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513 CAPÍTULO 38 TRANSPLANTE RENAL – CIRURGIA DO DOADOR VIVO E IMPLANTE RENAL DANILO SOUZA LIMA DA COSTA CRUZ MIRIAM AITKEN KOSCHORKE CARLOS ALBERTO DE FREITAS RIBEIRO RONALDO DAMIÃO O transplante renal é o tipo de transplante mais realizado do mundo. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, o Brasil é o país com o segundo maior número absoluto de transplantes renais, ficando apenas atrás dos Estados Unidos da América 1 . Entretanto, se for consi- derado o número de transplantes renais por milhão de população (pmp), a sua posição cai para vigé- simo quinto lugar. Nos últimos seis anos, a taxa de transplante renal, entre 2012 e 2018, manteve-se inalterada (28,5 pmp), tendo havido uma queda de 32,9% na taxa de transplantes com doador vivo e aumento na taxa de transplante com doador falecido de apenas 10,3% 1 . Nas últimas décadas, os avanços têm se voltado ao desenvolvimento de imunossupressores com doses menores e de uso descontínuo, com o intuito de diminuir os efeitos colaterais. A partir da década de 60, com o surgimento das soluções de conservação renal e do primeiro agente imunossu- pressor, a azatioprina, os resultados alcançaram melhora expressiva. O transplante renal é uma opção terapêutica endereçada à insuficiência renal terminal (IRT) irreversível com necessidade de terapia renal substitutiva.

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CAPÍTULO 38

TRANSPLANTE RENAL – CIRURGIA DO DOADOR VIVO E IMPLANTE RENAL

DANILO SOUZA LIMA DA COSTA CRUZMIRIAM AITKEN KOSCHORKE

CARLOS ALBERTO DE FREITAS RIBEIRORONALDO DAMIÃO

O transplante renal é o tipo de transplante mais realizado do mundo. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, o Brasil é o país com o segundo maior número absoluto de transplantes renais, � cando apenas atrás dos Estados Unidos da América1. Entretanto, se for consi-derado o número de transplantes renais por milhão de população (pmp), a sua posição cai para vigé-simo quinto lugar. Nos últimos seis anos, a taxa de transplante renal, entre 2012 e 2018, manteve-se inalterada (28,5 pmp), tendo havido uma queda de 32,9% na taxa de transplantes com doador vivo e aumento na taxa de transplante com doador falecido de apenas 10,3%1.

Nas últimas décadas, os avanços têm se voltado ao desenvolvimento de imunossupressores com doses menores e de uso descontínuo, com o intuito de diminuir os efeitos colaterais. A partir da década de 60, com o surgimento das soluções de conservação renal e do primeiro agente imunossu-pressor, a azatioprina, os resultados alcançaram melhora expressiva.

O transplante renal é uma opção terapêutica endereçada à insu� ciência renal terminal (IRT) irreversível com necessidade de terapia renal substitutiva.

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A de� nição de IRT permanente2

- Taxa de � ltração glomerular (TFG) < 10ml/min/1,73m2 (irreversível)

ou

- creatinina > 8mg/dL

ou

- Síndrome urêmica em crianças ou em adultos com diabetes mellitus (avaliar individualmente)

A diálise é indicada em decorrência de complicações da insu� ciência renal crônica. Não é in-tenção deste capítulo se aprofundar neste assunto, mas vale ressaltar suas principais indicações:

- Edema Pulmonar Agudo sem resposta à diuréticos

- Síndrome urêmica severa

- Hipercalemia ou acidose metabólica refratárias ao tratamento medicamentoso

As principais causas de IRT por ordem decrescente de freqüência são o diabetes mellitus, hipertensão arterial, glomerulonefrites e doença renal policística. Tem maior prevalência no sexo masculino, afro-americanos, nativos da América e hispânicos. Causas urológicas somam 20-25% das indicações de transplante em pacientes pediátricos e 5-15% em adultos3.

I. Doador renal

Ao escolhermos os doadores renais, são importantes termos em mente os critérios de seleção dos candidatos e as particularidades dos doadores vivos e cadáveres.

