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Edição nº 003 - Junho 2005 Edição nº 003 - Junho 2005 Edição nº 003 - Junho 2005 Edição nº 003 - Junho 2005 Edição nº 003 - Junho 2005 11 São dominantes, nas perspectivas teóricas atuais, inclinações que levam o pensamento crítico a ressaltar coexistências contraditórias de várias temporalidades num mesmo objeto. Isto é, a tendência a considerá-lo como intersecção de linguagens de um campo discursivo complexo, heterogêneo. Observar, com olhar perscrutador, pessoas, fatos e a natureza implica situá-los diante dessa malha complexa de relações, que se inicia a partir do sentido híbrido e contraditório inerente à constituição das coisas e do conhecimento. Assim é o registro literário do 25 de Abril, na perspectiva de Mia Couto, metamorfoseado no próprio título de seu romance Vinte e zinco 1 . Se o chamado locus de enunciação do narrador do romance já é outro, acrescente-se a esse fato a distância temporal que permite ao escritor uma visão mais ampla da Revolução dos Cravos, tal como se manifestou e foi sentida pelos moçambicanos. Tudo se mostra em processo numa aspiração de uma espécie de totalidade híbrida, pautada por fronteiras discursivas onde nada é estanque. E, assim, a data simbólica do 25 de Abril veio a ser problematizada nessa efabulação ficcional de 12 dias, onde os fatos cotidianos de uma região interior de Moçambique se vêem envolvidos numa 1 Maputo, Editorial Ndjira, 1999. rede que questiona o sentido histórico do evento e suas reais decorrências para o país. Melhor, pelas ambigüidades de múltiplos olhares, seja do autor do romance ou dos atores sociais que ele criou em sua ficção, o sentido libertário do acontecimento é situado como um processo. E o futuro não é certo, ao contrário da crença de muitos, mas possibilidades que demandam inserções ativas do sujeito. Se os registros da experiência histórica, diríamos nós, levam-nos a sancionar formas ou campos de conhecimentos como “verdadeiros”, essas verdades, sob o crivo do olhar crítico e em face das condições e situações híbridas, mostram-se sempre relativas. Entretanto, é de acrescentar, parafraseando Vinícius de Morais, que elas sejam infinitas enquanto durarem. Ainda bem, pois fatos históricos como o 25 de Abril permitem a abertura de espaços (entre o “falso” neles embutido e o “verdadeiro”, no qual se acredita) para que processos subjacentes constitutivos dessas formas de conhecimento manifestem-se enquanto tendências. São processos mais amplos que dependem não apenas do olho individualizado (e distanciamento) de quem observa, mas também da ação das diferentes práxis da vida social. RESUMO: RESUMO: RESUMO: RESUMO: RESUMO: Análise de Vinte e Zinco, narrativa do moçambicano Mia Couto, que tem como foco as repercussões do 25 de abril português. São problematizados assim, desde uma perspectiva atual da enunciação às formulações discursivas que estavam envolvidas no processo de independência do país. O império colonial estava umbilicalmente ligado ao salazarismo e a derrocada deste regime teria implicações diretas na África. Se a utopia libertária fulgurou na revolução dos cravos, os cravos de abril ainda não encontraram na casa moçambicana, ainda sob o teto de zinco. PALA ALA ALA ALA ALAVRAS – CHA VRAS – CHA VRAS – CHA VRAS – CHA VRAS – CHAVE VE VE VE VE: Literatura e Comunitarismos; Literatura Moçambicana; Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. ABSTRACT ABSTRACT ABSTRACT ABSTRACT ABSTRACT: Analises of Twenty and Zinc, narrative of Mozambican Mia Couto, that has as focus the repercussions of Portuguese April 25. They are problematically like that since a present perspective of enunciation to the discursive formulations that were involved in the country independence process. The colonial empire was umbilicately linked to the salariat and the defeatist since the regime had had direct implications in Africa. If the libertarian Utopia stood out in the revolution of the carnations, the carnations of April didn’t find yet in the Mozambican house, still under the zinc roof. KEY KEY KEY KEY KEY-WORDS WORDS WORDS WORDS WORDS: literature and communitarians, Mozambican literature and the comparative studies of literature in Portuguese.

