais.

Mesmo que os momentos tenham sido mais escassos, tratamos ao longo da

dissertação dos investidores do mercado imobiliário existentes nas favelas.

Apontamos, ainda que brevemente, para a existência desses agentes ainda no

capítulo 1 no subcapítulo “1.4 a favela como categoria”. O capítulo 3 inteiro está

destinado aos meios de formação dos estoques imobiliários, sendo a maior parte

deles formas atomizadas e possíveis germinais de produções mais sistemáticas. No

final do capítulo tratamos mais detidamente das formas de produção que

consideramos mais sistemáticas e debatemos sobre a presença de pequenos

comerciantes e lideranças políticas entre os proprietários entrevistados. Já nesse

capítulo, no subcapítulo “4.1 Associação de Moradores”, tratamos da forma como

agentes influentes e capazes de mobilizar votos estabelecem “conchavos” a fim de

gerar ganhos individuais ou coletivos, determinando em grande medida a política da

favela. No subcapítulo “4.2 narcotráfico varejista”, tratamos da forma como, na

Favela 1, determinados investidores (em geral os que já detêm algum volume de

recursos e negócio próprio) estabelecem relações escondidas com o narcotráfico

varejista em busca de recurso para o investimento a ser gerenciado e uma

blindagem com relação à fiscalização de outros agentes (Estado, Associação de

Moradores e moradores locais).

O fato desses agentes deterem o monopólio do acesso às instituições

supralocais e aos meios de acumulação, permite certo nível de exploração sobre a

população local. Como pudemos ver ao longo da dissertação, o acesso às

instituições supralocais em determinados contextos permite um comportamento

extorsivo por parte de tal burguesia favelada e a barreira entre o Estado e o sujeito

da favela que permite esse tipo de configuração. Essas duas formas de monopólio

permite à “burguesia favelada assumir um comportamento de distinção, segundo

Machado, “bastante próximos ao da pequeno-burguesia ‘comum’, ‘não-favelada’”

(2016 [1967], p. 39).

No trabalho de campo, identificamos como parte do comportamento da

“burguesia favelada” a construção de uma imagem de sujeito de distinção, mas que

atua sempre de forma a beneficiar a “comunidade” como um todo, ou seja,

identificamos uma busca de legitimidade tanto para dentro como para fora.

O Comerciante 1 da Favela 2, por exemplo, se identifica como alguém que

teve que batalhar muito a vida inteira para construir o seu patrimônio e se coloca em

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218  

oposição ao restante da favela que para ele é um povo que “morre encostado”, mas,

contraditoriamente, segundo o entrevistado: “eu sempre escolho o que é melhor pra

minha favela, pra minha comunidade”. No trecho da entrevista reproduzido a seguir

o entrevistado falava dos moradores que denunciaram a obra do seu restaurante.

São moradores, sempre moradores, sempre fazem né, porque eles na verdade eles não constroem, mas não deixam os outros construírem, entendeu? Então são pessoas que morrem encostadas observando, vamos dizer assim. Eu não, eu sempre realmente busquei a informação, eu sempre tive um respeito muito grande com a secretaria de habitação sempre fui muito bem recebido por eles, sempre fui um parceiro, na verdade, tanto do estado quanto da prefeitura. Então, assim, eu nunca tive problema com relação a isso, por que eu sempre me posicionei politicamente, nunca me envolvi com ninguém, todo mundo me procura (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).

O Comerciante 1 aciona muitas vezes o seu pai, que foi uma importante

liderança da favela onde vive, para apontar como a sua família foi importante para o

desenvolvimento da favela e como sua família tem dedicado a vida à comunidade.

No entanto, o desenvolvimento dos seus negócios e a facilidade de negociação com

os agentes do Estado em seu discurso se descola do histórico familiar e aí entra

fortemente o discurso meritocrático. É dessa forma, que, no discurso, o acesso às

instituições de Estado serve à comunidade enquanto o desenvolvimento dos

negócios se dá pelo esforço individual e é acessível a qualquer um que não seja um

“encostado”. Essa separação é importante para esse agente.

