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LUS RGIS COLI SILVA JUNIOR

O PROGRAMA FAVELA-BAIRRO E AS POLTICAS HABITACIONAIS DO BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre e Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Bernardo Vainer Doutor em Desenvolvimento Econmico e Social / Universidade de Paris I Panthon / Sorbonne

Rio de Janeiro2006

2

Silva Junior, Lus Rgis Coli. O Programa Favela-Bairro e as polticas habitacionais do Banco Interamericano de Desenvolvimento / Lus Rgis Coli Silva Junior. 2006. 105 f. : il. ; 30cm.

Orientador: Carlos Bernardo Vainer Dissertao (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Bibliografia: f. 103 105.

1. Programa Favela-Bairro. 2. Banco Interamericano de Desenvolvimento. 3. Agncias multilaterais. 4. Habitao popular. 5.Difuso de modelos. I. Vainer, Carlos B. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. III. Ttulo.

3

FOLHA DE APROVAO Lus Rgis Coli Siva Junior

O PROGRAMA FAVELA-BAIRRO E AS POLTICAS HABITACIONAIS DO BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO

Dissertao submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre.

Aprovado em:

__________________________________

Prof. Dr. Carlos Bernardo Vainer Orientador Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ__________________________________

Prof. Dr. Adauto Lcio Cardoso Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ__________________________________

Prof. Dr. Fabrcio Leal de Oliveira Secretaria Municipal de Urbanismo Prefeitura do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2003

4

AGRADECIMENTOS

Ao professor Carlos Vainer, pelo estmulo, sugestes e auxlio fundamentais realizao desta pesquisa e pela oportunidade de t-lo como orientador e mestre.

Aos professores Henri Acselrad e Adauto Lcio Cardoso, pelas valiosas sugestes que ajudaram a alavancar esta pesquisa.

Aos professores do IPPUR, cuja convivncia e ensinamentos foram inestimveis.

Aos excelentes funcionrios do IPPUR.

Aos colegas de mestrado, pela convivncia estimulante e agradvel.

Aos amigos Breno e Cludio.

Aos meus pais, meu irmo, meus sogros e cunhados.

Ao meu filho, Reginho, pela alegria.

Por fim, minha companheira Alessandra, que sempre me incentivou em todas as etapas deste trabalho.

5

RESUMO

Este trabalho pretende recuperar e analisar a trajetria do Programa Favela-Bairro e sua relao com as polticas habitacionais do Banco Interamericano de Desenvolvimento, buscando uma melhor compreenso sobre o processo que levou esta experincia a ser adotada e difundida pelo BID. Nesse sentido, o objetivo central do mesmo entender como uma poltica pblica originalmente identificada com os setores progressistas da sociedade brasileira foi apropriada por grupos politicamente conservadores e economicamente ligados ao discurso hegemnico acerca do neoliberalismo e da globalizao econmica, sofrendo posteriormente um processo de formatao e modelizao que possibilitou sua difuso pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. Tal processo, segundo a perspectiva deste trabalho, implicou no esvaziamento de seu contedo poltico e de seu potencial socialmente conflituoso, permitindo a sobrevalorizao da tcnica e das solues consensuais. Palavras-chave: Programa Favela-Bairro; Banco Interamericano de Desenvolvimento; agncias multilaterais; habitao popular; difuso de modelos.

6

ABSTRACT

This dissertation intends to recover and analise the trajectory of the Favela-Bairro Program and its relation with the Interamerican Development Banks housing policies in search of a better comprehension over the process that lead the IDB to adopt and diffuse that experience. The main objective of this work is to understand how a public policy first identified with left-wing groups of the brazilian society was appropriated by conservative groups economically attached to neoliberalism and globalizations hegemonic discourse under a process of formatation and modelization that made its diffusion possible. This process, as this dissertation argues, emptied the Favela-Bairros political content and its social warfare potential, allowing the overestimation of technique and solutions by consensus. Keywords: Favela-Bairro Program; Interamerican Development Bank; Multilateral Agencies; popular housing; diffusion of models.

7

LISTA DE TABELAS

TABELA 1: Banco Interamericano de Desenvolvimento. Capital Social e Poder de Voto. (Pg.18) TABELA 2: Comparao entre os emprstimos do BID e Banco Mundial. (Pg. 26) TABELA 3: Componentes dos Neighborhood Upgrading Programs. (Pg. 94)

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SUMRIO

INTRODUO

10

CAPTULO 1 13 O BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO E SUAS POLTICAS HABITACIONAIS 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 A criao do Banco Interamericano de Desenvolvimento Os pases-membros do BID A Estrutura do Banco As polticas de emprstimo do BID As relaes entre o BID e o Banco Mundial 14 16 20 22 24

As polticas habitacionais do Banco Interamericano de Desenvolvimento 27 Concluses do captulo 34

CAPTULO 2 40 AS POLTICAS DE HABITAO POPULAR NO RIO DE JANEIRO E A TRAJETRIA DO PROGRAMA FAVELA-BAIRRO 2.1 Breve histrico das polticas pblicas para habitao popular no Rio de Janeiro 41 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 O cenrio de surgimento do Programa Favela-Bairro A formulao do Programa Favela-Bairro A implementao do Programa O PROAP II Concluses do captulo 51 54 60 66 70 72

CAPTULO 3 O FAVELA-BAIRRO COMO MODELO 3.1 3.2 A conformao do modelo Os Neighborhood Upgrading Programs (NUPs)

73 87

9

3.3 3.4

Os componentes dos NUPs Concluses do captulo

89 95 98

CAPTULO 4 CONCLUSO REFERNCIAS

103

10

INTRODUO

Este trabalho pretende recuperar e analisar a trajetria do Programa Favela-Bairro e sua relao com as polticas habitacionais do Banco

Interamericano de Desenvolvimento, buscando uma melhor compreenso sobre o processo que levou esta experincia a ser adotada e difundida pelo BID. Nesse sentido, o objetivo central do mesmo entender como uma poltica pblica originalmente identificada com os setores progressistas da sociedade brasileira foi apropriada por grupos politicamente conservadores e economicamente ligados ao discurso hegemnico acerca do neoliberalismo e da globalizao econmica, sofrendo posteriormente um processo de formatao e modelizao que possibilitou sua difuso pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. O captulo 1 tem o objetivo inicial de apresentar a histria do BID, sua criao, os pases que o integram, sua estrutura e funcionamento, procurando contextualizar sua atuao. Tambm pretende, sucintamente, analisar suas relaes com o FMI e o Banco Mundial, assim como a forma de atuao conjunta com estas instituies. Alm disso, procura apresentar a trajetria das polticas habitacionais para a populao de baixa renda do BID, desde os tipos de investimento priorizados nos anos 1960 at o surgimento e evoluo dos atuais Neighborhood Upgrading Programs - NUPs, do qual fazem parte programas como o Favela-Bairro. Finalmente, o captulo traz uma reflexo sobre o papel atribudo pelo Banco suas polticas habitacionais e sua concepo acerca da poltica social. A construo deste captulo envolveu a utilizao da literatura acadmica, de informaes do prprio BID, e de textos de autores ligados formulao das polticas habitacionais desta instituio. O captulo 2 traa um histrico das polticas para habitao popular no Rio de Janeiro, demonstrando a antigidade do problema e a constituio das condies que deram sustentao ao Favela-Bairro e polticas semelhantes. Em seguida, recupera a trajetria que levou formulao e implementao do

Programa, destacando etapas deste processo, para o que se contou com entrevistas com pessoas envolvidas no mesmo. O captulo objetiva destacar os

11

principais momentos de uma experincia que, aos poucos, foi se constituindo em modelo. Assim, acompanha-se o programa da elaborao de metodologias at a insero de novos componentes, buscando identificar a emergncia dos atributos que acabaram por angariar notoriedade e conferir sua dimenso e importncia no cenrio das polticas pblicas. Por fim, reflete sobre os limites do Programa e de suas condies de implementao. Sendo assim, buscou-se a utilizao de fontes primrias, que alm das entrevistas realizadas com figuras centrais da histria do Favela-Bairro, tambm incluem consultas legislao sobre o tema e fontes secundrias, baseadas na literatura acadmica, em relatrios e publicaes de rgos pblicos. O captulo 3 se consagra a analisar, de forma mais especfica, o processo de apropriao e modelizao do Programa, traando sua origem a partir de uma perspectiva ampla de abordagem do problema da habitao e das condies de vida das classes populares. Procura-se examinar como se efetuou o desligamento do Programa de seu contexto de emergncia, a partir de sua realocao, inicialmente em mbito local, em um outro projeto de cidade. Nesse sentido, o captulo busca demonstrar como o esvaziamento do contedo poltico e do potencial socialmente conflituoso, que polticas de urbanizao de favelas como o Programa Favela-Bairro poderiam carregar, foram condies necessrias para sua constituio em modelo difundido internacionalmente pelo BID. Em seguida, apresentam-se os programas de urbanizao de favelas e de assentamentos precrios do BID, conhecidos como Neighborhood Upgrading Programs - NUPs, com especial destaque para o modelo atual, consagrado a partir da experincia do Favela-Bairro. Algumas indicaes dos impactos e influncias que o Programa Favela-Bairro teve sobre a atual configurao dos NUPs tambm integram as reflexes deste captulo. Finalmente, aborda-se a

questo prpria dos modelos e de sua instrumentalizao pelas agncias internacionais segundo sua diretrizes gerais, a difuso de solues genricas e a deslegitimao de solues locais que no se encaixem no seleto grupo das boas prticas. Para tanto, este captulo utilizou-se da literatura acadmica, de consultas legislao e da principal publicao / manual acerca dos NUPs.

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No captulo conclusivo, as questes levantadas por este trabalho so revisitadas, sendo feito um breve resumo dos assuntos abordados em cada captulo. Alm disso, reflete-se sobre a necessidade de aprofundamento do estudo e de suas possibilidades para o enriquecimento de uma pesquisa mais ampla acerca da difuso de modelos.

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CAPTULO 1

O BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO E SUAS POLTICAS HABITACIONAIS

14

1.1 A criao do Banco Interamericano de Desenvolvimento

O surgimento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) pode ser melhor compreendido tendo-se em conta o cenrio scio-poltico mundial e latino-americano da dcada de 1950, pautado pela oposio Estados Unidos X Unio Sovitica expressada na Guerra Fria. Tal cenrio parece ter mobilizado as elites latino-americanas alinhadas aos EUA na busca de uma instituio regional, capaz de prover um financiamento complementar ao de outras agncias internacionais, que possibilitasse a acelerao do desenvolvimento econmico capitalista na regio e afastasse as ameaas de revoluo social. Segundo ROPER e BARRIA (2002), os EUA inicialmente se opuseram proposta de criao de um banco regional de desenvolvimento para a Amrica Latina, expressa em uma resoluo aprovada por ministros da regio (com a absteno de EUA e Peru) em conferncia no Brasil ao final de 1954. Tal resoluo conclamava economistas e membros da CEPAL a fazer uma proposta especfica para a criao, no mbito da OEA, de um Banco para a Organizao dos Estados Americanos. A posio contrria dos Estados Unidos foi alterada em 1958, aps visita do vice-presidente norte-americano, Richard Nixon, Amrica Latina. Nixon foi confrontado a manifestaes populares crticas ao papel exercido pelos EUA no continente, e parece ter-se preocupado com a inquietude poltica, social e econmica do momento. Alm disso, o temor, no contexto da Guerra Fria, de expanso do comunismo, levou os EUA a apoiar a idia de promover vnculos econmicos mais prximos atravs de um banco regional. Aps conversaes entre os presidentes Juscelino Kubitschek e Dwight Einsenhower, um comit de negociao comeou a trabalhar em janeiro de 1959, tendo completado a proposta de criao do banco em abril. O acordo tornou-se vigente em 30 de dezembro de 1959, aps a ratificao pelos pases que o integrariam. A primeira reunio da Assemblia de Governadores do BID foi realizada em fevereiro de 1960, tendo sido eleito o primeiro presidente da Diretoria Executiva. O Banco comeou a operar oficialmente em outubro de 1960 e fez seu primeiro emprstimo em fevereiro de 1961 (ROPER; BARRIA, 2002).

