1p-s 1-cap 2 - a explicação dos textos

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28 OS TEXTOS FILOSÓFICOS decidido de urna vez por todas, vazado nas sentenças de um dicionário, mas um conteúdo a buscar, a refletir ou a produzir no interior de um contexto em que o conceito tem sua função, você será estimulado à pesquisa, com a vigilância crítica que se impõe. Dito isto, pode ser bom referir-se a certas obras especia lizadas (vocabulário e dicionários filosóficos). Se você não se deixar submergir pela abundância e complexidade, se tomar cuidado na elaboração que acompanha o material fornecido, poderá tirar lições edificantes. Mas nada substituirá o caderno de vocabulário fabricado por você mesmo, “apropriado” por definição, portanto muito mais fácil de memorizar e utilizar. Resumindo - Estabelecer sistematicamente fichas de leitura; - habituar-se às referências exatas; - manter em dia seu caderno de vocabulário.

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Metodologia filosófica

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Page 1: 1P-S 1-CAP 2 - A Explicação Dos Textos

28 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

decidido de urna vez por todas, vazado nas sentenças de um dicionário, mas um conteúdo a buscar, a refletir ou a produzir no interior de um contexto em que o conceito tem sua função, você será estimulado à pesquisa, com a vigilância crítica que se impõe.

Dito isto, pode ser bom referir-se a certas obras especia­lizadas (vocabulário e dicionários filosóficos). Se você não se deixar submergir pela abundância e complexidade, se tomar cuidado na elaboração que acompanha o material fornecido, poderá tirar lições edificantes. Mas nada substituirá o caderno de vocabulário fabricado por você mesmo, “apropriado” por definição, portanto muito mais fácil de memorizar e utilizar.

Resumindo

- Estabelecer sistematicamente fichas de leitura;- habituar-se às referências exatas;- manter em dia seu caderno de vocabulário.

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Capítulo IIA explicação de tèxto

I. Os princípios da explicação de texto

M odo de uso

- Ler atentamente o conjunto do capítulo;- voltar a ele após cada exercício prático, conforme suas

necessidades, até a completa assimilação.

A explicação de texto não é um exercício entre outros, mais difícil que os outros, mas o melhor meio de se chegar diretamente ao pensamento dos filósofos.

Portanto, só cumpre secundariamente uma função escolar- sua importância decisiva para a cultura e a reflexão pessoais justifica que ela possa servir de teste.

Com efeito, ela exprime e manifesta em todo o seu rigor o trabalho direto sobre os autores, sem interposição de cursos magistrais ou de comentários.

Assim, ela é, ao mesmo tempo, indissoluvelmente, uma prova e um alimento. Antes de dissertar, antes de comentar, é preciso saber o que os autores realmente disseram. Antes de pensar por si mesmo, para pensar por si mesmo, cumpre ini­ciar-se com o auxílio de pensamentos notáveis. Por isso a explicação de texto é, em seu princípio, identificável à leitura aprofundada, que é a leitura filosófica por excelência.

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30 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

a - O que não é a explicação de texto

1. Não é um pretexto para dissertar

Há normalmente um abismo entre a dissertação e a expli­cação: a primeira trabalha sobre um tema, a segunda sobre um texto. Mas o desvio é clássico. Consiste em apoderar-se do tema do texto - ou do que se toma por tal - a fim de tratá-lo como se faria com um tema ordinário.

Com isso, o texto é reduzido à triste condição de pretexto. Um pouco mais tarde, considera-se logicamente que ele está sobrando. Já mutilado, escamoteado, o texto se toma então um inoportuno a ser despachado na primeira ocasião - o que se consegue geralmente na introdução.

Nessas condições, a explicação não é apenas deficiente: ela não existe. O autor da explicação perdeu seu tempo; o texto não é mais que um resíduo posto de lado.

2. Não é um comentário

Para dizer em poucas palavras, a explicação de texto busca saber o que um autor verdadeiramente disse numa dada passa­gem, enquanto o comentário é uma interrogação armada (de referências, sobretudo) sobre o que ele disse de verdadeiro.

A explicação é uma tarefa bem delimitada, portanto estri­tamente limitada.