No trecho reproduzido a seguir, fica ainda mais claro como o rebaixamento da

população moradora de favela torna-se importante para a “burguesia favelada”. O

corretor da Imobiliária 1 apresenta a população da favela em posição de extrema

subalternidade, de forma que a sua atividade, tanto política como econômica, torna-

se uma necessidade dessa população. É dessa forma que os interesses políticos e

econômicos do entrevistado se encontram escondidos atrás de um fachada

legitimadora que tem a intenção direcionada apenas para o bem da “comunidade”.

É síntese dessa discussão o fato de o entrevistado se apresentar como o

“carregador de pianos da favela”.

Minha vida toda foi aqui. Fui empregado nuns negócios aí, mas sempre tive meu negócio aqui na [Favela 1], minha vida toda é aqui cara. Fui dono de papelarias aqui. Aqui foi uma papelaria grande, tinha duas, uma aqui e outra ali, fui à falência porque dava o material todo para os estudantes que é pobre, fudido, e fedido, e nego preso e o caramba e aí eu não suportava ver eles sem estudar e eu mandava eles pegarem os materiais, não fui à

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falência, não enriquei. Depois eu acabei que entrei pra política, outras coisas aí, já fui candidato a vereador, a deputado... Pretendo vir em 2018. O sonho não apagou. [...] Eu corretor imobiliário. Aqui rapaz, eu vivo de ajudar o povo. Olha as cartas aqui dos colégios, tudo agradecendo [cartas de agradecimento das escolas por doação de materiais]. [...] Inclusive da prefeitura, do Estado [...] Eu banquei uma festa, escola de 500 alunos. [...] Eu mantenho aqui pra ajudar a comunidade. Estamos entrando com um grupo de seguradora, pra moto, pra carro, estão instalando também aqui a sua base, ele são lá de Minas, e a gente já está fechado. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)

Aqui não se trata de estabelecer uma dicotomia entre a atuação em favor da

“comunidade” e os benefícios individuais de cada empreendimento, até porque essa

relação é complexa e contraditória e uma análise superficial dela não levaria a mais

que um julgamento moral da atuação desses agentes. O que interessa é o

acionamento da “comunidade” como uma categoria e o benefício dela como um todo

como forma de guiar as ações e legitimar toda forma de atuação.

No entanto, a heterogeneidade encontrada no interior das favelas é maior do

que simplesmente uma relação entre “burguesia favelada” e um restante

politicamente subalterno. Há grande variedade, a depender da conjuntura e do tema

a ser trabalhado, de grupos e frações de classe que podem se opor. Em contextos

onde esse tipo de oposição aparece, fica difícil pensar no “bem da comunidade” ou

qualquer outro conceito abstrato que unifique a favela numa só causa.

A oposição entre locadores e locatários, por exemplo, parece ser validada por

diversos autores. Essa oposição se dá fundamentalmente na capacidade que o

proprietário fundiário tem de se apropriar de melhorias produzidas pelo conjunto da

sociedade e usar dessa capacidade de forma hostil aos que fazem uso de suas

propriedades, ou seja, os locatários.

Logan e Molotch (1987) identificam a possibilidade dessa oposição de

interesses. Segundo os autores:

A propriedade residencial estabelece, para alguns residentes, interesses de valor de troca baseados em certas metas de valores de uso. Suas casas são base de uma estratégia de enriquecimento vitalício (PERIN, 1977). Para aqueles que pagam aluguel para senhorios, valores de uso são os únicos valores em questão. Proprietários e inquilinos podem assim, por vezes, ter interesses divergentes110 (LOGAN; MOLOTCH, 1987, p. 20, tradução nossa).

