gênese da favela carioca _ valladares

Upload: tiago-r-da-silva

Post on 30-May-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    1/30

    A GNESE DA

    FAVELA CARIOCA.A produo anteriors cincias sociais*

    Licia Valladares

    RBCS V ol. 15 no 44 outubro/ 2000

    Introduo

    Nas discusses sobre as interpretaes doBrasil e a identidade da cidade do Rio de Janeiro noprincpio do sculo XX, to em voga em nosso

    meio acadmico, o interesse pela favela ocupa umlugar secundrio.1 Escreve-se muito sobre a po-breza, mas o olhar do cientista est voltado para ocortio, para o sanitarismo e para a reforma dePereira Passos. Pergunta-se que pas este?, masna anlise da constituio deste pas so prioriza-das sobretudo as questes da raa e da classetrabalhadora. Descreve-se o mercado de trabalho

    urbano, mas reduzido s fbricas e ao trabalhofabril. Fala-se de lutas e diversidades de correntes,mas a relevncia cabe ao movimento operrio esindical. Discute-se associativismo e participao,mas principalmente em relao aos partidos, ao

    patronato e classe operria. As camadas popula-res, que nas primeiras dcadas do sculo XX soanalisadas sobretudo sob o ngulo dos laos entrecultura e poltica, quando aparecem, sob o rtulode povo, no cortio ou nas ruas do centro do Riode Janeiro, driblando sua excluso poltica pormeio de movimentos de revolta dos tipos maisvariados.

    A favela, sua histria e seus moradores tm,assim, ficado margem do interesse da grandemaioria daqueles que vm estudando hoje, seja opensamento social no Brasil da Primeira Repblica,

    seja a cidade-capital na sua misso civilizadora epoltica. Forma geogrfica e social consideradaquele tempo como de pouca expresso, a favelano tem lugar, no constitui pea do jogo de cartasda histria inicial da Repblica ou do mosaicosocial do Rio de Janeiro de ento. Mas, por queessa omisso, essa negligncia?

    O objetivo deste artigo , justamente, intro-duzir a favela no debate poltico e social do incio

    * Este trabalho, na sua verso original, foi escrito duranteo perodo em que a autora era bolsista da CAPES erealizava seu ps-doutoramento na Frana, junto aoLaboratrio do CNRS, Cultures et Socits Urbaines(CSU-IRESCO). O texto foi apresentado no XXII Encon-tro Anual da Anpocs de 1998 (GT Cidade e Metropoliza-o: Desigualdade e Governana Urbana) e alteradopara publicao nesta revista. Agradeo aos colegas doCentre de Recherches sur le Brsil Contemporain (Mai-son des Sciences de lHomme, Paris), da Casa deOswaldo Cruz e do CPDOC-FGV, que me ouviram emseminrios realizados nessas instituies. Algumas desuas sugestes puderam ser aqui incorporadas. Agrade-o ainda a Maria de Lourdes Menezes, que colaborou naedio do texto final agora publicado.

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    2/30

    6 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    e da primeira metade do sculo, mostrandoseu lugar e importncia nas discusses entre ho-mens de letras, de poder e de ao.2 Com base em

    uma literatura no especfica ao tema, procureicosturar registros e informaes que confirmamsua importncia crescente no imaginrio social, nodiscurso savant e na prtica urbana. Este exercciopretende, com efeito, mostrar de que maneiraocorreu a construo social da favela, num mo-mento em que conhecimento e ao eram insepa-rveis, em que as preocupaes da intelectualida-de carioca e nacional estavam centradas no futuroda jovem Repblica, na sade da sociedade, nosaneamento do pas e no embelezamento do Riode Janeiro. Recorrendo aos discursos de cadapoca e examinando a multiplicidade de olhares einterpretaes que nos foram legados por jornalis-tas, mdicos, engenheiros e urbanistas, procurocaptar esse processo de construo social da favelainiciado antes mesmo de as cincias sociais entra-rem em cena. Meu objetivo, ao considerar asrepresentaes, associaes, imagens e vocabul-rio utilizados em diferentes tempos por distintosatores sociais, tentar resgatar uma histria socialda favela e seu merecido lugar em nossa histriapoltica e social.

    Antes de mais nada, farei alguns comentriossobre a origem deste trabalho e sua orientao. Ele parte de um estudo mais amplo em que o tema dafavela no Rio de Janeiro revisitado a partir de umavasta bibliografia de 526 ttulos levantada peloUrbandata.3 Tal conjunto de textos nos permitereconstituir a evoluo das representaes sobreesse espao social a partir de marcos e momentosque fogem periodizao tradicionalmente utiliza-da. Em outras palavras, a histria da reflexo sobre afavela a sua histria intelectual no deve serconfundida com a sua histria propriamente dita,

    baseada em datas, eventos e conjunturas, marcada,fundamentalmente, pelas diferentes aes/ interven-es implementadas pelo poder pblico em distin-tos momentos poltico-administrativos.4 O exerc-cio ora proposto, baseado em uma leitura que nosegue a historiografia hoje consagrada, implicar,portanto, um rompimento com a periodizao tra-dicional, mas sem descart-la totalmente. Trata-sede dar incio a uma sociologia da sociologia da

    favela, na qual examinarei as origens e a constitui-o de um pensamentosavant sobre esse fenme-no social, privilegiando seus atores, vinculaes,

    interesses, representaes e aes.Considerando a literatura disponvel em seu

    conjunto, pode-se distinguir dois grandes pero-dos, cujo marco divisor a entrada das cinciassociais no campo da pesquisa e da reflexo sobrea favela. O primeiro vai do incio do sculo XX aosanos 50, correspondendo ao perodo da gnese, dadescoberta do fenmeno e da construo de umtipo ideal ou arqutipo, at a inaugurao de umsaber oficial sobre o mesmo, com a realizao doprimeiro Censo das Favelas da Prefeitura do Distri-to Federal e do Censo Demogrfico de 1950. Osautores dessa primeira leva so jornalistas, cronis-tas, engenheiros, mdicos, arquitetos, administra-dores pblicos e assistentes sociais. O segundogrande perodo comea nos anos 60 e chega aosnossos dias. Rapidamente a universidade transfor-ma a favela em um dos seus objetos de estudo,geraes de pesquisadores se sucedem, alguns setornam especialistas e a favela se consagra, ga-nha centralidade e acaba por inspirar uma grandeparte da literatura sobre a pobreza urbana no Riode Janeiro e no Brasil.5

    Optei, neste artigo, por visitar o perodofundador. Quero resgatar nossas heranas, mostrara importante contribuio dessas geraes queforneceram as chaves para leituras e interpreta-es que s se tornaram verdadeiramente conheci-das a partir da institucionalizao das cinciassociais.6

    O legado pouco conhecidoNem nos pases europeus, nem no Brasil a

    descoberta da pobreza deve-se aos cientistas soci-

    ais (Leclerc, 1979; Himmelfarb, 1984; Bresciani,1984; Barret-Ducrocq, 1991; Valladares, 1991). Nosculo XIX, quando a pobreza urbana se transfor-ma em preocupao das elites, tanto l como c,so os profissionais ligados imprensa, literatura,engenharia, medicina, ao direito e filantropia quepassam a descrever e propor medidas de combate pobreza e misria. Na origem desse conheci-mento impunha-se uma finalidade prtica: conhe-

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    3/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 7

    cer para denunciar e intervir, conhecer para proporsolues, para melhor administrar e gerir a pobrezae seus personagens. A cincia a servio da raciona-

    lidade e da ordem urbana, da sade do pas e desua populao.

    No Rio de Janeiro, assim como na Europa, osprimeiros interessados em esmiuar a cena urbanae seus personagens populares voltaram sua aten-o para o cortio,7 considerado no sculo XIXcomo o locus da pobreza, espao onde residiamalguns trabalhadores e se concentravam, em gran-de nmero, vadios e malandros, a chamada classeperigosa. Caracterizado como verdadeiro infernosocial, o cortio era tido como antro no apenasda vagabundagem e do crime, mas tambm dasepidemias, constituindo uma ameaa s ordensmoral e social. Percebido como o espao, porexcelncia, do contgio das doenas e do vcio,sua denncia e condenao pelo discurso mdico-higienista foram seguidas por medidas administra-tivas: primeiro, uma legislao proibindo a cons-truo de novos cortios no Rio; em seguida, umaverdadeira guerra que resultou na destruio domaior de todos, o Cabea de Porco; e finalmente,a grande reforma urbana do prefeito Pereira Pas-sos, entre 1902 e 1906,8 que se propunha a saneare civilizar a cidade acabando com as habitaesanti-sanitrias.

    Os estudiosos do cortio no Rio de Janeiromostram que essa forma habitacional correspon-deu semente da favela. Seja por j se notar nointerior do famoso Cabea de Porco a presenade casebres e barraces (Vaz, 1994, p. 591), sejapor ter havido uma relao direta entre o botaabaixo do centro da cidade e a ocupao ilegaldos morros no incio do sculo XX (Benchimol,1982; Rocha, 1986; Carvalho, 1986). Alguns estabe-lecem uma relao direta entre o Cabea de

    Porco e o desenvolvimento inicial do morro daProvidncia, depois conhecido como morro daFavella. Isto porque, antes da chegada dos solda-dos de Canudos, e durante a destruio do maiorcortio do Rio de Janeiro, o prefeito Barata haviapermitido a retirada de madeiras que poderiam seraproveitadas em outras construes. Alguns mora-dores teriam ento subido o morro por detrs daestalagem. Por coincidncia, uma das proprietrias

    do Cabea de Porco possua lotes naquelas en-costas, podendo, assim, manter alguns de seusinquilinos (Vaz, 1986; Chalhoub, 1996, p. 17).

    Somente aps ferrenha campanha contra ocortio as atenes comeam a se voltar para essenovo espao geogrfico e social que vai despon-tando, gradativamente, como o mais recente terri-trio da pobreza.9 Em especial,uma favela catali-za as atenes, mais precisamente o morro daFavella, que entrou para a histria por sua associ-ao com a guerra de Canudos, por abrigar ex-combatentes que ali se instalaram para pressionaro Ministrio da Guerra a lhes pagar os soldosdevidos. O morro da Favella, at ento denomina-do morro da Providncia,10 passa a emprestar seunome aos aglomerados de casebres sem traado,arruamento ou acesso aos servios pblicos, cons-trudos em terrenos pblicos ou de terceiros, quecomeam a se multiplicar no centro e nas zonassul e norte da cidade do Rio de Janeiro.11 Segundopesquisa realizada por Abreu (1994), apenas nasegunda dcada do sculo XX que a imprensapassa a utilizar a palavra favela de forma substan-tiva12 e no mais em referncia exclusiva ao morroda Favella, surgindo assim uma nova categoriapara designar as aglomeraes pobres, de ocupa-o ilegal e irregular, geralmente localizadas emencostas.

    Outro morro, o de Santo Antnio,13 tambmatesta a origem desse fenmeno. A sua transforma-o em favela semelhante ao caso precedente.Segundo Abreu e Vaz (1991), praas de outrobatalho, retornados da mesma campanha de Ca-nudos, construram seus barracos, com autorizaodos chefes militares, em morro situado nos fundosdo quartel, entre as ruas Evaristo da Veiga eLavradio. Em 1898 um comissrio de higiene aler-tava para o crescimento de barraces numa rea j

    ocupada, enquanto a imprensa denunciava, em1901, que estava surgindo a um bairro novssimo,construdo sem licena nem autorizao das auto-ridades municipais e em terrenos do Estado [...]perfazendo um total de 150 casebres [...] e cerca de623 habitantes. (Abreu, 1994, p. 37).

