favela painting

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Pintar a fuga à exclusão O esquecimento social a que estão sujeitos os habitantes das favelas do Rio de Janeiro pode estar perto do fim. A dupla Haas & Hahn levou a cor à Vila Cruzeiro e a violência na favela deixou de ser notícia 32 Arquitectura Traço Texto: Pedro Cristino Fotos: Haas&Hahn

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Artigo para o quarto número da revista "Traço"

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Pintar a fuga à exclusãoO esquecimento social a que estão sujeitos os habitantes das favelas do Rio de Janeiro pode estar perto do fim. A dupla Haas & Hahn levoua cor à Vila Cruzeiro e a violência na favela deixou de ser notícia

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Texto: Pedro Cristino

Fotos: Haas&Hahn

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Dois holandeses descobriram nas favelas doRio de Janeiro uma rota de fuga à exclusãosocial. Este caminho seria “escavado” comum conjunto de pinturas de grandes di-mensões, que trariam novos olhares a estesaglomerados urbanos dos desprivilegiadoscariocas. Às reportagens quotidianas de vio-lência nas favelas que os media mostram,juntam-se agora as notícias positivas (e co-loridas) que Haas&Hahn se esforçaram porfazer transparecer em zonas da cidade quenão eram tão maravilhosas assim.

“Olha que coisa mais linda”“Ah, se ela soubesse que quando ela passa, omundo inteirinho se enche de graça e ficamais lindo por causa do amor”. As palavrasforam escritas por Vinícius de Moraes eTom Jobim, para a Helô Pinheiro, a garotaque passeava na Praia de Ipanema e se tor-nou a musa inspiradora que levou dois dosmaiores símbolos da música brasileira a

criar a canção que transformaria a BossaNova num conceito global – Garota de Ipa-nema. Contudo, a distância entre a Praia de

Ipanema e Vila Cruzeiro ainda é longa e essa“graça” que cantaram Vinicius e Tom aosouvidos de todo um planeta perde-se pelocaminho. Aos mais imaginativos, a CidadeMaravilhosa poderá dever este epíteto àforma como foi “esculpida” - a arte com queGarrincha e Zico levavam as bolas às redes,os traços com que Óscar Niemeyer criouconceitos arquitectónicos, os poemas comque Vinícius de Moraes conquistou a poste-ridade ou os acordes com que Tom Jobim eChico Buarque inundaram um mundo commúsica em português. Todos tiveram “mão”no Rio de Janeiro enquanto pólo criativo,cada um à sua maneira. Contudo, zonasdesta cidade com mais de seis milhões dehabitantes ficaram esquecidas, apesar de es-tarem bem visíveis nos morros, na forma doque hoje se conhece como favelas.

“A beleza que existe”Foi o caso de Vila Cruzeiro, que os holande-ses Dre Urhahn e Jeroen Koolhaas descobri-ram após visitarem o Brasil, em 2005, parafilmar o documentário “Firmeza Total”, re-ferente à juventude nas favelas do Rio e deSão Paulo. No seu regresso, visitaram váriasfavelas, à procura de lugares adequados parapintar, tornando-os “trabalhos de arte”. Foiesta a forma que o jornalista e copywriter –Urhan – e o designer gráfico – Koolhaas – en-contraram para combater a exclusão socialque assombra estas zonas. “Achámos trêscasas em Vila Cruzeiro, uma das favelasmais notórias do Rio. Desenhos diferenteseram apresentados para os moradores des-tas casas e para o líder comunitário. Todosgostaram mais do desenho do menino colo-cando uma pipa [papagaio de papel] no ar,algo que todas as crianças fazem na favela”,explicou a dupla holandesa, que adoptou onome Haas&Hahn. Com o azul do céu comofundo, a criança soltava a “pipa”, “enchendode graça” a Vila Cruzeiro de seu nascimentoe de orgulho a comunidade que juntou es-

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forços para a pintar. “Há uma história en-graçada relativamente a esse azul. Depois determos pintado as casas do nosso primeiroprojecto com uma base em azul, os morado-res ficaram em choque”, refere Urhahn, ex-plicando que a cor escolhida “era a daesquadra de polícia e eles [os moradores] fi-caram com medo de que as pessoas come-çassem a disparar” para as suas habitações.Assim, a dupla criativa e a comunidade pin-taram rapidamente o resto do desenho “etodos ficaram felizes”. “O Jeroen escolhe cui-dadosamente as paletes de cor para cadalocal onde trabalhámos. Sentimos que cadacidade tem a sua própria palete e é sempreuma aventura entusiasmante encontrá-la,quando visitamos um novo lugar”, garante.