Critérios de exclusão para doadores:

1. Incompatibilidade ABO e crossmatch positivo *

2. Doença renal com comprometimento de sua função

3. Doença infecciosa dos rins ou sepse

4. Doença transmissível de natureza maligna, exceto tumor cerebral primário e câncer de pele super� cial

5. DM e HAS que requer tratamento

6. Sem sorologia positiva: HIV, HTLV, HBsAg, HCV, sí� lis*

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*Estes critérios tornaram-se contra indicações relativas. Alguns programas de transplante já aceitam a imunoincompatibilidade através da implementação de protocolos de imunossupressão especí� cos para este grupo. As afecções virais crônicas que conseguem ser controladas adequada-mente com o uso de antivirais também vêm ganhando maior aceitação.

I.A - Doador vivo

Transplantes intervivos estão associados a maiores taxas de sucesso com relação àqueles de doador falecido4. Aos critérios de exclusão anteriormente citados somam-se os seguintes fatores especí� cos para esse grupo:

- Capacidade cognitiva limitanda

- Dependente de drogas

- Índice de massa corporal (IMC) > 33

- Aumentado risco de morbi-mortalidade: Doenças sistêmicas sem controle, como doença cardiovascular, diabetes mellitus (DM), insu� ciência pulmonar

- Doença renal: clearance creatinina diminuído, proteinúria > 300mg/dia

- Litíase renal de repetição ou cálculo coraliforme

- Doença renal policística

Critérios de escolha:

- > 18 anos, geralmente com no máximo 70 anos

- se ≥ 2 candidatos, optar pelo mais velho

- se parente de receptor com doença policística renal, só indicado se exames de imagem sem alterações renais e ter >40 anos

- se for parente de receptor com DM: excluir DM antes de doar o rim

- sempre deixar o doador com o melhor órgão.

- Sexo feminino em idade fértil, preferir a doação do rim direito pelo risco de hidronefrose e pielonefrite durante a gestação ser maior neste lado.

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Avaliação pré-operatória

A avaliação pré-operatória deve incluir anamnese e exame físico visando detectar alterações que contra indiquem o transplante. Exames sorológicos (HIV, HTLV, hepatite virais, citamegalovirus (CMV) e sí� lis) e de imunocompatibilidade (crossmatch e ABO) devem ser realizados, além de exa-mes para a determinação da função renal e o risco cirúrgico. Alguns protocolos incluem o rastreio de Epstein-Barr vírus especialmente se o receptor for criança.

Os exames de imagem devem incluir a Angio-Tomogra� a e Uro-Tomogra� a, padrão-ouro para a avaliação anatômica do trato urinário. Outras opções incluem a angiogra� a associada à uro-gra� a excretora e a Uro-Ressonância5.

Cirurgia do doador vivo

A nefrectomia do enxerto pode ser realizada por cirurgia aberta (lombotomia ou incisão subcostal) ou pela cirurgia videolaparoscópica (retroperitoneal ou transperitoneal). A nefrectomia videolaparoscópica transperitoneal já é considerada padrão-ouro. A laparoscopia “hand-assisted” minimiza tempo de isquemia quente quando comparada a laparoscopia clássica4.

1a - Lombotomia subcostal direita com exposição do espaço retroperitoneal

1b - Reparo do enxerto renal com clampeamento dos vasos renais

A nefrectomia esquerda é geralmente preferida por questões anatômicas. Apresenta veia re-nal mais longa, facilitando a sua posterior implantação. Independente da técnica realizada, se pre-coniza sempre a cirurgia que permita a retirada o rim com o maior comprimento possível dos seus

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vasos e ureter.

2a - Posicionamento do paciente doador renal. Decúbito lateral contralateral ao órgão a ser doado, com anti Trendelenburg e quebra do dorso

2b - Acessos para a nefrectomia videolaparoscópica transperitoneal. Posicionamento dos portais e pequena incisão suprapú-bica para a retirada do enxerto

Após esse tempo cirúrgico, o rim doado deve ser imediatamente irrigado com uma das solu-ções de perfusão e colocado sobre gelo até sua implantação.

3a - Enxerto renal esquerdo com ligadura de veias tributárias suprarrenal e gonadal

3b - Perfusão de enxerto renal com solução de preservação através de sua artéria até não haver saída macroscópica de sangue pela veia do enxerto

O surgimento da cirurgia robótica foi um grande avanço em todas as áreas cirúrgicas, inclusive no transplante renal. A nefrectomia robótica está bem indicada nos casos de dissecções vasculares mais difíceis como enxerto renal direito com veia renal curta e enxerto renal com múltiplas artérias.