                                                            110 Homeownership gives some residents exchange value interests along with use value goals. Their houses are the basis of a lifetime wealth strategy (PERIN, 1977). For those who pay rent to landlords, use values are the only values at issue. Owners and tenants can thus sometimes have divergent interests.

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A afirmação de Logan e Molotch aponta um momento contraditório no que

eles denominam de consenso pelo crescimento, onde todos os agentes da cidade

teriam algum motivo para apoiar medidas pelo crescimento urbano alimentando a

máquina de crescimento. Dessa forma, as políticas que envolvem a valorização do

solo podem colocar esses dois agentes em oposição, ainda que o inquilino tenha um

poder de reivindicação bastante restrito.

A citação a seguir, exposta por Rafael Gonçalves (2011), se trata de uma

carta da Associação de Moradores da Favela do Jacarezinho endereçada ao

Secretário Estadual de Trabalho e Habitação, datada de 29 de janeiro de 1984. Essa

citação mostra a preocupação da Associação de Moradores com um projeto de

regularização fundiária a ser implementado. A preocupação principal é com o

aumento extorsivo dos alugueis.

Somos totalmente contra a exploração imobiliária; achamos que o Governo deve facilitar a aquisição da casa própria por cada inquilino ou, no caso de não ser possível a solução deste problema, que o Governo assegure que os alugueis não sofram reajustes exorbitantes em função de o proprietário estar com o seu título de propriedade (...). Explicação: existem dentro de nossa comunidade pessoas que possuem inúmeras casas alugadas e que moram em outros bairros. (...) Se o proprietário de dez casas alugadas recebe dez títulos de propriedade se estará controvertendo o projeto Cada Família um Lote (ARAÚJO, 1990, Apud, GONÇALVES, 2011, p. 128 e 129).

A oposição entre locatário e inquilino não aparece apenas na contraposição

em torno de projetos propostos pelo Estado. A cada novo contrato, renovação,

atraso de pagamento, etc. ela se faz presente. No entanto, o processo que envolve a

valorização fundiária coloca o conjunto dos proprietários em oposição ao conjunto

dos inquilinos.

Ost e Fleury (2013), em estudo sobre os impactos da implementação da UPP

no Dona Marta, chamam a atenção para a mercantilização dos espaços sociais.

Para as autoras, esse processo permite que parte da população se beneficie

aproveitando a oportunidade para investir, enquanto que para a outra parte esse

processo aparece apenas como despossessão dos espaços sociais.

A expansão de mercado, propiciada pela maior inserção do Estado, permite que cheguem alguns benefícios, como serviços de maior qualidade, diversidade na oferta, conhecimento, oportunidades de fontes de renda e de capacitação. Assim, aqueles que têm mais capacidade de aproveitar a oportunidade, de lucrar, são beneficiados pela nova realidade, enquanto outros tantos vivem na insegurança (OST; FLEURY, 2013, p. 12).

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Para as autoras, na medida em que aumenta o custo de consumo desses

espaços e atividades (limitando o uso dos moradores) o seu uso é substituído em

especial por sujeitos de fora.

Enquanto alguns empreendedores aproveitam o aumento do turismo e da circulação de pessoas de maior poder aquisitivo para desenvolver iniciativas lucrativas de lazer, muitos moradores sentem que o espaço de lazer foi restringido, pois a quadra da escola de samba passou a abrigar festas caras, a laje do Michael Jackson recebe frequentadores da rua para evento de samba, os preços praticados pelos bares aumentaram, ou seja, há um processo de mercantilização dos espaços sociais que segrega a população favelada dentro da própria comunidade (OST; FLEURY, 2013, p. 13).

Esse processo põe em oposição os comerciantes e outros empreendedores

que conseguem tirar proveito das atividades, segundo as autoras, agora

mercantilizadas, e os antigos usuários dos espaços sociais ou moradores que se

incomodam com o barulho, a sujeira, etc.

