v.15 n.25 jan/jun 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEBReitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa Maraux

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretora: Ângela Maria Camargo Rodrigues;Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – Coordenadora: Nadia Hage Fialho

COMISSÃO DE EDITORAÇÃOEditora Geral: Yara Dulce Bandeira de AtaideEditor Executivo: Jacques Jules SonnevilleEditora Administrativa: Jumara Novaes Sotto Maior

GRUPO GESTOR: Ângela Maria Camargo Rodrigues, Jaci Maria Ferraz de Menezes, Jacques Jules Sonneville,Jumara Novaes Sotto Maior, Luciene Maria da Silva, Marcos Luciano Messeder, Nadia Hage Fialho, Renata Monteiro,Verbena Maria Rocha Cordeiro, Yara Dulce Bandeira de Ataíde.

CONSELHO EDITORIALConselheiros nacionaisAdélia Luiza PortelaUniversidade Federal da BahiaCipriano Carlos LuckesiUniversidade Federal da BahiaEdivaldo Machado BoaventuraUniversidade Federal da BahiaIvete Alves do SacramentoUniversidade do Estado da BahiaJaci Maria Ferraz de MenezesUniversidade do Estado da BahiaJacques Jules SonnevilleUniversidade do Estado da BahiaJoão Wanderley GeraldiUniversidade de CampinasJonas de Araújo RomualdoUniversidade de CampinasJosé Crisóstomo de SouzaUniversidade Federal da BahiaKátia Siqueira de FreitasUniversidade Federal da BahiaMarcos Silva PaláciosUniversidade Federal da BahiaMaria José PalmeiraUniversidade do Estado da Bahia e UniversidadeCatólica de SalvadorMaria Luiza MarcílioUniversidade de São Paulo

Naddija NunesUniversidade do Estado da BahiaNadia Hage FialhoUniversidade do Estado da BahiaPaulo Batista MachadoUniversidade do Estado da BahiaRaquel Salek FiadUniversidade de CampinasRobert Evan VerhineUniversidade Federal da BahiaWalter Esteves GarciaAssociação Brasileira de Tecnologia Educacional / Insti-tuto Paulo FreireYara Dulce Bandeira de AtaídeUniversidade do Estado da BahiaConselheiros internacionaisAntônio Gomes FerreiraUniversidade de Coimbra, PortugalEdmundo Anibal HerediaUniversidade Nacional de Córdoba, ArgentinaEllen BiglerRhode Island College, USALuís Reis TorgalUniversidade de Coimbra, PortugalMarcel LavalléeUniversité du Québec à Montréal, CanadaMercedes VilanovaUniversidade de Barcelona, España

Os pareceristas ad hoc do n. 25 serão divulgados junto com a lista na publicação do n. 26 da revista.Revisão: Vera Brito; Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes; Tradução/revisão: Eric Maheu;Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh; Secretaria: Maria Fernanda Vieira Rosa

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - EDUNEBDiretora: Naddija NunesMuseu de Ciência e Tecnologia - Pró-Reitoria de Extensão - PROEXAvenida Jorge Amado, s/nº - Boca do Rio - 41.710-050 Salvador/BAwww.uneb.br / [email protected] - telefax (71) 3371.00148 – ramal 204

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Revista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBA

EducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoe Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidade

Departamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006

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Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADERevista do Departamento de Educação – Campus I(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural. Os pontosde vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc.deve ser dirigida à:

Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIADepartamento de Educação I - NUPERua Silveira Martins, 2555 - Cabula 41150-000 SALVADOR - BAHIA

Tel. (071)3117.2316

Instruções para os colaboradores: vide últimas páginas.

E-mail da Revista da FAEEBA: [email protected]

E-mail para o envio dos artigos: [email protected]

Site da Revista da FAEEBA: http://www.revistadafaeeba.uneb.br

Indexada em / Indexed in:– REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas – www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic– BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)– Centro de Informação Documental em Educação – CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação– EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online – Faculdade de Educação – Biblioteca UNICAMP– Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação – Universidadede São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html– CLASE – Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana –Universidade Nacional Autônoma do México:E-mails: [email protected] e [email protected] / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx– INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la RechercheScientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr

Pede-se permuta / We ask for exchange.

Tiragem: 1.000 exemplares

Revista da FAEEBA: Educação e contemporaneidade / Universidade doEstado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun.,1992) - Salvador: UNEB, 1992-

Periodicidade semestral

ISSN 0104-7043

1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título. CDD: 370.5 CDU: 37(05)

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006

S U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I O

9 Editorial

10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação eContemporaneidade

EDUCAÇÃO, ARTE E LUDICIDADE

15 Eclipse do lúdicoCristina Maria d’Ávila

27 Ludicidade e educação emocional na escola: limites e possibilidadesMaria José Etelvina dos Santos

43 Século XXI: o jogo necessário para o aprendizado e para o mundo do trabalhoNilce da Silva

55 Se der a gente brinca: crenças das professoras sobre ludicidade e atividades lúdicasIlma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto

