a abordagem triangular em um contexto de educacao infantil multietaria

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NARRATIVA ESTÉTICO-PEDAGÓGICA A ABORDAGEM TRIANGULAR EM UM CONTEXTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL MULTIETÁRIA Carolina T. Pires, mestranda Departamento de Artes Plásticas - ECA-USP Orientadora: Profa. Dra. Maria Christina de Souza Lima Rizzi RESUMO A produção artística das crianças pequenas revela muito, tanto de suas realidades cotidianas quanto de seus universos interiores. Espelham traços de personalidade, sentimentos, percepção do mundo e se realizam como jogo, como brincadeira. Produzir a partir das linguagens expressivas permite que as crianças dêem forma aos seus intentos, que ganham consciência e compreensão, pois a relação com a manifestação concreta dos mesmos permite que a eles sejam atribuídos sentido e significado (OSTROWER, 1987). Por outro lado, ler e contextualizar suas próprias produções, as de outras crianças com quem convivem e também obras de consagrados artistas, amplia a visão de mundo dos pequenos, sensibilizando o olhar, nutrindo a imaginação e, por isso, expandindo suas possibilidades de criar (VYGOTSKY, 1984; BARBOSA, 2011). Este projeto propõe uma reflexão realizada a partir de um trabalho desenvolvido com um grupo multietário de crianças, de 2 a 5 anos, numa escola de educação infantil em Cotia, SP, que teve como eixo central a utilização da Abordagem Triangular para o ensino da Arte, sistematizada por Ana Mae Barbosa, para proporcionar às crianças uma experiência (DEWEY, 2010) que permeasse a leitura, a contextualização e o fazer artístico e que se refletiu em claro enriquecimento, não apenas de suas colocações a cerca de suas percepções e leituras de mundo (FREIRE, 1988), mas também de suas brincadeiras e da qualidade de suas produções plásticas. PALAVRAS-CHAVE: ARTE-EDUCAÇÃO; ABORDAGEM TRIANGULAR; EDUCAÇÃO INFANTIL MULTIETÁRIA ABSTRACT The art works of young children reveals a lot, not only about their daily realities, but also about their inner universes. They reflect their personalities , feelings, their perceptions of the world and are materialized as a game, as play. Work with the expressive languages allows kids to give shape to their wishes, that can become conscious, once materialized in concrete objects that respresents them and make possible that their meanings can be understood (OSTROWER, 1987). On the other hand, read and contextualize their own production, the prodution of other kids they are related to, as well as the art work of well known artists, expand their world view, make their observation it more sensitive, nourish their imagination and, because of that, amplifies their possibilities to criate (VYGOTSKY, 1984; BARBOSA, 2011). This project brings up a reflexion that came from a work developed with a multiage group of kids, from 2 to 5 years old, in a kindergarten school in Cotia, SP. It had as a fundamental axle the Triangular Proposal to Art Teaching, systemized by Ana Mae Barbosa, and had as main purpose to offer the children an experience (DEWEY, 2010) that included the reading, contextualizing and art making and that has reflected in a clear enrichment, not only of their verbal manifestations of their perceptions and world reading (FREIRE, 1988), but also of their play and the quality of their art works. 1. Introdução Os contextos multietários, em instituições de educação infantil, são ambientes onde crianças de até 7 anos 1 têm a oportunidade de interagir e se relacionar, sem serem separadas por idades, em seu cotidiano na escola. São espaços que reproduzem hoje, de certa forma, a convivência orgânica e natural que se estabelecia nos grandes núcleos familiares que ilustram nosso passado; compostos por muitos filhos, primos e 1 As Escolas Waldorf ainda trabalham com o Ensino Fundamental a partir dos sete anos.

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NARRATIVA ESTÉTICO-PEDAGÓGICA

A ABORDAGEM TRIANGULAR EM UM CONTEXTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL MULTIETÁRIA

Carolina T. Pires, mestranda Departamento de Artes Plásticas - ECA-USP Orientadora: Profa. Dra. Maria Christina de Souza Lima Rizzi RESUMO

A produção artística das crianças pequenas revela muito, tanto de suas realidades cotidianas

quanto de seus universos interiores. Espelham traços de personalidade, sentimentos, percepção do

mundo e se realizam como jogo, como brincadeira. Produzir a partir das linguagens expressivas

permite que as crianças dêem forma aos seus intentos, que ganham consciência e compreensão, pois a

relação com a manifestação concreta dos mesmos permite que a eles sejam atribuídos sentido e

significado (OSTROWER, 1987). Por outro lado, ler e contextualizar suas próprias produções, as de

outras crianças com quem convivem e também obras de consagrados artistas, amplia a visão de mundo dos pequenos, sensibilizando o olhar, nutrindo a imaginação e, por isso, expandindo suas

possibilidades de criar (VYGOTSKY, 1984; BARBOSA, 2011).