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Edição nº 003 - Junho 2005Edição nº 003 - Junho 2005Edição nº 003 - Junho 2005Edição nº 003 - Junho 2005Edição nº 003 - Junho 2005

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São dominantes, nas perspectivas teóricasatuais, inclinações que levam o pensamento críticoa ressaltar coexistências contraditórias de váriastemporalidades num mesmo objeto. Isto é, atendência a considerá-lo como intersecção delinguagens de um campo discursivo complexo,heterogêneo. Observar, com olhar perscrutador,pessoas, fatos e a natureza implica situá-los diantedessa malha complexa de relações, que se iniciaa partir do sentido híbrido e contraditório inerenteà constituição das coisas e do conhecimento. Assimé o registro literário do 25 de Abril, na perspectivade Mia Couto, metamorfoseado no próprio títulode seu romance Vinte e zinco

1. Se o chamado

locus de enunciação do narrador do romance jáé outro, acrescente-se a esse fato a distânciatemporal que permite ao escritor uma visão maisampla da Revolução dos Cravos, tal como semanifestou e foi sentida pelos moçambicanos. Tudose mostra em processo numa aspiração de umaespécie de totalidade híbrida, pautada porfronteiras discursivas onde nada é estanque. E,assim, a data simbólica do 25 de Abril veio a serproblematizada nessa efabulação ficcional de 12dias, onde os fatos cotidianos de uma regiãointerior de Moçambique se vêem envolvidos numa

1 Maputo, Editorial Ndjira, 1999.

rede que questiona o sentido histórico do evento esuas reais decorrências para o país.

Melhor, pelas ambigüidades de múltiplosolhares, seja do autor do romance ou dos atoressociais que ele criou em sua ficção, o sentidolibertário do acontecimento é situado como umprocesso. E o futuro não é certo, ao contrário dacrença de muitos, mas possibilidades quedemandam inserções ativas do sujeito. Se osregistros da experiência histórica, diríamos nós,levam-nos a sancionar formas ou campos deconhecimentos como “verdadeiros”, essasverdades, sob o crivo do olhar crítico e em facedas condições e situações híbridas, mostram-sesempre relativas. Entretanto, é de acrescentar,parafraseando Vinícius de Morais, que elas sejaminfinitas enquanto durarem. Ainda bem, pois fatoshistóricos como o 25 de Abril permitem a aberturade espaços (entre o “falso” neles embutido e o“verdadeiro”, no qual se acredita) para queprocessos subjacentes constitutivos dessas formasde conhecimento manifestem-se enquantotendências. São processos mais amplos quedependem não apenas do olho individualizado (edistanciamento) de quem observa, mas tambémda ação das diferentes práxis da vida social.

RESUMO:RESUMO:RESUMO:RESUMO:RESUMO: Análise de Vinte e Zinco, narrativa do moçambicano Mia Couto, que tem como foco as repercussões do25 de abril português. São problematizados assim, desde uma perspectiva atual da enunciação às formulaçõesdiscursivas que estavam envolvidas no processo de independência do país. O império colonial estava umbilicalmenteligado ao salazarismo e a derrocada deste regime teria implicações diretas na África. Se a utopia libertária fulgurouna revolução dos cravos, os cravos de abril ainda não encontraram na casa moçambicana, ainda sob o teto de zinco.

PPPPPALAALAALAALAALAVRAS – CHAVRAS – CHAVRAS – CHAVRAS – CHAVRAS – CHAVEVEVEVEVE::::: Literatura e Comunitarismos; Literatura Moçambicana; Estudos Comparados de Literaturasde Língua Portuguesa.

ABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACT::::: Analises of Twenty and Zinc, narrative of Mozambican Mia Couto, that has as focus the repercussionsof Portuguese April 25. They are problematically like that since a present perspective of enunciation to the discursiveformulations that were involved in the country independence process. The colonial empire was umbilicately linked tothe salariat and the defeatist since the regime had had direct implications in Africa. If the libertarian Utopia stood outin the revolution of the carnations, the carnations of April didn’t find yet in the Mozambican house, still under the zinc roof.

KEYKEYKEYKEYKEY-----WORDSWORDSWORDSWORDSWORDS::::: literature and communitarians, Mozambican literature and the comparative studies of literature in Portuguese.