79 Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdicaSueli Barros da Ressurreição; Bernadete de Souza Porto

99 O teatro-educação enquanto componente curricular no meio rural: uma experiência naEscola Comunitária Brilho do CristalRilmar Lopes da Silva

117 Do desenho das palavras à palavra do desenhoRicardo Ottoni Vaz Japiassu

133 As atividades lúdicas na alfabetização político-estética de jovens e adultosCilene Nascimento Canda

147 O especial dos jogos e brincadeiras no atendimento às diferençasSusana Couto Pimentel

157 Arte: estampas híbridas de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternizaçãoMiguel Almir Lima de Araújo

163 Bandas, filarmônicas e mestres de banda da Bahia: formação de músicos e cidadãosJuvino Alves

173 Uma escola de música e artes brasileiras na BahiaKatharina Döring

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006

185 Arte em movimento: a potencialidade da arte na formação de educadoresIzabel Dantas de Menezes

201 Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado:reflexões sobre o fazer artístico e cultural nosso de cada diaIsa Trigo

211 Fala e escuta de professores em sala de aulaMaria de Lourdes S. Ornellas

227 A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médioHerivelto Moreira et al

239 Em busca da América: Latinos (re)construindo os Estados UnidosEllen Bigler

ESTUDOS

261 PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Porque escrever é fazerhistória: revelações, subversões, superações. Prefácio Rui Canário. Campinas, SP: Graf.FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.Naddija Nunes

266 COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, 58 p.Eric Maheu

268 QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. Universidade e desigualdade: brancos e negros noensino superior. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.Jocélio Teles dos Santos

RESENHAS

271 Instruções aos colaboradores

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006

C O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T S

11 Editorial

12 Themes and Time Limit to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista da FAEEBA– Education and Contemporaneity

15 The Eclipse of LucidityCristina Maria d’Ávila

27 Ludicity and Emotional Education in School – limits and possibilitiesMaria José Etelvina dos Santos

43 XXI Century: the Essential Game for Learning and for the World of WorkNilce da Silva

55 If Possible We’ll Play: Teachers’ Beliefs on Playfulness and Playful ActivitiesIlma Maria Fernandes Soares; Bernadete de Souza Porto

79 Teacher Heart: the (dis)enchantment of his/her work according to a social-historical andludic perspectiveSueli Barros da Ressurreição; Bernadete de Souza Porto

99 The Theater-Education as Component of Curriculum in the Agricultural Region: anexperience in the comunitary school Brilho do CristalRilmar Lopes da Silva

117 From Drawing Words to Giving Drawing some Chance to SpeakRicardo Ottoni Vaz Japiassu

133 The Playful Activities in the Politic and Aesthetic Literacy of Young and AdultsCilene Nascimento Canda

147 The Special Character of Fun and Play while Attending to Special Needs ChildrenSusana Couto Pimentel

157 Art: Hybrids Impression of Rainbow in Flower – Synergy, Religation and Eco-fraternizationMiguel Almir Lima de Araújo

163 Bands, Philharmonic Societies and Masters of Bahia: education and citizenshipJuvino Alves

173 A School for Brazilian Music and Arts in BahiaKatharina Döring

EDUCATION, ART AND LUDICITY

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, p. 1-272, jan./jun., 2006

185 Art in Motion: the potentiality of art in educator’s formationIzabel Dantas de Menezes

201 A journey of Listening from Everywhere, Feeling or not Feeling your Own Side:Reflections on our Everyday Artistic and Cultural ActivitiesIsa Trigo

STUDIES

211 Speaking with Teachers and Listening to them in the ClassroomMaria de Lourdes S. Ornellas

227 The Conception of Professional Knowledge and its Acquisition by High School TeachersHerivelto Moreira et al

239 In Search of America: Latina/os (Re)constructing the U.S.A.Ellen Bigler

BOOK REVIEWS

261 PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Why to Write and doHistory: revelations, subversions and overtaking. Prefácio Rui Canário. Campinas, SP:Graf. FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.Naddija Nunes

266 COHN, Clarice. The Anthropology of Children. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, 58 p.Eric Maheu

268 QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. University and Inequality: Whites and Blacks inSuperior Education. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.Jocélio Teles dos Santos

271 Instructions for collaborators

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 2006 9

EDUCAÇÃO, ARTE E LUDICIDADE é o tema do número 25 da Revistada FAEEBA – Educação e Contemporaneidade. Sem dúvida, é uma marca nahistória da revista, não apenas pela abordagem de uma nova temática, de grandealcance e importância para o estudo da educação, mas também pela contribui-ção significativa do GEPEL – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação eLudicidade – da Faculdade de Educação da UFBA, iniciando-se, deste modo,uma nova linha de cooperação científica, desta vez com uma instituição univer-sitária de fora da UNEB, ainda que localizada na mesma cidade de Salvador.Esperamos que seja o início de um fecundo intercâmbio acadêmico com outrasinstituições acadêmicas, dentro e fora do Estado da Bahia, permitindo uma inte-gração crescente dos diversos grupos de pesquisa em educação na região.

