a abordagem triangular em um contexto de educacao infantil multietaria

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  • NARRATIVA ESTTICO-PEDAGGICA

    A ABORDAGEM TRIANGULAR EM UM CONTEXTO DE EDUCAO INFANTIL MULTIETRIA

    Carolina T. Pires, mestranda Departamento de Artes Plsticas - ECA-USP Orientadora: Profa. Dra. Maria Christina de Souza Lima Rizzi RESUMO

    A produo artstica das crianas pequenas revela muito, tanto de suas realidades cotidianas

    quanto de seus universos interiores. Espelham traos de personalidade, sentimentos, percepo do

    mundo e se realizam como jogo, como brincadeira. Produzir a partir das linguagens expressivas

    permite que as crianas dem forma aos seus intentos, que ganham conscincia e compreenso, pois a

    relao com a manifestao concreta dos mesmos permite que a eles sejam atribudos sentido e

    significado (OSTROWER, 1987). Por outro lado, ler e contextualizar suas prprias produes, as de

    outras crianas com quem convivem e tambm obras de consagrados artistas, amplia a viso de mundo dos pequenos, sensibilizando o olhar, nutrindo a imaginao e, por isso, expandindo suas

    possibilidades de criar (VYGOTSKY, 1984; BARBOSA, 2011).

    Este projeto prope uma reflexo realizada a partir de um trabalho desenvolvido com um

    grupo multietrio de crianas, de 2 a 5 anos, numa escola de educao infantil em Cotia, SP, que teve

    como eixo central a utilizao da Abordagem Triangular para o ensino da Arte, sistematizada por Ana

    Mae Barbosa, para proporcionar s crianas uma experincia (DEWEY, 2010) que permeasse a leitura,

    a contextualizao e o fazer artstico e que se refletiu em claro enriquecimento, no apenas de suas

    colocaes a cerca de suas percepes e leituras de mundo (FREIRE, 1988), mas tambm de suas

    brincadeiras e da qualidade de suas produes plsticas.

    PALAVRAS-CHAVE: ARTE-EDUCAO; ABORDAGEM TRIANGULAR; EDUCAO

    INFANTIL MULTIETRIA

    ABSTRACT

    The art works of young children reveals a lot, not only about their daily realities, but also

    about their inner universes. They reflect their personalities , feelings, their perceptions of the world and

    are materialized as a game, as play. Work with the expressive languages allows kids to give shape to

    their wishes, that can become conscious, once materialized in concrete objects that respresents them

    and make possible that their meanings can be understood (OSTROWER, 1987). On the other hand,

    read and contextualize their own production, the prodution of other kids they are related to, as well as

    the art work of well known artists, expand their world view, make their observation it more sensitive,

    nourish their imagination and, because of that, amplifies their possibilities to criate (VYGOTSKY,

    1984; BARBOSA, 2011).

    This project brings up a reflexion that came from a work developed with a multiage group of kids, from 2 to 5 years old, in a kindergarten school in Cotia, SP. It had as a fundamental axle the

    Triangular Proposal to Art Teaching, systemized by Ana Mae Barbosa, and had as main purpose to

    offer the children an experience (DEWEY, 2010) that included the reading, contextualizing and art

    making and that has reflected in a clear enrichment, not only of their verbal manifestations of their

    perceptions and world reading (FREIRE, 1988), but also of their play and the quality of their art works.

    1. Introduo

    Os contextos multietrios, em instituies de educao infantil, so ambientes

    onde crianas de at 7 anos1 tm a oportunidade de interagir e se relacionar, sem

    serem separadas por idades, em seu cotidiano na escola. So espaos que reproduzem

    hoje, de certa forma, a convivncia orgnica e natural que se estabelecia nos grandes

    ncleos familiares que ilustram nosso passado; compostos por muitos filhos, primos e

    1 As Escolas Waldorf ainda trabalham com o Ensino Fundamental a partir dos sete anos.

  • parentes de diversas idades e que se dava, principalmente, nos espaos pblicos das

    cidades.