Outra oposição de interesses encontrada está na separação entre moradores

novos e antigos. Essa parece ser, em princípio, uma forma de manutenção das

estruturas de poder já estabelecidas. Como no exemplo que demos do Comerciante

1 da Favela 1, que se utiliza dessa diferenciação para desqualificar os argumentos

dos moradores novos em conflitos políticos, alegando que não conhecem a história

da favela, e que são pessoas que se ficar ruim vão embora sem problemas.

Segundo Rocha, essa também é uma forma de associar apenas aspectos positivos

à comunidade, relegando os negativos para os novos moradores desconhecedores

da moral local.

Assim, a noção de “comunidade” era também acionada como mecanismo de manutenção da representação local de favela “tranquila”. Quando apresentavam preocupação sobre a possibilidade do Abacateiro deixar de ser uma favela “em paz” e “diferente das outras”, o risco era freqüentemente localizado nos moradores recém chegados, que seriam portadores de outros valores identificados como negativos. Os novos moradores eram descritos como aqueles que não conheceriam as regras de comportamento locais, não teriam os mesmos laços de amizade, respeito e solidariedade com seus vizinhos, estando apenas preocupados com eles mesmos. As explicações disponíveis para esse comportamento anti-comunitário dos novos moradores vão desde acusações sobre origem e religião (em geral eram identificados como “paraíbas” e/ou “crentes”) à serem portadores de um código de conduta diferente da experimentada no Abacateiro em função de suas vivências anteriores em outras favelas. Ainda que as acusações feitas sejam de dimensões diferentes, misturando origem, identidade étnica e religião, o aspecto questionado era o não pertencimento prévio àquela “comunidade moral” (ROCHA, 2008, p. 4).

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O trecho reproduzido acima evidencia outras formas de cisões no interior da

favela, como o recorte étnico, de religião ou de região de origem. A separação entre

cariocas e nordestinos foi algo em especial presente no trabalho de campo. Não

vamos mais desenvolver sobre esse assunto, mas uma afirmação chamou a

atenção. Diz o corretor da Imobiliária 2 Favela 1 que vieram muitos nordestinos e

que eles são muito trabalhadores, rebaixando o valor da força de trabalho do

carioca. Esse tipo de relação tende a se acirrar em momentos de taxas mais altas de

desemprego. Segundo a moradora da Indiana citada no capítulo 2, as praças estão

lotadas de peruanos e bolivianos tirando as oportunidades dos brasileiros de

trabalhar no mercado informal. Para ela, deveríamos fechar as portas e “arrumar a

casa” antes de ajudar os outros.

A diversidade de configurações em que os interesses se coligam ou se

contrapõem é enorme. Isso demonstra que além das diversas instituições que atuam

nas favelas, como o Estado, Associação de Moradores, narcotráfico varejista,

milícia, igreja, etc., há uma variedade de conflitos de interesses que podem ser

permanentes, como a oposição entre locadores e locatários ou locais e os de fora ou

conjunturais, como a oposição entre comerciantes e consumidores como no caso da

mercantilização dos espaços sociais.

 

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Tabela 4: Quadro síntese de aspectos levantados para as duas favelas.

 Fonte: Desenvolvido pelo autor.

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6 CONCLUSÃO

Podemos considerar que não se pode conferir uma essência própria à favela,

assim como à própria cidade ou à urbanização/favelização. Entendemos como

acertada a busca da compreensão da urbanização, por exemplo, como um

fenômeno próprio do capitalismo e decorrente de sua lógica geral de reprodução

ampliada. Dessa forma, a urbanização é a aparência da dinâmica própria do

capitalismo e do domínio que exerce sobre o metabolismo entre homem e natureza

(ou seja, sobre o trabalho). Ela é meio de acumulação e ao mesmo tempo base para

a acumulação futura (não livre de várias formas de contradição). A favela, como

parte integrante da urbanização, aparece como parte dessa mesma estrutura de

acumulação, mas como resultado de processos específicos. Acreditamos que

Francisco de Oliveira (OLIVEIRA, 2003 [1972]) se aproxima dessa ideia quando

relaciona a favelização como forma de atender à necessidade do capital de

rebaixamento do valor da força de trabalho e forma de acumulação primitiva

necessária para industrialização brasileira. Podemos considerá-la também como

resultado da constante luta pela apropriação do mais-valor entre capitalistas e

proprietários fundiários. As expressões dessas contradições na produção do espaço