Todos os textos têm como objetivo mostrar a importância vital da arte e daludicidade para o processo da prática educacional, seja no ensino formal sejanum ambiente mais amplo. O primeiro texto, de Cristina Maria d’Ávila, analisaas práticas em curso e o papel superdimensionado concedido ao manual didá-tico, revelando o eclipse que oblitera uma ação pedagógica lúdica, prazerosa ecriativa. Neste sentido, Maria José Etelvina dos Santos investiga as atividadeslúdicas como recurso de prática educativa, que tenha presente o desenvolvi-mento emocional do estudante. Por sua vez, Nilce da Silva aponta algumas dascaracterísticas necessárias para a constituição de uma Pedagogia para SéculoXXI, cujo fio condutor é a criatividade.

Segue uma série de pesquisas de campo sobre a temática. Ilma MariaFernandes Soares analisa as crenças das professoras sobre ludicidade e ativi-dades lúdicas, que, de alguma forma, explicam a resistência desses/as profissi-onais a um trabalho pautado na ludicidade. Já Sueli Barros da Ressurreiçãomostra a importância da ludicidade na formação profissional, no investimentoafetivo e no reencanto do professor em seu trabalho. Outro texto, de RilmarLopes da Silva, relata uma experiência pedagógica em Teatro-Educação como intuito de formar cidadãos com capacidade de serem criativos, críticos, par-ticipativos e autônomos. Ricardo Japiassu faz uma análise detalhada sobredesenvolvimento gráfico-plástico infantil e a formação do professor em arte-ensino na educação infantil e séries iniciais. O texto de Cilene NascimentoCanda descreve a importância da ludicidade na construção do processo deconscientização na alfabetização de jovens e adultos. Finalmente, Susana CoutoPimentel discute a potencialidade dos jogos e brincadeiras na promoção dosprocessos de aprendizagem e desenvolvimento de alunos com necessidadeseducativas especiais.

EDITORIAL

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, jan./jun., 200610

O terceiro bloco de textos dá uma atenção especial à Arte, nas palavras deMiguel Almir Lima de Araújo, expressão ontológica da condição humana, comsua potência de transfiguração do real, através de nossa sensibilidade e imagi-nação criantes. Como exemplo, Juvino Alves traça um panorama histórico dasBandas e Sociedades Filarmônicas da Bahia e do seu papel educativo, ressal-tando ainda a figura dos mestres de Banda. Nesta perspectiva, Katharina Döringpropõe a criação de uma Escola de Música e/ou Artes através dos departa-mentos da UNEB no interior da Bahia. O artigo de Izabel Dantas de Menezesprocura compreender a potencialidade da arte na formação dos educadores domovimento sócio-cultural MIAC, para além ‘do chão da escola’. Partindo dasua experiência como docente, diretora e atriz dentro do campo das artes cê-nicas e visuais, Isa Trigo discute a possibilidade da criação de um curso deArtes na UNEB, debatendo a questão das artes e da cultura popular comoespetáculo a ser valorizado através de mecanismos institucionais.

Com a seção de Estudos, onde se estudam, respectivamente, as represen-tações sociais de professores sobre fala e escuta em sala de aula (Maria deLourdes S. Ornellas), a concepção de conhecimento profissional entre os pro-fessores do ensino médio (Herivelto Moreira et al) e a mudança demográficacausada pelos latinos que constituem atualmente o maior grupo minoritário nosEstados Unidos (Ellen Bigler), e a seção de três Resenhas, temos a convicçãode que o número 25 da Revista da FAEEBA dará uma nova e importantecontribuição para o estudo da educação.

Os Editores: Jacques Jules SonnevilleJumara Novaes Sotto Maior

Yara Dulce Bandeira de Ataide

Temas e prazos dos próximos númerosda Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

26 Educação e Trabalho 30.05.06 Setembro de 2006

27 Educação Especial 30.09.06 Março de 2007

28 Educação Ambiental eSociedades Sustentáveis 30.05.07 Setembro de 2007

Nº Prazo de entregados artigos

Lançamentoprevisto

Tema

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EDITORIALEducation, Art and Ludicity is the theme of the number 25 of the Revista

da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade. Without any doubt, it will leta mark in this journal’s history, not only for the new theme embraced and forits importance and scope but also for the significant contribution of the GE-PEL – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Ludicidade from theUFBA. We open this way a new framework of scientific cooperation, thistime with an universitary institution outside the UNEB but from the same city(Salvador). We hope that it may constitute the beginning of a fertile academicexchange with other institutions, in and out of Bahia, possibilitating a greaterintegration between education research groups.

All the texts aim at showing the vital importance of art and ludicity withinthe process of educational practices, in a formal or larger context. The firstpaper, from Cristina Maria D’Ávila, analyses present practices and shows theoverdimensioned role of the didactic book which obliterate a ludic, pleasurableand creative pedagogy. In this sense, Maria José Etelvina dos Santos investi-gates ludic activities as resources from the educational practice focussing onthe pupil emotional development. From her part, Nilce da Silva points out somenecessary characteristics for the elaboration of XXIst century pedagogy ba-sed upon creativity.