    No presente trabalho pretendo trazer reflexes a respeito de possibilidades

    para a utilizao dos conhecimentos propostos pela Abordagem Triangular para o

    Ensino da Arte, sistematizada por Ana Mae Barbosa, em um contexto atual de uma

    escola multietria. Levo em considerao, especialmente, a riqueza que a convivncia

    respeitosa em um ambiente de diversidade proporciona e como esta se manifesta na

    qualidade das produes visuais das crianas.

    Para este fim, apresentarei caractersticas e exemplos do cotidiano multietrio

    no qual estou inserida, ilustrados pelo projeto mais recente realizado com o grupo do

    qual sou professora, onde trabalhamos os Livros.

    2. O contexto multietrio e a riqueza da diversidade

    O ser humano um ser social, que se desenvolve e expande seus

    conhecimentos na interao com seus pares e com a sociedade na qual est inserido,

    sendo produto de seu tempo e de sua cultura. (VYGOTSKY, 1991) Uma vez que

    passa a estabelecer relaes, estas nutrem sua experincia desencadeando um

    acelerado processo de desenvolvimento.

    A interao cotidiana entre crianas de diferentes idades e caractersticas se

    traduz, para elas, na possibilidade de conviver com a diversidade, de ampliar seu

    potencial de aprendizado e de se relacionar de acordo com suas afinidades, interesses

    e escolhas. A faixa etria deixa de ser um limitador e desta maneira, seus horizontes

    sociais se ampliam e se enriquecem. Irmos, amigos de idades variadas, meninos e

    meninas; todos tm espao para interagir, se assim o desejarem.

    Muito acontece

    partir das prprias

    crianas, consideradas

    sujeitos agentes em seu

    desenvolvimento social

    e pessoal (JAMES,

    2009).

    No dia a dia na

    escola, uns estimulam e

    incentivam os outros.2

    Os menores aprendem

    com os maiores por

    imitao e assim suas

    referncias se ampliam.

    Os maiores, que

    espontaneamente zelam pelos pequenos, tm oportunidades para ressignificarem o

    que j aprenderam ensinando os que ainda no sabem e, com isso, consolidando seus

    conhecimentos. Em um cenrio como este, as zonas de desenvolvimento proximal das

    crianas so multiplicadas, a partir das inmeras interaes possveis entre elas, assim como seus campos de experincia e aprendizado (VYGOTSKY, 1991).

    Estes, por sua vez, compe o material psquico a partir do qual elas criam e

    brincam sendo que, quanto mais rico em experincias for o ambiente em que esto

    2 Foto 1: Atividade: Desenhos com areia. Crianas: Lara e Pedro (2 anos), Manuel (3 anos), Ana Beatriz e Las (4 anos) e Maria Carolina (5 anos).

  • inseridas, mais subsdios tero para sustentar e frutificar sua imaginao, fantasia e

    criao (VYGOSTKY, 2009).

    Uma dinmica como essa tambm proporciona oportunidades para o exerccio

    do respeito pelo tempo e pelas particularidades de cada um, e a qualidade das

    vivncias por ela geradas s se torna possvel com uma mediao acolhedora e firme

    por parte dos educadores.

    Um atento e intenso trabalho de resoluo de conflitos feito entre os pequenos - trabalho que considerado, pela equipe pedaggica da qual fao parte,

    como o mais importante a ser realizado num contexto como este, aproveitando os desafios e aprendizados proporcionados por um contexto de diversidade para

    estimular a todos a se perceber e a perceber os outros, a se conscientizar seus

    sentimentos, a aprender a comunic-los e a respeitar as diferenas e os jeitos de ser de

    cada um.

    Tenho conhecimento de poucas escolas que trabalham hoje em dia com esta

    metodologia multietria, sendo possvel encontrar, dentre elas, diferentes

    configuraes e formatos para a realizao da mesma3.