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Abaixo esto reproduzidas as funes e objetivos do BID, segundo o Convnio Constitutivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento firmado com sua criao:ARTIGO I OBJETIVOS E FUNES

Seo 1. ObjetivoO Banco ter por objetivo contribuir para acelerar o processo de desenvolvimento econmico e social, individual e coletivo, dos pases membros regionais em vias de desenvolvimento.

Seo 2. Funes (a) Para atingir seu objetivo, o Banco exercer as seguintes funes:

(i) promover a inverso de capitais pblicos e privados, para fins de desenvolvimento; (ii) utilizar seu prprio capital, os fundos que obtenha nos mercados financeiros e os demais recursos de que disponha, para financiar o desenvolvimento dos pases membros, dando

prioridade queles emprstimos e operaes de garantia que contribuam mais eficazmente para o crescimento econmico dos mesmos; (iii) estimular os investimentos privados em projetos, empresas e atividades que contribuam para o desenvolvimento econmico, e complementar as inverses privadas, quando no houver capitais particulares disponveis em termos e condies razoveis; (iv) cooperar com os pases membros na orientao da sua poltica de desenvolvimento, para uma melhor utilizao de seus recursos, de forma

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compatvel com os objetivos de uma maior complementao de suas economias e da promoo do crescimento ordenado de seu comrcio exterior; e (v) prestar assistncia tcnica para o preparo, financiamento e execuo de planos e projetos de desenvolvimento, inclusive o estudo de prioridades e a formulao de propostas sobre projetos especficos.

(b) No desempenho de suas funes, o Banco cooperar, tanto quanto possvel, com os setores privados que forneam capital para investimentos, e com instituies nacionais ou internacionais1.

1.2 Os pases-membros do BID

Inicialmente,

apenas

integrantes

da

Organizao

do

Estados

Americanos -OEA poderiam tornar-se membros do BID, fato posteriormente alterado com a incluso de novos pases-membros. Os pases-membros do BID foram divididos em duas categorias, relacionadas sua condio de tomadores ou no de emprstimos, sendo respectivamente classificados como pases muturios e no-muturios. poca de sua criao, apenas os Estados Unidos era membro no-muturio. Uma emenda ao Convnio Constitutivo, em 1972, permitiu ao Canad, que no era membro da OEA, participar do BID como pas-membro nomuturio. Mais tarde, outros dezenove pases, ao longo das dcadas de 1970 e 1980, juntaram-se ao Banco nesta condio. O BID tem por objetivo estatutrio prover assistncia financeira aos pases muturios da Amrica Latina e Caribe. Nestes pases, vrias entidades podem tomar emprstimos diretamente ao Banco, desde que possuam garantias governamentais, incluindo governos nacionais,

1

Fonte: http://www.iadb.org/leg/Documents/Pdf/Convenio-por.Pdf.

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provinciais, estaduais e municipais, alm de instituies pblicas autnomas e organizaes da sociedade civil. O Convnio Constitutivo foi assinado por vinte pases latino-americanos e os EUA, inclusive Cuba, que aps o incio de seu processo revolucionrio no ratificou o acordo e consequentemente no veio a tornar-se membro. Em 1992, outros sete pases juntaram-se ao Banco, que tem atualmente 47 membros muturios e no-muturios.2 So membros muturios do BID: Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolvia, Brasil, Chile, Colmbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, Mxico, Nicargua, Panam, Paraguai, Peru, Repblica Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.3 Os no-muturios so: Alemanha, ustria, Blgica, Canad, Repblica da Coria, Crocia, Dinamarca, Eslovnia, Espanha, Estados Unidos, Finlndia, Frana, Israel, Itlia, Japo, Noruega, Pases Baixos, Portugal, Sucia, Sua e Reino Unido.4 Sendo o BID propriedade de seus 47 pases-membros, o poder de voto de cada pas determinado por sua subscrio de recursos ao capital ordinrio da instituio, e, consequentemente, porcentagem de aes desta natureza em seu poder.5 Nesse sentido, destaca-se a participao de

aproximadamente 11% (cada um) de Brasil e Argentina, e de 30% dos Estados Unidos, que, atravs deste e de outros mecanismos, necessita de pouco esforo (geralmente apenas alguns aliados) para controlar a instituio. A Tabela 1 mostra a participao de cada pas e seu respectivo poder de voto:

TABELA 1. Banco Interamericano de Desenvolvimento. Capital Social e Poder de Voto.

2 3

Ibid. Fonte: http://www.iadb.org/aboutus/VI/borrowing.cfm?language=Portuguese. 4 Fonte: http://www.iadb.org/aboutus/VI/nonborrowing.cfm?language=Portuguese. 5 Fonte: http://www.iadb.org/aboutus/I/members.cfm?language=Portuguese.

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CAPITAL SOCIAL E PODER DE VOTOPases membros muturios Aes Votos % total de votos (1)

Argentina Bahamas Barbados Belize Bolvia Brasil Chile Colmbia Costa Rica El Salvador Equador Guatemala Guiana Haiti Honduras Jamaica Mxico Nicargua Panam Paraguai Peru Repblica Dominicana Suriname Trinidad e Tobago Uruguai Venezuela Subtotal pases membros muturios

900.154 17.398 10.767 9.178 72.258 900.154 247.163 247.163 36.121 36.121 48.220 48.220 13.393 36.121 36.121 48.220 578.632 36.121 36.121 36.121 120.445 48.220 7.342 36.121 96.507 482.267 4.184.669

900.289 17.533 10.902 9.313 72.393 900.289 247.298 247.298 36.256 36.256 48.355 48.355 13.528 36.256 36.256 48.355 578.767 36.256 36.256 36.256 120.580 48.355 7.477 36.256 96.642 482.402 4.188.179

10,752 0,209 0,130 0,111 0,865 10,752 2,953 2,953 0,433 0,433 0,577 0,577 0,162 0,433 0,433 0,577 6,912 0,433 0,433 0,433 1,440 0,577 0,089 0,433 1,154 5,761 50,016

Pases regionais no muturiosCanad Estados Unidos 334.887 2.512.529 335.022 2.512.664 4,001 30,007

19

Subtotal

2.847.416

2.847.686

34,008

Pases no regionais no muturios

Alemanha ustria Blgica Coria, Repblica da Crocia Dinamarca Eslovnia Espanha Finlndia Frana Israel Itlia Japo Noruega Pases Baixos Portugal Reino Unido Sucia Sua Subtotal pases no regionais no muturios TOTAL GERAL

158.638 13.312 27.438 184 4.018 14.157 2.434 158.638 13.312 158.638 13.126 158.638 418.642 14.157 28.207 4.474 80.551 27.268 39.347 1.335.179

158.773 13.447 27.573 319 4.153 14.292 2.569 158.773 13.447 158.773 13.261 158.773 418.777 14.292 28.342 4.609 80.686 27.403 39.482 1.337.744

1,896 0,161 0,329 0,004 0,050 0,171 0,031 1,896 0,161 1,896 0,158 1,896 5,001 0,171 0,338 0,055 0,964 0,327 0,472 15,976

8.367.264

8.373.609

100,000

(1) Dados arredondados; devido ao arredondamento, a soma das parcelas pode diferir do total geral.

Fonte: http://www.iadb.org/aboutus/IV/go_voting.cfm?language=Portuguese.

O poder de voto dos pases-membros muturios, segundo emenda ao Convnio Constitutivo estabelecida em 1994, no pode ser inferior a 50,0005%. A aprovao de emprstimos que se utilizem do Capital Ordinrio exigem uma votao que alcance a maioria simples na Diretoria Executiva. Para emprstimos que utilizem recursos de outro fundo do Banco, o Fundo para Operaes

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Especiais, destinado a aes especficas nos pases mais pobres da regio (Bolvia, Guiana, Haiti, Honduras e Nicargua), so necessrios dois teros dos votos. A direo do BID, no entanto, tem como poltica evitar a aprovao de emprstimos no apoiados pelos Estados Unidos, o que significaria um poder de veto de facto (ROPER; BARRIA, 2002).

1.3 A Estrutura do Banco

A sede do Banco Interamericano de Desenvolvimento est localizada nos em Washington, D.C, nos Estados Unidos. O BID dirigido pela Assemblia de Governadores, indicados por cada um dos 47 pases-membros. Os governadores, em geral, so Ministros da Fazenda, presidentes de Bancos Centrais ou integrantes de outras instituies relacionadas gesto

macroeconmica. A Assemblia de Governadores realiza encontros anuais para fazer um balano das operaes do Banco e decidir sobre as linhas gerais das polticas da instituio. A grande maioria das decises, no entanto, normalmente delegada Diretoria Executiva (ROPER; BARRIA, 2002). Os 14 membros da Diretoria Executiva so responsveis pela conduo das operaes do Banco, sendo eleitos ou indicados para um mandato de trs anos pela Assemblia de Governadores. Os diretores executivos dos EUA e Canad representam seus prprios pases, todos os outros diretores executivos representam grupos de pases. Estes grupos, ao contrrio de americanos e canadenses, precisam alcanar obrigatoriamente uma posio consensual que se reflita no voto do diretor que os representa (ROPER; BARRIA, 2002). A Diretoria Executiva encarregada de estabelecer as polticas operacionais, aprovar projetos, fixar taxas de juros e outras condies para os

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emprstimos do Banco, autorizar captaes de recursos em mercados de capital e aprovar o oramento administrativo da instituio.6 O presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, eleito pela Assemblia de Governadores para um mandato de cinco anos, conduz os negcios cotidianos da instituio junto com o vice-presidente executivo. Aquele tradicionalmente oriundo de um pas-membro muturio, ou seja, latino-americano, enquanto o vice-presidente sempre um norte-americano. Cabe ao presidente conduzir as reunies da Diretoria Executiva, votando apenas em caso de empate. A liderana no Banco tem-se mostrado estvel, tendo havido apenas quatro presidentes at ento: Felipe Herrera (1960-1970), Antonio Ortiz Mena (19701987), Enrique Iglesias (1988-2005) e o atual Luis Alberto Moreno (2005-?)