    Datam igualmente do sculo XIX a Quinta doCaju, a Mangueira que no corresponde atuale muito conhecida favela da Mangueira e a Serra

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    4/30

    8 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    Morena, todas elasanteriores ao morro da Favella.O incio da ocupao de tais reas remonta a 1881.Tanto no caso da Quinta do Caju como no da

    Mangueira, nada comprova que a ocupao origi-nal tenha ocorrido por invaso; sabe-se apenasque os primeiros moradores foram imigrantes por-tugueses, espanhis e italianos.14

    porm o morro da Favella, repito, que entrapara a histria. J em 1900 o Jornal do Brasildenunciava estar o morro infestado de vagabun-dos e criminosos que so o sobressalto das famli-as. Esta tambm a viso expressa por umdelegado da polcia, segundo nos informa Bretas(1997, p. 75): Se bem que no haja famlias nolocal designado, ali impossvel ser feito o polici-amento porquanto nesse local, foco de desertores,ladres e praas do exrcito, no h ruas, oscasebres so construdos de madeira e cobertos dezinco, e no existe em todo o morro um s bico degs.

    Fotografado j no incio da dcada,15 o mor-ro da Favella no apenas concentra todas as aten-es como desperta a iniciativa das autoridades.Chega a ser saneado no ano de 1907, em campa-nha liderada por Osvaldo Cruz, como atestam duascaricaturas significativas veiculadas na imprensa.16Na primeira, publicada na revistaO Malho, Oswal-do Cruz ostenta uma braadeira com o smbolo dasade no brao esquerdo e expulsa a populaodo morro da Favella com um pente onde se lDelegacia de Hygiene. O morro da Favella representado por um homem mal encarado, comolhar de mau e de vadio. A caricatura vem acompa-nhada por um pequeno texto: Uma limpeza indis-pensvel; a Hygiene vai limpar o morro da Favella,ao lado da Estrada de Ferro Central. Para issointimou os moradores a se mudarem em dez dias.A segunda caricatura, publicada no Jornal do Bra-

    sil, intitulada Saneamento dos morros, mostraOswaldo Cruz subindo a favela atrs do prefeito, oqual precedido pelo chefe de polcia em primeiroplano. Diz o texto que acompanha a caricatura: Astrs autoridades vo trabalhar de commum acordo,para melhoria das condies hygienicas dos referi-dos morros, expurgando-os ao mesmo tempo dasmaltas de desocupados que alli existem nos referi-dos casebres.

    As evidncias sugerem que jornalistas, enge-nheiros, mdicos e homens pblicos vinculados administrao da capital inclusive os chefes de

    polcia vo gradativamente deixando de lado ocortio, que passa a ser coisa do passado e perdenfase na prpria rbita do sanitarismo.17 Definiti-vamente, a favela vai passando para o primeiroplano quando se intervm, pensa, ou discute acidade e/ ou o pas, quando se planeja seu presenteou seu futuro. Sobre ela recai agora o discursomdico-higienista que antes condenava as habita-es anti-higinicas; para ela se transfere a viso deque seus moradores so responsveis pela suaprpria sorte e tambm pelos males da cidade.18Assim, no interior do debate sobre a pobreza e ahabitao popular mobilizando, desde o sculoXIX, as elites cariocas e nacionais19 que vamosencontrar as origens de um pensamento especficosobre a favela carioca.

    A descoberta da favela e seu mito deorigem

    Podemos identificar a gnese do processo deconstruo social da favela nas descries e ima-gens que nos foram legadas por alguns homens deletras,20 jornalistas e reformadores sociais do inciodo sculo XX. Amplamente divulgados na poca,seus escritos permitiram o desenvolvimento de umimaginrio coletivo sobre o microcosmo da favelae seus moradores.

    Pouco importa terem sido intelectuais dasmais variadas tendncias ideolgicas e polticas,com propsitos distintos em suas visitas e subidasao morro. O importante era partilharem, todos, deum mesmo entendimento sobre o que eram erepresentavam tais reas e seus moradores nocontexto da capital federal e da jovem Repblica,

    era estarem todos informados por um mesmoconjunto de concepes, por um mesmo mundode valores e idias. A ponto de participarem daconstruo de um arqutipo, de uma imagempadro que se tornou consensual a respeito dessemundo diferente que emergia na paisagem cari-oca pela contramo da ordem.

    Mas o que teria inspirado o entendimento eas representaes dos observadores que cunharam

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    5/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 9

    esse primeiro discurso sobre a favela? E por queuma determinada viso acabou se tornando con-sensual?

    Porque na origem dessa construo socialpodemos identificar um mito presente em pratica-mente todos os autores que falam da favela noincio do sculo XX: o mito de Canudos.

    E uclides da Cunha, Canudos e a favela do Rio de Janeiro

    A leitura de textos do princpio do sculosugere uma associao mais do que evidente entreo morro da Favella, no Rio de Janeiro, e Canudos.Uma histria est ligada outra, pois foram ex-combatentes da Guerra de Canudos que se instala-ram no morro da Providncia, a partir da denomi-nado morro da Favella. So duas as explicaespara essa mudana de nome: primeiro, a existncianeste morro da mesma vegetao que cobria omorro da Favella do Municpio de Monte Santo, naBahia; segundo, o papel representado nessa guerrapelo morro da Favella de Monte Santo, cuja ferozresistncia retardou o avano final do exrcito daRepblica sobre o arraial de Canudos. Se, noprimeiro caso, a explicao est baseada numasimilitude tout court , no segundo, a denominaomorro da Favella vem revestida de um forte conte-do simblico que remete resistncia, luta dosoprimidos contra um oponente forte e dominador.

    A marca de Canudos nesse momento funda-dor , assim, inconteste.21 No entanto, bom frisar,no foi simplesmente Canudos, no foi uma povo-ao de Canudos qualquer que desempenhou opapel de mito de origem da favela carioca. Foi oarraial de Canudos descrito emOs sertes deEuclides da Cunha.

    Considerado por muito tempo como o livronmero um do Brasil (Abreu, 1998), com mais de

    30 edies em portugus que se sucederam desdea primeira, em 1902, pela Editora Laemmert,Ossertes foi lido por todos os intelectuais da poca,e responsvel por a Guerra de Canudos no tercado no esquecimento. Conforme observa Zilly(1998), no fosse Euclides da Cunha e seu livroretumbante, essa epopia dos sertes da Bahia aofinal do sculo XIX certamente no teria hoje odestaque que merece na histria da Primeira Rep-

    blica. A importncia e a repercusso dessa obratambm podem ser constatadas pelos inmerostrabalhos j escritos sobre ela e reunidos nas

    bibliografias de Reis (1971) e de Garcia e Frste-neau (1995), para no falar de publicaes recen-tes que discutem o papel de Euclides da Cunha nopensamento social brasileiro e seu impacto tantoontem quanto hoje (Lima, 1999; Abreu, 1998;Suplemento especial da revista H istria, Cincias,Sade M anguinhos, julho de 1998).

    Embora o livro de Euclides da Cunha sejaposterior (1902) ao batismo do morro da Providn-cia como morro da Favella (1887), a marca da obrano pode ser descartada. Muito pelo contrrio,foram as imagens fortes e impactantes transmitidaspor Os sertes que permitiram aos nossos intelectu-ais entender e interpretar a favela emergente.

    Um bom exemplo disso o artigo do cronista flneur Joo do Rio publicado naGazeta de N ot-cias em 1908 e republicado no livroV ida vertigino-sa em 1911, com o ttulo de Os livres acampamen-tos da misria, no qual relata uma visita ao morrode Santo Antnio tambm favelizado no inciodo sculo XX por ocasio de uma seresta:

    Certo j ouvira falar das habitaes do morro deSanto Antnio. [...] Eu tinha do morro de SantoAntnio a idia de um lugar onde pobres operri-os se aglomeravam espera de habitaes, e atentao veio de acompanhar a seresta. [...] Omorro era como outro qualquer morro. Um cami-nho amplo e maltratado, descobrindo de um lado,em planos que mais e mais se alargavam, ailuminao da cidade. [...] Acompanhei-os e deinum outro mundo. A iluminao desaparecera.E stvamos na roa, no serto, longe da cidade. Ocaminho, que serpeava descendo era ora estreito,ora largo, mas cheio de depresses e de buracos.

    De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas detbua de caixo, com cercados indicando quintais.A descida tornava-se difcil [...] (Rio, 1911, pp. 51,52 e 53; grifo meu)

    E o flneur continua:

    Como se criou ali aquela curiosa vila de misriaindolente? O certo que hoje h, talvez, mais de

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    6/30

    10 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    quinhentas casas e crca de mil e quinhentaspessoas abrigadas l por cima. As casas no sealugam, vendem-se. [...] o preo de uma casa

    regula de 40 a 70 mil ris. Tdas so feitas sbre ocho, sem importar as depresses do terreno, comcaixes de madeira, flhas-de-flandres, taquaras.[...] T inha-se, na treva luminosa da noite estrelada,a impresso lida da estrada do arraial de Canudosou a funambulesca idia de um vasto galinheiromultiforte. (Rio, 1911, pp. 54-55; grifo meu)

    Anos depois, outro jornalista, Luiz Edmundo(1938), visitou o mesmo morro de Santo Antnio,oferecendo mais uma descrio rica e viva que iriacompor o registro do Rio de Janeiro de seu tempo:

    Em Santo Antnio, outeiro pobre, apesar da situa-o em que se encrava na cidade,as moradas so,em grande maioria, feitas de improviso, de sobras

    e de farrapos, andrajosas e tristes como os seusmoradores. [...] Por elas vivem mendigos, os au-tnticos, quando no se vo instalar pelas hospe-darias da rua da Misericrdia, capoeiras, malan-dros, vagabundos de toda sorte, mulheres semarrimo de parentes, velhos dos que j no podemmais trabalhar, crianas, enjeitados em meio agente vlida, porm, o que pior, sem ajuda detrabalho, verdadeiros desprezados da sorte, es-quecidos de Deus [...] (Edmundo, 1938, pp. 246-247; grifo meu)

    E o jornalista continua o relato de sua visita:

    A lcanamos, enfim, uma parte do povoado mais

    ou menos plana e onde se desenrola a cidadelamiseranda. O cho rugoso e spero, o arvoredopobre de folhas, baixo, tapetes de tiririca ou decapim surgindo pelos caminhos mal traados e

    tortos. Perspectivas medocres. Todo um conjuntodesmantelado e torvo de habitaes sem linha esem valor [...]. Construes, em geral, de madeiraservida, tbuas imprestveis das que se arrancama caixotes que serviram ao transporte de banha oubacalhau, mal fixadas, remendadas, de cores equalidades diferentes, umas saltando aqui, outrasentortanto acol, apodrecidas, estilhaadas ou ne-gras. Coberturas de zinco velho, raramente ondu-

    lado, lataria que se aproveita ao vasilhame servi-do, feitas em folha-de-flandres. Tudo entrelaan-do toscamente, sem ordem e sem capricho. (Ed-

    mundo, 1938, vol. 2, pp. 251-252; grifo meu)

    Atentando bem para as citaes acima, veri-ficamos no serem apenas as referncias explcitasao arraial de Canudos, feitas pelos cronistas visitan-tes, que chamam a ateno. Encontramos nessesrelatos o mesmo tipo de descrio, o mesmo tipode espanto e surpresa diante de um mundo desco-nhecido presente emOs sertes. Muito emborafalando da capital da Repblica, os cronistas que-rem mostrar que os sertes tambm estavam ali,conforme afirmara em 1918 o mdico AfrnioPeixoto: No nos iludamos, o nosso serto come-a para os lados da Avenida (apud Hochman,1998b).