Distinguiremos dois casos. Se o texto é apresentado como ocasião de um exercício de análise de um pensamento filosófi­co, deve-se excluir qualquer erudição relacionada com o con­texto (que não se supõe conhecido) ou com a obra da qual é extraído. Pode acontecer, porém, que o conhecimento geral de um autor ou de uma época facilite, sem condicioná-la, a boa interpretação (em relação ao pensamento antigo, por exemplo- reporte-se à seção “exercícios práticos”). Em contrapartida, quando o extrato de texto vem complementar o estudo de um autor, é aconselhável situar o texto na obra, e fazer ambos dia­logarem. Convém, no entanto, não confundir os dois casos e de maneira nenhuma permitir que conhecimentos exteriores ao tex­to retardem ou sobrecarreguem inutilmente a explicação do texto apresentado.

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A EXPLICAÇÃO D E TEXTO 31

É importante, pois, primeiro tomar conhecimento do tipo de trabalho pedido. Mas, seja como for, o que conta e o que vale é o trecho selecionado, que deve ser metodologicamente considerado como um todo suficiente.

Para os detalhes sobre o comentário de texto, veja o capí­tulo III, que lhe é dedicado.

3. Não é uma paráfrase

A paráfrase é o pecadilho dos iniciantes, que acreditam agir acertadamente. Eles não dissertam, não comentam, taga­relam.

Parafrasear, como a palavra indica, consiste era frasear ao lado do texto, a propósito do texto.

Por que recusar a paráfrase? Porque ela é a arte de repetir de outro modo o que é enunciado, simplesmente juntando-lhe um coeficiente multiplicador de quantidade. Falando claro: substitui-se um texto bom e breve por outro, longo e ruim - a obra de um mestre pela imitação inábil de um aluno.

A paráfrase é antifilosófica porque oculta o texto em vez de manifestá-lo, aplaina suas asperezas em vez de real­çá-las, ignora o que ele pressupõe, subentende, cala ou implica em vez de mostrar, apaga as articulações em vez de exibi-las. A paráfrase dilui, aborrece, enfraquece, torna ce­go, surdo e mudo.

4. Não é uma reprodução pontilhista ao pé da letra

Embora essa tentação geralmente não seja a do iniciante, ela não é menos temível que a anterior.

Para explicar um texto, certamente é preciso preocupar-se com as palavras, com o trono das frases, com todos aqueles signos pertinentes que constituem o sentido. Mas tão logo se faz disso uma técnica mecânica, aplicável a qualquer texto, a reprodução ao pé da letra toma-se uma destruição sistemática do sentido. O desmembramento do texto, da primeira à última linha, pode dar a impressão de uma atenção escrupulosa. Na realidade, cada termo é isolado de seu contexto e explicado por si mesmo, sem levar-se em conta a rede que lhe dá - e só ela lhe dá - sentido.

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32 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

É quase inútil evocar aqui o bom trinchador, descrito por Platão, para condenar essa carnificina insensata. Pois não se corta segundo as articulações naturais, isto é, conforme o senti­do, mas segundo os interstícios dos signos. Dessa maneira, pode-se despender uma hora de “explicação” sobre meia pági­na. Mas nada de filosófico se faz, pois se confunde análise com pontilhismo.

Enquanto a análise consiste em partir da totalidade dotada de sentido para decompô-la em seus elementos, o pontilhismo produz apenas peças isoladas, tratadas como entidades separa­das. Como o procedimento é sistemático, nenhuma seleção é feita. O essencial e o não-essencial são postos no mesmo pla­no. Também aí, o que é pressuposto, subentendido ou implica­do é necessariamente escamoteado, já que não existe sinal positivo que permita apoderar-se dele. Ao final do estudo, o texto está simplesmente desmembrado.

Resumindo

- O texto a explicar não é um pretexto para dissertar;- explicar não é parafrasear;- a análise desdobra o sentido, o pontilhismo o destrói.

b - 0 que éa explicação de texto

1. Seu princípio

Em seu princípio, a explicação de texto é a operação mais simples que existe. Consiste, como seu nome indica, em enun­ciar o que há num texto dado, nem mais nem menos. Explicar é desdobrar, mostrar o que está exposto, pressuposto, implicado, subentendido ou calado por um autor preciso, num lugar bem circunscrito.

Imediatamente se percebem as diferenças com relação à paráfrase: a explicação não se contenta em bordar sobre o que aparece, ela evidenf ia o que está envolvido, realça as expressões mais carregadas de sentido, faz sobressair o que está presente em baixo-revelo, classifica os elementos segundo sua importância

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A EXPLICAÇÃO DE TEXTO 33

para o movimento do pensamento e não segundo o lugar que ocu­pam fisicamente, detalha as articulações geralmente implícitas ou rapidamente assinaladas por termos de ligação, a fim de pro­duzir uma argumentação racional.