(ROPER; BARRIA, 2002). Os recursos para financiar as operaes do Banco vm dos j citados Capital Ordinrio e do Fundo para Operaes Especiais. O Capital Ordinrio (aproximadamente US$ 100 bilhes) provem das contribuies dos pasesmembros, de captaes em mercados de capital e do pagamento de emprstimos. A maior parte destes recursos utilizada como garantia para os emprstimos, sendo lastro para emisso de debntures, que giram em torno de US$4,7 a US$4,9 bilhes anuais, e responsvel por financiar 90% dos desembolsos do Capital Ordinrio. O Fundo para Operaes Especiais (aproximadamente US$10 bilhes) depende exclusivamente das contribuies dos pases-membros, exceto por alguns recursos provenientes de investimentos e pagamentos de juros, podendo ser liberados anualmente US$ 400 milhes.7 Alm dos recursos disponveis atravs do BID, os pases muturios tem acesso assistncia financeira da Corporao Interamericana de Investimentos CII e do Fundo Multilateral de Investimento - FUMIN, que formam parte do Grupo Banco Interamericano de Desenvolvimento. A CII foi criada em 1989 para financiar projetos do setor privado sem garantias governamentais, tendo 37 pasesmembros, tambm membros do BID. A Corporao tem capacidade de financiar aproximadamente 45 projetos anualmente, num total de US$ 300 milhes, com o6

Fonte: http://www.iadb.org/aboutus/IV/boe.cfm?language=Portuguese.

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limite mximo de US$ 10 milhes por projeto. J o FUMIN, criado em 1993 e administrado diretamente pelo BID, tem tambm o objetivo de financiar, em menor escala, o setor privado, tendo recebido contribuies de 26 pases-membros no valor aproximado de US$ 1,3 bilho, utilizado para emprstimos, investimentos e garantias. O Fundo aprova anualmente cerca de 100 projetos a um valor total de US$ 100 milhes (ROPER; BARRIA, 2002).

1.4 As polticas de emprstimo do BID

Durante suas trs primeiras dcadas, o BID concentrou-se em emprstimos por projeto. Nos anos 1960, 40% dos emprstimos do Banco foram para setores da agricultura, indstria e minerao. A infra-estrutura (energia eltrica, transporte e comunicaes), recebeu aproximadamente 30%. Projetos que envolviam abastecimento de gua e esgotamento sanitrio, desenvolvimento urbano, habitao e educao responderam por quase 25% dos emprstimos (TUSSIE 1995 apud ROPER; BARRIA 2002). Durante a dcada de 1970, os emprstimos do BID procuraram ir alm do financiamento a projetos especficos, estimulando a criao de instituies que fossem capazes de implement-los e atuar como prestadores de servios. Neste perodo se estabeleceu que 50% dos emprstimos destinar-se-iam programas capazes de atender aos grupos de baixa renda. Durante a crise da dvida externa nos anos 1980, no entanto, o Banco consagrou-se a garantir a

continuidade dos depsitos latino-americanos, fazendo emprstimos, tipicamente associados ao FMI, para incrementar as balanas de pagamentos destes pases. Tais emprstimos foram formalmente introduzidos s polticas do BID em 1989, e7

Fonte: http://www.iadb.org/aboutus/III/financialresources.cfm?language=Portuguese.

23

pretendiam prover aos pases-membros muturios, alm de suporte balana de pagamentos, capacidade para mudar o que o Banco entendia como polticas setoriais distorcidas que prejudicavam o crescimento e reduziam o impacto dos projetos (ROPER; BARRIA, 2002). Ao invs de financiar projetos, como era seu mandato original, seguindo, deste ponto de vista, a trajetria do Banco Mundial, que sempre foi uma espcie de modelo, o BID passa a financiar polticas de ajuste fiscal e cumprir funes tpicas do Fundo Monetrio Internacional - FMI. Este perodo pode ser caracterizado pela adeso, por parte do BID, ao esforo conjunto do FMI e Banco Mundial na defesa s polticas de ajuste estrutural, que traziam consigo uma maior abertura dos mercados latino-americanos, privatizao, conteno oramentria, entre outras recomendaes tipicamente associadas ao chamado neoliberalismo. Segundo Green (1995), o BID conseguiu mais fundos dos Estados Unidos aps aderir prtica de emprstimos condicionados a processos de ajuste, tendo sofrido, no entanto, presso de pases muturios para que estes correspondessem apenas a um quarto do total anual. O Banco tambm tem o objetivo de ser fonte de assistncia tcnica aos pases-membros muturios, se utilizando de trs mecanismos distintos: 1) projetos especficos, abarcando pr-investimento, execuo e criao de instituies locais; 2) estudos e avaliaes que serviro de linhas-mestre para outros projetos; 3) programas de treinamento tanto para funcionrios de governos quanto para outros profissionais (ROPER; BARRIA, 2002). Estes procedimentos revelam, em certa medida, a preocupao do Banco com a constituio e formatao de modelos a serem transpostos para os mais diversos pases do continente, no parecendo haver grandes preocupaes em se considerar especificidades nacionais e locais. Em relao ao acesso aos recursos do BID, os pases-membros muturios esto agrupados em quatro categorias, A, B, C e D, relacionadas ao seu nvel de desenvolvimento. O Grupo A composto por Argentina, Brasil, Mxico e Venezuela. O Grupo B por Chile, Colmbia e Peru. O Grupo C por Bahamas, Barbados, Costa Rica, Jamaica, Trinidad e Tobago e Uruguai. Os mais pobres compem o Grupo D, formado por Belize, Bolvia, Repblica Dominicana,

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Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Nicargua, Panam, Paraguai e Suriname (ROPER; BARRIA, 2002). Aproximadamente 70% dos emprstimos do Banco so direcionados a Brasil, Mxico, Argentina, Colmbia, Chile e Peru, que juntos respondem por cerca de 85% do PIB latino-americano. Os EUA, em sua condio de maior pasmembro no-muturio, se envolve bastante na triagem dos emprstimos e em deixar claro suas preferncias econmicas atravs dos procedimentos de votao da Diretoria Executiva (TUSSIE 1995 apud ROPER; BARRIA 2002). A porcentagem do custo total dos projetos financiados pelo Banco obedece a classificao em Grupos. Os pases do Grupo A recebem financiamento de 50%, do Grupo B de 60%, do Grupo C de 70% e do Grupo D de 80%. Um financiamento adicional de 10% pode ser incrementado a projetos que procurem direcionar pelo menos 50% de seus possveis benefcios a grupos de baixa renda (ROPER; BARRIA, 2002).

1.5 As relaes entre o BID e o Banco Mundial Todos os Bancos Regionais de Desenvolvimento8 parecem ter a preocupao de estabelecer uma diviso de tarefas com o Banco Mundial, procurando evitar que suas atividades sejam tidas como suprfluas ou, mesmo, idnticas a esta instituio. Por outro lado, tem sido cada vez maior o nmero de projetos co-financiados por bancos regionais e o Banco Mundial, sendo a cooperao tambm promovida com o objetivo de garantir uma maior eficincia na implementao dos mesmos, segundo os critrios destas instituies. No caso do BID, Roper e Barria (2002) afirmam que, em seus primeiros anos de operao, o relacionamento com o Banco Mundial foi mais competitivo9 do que cooperativo, tendo sido feitos acordos informais entre os dois para minimizar tal competio. J na dcada de 1960, houve uma diviso de

Alm do BID, so bancos regionais: Banco Caribenho de Desenvolvimento; Banco Africano de Desenvolvimento; Banco Asitico de Desenvolvimento e o Banco Europeu de Reconstruo e Desenvolvimento. 9 Esta competio refere-se atuao em reas e projetos similares.

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tarefas

cabendo ao Banco Mundial, por exemplo, emprstimos para grandes

projetos, tais como os de infra-estrutura, concentrando-se o BID em projetos de menor porte. Esta diviso arrefeceu na dcada seguinte, com o BID realizando emprstimos de natureza semelhante aos do Banco Mundial, e vice-versa. A coordenao entre as atividades dos dois bancos aumentou consideravelmente a partir do incio da dcada de 1990, quando as operaes conjuntas no ultrapassavam o nmero de trs. No houve qualquer acordo, mas ficou estabelecido que o BID aceitaria o enfoque dado pelo FMI e pelo Banco Mundial em relao s recomendaes quanto s polticas de cmbio, comrcio e preos, principalmente nos pases muturios de grande porte. Nesse sentido, o BID procuraria no fazer recomendaes, e nem estipular condies, que fossem conflitantes com as polticas advogadas pelas outras duas instituies. A probabilidade de ocorrerem diferenas programticas entre o BID e as outras instituies multilaterais s existe, praticamente, nos pases muturios de pequeno porte, onde seu poder de financiamento bem maior que estas (ROPER;

BARRIA, 2002). A concordncia quanto s linhas fundamentais das polticas prescritas pelas instituies multilaterais mostra-se portanto como a postura largamente predominante, e a aceitao, por parte do BID, das polticas do FMI e do Banco Mundial, indicam, na verdade, um compartilhamento mtuo de perspectivas. O relacionamento entre o BID e o Banco Mundial nico entre todos os Bancos Regionais de Desenvolvimento, pois sua capacidade de emprstimo para o continente maior que a do ltimo, o que, entre outros fatores, indica uma liderana compartilhada entre ambos dentre as agncias de fomento atuantes na regio. A tabela 2 mostra o volume de emprstimos anuais dos dois bancos:

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Tabela 2. Comparao entre os emprstimos do BID e Banco Mundial (US$ bilhes) 1984-2001 Ano Banco Mundial BID

____________________________________________________________________ ____ 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 3.0 3.7 4.8 5.2 5.3 5.8 5.8 5.2 6.1 5.9 4.7 6.1 4.4 4.6 6.0 7.7 4.1 5.3 3.3 3.0 3.0 2.3 1.6 2.6 3.8 5.3 6.1 6.0 5.3 7.2 6.7 6.0 10.0 9.4 5.2 6.5

Fonte: Policy Preferences Among Multilateral Development Banks: Explaining Differences Between the IDB and the EBRD. ROPER, Steve D., BARRIA, Lilian A. Annual Meeting of the Midwest Political Science Association. Chicago, IL. 25-28 Abril 2002.

Como pode-se concluir a partir da tabela, no perodo 1991-2001, momento de crescimento no volume de emprstimos do BID, a mdia anual do

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mesmo foi de US$ 7.7 bilhes contra US$ 5.5 bilhes do Banco Mundial. O Banco Interamericano co-financia mais projetos com o Banco Mundial do que qualquer outra instituio regional, o que torna este seu principal parceiro multilateral. Durante o perodo 1996 2000, o co-financiamento variou entre US$ 1.9 bilhes e US$3.5 bilhes, tendo sido de US$1.9 bilhes em 2001 (ROPER; BARRIA, 2002). Ao mostrar-se integrado ao espectro de atuao, e de pensamento, do FMI e do Banco Mundial, o BID tambm pode ser considerado parte componente, e proponente, de uma viso de mundo balizada, e limitada, pelo mesmo arcabouo conceitual destas instituies. A defesa conjunta, a partir do final da dcada de 1980, da necessidade de ajustes estruturais nos pases latinoamericanos e do combate pobreza, visando a insero competitiva no mundo globalizado, um bom exemplo desta atuao / viso compartilhada.