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Cravos e os cravos de abrilCravos e os cravos de abrilCravos e os cravos de abrilCravos e os cravos de abrilCravos e os cravos de abril

Vinte e zinco abre esses espaços para adiscussão da dinâmica histórica aberta peloscravos do Abril português. É de observar que aantiga Metrópole e as ex-colônias seentremesclaram nas redes que vieram a dar formaa esse acontecimento histórico. Moçambique e aÁfrica colonizada não deixaram de estar emPortugal, constituindo combustível para omovimento dos capitães, como este país tambémnão deixou de estar nas nações africanas. As açõesdos movimentos libertários das colônias abriramespaço, repercutiram nas estruturas portuguesas,abrindo caminho para a desnaturalização dasformas discursivas que procuravam darsustentação ao salazarismo. Uma brecha que veioa instaurar um processo democrático, contribuindopara que os portugueses mirassem para horizontesmais amplos. O foco de visão de quem observa,no romance de Mia Couto, evidentemente não édos portugueses que se sensibilizaram com essasmudanças, mas de um moçambicano. Melhor,de um intelectual citadino de Maputo, marcadopelo distanciamento entre o tempo do enunciado(o da referência histórica aos episódios do 25 deAbril) e o tempo da enunciação (as carênciasacumuladas por esse processo e que demandaramnovas fissuras).

Dessa forma, ao aderir com empatia aosanseios sociais de uma distante região do país,ele o faz mostrando brechas. E o Vinte e Cincodos cravos portugueses, dos momentos em quecontinuavam a ecoar comemorações celebratóriasdas mudanças devidas ao impulso revolucionário,é colocado em situação de diálogo com este Vintee zinco. As paredes e tetos de zinco da realidadecolonial têm muito pouco para celebrar e por issoa história de ficção em torno do que foi o 25 deabril moçambicano ainda não se configurou nocalendário como data comemorativa. Ou, comodisse a adivinhadora Jessumina, personagem doromance de Mia Couto: “Vinte e cinco é paravocês que vivem nos bairros de cimento. Para nós,negros pobres que vivemos na madeira e zinco, onosso dia ainda está por vir”

2.

Perduram as limitações do zinco dos temposcoloniais - uma marcação simbólica, que apontapara as carências do referente econômico-social.À diferenciação espacial cidade/campo, capital/região, metrópole/colônia, sobrepõem-se, assim,

na narrativa de Mia Couto, diferenciaçõestemporais que envolveram a luta anticolonial emMoçambique e vicissitudes do processo libertário.O “nosso dia” da população pobre ainda nãoeclodiu. E, nessa dinâmica, as inevitáveisoscilações do impulso libertário, representadas emmomentos de ascensões utópicas e quedasdistópicas de duas décadas e meia de revolução,acabaram por dar sentido a esses doze dias dorelato, logrando trazer densidade crítica à narrativa.

A fabricação do medoA fabricação do medoA fabricação do medoA fabricação do medoA fabricação do medo

A procura de identificação dos intelectuais compersonagens imbricadas em situações queremetem à guerra colonial, traduzida nalinguagem mais universal que vem da arte, comosempre acontece, não deixa de dialogar com seusdesejos mais amplos. Na escrita literária, essasubjetividade manifesta-se enquanto sombras doescritor. Ao falar de situações marginais dapopulação que lhe serve de referência, Mia Coutoaponta para carências mais amplas que as dessaregião, não deixando também de manifestarcarências que são suas, procurando dar formaao que falta para quem se situa no campointelectual moçambicano. Como se vê, no relatode Mia Couto, encontramos muitas margens,tempos e espaços sobrepostos. Nada é unívoco,como pode ser observado num dos temas centraisdo romance é a “fabricação do medo”.

Vejamos como a enunciação caracteriza estesentimento inerente ao processo repressor impostopelo colonialismo. Numa das anotações de Irene,uma personagem de origem colonial identificadacom o sentido libertário da luta anticolonial, há oregistro de que “O torturador necessita da vítimapara criar verdade nesse jogo a duas mãos que éa fabricação do medo”

3. As chamadas condições

objetivas da opressão que provocam o medo nãoelidem reações de rejeição a esse estatuto imposto.Para ser eficaz, o medo precisa ser aceito por partedo sujeito oprimido. Contra a aceitação da políticade atemorização, há a possibilidade demanifestação da potencialidade subjetiva de quemnão aceita participar dessa fabricação, que sóinteressa a quem tem poder. Há sempre nessassituações um verso e um reverso. E, entre as duasfaces, todo o mundo.

A idéia de “fabricação” relaciona-se, naescrita do romance de Mia Couto, com um

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conceito mais amplo da enunciação: os fatos darealidade, como também os fatos discursivos quesobre eles se debruçam, são construídos. Hásempre um sentido político-social motivando essasformas de práxis. É de ilustrar o conceito deconstrução com outra anotação dos cadernos dapersonagem do romance anteriormente citada:“Ninguém nasce desta ou daquela raça. Só depoisnos tornamos pretos, brancos ou de outra qualquerraça. Extracto do diário de Irene, parafraseandoSimone de Beauvoir

4”.