    A fonte inspiradora parece-nos evidente, noapenas na comparao entre a favela do Rio deJaneiro e o arraial de Canudos, como tambm naforma de representar as suas respectivas popula-es. Parece, alis, bastante claro que Canudos eseus jagunos, retratados por Euclides da Cunha,serviram como um modelo para pensar a popula-o da favela, suas caractersticas e seu comporta-mento.

    Comecemos pelas semelhanas em termosde topografia e de geografia. O arraial de Canudossituava-se numa regio montanhosa e a prpriaFavella, localizada na serra baiana que levava omesmo nome, era um morro. No Rio de Janeiro,por muito tempo a associao entre favela e morrofoi automtica. Os dois termos eram empregadoscomo sinnimos tanto na literatura quanto namsica (Oliveira e Marcier, 1998).22 Visitados por jornalistas, os morros so descritos enfaticamentecomo espaos distintos, dotados de uma geografia

    particular. O jornalista Benjamin Costallat no fazoutra coisa quando narra as dificuldades no acessoao topo do morro devido topografia irregular darea, na crnica intitulada A favela que eu vi,includa em seu livro Mistrios do Rio(1995),originalmente publicado em 1924:

    um caminho de cabras. No se anda, gravita-se.Os ps perdem a funo normal de andar, trans-

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    7/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 11

    formam-se em garras. [...] Falavam-me sempre noperigo de subir Favela [...] O maior perigo que euencontrei foi o risco, a cada passo, de despencar-

    me l de cima pela pedreira ou pelo morro abaixo.(Costallat, 1995, p. 34)

    Se em Canudos topografia e vegetao jchamavam especialmente a ateno, o mesmocontinua a ocorrer no Rio de Janeiro, onde o morrotem como insistem os jornalistas depressesdo terreno, cho rugoso e spero, arvoredo baixo,tapetes de tiririca ou capim, caminhos mal traadose tortuosos ou degraus esboados na rocha viva,escorregadios e perigosos.

    Lembremos, por outro lado, que tanto lcomo aqui o morro detm uma posio estratgica.Localizado sobre a cidade, que fica embaixo, gozade uma situao privilegiada em temos de logstica.Isolado, oculta de quem olha de baixo o que sepassa em cima. Todos que o alcanam como emCanudos experimentam a sensao do espanto,misturado ao deslumbramento. Dizia Euclides daCunha (1968, p. 20): [...] inesperado quadro espe-rava o viandante que subia, depois desta travessiaem que supe pisar escombros de terremotos, asondulaes mais prximas de Canudos. Ou: E noprimeiro momento, antes que o olhar pudesseacomodar-se quele monto de casebres, presosem rde inextricvel de becos estreitssimos [...] oobservador tinha a impresso exata de topar, ines-peradamente, uma cidade vasta. (idem, p. 246).

    Os jornalistas cariocas igualmente se surpre-endiam com o quadro que se impunha ao seu olharl em cima. Tambm falavam daquele monto decasebres, todo um conjunto desmantelado e torvode habitaes sem linha e sem valor (Edmundo,1938, vol. 2), como parte de uma verdadeiracidadela.

    Do mesmo modo que em Canudos, a favelatinha o seu chefe, controlando a cidadela. Naspalavras do jornalista Costallat (1995, p. 37):

    Um dia chegou Favela um homem Z daBarra. Vinha da Barra do Pira. J trazia grandefama. Suas proezas eram conhecidas. Era umvalente, mas um grande corao. E Z da Barrachegou e dominou a Favela [...] E a Favela, que

    no conhece polcia, no conhece impostos, noconhece autoridades, conheceu Z da Barra e a eleteve que obedecer. E Z da Barra ficou sendo o

    chefe incontestvel da Favela.

    Guardadas as devidas propores, trata-se damesma histria do forasteiro que chega e impesua ordem, gere e administra um espao onde nose obedece s leis nacionais nem se reconhece asautoridades constitudas, acabando por dominar apopulao local. Vale lembrar que Antonio Conse-lheiro comeou sua briga com as autoridadeslocais no interior da Bahia por conta da recm-decretada autonomia dos municpios, e rumoupara os confins dos sertes onde poderia fazervaler suas prprias leis e regras.

    O terreno de ningum, de todos, observaainda Costallat (1995, p. 35), numa referncia quemais uma vez aproxima as reas de ocupao dosmorros no Rio de Janeiro ao Arraial de Canudos,onde a propriedade era coletiva, onde ningumtinha a condio de proprietrio do cho ondeimplantava seu casebre. Na leitura de Euclides daCunha, Canudos representava a liberdade de usoda terra, de trabalho, de impostos, de costumes eprticas sociais. Uma espcie de paraso comunit-rio onde a lei nacional no entrava e as normassociais no eram ditadas pela sociedade dominante.

    A idia de comunidade, to presente noarraial analisado por Euclides da Cunha, acaba setranspondo para a favela, servindo como modeloaos primeiros observadores que tentaram caracte-rizar a organizao social dos novos territrios dapobreza na cidade. semelhana de Canudos, afavela vista como uma comunidade de miserveiscom extraordinria capacidade de sobrevivnciadiante de condies de vida extremamente prec-rias e inusitadas, marcados por uma identidade

    comum. Com ummodus vivendi determinado pe-las condies peculiares do lugar, ela percebidacomo espao de liberdade e como tal valorizadapor seus habitantes. Morar na favela corresponde auma escolha, do mesmo modo que ir para Canu-dos depende da vontade individual de cada um.Como comunidade organizada, tal espao consti-tui-se um perigo, uma ameaa ordem moral e ordem social onde est inserida. Por suas regras

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    8/30

    12 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    prprias, por sua persistncia em continuar favela,pela coeso entre seus moradores e por simbolizar,assim como Canudos, um espao de resistncia.

    Observadores de uma viagem bem mais pr-xima que aos sertes baianos, os jornalistas visitan-tes dos morros do Rio de Janeiro nas primeirasdcadas do sculo XX tambm se portam, tal comoEuclides de Cunha, como testemunhas. Espantam-se no s com o aspecto desorganizado do espaofsico nas encostas ocupadas, mas tambm com amisria, a insalubridade e a resistncia de seusmoradores. Luiz Edmundo (1938, p. 255) chega aconvidar o leitor para a nossa peregrinao pelafavela angustiosa.

    Na verdade, era como se fossem dois mun-dos, e a dualidade presente na oposio litoralversus serto do discurso euclidiano transparecenessas primeiras imagens e representaes sob aforma da oposio cidadeversus favela. A ima-gem matriz da favela estava, portanto, construda edada a partir do olhar arguto e curioso do jornalis-ta/ observador. Um outro mundo, muito maisprximo da roa, do serto, longe da cidade,23aonde s se poderia chegar atravs da ponteconstruda pelo reprter ou cronista levando oleitor at o alto do morro que ele, membro daclasse mdia, no ousava subir. Naquela curiosavila de misria indolente (Rio, 1911, p. 54), aorganizao do espao era diferente da dos bairrosdo Rio: ruas estreitas, caminhos curtos para casi-nhotos oscilantes, trepados uns por cima dosoutros (idem, p. 55). As habitaes, todas feitassobre o cho, sem importar as depresses doterreno, com caixes de madeira, flhas-de-flan-dres, taquaras (idem, ibidem), testemunhavam oestado de misria da populao, que aproveitavaos restos da cidade a madeira dos caixotes quetransportavam a banha ou o bacalhau, o vasilhame

    servido e assim por diante.Comeava a se impor a idia da favela noapenas como espao inusitado, desordenado eimprovisado, mas tambm como reduto da pobre-za extrema, onde vivem mendigos [...], capoeiras,malandros, vagabundos de toda sorte, mulheressem arrimo de parentes, velhos dos que j nopodem mais trabalhar, crianas, enjeitados emmeio a gente vlida [...], sem ajuda de trabalho,

    verdadeiros desprezados da sorte [...] (Edmundo,1938, vol. 2, p. 252). Um universo extico em meioa uma pobreza originalmente concentrada no cen-

    tro da cidade, em cortios e outras modalidades dehabitaes coletivas,24 prolongava-se agora morroacima, ameaando o restante da cidade.

    Estava descoberta a favela... e lanadas asbases necessrias para a sua transformao emproblema. Observadores qualificados haviam dadoseu testemunho, registrado e divulgado as primei-ras evidncias de um novo fenmeno.

    A transformao da favela emproblema

    Data do incio do sculo no apenas a desco-berta da favela, mas tambm a sua transformaoem problema. Aos escritos dos jornalistas junta-sea voz de mdicos e engenheiros preocupados como futuro da cidade e de sua populao.25 Surge odebate em torno do que fazer com a favela, e j nadcada de 20 assistimos primeira grande campa-nha contra essa lepra da esthetica.26 Em 1930, oplano do urbanista francs Alfred Agache, voltadopara a remodelao e embelezamento do Rio deJaneiro, denuncia o perigo representado pela per-manncia da favela. Em 1937 oCdigo de obrasprobe a criao de novas favelas, mas pela primei-ra vez reconhece a sua existncia, dispondo-se aadministrar e controlar seu crescimento.

    Voltemos outra vez ao incio do sculo. Aquesto da habitao popular torna-se central nadiscusso sobre o futuro da capital da Repblica,sustentada fortemente por um discurso mdico-higienista endossado tambm pelos engenheiros.O perodo 1890-1906 corresponde emergnciada crise de moradia, quando a populao do Rio deJaneiro cresce taxa geomtrica anual de 2,84%,

    enquanto as construes prediais expandem-se3,4% e os domiclios, apenas 1%. O resultado dodescompasso entre construes e crescimento po-pulacional reflete-se no aumento da densidadedomiciliar, que passa de 7,3 para 9,8 pessoas pormoradia (Ribeiro, 1997, p. 173).

    No ano de 1905, em meio Reforma PereiraPassos, o ministro da Justia e Negcios Interiores,dr. J.J. Seabra, criou uma comisso para dar pare-

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    9/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 13

    cer sobre o problema das habitaes populares,escolhendo para tratar do seu aspecto technico-sanitrio o engenheiro civil Everardo Backheu-

    ser, que j havia desempenhado as funes deengenheiro municipal. Na avaliao deste, as mildemolies para alargamento de umas tantas ruas,para abertura de algumas, para derrocar velhaschoas ruinosas [...], tudo isto veio dar molstiaendmica do Rio a m habitao um carteragudo, angustiante, formidvel. (Backheuser,1906, pp. 3-4).

    So, sobretudo, as habitaes coletivas quechamam a ateno de Backheuser, conhecedorque era da legislao e da experincia internacio-nal em matria de habitao.27 Preocupado com ainsalubridade, as epidemias e o contgio, ele exa-mina detalhadamente cortios, casas de cmodos,avenidas, estalagens, albergues e hospedarias,atentando para as diferentes legislaes que regu-lavam a construo e o uso desses vrios tipos demoradia no Brasil.28

    Mesmo ocupando ainda um lugar menor napaisagem da cidade, a favela no escapa ao olhoclnico do engenheiro/ observador, merecendouma meno especfica em seu relatrio pioneiro,publicado em 1906 pela Imprensa Nacional. Areferncia, mais uma vez, ao morro da Favella,29que se destaca pela originalidade e pelo inespera-do (Backheuser, 1906, p. 111). Trs fotos ajudamo leitor a visualizar a favela de longe, em visopanormica, e de perto, em escala menor, ondevemos seus casebres e habitantes, estes como queposando para o fotgrafo em frente s suas casas.S a Villa Ruy Barbosa, modelo de vila operriaquela poca, tem direito a quatro fotos, em vez detrs.