1.6 As polticas habitacionais do Banco Interamericano de Desenvolvimento

As aes do Banco Interamericano de Desenvolvimento no apoio a polticas habitacionais para a populao de baixa renda remontam aos anos 1960, com emprstimos que inicialmente focalizavam a construo de unidades prontas, geralmente realizadas por agncias nacionais de habitao, posteriormente alocadas aos beneficirios dos programas. No perodo de 1961-1970, o BID financiou 43 projetos habitacionais, desembolsando aproximadamente US$350 milhes (ROJAS, 1995). Mesmo contando com subsdios considerados volumosos e condies facilitadas de pagamento, tais programas no conseguiram atingir em massa a populao de baixa renda. Em geral, as habitaes construdas foram consideradas de nvel bastante aceitvel pelas classes mdias latino-americanas,

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que acabaram por serem as maiores beneficirias de tais programas. Segundo Mayo (1999), expert ligado formulao de polticas habitacionais do BID, outros problemas sistmicos caracterizaram esta primeira gerao de projetos

financiados pelo Banco: a recuperao do custo era baixa, a inadimplncia dos beneficirios era alta e os dficits financeiros das agncias responsveis pelas polticas habitacionais exigiam constante injeo de recursos externos para a manuteno dos programas. Segundo o mesmo autor, as experincias negativas com tais programas habitacionais na dcada de 1960 no foram exclusividade do BID, pois tambm o Banco Mundial enfrentou problemas semelhantes, o que deixou claro a necessidade de se buscarem meios alternativos que fossem

capazes de dar suporte s polticas habitacionais dos pases-membros. Partindo de uma mdia aproximada de cinco emprstimos por ano durante o perodo 1961-1970, a dcada seguinte presenciaria a quase total retirada do BID da rea habitacional, com apenas trs emprstimos, sendo que em dois deles o financiamento habitao era apenas um dentre vrios componentes (MAYO, 1999). Posteriormente, o Banco mudou sua abordagem para a rea habitacional, deixando de financiar unidades prontas e concentrando esforos nos lotes urbanizados (sites and services). A nova diretriz, consolidada nos anos 1980, consistia no financiamento de aes que envolviam a proviso de gua potvel, esgotamento sanitrio, arruamento, drenagem e eletricidade, servios que estariam disponveis para os moradores que viriam a construir suas casas a partir dos lotes, dotados de dimenses reduzidas. As casas eram geralmente construdas em regime de mutiro, autoconstruo e outros mecanismos semelhantes (ROJAS, 1995). Alm dos lotes urbanizados, e funcionando em moldes similares, havia tambm, a partir da dcada de 1980, projetos de melhoramento de assentamentos (settlement upgrading projects). Ao invs de subdividir em lotes e prover de servios urbanos em terras virgens, tais projetos procuravam urbanizar assentamentos precrios j existentes, geralmente ocupados de forma irregular por populao de baixa renda, carentes de servios essenciais e sem garantia de propriedade da terra.

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Segundo Rojas (1995), tambm ligado elaborao de polticas habitacionais no Banco, ao concentrar-se em projetos que envolviam a oferta de lotes urbanizados e o melhoramento de assentamentos, o BID procurava atingir dois objetivos: melhorar o foco do gasto pblico em habitao e aumentar a capacidade dos recursos pblicos de alcanar segmentos maiores da populao de baixa renda. Os projetos envolvendo lotes urbanizados parecem ter contemplado uma parcela maior da populao de baixa renda. Rojas (1995) associa este fato ao nvel modesto das solues habitacionais caractersticas destes projetos, tendo afastado segmentos de poder aquisitivo maior. J nos projetos de melhoramento de assentamentos, por suas prprias caractersticas precrias e irregulares, os contemplados so geralmente pessoas de baixo poder aquisitivo. Ainda segundo Rojas (1995), o baixo custo destas solues habitacionais e a necessidade de envolvimento dos moradores na construo de suas casas, com seus prprios recursos, aumentou as possibilidades de uma cobertura maior dos programas. O BID, ao longo dos anos 1980, financiou 12 projetos desta natureza. Os resultados, no entanto, ficaram abaixo do esperado pela instituio, levantando uma srie de questes problemticas. Segundo Mayo (1999), havia muita preocupao quanto capacidade dos governos dos pases em desenvolvimento de arcar com os custos de manuteno de tais programas aps o fim dos emprstimos das agncias de fomento. Outra limitao de tais programas estaria relacionada m vontade e ao desinteresse do setor privado, especialmente o financeiro, em participar ativamente dos programas de subsdio habitao, uma vez que os programas criados pelo setor pblico no conseguiam alcanar um patamar de recursos suficientes para atender s necessidades da populao de baixa-renda. A partir da metade dos anos 1980, aps uma srie de experincias insatisfatrias e buscando modelos alternativos, o BID mais uma vez mudar o foco de suas polticas habitacionais. Tal mudana consistiu em privilegiar, ao invs do provimento de habitaes ou lotes urbanizados, subsdios que permitissem s pessoas comprar casas ofertadas no mercado (demand-oriented alternative).

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Nestes programas, o setor privado o principal produtor e provedor de habitaes, alm de tambm ser o principal responsvel pelos financiamentos para compra. Mayo (1999) cita como exemplo o caso pioneiro do Chile, com um programa desta natureza implementado no final dos anos 197010. No caso chileno, os subsdios eram dados na forma de vouchers, que correspondiam ao valor estipulado como o mnimo por uma casa, sendo utilizados para a compra de habitaes negociadas no mercado e devidamente habilitadas para o programa. Alm dos vouchers, o interessado pagava uma quantia vista e fazia um emprstimo no-subsidiado cujas prestaes no poderiam ultrapassar 25% de sua renda. O voucher, no programa chileno, funcionava como uma garantia de capital e deveria ser utilizado para a compra de habitaes nas quais os proprietrios residiriam, e no para a compra com o objetivo de posterior locao para aluguel. O modelo chileno encontrou seguidores em pelo menos cinco pases, iniciando-se na Costa Rica em 1986 e na Colmbia, El Salvador, Paraguai e Uruguai em 1991( MAYO, 1999). A mudana em direo a estes programas caracterizados pelo BID como demand-oriented continuou a ser estimulada pelo mesmo durante os anos 1990, atravs de emprstimos feitos ao Chile, Paraguai e Uruguai. Emprstimos para programas similares tambm foram propostos Guatemala, ao Panam e Venezuela em 1997. Alm destes programas, durante a dcada em questo, o BID tambm financiou programas habitacionais de outra natureza, tais como os voltados para a proviso de servios bsicos e infra-estrutura em reas de habitao precria (MAYO, 1999). Mayo (1999) afirma que os programas do tipo demand-oriented possuem muitas vantagens11; no entanto, a experincia latino-americana, assim como a do prprio BID, parecem ter tido um carter misto, identificando-se nelas alguns problemas. Dentre eles, destacam-se: 1) a pouca aceitao dos programas por parte dos que viriam a ser beneficiados; 2) a baixa recuperao dos custos; 3) a oferta de subsdios maiores do que o necessrio para estimular a participao10

Durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1989), conhecida, dentre outros motivos, pelo pioneirismo na adoo de polticas associadas ao neoliberalismo na Amrica Latina. 11 Que no so especificadas pelo autor no texto em questo.

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nos programas desta natureza; 4) os preos inflacionados das habitaes, reao ao aumento de escala dos programas; 5) disperso, com reas de baixa densidade populacional, tendo aumentado o tempo gasto entre a casa e o trabalho e criado maior escassez de territrio para possveis beneficiados de geraes futuras; 6) falta de mobilizao de fundos privados, principalmente quanto intermediao dos mesmos atravs de instituies financeiras privadas (MAYO, 1999). Alm disso, vrias crticas foram feitas aos programas do tipo demandoriented, relativas a falhas no exame das interdependncias presentes nos mercados habitacionais, especialmente quanto aos submercados existentes acima e abaixo da faixa de renda do pblico-alvo dos programas. Outra crtica focalizou a falta de empenho em ampliar tais subsdios para o auxlio no pagamento de aluguis. Outra crtica, de carter mais amplo, envolvia o fato de que nem os programas de habitao dos governos, nem as agncias de fomento como o BID, o Banco Mundial e a USAID haviam se dedicado o suficiente elaborao de projetos que racionalizassem o papel dos subsdios, contemplassem os pobres e fizessem o setor habitacional funcionar bem (MAYO, 1999). Tomando-se um quadro mais geral, os perodos de baixo crescimento econmico e inflao alta vividos pelo continente a partir da dcada de 1970, e que em muitos pases duraram at os anos 1990, tiveram importante papel em dificultar a consolidao do setor habitacional latino-americano, tornando escassa a oferta de crdito pelos setores pblico e privado. A obteno de moradias populares via mercado, se j apresenta problemas em situaes menos desfavorveis, dificilmente seria a soluo num ambiente de crise. Mayo (1999), no entanto, acredita que a partir dos planos de estabilizao macroeconmica adotados no continente, principalmente a partir da dcada de 1990, o ambiente tenha se tornado bem mais favorvel para a formulao e implementao de polticas habitacionais mais eficazes. Segundo o mesmo, a continuidade de problemas estruturais e os riscos associados aos emprstimos para habitao, tais como sistemas cadastrais ineficientes e direitos

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de propriedade mal definidos, entre outros, continuam a limitar a expanso dos financiamentos habitacionais pelo setor privado. Segundo Brakarz (2002)12, principalmente a partir dos anos 1990, os governos da regio adotaram uma posio mais realista quanto aos problemas habitacionais. A abordagem dominante no enxergaria mais a questo habitacional apenas como insuficincia de habitaes, reconhecendo que as situaes de dficit social e habitacional estavam interligadas. Alm disso, tambm admitiriam que os recursos do setor pblico no eram capazes de resolver todos os problemas habitacionais urbanos. Esta mudana de abordagem quanto questo habitacional e aos assentamentos humanos foi o centro das preocupaes nas resolues da United Nations Conference on Human Settlements, ocorrida em 1995 em Istambul. Tais resolues enfatizaram a necessidade de aplicao de polticas integradas para o melhoramento de assentamentos e para a incorporao de abordagens que visassem facilitar o funcionamento dos mercados habitacionais. Proposta inicialmente pela ONU, em sua publicao Global Shelter Strategy towards the Year 2000 (United Nations, 1988), esta abordagem foi adotada e promovida pelo BID atravs de seus emprstimos a partir de 1995 (Operational Policy on Urban Housing and Development. IDB, Washington, 1995.). A estratgia do Banco consistiria em produzir uma eficincia ampla do setor habitacional atravs do estmulo atuao dos mercados na rea de terras urbanizadas, habitao e financiamento, no sentido de expandir a capacidade do setor privado para construir e financiar solues habitacionais. Alm disso, consciente das limitaes dos mercados privados de habitao em oferecer alternativas para os nveis de renda mais baixos, reconhece-se a necessidade de promoo de programas pblicos que financiem solues habitacionais para os segmentos mais pobres da populao. Por ltimo, o Banco decide-se a investir no12

