veia renal tripla em gato: relato de casos triple renal ... · a seleção adequada do doador é um...

3
120 RCPV (2014) 109 (591-592) 120-122 Veia renal tripla em gato: relato de casos Triple renal vein in cat: case reports Anieli V. Stocco, Naiara V. Stocco, Carlos A. dos Santos- Sousa, Marcelo Abidu-Figueiredo Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Resumo: O conhecimento das variações nos vasos renais possui importância em um programa de sistematização da anatomia ra- diológica e cirúrgica, tanto para o homem quanto para animais destinados a pesquisa, ensino e treinamento cirúrgico. As veias renais têm sido estudadas tanto radiograficamente quanto através de dissecção. Atenção particular é dada ao estudo desses vasos enfatizando as variações entre as diferentes espécies animais. Tanto as veias renais direita quanto a esquerda drenam seu con- teúdo diretamente para a veia cava caudal. O objetivo deste re- lato é descrever o aparecimento de variações numéricas da veia renal em gatos. Durante a rotina de dissecção nas aulas praticas de anatomia animal foi observada a presença de veia renal tripla no rim direito em dois gatos mestiços do sexo masculino. As veias foram medidas com paquímetro e fotografadas para do- cumentação. Palavras-chave: Variação, veia renal, gato. Summary: Knowledge of the renal vessels variations has impor- tance in a systematization program of radiological and surgical anatomy, both in humans and animals, applied for research and surgical training. Renal veins have been considered by dissec- tion or angiographic study means. Particular attention has been paid to the study of these vessels, outlining the variations noticed among various animal species. Both renal veins right and the left drain its contents directly to the caudal vena cava. Thus, the aim of this report is to describe a case of a triple renal vein in cats. During routine dissection in the practical classes of animal anatomy the presence of triple renal vein in the right kidney was observed in two crossbred male cats. The veins were measured with calipers and photographed for documentation. Keywords: Variation, renal vein, cat Introdução No homem as variações da anatomia vascular re- nal foram caracterizadas por diferentes autores, bem como a prevalência de vasos múltiplos que ocorre em cerca de 20-50% dos casos (Testut e Latarjet, 1959; Isoda et al., 2002; Bordei et al., 2004; Sampaio e Passos 1992). Segundo Harrison et al. (1978), Awojobi et al. (1983), e Sampaio e Passos (1992), a multiplicidade da artéria renal, é mais freqüente que a ocorrência de variações numéricas venosas. Segundo vários autores, as variações das artérias renais são caracterizadas por duas ou três artérias que se originam diretamente da artéria aorta abdominal (Testut e Latarjet, 1959; Bordei et al., 2004; Sampaio e Passos, 1992). As particularidades anatômicas das veias renais per- mitem uma série de considerações quando as veias são lesionadas ou obstruídas. A veia renal esquerda é maior do que a direita, cruza ventralmente a aorta, e recebe vários afluentes durante o seu curso, tal como o veia testicular/ovárica esquerda, a veia ureteral e a veia adrenal. No homem o estudo da veia renal esquerda e suas variações encontram importância tanto quando da re- alização das anastomoses cirúrgicas, esplenorrenais, para o tratamento cirúrgico da hipertensão portal, estu- dos radiológicos, como, também, nas nefrectomias de doadores para o transplante renal. Por apresentar um trajeto mais longo do rim à veia cava caudal, a veia renal esquerda adquire maior importância que a veia renal direita, sendo preferida a sua utilização neste úl- timo caso. Nos animais mamíferos domésticos, tanto a veia renal direita quanto a esquerda drenam seu conteúdo para a veia cava caudal. No entanto, o número, curso e local de drenagem das veias renais são, por vezes, motivos de muita controvérsia. Variações anatômicas das veias renais são ocasionalmente encontradas em estudos radiológicos e de rotina na dissecação da re- gião abdominal. Entretanto, ao consultar a literatura, em particular os textos de anatomia, verifica-se que as informações re- ferentes às veias renais, especialmente suas variações numéricas e locais de drenagem, são escassas em ga- tos. O objetivo desta pesquisa é relatar a ocorrência de veia renal tripla em gato, com enfoque nas possibili- dades de implicação clínico-cirúrgica desta variação anatômica. Relato de Casos No decorrer das atividades práticas de dissecção re- alizadas nas disciplinas do Laboratório de Anatomia *Correspondência: [email protected]