2. Seu esquema

Durante a preparação da explicação, procure respeitar os princípios que seguem, certificando-se de que foram todos empregados no momento da redação definitiva. Trata-se de exigências gerais que constituem o programa de estudos e que será proveitoso saber de cor, para tê-las sempre presentes no espírito.

Para fazer as coisas na ordem lógica, a explicação deve portanto:- separar o tema (aquilo de que trata o texto) da tese (aquilo

que o autor afirma), a fim de elaborar uma problemática cujos objetos sejam assinalados;

- identificar o movimento geral do texto, seus momentos parti­culares e suas articulações, a fim de reconstruir sua argu­mentação',

- enquanto progride, revelar, analisar e fazer funcionar as noções filosóficas indicadas pelas palavras, subentendidas ou implicadas;

- estatuir o discurso efetuado, a fim de apreciar sua natureza e seu alcance.

3. Como abordar um texto?

Para abordar um texto, cumpre antes de tudo colocar-se na atitude devida, isto é, em situação de receptividade.

No estágio primário das operações, o primeiro esforço consiste em eliminar as solicitações da memória.

Com efeito, para ler realmente um texto devemos colo- car-nos ingenuamente diante dele, sem preconceitos de nenhu­ma espécie, sem expectativas, sem saberes prévios - ou lem­branças de saber. Caso contrário, estaremos perdidos. Busque no texto apenas reencontrar conhecimentos adquiridos noutra parte, apenas confirmar o que sabe ou acredita saber.

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34 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

Disso resulta que é preciso primeiro afastar o que se sabe para contentar-se com o que se lê. Caso contrário, você não enxerga. Sobretudo não enxerga aquelas evidências maciças que, como diz bem a expressão consagrada, “saltam aos olhos”.

Para os estudantes já instruídos, o mais difícil é repelir os comentadores. Os comentários interpõem uma chave de inter­pretação, chave essa aprendida e não descoberta por si mesmo, que modifica o olhar e conseqüentemente o teor objetivo do texto. Além disso, como em geral costuma-se reter acenas as versões simplificadas e vulgarizadas, o estudante corre grandes perigos.

Por exemplo, basta considerar um texto de Aristóteles repetindo-se que esse filósofo é “empirista” e “biologista”, para que o menor sinal seja imediatamente interpretado como uma confirmação, e, assim, os elementos que não se integram nessa expectativa não serão sequer levados em consideração. E você cairá na arte menor do “colocado em cima”, denunciada anteriormente, quando a filosofia requer o “maciço”. O texto deve ser questionado e não massacrado.

Obsemação - No caso de uma explicação de texto inseri­da num programa de história da filosofia bem determinado, será preciso, naturalmente, proceder a uma leitura armada, o que impõe reforçar a atenção a todo um aparato de conheci­mentos. Nesse caso, a explicação tende a um comentário erudi­to (ver essa rubrica).

Não obstante, a atenção ao texto não perde seu privilégio. Sem ela, corre-se o risco maior - muitas vezes verificado - de não perceber o tema, a tese, os objetos de discussão, e de usar o que se sabe sem conhecimento de causa. Comete-se então uma falta clássica, bem conhecida em dissertação: a de fugir ao tema.

Vê-se por aí que a explicação de texto começa por uma ascese. A atenção verdadeira só é possível com essa condição. Não há outro jeito.

Esse despojamento jissusta. Compreendem-se assim os temores do estudante que se vê sozinho e nu diante de um texto de Rousseau ou de Kant, e a quem se proíbe, ainda por cima, o recurso às suas defesas costumeiras. Compreende-se também

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A EXPLICAÇÃO D E TEXTO 35

que ele busque a qualquer preço preencher esse vazio, do qual sua natureza tem horror.

Contudo, não há com que se apavorar, pois resta um trun­fo maior: o próprio texto. O texto não é apenas um objeto obs­curo, é um guia. Ele é que vale, e somente ele.