urbano variam a depender dos contextos sócio-histórico-geográficos. Sendo assim,

essas contradições podem ou não produzir favelas, assim como, produzem favelas

com os mais diferentes aspectos ao redor do mundo.

Essa diversidade, devido à precariedade da ação homogeneizadora do

Estado, parece determinar uma dificuldade maior de apreensão que a já bastante

heterogênea configuração dos bairros. No entanto, buscamos ao longo da

dissertação, as determinações que influenciassem as favelas de uma forma mais

geral. Nesse sentido, demos uma atenção mais detida para a relação entre as

favelas e o Estado. Há uma diversidade também nessa relação, porém a própria

instituição da favela como uma entidade especial demonstra um modo de ação

pretensamente homogêneo e diverso do restante da cidade. Podemos dizer que a

própria importância a mais conferida à dinâmica, estrutura de poder e agentes

locais, resultante da retirada de uma série de direitos e que tem por consequência

uma heterogeneidade ainda maior, é resultado dessa relação particular. Ao mesmo

tempo, buscamos demonstrar que o Estado, ainda assim, influencia sobremaneira,

ainda que de forma indireta, as normas estabelecidas no território. Há formas de

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dominação diretas e indiretas que determinam uma tendência (não livre de

contradições) à reprodução das normas do Estado (e as formas de sociabilidade do

capitalismo), mesmo que aparentemente as estruturas de poder locais tenham certa

autonomia.

Ainda no nível das particularidades, buscamos algumas formas de agrupar as

favelas. Por questão de facilidade e de proximidade com as favelas em que

desenvolvemos o trabalho de campo, trabalhamos características que, entendemos,

são de grande importância na cidade do Rio de janeiro, sejam elas: localização,

situação jurídica e topografia. Poderíamos avançar sobre outras características

ainda no Rio de Janeiro, como o domínio por facção criminosa, influência de grupos

religiosos. Se fossemos pensar outros recortes geográficos, uma infinidade de

possibilidades surgiria.

A partir dessa reflexão pudemos, mesmo que de forma ainda inicial, pensar a

relação entre os resultados do trabalho de campo (resultados, a princípio, apenas

associados à singularidade das favelas pesquisadas) e processos mais gerais. Por

exemplo, ainda que não possamos entender os mecanismos de regulação e

produção do espaço aqui apresentados como algo a ser encontrado da mesma

forma em outras favelas, podemos dizer que parte de suas características são

determinadas de forma mais geral pela relação particular entre Estado e favela. Para

deixar o exemplo mais palpável: a questão da manutenção dos contratos com as

empresas concessionárias de distribuição de água e luz no nome dos proprietários e

os diversos problemas causados pelo risco de transferir os contratos para os

inquilinos, deve se apresentar de forma muito semelhante, nas favelas urbanas de

todo o Brasil, ou em qualquer favela onde se tenha conhecimento de processos de

regularização fundiária ou de remoções, onde é procedimento padrão aceitar a conta

de luz ou de água como comprovação de posse estável.