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4a - Posicionamento dos braços do Robô na cirurgia de nefrectomia de enxerto renal

4b - Enxerto renal esquerdo ensacado, contendo duas artérias, sendo uma polar inferior mais � na. Veia renal esquerda com ligadura de veias tributárias gonadal, lombar e suprarrenal

4c - Ligadura de primeira artéria polar inferior

4d - Ligadura de artéria renal principal

Complicações especí� cas causadas pela nefrectomia

A hiper� ltração renal é complicação pouco temida, pois 70-80% dos níveis prévios de clea-rance de creatinina são restabelecidos rapidamente, sem repercussão a longo prazo6. Doadores com idade e IMC aumentados têm risco de desenvolver hipertensão arterial e piora da função renal com TFG<60 mL / min/1.73m2. A morbidade por complicações permanentes gira em torno de 0,23%, enquanto a mortalidade de doadores vivos não passa de 0,02%7. Os riscos de complicações pela nefrectomia a curto e longo prazo são aceitáveis quando comparadas aos benefícios trazidos pelo transplante.

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II. Receptor renal

Os pacientes com IRT candidatos ao transplante renal devem estar isentos das seguintes con-tra-indicações:

Contra-indicações absolutas:

- neoplasias tratadas < 2 anos. Tempo menor é aceitável apenas para casos selecionados de câncer de baixo grau, não invasivo.

- doença crônica grave: doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) avançada, doença cardía-ca grave, insu� ciência vascular periférica grave, cirrose hepática

- Não preenchimento das condições legais

Contra-indicações relativas:

- IMC >35, devendo perder peso por dieta e/ou cirurgia bariátrica

- Dependentes de drogas, necessitado estar em abstinência ≥ 6 meses documentados de

- Portador de HIV , não se aplicando caso CD4> 200 células/mmc por mais de 6 meses e carga viral indetectável

- Doença metabólica grave

- Incompatibilidade ABO

- Oxalose pimária. (podem fazer transplante duplo de rim e fígado)

A � la de espera é baseada na classi� cação prognóstica dos pacientes, visando determinar cri-térios de prioridade.

Critérios de maior relevância (maior pontuação) incluem:

- Pacientes com elevada imunoincompatibilidade ao rastreio ABO/ crossmatch, ou seja, que apresentam uma chance reduzida de encontrarem doadores compatíveis.

- Tempo de espera na � la

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- Receptores que já foram doadores

- < 18 anos

Receptores para doadores com critério expandidos

- estar de acordo antes de entrar na � la

- recomendado para pacientes com > 60 anos (em caso de indicação de urgência diminui ida-de exigida)

- DM > 40 anos

- Pacientes que não toleram ou têm di� culdade de acesso para a diálise

Risco de recorrência de IRC pós-transplante

Alto risco de recorrência ocorre:

- Glomerulonefrite focal e segmentar

- Síndrome hemolítico-urêmica

- Oxalase primária

Doenças com baixo risco de recorrência e potencialmente tratáveis incluem a amiloidose, cis-tinose e a doença de Fabry. O DM e a nefropatia por IgA são doenças que geralmente recorrem após o transplante, mas raramente levam a novas lesões renais. Doenças que não recorrem no enxerto são doença renal policística, síndrome de Alport e displasia renal.

Preparo antes da imunossupressão do transplante renal

O primeiro passo antes do transplante é tratar as contra-indicações relativas. Desta forma, pacientes com IMC >35 devem perder peso ou, caso necessário, realizar cirurgia bariátrica. Pacientes com diverticulite recorrente devem ser tratados cirurgicamente antes do transplante8. Da mesma maneira, pacientes com colecisiste/colelitíase sintomática ou pólipos de vesícula >1 cm devem ser submetidos à colecistectomia. Outras doenças infecciosas como infecções urinárias, tuberculose e úlceras de pés diabéticos também precisam ser previamente tratadas.

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Em caso de doença viral crônica, é importante a manutenção da carga viral a títulos indetec-táveis, já que os esquemas de imunossupressão com corticóides podem aumentar a replicação viral. Também se deve rastrear o CMV pois aumenta a morbidade em pacientes imunossuprimidos.