Follow various texts relating fieldworks upon the theme. Ilma Maria Fer-nandes Soares explains the teachers’ beliefs about ludicity and playful activi-ties, which, in a certain way, explain the teachers’ resistance to a work framedby ludicity. From her part, Sueli Barros da Resssureição shows the importanceof lucidity in professional education within the affective involvement and re-enchantment of teachers’ work. Next paper, from Rilmar Lopes da Silva tellsabout a pedagogical experience of Theater Education which aims at educationcitizens able to be creative, critic, participative and autonomous. Ricardo Ja-pans analyzes in a detailed way, the infantile plastic and graphic developmentand the teachers’ education in the teaching of art in the first years of primaryschool.

Ilene Ancient Canada’s paper describes the importance of ludicity duringthe conscientization process of young and adult while learning how to read andwrite. Finally, Susana Couto Pimentel discusses the potentiality of games inthe promotion of learning processes and special students’ development.

The third section gives a special attention to Art, in the words of MiguelAlmir Lima de Araújo, onthologic expression of the human condition, with itspotential of transfiguration of the real through our blatant sensibility and imagi-

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nation. Juvino Alves, for example, draws an historical framework of the bandsand philharmonic societies of Bahia and their educational role, pointing out thefigure of the band masters. In the same perspective, Katharina Döring sugges-ts the creation of a Music or Art School with the net of UNEB faculties outsi-de the capital’s state of Salvador. The paper from Izabel Dantas de Menezestries to understand art potentiality in teachers’ education within the socio-cul-tural movement called MIAC, beyond the classroom. Isa Trigo, constructingupon her experience as a teacher, director and actress within the visual andscenic art field, discusses the possibility of the creation of an Art Program atthe UNEB, debating the question of arts an popular culture as spectacle to bevalorized through institutionalized mechanisms.

With the section Studies, where the teachers’ social representations aboutdiscourses and listening within the classroom (Maria de Lourdes S. Ornellas),the high school teacher’s conception of professional knowledge (HeriveltoMoreira et al) and the demographic change provoked by Latinos who presen-tly constitute the main ethnic group in the United States (Ellen Bigler) arerespectively analysed, and the last section with three book reviews, we havethe conviction that the 25th volume of the Revista da FAEEBA will contributefor the study of education.

Editors: Jacques Jules SonnevilleJumara Novaes Sotto Maior

Yara Dulce Bandeira de Ataide

Themes and terms for the next journalsof Revista da FAEEBA:

Educação e ContemporaneidadeNº

26 Education and Work 30.05.06 September 2006

27 Special Education 30.09.06 March 2007

28 Ecological Education and 30.05.07 September 2007Sustainable Societies

Time limit Anticipated dateof publishing

Themes

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EDUCAÇÃO,ARTE

E LUDICIDADE

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15Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006

Cristina Maria d’Ávila

ECLIPSE DO LÚDICO

Cristina Maria d’Ávila*

* Doutora em Educação, Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da FACED/UFBA e do PPGEDUC/UNEB. Professora de Didática e Prática de Ensino na UFBA e na UNEB. Vice-coordenadora do GEPEL – Grupo deEstudos e Pesquisas em Educação e Ludicidade – FACED/UFBA. Endereço para correspondência: Universidade doEstado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555,Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOEste artigo traz como escopo uma reflexão sobre a situação pedagógica nasséries iniciais do nível fundamental, utilizando como recurso ilustrativo um estudode caso (relato de experiência), resultado de pesquisa realizada em uma escolapública na cidade de Salvador. Intenciona, ao analisar as práticas em cursonesse contexto e o papel superdimensionado concedido ao manual didático,revelar o eclipse que oblitera uma ação pedagógica lúdica, prazerosa e criativa.Concluímos a favor de uma prática pedagógica lúdica, apoiada sobre a artecomo dimensão estruturante do humano. Neste sentido, sustentamos a idéia deque o saber sensível (artístico e lúdico), interligado aos demais saberes - sabere ao saber fazer - fundantes da prática pedagógica, poderão fazer erigir umapedagogia lúdica, onde o pensar, o sentir e o agir, em uníssono, se expressamno processo de ensinar e aprender.

Palavras-chave: Ludicidade – Ensino lúdico – Eclipse didático – Arte – Sabersensível

ABSTRACTTHE ECLIPSE OF LUDICITY

This paper aims to reflect upon the pedagogical situation in the first years ofthe Brazilian primary school through case study: a fieldwork research realizedin a public school of the city of Salvador (Bahia). We pretend to analyse thepractices within this context as well as the over dimensioned role of theschoolbook. We reveal a didactic eclipse which eliminates any playful,pleasurable or creative pedagogical action. We conclude in favour of a playfulpedagogical practice, supported by art as a structuring dimension of humankind.In this way, we assess the idea the sensible knowledge (artistic and playful),interlinked with other knowledges (from knowing something up to knowinghow to do something), at the base of the pedagogical practice, may construct aplayful pedagogy in which, feeling and acting, could expresses themselves inharmony within the learning and teaching process.