Isso não significa que os conhecimentos filosóficos sejam inúteis. Simplesmente, é preciso começar por colocá-los de certo modo entre parênteses, para que a atenção trabalhe em paz, mesmo se os conhecimentos, uma vez “apropriados”, contribuem para cultivar essa mesma atenção. Os conhecimentos filosófi­cos prévios sobre o autor não devem suscitar “pré-conceito” sobre o que o texto irá dizer. No máximo eles podem permitir evitar - de vez em quando, se esses conhecimentos forem eles próprios justos - interpretações arriscadas ou intempestivas. Os conhecimentos exteriores ao texto são mais um resguardo do que um guia; seu papel principal consiste em controlar a leitura e não em substituí-la. Portanto, a ingenuidade reclamada nada tem a ver com uma estupidificação voluntária.

É aí que você deve fazer uma dupla aposta: a do sentido e a de suas capacidades.

- A aposta do sentido: parta do princípio de que o texto tem um sentido. Ainda que este último não se manifeste (quer se trate do conjunto, quer de certas partes), não obstante existe. As dificuldades do texto têm portanto sua solução no texto. Se você não percebe nada, é que examinou mal, omitiu um termo importante, esqueceu-se de cotejar uma proposição em outra.

Cumpre então ler, reler e investigar incansavelmente, de uma ponta à outra do texto, indo e voltando, convencido de antemão de que há uma solução, de que você a tem diante dos olhos, mesmo se não consegue ainda descobri-la - por falta de atenção suficiente ou em razão de obstáculos interpostos.

Sobretudo, jamais se deve pensar que a solução esteja alhures, em outras páginas, em outros textos, ou nos comenta­dores. Metodologicamente falando, é preciso aferrar-se a essa regra: o sentido está realmente presente, está dado ainda que esteja velado.

Enfim, não se deve pensar, evidentemente, que as dificul­dades provêm do autor, que teria escrito qualquer coisa, não

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36 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

saberia o que disse ou não teria conseguido exprimi-lo correta­mente.

- A aposta em suas capacidades: ela é o reverso da prece­dente. Parta do princípio de que todos os obstáculos podem ser superados considerando mais atentamente o texto. Jamais devemos incriminar de antemão nossas insuficiências, dizen­do-nos que jamais chegaremos lá. Não se trata de um simples exercício de autopersuasão, digno do método Coué, mas de uma conseqüência lógica da atitude adotada. Se formos à luta, ganharemos. A experiência o demonstra sem ceSsar.

Evidentemente pode ocorrer que a coisa não ande da maneira que gostaríamos. Então é preciso assumir, mas não de qualquer jeito. Se tivermos de nos render, é melhor fazê-lo com honestidade, invocando nossa fraqueza e correndo o risco de uma hipótese incerta, mas confessando-a como tal.

Resumindo

- A explicação de texto é, em primeiro lugar, uma prova de atenção;

- memória e saber devem ser amordaçados e presos com cor­rente;

- a explicação prevalece sobre o comentário e o precede sempre;

- o texto nãoé apenas um objeto passivo, mas um guia;- o sentido do texto está no texto;- é preciso dizer-se que o texto tem sempre razão;- é preciso explicar o texto todo, mas explicar apenas o texto.

Uma vez descartadas as chaves, matrizes e preliminares, podemos mergulhar no texto para considerá-lo em si mesmo. Essa fase positiva é o essencial do trabalho pedido.

- Armado apenas de sua atenção (e de uma ferramenta à mão), você deve concentrar-se em todos os signos pertinentes, de forma sistemática. Não hesite em escrever a lápis no próprio texto, para sublinhar termos, anotar já na margem as noções correspondentes. O uso do lápis (se for possível, o que não é o caso quando o livro não lhe pertence!) tem a vantagem de tirar

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do texto impresso sua apresentação monótona e compacta, que impede “ver” o essencial. Utilizando os códigos apropriados a cada um (palavras enquadradas, expressões sublinhadas, bar­ras de separação lógica, etc.), será possível objetivar melhor, para o olhar, a compreensão das coisas, e ganhar tempo no momento das múltiplas consultas do teXto durante a redação. Pois não se deve hesitar em efetuar releituras, tendo o cuidado de redescobrir a cada vez uma espécie de virgindade do olhar, de esquecer as compreensões anteriores, que podem ser res­ponsáveis por falsos caminhos.

- À medida que você avança, deve interrogar-se constan­temente sobre as questões, os objetos de discussão, os movi­mentos, as articulações, a progressão da argumentação, bem como sobre os pressupostos e as implicações.

- Nem por isso os detalhes devem ser perdidos de vista: tudo, absolutamente tudo, deve ser examinado, inclusive (e até sobretudo) os elementos que somos tentados a considerar es­pontaneamente negligenciáveis, como os exemplos, os tor­neios de frase, os personagens postos em cena (num diálogo), os termos articulatorios e os sinais tipográficos (pontos de interrogação, aspas, etc.).