    Nesse documento indito, ilustrado asfotos mais conhecidas do morro da Favella so de

    Malta e datam dos anos 192030

    , fala-se emprimeiro lugar do aspecto fsico do aglomerado edos seus casebres:

    O morro da Favella ngreme e escarpado; as suasencostas em ribanceiras marchetam-se, porm, depequenos casebres sem hygiene, sem luz, semnada. Imagine-se, de facto, casas (!) to altas comoum homem, de cho batido, tendo para paredes

    tranados de ripas, tomadas as malhas com por-es de barro a sopapo, latas de kerosene abertase juxtapondo-se tboas de caixes; tendo para

    telhado essa mesma mixtura de materiais presos ossatura da coberta por blocos de pedras de modoa que os ventos no as descubram; divises inter-nas mal acabadas, como que paradas a meio como propsito nico de subdividir o solo para auferirproventos maiores. isto pllida ida do que se- jam estas furnas onde, ao mais completo despren-dimento por comesinhas noes de asseio, se alliauma falta de gua, quasi absoluta, mesmo parabeber e cosinhar. (Backheuser, 1906, p. 111)

    Alm da denncia relativa s precarssimascondies de habitabilidade, o documento refere-se populao atrada pelo morro:

    Para alli vo os mais pobres, os mais necessitados,aqueles que, pagando duramente alguns palmosde terreno, adquirem o direito de escavar asencostas do morro e fincar com quatro moires osquatro pilares do seu palacete. Os casebres espa-lham-se por todo o morro; mais unidos na base,espaam-se em se subindo pela rua (!) da Igreja oupela rua (!) do Mirante, euphemismos pelos quaesse do a conhecer uns caminhos estreitos e sinu-osos que do difcil accesso chapada do mor-ro.[...] Alli no moram apenas os desordeiros e osfacinoras como a legenda (que j tem a Favella)espalhou; alli moram tambm operrios laborio-sos que a falta ou a carestia dos comodos atira paraesses logares altos, onde se gosa de uma baratezarelativa e de uma suave virao que sopra continu-amente, dulcificando a rudeza da habitao.(idem, ibidem)

    A incluso da favela no rol das habitaes

    anti-higinicas, sobre as quais urgia uma interven-o, fora portanto sinalizada. E o poder municipal,com seu mpeto reformador, j estava de fatoprestes a intervir. Como escreve Backheuser: Oillustre doutor Passos, activo e intelligente prefeitoda cidade, j tem suas vistas de arguto administra-dor voltadas para a Favella e em breve providnci-as sero dadas, de accordo com as leis municipaes,para acabar com esses casebres. (idem, ibidem).

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    10/30

    14 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    A problematizaco da favela, ocorridaquando o processo de favelizao ainda no sehavia generalizado no Rio de Janeiro, contou com

    o forte respaldo do saber mdico, em um prolon-gamento do diagnstico feito ao cortio e pobre-za, apoiando-se igualmente na engenharia refor-mista, da qual Everardo Backheuser se fizera umbom representante. Devemos lembrar que nessapoca tais profissionais, portadores de uma con-cepo positivista da cincia, no se preocupavamapenas com problemas de ordem tcnica, maseram tambm atrados pelo desejo de entender e,sobretudo, explicar os problemas sociais. Eramportadores da vocao altrusta de servir ao desen-volvimento material do pas e conduzi-lo rumo ordem e progresso e modernizao.31 Desde oImprio, mdicos e engenheiros j exerciam im-portante papel na poltica municipal: o Cdigo dePosturas Municipais do Rio de Janeiro recebeusugestes contidas em relatrios da Comisso deSalubridade da Sociedade de Medicina e Cirurgia;em 1880 foi fundado o Clube de Engenharia, deonde saram tanto nomes para compor os quadrosdo funcionalismo, como propostas para solucionaros problemas de urbanizao da cidade;32 e napassagem do sculo foi instituda uma Comisso deSaneamento composta por engenheiros e mdicos.A partir da Repblica, engenheiros e mdicos (emmenor nmero) governaram a capital...33

    Essas categorias sociais tinham a cidade doRio de Janeiro como espao privilegiado da repre-sentao de um projeto nacional. Tinham tambma firme disposio em ultrapassar as fronteirasinternas de seus campos profissionais e dirigir-seao conjunto da sociedade, visando persuad-la atomar como legtimos e necessrios os princpiospor eles idealizados como fundamentais para aconstituio de uma sociedade moderna (Hersch-

    mann, Kropf e Nunes, 1996, pp. 8-9). Acreditavam,sobretudo os engenheiros, ser urgente e indispen-svel para a soluo dos problemas da cidade umaadministrao competente, imune s injunespolticas, baseada no princpio da submisso dapoltica tcnica (Kropf, 1996, p. 148).

    Foi certamente partilhando desses princpiosque a medicina e a engenharia problematizaram afavela. To logo se passou da Favella s favelas, foi

    feito o diagnstico. Os mdicos higienistas, comseus estudos sobre os agentes causadores dasepidemias, em suas suposies sobre a contamina-

    o do meio urbano pelos miasmas, viam a cidadedo Rio de Janeiro como um corpo urbano34 queapresentava deficincias e necessitava de certasintervenes. Seguiu-se, naturalmente, a leitura dafavela como doena, molstia contagiosa, umapatologia social que precisava ser combatida. Ashabitaes clulas do corpo urbano deveri-am ser saudveis, sujeitando-se rigorosamente sregras da higiene, recebendo o ar e a luz indispen-sveis sua salubridade, do mesmo modo que asclulas do corpo humano tiram oxignio pelocontato dos vasos do sistema arterial (Agache,1930).

    Os engenheiros, concordando com os mdi-cos quanto ao meio ser a fonte direta de males aoestado fsico e moral dos homens, trouxeram assolues, passando a simbolizar, sobretudo osengenheiros sanitrios, os mdicos da cidade. Comas suas atenes voltadas para a regularizao,localizando de forma precisa e cientfica as causasdos principais problemas, preocupavam-se com osmelhoramentos que poderiam garantir o bom fun-cionamento da cidade. Manifestao visvel dotodo social, a cidade era recorrentemente concebi-da como uma mquina, um mecanismo cujasengrenagens deveriam ser dispostas e manipula-das devidamente sob a mesma direo reguladora(Kropf, 1996, p. 108). Acabar com as favelas seria,ento, uma conseqncia natural desse tipo depensamento: era necessrio resolver os males doorganismo enfermo a cidade imprimindo-lheuma direo ordenadora.

    A articulao e sntese desses dois discursos bem ilustrada pelos escritos de Joo Augusto deMattos Pimenta, rotariano ilustre e viajado, ora

    apresentado como mdico sanitarista, ora tidocomo engenheiro e jornalista, personagem impor-tante do meio empresarial carioca no final dos anos20, porm pouco citado e mal conhecido pelosautores contemporneos.35 Em sua ficha junto aoRotary Club,36 a que se filiou em 1925, consta quetrabalhava em escritrio prprio, exercendo comoprofisso a corretagem de imveis. Esta ocupao confirmada pelo D icionrio histrico-biogrfico

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    11/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 15

    brasileiro (FGV/ CPDOC, 1984), onde o persona-gem aparece sobretudo como um jornalista envol-vido com as revolues de 1930 e de 1932.

    Para os fins deste artigo interessa apenasdestacar o papel e a ao de Mattos Pimenta nosanos 1926-1927, quando empreendeu junto im-prensa carioca e aos poderes pblicos a primeiragrande campanha contra a favela em nome doprojeto maior de remodelao do Rio de Janeiro.37Mais que qualquer outro personagem do seu tem-po, Mattos Pimenta sinalizou a transformao dafavela em problema com uma denncia que com-binava o discurso mdico-higienista com o refor-mismo progressista e o pensamento urbanstico emascenso.

    O carro-chefe da bem-estruturada campanhaque durante dois anos ocupou os principais jornaisda cidade foi a imagem da favela como lepra daesthetica. Excelente analogia para expressar esintetizar o tipo de denncia da pobreza realizadapor Mattos Pimenta. Suas frases enfticas merecemdestaque, assim como o paralelo com a lepra,considerada a doena dos malditos na Idade Mdiae vista, nos anos 20, como a pior das doenasexistentes:38

    [...] antes mesmo de sua adopo [do plano deremodelamento do Rio de Janeiro] mister seponha um paradeiro immediato, se levante umabarreira prophylactica contra a infestao avassa-ladora das lindas montanhas do Rio de Janeiropelo flagello das favellas lepra da esthetica,que surgiu ali no morro, entre a Estrada de FerroCentral do Brasil e a Avenida do Ces do Porto efoi se derramando por toda a parte, enchendo desujeira e de misria preferentemente os bairrosmais novos e onde a natureza foi mais prodiga debellezas. (Mattos Pimenta, 1926)39

    Mattos Pimenta projeta na favela suas preo-cupaes de reformista, de sanitarista, mas tam-bm de algum que est preocupado com o ladoesttico e arquitetnico da cidade, com esta obra-prima da Natureza que o Rio de Janeiro [...].Outros j haviam denunciado a favela como espa-o anti-higinico, insalubre, local de concentraodos pobres perigosos, rea sem lei. Mattos Pimenta

    retoma esse discurso mas insiste sobre uma novabandeira, a esttica. Estava nascendo o urbanismo.

    Desprovidas de qualquer espcie de policiamen-to, construdas livremente de latas e frangalhos emterrenos gratuitos do Patrimnio Nacional, liberta-das de todos os impostos, alheias a toda acofiscal, so excellente estmulo indolncia, attra-ente chamariz de vagabundos, reducto de capoei-ras, valhacoito de larapios que levam a inseguran-a e a intranquilidade aos quatro cantos da cidadepela multiplicao dos assaltos e dos furtos. (Mat-tos Pimenta, 1926)

    Como assinala Pechman (1996, p. 354), aolongo da dcada de 20 uma nova concepourbanstica comea a ganhar expresso diante damera ao pontual higienista e/ ou de embeleza-mento. Os problemas urbanos moradia, sanea-mento, circulao vo cedendo lugar a umaconcepo mais sistmica de cidade, que emergecomo objeto de uma nova disciplina cientfica: ourbanismo. Mattos Pimenta havia passado vriosanos na Europa, particularmente na Frana, acom-panhando o desenvolvimento da cincia urbana,conhecendo bem o seu prestgio nos meios polti-cos e os resultados estticos positivos de reformascomo a haussmaniana de Paris.40 No de seestranhar, portanto, que enfatizasse devermos de-fender o Rio de Janeiro, cuidar de sua esthetica,sua hygiene e sua disciplina social com o mesmoesmero com que Deus cuidou dos seus encan-tos.41

    A campanha contra a favela, promovida nointerior de uma luta mais abrangente pela remode-lao do Rio de Janeiro, parece ter sido programa-da e conduzida com sucesso, respaldada pelo

    Rotary Club do Rio de Janeiro, uma das associaesprofissionais da elite do empresariado carioca. Umfilme de dez minutos, realizado por Mattos Pimentae patrocinado pelo prprio Rotary,42 A s favellas,mostrava o espetculo dantesco que presenciei naperambulao pelas novas favellas do Rio.43 Mat-tos Pimenta sabia que, na poca, pouqussimoseram aqueles que subiam os morros e tinham aoportunidade de ver de perto e de dentro

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    12/30

    16 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    uma favela. O dr. Castro Barreto, mdico sanitaristae tambm rotariano, foi o primeiro a fornecer aMattos Pimenta fotos das favelas, sobretudo de

    crianas.44 Mas um filme, bem divulgado, deveriacausar, com suas imagens, impacto muito maior junto opinio pblica, sobretudo em respaldo auma grande campanha.