Keywords: Ludicity – Playful teaching – Didactic eclipse – Art – Sensibleknowledge

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Eclipse do Lúdico

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Se você conhecesse o tempo tão bem quanto eu, disse o Chapeleiro, nãodiria gastar, referindo-se a ele.Não sei o que você quer dizer com isso, disse Alice.É claro que não sabe, respondeu o Chapeleiro, sacudindo desdenhosamen-te a cabeça; tenho certeza de que você nunca falou com o Tempo!...Talvez não, replicou Alice conscienciosamente; mas quando estudo músicatenho que marcar o tempo...Ah! Então é por isso! Disse o Chapeleiro; ele não suporta marcação. Masse você o tratar bem, fará o que você quiser com o relógio. Por exemplo: sefossem nove horas da manhã, hora de começar as lições e que você quises-se brincar, era só cochichar um pedidozinho ao Tempo e zás! Ele rodava osponteirinhos do relógio até marcar seis horas da tarde, Pronto! Num piscarde olhos seria hora do jantar!...

(Alice nos País das Maravilhas, Lewis Carrol).

INTRODUÇÃOUm rápido olhar sobre o que acontece na

escola, principalmente nas classes dos anos ini-ciais do fundamental, já nos possibilita enxergar-mos o quão distantes estamos do que poderíamoschamar de uma prática pedagógica lúdica, mor-mente quando se fala em educação pública.

Se observarmos o cotidiano escolar, a partirdos ritos repetitivos de – chegada à escola, filapara entrar na sala de aula, a oração, deslinda-mento dos conteúdos mediante a fala majorita-riamente expositiva e dominante das professo-ras, saída para o recreio, fila para entregar amerenda, retorno, novamente a mesma profes-sora que expõe magistralmente o conteúdo dasdisciplinas, sineta que toca anunciando a horada saída, fila, porta a fora e a rua que, convida-tiva, chama as crianças que, finalmente, brin-cam – poderemos perceber que o espaço dobrincar ou do deleite em aprender tem sido rou-bado na escola.

Na sala de aula, o ensino criativo e lúdicotem cedido espaço para ações repetitivas emecânicas. Muitas dessas ações, realizadas,sobretudo no Ensino Fundamental, têm no livrodidático o seu mestre. Tal material, por consti-tuir-se no mais poderoso, e mesmo, onipotenterecurso de ensino, de que lançam mão os pro-fessores dos níveis fundamental e médio deensino, sobretudo nas escolas públicas, ditam

as regras do que fazer didático no dia-a-dia dasala de aula. E, por isso mesmo, por se basta-rem, equivocadamente, suprimem da cena acriatividade, autoria docente e a ludicidade. Esteé o tema do presente artigo que tem por objeti-vo refletir sobre o espaço conferido à ludicida-de no ensino fundamental e o eclipse ocasionadopor ações didáticas mecânicas, capitaneadas,principalmente, pelo livro didático, adotando, porconsiderar mais precisa, a terminologia manualdidático.

Tomaremos aqui como referências para aná-lise do fenômeno anunciado, os autores Cipria-no Carlos Luckesi (2000a; 2004b, 2005),Maturana e Gerda Verden-Zoller (2004), JohanHuizinga (1996), Deheinzelin (1996) Alessan-drini (1992), dentre outros. Inicialmente discu-tiremos o conceito de ludicidade, de ensino eatividades lúdicas, em seguida discorreremossobre a Arte como dimensão ligada ao ensinolúdico e, finalmente, apresentaremos algunsexemplos extraídos da pesquisa realizada nocontexto de uma escola pública de séries inici-ais do nível fundamental.

Ludicidade: ensino lúdico e ativi-dades lúdicas

LUDO: Do latim LUDU – “tipo de jogoem que as pedras se movimentam segundo o

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17Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 15, n. 25, p. 15-25, jan./jun., 2006

Cristina Maria d’Ávila

número de casas indicado pelos dados. Usocomum: jogo, divertimento” 1 . Essa temáticatem despertado interesse de educadores, psi-cólogos, terapeutas em geral, sociólogos, antro-pólogos, filósofos e historiadores, dada a suadiversidade e importância em face das realida-des sócio-econômicas, políticas e culturais, de-finidoras do mundo contemporâneo.

Considerando-se a polissemia em torno doconceito de ludicidade, podemos destacar as suasacepções mais comuns: jogo, brincadeira, lazer,recreação... Em síntese, podemos dizer que doponto de vista sociocultural o lúdico não é exa-tamente uma dinâmica interna do indivíduo, masatividades dotadas de significação sociocultu-ral. A cultura lúdica é, assim, um conjunto deprocedimentos que se apodera dos elementosde cada cultura específica. Por outro lado, nasua acepção psicológica, o lúdico deve expres-sar uma experiência interna de satisfação e ple-nitude no que se faz. Vejamos uma e outraconcepção, segundo o pensamento de algunsautores, buscando nestas, o seu núcleo comum.