- As respostas não vêm de um só golpe. Se surgem imedia­tamente, temem-se más respostas. Você deve deixar-se acossar pelas interrogações e escrever numa folha, em estilo telegráfi­co, as idéias ou hipóteses que aparecem, sem hesitar em modifi­cá-las ou em suprimi-las à medida que progride.

Vá assim até o fim do texto, sem tomar nenhuma decisão irreversível.

- Atingido o ponto final, retorne ao ponto de partida, for­mulando sempre as mesmas perguntas, esboçando respostas. Por esse jogo de vaivém entre as partes, aos poucos vai sendo traçado um plano de conjunto, um movimento orientado.

4. A exposição dos movimentos

Assim que identificar as articulações (que podem muito bem estar ocultas), você pode começar a individuar o plano.

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Vale para a explicação de texto o mesmo que para a dis­sertação: não existe plano padrão. O plano é simplesmente a form a que adquire um pensamento preciso ao perseguir um objetivo preciso. Portanto, as partes desse plano devem ser constituídas a partir dos grandes momentos do pensamento do autor.

Tenhamos cuidado: é freqüente que as articulações das partes correspondam aos cortes dos diversos itens; mas pode também não ser esse o caso.

- Para hierarquizar os momentos, é necessário e é sufi­ciente perguntar-se o que é logicamente primeiro oú segundo, inicial ou derivado. Distinguem-se assim várias etapas,, que devem ser classificadas segundo sua importância.

- Como o plano não é senão a própria forma do texto, essa forma jamais deve ser desfeita e o texto reconstruído de um modo diferente. Também aí, constatamos que o texto é o melhor dos guias.

Ponto delicado: quando acontece de a última frase esclare­cer todo o texto, é preciso evitar pôr de pernas para o ar a ordem desejada pelo autor. Convém então sugerir essa idéia na intro­dução, formulando uma questão, mas sem “abrir o fogo”.

- A estrutura do texto determina igualmente o equilíbrio quantitativo da explicação. Não devemos nos deixar enganar pela aparência das massas, pois a densidade de um texto pode ser muito desigual. Por exemplo, uma parte abarrotada de exemplos pode ser três vezes maior em volume do que outra, reduzida a uma simples frase. Também aí, percebe-se toda a diferença que há entre explicar e parafrasear um texto.

- Tome muito cuidado para não deixar a vigilância ador­mecer à medida que avançar no texto, o que leva com freqüên­cia a negligenciar as últimas linhas, que podem ser decisivas. As primeiras frases não têm que ser privilegiadas sistematica­mente pelo simples fato de se acharem no começo. Por precau­ção, você pode inclusive chegar a planejar o tempo dedicado a cada momento de um texto, a fim de não ser surpreendido pelo

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A EXPLICAÇÃO D E TEXTO 39

tempo (sobretudo no caso das explicações de texto com tempo limitado).

Uma vez terminada essa operação de desbravamento, obtém-se a ossatura do texto, que a argumentação do autor concretiza e instrumenta. Estando definido o quadro, passa-se à realização prática da explicação de texto.

Resumindo

-T raba lha r diretamente sobre o texto, com lápis na mão, do começo ao fim, tomando notas;

- individuar o movimento de pensamento cuja forma estrutura­da, articulada e orientada permite produzir um plano;

- a ordem do plano geralmente corresponde à ordem dotexto;

- o equilibrio das partes deve depender do conteúdo da argu­mentação e não dos volumes aparentes.

II. A realização da explicação de texto

a - A introdução

A introdução é uma verdadeira prova dentro da prova. De todos os momentos, é certamente o mais delicado. E sabido, aliás, que certos professores e examinadores acabam preferin­do a ausência pura e simples de introdução para não terem de suportar o que se entende geralmente por esse nome. Mas não nos interessaremos aqui por essa metodologia do vazio. Pois, inversamente, uma boa introdução, bem organizada e concei- tualizada, irá dispor o leitor favoravelmente: nesse caso, a introdução serve de imagem em miniatura do trabalho de con­junto.

Para começar, lembremo-nos que é impossível compor uma introdução digna desse nome sem já ter resolvido, ao menos em parte, os problemas colocados pelo texto. Primeira

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40 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

na ordem de apresentação, a introdução será portanto a última na ordem de fabricação (sobre esse ponto, reporte-se aos proble­mas similares colocados pela dissertação).