    O filme foi projetado vrias vezes entre osanos 1926 e 1927, exibido at mesmo para o entopresidente da Repblica, dr. Washington Luiz, queteria expressado o desejo de v-lo.45 Nada sabe-mos do seu impacto mas podemos supor quetenha dado um expressivo suporte cruzadacontra a vergonha infamante das favelas.46 Certa-mente era parte da estratgia de Mattos Pimentaagir em vrias frentes, e a imagem cinematogrficadeve ter sido uma forte aliada.47

    Tendo conseguido respaldo da imprensa paraa divulgao de suas idias, Mattos Pimenta partepara obter o apoio do diretor de Sade,48 doprefeito e do chefe de polcia. Manda imprimir umfolheto para distribuio gratuita intitulado Casaspopulares, no qual divulga uma proposta de solu-o para o problema das favelas, apontando algu-mas medidas de salvao pblica,49dentre elas:sustar imediatamente a construo de novos case-bres, evitando assim o progresso das atuais favelas ea criao de novas; estabelecer como principalprovidncia neste sentido a fiscalizao por partedos funcionrios da Prefeitura e do DepartamentoNacional da Sade Pblica, impedindo as constru-es clandestinas; iniciar a construo de casas paraproletrios e de asilos e colnias para invlidos,velhos e crianas desamparadas.

    O projeto de casas populares, apresentadoem detalhe, levava a marca da familiaridade do seuautor com o mercado imobilirio.50 Um contratode abertura de crdito com garantia hipotecria e

    obrigao de construir casas populares deveria serassinado pelo Banco do Brasil e empresas constru-toras. O programa no deveria implicar nus parao Tesouro nem descontos em folha de pagamento.A idia era tornar os indivduos proprietrios deuma habitao pelo mesmo valor de um aluguelmensal. Mattos Pimenta chegou a desenhar a plan-ta dos prdios de seis andares, cada um com os 120apartamentos que imaginou: as grandes constru-

    es com apartamentos e seu systema de vendaspodem ser applicadas no Rio com a vantgem deserem mais economicas e exigirem menores areas

    relativas que as habitaes isoladas.51 Tudo se-gundo os modernos princpios da higiene e doconforto.

    Tal projeto almejava, assim, a substituiodas favelas por conjuntos de prdios. Segundo seuautor, seria possvel, em quinze anos, a juros de 9%ao ano, oferecer aos moradores dos casebres dasfavelas uma construo de cimento armado, istoporque so raros, rarissimos, os casebres improvi-sados e ignbeis onde no se paga aluguel.52

    Minha insistncia nesse autor deve-se aopapel pioneiro de suas idias em relao ao queveio depois Plano Agache, Cdigo de Obras,BNH e ao desejo de v-lo devidamente reco-nhecido como um importante ator social na hist-ria da favela53 e na histria da construo de umpensamento sobre ela.

    Mas retomemos o fio da meada, ou seja, opercurso que estamos tentando reconstituir. Nessatrajetria, o prximo personagem o conhecidourbanista francs Alfred Agache, chegado ao Riode Janeiro pela primeira vez em 1927, a conviteoficial do ento prefeito Antonio Prado Junior. Suaescolha como responsvel pelo Plano de Remode-lao da Cidade do Rio de Janeiro causou inme-ros conflitos, relatados e reconstitudos por vriosautores,54 ficando a elaborao do Plano marcadapor desentendimentos e disputas que a Revoluode 1930 se encarregou de arquivar.

    No entanto, esse urbanista nos deixou umvolumoso e valiosssimo documento, uma formi-dvel sntese [...] que comea com o estudo daGeografia e da Histria, evolui para a anlise dosindicadores sociais e econmicos, passa pelo estu-do das formas e traados urbanos, para, enfim, dar

    origem tanto s intervenes de carter fsicocomo s propostas de legislao que deveropresidir remodelao, o embelezamento e expanso da cidade (Pereira, 1996, p. 369). Pararealizar tal empreendimento, Agache e sua equipebasearam-se em trabalhos j existentes. Teriamconsultado nada menos que 63 trabalhos, livros,relatrios e revistas sobre todos os assuntos daobra, alm de dezenas de cartas, mapas, fotogra-

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    13/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 17

    fias e mais de 30 plantas, projetos e desenhosdiversos (Albuquerque Filho,apud Silva, 1995). Olivro no apresenta, porm, a bibliografia utiliza-

    da, como hoje de praxe, e nem sempre clara aorigem de suas fontes, sobretudo quanto s esta-tsticas. Alm disso, Agache foi bastante vago emseus agradecimentos:

    Desejo enderear um agradecimento collectivo atodos os technicos ou artistas, jornalistas ou sim-ples enthusiastas da esthetica, que me participa-ram as suas suggestes sobre as transformaesdesejveis ou possveis a serem introduzidas nacidade. Os animadores, porm, so demasiada-mente numerosos para que eu possa nomealosaqui individualmente. 55

    Reconheceu, no entanto, que o plano propos-to e por ele assinado uma obra de conjuncto e decollaborao [...] se trata, no de inventar peas masde condensar, reunir, em nico e methodico bloco,o apanhado de idas suggeridas [...] e que vs, meussenhores, reconhecereis como de vossa lavra, con-cretisadas em uma s obra, pelo desenho ou pelapalavra escripta (Agache, 1930, p. 21).

    A favela no passou desapercebida ao olharestrangeiro de Agache. Desde logo chamou a suaateno, aparecendo no ttulo de sua terceiraconferncia, Cidades-jardins e favellas. Muitoembora preocupado com o conjunto da cidade,chamada por ele de Senhorita Carioca, o urbanis-ta coloca em seu livro a fotografia de uma favellaem meio a outras de bairros da cidade, escrevesobre o morro de Santo Antnio (Agache, 1930, pp.176-177) e, finalmente, trata do problema dasfavelas e de suas possveis solues (idem, pp.189-190).

    Na leitura de Agache se faz sentir a marca de

    Mattos Pimenta.56

    Tudo indica ter sido este ointrodutor do urbanista francs ao universo desco-nhecido das favelas. Uma foto de Malta publicadano livro de Zylberberg (1992, p. 32) registra umavisita realizada ao morro da Favella em 1927, ondeAgache aparece acompanhado por trs outros bemvestidos senhores. O engenheiro Godoy (1943)confirma sua visita ao morro da Favella na compa-nhia de Agache e Mattos Pimenta, de quem era

    companheiro de Rotary Club.57Talvez no seja exagero dizer que Mattos

    Pimenta coloca na pena e na prancheta de Agache

    as suas idias, representaes e at mesmo propos-tas. Lembremos que a campanha em prol da estticaempreendida por aquele estava em pleno cursoquando o urbanista francs desembarcou em pla-gas cariocas. Os discursos so muito prximos,baseados nos mesmos parmetros higienistas eestticos. A imagem da lepra retomada por Aga-che. E o conceito moderno de urbanismo, com ahigiene por base e o embelezamento como fim, eracompartilhado pelos dois. A definio oferecida porAgache (1930, p. 190) ilustra essa proximidade:

    Construdas contra todos os preceitos da hygiene,sem canalisaes dagua, sem exgottos, sem servi-o de limpeza publica, sem ordem, com materialheteroclito, as favellas constituem um perigo per-manente dincendio e infeces epidemicas paratodos os bairros atravez dos quaes se infiltram. Asua lepra suja a vizinhana das praias e os bairrosmais graciosamente dotados pela natureza, despeos morros do seu enfeite verdejante e corroe at asmargens da matta na encosta das serras.

    Para Agache, a favela tambm uma espciede cidade-satellite de formao espontnea, queescolheu, de preferencia, o alto dos morros, com-posta, porm, de uma populao meio nomada,avssa a toda e qualquer regra de hygiene (idem,p. 20). Ele no parece se satisfazer com a simplesconstatao e denncia da favela como um malque contagia. Observamos em seu trabalho umapreocupao de entender a causa do fenmeno:

    Pde-se dizer que so o resultado de certas dispo-sies nos regulamentos de construco e da

    indifferena manifestada at hoje pelos poderespblicos, relativamente as habitaes da popula-o pobre. Perante as difficuldades accumuladaspara obter-se uma auctorisao de edificar requerimentos e formalidades s alcanam o seudestino depois de muito tempo e taxas onerosas o operario pobre fica descorooado e reune-seaos sem tecto para levantar uma choupana comlatas de kerozene e caixas de emballagem nas

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    14/30

    18 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    vertentes dos morros proximos a cidade e inoccu-pados, onde no se lhes reclamam impostos nemauctorisaes. (idem, p. 189)

    Agache parece ser um dos primeiros a perce-ber que elementos exteriores pobreza tambmatuavam como explicativos da ida para a favela,assim como os trmites burocrticos vinculados atividade de construo e a prpria atitude dospoderes pblicos e da administrao municipalvis--vis a habitao popular e os pobres. A esseentendimento ainda se vem juntar a sua percepodo social, significando um avano em relao aosobservadores que o antecederam. Agache chega adescrever o quadro social em uma linguagemquase sociolgica:

    Pouco a pouco surjem casinhas pertencentes auma populao pobre e heterogenea, nasce umprincipio de organizao social, assiste-se ao co-meo do sentimento da propriedade territorial.Familias inteiras vivem ao lado uma da outra,criam-se laos de vizinhana, estabelecem-se cos-tumes, desenvolvem-se pequenos commercios:armazens, botequins, alfaiates, etc. (idem, ibidem)

    O mercado habitacional existente na favelatambm percebido e descrito:

    Alguns delles que fizeram bons negocios, melho-ram a sua habitao, alugam-na at, e estabele-cem-se noutra parte, e eis pequenos proprietarioscapitalistas que se installaram repentinamente emterrenos que no lhes pertenciam, os quaes ficari-am surprehendidos se se lhes demonstrasse queno podem, em caso nenhum, reivindicar direitosde possesso. (idem, ibidem)

    Endossando a idia de que a favela represen-tava um srio problema, no s do ponto de vistada ordem social e da segurana, como sob o pontode vista da hygiene geral da cidade, sem falar daesthetica (idem, p. 190), Agache vai propor noPlano de Extenso, Remodelao e Embelezamentoque sejam construdas habitaes adequadas suapopulao: A medida que as villas-jardins operari-as sero edificadas em obedincia aos dados do

    plano regulador, ser conveniente reservar umcerto nmero de habitaes simples e economicas,porm hygienicas e praticas, para a transferencia

    dos habitantes da favella. O urbanista temia quese fossem simplesmente expulsos, se installariamalhures nas mesmas condies (idem, ibidem).