Upload: letram

Post on 18-Jan-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

120

RCPV (2014) 109 (591-592) 120-122

Veia renal tripla em gato: relato de casos

Triple renal vein in cat: case reports

Anieli V. Stocco, Naiara V. Stocco, Carlos A. dos Santos- Sousa, Marcelo Abidu-Figueiredo

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Resumo: O conhecimento das variações nos vasos renais possui importância em um programa de sistematização da anatomia ra-diológica e cirúrgica, tanto para o homem quanto para animais destinados a pesquisa, ensino e treinamento cirúrgico. As veias renais têm sido estudadas tanto radiograficamente quanto através de dissecção. Atenção particular é dada ao estudo desses vasos enfatizando as variações entre as diferentes espécies animais. Tanto as veias renais direita quanto a esquerda drenam seu con-teúdo diretamente para a veia cava caudal. O objetivo deste re-lato é descrever o aparecimento de variações numéricas da veia renal em gatos. Durante a rotina de dissecção nas aulas praticas de anatomia animal foi observada a presença de veia renal tripla no rim direito em dois gatos mestiços do sexo masculino. As veias foram medidas com paquímetro e fotografadas para do-cumentação.

Palavras-chave: Variação, veia renal, gato.

Summary: Knowledge of the renal vessels variations has impor-tance in a systematization program of radiological and surgical anatomy, both in humans and animals, applied for research and surgical training. Renal veins have been considered by dissec-tion or angiographic study means. Particular attention has been paid to the study of these vessels, outlining the variations noticed among various animal species. Both renal veins right and the left drain its contents directly to the caudal vena cava. Thus, the aim of this report is to describe a case of a triple renal vein in cats. During routine dissection in the practical classes of animal anatomy the presence of triple renal vein in the right kidney was observed in two crossbred male cats. The veins were measured with calipers and photographed for documentation.

Keywords: Variation, renal vein, cat

Introdução

No homem as variações da anatomia vascular re-nal foram caracterizadas por diferentes autores, bem como a prevalência de vasos múltiplos que ocorre em cerca de 20-50% dos casos (Testut e Latarjet, 1959; Isoda et al., 2002; Bordei et al., 2004; Sampaio e Passos 1992).

Segundo Harrison et al. (1978), Awojobi et al. (1983), e Sampaio e Passos (1992), a multiplicidade da artéria renal, é mais freqüente que a ocorrência de variações numéricas venosas. Segundo vários autores,

as variações das artérias renais são caracterizadas por duas ou três artérias que se originam diretamente da artéria aorta abdominal (Testut e Latarjet, 1959; Bordei et al., 2004; Sampaio e Passos, 1992).

As particularidades anatômicas das veias renais per-mitem uma série de considerações quando as veias são lesionadas ou obstruídas. A veia renal esquerda é maior do que a direita, cruza ventralmente a aorta, e recebe vários afluentes durante o seu curso, tal como o veia testicular/ovárica esquerda, a veia ureteral e a veia adrenal.

No homem o estudo da veia renal esquerda e suas variações encontram importância tanto quando da re-alização das anastomoses cirúrgicas, esplenorrenais, para o tratamento cirúrgico da hipertensão portal, estu-dos radiológicos, como, também, nas nefrectomias de doadores para o transplante renal. Por apresentar um trajeto mais longo do rim à veia cava caudal, a veia renal esquerda adquire maior importância que a veia renal direita, sendo preferida a sua utilização neste úl-timo caso.

Nos animais mamíferos domésticos, tanto a veia renal direita quanto a esquerda drenam seu conteúdo para a veia cava caudal. No entanto, o número, curso e local de drenagem das veias renais são, por vezes, motivos de muita controvérsia. Variações anatômicas das veias renais são ocasionalmente encontradas em estudos radiológicos e de rotina na dissecação da re-gião abdominal.

Entretanto, ao consultar a literatura, em particular os textos de anatomia, verifica-se que as informações re-ferentes às veias renais, especialmente suas variações numéricas e locais de drenagem, são escassas em ga-tos.

O objetivo desta pesquisa é relatar a ocorrência de veia renal tripla em gato, com enfoque nas possibili-dades de implicação clínico-cirúrgica desta variação anatômica.

Relato de Casos

No decorrer das atividades práticas de dissecção re-alizadas nas disciplinas do Laboratório de Anatomia *Correspondência: [email protected]

Stocco A. et al. RCPV (2014) 109 (591-592) 120-122

121

Animal do Departamento de Biologia Animal da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), observou-se variação numérica da veia renal em dois gatos, mestiços, que foram fixados com solução de for-maldeído a 10% e teve seu sistema arterial preenchido com solução aquosa de Petrolátex corado. Os animais foram dissecados, rebatendo-se as vísceras abdominais para a evidenciação do pedículo renal, origem, trajeto e esqueletopia dos vasos renais. Com um paquímetro de precisão foram obtidas medidas do comprimento, largura e espessura do rim.