A seguir, lembremo-nos que uma introdução deve ser in­teiramente subordinada à sua função - que é introduzir, justa­mente - o que exclui qualquer excesso no sentido da apresen­tação retórica ou erudita, da explicação prévia dos termos, do enunciado de opiniões a favor ou contra, das comparações, das grandes sentenças gerais e inapeláveis, sem esquecer, natural­mente, aquelas conclusões antecipadas que se insinuam sub­repticiamente na introdução, contra toda lógica.

A introdução, portanto, deve antes de tudo brilhar por sua sobriedade e sua brevidade. Nà prova escrita, é aconselhável que ela não ultrapasse meia página; na oral, dois ou três minutos. Caso contrário, invadem-se necessariamente outros terrenos, que não têm seu lugar aqui. Salvo necessidade absoluta, é inútil e ocioso fazer uma apresentação do texto - simples perda de tempo, ocasião de tédio para o leitor ou o ouvinte (exceção: quando a explicação é o suporte de um comentário erudito numa prova de historia da filosofía).

Na prática, deve-se portanto entrar imediatamente no cerne do assunto, indicando sucessivamente:

1. O tema ou objeto do texto, isto é, aquiío de que trata o autor nessa passagem.

Essa exigência parecerá simplista. A experiência mostra, porém, que ela é tanto mais necessária por não costumar ser atendida. No entanto, ela é a condição de todo o resto. Se não soubermos de que fala o texto, jamais saberemos explicá-lo. Iremos nos equivocar, reter apenas este ou aquele ponto que atrai o olhar, ou ficar completamente fora de curso.

Para satisfazer essa exigência e proteger-nos contra qual­quer derrapagem, há um pequeno teste muito simples: é neces­sário e suficiente que o tema corresponda efetivamente à tota­lidade do texto, e não a uma ou outra de suas partes. Enquanto essa exigência não for satisfeita, você não captará o tema cor­reto, não captará o objeto do texto.

Enfim, para enunciar o tema, contente-se com uma frase muito breve. Uma longa explicação rebuscada jamais pode apresentar um tema.

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A EXPLICAÇÃO DE TEXTO 41

Observação - Presume-se aqui que a passagem foi bem destacada e forma realmente um todo. É geralmente o que acontece. Mas pode haver exceções, para as quais será preciso mostrar-se vigilante, a fim de ajustar-se da melhor maneira. Isso não é razão para suspeitar do texto à menor dificuldade. Pelo contrário, é de boa regra metodológica fazer como se tudo estivesse em ordem.

2. A tese do autor nesse texto, isto é, o que ele enuncia a propósito de seu objeto. A tese é a posição filosófica adotada pelo autor a respeito do problema geral enunciado no tema; sua enunciação deve permitir identificar claramente a especificida­de, e até mesmo a originalidade, da tese defendida. É preciso, pois, também aqui, contentar-se com uma fórmula lapidar, à qual será dada de preferência uma forma interrogativa, a fim de atiçar o interesse e jogar realmente o jogo do questionamento. A tese é um núcleo duro, que é preciso identificar sem erro, exprimir em poucas palavras, sem revesti-la com um palavreado supérfluo, que apenas serve para enfraquecê-la ou para “enrolar” o leitor.

3. Os objetos de discussão do texto, tomados ao pé da letra: o que é que tal discurso “põe em discussão”? Os objetos de discussão podem ser variáveis conforme o texto, mas de­vem sempre permitir avaliar a tese filosófica quanto a seu alcance e a suas conseqüências para o tema geral. Importa an­tes de tudo fazer compreender o preço a pagar pela solução teó­rica, o que ela exclui, o que ela reforçai sublinhando, de passa­gem, o interesse do caminho adotado pelo autor.

Essa exposição deve ser breve e até lapidar: estando enun­ciado isto, o que daí resulta para aquilo? Quais são os riscos, os ganhos, as perdas, em tal domíniQ, em função de tal enunciado ou de tal posição?

Observação - Certamente se perguntará o que vem a ser a problemática, tão importante em dissertação.

Numa explicação de texto, a problemática é constituída, em parte, pelo conjunto formado pelo tema, a tese e os objetos de discussão. O discurso feito pelo autor a propósito de um objeto tematizado “suscita problema”, envolve questões que devem ser deslindadas.