    Com efeito, o diagnstico e as propostas deMattos Pimenta no estavam nada distantes do quefoi recomendado pelo especialista francs ao pre-feito da capital: [...] o problema depende essenci-almente de uma srie de medidas legislativas soci-aes e da realizao, com o auxlio dos poderespblicos, de um programma de construco deimmoveis salubres e a preo mdico (Agache,1930, p. 190), uma vez que destruir barraces semoferecer nada em troca seria apenas transferir oproblema de lugar.58 Ainda segundo Agache, seriarecomendvel que os poderes pblicos se esfor-assem afim de impedir toda a construo estavele difinitiva nas favellas (idem, ibidem).59

    Favela: um problema a seradministrado e controlado

    Continuemos ento no percurso que poucoa pouco foi levando construo de um conhe-cimento sobre a favela carioca. Estamos ainda nomomento anterior s cincias sociais, em que osregistros sobre a favela se acumulam, vindos deprofissionais de formao variada, com o objeti-vo de denunciar e alimentar um debate sobre oque fazer com esse espao e seus habitantes. Apesquisa, sob a forma que conhecemos, nemhavia comeado a se desenvolver no Brasil. Oque fazia cada especialista, em sua prtica deobservao, era uma leitura da realidade luz doseu campo disciplinar e das representaes sobrea pobreza com as quais comungava. As favelas

    eram visitadas esporadicamente, observadas defora, na maioria das vezes com um olhar conde-nador.60 Seus moradores s apareciam em fotos,inexistindo como informantes nos textos que nosforam legados.

    No final dos anos 30, em meio ao debatecontinuado sobre o que fazer com a favela,61 epara que pudesse ser condenada oficialmente, asua existncia finalmente confirmada. OCdigo

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    15/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 19

    de obras publicado em 1937 reconhece sua exis-tncia quando introduz no Captulo XV, referente extino das habitaes anti-higinicas, a Seo II

    intitulada Favelas (p. 107).O Cdigo claro em suas intenes. Segue

    abaixo o Artigo 349 e alguns de seus pargrafos:

    Art. 349 A formao de favelas, isto , deconglomerados de dois ou mais casebres regular-mente dispostos ou em desordem, construdoscom materiais improvisados e em desacrdo comas disposies deste decreto, no ser absoluta-mente permitida.# 1 Nas favelas existentes absolutamente proibi-do levantar ou construir novos casebres, executarqualquer obra nos que existem ou fazer qualquerconstruo.# 2 A Prefeitura providenciar por intermdio dasDelegacias Fiscais, da Diretoria de Engenharia epor todos os meios ao seu alcance para impedir aformao de novas favelas ou para a ampliao eexecuo de qualquer obra nas existentes, man-dando proceder sumriamente demolio dosnovos casebres, daqueles em que for realizadaqualquer obra e de qualquer construo que sejafeita nas favelas. [...]# 7 Quando a Prefeitura verificar que existeexplorao de favela pela cobrana de aluguel decasebres ou pelo arrendamento ou aluguel dosolo, as multas sero aplicadas em dbro [...]# 8 A construo ou armao de casebres destina-dos a habitao, nos terrenos, ptios ou quintaisdos prdios, fica sujeita s disposies deste artigo.# 9 A Prefeitura providenciar como estabelece oTtulo IV do Captulo XIV deste decreto a extinodas favelas e a formao, para substitu-las, dencleos de habitao de tipo mnimo. [...]

    No se trata de discutir oCdigo em si,62

    masto-somente de chamar a ateno para algunspontos sublinhados em vrios artigos, pontos quesinalizam para um conhecimento bem precisoacerca da favela:

    a) nessa primeira definio oficial, dois oumais casebres so suficientes para formar umafavela (como veremos mais adiante, a definio doscensos ir considerar um mnimo de 50 barracos); o

    conglomerado pode ou no ter seus casebres dis-postos em ordem; a construo precria; esse tipode aglomerado se desenvolve fora da lei (em

    desacordo com as disposies deste decreto);b) as favelas existentes crescem pela constru-

    o de novos casebres ou pela expanso dosmesmos;

    c) o aluguel na favela importante, manifes-tando-se sob a forma de aluguel de casebres ou dearrendamento do solo;

    d) a favela apresenta variaes: a construode casebres em terrenos, ptios ou quintais deprdios.

    Desvendada e definida na sua diversidadepelo poder pblico, a favela qualificava-se comoobjeto de interveno. Sabemos, no entanto, quemuito embora oCdigo de obras de 1937 a conde-nasse atribuindo Prefeitura a responsabilidadede providenciar a extino das favelas e a criao dencleos de habitao de tipo mnimo para substi-tu-las , pouco de fato ocorreu63 at que oprefeito Henrique Dodsworth lanasse o seu Pro-grama de Parques Proletrios em 1942. No preten-do reconstituir aqui a histria da interveno gover-namental na favela. Vrios autores j o fizeram,consagrando ateno especial a esse perodo (Pa-risse, 1969a; Leeds e Leeds, 1978; Vallaet al., 1986).O que me interessa assinalar que a favela, uma vezoficialmente reconhecida, passa gradativamente aser vista como um problema a ser administrado. Oprprio Cdigo, que pode ser lido como a primeirapoltica formal de governo relativa favela, apre-senta medidas puramente administrativas.64

    Foi certamente a necessidade de administrara favela e os seus pobres que despertou o interesseem conhec-la e conhec-los mais de perto. Parabem administrar e bem controlar necessrioquantificar e dimensionar o problema ou a ques-

    to. A Inglaterra e a Frana haviam assistido a umenorme desenvolvimento das estatsticas desde osculo XIX, e na rea da assistncia pobreza, nocaso ingls atravs das N ew Poor Laws, os primei-ros inquiries j demonstravam a utilidade da coletasistemtica de informaes.65 Um conhecimentoque pudesse ir alm de uma viso genrica eimpressionista e permitisse identificar indivduos esuas respectivas famlias em suas moradias passou

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    16/30

    20 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    a ser considerado fundamental. Dados que possi-bilitassem diferenciar situaes passaram a servistos como necessrios. As estimativas, apenas do

    que se dispunha na poca, chegando a falar em200 mil almas (Agache, 1930),66 deveriam sersubstitudas por nmeros exatos. Em 1941, duranteo Primeiro Congresso Brasileiro de Urbanismo, jse pedia um estudo completo das Favelas, atravsdo qual possamos conhecer os aspectos gerais eparticulares do problema. Os autores do docu-mento, mais uma vez rotarianos, Mariano Filho, oengenheiro Alberto Pires Amarante e o arquitetoAmerico Campelo, listaram as informaes neces-srias para orientar a ao: (a) nmero exato dehabitaes que compem cada ncleo; (b) carterda formao, sua densidade; (c) nmero de habi-tantes; (d) carter especfico das habitaes; (e)caracterizao urbanstica das terras ocupadas; (f)nmero de habitantes, ocupao dos homens e dasmulheres; (g) nmero de crianas em idade esco-lar; (h) condies sanitrias gerais; (i) extenso darea ocupada; (j) dossi fotogrfico; (k) possibili-dade da urbanizao de cada ncleo; (l) nome doproprietrio das terras ocupadas.

    Estava aberto o caminho para um novo tipode conhecimento sobre a favela e seus moradores. disto que trataremos a seguir.

    Conhecer para melhor administrar econtrolar a favela e seus moradores

    Os dois primeiros estudos realizados sobre asfavelas do Rio de Janeiro foram o relatrio domdico Victor Tavares de Moura, publicado parcial-mente em 1943 e intituladoFavelas do DistritoFederal, e o trabalho de concluso de curso daassistente social Maria Hortncia do Nascimento eSilva, que ligeiramente anterior, publicado em

    livro no ano de 1942 com o ttulo Impresses de umaassistente social sobre o trabalho na favela. Ambossinalizavam claramente os novos tempos, quando jse reconhecia a necessidade de informaes con-cretas para gerir a pobreza e seus espaos, vindo oprimeiro a servir de base ao do prefeito Henri-que Dodsworth e poltica de Parques Proletrios.

    Originrio de Pernambuco, concunhado deAgamenon Magalhaes, Victor Tavares de Moura67

    dirigia no Rio de Janeiro o Albergue da BoaVontade em 1940, quando apresentou ao entosecretrio-geral de Sade e Assistncia do Distrito

    Federal, dr. Jesuino de Albuquerque, seu Esboode um plano para o estudo e soluo do problemadas favelas no Rio de Janeiro. Foi este documento,onde o autor diz que fez estudos e observaespessoais [...] da vitoriosa experincia de Pernambu-co no combate aos mocambos (p. 1), que deuorigem aos trabalhos de uma comisso queestu-dou sade e saneamento a partir de um censosistemtico em 14 favelas (Leeds e Leeds, 1978,pp. 193-194).68 O mdico percebia claramente aimportncia de conhecer a favela antes de intervirsobre a mesma:

    Da mincia e do critrio com que fr preenchidaa ficha do censo depender em grande parte oxito da campanha, pois smente com informa-es reais e pormenorizadas que se pode esco-lher o caminho a seguir para a soluo de umproblema cuja complexidade no necessito ressal-tar [...] (Moura,apud Parisse, 1969a, p. 63)

    Nesse relatrio, dirigido ao secretrio de Sa-de e Assistncia, aparece pela primeira vez clara-mente expressa a complexidade da favela. O autorapresenta um mapa dos terrenos ocupados e chamaa ateno para a diversidade dosstatus de ocupa-o. As situaes apontadas desmistificam a viso,hoje generaliz ada, de que a origem da favela sempre a invaso de terrenos de propriedade priva-da ou pblica. Victor Tavares de Moura refere-se afavelas que surgiram em terrenos particulares com aautorizao e mesmo o auxlio dos proprietrios,para os quais a construo de barracos nos lotes eraum meio de no pagar impostos e obter uma renda;favelas que se levantaram em terrenos pertencentes

    Prefeitura e prpria Unio; favelas implantadasem reas onde de um lado est um terreno daPrefeitura e, de outro, um terreno de particular. Oautor chama a ateno tambm para o aluguel,dando o exemplo do morro da Favella, onde, nolado que pertence ao particular, todo o moradorpaga o aluguel do cho ou do barraco, e se assimno o fizer, ser despejado, quase sempre comviolncia (Moura,apud Parisse, 1969a, p. 64).

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    17/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 21

    A necessidade de reunir informaes bsicassobre o universo das favelas que pudessem emba-sar a formulao de uma poltica de atuao nesse

    segmento parece ter ensejado a proposta de VictorTavares de Moura de realizao de um censoprvio das favelas, em que fosse especificada a sualocalizao, com a discriminao do bairro, logra-douro, natureza do terreno, propriedade do terre-no e estado de conservao dos barracos. O censodeveria levantar tambm informaes sobre osmoradores

    [...] quanto nacionalidade, idade, cr, sexo,profisso, instruo, aptides auxiliares, vida con- jugal e religiosa, frequncia de escola, emprgo,atividades, renda, tipos de salrio, modo de paga-mento (efetivo, contratado ou diarista), se propri-etrio do barraco, quanto lhe custou, se paga froou impostos, se paga aluguel e quanto paga.(Moura, apud Parisse, 1969a, p. 62)

    Os resultados obtidos nesse levantamento nmeros que tanta sensao causaram na imprensacarioca em 194169 no puderam ser encontradosem nenhuma das publicaes consultadas. O im-portante aqui chamar a ateno para a importn-cia atribuda, j na dcada de 1940, informaoprecisa, aos nmeros. Por outro lado, a especifica-o do que era preciso conhecer sobre cada favela ecada morador, a preocupao com o detalhe, tam-bm j sinalizavam um certo conhecimento prvioda realidade sobre a qual se desejava investigar.