Animal 1

Animal de aproximadamente três anos, macho, mestiço, medindo 46 cm. O rim direito apresentou 3,58 cm de comprimento, 2,52 cm de largura e 2,33 cm de espessura, localizando-se entre a L3 e L5. Observou-se que esse rim apresentou três veias renais (Figura 1): uma cranial, uma média e outra caudal. A veia cranial mediu 2,15 cm, a média 1,61 cm e a cau-dal 1,40 cm de comprimento. O rim esquerdo também foi dissecado, entretanto não apresentou nenhuma va-riação vascular.

Figura 1 - Fotomacrografia da vista lateral do rim direito mos-trando a veia renal tripla: a veia renal cranial, b veia renal média e c veia renal caudal.

Animal 2

Animal de aproximadamente três anos, macho, mestiço, medindo 49,1 cm. O rim direito apresen-tou 3,95 cm de comprimento, 2,69 cm de largura e 2,49 cm de espessura, localizando-se entre L3 e L5. Observou-se que o rim direito apresentou três veias renais (Figura 2): uma cranial, uma média e outra caudal. A veia cranial mediu 1,53 cm, a média 1,41 e a caudal 1,76 cm de comprimento. O rim esquerdo também foi dissecado, entretanto não apresentou ne-nhuma variação vascular.

Figura 2 - Fotomacrografia da vista lateral do rim direito mos-trando a veia renal tripla: a veia renal cranial, b veia renal média e c veia renal caudal.

Discussão

Qualquer flexibilidade na morfologia e topografia de estruturas do corpo que não altere sua fisiologia pode ser considerada uma variação anatômica e, portanto, deve ser diferenciada de aberrações e má formações, pois nestas há influência negativa sob o ponto de vista fisiológico (Sykes, 1963; Sanudo et al., 2003). No en-tanto, as variações podem estar correlacionadas com predisposições a certas enfermidades e achados em exames clínicos (Willam e Humpherson, 1999).

Duques et al. (2002) estudaram a veia renal em ca-dáveres humanos, e observaram que em 91,1% (n=31) dos casos a veia renal esquerda era única e em 8,9% (n=3), era dupla. O comprimento médio foi de 6,3 cm para os cadáveres do sexo masculino e 4,6 cm para os cadáveres do sexo feminino.

Artérias renais duplas foram descritas em cães (Oli-veira e Guimarães, 2007, Alonso e Abidu-Figueiredo, 2008), gatos (Pestana et al., 2011) e coelhos (Benvinda et al., 2013), entretanto relatos de veia renal tripla são escassos na literatura.

Reis e Tepe (1956) dissecaram as veias renais de 500 cães mestiços, 287 machos e 213 fêmeas, e observa-ram a presença de veia renal direita dupla em 5 animais (1%), enquanto que a veia renal esquerda se apresen-tou única em 100% dos casos.

Fagundes et al. (1990) estudaram a drenagem venosa dos rins de cadáveres de 30 cães mestiços de ambos os sexos e observaram que as veias renais direita e es-querda se apresentaram únicas em todas as dissecções realizadas.

Khamanarong et al. (2004) destacam a importância do entendimento da anatomia vascular renal na efici-ência e segurança de procedimentos cirúrgicos e radio-lógicos.

Stocco A. et al. RCPV (2014) 109 (591-592) 120-122

122

Sob ponto de vista mais geral, qualquer cirurgia abdo-minal que necessite de mobilização ou controle hemos-tático dos vasos renais requerem uma busca sistemática por eventuais variações anatômicas vasculares. A com-plexidade destas variações vasculares pode modificar as possibilidades técnicas do procedimento cirúrgico.

Para gatos com insuficiência renal em estágio final, o transplante renal pode ser uma alternativa terapêu-tica. A seleção adequada do doador é um componente importante de qualquer programa de transplante. No transplante renal em gatos, os requisitos para a anatomia vascular dos rins coletados são específicos para garantir o sucesso da cirurgia. Anastomose arterial é o mais bem sucedido, se houver uma única artéria renal, com um comprimento prévio de ramificação de pelo menos 0,5 cm. Se o pedículo vascular tem mais de uma veia, a veia com o maior comprimento e de maior diâmetro está re-servada para a anastomose (Bouma et al., 2003).