Segundo Huizinga (1996), na sociedade an-tiga, o trabalho não tinha o valor que lhe atribu-ímos há pouco mais de um século e nem ocupavatanto tempo do dia. Os jogos e os divertimentoseram um dos principais meios de que dispunhaa sociedade para estreitar seus laços coletivose se sentir unida. Isso se aplicava a quase to-dos os jogos, e esse papel social era evidencia-do principalmente em virtude da realização dasgrandes festas sazonais.

Brougère (2002) compreende o jogo no seuenraizamento social. Diz ele que o ludus latinotem diferentes acepções a depender da culturade que se fala. Criticando a psicologização emtorno do conceito (a não compreensão da di-mensão social que se encarna nas atividadeshumanas, dentre as quais, no jogo), explica quea brincadeira e o jogo são construções cultu-rais. Sendo assim, só podem ser compreendi-dos dentro de um sistema de interpretação dasatividades humanas. Brougère destaca que“uma das características do jogo consiste efeti-vamente no fato de não dispor de nenhum com-portamento específico que permitiria separarclaramente a atividade lúdica de qualquer outro

comportamento. O que caracteriza o jogo émenos o que se busca do que o modo como sebrinca, o estado de espírito com que se brinca”(2002, p. 20).

Maurício Silva, em sua “Trama doce-amar-ga. Exploração do trabalho infantil e culturalúdica” (2003), define o lúdico na sua acepçãoantropológica, como um processo de relaçõesinterpessoais, um processo cultural que “mudade conteúdo, do nascimento até a morte decada participante e que, por sinal, não pode seseparar analiticamente do contexto em que seproduz...”(2003, p. 182). Na sua concepção,antes de mais nada, é preciso que se compre-enda a criança como ser social em permanen-te construção, cuja inserção no mundo se dápela cultura.

Encontramos em Maturana e Gerda Verden-Zoller (2004), um conceito do brincar muito pró-ximo às nossas crenças: “Na vida diária o quequeremos conotar quando falamos em brincar éuma atividade realizada como plenamente válidaem si mesma. Isto é, no cotidiano distinguimoscomo brincadeira qualquer atividade vivida nopresente de sua realização e desempenhada demodo emocional, sem nenhum propósito que lheseja exterior” (2005, p. 144).

Tanto quanto no “Ócio Criativo” de Domeni-co De Masi (2000), onde o conceito de traba-lho passa a ser entendido nas suas intercessõescom o estudo e a ludicidade. Segundo o autor:

Aquele que é mestre na arte de viver faz poucadistinção entre o seu trabalho e o tempo livre,entre a sua mente e o seu corpo, entre a sua edu-cação e a sua recreação, entre o seu amor e a suareligião. Distingue uma coisa da outra com difi-culdade. Almeja, simplesmente, a excelência emqualquer coisa que faça, deixando aos demais atarefa de decidir se está trabalhando ou se diver-tindo. Ele acredita que está sempre fazendo asduas coisas ao mesmo tempo (2000, p. 148).

E assim, completa De Masi, “a plenitude daatividade humana é alcançada somente quandonela coincidem , se acumulam, se exaltam e semesclam o trabalho, o estudo e o jogo” (2000,p. 148).

1 Dicionário Aurélio, p. 1051.

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Para Cipriano Luckesi (2004), o conceito deludicidade se expande para além da idéia delazer restrito à experiência externa, ampliandoa compreensão para um estado de consciênciapleno e experiência interna. Segundo o autor:

... quando estamos definindo ludicidade comoum estado de consciência, onde se dá uma expe-riência em estado de plenitude, não estamos fa-lando, em si das atividades objetivas que podemser descritas sociológica e culturalmente comoatividade lúdica, como jogos ou coisa semelhan-te. Estamos, sim, falando do estado interno dosujeito que vivencia a experiência lúdica. Mes-mo quando o sujeito está vivenciando essa ex-periência com outros, a ludicidade é interna; apartilha e a convivência poderão oferecer-lhe, ecertamente oferecem, sensações do prazer daconvivência, mas, ainda assim, essa sensação éinterna de cada um, ainda que o grupo possaharmonizar-se nessa sensação comum; porém umgrupo, como grupo, não sente, mas soma e en-globa um sentimento que se torna comum; po-rém, em última instância, quem sente é o sujeito.(LUCKESI, 2005, p. 6). 2

Neste sentido, o conceito do que é lúdicorepousa sobre a idéia do prazer que reside noque se faz, como disse, há pouco tempo, o jor-nalista Ruy Castro: “O prazer não está em de-dicar um tempo programado para o ócio. Oprazer é residente. Está dentro de nós, na ma-neira como a gente se relaciona com o mun-do”. O conceito defendido atravessa, pois, essaidéia da permanência no jogo, no sentir prazere inteireza naquilo que se faz.