Fonte: Cities for All Recent Experiencies with Neighborhood Upgrading Programs. BRAKARZ, Jos; GREENE, Margarita; ROJAS, Eduardo. Inter-American Developmnet Bank. Washington, D.C. 2002. Este livro tambm foi publicado em Espanhol e Portugus, podendo ser considerado um manual para a formulao e aplicao dos Neighborhood Upgrading Programs (NUPs), amplamente inspirados na experincia do Favela-Bairro. A ttulo de exemplo, das 25 fotos do livro, 18 referem-se diretamente ao

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urgente problema dos assentamentos irregulares (tais como as favelas), prevenindo a cidade de crescer a partir de padres de ocupao informal. O foco neste problema reflete-se na prioridade dada a investimentos que prometessem promover melhoras nas condies fsicas e sociais destas reas. Tambm so recomendadas reformas nos sistemas de regularizao fundiria, com o objetivo de tornar mais acessvel a propriedade da terra em reas urbanizadas para populaes de baixa renda. Segundo Brakarz (2002), esta abordagem tem levado a mudanas significativas no foco e na linguagem utilizados, pois a preocupao estrita com a produo de habitaes tem dado lugar a uma viso que privilegie a qualidade dos assentamentos humanos. Ao mesmo tempo, a prioridade na construo de habitaes para os pobres teria adotado uma perspectiva de produo das chamadas solues habitacionais integrais. Como exemplo desta mudana de orientao, o autor cita pases como o Brasil, Costa Rica, Chile, Equador, Guatemala, Panam, Colmbia e Uruguai, com programas deste tipo em diferentes fases de implementao. Em relao ao Brasil, o financiamento a projetos habitacionais, por parte do BID, foi escasso at a dcada de 1990. Com exceo de dois projetos para a proviso de habitaes populares no incio dos anos 1960, a atuao do Banco na rea foi pouco significativa. Analisando-se o histrico de projetos

aprovados pelo mesmo, nota-se, no entanto, que a partir do financiamento ao Programa Favela-Bairro (PROAP I), em 1995, foram aprovados oito projetos de natureza semelhante (incluindo a Segunda fase do Programa), alm de outros dois que esto em fase de preparao.13Programa, alm da ampla maioria dos casos e experincias exemplificados nos boxes. Jos Brakarz foi o principal representante do BID durante as negociaes do contrato e a implementao do Programa. 13 Fonte: http://www.iadb.org/topics/projects.cfm?language=Spanish&topicID=DU. Os projetos so: Programa de Melhoramento de Favelas de So Paulo (projeto n BR0210), custo total avaliado em US$ 250 milhes, contrapartida do BID de US$160 milhes, programa da prefeitura de So Paulo aprovado pelo Banco em julho de 1996; Programa Nova Baixada (BR0242), custo total de US$ 300 milhes, contrapartida do BID de US$ 180 milhes, programa do governo do estado do Rio de Janeiro aprovado em setembro de 1997; Programa Habitar Brasil (BR0273), custo total de US$ 417 milhes, contrapartida do BID de US$ 180 milhes, programa do governo federal aprovado em setembro de 1998; Qualidade e Produtividade da Habitao (TC9803207), custo total de US$ 250 mil, contrapartida do BID de US$ 200 mil, programa de cooperao tcnica com o governo brasileiro aprovado em outubro de 1998; PROAP II - Segunda fase do Favela-Bairro (BR0250), custo total de US$ 300 milhes, contrapartida do BID de US$ 180 milhes,

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1.7 Concluses do captulo

Este captulo teve o objetivo de contribuir para uma melhor compreenso acerca da origem, histria, estrutura e funcionamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento, alm de procurar apresentar suas principais concepes sobre habitao ao longo do tempo. As preocupaes que nortearam sua criao esto relacionadas necessidade de sustentao do capitalismo latino-americano, num momento em que a perspectiva de revoluo social parecia ameaar sua hegemonia no continente. Seu surgimento, nesse sentido, teve carter geopoltico e estratgico. Nos ltimos anos, o BID se juntou aos esforos do Banco Mundial e do FMI na defesa, promoo e difuso de programas de estabilizao monetria, ajuste estrutural e de crescimento econmico via aumento de exportaes. Esta foi a resposta das instituies financeiras internacionais para a crise da dvida latino-americana dos anos 1980, tendo balizado polticas de juros altos, diminuio do gasto pblico e controle de salrios para represso de demanda, e que alm disso, procurava garantir a futura solvncia da regio e evitar novo default em seus pagamentos aos bancos credores internacionais. Em relao s polticas de ajuste estrutural, seu objetivo seria transformar os pases da regio em economias de mercado plenamente funcionais, reajustando o papel do Estado a este objetivo. A defesa de privatizaes, o fim do controle de preos e a eliminao de barreiras comerciais encontram-se neste espectro. A prioridade dada sprograma da prefeitura do Rio de Janeiro aprovado em maro de 2000, com os mesmos valores do PROAP I; Programa de Ao em Cortios do Estado de So Paulo (BR0298), custo total de US$ 70 milhes, contrapartida do BID de US$ 34 milhes, programa do governo do estado de So Paulo aprovado em outubro de 2001; Consolidao Urbana de Paulnea (BR-T1020), custo total de US$ 100 mil, contrapartida do BID de US$ 80 mil, programa de cooperao tcnica com a prefeitura de Paulnea aprovado em novembro de 2004; Programa de Desenvolvimento Urbano em Santos (BR-T1019), custo total de US$ 147 mil financiado pelo BID, programa de cooperao tcnica visando assistncia conjunta para a autoridade federal porturia, o governo de So Paulo e o municpio de Santos, aprovado em maro de 2005. Projetos em fase de preparao: Reabilitao Ambiental e Urbana de Joinville (BRL1038), custo total estimado em US$ 50 milhes, contrapartida estimada do BID de US$ 30 milhes, projeto da prefeitura de Joinville; Programa Urbano Macambira Anicuns (BR-L1006), custo total estimado em US$ 87 milhes, contrapartida do BID estimada em US$ 52 milhes, programa da prefeitura de Goinia.

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exportaes, atravs da remoo de tarifas de exportao e importao, por exemplo, teria como objetivo uma alocao mais eficiente dos recursos, permitindo aos latino-americanos concentrarem-se em supostas vocaes exportadoras e importar o que no tm ao preo mais baixo do mercado. O grau de controle exercido pelo governo norte-americano sobre o BID, o Banco Mundial e o FMI, alm de pautar as orientaes econmicas dominantes nessas instituies, foi instrumento fundamental para a difuso das propostas acima descritas na Amrica Latina, tendo especial relevncia a possibilidade de condicionar emprstimos implementao das mesmas. Segundo DOliveira (2001), em anlise do Documento de Pas do BID (ano 2000) para o Brasil e de seu correspondente no Banco Mundial (Country Assistance Strategy), o binmio ajuste fiscal-reduo da pobreza d o tom dos posicionamentos das instituies multilaterais de crdito em relao s prioridades de desenvolvimento econmico no Brasil. O enfoque no combate pobreza, que tem ganho bastante fora nos ltimos anos nos documentos do BID e de outras agncias internacionais, inscreve-se neste contexto mais amplo, como uma forma de amenizar os impactos sociais ligados aos processos de ajuste, tais como a precarizao do trabalho, aumento da concentrao de renda, desemprego estrutural, maior desigualdade social, dentre outros pormenorizados por vrios estudos conhecidos. Mestrum (2002) afirma que a partir de 1995 a luta contra a pobreza (ou combate pobreza) tornou-se prioridade oficial das organizaes multilaterais de desenvolvimento. Porm esta sbita ateno ao combate pobreza, colocada como temtica prioritria, suscita algumas questes: Por que se esperou tanto tempo para que a pobreza dos homens (e no mais somente a das naes) tenha sido apreendida como um problema maior da comunidade internacional? Como esta nova prioridade conseguiu ser bem sucedida em se impor no discurso das organizaes internacionais, no tendo elas cessado, aps vinte anos, de pregar a importncia dos equilbrios macroeconmicos? Seria esta luta contra a pobreza sinnimo do desenvolvimento social pregado pela ONU h tanto tempo? Constituiria ela, enfim, a vitria dos opositores uma abordagem essencialmente

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economicista do desenvolvimento? E, principalmente, como possvel combater a pobreza com base em diagnsticos simplistas e inconsistentes de suas causas? Segundo a autora, uma anlise detalhada das representaes da pobreza e dos pobres presentes nos documentos das instituies internacionais permite que se coloque em evidncia as condies de existncia do discurso sobre a pobreza, sua funcionalidade ao se relacionar com o discurso sobre a globalizao, assim como seu efeito no discurso sobre o desenvolvimento. O discurso oficial sobre a globalizao supe uma coordenao poltica a nvel mundial e implica uma reforma estrutural nos Estados (nacionais), favorecendo o desmantelamento das protees sociais existentes enquanto coloca em perspectiva o discurso da harmonia universal. Desta maneira, um discurso de combate pobreza torna-se possvel e necessrio para: dar legitimidade s polticas das organizaes internacionais; oferecer aos Estados Nacionais um substituto aos projetos de desenvolvimento nacional; dar uma alma globalizao e preservar o ideal de um desenvolvimento holstico. Mestrum (2002) analisa os mecanismos discursivos que tm permitido fazer do tema da pobreza o vetor consensual de um projeto poltico, econmico e social, que longe de dar fim ao Consenso de Washington, constitui sua pea maestra. Nesse sentido, procura demonstrar como este discurso associa-se ao reconhecimento por parte das organizaes multilaterais de uma nova era de cooperao internacional, tornada possvel pelo fim da Guerra Fria e dos conflitos ideolgicos. Toma-se conscincia da unidade fundamental da humanidade e da interdependncia de todos os pases e povos em um mundo aonde as oportunidades e riscos ignoram fronteiras. O pensamento desenvolvimentista, como estariam mostrando as experincias do passado, estava equivocado, e a persistncia da pobreza seria prova irrefutvel do fracasso do papel do Estado como motor do desenvolvimento. A construo discursiva de um interesse comum a nvel mundial parte, ento, do argumento de que a luta contra a pobreza de interesse de toda a humanidade. Sendo assim, a pobreza conceituada de tal maneira que acaba por se encontrar no centro de um jogo de interdependncias entre Estados e, tambm, de toda uma srie de problemas que