    A tese de Maria Hortncia do Nascimento eSilva (1942) representa outro marco importantedesses primrdios da investigao em favelas.Lembremos que no governo Vargas a assistnciasocial aos pobres deixa de ter um carter exclusiva-mente privado e religioso para se tornar tambm

    uma funo do Estado. A Prefeitura do Rio deJaneiro, desde os anos 30, empregava assistentessociais, a maioria das quais egressas do InstitutoSocial, criado em 1937, hoje Departamento deServio Social da PUC-RJ. No seria exageradodizer que, de certo modo, as assistentes sociaisfuncionavam como a mo direita da administraomunicipal na gesto da pobreza: entre a proteosocial e o controle dos pobres.

    Assim, administrar a favela significava tam-bm pilotar, direcionar sua populao. A edu-cao70 dos pobres era a chave de entrada que

    justificava a presena desses agentes nos bairrosonde essa populao morava. Era necessrio edu-c-los, no apenas estimular bons hbitos como,igualmente, fornecer-lhes os elementos necessri-os sua promoo social.

    As assistentes sociais sabiam que era funda-mental conhecer a populao para realizar umtrabalho social eficaz.71

    A primeira vez que o Servio Social tentou resolvero problema do Largo da Memria foi em outubrode 1940. A assistente social da Prefeitura, formadapelo Instituto Social, D. Maria Luiza Fontes Ferrei-ra, que muito se interessava pela questo dasfavelas, pensou a construir um Centro Social quese instalaria num barraco, bem ao alcance dosfavelados. Para basear seu plano em dados con-cretos, realizou um minucioso recenseamento doshabitantes do Largo da Memria, auxiliada porfuncionrios da Prefeitura. (Silva, 1942, p. 43)

    Nesse mesmo Largo da Memria, favela des-montada72 pelo prefeito Henrique Dodsworth,Maria Hortncia realizou a investigao que deuorigem primeira tese73 sobre a favela carioca(Silva, 1942), primeiro estudo de caso de que setem notcia, muito embora no tenha sido feitodentro dos parmetros seguidos posteriormentepor socilogos e antroplogos. Como trabalho deconcluso de curso o texto surpreende, constituin-do hoje uma importante fonte para a reconstituiotanto da histria da favela como da histria dapesquisa sobre e na favela.74

    Dentre vrios aspectos interessantes, vale as-sinalar a natureza etnogrfica de algumas partes do

    texto: descrio realista (Silva, 1942, pp. 19-41) dafavela do Largo da Memria, na qual se incluemfiguras com plantas de diferentes tipos de barracos;apresentao de casos que a autora denominatipos curiosos, baseados em itinerrios de vida;citao de falas ouvidas e registradas de moradoreslocais.75 Tais informaes so complementadascom dados estatsticos obtidos na Prefeitura76 relati-vos a uma populao total de 1.619 indivduos.

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    18/30

    22 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    Tabelas simples mostram a distribuio da popula-o local por sexo, cor, estado civil, condies detrabalho, nacionalidade, naturalidade, idade, data

    de entrada da famlia na favela, salrios mensaisrecebidos e no menos de vinte profisses listadas.Alm disso, consta como anexo do livro um resumodas atividades do Servio Social no Largo da Mem-ria e a cpia da ficha utilizada na pesquisa e queserviu de base transferncia das famlias para oParque Proletrio da Gvea em 1942.

    Inovador para a poca, o texto oferece infor-maes inditas sobre o conjunto das favelas doento Distrito Federal. Encontramos ali: uma listadas 36 principais favelas existentes (Silva, 1942, pp.16-17); um esboo de tipologia que enumerafavelas de morro, favelas de terrenos planos, fave-las estabelecidas, favelas recentes, favelas em ter-reno municipal e favelas em terreno particular;uma classificao dos barracos em bons, maus epssimos.

    Outro aspecto que merece destaque, e deveser entendido como um sinal do seu tempo, anatureza moral do discurso de Maria Hortncia doNascimento e Silva sobre a pobreza e a favela.Muito embora acreditasse estar escrevendo a partirde sua observao e de um levantamento criteriosode informaes, as pginas do livro deixam perce-ber a afinao da autora com as representaes dapobreza tpicas de sua poca:

    No Rio, cidade de coloridos e galas exuberantes, aluz forte que ressalta a graa inconfundvel de umanatureza inigualvel faz da favela um grito aindamais dissonante, que se destaca na afinao mara-vilhosa de tanta riqueza e tanta graa. [...] Talvezseja por isso que nossas favelas paream maismiserveis e srdidas do que todas as outras. [...] uma pobreza tremenda que se abriga naqueles

    barracos remendados, um abandono assustadorque confrange o corao dos que penetram nestemundo parte, onde vivem os renegados da sorte.(Silva, 1942, pp. 7-8)

    Seus valores e preconceitos quanto aos po-bres tornam-se ainda mais evidentes quando dis-cute (captulo III) o problema da favela que urgepor uma soluo:77

    Filho de uma raa castigada, o nosso negro,malandro de hoje, traz sobre os ombros umaherana mrbida por demais pesada para que a

    sacuda sem auxlio, vivendo no mesmo ambientede misria e privaes; no sua culpa se antesdele os seus padeceram na senzala, e curaram suasmolstias com rezas e mandingas. [...] de espan-tar, portanto, que prefira sentar-se na soleira daporta, cantando, ou cismando, em vez de terenergia para vencer a inrcia que o prende, aindolncia que o domina, e resolutamente pr-sea trabalhar? [...] Para que ele o consiga, precisoantes de mais nada cur-lo, educ-lo, e, sobretu-do, dar-lhe uma casa onde o espere um mnimo deconforto indispensvel ao desenvolvimento nor-mal da vida. (Silva, 1942, pp. 62-63)

    Tudo indica que a prtica da assistncia soci-al, com suas regulares idas e vindas favela, maiorassiduidade e intimidade no contato com as famli-as, teria contribudo para o avano na descoberta dafavela durante a longa fase que precedeu o adventodas cincias sociais. As assistentes sociais, mais quequalquer outro agente, tinham entrada garantida nacasa dos pobres.78 No entanto, nem por isso conse-guiram desvencilhar-se de uma imagem negativa,cheia de clichs, que por muito tempo marcou amaneira de as elites nacionais conceberem a pobre-za e os pobres: pobreza igual a vadiagem, vcio,sujeira, preguia, carregando ainda a marca daescravido; pobre igual a negro e a malandro.79

    Um tipo de conhecimento mais cientficoainda estava por vir...

    A necessidade de informaesquantitativas qualificadas: osprimeiros censos de favela e o incioda produo das estatsticas oficiais.

    Data do final dos anos 40 o surgimento de umnovo tipo de conhecimento sobre a favela, destavez oriundo de rgos oficiais voltados para acoleta das informaes. Esse novo tipo de saber vaipossibilitar o redimensionamento do fenmenofavela, at ento entendido como um problema de

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    19/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 23

    sade pblica, de esttica urbana e/ ou de assistn-cia social.

    Muito embora o pas viesse realizando recen-

    seamentos gerais desde o final do sculo XIX, e oRio de Janeiro, na condio de capital federal,tivesse em sua Prefeitura um Departamento deGeografia e Estatstica, no existiam dados precisossobre esse universo to discutido das favelas. Osnmeros exatos eram desconhecidos, acumulan-do-se estimativas, na maioria das vezes de naturezacatastrfica. Ao que tudo indica, somente o levan-tamento cadastral realizado por ocasio dos recen-seamentos de 1920 e de 1940 e a Estatstica Predialdo Distrito Federal divulgaram alguns resultados,em carter preliminar, sobre o nmero de domic-lios e casas de negcio de algumas favelas (Guima-res, 1953).80

    Passados 50 anos do nascimento da primeirafavela que foi tomada a deciso de realizar umrecenseamento especfico sobre esse tipo de aglo-merado e seus habitantes. Seu carter de espaoprovisrio certamente contribura para que nolhe fosse dado qualquer destaque nos censosoficiais de 1920 e 1940. Lembremos que somenteem 1937, com oCdigo de obras, a favela passa aexistir oficialmente como parte do territrio doDistrito Federal.

    Muito embora houvesse uma demanda porinformaes precisas e um estudo completo dasfavelas,81 esta s foi atendida quando os poderespblicos entenderam a importncia e a necessida-de, para a administrao pblica, de dados confi-veis sobre esses aglomerados. Como diz claramen-te Alberto Passos Guimares (1953, p. 256), entoocupando o cargo de diretor da Diviso Tcnica doServio Nacional de Recenseamento:

    Sejam quais forem os rumos escolhidos para equa-

    cionar os problemas surgidos com a proliferaodos ncleos de favelados, o acerto das medidasque possam vir a ser postas em prtica dependerdo melhor conhecimento das caractersticas indi-viduais e sociais dessas populaes. Eis a razopor que o VI Recenseamento Geral do Brasiltomou a iniciativa de apurar, separadamente, osdados do Censo Demogrfico referentes s favelasdo Distrito Federal, oferecendo, assim, a todos os

    interessados, os elementos bsicos sobre aquelesaglomerados humanos.

    A Prefeitura do Rio de Janeiro, desejosa deextinguir as favelas ou pelo menos sustar o seudesenvolvimento no Distrito Federal,82 adiantou-se ao IBGE, mandando realizar, na gesto doprefeito general Angelo Mendes de Moraes,83 oprimeiro Censo das Favelas.84 Iniciado nas ltimassemanas de 1947 e terminado em fins de maro de1948, o censo foi executado pelo Departamento deGeografia e Estatstica da Prefeitura do DistritoFederal e publicado em 1949. A princpio foramidentificados 119 ncleos, com uma populaoestimada em 280 mil habitantes. Tal estimativa jassinalava uma considervel reduo das cifras entre 400 mil e 600 mil favelados que apareciamna imprensa carioca.85 No decorrer dos trabalhos onmero de favelas reduziu-se de 119 para 10586 ea populao encontrada diminuiu para 138.837habitantes, dos quais 68.953 do sexo masculino e69.884 do sexo feminino. O levantamento predialrealizado juntamente com o censo da Prefeituraacusou a existncia de 34.567 habitaes para os138.837 favelados, o que corresponde mdia de4,01 pessoas por prdio. No corpo do documentooficial foram apresentadas 24 tabelas que forneci-am dados sobre as habitaes tipo e nmero decmodos; cobertura; despejo (esgoto sanitrio);piso; gua disponvel nas moradias; pagamento ouno de aluguel (da habitao e/ ou do cho) e apopulao sexo, idade, naturalidade, instruo,cor, estado civil, atividade declarada, zona demoradia e zona do exerccio da profisso, salriodeclarado.

    No pretendo aqui comentar os resultadosdas tabelas desse primeiro Censo das Favelas.87 Oimportante salientar que, pela primeira vez,

    foram dadas as possibilidades para a realizao deum verdadeiro diagnstico das condies de habi-tabilidade e do padro de vida dos seus morado-res, que, conforme constatado, j correspondiam a7% da populao do Distrito Federal.

    A produo de dados oficiais iniciada com oCenso das Favelas da Prefeitura do Rio de Janeiroteve continuidade imediata no Censo Demogrficode 1950, realizado sob os auspcios do governo

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    20/30

    24 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    federal, no qual foram publicados pela primeiravez, separado da populao geral, os resultadosreferentes populao das favelas do Distrito

    Federal. Neste caso, os dados possibilitavam, almde uma anlise global do universo das favelas eseus habitantes, a comparao da populao des-ses aglomerados com o restante da populao domesmo Distrito Federal.