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42 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

Mas é verdade que a problemática remete também ao con­texto do texto, ou mesmo ao livro de onde o trecho foi tirado, sem contar a obra inteira do autor. Como esses elementos estão fora de alcance, por causa da regra do jogo, deve-se dispensá- los. A solução elegante consiste então em descobrir essa pro­blemática mais ampla no interior do trecho em questão, fazen­do falar os argumentos, as noções, o vocabulário ou os exem­plos. Nesse ponto, a cultura filosófica fará toda a diferença.

Nem por isso os iniciantes devem se apavorar: o trabalho honesto sobre o trecho tal como ele é, dentro de seus limites, já permite dar conta do recado. Se, como todo trabalho filosófico, a explicação de texto pode ser considerada uma tarefa ilimita­da, convém saber que ela é bastante delimitada quando a consi­deramos no âmbito de uma escolaridade.

4. Os movimentos do texto, isto é, os diferentes momentos ■ do pensamento do autor, ligados racionalmente por articulações bem precisas, a fim de individuar a estrutura da argumentação.

Evitemos aqui os estúpidos rituais escolares, que são pura retórica formalista. E ridículo enunciar uma “primeira parté”, que será seguida de uma “segunda”, e assim por diante. Prefira falar de “momentos”, aos quais será dado um título (sempre muito breve), se possível disposto em forma interrogativa.

Evitemos também desperdiçar nossa munição e queimar nossos últimos cartuchos na introdução. Dito claramente;: não demos as respostas, mas aguardemos a conclusão para fazer isso. E preciso sempre aguçar o desejo do leitor ou do ouvin­te, sem hesitar em inquietá-lo com problemas que parecem temíveis.

Resumindo

- Expor o tema: aquilo de que trata o texto;- expor a tese: aquilo que o autor afirma;- interrogar-se sobre o que o texto põe em discussão;- indicar os grandes momentos do texto, se possível em forma

interrogativa;- não desperdiçar munições na introdução, que é feita para

questionar e não para responder.

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A EXPLICAÇÃO DE TEXTO 43

b - A explicação propriamente dita

Passa-se a seguir à explicação detalhada do texto, momen­to por momento. Para tanto, após a indicação do título da parte que se trabalha, é preciso:

1. Assinalar os termos importantes e extrair deles as no­ções filosóficas, que devem ser analisadas com cuidado, levan­do em conta o contexto.

Quando houver noções subjacentes, às quais nenhuma pa­lavra corresponde, é preciso fazê-las surgir por dedução e ana­lisá-las da mesma maneira.

Para cada noção assinalada, há de elevar-se ao movimento mais geral do pensamento, a fim de revelar sua função.

2. Assinalar os problemas e questões encontrados, ou dedu­zidos por implicação, num estilo sempre interrogativo, a fim de fazer progredir a investigação.

Em todo caso, é no interior do próprio texto que devem ser buscados os elementos de esclarecimento e de resposta.

3. Destacar as articulações e desenvolvê-las, o que o autor geralmente não faz, ou faz de maneira muito rápida e alu­siva. Os termos de articulação (se, então, portanto, etc.) devem ser considerados com o maior cuidado.

4. Explicitar, para introduzir cada novo momento, a ques­tão subjacente às idéias que vão ser desenvolvidas e que devem ser apreendidas como resposta a uma questão geralmente não formulada pelo texto (ver, por exemplo, como se dá essa expli­cação a propósito de um texto de Descartes - cf. exercícios práticos, capítulo I, § II).

Tudo isso permite fazer surgir a argumentação do autor, operação essencial numa explicação.

5. Explicar os exemplos, quando houver, porque eles são sempre passagens importantes, que o autor julgou eminente­mente significativas.

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Continue assim, por etapas sucessivas, até o fim do texto, sem esquecer que a última frase é, às vezes, a mais importante ou a mais esclarecedora.

Observação - Certifique-se de que a redação tem uma apresentação suficientemente clara, abrindo um novo parágrafo após cada desenvolvimento, e até pulando uma linha entre duas grandes partes (medida de ordem tipográfica que, lembramos, de modo nenhum poderia substituir uma articulação ausente).

Resumindo

- Proceder momento por momento, segundo a ordem do texto;- extrair as noções dos termos importantes;- produzir as noções implicadas;- analisar cada noção no âmbito de sua função;- explicar os exemplos;- individuar e detalhar as articulações;- explicar todo o texto até o final;- argumentar sempre.