Este projeto propõe uma reflexão realizada a partir de um trabalho desenvolvido com um

grupo multietário de crianças, de 2 a 5 anos, numa escola de educação infantil em Cotia, SP, que teve

como eixo central a utilização da Abordagem Triangular para o ensino da Arte, sistematizada por Ana

Mae Barbosa, para proporcionar às crianças uma experiência (DEWEY, 2010) que permeasse a leitura,

a contextualização e o fazer artístico e que se refletiu em claro enriquecimento, não apenas de suas

colocações a cerca de suas percepções e leituras de mundo (FREIRE, 1988), mas também de suas

brincadeiras e da qualidade de suas produções plásticas.

PALAVRAS-CHAVE: ARTE-EDUCAÇÃO; ABORDAGEM TRIANGULAR; EDUCAÇÃO

INFANTIL MULTIETÁRIA

ABSTRACT

The art works of young children reveals a lot, not only about their daily realities, but also

about their inner universes. They reflect their personalities , feelings, their perceptions of the world and

are materialized as a game, as play. Work with the expressive languages allows kids to give shape to

their wishes, that can become conscious, once materialized in concrete objects that respresents them

and make possible that their meanings can be understood (OSTROWER, 1987). On the other hand,

read and contextualize their own production, the prodution of other kids they are related to, as well as

the art work of well known artists, expand their world view, make their observation it more sensitive,

nourish their imagination and, because of that, amplifies their possibilities to criate (VYGOTSKY,

1984; BARBOSA, 2011).

This project brings up a reflexion that came from a work developed with a multiage group of kids, from 2 to 5 years old, in a kindergarten school in Cotia, SP. It had as a fundamental axle the

Triangular Proposal to Art Teaching, systemized by Ana Mae Barbosa, and had as main purpose to

offer the children an experience (DEWEY, 2010) that included the reading, contextualizing and art

making and that has reflected in a clear enrichment, not only of their verbal manifestations of their

perceptions and world reading (FREIRE, 1988), but also of their play and the quality of their art works.

1. Introdução

Os contextos multietários, em instituições de educação infantil, são ambientes

onde crianças de até 7 anos1 têm a oportunidade de interagir e se relacionar, sem

serem separadas por idades, em seu cotidiano na escola. São espaços que reproduzem

hoje, de certa forma, a convivência orgânica e natural que se estabelecia nos grandes

núcleos familiares que ilustram nosso passado; compostos por muitos filhos, primos e

1 As Escolas Waldorf ainda trabalham com o Ensino Fundamental a partir dos sete anos.

parentes de diversas idades e que se dava, principalmente, nos espaços públicos das

cidades.

No presente trabalho pretendo trazer reflexões a respeito de possibilidades

para a utilização dos conhecimentos propostos pela Abordagem Triangular para o

Ensino da Arte, sistematizada por Ana Mae Barbosa, em um contexto atual de uma

escola multietária. Levo em consideração, especialmente, a riqueza que a convivência

respeitosa em um ambiente de diversidade proporciona e como esta se manifesta na

qualidade das produções visuais das crianças.

Para este fim, apresentarei características e exemplos do cotidiano multietário

no qual estou inserida, ilustrados pelo projeto mais recente realizado com o grupo do

qual sou professora, onde trabalhamos os Livros.

2. O contexto multietário e a riqueza da diversidade

O ser humano é um ser social, que se desenvolve e expande seus

conhecimentos na interação com seus pares e com a sociedade na qual está inserido,

sendo produto de seu tempo e de sua cultura. (VYGOTSKY, 1991) Uma vez que

passa a estabelecer relações, estas nutrem sua experiência desencadeando um

acelerado processo de desenvolvimento.