    No entanto, mesmo sendo oficiais, os dadosno coincidiram, valendo assinalar a discrepncialogo observada entre as duas fontes: o CensoDemogrfico de 1950 encontrou 58 favelas emvez dos 105 aglomerados identificados pela Pre-feitura do Distrito Federal dois anos antes, regis-trando uma populao de 169.305 moradores.Como no houve remoo ou supresso de fave-las nesse perodo, a brutal diferena entre o n-mero de aglomerados seria explicada pela diver-sidade dos critrios de definio. Guimares(1953, p. 259) explicita aqueles adotados peloIBGE:

    Foram includos na conceituao de favelas osaglomerados humanos que possussem, total ouparcialmente, as seguintes caractersticas:Propores mnimas: agrupamentos prediais ouresidenciais formados com unidades de nmerogeralmente superior a 50;Tipo de habitao: predominncia, no agrupa-mento, de casebres ou barraces de aspecto rsti-co, tpico, construdos principalmente de flhas deFlandres, chapas zincadas, tbuas ou materiaissemelhantes;Condio jurdica da ocupao: construes semlicenciamento e sem fiscalizao, em terrenos deterceiros ou de propriedade desconhecida; M elhoramentos pblicos: ausncia, no todo ou emparte, de rede sanitria, luz, telefone e gua

    encanada;Urbanizao: rea no urbanizada, com falta dearruamento, numerao ou emplacamento.

    Fora por fim, com o recenseamento geral doBrasil, estabelecida uma definio de favela pauta-da em critrios objetivos e mltiplos. De naturezaoperacional, a definio censitria serviria, apesar depequenas alteraes, para orientar a coleta de dados

    dos futuros censos do IBGE.88 Na verdade, a multi-plicidade de critrios sugeria um avano no conhe-cimento de uma realidade que, a partir dos anos 50,

    tornara-se importante quantificar. O interesse noera mais apenas contar os barracos e o nmero cor-respondente de habitantes. A introduo de elemen-tos como a existncia ou no de melhoramentos p-blicos e de urbanizao na rea sinalizava a impor-tncia de se considerar outras caractersticas queno, exclusivamente, o tipo arquitetnico das mora-dias e a condio jurdica da ocupao. Interessavaagora o conjunto, o aglomerado e todos os elemen-tos pertinentes urbanizao.

    No obstante a discrepncia entre os doisprimeiros censos, os dados oficiais, inditos, servi-ram para inaugurar uma nova perspectiva no estu-do da favela, extremamente contrastante com tudoque havia sido publicado at ento. A partir deagora torna-se possvel estudar sua populao porsexo e grupos de idade, cruzada com inmerasoutras variveis como cor, instruo, religio, uni-dade da Federao de nascimento, ramos de ativi-dade. Torna-se possvel tambm obter os mesmosdados por favelas, revelando toda a complexidadedeste universo.

    guisa de conclusoProva dessa guinada, o livro de Jos Alpio

    Goulart (1957), Favelas do Distrito Federal, publi-cado pelo Ministrio da Agricultura, representa umnovo tipo de literatura. Trata-se de um dos primei-ros trabalhos a utilizar tabelas e dados do CensoDemogrfico de 1950 Resultados Relativos Populao das Favelas do Distrito Federal. Suaanlise, baseada nas estatsticas oficiais, refutarepresentaes vigentes por vrias dcadas sobreas populaes faveladas, como sendo constitudas,

    basicamente, de malandros e desocupados, quan-do no de marginais. O autor usa tabelas relativasa ramos de atividade para mostrar que os habitan-tes (maiores de dez anos) das favelas se dedicavamaos mais variados ramos, configurando uma popu-lao heterognea quanto sua insero no merca-do de trabalho e cujo peso dos inativos era peque-no em relao ao que se supunha 11.130pessoas dentre 124.135 recenseadas, ou seja, 8,9%

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    21/30

    A GNESE DA FAVELA CARIOCA 25

    , sendo particularmente expressiva a produtivi-dade da mulher favelada. O livro vai tambm deencontro idia de serem as favelas redutos

    exclusivos da populao negra ao mostrar, semprecom base nos dados oficiais, que elas eram com-postas de 28,96% de brancos, 35,07% de pretos,35,88% de pardos e 0,09 de amarelos.

    O livro O negro no Rio de Janeiro, do soci-logo Costa Pinto, publicado pela primeira vez em1953, constitui mais um exemplo da mudanaprovocada pelo novo tipo de informao disponi-bilizada agora pelos dados oficiais. No captulointitulado Ecologia, o autor analisa a repartiodos grupos tnicos na rea urbana. Procura com-preender o problema das favelas do ponto de vistadas relaes de raa, buscando demonstrar o entre-laamento da estratificao social com a situaoecolgica e a condio tnica atravs do estudodos indicadores de ocupao profissional e nvelde renda da populao. Os trabalhos citados demonstram que ocor-rera um salto tanto qualitativo como quantitativona leitura da favela e de sua populao. Uma novaliteratura despontava, baseada em um conheci-mento menos de impresso e mais de fundamento,fazendo uso de diferentes metodologias de pesqui-sa e de dados oficiais combinados observaosistemtica.

    Este novo tempo pode ser demarcado, efeti-vamente, pela publicao da pesquisa da equipeda Sociedade de Anlises Grficas e Mecanogrfi-cas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS), A spectos humanos da favela carioca, em 1960, emdois suplementos especiais do jornalO E stado deSo Paulo. Trata-se da primeira grande investida detrabalho de campo nas favelas do Rio de Janeirorealizada por socilogos que seguem os modernospreceitos dos mtodos de investigao.89 A hist-

    ria da pesquisa das cincias sociais nas favelas temaqui o seu marco inicial.Neste artigo discut apenas a gnese dessa

    linha de pesquisa,90 mostrando a existncia deuma tradio no estudo da favela carioca cujasorigens remontam ao incio do sculo XX: fave-la centenria corresponde um conhecimento jquase centenrio tambm. Foi possvel perceberuma continuidade no interesse pela favela, muito

    embora possamos distinguir perodos de maiorou menor intensidade pelo nmero de estudosproduzidos. Ressaltei que diferentes olhares disci-

    plinares foram se voltando para essa realidade,produzindo ao longo do tempo um saber (une pense) sobre a favela que acabou por inspirargrande parte da literatura sobre a pobreza urbanano Rio de Janeiro.

    Como vimos, uma favela especfica serviucomo arqutipo, como base de construo de umtipo ideal, passando a inspirar toda a produointelectual relativa a esse espao: o morro daProvidncia, logo denominado morro da Favella. Adualidade cidade/ favela tem sua gnese nesseperodo fundador, quando a favela vista comoterritrio mximo da precariedade tanto fsicaquanto social que se ope ao restante da cidade, sua ordem e sua populao. Aglomerao perce-bida como temporria, transitria, , no entanto,logo reconhecida pelos primeiros observadorescomo detentora de valor econmico e, como tal,explorada mediante a cobrana de aluguel docho ou dos barracos. O primeiro Censo dasFavelas (1949) vem confirmar essa realidade, en-contrando nada menos que 31,4% de unidades emque se pagava aluguel pelos barracos e 6,4% deunidades em que se pagava aluguel pelo cho,perfazendo um total de 38%.

    Pude constatar, tambm, que nem a idiahoje amplamente generalizada de as favelas resul-tarem da invaso de terrenos, nem a hiptese dafavela como soluo de moradia barata para ospobres urbanos estavam presentes nesse perodofundador. Assim como tambm no havia a idiade os favelados serem maciamente oriundos dascorrentes migratrias que trouxeram os nordesti-nos para o Rio. Os habitantes de inmeras favelasdesse perodo inicial eram imigrantes estrangeiros

    pobres portugueses, espanhis, italianos queprecisaram enfrentar a crise da moradia no comeodo sculo. Ou correspondiam a uma populaoque havia povoado incialmente o cortio mas que,de fato, era fruto da reproduo da pobreza origi-nria do Rio de Janeiro.

    Muitos jovens que hoje se interessam peloestudo da favela ignoram a contribuio de seusantecessores91 e escrevem como se estivessem

  • 8/9/2019 gnese da favela carioca _ valladares

    22/30

    26 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    pela primeira vez descobrindo este espao e seusmoradores. Minha inteno aqui foi recuperar essatradio para melhor entend-la, divulg-la e ga-

    rantir a sua continuidade, uma vez que esse conhe-cimento acumulado, resultante de inmeros traba-lhos e observaes anteriores s cincias sociais,permanece pouco conhecido.92

    NOTAS

    1 Ver, por exemplo, a lista de trabalhos apresentados noGT Pensamento Social no Brasil no XXIII EncontroAnual da Anpocs (Oliveira, 1999). Essa ausncia ficaainda mais bvia a partir da leitura da resenha sobre aclasse trabalhadora no Rio de Janeiro preparada para o BIB por Gomes e Ferreira (1987).

    2 No examinarei a importncia da favela nas artes pls-ticas, cinema ou msica popular. Sobre sua inscrio namsica popular ver o extenso e cuidadoso trabalhorealizado por Oliveira e Marcier (1998).

    3 Os ttulos aparecem emO que j se sabe sobre as favelascariocas: uma bibliografia comentada (Valladares eMedeiros, no prelo). Aproveito para deixar aqui registra-do meu agradecimento equipe do Urbandata, especi-almente a Lidia Medeiros, minha assistente, que dirigiucom competncia o trabalho de levantamento bibliogr-fico feito pela equipe de bolsistas de iniciao cientficado CNPq, composta por Ana Lcia Saraiva Ribeiro,Mrio Fernando Passos Danner e Natalia Gaspar. Para se

    chegar a to elevado nmero de referncias foramconsultadas inmeras bibliotecas do Rio de Janeiro:Biblioteca Nacional, do Iuperj, do IBAM, do IBGE, doInstituto Pereira Passos (na poca Iplanrio), da Funda-o Getlio Vargas, da Caixa Econmica, da PUC, doIFCS-UFRJ, do IPPUR-UFRJ, do Programa de Ps-Gra-duao em Geografia-UFRJ, da Procuradoria Geral doEstado, do CBCISS entre outras.

    4 A periodizao pode variar um pouco de um autor paraoutro. A mais freqente considera: (a) anos 30: incio doprocesso de favelizao do Rio de Janeiro e reconheci-mento da existncia da favela peloCdigo de obras de1937; (b) anos 40: primeira proposta de interveno,com a criao dos Parques Proletrios; (c) anos 50 atmeados dos 60: perodo de expanso das favelas por

    ausncia de uma proposta governamental voltada paraelas; (d) meados dos anos 60 a meados dos 70: perododas remoes, coincidindo com o perodo do regimeautoritrio no pas; (e) anos 80: perodo da urbanizaovia BNH e agncias do servio pblico; (f) primeirametade dos 90: perodo de ausncia de ao governa-mental e retomada do crescimento das favelas; (g)segunda metade dos anos 90: perodo do programaFavela-Bairro, de regularizao e urbanizao das fave-las cariocas pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Ver aperiodizao estabelecida por Vallaet al. (1986), cons-

    truda a partir de marcos polticos e que distingue osseguintes perodos: (a) 1882-1938: dos cortios s fave-las; (b) 1938-1945: os Parques Proletrios; (c) 1945-1954(perodo Vargas): consolidao do fenmeno favela; (d)1955-1962: o populismo desenvolvimentista e as favelas;(e) 1962-1973: o perodo autoritrio das remoes; (f)1974-1980: novo perodo de redemoc