    A instituio em que trabalho4, uma escola de educao infantil particular, se

    localiza no municpio de Cotia, na Granja Vianna, Grande So Paulo. Completando

    12 anos em janeiro prximo, tem atualmente nela matriculadas cerca de 90 crianas,

    distribudas entre os perodos da manh e tarde, em grupos que contemplam idades de

    1 ano e meio a seis anos5, com uma mdia de 12 a 16 crianas por grupo. Para a

    realizao satisfatria do trabalho que se prope desenvolver, cada grupo conta com a

    presena de 2 a 3 adultos6, dependendo da quantidade e caractersticas das crianas

    que dele fazem parte, o que possibilita um acompanhamento mais individualizado e

    aprofundado das necessidades das mesmas.

    3. A arte e as linguagens expressivas em um contexto multietrio

    As crianas pequenas so exploradoras curiosas do mundo em que vivem.

    Tm em si grande entusiasmo pelo novo, pelo inusitado, pelas descobertas e desta

    maneira que se relacionam, em um primeiro momento, com as linguagens expressivas

    e com a prtica artstica. O encontro com os materiais e suas possibilidades

    proporcionam a elas grande encantamento e tambm bons desafios: descobrir formas

    e movimentos, elaborar, construir, ordenar, equilibrar, produzir; trabalhando com as

    cores, com as texturas, com as dimenses.

    Conforme vo crescendo e se aprofundando no universo das representaes

    simblicas, as linguagens expressivas passam a dar voz s suas experincias, atuando

    como veculo para a traduo de suas percepes e compreenses do meio na qual

    esto inseridas. Passam a ser substrato para a concretizao de suas fantasias e

    brincadeiras, para a elaborao e conscientizao de seus desejos e de suas

    caractersticas.

    Todos estes processos podem ser enriquecidos atravs de estmulos e

    oportunidades para a sensibilizao da percepo e do olhar dos pequenos para o

    3 Por exemplo: a Te-arte, a Gro-de-Cho, a Casa Redonda e os Jardins Waldorf, todas na Grande So Paulo, cada uma do seu jeito. 4 Escola de Educao Infantil Bilngue Kids Home ( www.escolakidshome.com.br ) 5 Em geral os critrios para o ingresso nestes grupos multietrios se relaciona mais com algumas caractersticas especficas observadas em cada criana como, por exemplo, a capacidade de andar e se locomover com firmeza e autonomia do que com a idade cronolgica propriamente dita. 6 Uma mdia de 5 a 7 crianas por adulto; 1 professora e 1 ou 2 assistentes.

  • mundo que os cerca. Este trabalho pode ser realizado de diversas maneiras.

    Utilizando-se do meio imediato no qual as crianas esto inseridas, profundamente

    carregado de significados para elas; instigando sua curiosidade a respeito do mesmo,

    estimulando-as a perceber as caractersticas do ambiente, de seus habitantes, a

    estabelecer relaes e associaes com suas prprias experincias; e, em especial,

    orquestrando situaes para que possam traduzir suas percepes plasticamente,

    concretizando-as atravs de linguagens diversas.

    Nesta ao criadora o ato de dar forma, como diz Ostrower (1987) formar-

    se. no apenas encontrar, mas construir sentido e significado para as experincias

    vividas e para suas repercusses nas formas de ser de cada um.

    Nesta fase da vida, que muitos autores denominam primeira infncia, os alicerces que estruturam a essncia de cada ser, sua personalidade, seus valores,

    hbitos e padres de comportamento, esto sendo formados. Isto, por sua vez, no

    apenas justifica e refora a importncia de um trabalho minucioso, apurado e bem

    feito com as crianas pequenas, como revela a oportunidade de realizao de

    significativas intervenes sociais, realizadas gro a gro.

    Para tanto, encontro grande respaldo nos conhecimentos sistematizados por

    Ana Mae Barbosa na Abordagem Triangular para o Ensino da Arte que, dentro do

    contexto da educao infantil, pode ser trabalhada no apenas relacionando-a com o

    que, formalmente, denominamos arte. Busco, atravs dos caminhos que prope: o ler,

    o contextualizar e o fazer, maneiras de relacionar-me com a vida, com a realidade das

    crianas e, para isso, tambm me inspiro no que Paulo Freire (2009) chamou de

    leitura do mundo. Uma relao profunda com vida sempre grande inspirao para a

    produo artstica.