A interação cotidiana entre crianças de diferentes idades e características se

traduz, para elas, na possibilidade de conviver com a diversidade, de ampliar seu

potencial de aprendizado e de se relacionar de acordo com suas afinidades, interesses

e escolhas. A faixa etária deixa de ser um limitador e desta maneira, seus horizontes

sociais se ampliam e se enriquecem. Irmãos, amigos de idades variadas, meninos e

meninas; todos têm espaço para interagir, se assim o desejarem.

Muito acontece

à partir das próprias

crianças, consideradas

sujeitos agentes em seu

desenvolvimento social

e pessoal (JAMES,

2009).

No dia a dia na

escola, uns estimulam e

incentivam os outros.2

Os menores aprendem

com os maiores por

imitação e assim suas

referências se ampliam.

Os maiores, que

espontaneamente zelam pelos pequenos, têm oportunidades para ressignificarem o

que já aprenderam ensinando os que ainda não sabem e, com isso, consolidando seus

conhecimentos. Em um cenário como este, as zonas de desenvolvimento proximal das

crianças são “multiplicadas”, a partir das inúmeras interações possíveis entre elas,

assim como seus campos de experiência e aprendizado (VYGOTSKY, 1991).

Estes, por sua vez, compõe o material psíquico a partir do qual elas criam e

brincam sendo que, quanto mais rico em experiências for o ambiente em que estão

2 Foto 1: Atividade: Desenhos com areia. Crianças: Lara e Pedro (2 anos), Manuel (3 anos), Ana Beatriz e Laís (4 anos) e Maria Carolina (5 anos).

inseridas, mais subsídios terão para sustentar e frutificar sua imaginação, fantasia e

criação (VYGOSTKY, 2009).

Uma dinâmica como essa também proporciona oportunidades para o exercício

do respeito pelo tempo e pelas particularidades de cada um, e a qualidade das

vivências por ela geradas só se torna possível com uma mediação acolhedora e firme

por parte dos educadores.

Um atento e intenso trabalho de “resolução de conflitos” é feito entre os

pequenos - trabalho que é considerado, pela equipe pedagógica da qual faço parte,

como “o mais importante a ser realizado” num contexto como este, aproveitando os

desafios e aprendizados proporcionados por um contexto de diversidade para

estimular a todos a se perceber e a perceber os outros, a se conscientizar seus

sentimentos, a aprender a comunicá-los e a respeitar as diferenças e os jeitos de ser de

cada um.

Tenho conhecimento de poucas escolas que trabalham hoje em dia com esta

metodologia multietária, sendo possível encontrar, dentre elas, diferentes

configurações e formatos para a realização da mesma3.

A instituição em que trabalho4, uma escola de educação infantil particular, se

localiza no município de Cotia, na Granja Vianna, Grande São Paulo. Completando

12 anos em janeiro próximo, tem atualmente nela matriculadas cerca de 90 crianças,

distribuídas entre os períodos da manhã e tarde, em grupos que contemplam idades de

1 ano e meio a seis anos5, com uma média de 12 a 16 crianças por grupo. Para a

realização satisfatória do trabalho que se propõe desenvolver, cada grupo conta com a

presença de 2 a 3 adultos6, dependendo da quantidade e características das crianças

que dele fazem parte, o que possibilita um acompanhamento mais individualizado e

aprofundado das necessidades das mesmas.

3. A arte e as linguagens expressivas em um contexto multietário

As crianças pequenas são exploradoras curiosas do mundo em que vivem.

Têm em si grande entusiasmo pelo novo, pelo inusitado, pelas descobertas e é desta

maneira que se relacionam, em um primeiro momento, com as linguagens expressivas

e com a prática artística. O encontro com os materiais e suas possibilidades

proporcionam a elas grande encantamento e também bons desafios: descobrir formas

e movimentos, elaborar, construir, ordenar, equilibrar, produzir; trabalhando com as

cores, com as texturas, com as dimensões.

Conforme vão crescendo e se aprofundando no universo das representações

simbólicas, as linguagens expressivas passam a dar voz às suas experiências, atuando

como veículo para a tradução de suas percepções e compreensões do meio na qual

estão inseridas. Passam a ser substrato para a concretização de suas fantasias e

brincadeiras, para a elaboração e conscientização de seus desejos e de suas

características.