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ignoram as fronteiras, tais como o crescimento demogrfico, as presses migratrias, as epidemias, a degradao do meio ambiente, a desintegrao social, a criminalidade, etc. A partir desta definio, a luta contra a pobreza contribui para colocar em perspectiva uma governana mundial aonde as organizaes internacionais so as protagonistas, permitindo redefinir a soberania dos Estados e associar atores no-estatais (ONGs, sociedades multinacionais, Igrejas, etc) concepo e prtica de polticas. A naturalizao da Economia de especial utilidade neste discurso, visto que segundo o mesmo, o desenvolvimento hoje no tem mais como objeto os pases pobres, mas sim caminha numa marcha mundial visando os indivduos pobres de todo o mundo. Assim sendo, encontra-se condicionado polticas de ajuste estrutural, ou seja, abertura de mercados e respeito aos equilbrios macroeconmicos. Portanto, a naturalizao da Economia permite que se esquea a economia do desenvolvimento e o desenvolvimento da economia, que so substitudos, por um lado, por projetos de combate pobreza condicionados no interveno do poder pblico nas foras naturais do mercado, por outro, pela integrao do mercado mundial (MESTRUM, 2002). As antigas polticas de seguridade social, vistas como de interesse de alguns grupos sociais, devem ser substitudas por polticas orientadas para uma sociabilidade primria, chamada capital social. Tais polticas no visam mais a redistribuio de renda ou proteo dos indivduos contra os efeitos negativos do mercado, mas sim lhes permitir participar dele. Os conceitos de pobre e de pobreza, particularmente quanto sua multidimensionalidade e seus aspectos no monetrios, favorecem esta nova viso. Sendo a pobreza considerada um dficit de desenvolvimento, os pobres so aqueles que no puderam ainda contribuir para o desenvolvimento, aqueles que ainda no se integraram ao mercado, acompanhados por discriminaes de toda natureza, so homo oeconomicus em devir (MESTRUM, 2002). Por fim, so identificadas trs funes essenciais a partir do discurso das organizaes internacionais sobre a pobreza: 1) O discurso sobre a pobreza um discurso de reproduo. Ele o vetor consensual de um projeto de redefinio das relaes entre Estado, mercado e sociedade. Concilia o

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universalismo e a crena no progresso presentes na simbologia da ONU globalizao econmica. Redefine o papel das organizaes internacionais; 2) O discurso sobre a pobreza um discurso de legitimao. Ele legitima a abertura e re-regulao dos mercados. Torna possvel uma maior vigilncia por parte das organizaes internacionais sobre os pases pobres. Permite aos Estados Nacionais desmantelar as protees sociais existentes. Sobretudo, legitima as novas polticas sociais que rompem com o desenvolvimento social do passado; 3) O discurso sobre a pobreza um discurso da verdade. As representaes que ele veicula balizam o campo epistemolgico, o campo do verdadeiro e do falso, do que se pode ou no dizer. As representaes que no se conformam globalizao econmica so descartadas. O discurso das organizaes

internacionais sobre a pobreza fornece portanto um conjunto de representaes, uma verdade sobre a pobreza e sobre o desenvolvimento (MESTRUM, 2002). Este o contexto que tambm tem norteado as polticas habitacionais do BID nos ltimos anos. Como visto anteriormente, as polticas do Banco no foram capazes, ao longo de sua existncia, de propor solues satisfatrias para um melhor acesso de grupos de baixa renda habitao formal, tendo privilegiado solues via mercado sempre que possvel. Atualmente, a poltica habitacional dominante na instituio associa-se aos chamados Neighborhood Upgrading Programs14,que tero anlise mais detida no Captulo 3, e procuram combinar urbanizao de favelas com polticas sociais, seguindo a linha das polticas setoriais focalizadas em grupos considerados vulnerveis. O BID, nesse sentido, parece estimular a restrio das polticas pblicas para a habitao popular a um problema assistencial, no indo alm da proposio de solues paliativas, e sem preocupao com programas que busquem financiar moradias em larga escala, que exigem somas maiores e poderiam colocar em risco os processos de ajuste prezados pela instituio. Aos indivduos que no so classificados como pblicoalvo destas polticas restam as solues do mercado, historicamente insuficientes. O problema da pobreza e da habitao precria no parece envolver, na perspectiva do Banco, a reflexo acerca de suas origens histricas e causas14

Tambm considerados estratgias integrais de alvio pobreza (BRAKARZ, 2002).

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estruturais, principais responsveis pela situao social e econmica do continente, marcado pela desigualdade e pela concentrao do poder poltico e da riqueza.

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CAPTULO 2

AS POLTICAS DE HABITAO POPULAR NO RIO DE JANEIRO E A TRAJETRIA DO PROGRAMA FAVELA-BAIRRO

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2.1 Breve histrico das polticas pblicas para habitao popular no Rio de Janeiro

A dcada de 1930 inaugurou uma nova postura por parte do Estado brasileiro, em detrimento da orientao vigente durante o perodo conhecido como Repblica Velha (1889-1930), de claras prioridades agro-exportadoras. Segundo Melo (1990), esta dcada assinala historicamente a consolidao de um padro de acumulao urbano-industrial, estabelecido sob a tutela do Estado e acompanhado de uma forte expanso da esfera pblica. Seus pressupostos polticos so a ascenso e gradativa hegemonia da burguesia industrial sobre os grupos oligrquicos do bloco no poder e a progressiva incorporao e cooptao das massas urbanas na arena poltica que ir se expressar, a nvel institucional, na criao do aparato organizacional do Ministrio do Trabalho e das agncias governamentais de bem-estar social. No entanto, a grande maioria dos moradores de favelas foi excluda das aes do Estado voltadas para a habitao popular no perodo, restrita queles com ocupao formal e portadores de carteira profissional. Segundo Burgos (1999), no por acaso, a nica poltica habitacional ento existente para a populao de baixa renda, organizada em 1933, beneficiava exclusivamente empregados de ramos de atividades cobertas pelos Institutos de Aposentadorias e Penses (IAPs). Melo (1990) afirma que a opo pela aplicao dos recursos dos IAPs em habitao s adquire expresso em 1937, na gesto de Agamenon Magalhes frente do Ministrio do Trabalho, que conferiu prioridade questo. Ainda segundo o autor, durante o Estado Novo se deu incio construo de grandes conjuntos residenciais, ao mesmo tempo em que se avolumavam

vertiginosamente as reservas dos IAPs, que passam a ser canalizadas para o crdito imobilirio. Nos ltimos anos do Estado Novo, a crise de habitao se agudizou, contrastando fortemente com o surto imobilirio impulsionado, em parte, pelos recursos dos IAPs.

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Nesse contexto, a situao marginal das favelas explicitada por Burgos (1999), ao mencionar o Cdigo de Obras da cidade de 1937, onde as mesmas so consideradas uma aberrao, no podendo constar no mapa oficial da cidade. Alm disso, ainda segundo o autor, o Cdigo propunha sua eliminao, proibindo a construo de novas moradias e a melhoria das existentes. Para tentar solucionar o problema, o Cdigo propunha a construo de habitaes proletrias, idia que influenciou a experincia dos parques proletrios, no incio dos anos 1940. Burgos (1999) afirma que a descoberta do problema favela pelo poder pblico no surge de uma postulao de seus moradores, mas sim do incmodo que causava urbanidade da cidade, o que explicaria o sentido do programa de construo dos parques proletrios, cuja finalidade seria resolver o problema das condies insalubres das franjas do Centro da cidade, alm de permitir a conquista de novas reas para a expanso urbana. Segundo o mesmo, destacase a condio de pr-cidados dos habitantes das favelas, que no eram vistos como possuidores de direitos, mas como almas necessitadas de uma pedagogia civilizatria. Tal fato reflete-se nos mecanismos de controle utilizados nos parques proletrios, como, por exemplo, a exigncia de atestado de bons antecedentes e a obrigatoriedade dos moradores em se submeter a sesses de lies de moral. Entre 1941 e 1943, foram construdos trs parques proletrios (na Gvea, no Leblon e no Caju), para onde se transferiram cerca de 4 mil pessoas. Ainda que tivessem a promessa de retornar para reas prximas das que viviam assim que estivessem urbanizadas, os moradores, sem vislumbrar o cumprimento da mesma, permaneceram muito tempo nesses parques, deles saindo somente bem mais tarde, expulsos, quando da valorizao imobiliria dos respectivos bairros, particularmente os dois primeiros. O autoritarismo da pedagogia civilizatria ensaiada e a precariedade das instalaes (concebidas como provisrias) dos parques, no despertavam atrao entre os habitantes de favelas. Preocupados com a generalizao desta alternativa, foram criadas por moradores de favelas, ainda em 1945, as comisses de moradores, inicialmente no morro do Pavo / Pavozinho e pouco depois nos morros do Cantagalo e da Babilnia, como forma

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de opor resistncia a um suposto plano da prefeitura de remover todos para os parques (BURGOS, 1999). Segundo Burgos (1999), despertados pela interveno do poder pblico e ante a ameaa de perderem suas casas e suas redes sociais pelo deslocamento forado, os moradores de favelas comearam a constituir-se em ator poltico. A preservao, no entanto, pela Constituio de 1946, da restrio ao voto de analfabetos ainda mantinha fora da competio poltica a grande maioria de seus moradores, inibindo sua participao at mesmo em engrenagens de tipo clientelista. A crise da habitao no ento Distrito Federal, no entanto, colocou a questo da habitao na agenda poltica, sendo abordada pelos candidatos na campanha presidencial de 1945. Segundo Melo (1990), o governo Dutra notabilizou-se por uma poltica social conservadora e pela forte represso aos setores avanados e mobilizados da classe trabalhadora, intervindo em sindicatos, alm de ter decretado a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro. O nico setor da poltica social em que se poderia postular medidas novas era o da habitao, que parecia sobretudo ser potencialmente consensual por poder incorporar as demandas dos setores populares e dos setores capitalistas vinculados indstria de materiais de construo e da construo civil e, em menor medida, das companhias de seguro. Alm disso, ainda segundo o autor, a habitao constituase uma pea importante do discurso poltico conservador e de setores da Igreja Catlica que identificavam a posse de um imvel com a estabilidade social. A criao, num simblico 1 de maio de 1946, do primeiro rgo federal na rea de habitao a Fundao da Casa Popular parece refletir estas concepes. Sua atuao se mostrou errtica e pautada por critrios clientelsticos, tendo sido pouco expressiva na proviso de habitaes para as populaes de baixa renda, objetivo para o qual foi criada. A Fundao construiu na cidade do Rio de Janeiro, at sua extino em 1964, cerca de 4 mil casas e cinco conjuntos habitacionais, nmero pouco significativo diante da demanda por habitao popular no perodo (AZEVEDO; ANDRADE, 1982). O acesso casa prpria era, na prtica, limitado. Restries de informao, de prazo, de nmero