Na escola, entretanto, essa dimensão tãonatural aos seres humanos e a outros animaisparece bastante descolada das práticas cotidi-anas. Em seu mais recente livro, Maturana eVerden-Zoller (2004) sustentam, inclusive, queo amar e o brincar são fundamentos esqueci-dos do humano e, contraditoriamente, estrutu-rantes deste. Isto posto, cabe indagarmos acercado espaço que a escola tem deixado para o brin-car: De que maneira a ludicidade se faz pre-sente ali? O que entendemos por ensino lúdico?

Em primeiro lugar precisamos diferenciarludicidade de atividade lúdica: o centro da ludi-cidade, segundo a concepção que defendemosaqui, reside no que se vivencia de forma plena

em cada momento. Ou seja, no ensino lúdico,significa ensinar um dado objeto de conheci-mento na dança da dialética entre focalizaçãoe ampliação do olhar. Sem perder o foco dotrabalho, entregar-se a ele. Muitas experiênci-as de ensino em que se entremeiam atividadeslúdicas deixam margem para uma dicotomiaentre conteúdo curricular e ludicidade. A reali-zação de atividades lúdicas na sala de aula nãosignifica dizer que se está ensinando ludicamen-te, se este elemento aparece como acessório.O ensino lúdico é aquele em que se inseremconteúdos, métodos criativos e o enlevo em seensinar e, principalmente, aprender. A esse pro-pósito, Luckesi acentua:

A metáfora criativa pode ser utilizada dentro daárea de conhecimento com a qual trabalhamosou fora dela. Proponho que um “ensino lúdico”deva servir-se das possibilidades das metáforascriativas dentro do foco da disciplina com a qualtrabalhamos e não fora dela. O ensino lúdico, ameu ver, permite a nós e aos nossos educandosolhar os conteúdos que estamos estudando comum “pescoço flexível”, que pode olhar o objetode investigação e compreensão de diversos ân-gulos, mas sem suprimir ou escurecer o objetode investigação. Ele é o mediador da investiga-ção entre os sujeitos; o foco de atenção de edu-cador e educandos está sobre esse objeto etrocam experiências a partir dele. A dança emtorno dele é que é lúdica e criativa. (LUCKESI,2005). 3

A metáfora criativa a que chama atençãoCipriano seria, nessa perspectiva, a mola mes-tra de um ensino realmente lúdico – uma práti-ca de ensino onde quem ensina e quem aprendese encontram enlevados na realização das ati-vidades, mesmo que a aula seja no mais puro ebom estilo expositivo. Com isso não se estáquerendo dizer que as aulas expositivas sejamlúdicas por si só. Toda e qualquer aula é lúdicana medida em que professor e estudantes seencontrem prazerosamente integrados e foca-dos no conteúdo que se tem a trabalhar. Seria

2 Disponível em www.luckesi.com.br. Acesso em: 18 fev.2006.3 Conteúdo de mensagem eletrônica enviada ao Grupo deEstudos e Pesquisas sobre Educação e Ludicidade - GEPEL –da Universidade Federal da Bahia, no ano de 2005.

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uma exposição com algo a mais e esse algo amais inclui o elemento da metáfora criativa aque chamou atenção Cipriano Luckesi na suafala.

A criatividade e a autoria são estruturantesde uma ação educativa lúdica. “Uma práticaeducativa lúdica possibilitará a cada um de nóse a nossos educandos aprendermos a viver maiscriativamente e, por isso mesmo, de forma maissaudável” (LUCKESI, 2004, p. 20). Incluímosaqui a dimensão da arte como ingrediente in-dispensável ao ensino lúdico. Voltaremos a esseponto ao final do artigo; pelo momento interes-sa focalizarmos a arte como fundamento deuma pedagogia lúdica.

Da arte como dimensão do ensinolúdico

A aprendizagem ocorrerá significativamen-te quanto mais formos capazes de aproximar opensar do fazer e do sentir. E através da arte oser humano aprende de modo integral, pois queestes sentidos estão presentes: aprende-se pen-sando, fazendo e sentindo.

Ressentimo-nos, nas práticas pedagógicasque pudemos observar nas séries iniciais doensino fundamental, por ocasião da pesquisarealizada no quadro do nosso doutoramento emeducação (além de relatos compungidos de nos-sos estudantes estagiários do curso de pedago-gia), da ausência, para além do saber e do saberdidático, de um outro saber capaz de transfor-mar o professor ou a professora não somentenum profissional competente, mas num artista.Falamos do saber sensível (artístico e lúdico)que nasce, primeiramente, do saber ouvir, dodesenvolvimento de uma escuta sensível para,então, se construir uma nova práxis, refletida.Trata-se de captar o desejo e, então, agir com-petente e artisticamente.