O HIV por muito tempo foi motivo de conta indicação ao transplante, mas atualmente tem--se visto bons resultados quando associado a baixas cargas virais e títulos aceitáveis de CD4. As hepatites virais crônicas ativas pelos sorotipos B e C são uma das principais causas de mortalidade no período tardio pós-transplante. O seu tratamento está evoluindo, sendo que pacientes com a forma crônica ativa da hepatite C podem se bene� ciar das terapias antivirais antes do transplante.

Portadores de herpes simplex vírus I e II têm indicação do uso de antivirais mesmo duran-te a imunossupressão. Crianças soro negativas para o Epstein-Barr virus devem preferencialmente receber rins de doadores também soro negativos. Em imunossuprimidos, o Epstein-Barr vírus eleva o risco de doenças linfoproliferativas, principal causa de câncer pós transplante em crianças. Além dessas medidas, os receptores também devem receber vacinação apropriada.

Avaliação pré-operatória

1. Cardiovascular: é recomendado que pacientes > 50 anos ou com história de doença cardio-vascular ou portadores de DM insulinodependente façam uma avaliação cardiológica e tratem suas doenças adequadamente antes de iniciarem a avaliação pré-operatória propriamente dita. A avalia-ção cardiovascular inclui a anamnese direcionada, eletrocardiograma e ECO doppler transtorácico. O ultrassom doppler dos vasos ilíacos ganha importância caso alterações de risco para as anastomoses vasculares sejam diagnosticadas. Na suspeita de qualquer alteração vascular, uma angio Tomogra� a ou uma angio Ressonância deve ser solicitada para evitar surpresas no peroperatório.

2. Urológica: malformações do trato urinário, disfunções miccionais, infecções urinárias recor-rentes e presença de hidronefrose ao ultrassom (USG) precisam ser investigados no pré-operatório, uma vez que geralmente são tratadas antes do transplante9. Pacientes diabéticos e com doenças neurológicas têm maior risco de disfunções miccionais secundárias, mesmo que o baixo débito uri-nário di� culte este diagnóstico. Além disso, pacientes oligúricos (diurese <300ml/24h) ou anúricos por longo tempo têm maior propensão a ter bexiga disfuncionalizada. Apresentam baixa capacida-de de enchimento devido ao desuso10-11. Em caso de suspeita de disfunção do trato urinário inferior, a investigação diagnóstica deve incluir, principalmente, a uretrocistogra� a miccional e/ou estudo urodinâmico12.

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Em pacientes sem suspeita de alterações urológicas, estes exames invasivos devem ser evita-dos.

• Conduta frente a disfunções do trato urinário:

- Hiperplasia prostática benigna: o tratamento não difere do realizado em pacientes não trans-plantados. Em caso de indicação cirúrgica, pacientes oligoanúricos devem realizar o procedimento somente após o transplante. A ausência do � uxo miccional representa risco de estenose da uretra prostática4.

- Bexigas disfuncionalizadas: normalmente conseguem recuperar-se após o transplante. Nas bexigas de baixa complacência deve-se fazer a reabilitação através da infusão de soro seguida de esvaziamento por cateterismo vesical semanalmente para o aumento progressivo de sua capaci-dade13. A ampliação vesical deve ser indicada em casos refratários às medidas conservadoras e a prevaleçam altas pressões intravesicais e baixa complacência14.

Re� uxo vesicoureteral do rim nativo: quando não decorre de alterações da bexiga marcadas por altas pressões intravesicais > 40 cm H20 e/ou baixa complacência, não proporciona prejuízo ao enxerto. O tratamento endoscópico com injeções subureterais pode ser indicado, mas tem índice de sucesso reduzido15.

Para re� uxos vesicoureterais grau ≥ III ou associados a infecções de repetição é indicada a nefroureterectomia do rim nativo16.

É importante ressaltar que pacientes com transplante renal tem aumentado risco de câncer, podendo chegar a 40%, após vinte anos, contra 6% quando comparado à população geral. A IRT leva a alterações metabólicas e do sistema imune, que somadas ao risco carcinogênico dos imunos-supressores, elevam signi� cativamente a incidência câncer17.

Indicação de nefrectomia do receptor pré-transplante

A nefrectomia do rim nativo deve ser realizada em torno de seis semanas antes do transplante. Este procedimento está indicado na presença de quadros infecciosos graves quando sob imunossu-pressão ou pela manutenção de doenças ou sintomas tratáveis somente pela retirada do rim.