Rio CruzeiroO segundo trabalho da dupla, Vila Cruzeirofoi finalizado em 2008, numa maciça estru-tura em betão, construída para proteger acolina de deslizamentos de lama, durante otempo chuvoso. O trabalho foi desenvolvidopela “juventude local, que aprenderam umofício, ao mesmo tempo que ganhavam di-nheiro”. Esta pintura gigante baseou-se numdesenho japonês tradicional da autoria dotatuador Rob Admiraal. “Após oito meses depinturas, de suportar longos períodos de

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chuva, de tiroteios e de ocupação policial,esta obra de arte de 2 mil metros quadradosestava finalmente acabada”, referiram os ar-tistas holandeses.

Mudança de perspectiva“Esperávamos que os nossos projectos aju-dassem, de alguma forma, a abrir um diá-logo social, ou que talvez mudassem aperspectiva de forasteiros, ou apenas des-pertassem a imaginação dos habitantes,mesmo que funcionassem simplesmentecomo uma espécie de janela, através daqual, as pessoas pudessem olhar para as fa-velas com um “novo olhar””, explicou DreUrhahn à Traço, revelando que este projecto“pode ser um ponto de partida para um me-

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lhor entendimento”. Uma das mudançasmais gritantes deste projecto que começouem 2006 a transformar um morro repleto debarracas numa obra de arte monumental,consistiu na atenção dos media. “Ver osmedia brasileiros chegarem em massa parafazerem reportagens com uma mensagempositiva foi algo de novo para muitos. Esta-vam felizes por, pela primeira vez, verem oseu bairro caracterizado não como um localde horror e crime, mas como um local debeleza”, referiu o jornalista natural dos Paí-ses Baixos, revelando que esta comunidadesofria as consequências de ter sido colo-cada, na sua totalidade, “na lista negra, apósTim Lopez, um famoso jornalista brasileiro,ter alegadamente sido aí morto”. Além

disso, a cerimónia de abertura “acabou porresultar num dia de paz muito bem vindo,depois de uma longa época de guerra entrea polícia e os traficantes de droga, e atraiumuitos visitantes de fora da comunidade”.A dupla esperava que o maior desafio con-sistisse em reunir o apoio de todos os habi-tantes desta comunidade. “Todavia, aomovermo-nos pelos bairro e ao passar todoo nosso tempo aí, este processo acabou portornar-se orgânico. Infelizmente, o verda-deiro desafio foi o financiamento destes pro-jectos. Damos por nós numa constante“caça” por financiamento, quando prefería-mos estar apenas a pintar”, contou ao TraçoDre Urhahn.

Despertar o potencial criativoNa opinião de Urhahn, o potencial criativodos habitantes destes bairros é “enorme”.“Todos os brasileiros irão concordar quandose diz que a maioria da cultura encontrouas suas raízes na vida da favela”, reforça, ex-plicando que “um grande problema resideno facto de muita gente não ser suficiente-mente estimulada para desbloquear e utili-zar o seu potencial criativo”. De resto, é umproblema que Dre Urhahn também encon-trou nas comunidades da cidade norte-ame-ricana de Filadélfia, onde a dupla seencontra já a desenvolver um conjunto deprojectos. E será que este projecto, que co-locou toda uma comunidade a transformaruma favela num gigantesco “titã” artísticopoderá ser o impulso necessário para tornarestes bairros social e economicamente des-favorecidos em pontos de ebulição criati-vos? “Depende do local. Especialmente apósas “pacificações”, através das quais o go-verno tenta, à forla, “limpar” as favelas emantecipação aos Jogos Olímpicos e ao Cam-peonato Mundial de Futebol”, responde.“Algumas favelas centrais tornar-se-ãonovos centros artísticos e da moda”, refereUrhahn, contrapondo com o facto de que“os preços de habitação irão rapidamenteaumentar ao ponto de ultrapassarem o or-çamento de qualquer “favelado””. Contudo,“a maioria das quase mil favelas irão conti-nuar fora da lista de “locais a visitar” damaior parte das pessoas, independente-mente do facto de estarem pintadas ounão”, conclui. A dupla holandesa não seficou por aqui e levou o projecto a outras pa-ragens do Rio. “Praça Cantao”, “Terra En-cantada” ou “O Morro” são apenas algunsdos trabalhos realizados por Haas&Hahnnesta cidade. Este projecto não mudou ape-nas a vida da dupla. “Basicamente, tornou-se na nossa vida. Nos últimos seis anos,temos estado a trabalhar neste projecto semparar e esperamos continuar a fazer mais emaiores pinturas no Rio e noutro locais domundo”, assegura Dre Urhahn.

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“Esperávamosque os nossosprojectos ajudassem a abrir um diálogo social...”

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