Todos estes processos podem ser enriquecidos através de estímulos e

oportunidades para a sensibilização da percepção e do olhar dos pequenos para o

3 Por exemplo: a Te-arte, a Grão-de-Chão, a Casa Redonda e os Jardins Waldorf, todas na Grande São Paulo, cada uma do “seu jeito”. 4 Escola de Educação Infantil Bilíngue Kid‟s Home ( www.escolakidshome.com.br ) 5 Em geral os critérios para o ingresso nestes grupos multietários se relaciona mais com algumas

características específicas observadas em cada criança – como, por exemplo, a capacidade de andar e

se locomover com firmeza e autonomia – do que com a idade cronológica propriamente dita. 6 Uma média de 5 a 7 crianças por adulto; 1 professora e 1 ou 2 assistentes.

mundo que os cerca. Este trabalho pode ser realizado de diversas maneiras.

Utilizando-se do meio imediato no qual as crianças estão inseridas, profundamente

carregado de significados para elas; instigando sua curiosidade a respeito do mesmo,

estimulando-as a perceber as características do ambiente, de seus habitantes, a

estabelecer relações e associações com suas próprias experiências; e, em especial,

orquestrando situações para que possam traduzir suas percepções plasticamente,

concretizando-as através de linguagens diversas.

Nesta ação criadora o ato de dar forma, como diz Ostrower (1987) é formar-

se. É não apenas encontrar, mas construir sentido e significado para as experiências

vividas e para suas repercussões nas formas de ser de cada um.

Nesta fase da vida, que muitos autores denominam “primeira infância”, os

alicerces que estruturam a essência de cada ser, sua personalidade, seus valores,

hábitos e padrões de comportamento, estão sendo formados. Isto, por sua vez, não

apenas justifica e reforça a importância de um trabalho minucioso, apurado e bem

feito com as crianças pequenas, como revela a oportunidade de realização de

significativas intervenções sociais, realizadas grão a grão.

Para tanto, encontro grande respaldo nos conhecimentos sistematizados por

Ana Mae Barbosa na Abordagem Triangular para o Ensino da Arte que, dentro do

contexto da educação infantil, pode ser trabalhada não apenas relacionando-a com o

que, formalmente, denominamos arte. Busco, através dos caminhos que propõe: o ler,

o contextualizar e o fazer, maneiras de relacionar-me com a vida, com a realidade das

crianças e, para isso, também me inspiro no que Paulo Freire (2009) chamou de

leitura do mundo. Uma relação profunda com vida é sempre grande inspiração para a

produção artística.

A partir desta compreensão, percebo os conceitos que estruturam a

Abordagem Triangular profundamente enraizados na prática diária com as crianças,

sendo possível trabalhar com elas tanto a partir de obras de arte e manifestações

culturais e artísticas diversas, como através da relação com as formas, cores e

movimentos que permeiam sua realidade cotidiana, presentes na natureza com a qual

convivem, nas construções que estruturam seu espaço e, em especial, através do

intercambio com a produção de seus pares.

Segundo Machado (2011, p.68) “a Abordagem Triangular não estabelece o

que fazer nem aponta como fazer. Desenha um cenário de campos de conhecimento

inter-relacionados, um terreno no qual o ensino e a aprendizagem podem ocorrer”.

Na educação infantil, as dimensões do fazer, do ler e do contextualizar podem

ser encontradas integradas e permeando a experiência dos pequenos em diversos

âmbitos, neste cotidiano tão rico em descobertas, como é o das crianças.

Nos momentos específicos “de ateliê”7, no entanto, propostas são feitas,

materiais são oferecidos e a generosidade das crianças nos aponta claramente quando

o que vivenciam está sendo, de fato, uma experiência (DEWEY, 2010). A expressão

do seu envolvimento permeia não apenas o momento da atividade, onde uma

concentração acima da média absorve cada um plenamente, estendendo o tempo; mas

transborda para a vida e se reflete nas brincadeiras, nas conversas, nos

agradecimentos feitos por elas e na manifestação do desejo que tal experiência possa

se repetir, ainda que transformada em algo mais.

A ação criadora, nesta faixa etária, extrapola os espaços de atividades dirigidas

e se faz presente nas brincadeiras, nos faz-de-conta e em muitos outros momentos do

cotidiano. Desta maneira, o trabalho com a arte e com as manifestações culturais, para

7 Momento dedicado a atividades direcionadas, com as linguagens expressivas.

se configurar como experiência

significativa para as crianças

pequenas, precisa ser ofertado

considerando suas

características e habilidades; de

forma lúdica e integrada às

suas realidades8.