O setor de Anatomia Animal da Universidade Fede-ral Rural do Rio de Janeiro utiliza cadáveres de cães e gatos doados pelo Hospital Veterinário desta Uni-versidade, como rotina nas disciplinas destinadas ao Curso de Medicina Veterinária. Durante vários anos de atividades de dissecação ininterruptas não havia sido observado, por este grupo, variação nas veias dos rins de gatos, até à presente data.

A divulgação dos achados das variações anatômicas é importante para a prática médica veterinária e deve ser realizada como forma de conscientização dos pro-fissionais, contribuindo para o sucesso e aperfeiçoa-mento de diferentes protocolos clínico-cirúrgicos.

Variações numéricas das veias renais em gatos de-vem ser consideradas na execução dos procedimentos radiológicos, cirúrgicos e experimentais visando dessa maneira, evitar que erros sejam cometidos por desco-nhecimento das possibilidades da existência de veias renais duplas nestes animais.

Bibliografia

Alonso LS e Abidu-Figueiredo M (2008). Artéria renal du-pla originando da aorta em cão: relato de caso, Semina: Ciências Agrárias, 29, 185- 188.

Awojobi OA, Ogunbiyi OA, Nkposong EO (1983). Unusual relationship of multiple renal arteries. Urology, 21, 205-206.

Benvinda AA, Barreto UH, Costa OM, Abidu-Figueiredo M (2013). Double renal artery in rabbits. Bioscience Journal, 29, 1294-1295.

Bordei P, Sapte E, Iliescu D (2004). Double renal arteries originating from the aorta. Surgical Radiologic Anatomy, 26, 474-479.

Bouma JL, Aronson LR, Keith DG, Saunders HM (2003). Use of computed tomography renal angiography for screening feline renal transplant donors. Veterinary and Radiologic ultrasound, 44, 636-41.

Duques P, Rodrigues JR, Silva Neto FB, Neto EMVS, Tolêdo ES (2002). Estudo anatômico da veia renal esquerda de cadáveres humanos brasileiros. Medicina, 35, 184-191.

Fagundes GM, Souza A, Borelli V, Riella ACM (1990). Contribuição ao estudo da drenagem sanguínea do rim de cães (Canis familiaris – Linnaeus, 1758). Biotemas, 3, 117-127.

Harrison junior LH, Flye MW, Seigler HF (1978). Incidence of anatomical variants in renal vasculature in the presence of normal renal function. Annals of Surgery, 188, 83-89.

Isoda H, Saitoh M, Asakura T, Akai M, Itagaki Y, Ha-Kawa SK, Harima K, Sawada S (2002). An unusual ar-terial supply of the kidney from the opposite renal artery. ComputerizedMedical Imaging Graphic Journal, 26, 353-355.

Khamanarong K, Prachaney P, Utraravichien A, Tong-Un T, Sripaoraya K. (2004). Anatomy of renal arterial supply. Clinical Anatomy, 17, 334-336.

Oliveira FS e Guimarães GC (2007). Duplicidade da artéria renal em cão. Ciência Rural, 37, 1817-1819.

Pestana FM, Roza MS, Hernandez JMF, Xavier-Silva B, Abidu-Figueiredo M (2011). Artéria renal dupla em gato. Semina. Ciências Agrárias (Impresso), 32, 325-330.

Reis RH e Tepe P (1956). Variations in the pattern of renal vessels and their relation to the type posterior vena cava in the dog (Canis Familiaris). American Journal of Anatomy, 99, 1-15.

Sampaio FJB e Passos MARF (1992). Renal arteries: anato-mic study for surgical and radiological practice. Surgical and Radiologic Anatomy, 14, 113-117.

Sanudo J, Azquez R, Puerta J (2003). Meaning and clinical interest of the anatomical variations in the 21st century. European Journal of Anatomy, 7, 1-3.

Sykes D (1963). The arterial supply of the human kidney with special reference to accessory renal arteries. British Journal of Surgery, Inglaterra, 50, 368-374.

Testut L e Latarjet A (1959). Tratado de anatomía humana (1959). In: Testut L e Latarjet A. Editor: Torinese. Sistema urinário. (Barcelona), p. 871-87.

Willam PL e Humpherson JR (1999). Concepts of variation and normality in morphology: important issues at risk of neglect in modern undergraduate medical courses. Clinical Anatomy, 12, 186-190.

Apoio Financeiro: CNPq e FAPERJ