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de inscries e de unidades oferecidas reduziam drasticamente as possibilidades de amplo atendimento. O fracasso da Fundao estaria relacionado, dentre

outras razes, s intensas presses polticas, de difcil superao, e a falta de uma fonte estvel de recursos que lhe permitisse fazer frente a conjunturas desfavorveis. Alm disso, a Fundao da Casa Popular no teria sido capaz de alcanar maturidade institucional traduzida em paradigmas universalistas, em firmeza de objetivos e em prestgio organizacional. A imagem que dela ficou era a de um rgo deriva, despersonalizado, que vagava ao sabor das injunes e das caractersticas transitrias de seus chefes (AZEVEDO; ANDRADE, 1982). O surgimento da Fundao Leo XIII, em 1946, ilustra as preocupaes da Igreja Catlica com as condies habitacionais das classes populares. A fundao nasceu com a finalidade de oferecer uma alternativa pedagogia populista estado-novista, onde, no lugar da idia de Estado-Nao e do apelo a lideranas carismticas, a Igreja ofereceria a cristianizao das massas; no lugar da coero, ofereceria a persuaso, ao invs do conflito poltico, prometeria o dilogo e a compreenso; ao invs da luta pelo acesso a bens pblicos, o assistencialismo; no lugar da crtica, a resignao; em vez do intelectual orgnico, a formao de lideranas tradicionais (BURGOS, 1999). Entre 1947 e 1954, a Fundao Leo XIII estendeu sua atuao a 34 favelas, implantando em algumas delas servios bsicos como gua, esgoto, luz e redes virias, e mantendo centros sociais em oito das maiores favelas do Rio, entre as quais Jacarezinho, Rocinha, Telgrafos, Barreira do Vasco, So Carlos, Salgueiro, Praia do Pinto e Cantagalo (LEEDS; LEEDS, 1978 apud BURGOS, 1999). Procurando aprofundar suas aes junto s favelas e reunir de forma mais concreta urbanizao e pedagogia crist, a Igreja Catlica tambm criou, em 1955, a Cruzada So Sebastio. Entre 1956 e 1960, a Cruzada realizou melhorias de servios bsicos em 12 favelas, executando 51 projetos de redes de luz, urbanizando parcialmente uma favela (Morro Azul) e completamente a favela Parque Alegria. Tambm construiu, no Leblon, o conjunto habitacional que ficaria

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conhecido como Cruzada, primeira experincia de alojamento de moradores nas proximidades da prpria favela que habitavam (BURGOS, 1999). O governo municipal, por sua vez, criou em 1956 o Servio Especial de Recuperao das Favelas e Habitaes Anti-higinicas (Serfha). O Serfha teria atuao modesta at 1960, limitando-se a apoiar as iniciativas da Fundao Leo XIII e da Cruzada. Sua atividade se intensificou entre 1961 e 1962, sob o comando de Jos Arthur Rios, que procurou uma aproximao com as favelas, estimulando inclusive a formao de associaes de moradores onde estas no existiam, tendo prevalecido, no entanto, a tendncia de subordinar politicamente seus habitantes. Na criao da Serfha e da Cruzada estavam em jogo iniciativas que procuravam articular o controle poltico a uma pauta mnima de direitos sociais referente a problemas de infra-estrutura (BURGOS, 1999). Estas iniciativas, do Estado e da Igreja, no impediram que os moradores das favelas criassem uma entidade autnoma para negociar seus interesses, em 1957, com o surgimento da Coligao dos Trabalhadores Favelados do Distrito Federal, fundada com o objetivo de lutar por melhores condies de vida nas reas que habitavam. Burgos (1999) afirma que a presena desse novo interlocutor indica que a categoria favelado, originariamente forjada para identificar negativamente os excludos e justificar aes civilizatrias arbitrrias do Estado e da Igreja, estava sendo requalificada. Com presena informal no mercado de trabalho e, portanto, desconectada da luta operria, a categoria favelado teria vindo emprestar uma identidade coletiva aos excludos, dando-lhes maior possibilidade de lutar por direitos sociais. No incio da dcada de 1960, durante o governo de Carlos Lacerda, o Serfha esvaziado, criando-se a Companhia de Habitao Popular - COHAB, que deveria realizar uma nova poltica habitacional, baseada na construo de unidades para famlias de baixa renda. No mesmo perodo, as lideranas dos moradores de favelas avanaram em seu processo de organizao, tendo fundado, em 1963, a Federao da Associao de Favelas do Estado da Guanabara - Fafeg (BURGOS, 1999).

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O golpe de 1964 criou condies para a supresso de iniciativas populares desta natureza, tendo ganho fora, a partir de ento, iniciativas que visavam a remoo de populaes faveladas e a erradicaco das favelas. O surgimento da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades - CODESCO, em 1968, no entanto, seguiu orientao diferente, apostando na urbanizao de

favelas com a participao dos moradores. A criao da CODESCO foi um golpe de habilidade poltica, tendo sido o governador Negro de Lima instado a fundar a companhia como uma satisfao aos seus antigos compromissos com os favelados, como uma sada honrosa para as imposies da poltica habitacional federal (SANTOS, 1981.). Consequentemente, a sobrevivncia da CODESCO sempre foi difcil, tendo apoio somente do governador e de algumas faces do governo estadual. Ainda que formalmente tenha existido por sete anos, a atuao efetiva da companhia durou apenas at 1971. O projeto piloto da CODESCO previa a urbanizao de trs favelas: Brs de Pina, Morro Unio e Mata Machado, tendo sido levado adiante nas duas primeiras (SANTOS, 1981). A inteno de integrar as favelas cidade, atravs da urbanizao, estava inscrita nos princpios da companhia, cuja atribuio era promover a integrao dos aglomerados subnormais na comunidade normal adjacente, intervindo nos aspectos

urbansticos, habitacionais e outros necessrios (CODESCO, 1970, p. 12. apud SANTOS, 1981.). Contudo, a alternativa remocionista mostrar-se-ia dominante durante o perodo autoritrio e, pouco depois da organizao da CODESCO, o governo federal criou, ainda em 1968, a Coordenao da Habitao de Interesse Social da rea Metropolitana do Grande Rio - Chisam, com o objetivo de ditar uma poltica nica de favela para os estados da Guanabara e do Rio. A Chisam tinha o objetivo declarado de exterminar as favelas do Rio de Janeiro (BURGOS, 1999). Enquanto implementava polticas remocionistas, o Estado empenhouse em desarticular a capacidade organizativa dos moradores de favelas. Destacase, nesse sentido, o expurgo da Fafeg, logo aps os congressos de favelados por ela organizados em 1967 e 1968, nos quais representantes de mais da metade das favelas cariocas deixaram claro seu repdio s remoes. A magnitude

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desses eventos teria criado as condies propcias para cassao da diretoria da Fafeg, com a priso de seu presidente, que logo depois morreria. Aps a

cassao, houve eleio, sendo os nomes das chapas submetidos ao exame da Secretaria de Segurana (BURGOS, 1999). A resistncia dos moradores tornou o programa de remoes politicamente custoso, e este ficou muito distante do objetivo de exterminar as favelas da cidade. O programa foi esvaziado a partir de 1975, e dezenas de favelas permaneceram em bairros ocupados por setores de classe alta e mdia. Os nmeros da operao remocionista, no entanto, no foram nada modestos, tendo sido removidas cerca de 100 mil pessoas e destrudas em torno de 60 favelas. Apesar de sua magnitude, esta ao no foi capaz de reduzir significativamente a proporo de favelados dentre os habitantes do Rio de Janeiro: 13,2% na dcada de 1970 e 12,3% na dcada seguinte (BURGOS, 1999). Responsvel pela poltica de habitao no pas a partir de 1964, o Banco Nacional de Habitao - BNH, em conjunto com o Sistema Financeiro de Habitao - SFH, tambm no foi capaz de solucionar os problemas de moradia das classes populares. Ainda que inicialmente priorizasse as famlias de renda mensal entre um e trs salrios mnimos, a necessidade de legitimao da ditadura e os ndices de inadimplncia entre os muturios de baixa renda, fruto, dentre outros fatores, do arrocho salarial praticado no perodo, levaram o BNH, a partir da dcada de 1970, a privilegiar setores de renda mdia. A conseqncia desta mudana de orientao reside no fato de que, aps 22 anos de atuao, e tendo sido financiadas quase 4,5 milhes de unidades, apenas 33,5% destas foram formalmente destinadas aos setores populares (AZEVEDO, 1988). Durante a gesto de Israel Klabin, prefeito nomeado pelo governador Chagas Freitas, criada, em 1979, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social - SMDS, com a misso especfica de desenvolver servios assistenciais nas favelas da cidade. A criao da SMDS foi conseqncia de uma negociao entre a prefeitura e o Fundo das Naes Unidas para a Infncia - Unicef, tendo resultado no documento Propostas para ao nas favelas cariocas, que previa a

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interveno nas reas de educao, sade e legalizao da propriedade15. Em 1981, a SMDS realizou uma experincia piloto na Rocinha, baseada em trs subprogramas: educao comunitria, saneamento bsico e aes preventivas de sade. A filosofia do programa dava nfase participao da comunidade na definio de prioridades e na sua execuo, pretendendo tambm propiciar alguma renda aos seus moradores. Considerando o resultado da experincia animador, a SMDS, ainda em 1981, com o apoio do Unicef, criou o Projeto Mutiro, pelo qual 15 favelas seriam atendidas no ano seguinte, incluindo obras de acesso, pavimentao, conteno de encostas e servios de gua e esgoto. Tais projetos seriam relegados a segundo plano a partir da eleio do governador Brizola, crtico do Unicef e do que via como carter tecnocrtico de suas

propostas (BURGOS, 1999). Durante o governo Brizola, destaca-se a atuao do Programa de Favelas da Cedae - Proface, desenvolvido entre 1983 e 1985, que levaria sistemas de gua e esgoto a cerca de 60 favelas, incorporando-as rede dos seus bairros. A coleta de lixo tambm foi viabilizada atravs da compra de microtratores pela Comlurb, adaptados s condies das favelas. Alm disso, foi iniciado em julho de 1985 um programa de iluminao pblica atravs da Comisso Municipal de Energia. O programa Cada Famlia um Lote, a cargo da Secretaria de Estado do Trabalho e da Habitao, tambm foi fruto deste perodo, e inclua a regularizao da propriedade em reas faveladas, repassando a preos simblicos os lotes a seus moradores. O governo Brizola tambm procurou alterar a relao entre Estado e favelados, definindo uma nova conduta para as polcias civil e militar, baseada no respeito a seus direitos civis (BURGOS, 1999). A participao do governo federal nas polticas habitacionais

praticamente cessou a partir da extino do BNH, em meados da dcada de 1980. Segundo Cardoso (2001), em todo perodo ps-BNH, observa-se uma tendncia de progressiva descentralizao, com governos estaduais e municipais assumindo15

Tambm no ano de 1979 iniciou-se um grande programa da Light de iluminao pblica destinado a favelas e loteamentos irregulares (Programa de Eletrificao de Interesse Social). O programa tinha por meta estender os servios de eletricidade a todas as favelas situadas nas suas reas de concesso, tendo produzido 150 mil novas ligaes, em 443 comunidades, entre 1979-1984. Fonte: http://www.aneel.gov.br/arquivos/PDF/ENERGIAEPOBREZAFINALMAIO2005PORT.pdf