Conselho importante: procure sempre equilibrar seus es­forços, a fim de poder concluir sua explicação dentro dos limi­tes de espaço e de tempo estabelecidos. Todo o trabalho deve se adequar a essas condições exteriores.

c - A conclusão

Concluir é uma operação tão delicada quanto perigosa. Geralmente pressionados pelo tempo, somos tentados a escre­ver qualquer coisa, obedecendo a reflexos escolares longamen­te experimentados, porém maus conselheiros.

A fim de evitar o perigo, convém mostrar-se de uma extre­ma sobriedade. Para concluir, é preciso;

1. Retomar sucintamente as questões essenciais e respon­der a elas, se houver uma resposta no texto.

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A EXPLICAÇÃO DE TEXTO 45

2. Deliberar sobre o debate, se for possível, sabendo que é nesse ponto que o perigo de derrapagem é maior. Com efeito, procure permanecer no âmbito do texto, podendo ultrapassá-lo um pouco, se ele desempenhar um papel significativo e eviden­te no interior da obra ou no debate geral das idéias. Se for pedi­do um comentário, você poderá ir mais longe e encerrar a dis­cussão (na medida do possível).

3. Ser comedido e modesto, proscrevendo qualquer “am­pliação” do debate no sentido escolar da palavra. Nunca invo­que a humanidade e os deuses como testemunhas, pontuando grandes sentenças vazias com aqueles termos em “ismo” que erradamente se acredita darem consistência ao que se afirma.

E nessa etapa da conclusão que se comete geralmente o maior número de erros ou de aberrações. E como se, frustrado por ter seguido docilmente um autor, você buscasse uma peque­na revanche, querendo mostrar que também é capaz de refle­xão. Resista com todas as forças a essa tentação.

Resumindo

- Fazer um rápido balanço do trabalho efetuado;- deixar-se guiar pelo texto para deliberar sobre o debate (ou

encerrar a discussão);- jamais exceder-se, deixando-se levar pela fantasia ou pelas

lembranças.

d - A redação

Na prova escrita, siga o método utilizado em dissertação, mostrando-se ainda mais rigoroso em certos pontos.

1. 0 problema do rascunho

É preciso evitar tanto quanto possível o rascunho, pelo menos para o corpo da explicação. O ideal é redigir diretamente, seguindo seu plano detalhado, no qual devem figurar as noções importantes, sua análise, bem como todas as articulações.

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46 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

Por que esse conselho, que irá chocar mais de um estudante? Porque o rascunho apresenta múltiplos inconvenientes:

- constitui uma perda de tempo, já que é preciso passar a limpo, quando há tanta coisa a fazer;

- não requer nenhuma vigilância, já que sabemos que é um rascunho. Portanto, é uma incitação ao desleixo do pensa­mento e da escrita;

- oferece um álibi cômodo à negligência, pois nos dizemos que vamos corrigir;

- em geral, é inútil, uma vez que a falta de tempo obriga seja a recopiar o rascunho sem correções, seja a redigir um novo texto diretamente na hora de passar a limpo, quando se tem a intuição de que o primeiro esboço não convém.

Em compensação, é preciso redigir antecipadamente, com cuidado, várias vezes se necessário, a introdução e a con­clusão, onde os riscos são maiores. Essa redação preparatória só deve ser feita depois de estabelecida inteiramente a explica­ção com base no plano detalhado.

Cada um é livre para seguir ou não esses conselhos; no entanto, recomendamos uma tentativa. Se esta não for convin­cente, o estudante pode voltar à sua técnica habitual, procuran­do, ainda assim, torná-la o menos pesada possível.

2. A arte de não se afastar do texto

Aqui, evite tanto escrever de mais como de menos.Ao redigir, mantenha constantemente um olho no texto,

em vez de deixá-lo de lado. Esse é o único meio de não derra­par, de reparar um erro ou um esquecimento.

Mas jamais ceda à tentação cômoda de recopiar longas passagens do texto, para mostrar que permaneceu atento. Con- tente-se, portanto, com as citações estritamente necessárias.

Enfim, evite perder-se nas indicações de linhas e de pará­grafos, o que torna inutilmente pesada a leitura, sendo o texto conhecido de quem corrige.

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A EXPLICAÇÃO DE TEXTO 47

Resumindo

- Evite o rascunho, exceto para a introdução e para a con­clusão;

- redija conforme seu plano detalhado, e mantenha sempre um olho no texto;

- não se perca nas referências textuais.