    A partir desta compreenso, percebo os conceitos que estruturam a

    Abordagem Triangular profundamente enraizados na prtica diria com as crianas,

    sendo possvel trabalhar com elas tanto a partir de obras de arte e manifestaes

    culturais e artsticas diversas, como atravs da relao com as formas, cores e

    movimentos que permeiam sua realidade cotidiana, presentes na natureza com a qual

    convivem, nas construes que estruturam seu espao e, em especial, atravs do

    intercambio com a produo de seus pares.

    Segundo Machado (2011, p.68) a Abordagem Triangular no estabelece o que fazer nem aponta como fazer. Desenha um cenrio de campos de conhecimento

    inter-relacionados, um terreno no qual o ensino e a aprendizagem podem ocorrer. Na educao infantil, as dimenses do fazer, do ler e do contextualizar podem

    ser encontradas integradas e permeando a experincia dos pequenos em diversos

    mbitos, neste cotidiano to rico em descobertas, como o das crianas.

    Nos momentos especficos de ateli7, no entanto, propostas so feitas, materiais so oferecidos e a generosidade das crianas nos aponta claramente quando

    o que vivenciam est sendo, de fato, uma experincia (DEWEY, 2010). A expresso

    do seu envolvimento permeia no apenas o momento da atividade, onde uma

    concentrao acima da mdia absorve cada um plenamente, estendendo o tempo; mas

    transborda para a vida e se reflete nas brincadeiras, nas conversas, nos

    agradecimentos feitos por elas e na manifestao do desejo que tal experincia possa

    se repetir, ainda que transformada em algo mais.

    A ao criadora, nesta faixa etria, extrapola os espaos de atividades dirigidas

    e se faz presente nas brincadeiras, nos faz-de-conta e em muitos outros momentos do

    cotidiano. Desta maneira, o trabalho com a arte e com as manifestaes culturais, para

    7 Momento dedicado a atividades direcionadas, com as linguagens expressivas.

  • se configurar como experincia

    significativa para as crianas

    pequenas, precisa ser ofertado

    considerando suas

    caractersticas e habilidades; de

    forma ldica e integrada s

    suas realidades8.

    Na escola em que

    trabalho, dada suas

    peculiaridades, tais atividades

    so realizadas estimulando que,

    em meio a um grupo

    heterogneo, com crianas de,

    aproximadamente, 1 anos e

    meio a 6, cada um busque interagir com as propostas sugeridas do seu jeito9 - de acordo com suas possibilidades, competncias e vontades - respeitando os tempos de

    cada um e incentivando assim o autoconhecimento e as trocas naturais entre as

    infinitas formas de se fazer a mesma coisa10. Naturalmente os tempos

    de concentrao, competncias

    e caractersticas delas variam

    muito e, por isso, h sempre

    uma proposta extra preparada

    para os que terminam a

    atividade mais rapidamente cantos temticos, brinquedos,

    brincadeiras etc. - que

    realizada pela assistente de

    grupo enquanto a professora

    continua a atividade primeira

    com os que nela permanecem.

    Estes, em geral, conseguem se

    aprofundar mais no trabalho que esto desenvolvendo.

    A interao de diversas idades em um ateli traz alguns desafios como, por

    exemplo, elaborar e preparar as propostas levando em conta os diversos estgios de desenvolvimento encontrados no grupo e conseguir proporcionar oportunidades de experincias que sejam significativas para todos.

    Quando estes propsitos so atingidos com qualidade, proporcionam

    significativos benefcios para as crianas que, entre outras coisas, encontram abertura

    e espao para vivenciarem seus tempos e ritmos de forma mais orgnica e flexvel,

    no pautada por um padro de normalidade, comumente encontrado em agrupamentos etrios.