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cada vez mais a iniciativa no desenvolvimento de novos programas habitacionais para as populaes de baixa renda. Tal descentralizao teria sido fruto de vrias mudanas no cenrio poltico e institucional. Inicialmente, destaca-se o fato de que o modelo de poltica adotado pelo governo federal teria gerado uma situao ambgua: de um lado, ampliaram-se as condies de autonomia e de iniciativas locais (estaduais ou municipais) na definio de agendas e definio de polticas; de outro lado, os mecanismos de financiamento revelaram um carter fortemente regressivo, e propcio a manipulaes clientelsticas. Outro aspecto relevante que, paralelamente s mudanas observadas na poltica habitacional federal, o processo de descentralizao teve como marco a Constituio de 1988. Sem definir com clareza uma hierarquia de competncias dentro da federao, a questo da moradia foi considerada, no texto final da Constituio, no mbito da definio das atribuies especficas dos diferentes nveis de governo, sendo considerada como competncia comum Unio, estados e municpios. A reforma institucional promovida pela nova Constituio, referente descentralizao, se completa com a questo da autonomia jurdica e fiscal dos municpios (CARDOSO, 2001). Tornava-se necessria, aps dcadas de centralizao de recursos e poder na esfera da Unio, uma ampla redefinio das relaes entre os poderes e uma redistribuio das competncias e recursos entre as esferas de governo. Os municpios passam a ter a responsabilidade e o direito de elaborar sua Constituio (a Lei Orgnica) e maiores poderes para a formulao de princpios bsicos legais que orientem a sua legislao ordinria. Quanto descentralizao fiscal, foi efetuada atravs da redefinio da esfera onde se d a arrecadao dos impostos, como no caso do Imposto de Transmisso, que passa da rbita dos Estados para os municpios, ou pela maior participao destas instncias nos impostos arrecadados pela Unio (CARDOSO, 2001). Tambm foi bastante significativa, para o processo de descentralizao, a eleio direta de novos governantes, possvel atravs da redemocratizao. A importncia do voto na vida poltica do pas levou a um comprometimento crescente das novas administraes, a nvel local, com a implementao de

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polticas sociais, entre elas a proviso de moradia para as camadas de baixa renda. Cardoso (2001) afirma que, embora premidos pela escassez de recursos, os novos governos eleitos, principalmente nas capitais e nas grandes cidades, assumiram com maior mpeto a responsabilidade pelo desenvolvimento de polticas sociais. No caso da moradia, as iniciativas so tomadas pelos novos governantes como fruto de compromissos de campanha ou do programa partidrio, ficando o acesso aos recursos limitado pelas caractersticas das linhas de financiamento oficiais. Esta limitao de recursos locais teria levado a uma concentrao das iniciativas locais em programas alternativos, tais como a regularizao fundiria, a liberalizao de normas de uso e ocupao do solo (solo criado e as operaes interligadas), urbanizao de favelas, entre outros. Segundo o autor, as iniciativas locais disseminaram-se a partir do final dos anos 1980, gerando impacto na opinio pblica e ganhando maior legitimidade na medida em que foram tambm apoiadas pelas novas polticas de financiamento adotadas pelos organismos internacionais de fomento. Passaram a ser valorizadas as experincias bem-sucedidas (best practices), instituindo-se mecanismos de concorrncia e premiao a nvel internacional. A existncia de diversas iniciativas locais significativas, no entanto, tm mostrado alcance limitado. A possibilidade do desenvolvimento de uma poltica de habitao que tenha caractersticas mais amplas, com impacto real sobre o dficit habitacional, implica em uma considerao adicional sobre a capacidade de transformar estas experincias em programas de longo prazo, dotados de recursos financeiros e tcnicos para sua execuo, considerando-se ainda a enorme diversidade da situao dos municpios brasileiros (CARDOSO, 2001).

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2.2 O cenrio de surgimento do Programa Favela-Bairro

A idia de um programa global de integrao das favelas cidade, resultado do acmulo de experincias anteriores, tais como as aes da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social - SMDS e do Projeto Mutiro Remunerado16, ao longo dos anos 1980, consolida-se com o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, sancionado pelo prefeito Marcello Alencar em 1992. Privilegiando a via urbanizadora e a futura transformao das favelas em bairros populares, o plano coloca a necessidade de implantao de lotes urbanizados e de moradias populares, da urbanizao e regularizao fundiria de favelas, da implantao de loteamentos de baixa renda. Alm disso, procura definir a favela atravs de critrios tcnicos, focados em suas caractersticas espaciais e em suas carncias em infra-estrutura, deixando de lado quaisquer juzos morais, culturais ou polticos. Favela, segundo o plano:

a rea predominantemente habitacional, caracterizada por ocupao da terra por populao de baixa renda, precariedade da infra-estrutura urbana e de servios pblicos, vias estreitas e de alinhamento irregular, lotes de forma e tamanho irregulares e construes no licenciadas, em desconformidade com os padres legais (Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro 1993).

O surgimento da figura, tambm nascida com o Plano Diretor, de rea de Especial Interesse Social - AEIS, veio proporcionar um instrumento legal importante para lidar com as formas de ocupao do solo e os sistemas construtivos caractersticos das favelas e desviantes do padro legal, alm de ter proporcionado certa legitimidade a tais ocupaes. Tal perspectiva tambm se revela na medida em que o plano prev a incluso das favelas nos mapas e cadastros da cidade, alm de diretrizes que viriam futuramente nortear a formulao do Programa Favela-Bairro, tais como a participao dos moradores

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O Projeto Mutiro Remunerado, criado no mbito da SMDS e iniciado a partir dos anos 1980, efetuou melhorias pontuais na infra-estrutura bsica de algumas favelas utilizando-se de mo-de-obra local remunerada.

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no processo de urbanizao, a integrao da favela ao bairro e a preservao da tipicidade da ocupao local. Abaixo encontram-se tais referncias:Art. 148 - A urbanizao e a regularizao urbanstica e fundiria sero realizadas mediante intervenes graduais e progressivas em cada favela, para maximizar a aplicao dos recursos pblicos e disseminar os benefcios entre o maior nmero de habitantes.

Art. 149 - As favelas integraro o processo de planejamento da Cidade, constando nos mapas, cadastros, planos, projetos e legislao relativos ao controle do uso e ocupao do solo, e da programao de atividades de manuteno dos servios e conservao dos equipamentos pblicos nelas instalados.

Art. 150 - O programa garantir a permanncia dos moradores na favela beneficiada, pela imposio de restries ao uso e ocupao do solo e de outros instrumentos adequados.

Art. 151 - A determinao do grau de prioridade da favela, para efeito de sua integrao ao programa, considerar os seguintes critrios: I - participao da comunidade no programa; II - viabilidade tcnica, considerada a relao custo-benefcio social, das intervenes do Poder Pblico; III - existncia de reas de risco; IV - proximidade de unidade de conservao ambiental;

Art. 152 - As aes previstas nesta Seo sero orientadas pelo estudo da situao fundiria e pela elaborao de projeto urbanstico, que observar estas diretrizes; I - integrao da favela ao bairro e ao aglomerado de favelas onde est situada; II - preservao da tipicidade da ocupao local; III - previso da implantao progressiva e gradual da infraestrutura, com a definio das obras a serem executadas em cada

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etapa, de modo a manter a complementariedade entre elas e os procedimentos de regularizao urbansticas a serem adotados.( Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. 1993.)

O Plano Diretor proporcionou um marco legal importante para a futura realizao do Programa Favela-Bairro na gesto do prefeito Csar Maia (1993 1996). A poltica habitacional propriamente dita, compreendendo a estruturao de programas e suas metodologias de implementao, ainda no estava plenamente formulada. Segundo relatrio do IBAM de outubro de 1996, diversos relatos de participantes institucionais do processo de formulao oficial da poltica habitacional e da Secretaria Municipal de Habitao afirmaram a importncia da criao do Grupo Executivo de Programas Especiais para Assentamentos Populares - GEAP17, principalmente por ter representado uma alternativa s disputas que se desenvolviam pela coordenao da poltica habitacional do Municpio e uma tentativa de centralizar os esforos nessa direo, uma vez que as aes relativas habitao popular se dispersavam por vrios rgos (IBAM, 1996). O GEAP estaria diretamente ligado ao prefeito e teria a incumbncia de formular uma poltica habitacional para o Rio de Janeiro. Assim sendo, o GEAP props seis programas habitacionais: Regularizao de Loteamentos;

Regularizao Fundiria e Titulao; Novas Alternativas; Morar Carioca; Morar Sem Risco e o Favela-Bairro18. O objetivo do Favela-Bairro, segundo o GEAP, seria construir ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento e democratizao de acessos) e oferecer as condies ambientais de leitura da favela como bairro da cidade. Previa tambm aes de reassentamento apenas quando estritamente necessrias, alm da adeso dos moradores e a introduo de valores urbansticos da cidade formal como signo de sua identificao como bairro (GEAP, 1993). Segundo Burgos (1999), nota-se no Favela-Bairro, ao contrrio de outros programas de urbanizao de favelas realizados na cidade, o17 18

Decreto 12.205, de 13 de agosto de 1993. Para mais detalhes, ver Bases da poltica habitacional da cidade do Rio de Janeiro. GEAP, 1993.

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princpio de intervir o mnimo possvel nos domiclios, definindo-se como um programa eminentemente voltado para a recuperao das reas e equipamentos pblicos.

2.3 A formulao do Programa Favela-Bairro Segundo Srgio Magalhes19, diferentemente do Projeto Mutiro, caracterizado por intervenes focalizadas, durante a concepo do Programa Favela-Bairro procurou-se tratar a favela como um todo, mediante um conjunto de aes completas, ressaltando-se a importncia da perspectiva de integrao da favela cidade. Magalhes considera uma questo fundamental, presente na formulao do Programa, o reconhecimento de uma espacialidade a favela que at ento era dada como anrquica e considerada insuficiente como habitat, como locus possvel de intervenes amplas e abrangentes, construindo, entre outras aes, infra-estruturas, equipamentos, e ao mesmo tempo preservando os valores mais fortes dessa espacialidade pr-existente. Isso, do ponto de vista da doutrina urbanstica, uma inflexo monumental, que no se coaduna com a doutrina anterior de pensar que o saber acadmico da arquitetura deveria sobrepor-se aos saberes populares20. O Favela-Bairro veio consolidar, segundo Magalhes, uma viso de troca entre ambos os saberes. Por recomendao do GEAP, em 29 de dezembro de 1993 cria-se um rgo especfico para gerir a poltica habitacional, a Secretaria Extraordinria de Habitao - SEH, que um ano depois (dezembro de 1994) se tornaria a Secretaria Municipal de Habitao - SMH21. Coube SEH iniciar a seleo das favelas que19

Em entrevista concedida ao autor em 16 /01 /2006. Srgio Magalhes foi Secretrio Executivo do GEAP, Secretrio Extraordinrio de Habitao e Secretrio Municipal de Habitao de 1993 at 2002. 20 Ibid. 21 A SMH incorporou quadros tcnicos da SMDS, formados no Projeto Mutiro, da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU), como tambm de empresas e rgos municipais como a Riourbe. Segundo publicao conjunta da Prefeitura do Rio de Janeiro e do BID em comemorao aos dez anos do programa, foi essa massa crtica que deu as razes ao Favela-Bairro. Fonte: Favela-Bairro 10 anos integrando a cidade Prefeitura do Rio; Banco Interamericano de Desenvolvimento. Rio de Janeiro, Setembro / 2003.

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viriam a ser atendidas pelo Programa Favela-Bairro. Segundo Martins (1999), a definio da metodologia para a seleo das favelas foi feita atravs de discusses promovidas por um grupo de tcnicos representantes dos diversos rgos