Podemos considerar também a renda que incide sobre toda a terra no

capitalismo e que não poderia ser diferente nas favelas. Defendemos que a mesma

forma de propriedade suportada pelo Estado fora das favelas se desenvolve,

apoiada, em grande medida, nas instituições locais, na favela. No entanto, a feição

dos prédios, ruas e a dinâmica do mercado imobiliário estão em larga medida

relacionadas às formas de regulação, às normas edilícias e ao preço da terra. É

desse modo que a cidade é produzida com diversas feições a depender da época e

do lugar, mesmo que não seja diversa a forma de propriedade. Esses determinantes

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agem sobre o produto imobiliário. Nós, assim como diversos autores, encontramos

uma forte tendência à produção de prédios de quitinetes nas favelas. Essa tendência

pode ter um fator sócio-histórico importante. O direcionamento das necessidades,

em larga medida imposto pelo próprio mercado imobiliário, para a produção de

moradias com dimensões mínimas, presentes não apenas nas favelas, certamente

influencia na produção dessa tipologia. No entanto, entendemos que a busca pela

potencialização dos ganhos é momento fundamental. Sendo assim, podemos admitir

que algo nas condições em que se desenvolve o mercado imobiliário nas favelas

(trabalhamos aqui algumas hipóteses), estabelece o prédio de quitinetes como

tipologia mais lucrativa. É importante destacar que essa tipologia só é possível se os

produtores imobiliários tiverem acesso aos meios de produção que a permitam. Isso

pode ocorrer pelo avanço de tecnologias construtivas, barateamento dos materiais

de construção e aumento do poder de compra desses produtores. Isso posto, deixa

de ser, em grande medida, uma escolha do produtor imobiliário a tipologia a ser

construída. Isso acontece porque, como apresentamos aqui, a renda fundiária é

determinada pelo uso mais rentável, o que constrange os promotores imobiliários a

produzir considerando isso. Ou seja, a renda da terra, até que surja algum tipo de

inovação, tem um efeito homogeneizador sobre o produto imobiliário.

As tentativas de relacionar características encontradas no trabalho de campo

com processos mais amplos não podem ser encaradas como uma simplificação do

problema e essa dissertação está, em grande medida, empenhada justamente em

complexificar a questão. No entanto, é importante entender qual escala e o nível de

abstração são mais adequados para entendermos os processos em sua

complexidade.

O campo nebuloso do crime talvez seja o aspecto de maior dificuldade para

fazer esse tipo de relação. Por exemplo, em pouco tempo de experiência das UPPs

já sabemos da relativa autonomia dos comandantes de cada unidade, sabemos dos

problemas da diferença do processo de formação no início do projeto e em tempos

recentes, sabemos também como a queda dos recursos atingem todas as unidades.

No entanto, para o crime o terreno é muito mais nebuloso. Para trabalhos como o

nosso, a forma mais segura de encarar os resultados da pesquisa no que se refere à

constituição do poder do narcotráfico varejista, parece ser tratá-lo como um caso

específico, singular, e, dessa forma, nos isentarmos de generalizações imprecisas.

No entanto, essa é também uma forma de simplificação. Ao (por desconhecimento

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das relações entre varejo e tráfico internacional ou entre comandos locais de

determinada facção, abstrairmos as articulações do narcotráfico para além da escala

local e para além do varejo) deixamos de lado parte importante de suas

determinações e, ao mesmo tempo, perdemos muito da capacidade de

generalização de processos como o domínio sobre a produção imobiliária, taxação

de determinados serviços, etc. Evidente que o crime não é uma exclusividade do

narcotráfico e os outros agentes quando o cometem também buscam escondê-lo,

porém o narcotráfico varejista é o único agente aqui analisado que contém o crime

na sua atividade principal. Isso faz com que os outros agentes busquem escamotear

suas relações com o narcotráfico varejista. Segundo Rocha (2008), esse é o

significado de o Estado requisitar a Associação de Moradores para intermediar as

negociações com o narcotráfico varejista.