Hábitus Hábitus Hábitus Hábitus Hábitus que aprisionamque aprisionamque aprisionamque aprisionamque aprisionam

A consciência de que toda a cultura éconstruída leva evidentemente a um afastamentode quaisquer apriorismos ou perspectivasessencialistas. Toda a história é construção, comoo Vinte e cinco português. Como nó sinérgico derelações políticas que se disputavam, ele constituiuum fato explosivo e permitiu a emergência donovo. Para tanto, para que ele possa prosseguirem seu sentido libertário, é imprescindível aliberação da potencialidade subjetiva do indivíduoe sua coletividade. Não foi o que aconteceu emPortugal, em sua plenitude. Os horizontes utópicosnunca se concretizam plenamente, mas propiciama criação de expectativas para movimentosrenovadores e modificam gestos petrificados. Nocaso do romance, eles motivaram o rompimentode comportamentos arraigados no obscurantismodos discursos do regime salazarista quehistoricamente aprisionou em sua malhaportugueses e moçambicanos.

Essa prisão político-social que estatuía hábitusanacrônicos envolveu negros e brancos coloniaisnum jogo autoritário imposto pela metrópole. Asfronteiras dessas formas discricionárias projetam-se para os novos tempos, como aparece nesteproblemático Vinte e zinco. Trata-se de uma prisãocom limites psicossociais complexos, sem fronteirasclaramente delimitadas, onde o colonizador implicaum colonizado e vice-versa, ou, de maneira maisgeral, onde um opressor implica um oprimido.

Serve de epígrafe ao romance, nesse sentido,a citação de Voodoo in Haiti, de Alfred Metraux,onde é apontado o fato de que quanto mais osbrancos subjugavam os negros, mais estes ostemiam. E os temiam por sua feitiçaria. Isto é,aceitavam a força do vodu, que vinha dascrendices africanas. São complexas, comoapontamos anteriormente, essas relações entre

proprietários senhoriais e escravos, oucolonizadores e colonizados. Há um sistema queos envolve, condicionando os papéis. Mais, háinterações e hábitus inconscientes entre essascategorias sociais. No caso, na construção domedo que acaba condicionando suas ações. Umbom exemplo dessa situação é do cego AndaréTchuvisco, cego sob tortura, para não testemunhargrosseiramente imoral e anti-ético de seu algoz,joga terra sobre seu caixão, num gesto ambíguo,na homenagem que ele recebia da sociedadecolonial.

A luz dos sonhosA luz dos sonhosA luz dos sonhosA luz dos sonhosA luz dos sonhos

O ato do cego Andaré não pode serconsiderado apenas uma forma de ironia, mastambém de ingresso numa realidade mais ampla,onde coexistem saber empírico e o mágico. ÉAndaré quem diz, referindo-se aos coloniais, quehá uma margem da luz e outra da penumbra. Istoseria próprio da natureza de todos os seres. Oscoloniais apenas enxergavam a luz de sua ordem,eliminando a penumbra. Ficavam restritos,portanto, a apenas a uma margem. A mais visível.Desconheciam ou fingiam desconhecer, em seusdiscursos ideológicos, de que estava ocorrendo,de fato, uma interação entre a África com aEuropa. Podemos nos reportar novamente à citaçãoreferente ao vodu que serve de epígrafe aoromance para mostrar essas interações. Ou nosreferirmos à magia da terra, aceita pela família dotorturador Joaquim de Castro, agente da PIDE quechega a cultuar sua presença na cadeira-símbolode seu poder após sua morte. Essa presençaopressiva subjuga ritualmente toda a família,inclusive o filho Lourenço de Castro que o sucedeno papel de torturador. Sua tia Irene, que viera dePortugal para fazer companhia para sua mãe, nãoaceita esse sistema e reage identificando-se coma terra.

Criado na terra, o fraco inspetor da PIDE,Lourenço de Castro, caricatura do pai, foiembalado por esse sistema do medo. Aceitou-ocomo forma de vida. Não se considera um invasorestranho à terra, como seu pai. Figura como umapeça orgânica que se coloca acriticamente aolado do poder dominante. Situa-se nessa margeme residem aí as convicções que lhes foraminculcadas, sobretudo pelo pai. Não reconheceevidentemente, na condição de inspetor da políciapolítica outras margens possíveis. Nem aquela

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simbólica da penumbra, por onde penetra adúvida em relação aos fatos empíricos, nem outrasmargens vinculadas ao campo libertário. Aenunciação vale-se dessa personagem paradissertar sobre a natureza das coisas radicando-amítica e poeticamente a uma maneira de ver omundo que estaria vinculada à África: “A Lourençode Castro esse sim e não dos assuntos em África.Esse poder ser e não ser, essa líquida fronteiraque separa o possível do impossível. Como se averdade, nos trópicos, se tornasse coisa fluida,escorregadiça. O que agastava ao português erao ser enganado sem nunca chegarem a mentir.