Na escola em que

trabalho, dada suas

peculiaridades, tais atividades

são realizadas estimulando que,

em meio a um grupo

heterogêneo, com crianças de,

aproximadamente, 1 anos e

meio a 6, cada um busque interagir com as propostas sugeridas “do seu jeito”9 - de

acordo com suas possibilidades, competências e vontades - respeitando os tempos de

cada um e incentivando assim o autoconhecimento e as trocas naturais entre as

“infinitas formas de se fazer a mesma coisa”10

.

Naturalmente os tempos

de concentração, competências

e características delas variam

muito e, por isso, há sempre

uma proposta extra preparada

para os que terminam a

atividade mais rapidamente –

cantos temáticos, brinquedos,

brincadeiras etc. - que é

realizada pela assistente de

grupo enquanto a professora

continua a atividade primeira

com os que nela permanecem.

Estes, em geral, conseguem se

aprofundar mais no trabalho que estão desenvolvendo.

A interação de diversas idades em um ateliê traz alguns desafios como, por

exemplo, „elaborar e preparar as propostas levando em conta os diversos estágios de

desenvolvimento encontrados no grupo‟ e „conseguir proporcionar oportunidades de

experiências que sejam significativas para todos‟.

Quando estes propósitos são atingidos com qualidade, proporcionam

significativos benefícios para as crianças que, entre outras coisas, encontram abertura

e espaço para vivenciarem seus tempos e ritmos de forma mais orgânica e flexível,

não pautada por um “padrão de normalidade”, comumente encontrado em

agrupamentos etários.

Em um ambiente multietário, elas vivenciam uma rica e variada gama de

estímulos com os quais podem dialogar e interagir livremente. Estes se manifestam,

especialmente, na maneira como cada um desenvolve “do seu jeito” as atividades

8 Foto 2: Pintura do muro de azulejo. Crianças (da esquerda para a direita): Nicholas (5anos), Bruno

(4), Maria Carolina (5), Manuel (3), Duda (2), Bia (2), Pedro (2), Laís (4), Georgia (5), Guiherme (2). 9 Expressão comumente verbalizada para e, por conseqüência, pelas crianças. 10 Foto 3: Desenhos com areia. Crianças: Guilherme (2 anos), Nicholas e Geórgia (5 anos). No plano de fundo, Manuel (3), brincando após finalizar seu trabalho.

propostas, colaborando para a expansão das já mencionadas zonas de desenvolvimento

proximal (VYGOTSKY, 1991) e tornando-se ali, enquanto exemplo, também um

„professor‟ para todos os outros, adultos e crianças.

As crianças, nestes contextos, observam bastante umas às outras, e muito

aprendem a partir dessas trocas. Por outro lado, também são estimuladas a cultivar o

hábito de buscarem respostas próprias para os desafios propostos e para suas próprias

perguntas, exercitando seu autoconhecimento e trabalhando sua autonomia e

autoconfiança desde cedo.

Para que isso se concretize é fundamental uma postura aberta e acolhedora por

parte dos educadores, orquestrando uma atmosfera de respeito e liberdade de ser,

manifestadas como posturas que se complementam e se potencializam; e que são

essenciais, em especial em um espaço de expressão e criação como o de um ateliê de

artes.

Embora as possibilidades e exemplos sejam inúmeros, no presente trabalho

optei por focar no intercâmbio de experiências proporcionadas a partir das ações e

produções de crianças de idades diversas convivendo juntas e em como este

intercâmbio influencia não apenas na maneira como se relacionam com seu próprio

‘fazer’, mas em como a essência destas trocas se manifesta em seus trabalhos com as

linguagens visuais. Mais especificamente, utilizo como exemplo concreto um projeto

realizado ao longo de 2011, com o grupo de crianças do qual sou professora, no qual

estou trabalhamos o tema dos livros.

Este grupo é composto por 13 crianças de 2 a 5 anos, como ilustra a tabela

abaixo:

IDADE TOTAL DE CRIANÇAS MENINAS MENINOS

2 anos 5 3 2

3 anos 1 1 0

4 anos 4 2 2

5 anos 3 2 1

4. O Projeto dos Livros

Anualmente desenvolvemos na escola um projeto relacionado à fruição e

produção literária com as crianças, que culmina em um evento, realizado sempre no

mês de setembro, junto aos festejos de

entrada da primavera.