Apesar das dificuldades e das diversas lacunas sobre a sua forma de ação,

pudemos identificar no narcotráfico varejista um papel fundamental tanto na

produção como na regulação da construção. Não podemos generalizar essa

característica, pois, além de ser bastante diverso, o poder do tráfico ainda é algo

bastante instável. Sendo assim, sua capacidade de intervenção na produção

imobiliária é conjuntural. No entanto, visto o desconhecimento desse assunto,

entendemos que é necessário, através de pesquisas de campo como essa, abrir um

leque de possibilidades da atividade do narcotráfico varejista no mercado imobiliário.

Por exemplo, identificamos o investimento do narcotráfico na produção imobiliária

através de “laranjas” na Favela 1. Da mesma forma, na Favela 2 encontramos um

esquema de venda de terrenos pelo narcotráfico varejista, contraditoriamente

apoiados em ações do Estado. Lia de Mattos Rocha (2008) identifica na favela do

Abacateiro uma conjuntura bastante parecida, onde, apesar de não haver relatos

das vendas dos terrenos, quem assegura a possibilidade de construir é o

narcotráfico varejista. Maria de Lourdes Zuquim e Miguel Nazareth (2016) relatam na

experiência em Nova Jaguaré a ação direta do narcotráfico varejista na produção

imobiliária. Essas experiências relatadas não podem ser generalizadas

mecanicamente, mas têm um potencial na medida em que apontam as

possibilidades de atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário.

Considerando certo nível de articulação do narcotráfico varejista é provável que

certas práticas se reproduzam em diversos territórios. Mesmo a relação entre

narcotráfico varejista e milícia tem sido ressaltada na mídia com a sugestão de que o

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narcotráfico varejista tem utilizado de práticas típicas das milícias e vice-versa.

Na Associação de Moradores, encontramos um importante papel na

regulação do território. No entanto, vimos também como esse papel pode ser

limitado pelo narcotráfico varejista, pelo Estado ou pelos dois simultaneamente, até,

num caso extremo, tornar a associação inoperante. Além desse papel dentro do

território e voltado para dentro do território, a associação de moradores aparece

como um importante agente de conexão entre os agentes locais e supralocais. Isso,

como vimos, desperta o interesse de diversos agentes sobre a associação. Dessa

forma, um aparelhamento tanto por agentes do Estado como pelo narcotráfico

varejista deve ser considerado. O aparelhamento por agentes do estado foi visto na

forma de conchavos e formação de currais eleitorais. No entanto, há formas mais

estruturais, como no caso do “controle negociado” (MACHADO DA SILVA, 2016

[2002]). Vimos também como o Estado se utiliza com frequência da posição

privilegiada da Associação de Moradores para acessar agentes locais ou moradores.

No sentido contrário, podemos observar o mesmo fenômeno. A Associação de

Moradores pode ser dominada pelo tráfico tendo em vista o domínio sobre uma

instituição que possa negociar diretamente com o Estado ou como forma de espoliar

a população local. Vimos como grande parte das taxas cobradas pelo narcotráfico

varejista na Favela 1 só é possível exercendo certo domínio sobre a associação.

Essa é uma prática comumente observada no caso das milícias.

Mesmo considerando que o Estado assume uma atitude diferenciada nas

favelas e o acesso a determinadas instituições seja frequentemente embarreirado,

entendemos que o discurso da ausência do Estado é refutável em todos os níveis. É

impossível falar das favelas sem entender a incidência direta e indireta do Estado. O

discurso da ausência, dessa forma, serve apenas para esconder a aplicação

desigual do poder do Estado no território ou para dar a falsa impressão de que o

Estado constitui espaços plenos de direito, enquanto a ausência do Estado implica

na precariedade. Trabalhamos aqui também como o Estado pode atuar de forma

direta na retirada de direitos. Sendo assim, a relação direta entre atuação do Estado

e garantia de direitos é falsa, apesar de ser justificada pelo fato de a destruição de

instituições de Estado quase sempre significarem formas de acumulação primitiva

(talvez por isso a luta dos trabalhadores passe, em diversos momentos, pela defesa

das instituições do Estado, mesmo sendo uma atitude cara para movimentos que

pensam a destruição do Estado como parte do processo revolucionário). Da mesma

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forma, o Estado pode atuar retirando direitos como no caso das remoções, das

incursões, etc. e, ao mesmo tempo, o acesso precário, indireto ou mesmo a falta de

acesso dos favelados às instituições de Estado é uma forma de retirada de direitos.