    Em um ambiente multietrio, elas vivenciam uma rica e variada gama de

    estmulos com os quais podem dialogar e interagir livremente. Estes se manifestam,

    especialmente, na maneira como cada um desenvolve do seu jeito as atividades

    8 Foto 2: Pintura do muro de azulejo. Crianas (da esquerda para a direita): Nicholas (5anos), Bruno

    (4), Maria Carolina (5), Manuel (3), Duda (2), Bia (2), Pedro (2), Las (4), Georgia (5), Guiherme (2). 9 Expresso comumente verbalizada para e, por conseqncia, pelas crianas. 10 Foto 3: Desenhos com areia. Crianas: Guilherme (2 anos), Nicholas e Gergia (5 anos). No plano de fundo, Manuel (3), brincando aps finalizar seu trabalho.

  • propostas, colaborando para a expanso das j mencionadas zonas de desenvolvimento

    proximal (VYGOTSKY, 1991) e tornando-se ali, enquanto exemplo, tambm um

    professor para todos os outros, adultos e crianas. As crianas, nestes contextos, observam bastante umas s outras, e muito

    aprendem a partir dessas trocas. Por outro lado, tambm so estimuladas a cultivar o

    hbito de buscarem respostas prprias para os desafios propostos e para suas prprias

    perguntas, exercitando seu autoconhecimento e trabalhando sua autonomia e

    autoconfiana desde cedo.

    Para que isso se concretize fundamental uma postura aberta e acolhedora por

    parte dos educadores, orquestrando uma atmosfera de respeito e liberdade de ser,

    manifestadas como posturas que se complementam e se potencializam; e que so

    essenciais, em especial em um espao de expresso e criao como o de um ateli de

    artes.

    Embora as possibilidades e exemplos sejam inmeros, no presente trabalho

    optei por focar no intercmbio de experincias proporcionadas a partir das aes e

    produes de crianas de idades diversas convivendo juntas e em como este

    intercmbio influencia no apenas na maneira como se relacionam com seu prprio

    fazer, mas em como a essncia destas trocas se manifesta em seus trabalhos com as linguagens visuais. Mais especificamente, utilizo como exemplo concreto um projeto

    realizado ao longo de 2011, com o grupo de crianas do qual sou professora, no qual

    estou trabalhamos o tema dos livros.

    Este grupo composto por 13 crianas de 2 a 5 anos, como ilustra a tabela

    abaixo:

    IDADE TOTAL DE CRIANAS MENINAS MENINOS

    2 anos 5 3 2

    3 anos 1 1 0

    4 anos 4 2 2

    5 anos 3 2 1

    4. O Projeto dos Livros

    Anualmente desenvolvemos na escola um projeto relacionado fruio e

    produo literria com as crianas, que culmina em um evento, realizado sempre no

    ms de setembro, junto aos festejos de

    entrada da primavera.

    Nele, os trabalhos realizados pelas

    crianas ao longo do projeto so colocados

    em exposio e as famlias so convidadas

    a apreciarem no apenas os livros de seus

    filhos, mas tambm as produes de outras

    crianas, podendo assim compreender a

    riqueza criativa que se encontra pulsando

    naquele ambiente social, com a qual os

    seus convivem e do qual so parte

    integrante.11

    11 Foto 4: Feira do Livro 2011, realizada no dia 24 de Setembro. Livros produzidos pelas crianas de meu grupo.

  • No cotidiano da escola, os livros esto muito presentes e, por isso, o trabalho

    com eles se torna profundamente significativo para os pequenos. Em todos os espaos

    h uma mini-biblioteca. Quase que diariamente h contao de histrias. Uma vez por

    semana, teatro. s teras-feiras as crianas podem levar seus livros preferidos para

    compartilhar com seus amigos e cont-los, do seu jeito nas rodas de histria e tambm nas rodinhas que elas prprias organizam nos momentos livres. Desta

    maneira, o trabalho com os livros pode ser considerado um projeto contnuo no

    contexto da escola; operando em ciclos, cujo marco anual a Feira do Livro.