5”

Sua situação veio a se tornar insustentávelcom o 25 de abril. Finda a ordem colonial, teriade voltar a Portugal, como aconteceu com suamãe Margarida e outros retornados. Entretanto,não se reconhecia português e não seria aceitona nova ordem moçambicana. Foi incapaz deolhar para as bandas de penumbra que permitiriamuma visão crítica de sua prática autoritária. Nãohá lugar para ele. Serviu de ponte unidirecionalpara veicular o sistema de tortura e a ponte nãosuportou a pressão das águas da vida.

O cego Andaré, com os pés nas duas margens,enxerga mais do que todos. Na indefinição dasimagens que observava, desautomatiza seu olhare acaba por ver mais fundo. Antigo funcionário daprisão da PIDE até ver o que não deveria ver (oestupro dos prisioneiros africanos pelo pai deLourenço), seu papel era apagar as marcas datortura. Passava tinta branca nas manchas desangue dos torturados. Voltará a desempenhar essepapel ao final do romance, quando apaga asmarcas do sangue dos antigos torturadores.

Mais do que isso: não se limita a apagar asmarcas da tortura, deixando o presídio em pé.Como esclarece o narrador do romance, Andarétinha suas crenças mas sabia duvidar delas.Quando lhe lavaram os olhos com seiva demukuni outras visões se abriram para ele. Acegueira lhe deu nova luz dentro dos sonhos. Antesele sonhava ser como os brancos, mezungando-se [tornando-se branco] pela vila até fazer inveja”

6.

E, assim, quando ao final do romance vai apagaras marcas de sangue, sente “que a prisão, a cadapincelada, se vai dissolvendo, a pontos de totalinexistência. Como se o pincel que empunhassefosse areia, na mão do vento, apagando pegadas

no deserto “7. Esse é o fecho do romance. As

areias do tempo terminam por dissolver a prisãoda polícia política salazarista, mas outrosespartilhos ou escaninhos certamente persistirão.

Pássaros de asas viajadorasPássaros de asas viajadorasPássaros de asas viajadorasPássaros de asas viajadorasPássaros de asas viajadoras

Em relação à cultura da terra, a feiticeiraJessumina é personagem central. O cego Andaréprocura estabelecer pontes entre ela e aquelaimposta pela colonização. Uma posição similar,com direcionamento vetorial oposto, é exercidapor Irene, a tia que era o objeto de desejo dosobrinho, inspetor da PIDE. A posição no mundode penumbras, já que ela era uma vidente, nãodeixa de colocar Jessumina numa posição dediálogo entre as duas culturas. De sua margemfincada na terra, ela observava a outra eestabelecia pontes de solidariedade entre elas. Éde sua voz que vem a seguinte declaração, emtom de fábula: “Certa vez eu vi a grande ave dosoceanos. Tinha chegado à costa exausta e embateunum farol. As grandes asas estavam quebradas.Eu olhei aquele bicho como olho os homensbrancos. Pássaros de asas viajadoras mas quechocam contra luzes que eles mesmos inventam.”

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As luzes, associadas à razão iluminista damodernidade (o farol), vai levar à derrocada docolonialismo. Foi a presença do branco, nãoobstante, que trouxe para o africano fundamentoscontra os quais eles próprios irão se chocar: osistema colonial gera suas próprias contradições.Há os coloniais que se quebram, como Lourençode Castro. Ele não tinha personalidade própria,já que de acordo com Jessumina, ele estavapossuído pelo espírito do pai, que a terra recusava-se a assumir. Há outros, que autodeterminam seuspassos e que acabam radicados ao húmus daterra, como Irene. Esta, para desespero dosobrinho torturador, mostra-se grávida. Para oagente da polícia política, seguramente de umafricano. Simbolicamente, sua gravidez é maisampla: ela veio do contato com o matope (alama, o lodo) moçambicano.