As favelas constituem um patrimônio sócio-histórico que pode ser explorado

politica ou economicamente de diversas maneiras. Acreditamos que essa

apropriação dá sentido à noção de que, na favela, um estrato social se destaca

constituindo o que Machado denominou de “burguesia favelada”. Uma fração desse

estrato, como vimos ao longo da dissertação, explora o mercado imobiliário. Esse

agente é constituído de rentistas que aplicam seus recursos nesse mercado como

forma de reserva de valor, seja construindo na própria laje, subdividindo sua UH ou

seu lote ou mesmo comprando outras UHs. No entanto, também pode se constituir

de pequenos promotores imobiliários, ou seja, um agente especializado na produção

imobiliária. A forma mais recorrente que encontramos para esse tipo de produção foi

a compra de terreno ou casa térrea e construção de prédios de apartamentos ou

quitinetes. O próprio narcotráfico varejista apareceu como um promotor imobiliário

importante na Favela 1. Importante destacar que o prédio de quitinetes foi bastante

enfatizado como a tipologia mais rentável tanto na Favela 1 como na Favela 2. Essa

parece ser uma forma de atingir o principal consumidor de moradias nas favelas,

mas ao mesmo tempo, aparece como forma de extrair uma renda alta mesmo se

comparada às áreas formais.

No entanto, como vimos, não é apenas a “burguesia favelada” que se

apresenta como um estrato social diferenciado. Há diversos estratos sociais que

podem ser identificados e as relações entre o Estado e esses estratos e indivíduos

também são diferenciadas. É dessa forma que temos indivíduos que não

conseguem acessar os técnicos da Light até indivíduos que são acionados pelo

prefeito para a campanha eleitoral. Essa diferenciação também existe no restante da

cidade, porém isso não significa que a relação entre favelados e as instituições de

Estado seja igual a do resto dos cidadãos. Observamos, inclusive, que parte do

acesso privilegiado de alguns favelados está apoiado, em grande medida, na

barreira entre instituições de Estado e favelados.

Essa é uma questão sempre delicada nos estudos sobre favelas. O

mapeamento das barreiras e das porosidades entre favela e não-favela têm

determinantes diversos que muitas vezes são reduzidos à questão territorial, à

presença do estado, à questão racial, etc. No entanto, uma conjunção de fatores

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constituem essas barreiras. Dessa forma, é comum, a depender dos objetivos dos

estudos, excedermos na descrição das barreiras para mostrarmos a injustiça do

sistema capitalista, as desigualdades sociais, etc. ou das porosidades, querendo

demonstrar que a favela é um lugar da cidade como outro qualquer. Buscamos

nesse estudo entender as barreiras e porosidades a partir das observações de

campo e as trabalhamos caso a caso, o que não elimina o risco de cometermos os

mesmos exageros, mas diminui as chances de cairmos em julgamentos morais e

precipitados.

É dessa forma que esse estudo teve como pretensão a complexificação das

relações que constituem o mercado imobiliário nas favelas. Entendemos que a

observação das formas de produção imobiliária, da constituição do poder local, as

especificidades da instituição da propriedade fundiária, o comportamento das

rendas, etc. são de suma importância para a apreensão da dinâmica imobiliária. A

dinâmica e diversidade do objeto de pesquisa exigem análises mais detidas e

sistemáticas, mas esperamos ter contribuído para o entendimento do mercado

imobiliário nas favelas como algo complexo, inflado de determinações na escala

local, mas também parte integrante da urbanização e da estruturação da sociedade

capitalista em sua totalidade.

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231  

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