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As principais indicações são:

1. Cálculos renais que não conseguem ser removidos por técnicas minimamente invasivas

2. Pielonefrites recorrentes

3. Suspeita de malignidade

4. Doença renal policística com rim abaixo da fossa ilíaca

5. Síndrome nefrótica com proteinúria importante

6. Hipertenão arterial refratária ao tratamento clínico (>10g/24h)

7. Anticorpos glomerulares antimembrana basal persistente

8. Hidronefrose grau IV-V

9. Re� uxos vesicoureterais grau ≥ III ou associados a infecções de repetição

10. Nefrectomia do enxerto pré-existente:

- Infecção ou necessidade de corticóide para o tratamento de dor ou hematúria macroscópica

- Necessidade do local para o implante de novo enxerto

Transplante – tempos cirúrgicos

1. Cirurgia de bancada:

Esse tempo cirúrgico se destina principalmente para rins de doador cadáver. O rim deve ser retirado dos sacos plásticos com líquido de perfusão e colocado sobre uma compressa envolvida por gelo, mantendo o enxerto resfriado até seu implante. Nesse momento, deve-se inspecionar o rim quanto à integridade do parênquima e das estruturas vasculares, variações anatômicas e prepará-lo para o implante.

Rins congelados ou com sinais de captação inadequada, inviabilizando uma boa anastomo-se, não devem ser usados uma vez que podem colocar em risco a vida do receptor.

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De forma geral, tem-se preferência pelo rim esquerdo. Isso se deve à veia renal esquerda ser mais longa, permitindo anastomoses vasculares mais seguras e sem a necessidade de reparos para alongar mais o seu comprimento.

Em contrapartida, o rim direito pode precisar de um patch de veia cava, para alongar a veia renal. Na necessidade de alongamentos ainda maiores, principalmente em decorrência de veias curtas, outras técnicas incluem o uso de segmentos da veia cava inferior ou veia ilíaca externa do doador.

5 - Enxerto renal direito com prolongamento da veia renal com patch de veia cava

Na presença de múltiplas artérias renais, a principal opção é reduzir o patch de aorta no in-tervalo entre as artérias a � m de se confeccionar um patch único menor. A implantação pode ser por patch único ou por anastomoses separadas. Para a presença de 2-3 artérias supranuméricas pode-se unir a porção distal dos vasos em um lúmen único, também conhecido como cano de espingarda. Artérias de menor diâmetro podem ser unidas às de maior.

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6a - Enxerto renal esquerdo com 2 artérias afastadas em patch único de aorta

6b - Plástica de patch de aorta com aproximação dos dois óstios das artérias renais

O ureter pode também apresentar alterações anatômicas. Em caso de ureteres duplicados pode-se optar pelo implante em cano de espingarda, técnica que une a parte distal dos ureteres em um lúmen único. Dessa forma, de dois implantes na bexiga o reduz para um, diminuindo também as complicações inerentes à anastomose vesicoureteral.

2. Cirurgia do receptor

Para obter melhores resultados, o tempo entre a captação do órgão até seu implante, chama-do de tempo de isquemia fria, deve ser o mais breve possível. A equipe cirúrgica deve ser experiente e com boa destreza para conseguir minimizar o tempo de isquemia fria e obter bons resultados.

- Incisão:

Salvo situações de exceção, o transplante é normalmente feito na fossa ilíaca contralateral ao rim doado, ou seja, o rim esquerdo deve ser transplantado na fossa ilíaca direita e rim direito na fossa ilíaca esquerda. Desta maneira, anteriorizamos a via urinária, onde a maioria das complicações pós operatórias ocorre.

Primeiro, o cirurgião deve realizar o cateterismo vesical após a colocação de campos estéreis, permitindo a manipulação cateter sem risco de contaminação.

O acesso deverá ser feito mediante uma incisão infra-umbilical na fossa ilíaca, podendo ser longitudinal pararretal, arqueada (Gibson) ou oblíqua (Rutherford-Morison). Uma vez afastada a musculatura, disseca-se um espaço acima dos vasos ilíacos, o su� ciente para acomodar e criar uma loja renal. Não se deve abrir o peritônio (técnica extraperitoneal).