Seu antigo namorado tinha sido o mulatoMarcelino, ligado à Frelimo. Ela passavadocumentos da PIDE para sua organizaçãopolítica. Acabaram presos e a tortura imposta,sobretudo pelo sobrinho ciumento, levou o

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6 p. 133.

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namorado ao suicídio. Este será o destino final deIrene, na margem visível: após matar o sobrinhotorturador (o “perfume familiar”, o “aroma demulher”, pegadas registradas pela experiência deAndaré), vai provocar o seu “naufrágio” nas águasda lagoa, com auxílio de Jessumina. E já que estase situava na zona de penumbra, era essa a portade entrada para o reino mítico da terra, ela quefora engravidada poeticamente por essa forma deidentificação telúrica. É de sublinhar poeticamente,descartando-se de sua perspectiva qualquerreligiosidade. Num dos cadernos que deixou pode-se ler: “Já não carecemos de igreja: o mundo inteirose converteu numa imensa igreja. De joelhos,arrebanhados até ao sonho, aceitamos a qualquerpreço isso a que chamam de redenção”

9. Que

redenção? Através dos discursos fundamentalistasou do fundamentalismo do consumo queconstroem novos templos como os bancos, osshoppings centers, para além da profusãofundamentalista que teve origem entre os cristãos,ao contrário do que a mídia procura inculcar.

A permanência da formaA permanência da formaA permanência da formaA permanência da formaA permanência da forma

Um dos grandes problemas das revoluções éa permanência da antiga forma. São modos depensamento e ação naturalizados que persistem eque acabam aproximando, com novas roupagens,sujeitos sociais da velha e da nova ordem. Aprópria estrutura de poder acaba por solicitar estaspontes que são formas de conteúdo que emperramhistoricamente os processos revolucionários. Aenunciação, quando sonha com um verdadeiro25 de abril moçambicano através da voz deJessumina, também apresenta seus receios, naperspectiva narrativa de Andaré: “Seu medo eraesse: que esses que sonhavam ser brancossegurassem os destinos do país. Proclamavammundos novos, tudo em nome do povo, mas nadamudaria senão a cor da pele dos poderosos. Apanela da miséria continuaria no mesmo lume.Só a tampa mudaria”

10.

Ser branco, como se vê, implica hábitusatrelados à ordem social que persiste. E o processolibertário que procurava casar a questão nacionalcom a social veio a tropeçar em suaautodeterminação. Acabou por se articular nasredes da globalização. Talvez com maiororganicidade que a velha e anacrônica ordem

colonial. Ao final da narrativa, nas vésperas desua morte, Lourenço de Castro dialogou com ocego Andaré, uma das vítimas de seu pai. Eleshaviam sido companheiros de infância e sãoreatados alguns fios dessa antiga solidariedadeefetivada para além da cor da pele. Em atmosferaconfessional, o inspetor da polícia política fez umbalanço de sua vida para concluir que ela foi “tristee noturna. Para o cego aquela é a confirmação.Não são os brancos que são gente sozinha. Suacultura é que é muito solitária.

- Eu tinha essa grande crença, sabe. Quaseeu precisava de não ter pai. Havia Salazar, a pátria,a ordem.

- Esse é o problema das crenças: todas sãomortais. Algumas chegam mesmo a ser mortíferas.

- Não creio, sem crenças o que somos?- Andaré tinha suas crenças, mas sabia

duvidar delas.”11

Este é o ponto-chave do diálogo: ter horizontese a capacidade crítica para operacionalizar osentido de uma práxis transformadora. Isto é, umprojeto. Nunca uma fé abstrata que acaba levandoa formas de pensamento afins do fundamentalismo.Nesse sentido, a narrativa de Mia Couto reveste-se de atualidade e por fundamentalismo éimportante entendê-lo, de forma mais abrangente,nas posturas essencialistas etnocêntricas, em quese inclui a política, por exemplo, de um GeorgeW. Bush. O salazarismo, como se vê, está sendoassim substituído por outras formas anacrônicas,relativamente ao pensamento crítico. O novoimpério que procura indefinir fronteirasgeográficas, tendo em vista que administrarsupranacionalmente bens materiais e simbólicos,tem suas bases políticas nos territórios hegemônicoscom fronteiras que se fecham. Pior é quando ele éatravessado por recaídas à maneira do velhoimpério, com suas prepotências e agressões maisexplícitas como se registra atualmente.

Aceito para publicação em 25/02/2005.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTO, Mia. Vinte e zinco. Maputo, Ndjira. 1999

9 p. 69.

10 p. 133.

11 p. 132-133.

Benjamim Abdala Junior