    No apenas as narrativas servem de alimento para a imaginao dos pequenos.

    As ilustraes dos livros disponibilizados, que so escolhidos a dedo pelas

    professoras, nutrem seu imaginrio visual, ampliando seu referencial imagtico e, por

    consequncia, enriquecendo tambm suas produes plsticas. Os livros, neste

    mbito, podem ser considerados retratos poticos de realidades diversas; reflexos de

    olhares e possibilidades de expresso distintas que expandem a viso de mundo das

    crianas e contribuem tanto para a formao de seus valores como para a

    multiplicao de suas formas de se comunicar.

    As atividades deste projeto, em 2011, iniciaram-se formalmente em maro, to

    logo as crianas mostraram-se adaptadas em seus novos grupos, aps o retorno das

    frias e inicio do ano letivo. Nesta poca intensificamos o trabalho com as narrativas

    dos finais de semana12

    nas rodas de conversa e iniciamos a proposio e realizao

    peridica de jogos teatrais e de jogos de sequncias narrativas (cada criana inventa

    uma parte de uma histria)13

    . Tambm comeamos a estimular as produes de

    tirinhas e pequenos livretos,14

    que depois de prontos, eram compartilhados com o

    grupo.

    Todo o percurso que culminou na produo de um livro mais elaborado foi

    planejado a partir do conhecimento dos trs momentos da Abordagem Triangular,

    intercalando experincias de leitura, contextualizao e produo.

    A primeira se encontrava

    presente no cotidiano do projeto e

    abarcava no apenas o contato e

    interao com os livros

    profissionais, de autores e

    ilustradores diversos, com os

    quais as crianas puderam

    estruturar suas concepes de

    livro, enriquecer profundamente seus repertrios visuais e de

    narrativas; mas tambm, e de

    forma bastante especial, atravs

    do contato e interao com o

    material produzido por elas

    prprias.

    Este refletiu muito de suas pesquisas, das conversas que tivemos em roda, dos

    assuntos que despontavam enquanto focos de interesse do grupo como um todo.

    12 Atividade realizada aps os finais de semana, que estimulam as crianas a narrar oral ou visualmente

    suas memrias e fatos marcantes dos finais de semana, e que tinham por objetivo no apenas a partilha

    com o grupo e o aprendizado das questes relativas a temporalidade, sequncia e etc. 13 Realizadas por Erica Martinelli Munhoz, estudante de Letras (FFLCH-USP) e professora de teatro;

    minha assistente durante o primeiro semestre de 2011. 14 Foto 5: Criando livretos. Crianas: Lara (2) e Bruno (4).

  • Permeou-o tambm a percepo do desenvolvimento de cada criana, enquanto

    representantes de diversas etapas do desenvolvimento humano ali materializadas, ajudando-as a compreender seu prprio percurso de aprendizado. Esta riqueza de

    estmulos ampliava as referncias do grupo como um todo e grandes saltos puderam

    ser observados a partir de tais interaes.

    Com estes livros foi

    possvel realizar aes bastante

    interessantes com os pequenos no

    que diz respeito a percepo das

    caractersticas de cada criana e

    como estas se expressavam em

    suas produes. Com o passar do

    tempo, os vnculos entre elas foram

    se estreitando e o jeito de cada um, manifestado em seus trabalhos,

    comeou a ser reconhecido pelos

    demais.

    E diziam uns para os outros:

    _ Tudo bem que eu gosto de fazer princesa e ele gosta de fazer rob. (Ana Beatriz, 4 anos)

    _ O dele bem colorido, e o meu s um pouco, no ? (Bruno, 4 anos) _ No t errado no. Eu t fazendo do meu jeito. (Las, 4 anos)

    Alm da apreciao dos aspectos formais dos livros cores, formas, figuras, materiais utilizados - e das interpretaes de significado e compreenso das histrias,

    que j vinham acontecendo, os mais velhos passaram a observar e perceber os traos

    dos desenhos associando-os as caractersticas, gostos, interesses, gnero e idade de

    seus autores. Identificavam as narrativas associando-as a experincias do cotidiano na

    escola, s brincadeiras realizadas, aos fatos relatados nas rodas, contextualizando-as.