Nele, os trabalhos realizados pelas

crianças ao longo do projeto são colocados

em exposição e as famílias são convidadas

a apreciarem não apenas os livros de seus

filhos, mas também as produções de outras

crianças, podendo assim compreender a

riqueza criativa que se encontra pulsando

naquele ambiente social, com a qual os

seus convivem e do qual são parte

integrante.11

11 Foto 4: Feira do Livro 2011, realizada no dia 24 de Setembro. Livros produzidos pelas crianças de meu grupo.

No cotidiano da escola, os livros estão muito presentes e, por isso, o trabalho

com eles se torna profundamente significativo para os pequenos. Em todos os espaços

há uma mini-biblioteca. Quase que diariamente há contação de histórias. Uma vez por

semana, teatro. Às terças-feiras as crianças podem levar seus livros preferidos para

compartilhar com seus amigos e contá-los, “do seu jeito” nas rodas de história e

também nas rodinhas que elas próprias organizam nos momentos livres. Desta

maneira, o trabalho com os livros pode ser considerado um projeto contínuo no

contexto da escola; operando em ciclos, cujo marco anual é a Feira do Livro.

Não apenas as narrativas servem de alimento para a imaginação dos pequenos.

As ilustrações dos livros disponibilizados, que são escolhidos a dedo pelas

professoras, nutrem seu imaginário visual, ampliando seu referencial imagético e, por

consequência, enriquecendo também suas produções plásticas. Os livros, neste

âmbito, podem ser considerados retratos poéticos de realidades diversas; reflexos de

olhares e possibilidades de expressão distintas que expandem a visão de mundo das

crianças e contribuem tanto para a formação de seus valores como para a

multiplicação de suas formas de se comunicar.

As atividades deste projeto, em 2011, iniciaram-se formalmente em março, tão

logo as crianças mostraram-se adaptadas em seus novos grupos, após o retorno das

férias e inicio do ano letivo. Nesta época intensificamos o trabalho com as narrativas

dos finais de semana12

nas rodas de conversa e iniciamos a proposição e realização

periódica de jogos teatrais e de jogos de sequências narrativas (cada criança inventa

uma parte de uma história)13

. Também começamos a estimular as produções de

tirinhas e pequenos livretos,14

que depois de prontos, eram compartilhados com o

grupo.

Todo o percurso que culminou na produção de um livro mais elaborado foi

planejado a partir do conhecimento dos três momentos da Abordagem Triangular,

intercalando experiências de leitura, contextualização e produção.

A primeira se encontrava

presente no cotidiano do projeto e

abarcava não apenas o contato e

interação com os livros

profissionais, de autores e

ilustradores diversos, com os

quais as crianças puderam

estruturar suas concepções de

„livro‟, enriquecer profundamente

seus repertórios visuais e de

narrativas; mas também, e de

forma bastante especial, através

do contato e interação com o

material produzido por elas

próprias.

Este refletiu muito de suas pesquisas, das conversas que tivemos em roda, dos

assuntos que despontavam enquanto focos de interesse do grupo como um todo.

12 Atividade realizada após os finais de semana, que estimulam as crianças a narrar oral ou visualmente

suas memórias e fatos marcantes dos finais de semana, e que tinham por objetivo não apenas a partilha

com o grupo e o aprendizado das questões relativas a temporalidade, sequência e etc. 13 Realizadas por Erica Martinelli Munhoz, estudante de Letras (FFLCH-USP) e professora de teatro;

minha assistente durante o primeiro semestre de 2011. 14 Foto 5: Criando livretos. Crianças: Lara (2) e Bruno (4).

Permeou-o também a percepção do desenvolvimento de cada criança, enquanto

representantes de diversas “etapas do desenvolvimento humano” ali materializadas,

ajudando-as a compreender seu próprio percurso de aprendizado. Esta riqueza de

estímulos ampliava as referências do grupo como um todo e grandes saltos puderam

ser observados a partir de tais interações.

Com estes livros foi

possível realizar ações bastante

interessantes com os pequenos no

que diz respeito a percepção das

características de cada criança e

como estas se expressavam em

suas produções. Com o passar do

tempo, os vínculos entre elas foram

se estreitando e o “jeito” de cada

um, manifestado em seus trabalhos,

começou a ser reconhecido pelos

demais.