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7a - Incisão infra umbilical na fossa ilíaca esquerda longitudinal pararretal, arqueada (Gibson)

7b - Dissecção do espaço extraperitoneal com exposição dos vasos ilíacos à direita

- Suturas vasculares

As anastomoses vasculares devem ser feitas primeiro para minimizar o tempo de isquemia do enxerto, sendo seguidas pelo implante ureteral. Habitualmente, realiza-se a anastomose da arté-ria renal com a artéria ilíaca interna (término-terminal), ou com a artéria ilíaca externa (látero-ter-minal); e da veia renal com a veia ilíaca externa (término-lateral).

8a e 8b - Anastomose término lateral de veia de enxerto renal em veia ilíaca externa esquerda

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8c - Anastomose término terminal de artéria de enxerto renal em artéria ilíaca interna direita

8d - Anastomose término lateral de artéria de enxerto renal em artéria ilíaca externa direita

Terminadas as anastomoses vasculares, os clampes vasculares que ainda mantinham o rim isquêmico devem ser delicadamente retirados; primeiro o da veia, seguido o da artéria. Nesse mo-mento, é importante observar um adequado enchimento vascular, com a pulsação da artéria. O parênquima renal deve � car túrgido e adquirir coloração uniforme.

- Implante ureteral

Existem duas técnicas para a confecção da anastomose vesico-ureteral: técnica extravesical (Lich-Gregoir) e a técnica intravesical (Politano-Leadbetter).

A técnica extravesical é a mais utilizada, sendo mais rápida e com menor abertura vesical. Fa-z-se uma pequena incisão na parede látero-superior da bexiga para a anastomose com ureter distal. Pontos dados lateralmente ao implante ureteral aproximam a parede da bexiga sobre a anastomose, criando um mecanismo valvular anti-re� uxo. A colocação de DJ não é obrigatória, mas deve ser pon-derada em casos de di� culdade técnica.

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9a - Confecção da bolha com a mucosa da bexiga durante o reimplante extravesical

9b - Anastomose uretero vesical à Lich Gregoir

Transplante em bloco

Rins de doadores com menos de 15 kg devem ser implantados em bloco. Nessa situação, a anastomose arterial se fará entre o segmento distal da aorta do enxerto e a venosa entre a veia cava inferior do enxerto com os respectivos com vasos ilíacos externos ou comuns do receptor.

10 - Transplante renal em bloco: Fechamento de porções superiores de veia cava e de artéria aorta. Anastomose de porção inferior de veia cava e de artéria aorta do enxerto em vasos ilíacos do receptor

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Pós- operatório

Faz parte da rotina fazer o acompanhamento do funcionamento renal por meio da cintilogra-� a renal e USG doppler até o aumento da diurese, diminuição dos níveis da creatinina e suspensão da diálise. O cateter vesical deve ser retirado dentro de cinco a sete dias em média e o dreno quando apresentar débito inferior a 50mL/dia.

Gestação

O transplante renal está ligado a maiores riscos de complicações durante a gestação, com aumento da incidência de pré-termos, pré-eclampsia e DM gestacional. É recomendável aguardar 2 anos para engravidar. Para doadoras de transplante intervivos também é recomendável prazo míni-mo de 1 ano.

REFERÊNCIAS

1- Registro Brasileiro de Transplantes 2018. Associação Brasileira de Órgãos

2- The UNOS OPTN waiting list: 1988 to 1994. United Network for Organ Sharing. Organ Procurement and Transplan-tation Network. Clin Transpl. 1994:69-86.

3- (11) - Medina et al., Transplante renal do Brasil. J. Bras Nefrol 2011; 33 (4):472-484

4- (6) - Karam G. Et al., Diretrizes para transplante renal. Update março 2009. European Association of Urology Gui-deline. (www.uroweb.org)

5- Pozniak MA et al.,Computed tomographic angiography in the preoperative evaluation of potential renal transplant donors.. Curr Opin Urol. 1999 Mar;9(2):165-70.

6- Najarian JS et al., 20 years or more of follow-up of living kidney donors. Lancet. 1992 Oct 3;340(8823):807-10.

7- Matas AJ et al. Morbidity and mortality after living kidney donation, 1999-2001: survey of United States transplant centers. Am J Transplant. 2003 Jul;3(7):830-4.

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TRANSPLANTE RENAL – CIRURGIA DO DOADOR VIVO E IMPLANTE RENAL

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