    Todo esse movimento de leituras e contextualizaes dos trabalhos pde ser

    percebido se refletindo em suas produes e na crescente desenvoltura com a qual se

    relacionavam com as propostas,

    literalmente soltando sua imaginao

    na construo e ilustrao de

    narrativas que refletiam suas

    experincias e interesses.

    Esta evoluo foi

    possibilitando que tambm as

    atividades pudessem ser

    gradualmente mais elaboradas, com o

    aumento das opes de suporte e

    materiais e ampliao das

    possibilidade de escolha e utilizao

    dos mesmos.

    O pice deste processo se deu durante a produo da ultima leva de livros, que

    foi exposta no dia 24 de Setembro deste ano. Esta contava com uma mesa repleta de

    materiais variados: papis coloridos, espelhados, camuras, tintas, canetinhas,

  • tesouras, colas, etc. que puderam ser

    utilizados com liberdade pelas crianas, de

    acordo com as idias que surgiam.

    Com os menores, optamos por

    trabalhar com estmulos sensoriais a partir

    desta diversidade de materiais: exploramos

    as texturas dos suportes, brilho e

    opacidade; fizemos colagens, desenhos e pinturas.

    Com os maiores,

    trabalhamos partir de uma histria

    por eles inventada. Esta foi

    registrada por escrito, dividida em

    partes e ilustrada, pgina por

    pgina.

    Foram realizados trabalhos

    nicos, riqussimos em detalhes,

    completamente personalizados,

    cujas imagens ilustram, com maior

    propriedade, o que aqui as palavras

    se esforam para traduzir.

    O exemplo a seguir o

    trabalho de Manuel, de 3 anos.

    A histria da minhoca.

    Ela morava no deserto.

  • L tinha o sol que brilha.

    Elas comiam para todas as minhoquinhas nascerem e serem fotes

    e ficavam muito grandes desse

    tamanho.

    Elas comiam terra, comida. Comiam flores.

    E quando chegava a noite elas voltavam para suas casinhas, comiam a comida e

    dormiam.

  • De noite tinha a lua com um pouco de gua e sal.

    5. Consideraes Finais

    Um ambiente de criao

    se favorece pela postura de tolerncia e aceitao dos indivduos que dele fazem parte

    e se enriquece atravs da convivncia da diversidade, que, por sua vez, torna mais

    perceptvel o valor de cada ser como nico.

    Em um contexto escolar, uma ao aparentemente simples como misturar

    crianas de diversas idades em sua convivncia diria, pode resultar em grandes

    transformaes e oportunidades de aprendizado.

    Apesar de simples, para que tenham, a partir dela, bons resultados, todo um

    trabalho se faz necessrio, em especial no que diz respeito qualificao e

    treinamento da equipe de professoras que precisa, de fato, estar aberta para acolher

    cada criana por inteiro e, a partir desta aceitao, poder trabalhar com ela suas

    necessidades e desafios, em prol de colaborar para a sua formao.

    Na condio de artista e educadora, identifico o quanto o trabalho com a arte e

    as linguagens expressivas, em um contexto como esse, fundamental ao processo

    educativo. Em um ambiente de liberdade criativa, cada ser pode se manifestar em sua

    inteireza e vivenci-la. Por outro lado, o contato com manifestaes artsticas e

    culturais diversas enriquece os campos da experincia e nutre o repertrio visual e a

    imaginao de todos ns, adultos e crianas, aprendizes e educadores.

    Para tal, reforo a compreenso e reconhecimento da colaborao que as

    pesquisas em arte e educao tem para a construo de um processo educativo mais

    integral, que tenha condies de trabalhar os indivduos em toda a sua complexidade e

    inteireza.

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