E diziam uns para os outros:

_ “Tudo bem que eu gosto de fazer princesa e ele gosta de fazer robô.” (Ana Beatriz,

4 anos)

_ “O dele é bem colorido, e o meu é só um pouco, não é?” (Bruno, 4 anos)

_ “Não „tá‟ errado não. Eu „tô‟ fazendo do meu jeito.” (Laís, 4 anos)

Além da apreciação dos aspectos formais dos livros – cores, formas, figuras,

materiais utilizados - e das interpretações de significado e compreensão das histórias,

que já vinham acontecendo, os mais velhos passaram a observar e perceber os traços

dos desenhos associando-os as características, gostos, interesses, gênero e idade de

seus autores. Identificavam as narrativas associando-as a experiências do cotidiano na

escola, às brincadeiras realizadas, aos fatos relatados nas rodas, contextualizando-as.

Todo esse movimento de leituras e contextualizações dos trabalhos pôde ser

percebido se refletindo em suas produções e na crescente desenvoltura com a qual se

relacionavam com as propostas,

literalmente soltando sua imaginação

na construção e ilustração de

narrativas que refletiam suas

experiências e interesses.

Esta evolução foi

possibilitando que também as

atividades pudessem ser

gradualmente mais elaboradas, com o

aumento das opções de suporte e

materiais e ampliação das

possibilidade de escolha e utilização

dos mesmos.

O ápice deste processo se deu durante a produção da ultima leva de livros, que

foi exposta no dia 24 de Setembro deste ano. Esta contava com uma mesa repleta de

materiais variados: papéis coloridos, espelhados, camurças, tintas, canetinhas,

tesouras, colas, etc. que puderam ser

utilizados com liberdade pelas crianças, de

acordo com as idéias que surgiam.

Com os menores, optamos por

trabalhar com estímulos sensoriais a partir

desta diversidade de materiais: exploramos

as texturas dos suportes, brilho e

opacidade; fizemos colagens, desenhos e pinturas.

Com os maiores,

trabalhamos à partir de uma história

por eles inventada. Esta foi

registrada por escrito, dividida em

partes e ilustrada, página por

página.

Foram realizados trabalhos

únicos, riquíssimos em detalhes,

completamente personalizados,

cujas imagens ilustram, com maior

propriedade, o que aqui as palavras

se esforçam para traduzir.

O exemplo a seguir é o

trabalho de Manuel, de 3 anos.

“A história da minhoca.”

“Ela morava no deserto.”

“Lá tinha o sol que brilha.”

“Elas comiam para todas as

minhoquinhas nascerem e serem fotes

e ficavam muito grandes desse

tamanho.”

“Elas comiam terra, comida. Comiam

flores.”

“E quando chegava a noite elas voltavam

para suas casinhas, comiam a comida e

dormiam.”

“De noite tinha a lua com um

pouco de água e sal.”

5. Considerações Finais

Um ambiente de criação

se favorece pela postura de tolerância e aceitação dos indivíduos que dele fazem parte

e se enriquece através da convivência da diversidade, que, por sua vez, torna mais

perceptível o valor de cada ser como único.

Em um contexto escolar, uma ação aparentemente simples como misturar

crianças de diversas idades em sua convivência diária, pode resultar em grandes

transformações e oportunidades de aprendizado.

Apesar de simples, para que tenham, a partir dela, bons resultados, todo um

trabalho se faz necessário, em especial no que diz respeito à qualificação e

treinamento da equipe de professoras que precisa, de fato, estar aberta para acolher

cada criança por inteiro e, a partir desta aceitação, poder trabalhar com ela suas

necessidades e desafios, em prol de colaborar para a sua formação.

Na condição de artista e educadora, identifico o quanto o trabalho com a arte e

as linguagens expressivas, em um contexto como esse, é fundamental ao processo

educativo. Em um ambiente de liberdade criativa, cada ser pode se manifestar em sua

inteireza e vivenciá-la. Por outro lado, o contato com manifestações artísticas e

culturais diversas enriquece os campos da experiência e nutre o repertório visual e a

imaginação de todos nós, adultos e crianças, aprendizes e educadores.

Para tal, reforço a compreensão e reconhecimento da colaboração que as

pesquisas em arte e educação tem para a construção de um processo educativo mais

integral, que tenha condições de trabalhar os indivíduos em toda a sua complexidade e

inteireza.

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