Fazer da educação uma arte significa de-senvolver este estado de sensibilidade e criati-vidade. Inicialmente, significa afastar-se dadependência de receitas mecânicas para abrir-se às possibilidades infindas oriundas da ricavivência dos educandos. Macedo nos fala a

respeito do professor como estudioso da suaprópria prática, na verdade, um educador-etno-pesquisador-crítico, capaz de “estabelecer umacompetência até o momento outorgada a espe-cialistas tecnocratas da pesquisa”, compreen-dendo cientificamente a sua prática para umaatuação conjunta e ressignificada (MACEDO,1998, p.52). Sem dúvida, na medida em que estesujeito passar a se constituir como um indaga-dor contumaz de sua prática profissional, pode-rá passar a assinar sua autoria neste processo,deixando de reproduzir os modelos pedagógi-cos oferecidos pelos manuais escolares e poroutras autoridades educativas.

O acúmulo de informações e explicaçõesabstratas que tem caracterizado a mediaçãodidática em escolas convencionais, ainda hoje,precisa, a meu ver, ceder espaço ao lúdico, àarte e, assim, ao prazer em ensinar e aprender.

Horkheimer (apud DEHEINZELIN) susten-ta que a pretensão do Iluminismo estava em “dis-solver os mitos e anular a imaginação, por meiodo saber” (1996, p. 68); no entanto, é possívelque outros tipos de saber sejam trazidos, relem-brados e reconstelados na escola, saberes quenão dissociam sujeito e objeto de conhecimento.Nesta perspectiva, tornar-se-ia o professor umtradutor destes saberes; um sujeito capaz de lercom os olhos do outro e descobrir neste outroo seu desejo em aprender.

“Cada criança tem uma singularidade que atorna única, assim como uma obra de arte”(DEHEINZELIN, 1996, p. 81). Gostaria deadotar essa premissa e dizer que, vista assim,nada mais coerente do que lhe ensinar artisti-camente. Devemos aqui aprender com o cons-trutivismo piagetiano que acredita que sujeito eobjeto de conhecimento se constituem mutua-mente, transformando-se e reconstruindo-se acada instante. Compreenderíamos que o sabernão é um dado pronto, mas um constante devir;que se enraíza nas tradições sem conformar-secom elas; um saber que não se sedimenta, ex-clusivamente, na razão analítica, mas nas múl-tiplas determinações do sujeito e do objeto(DEHEINZELIN, 1996).

Acredito que não só as estruturas cogniti-vas devam ser objeto de preocupação dos pro-

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fessores, mas a educação do ser por inteiro.Afirma Argan que é somente na arte que podeser alcançada “a unidade entre a estrutura dosujeito e a estrutura do objeto, na medida emque esta é justamente a realidade que se cria apartir do encontro do homem com o mundo.Uma civilização sem arte estaria destituída dacontinuidade entre objeto e sujeito, da unidadefundamental do real” (apud DEHEINZELIN,1996, p. 93).

A arte seria, assim, propiciadora das rela-ções entre interioridade e exterioridade. O sa-ber sensível e artístico, somado ao saberdidático, fariam, então, do professor, um leitorinteligente da alma humana, correspondendo,com justiça, ao que as crianças precisam e de-sejam saber.

Segundo Cristina Allessandrini (1992), atra-vés da arte podemos desenvolver níveis superi-ores de cognição; habilidades cognitivas desen-volvidas, tradicionalmente, através da linguagem,podem ser desenvolvidas através da arte. Aautora sustenta, ainda, que há certos bloqueios,no processo da aprendizagem, que impedem oindivíduo de utilizar-se do raciocínio e da lin-guagem verbal para exprimir-se. Aspectos sem-pre tão requeridos pela escola, aliás, estes são,via de regra, as únicas vias de aquisição do sa-ber de que se utiliza a escola. A autora relataque na sua experiência como psicopedagoga,mediante a linguagem extra-verbal (plástica,musical, gestual), o indivíduo expressa sentimen-to, pensamento e necessidades. Esse trabalhoé facilitador para que o educando contacte comsuas próprias dificuldades conceituais. Num tra-balho que alia arte à cognição, as estruturas dopensamento se desenvolvem operacionalizan-do o fazer artístico e criativo, assim, o indivíduoé trabalhado na sua inteireza. “Do ponto de vis-ta psicológico, há o resgate do ser total e inte-grado em sua realidade de vida criador e trans-formador, ativo e reflexivo na sua participaçãosocial” (ALESSANDRINI, 1992, p. 12).

Fundamentalmente, pode-se dizer que paraaprendermos todos os nossos sentidos são pos-tos à prova: ouvir, ver, cheirar, tocar, sentir osabor… o sabor do saber. Com efeito, o termosaber vem do latim – sapere – e na origem,

significa ter gosto, sabor. Onde ficou perdidoeste elo?

Aprendemos melhor se utilizamos estes ca-nais de conhecimento, estas vias de acesso aosaber. Ativamos a cognição pela ação criativa.No momento em que estamos a criar, os nossosporos se abrem à nova aprendizagem. As fun-ções cognitivas superiores – analisar, generali-zar, compreender, deduzir, imaginar – estariam,assim, em melhores condições de estruturar asaprendizagens, como diria Vygotsky.

Alessandrini sustenta que “a mudança naaprendizagem propõe uma variação interna eneuronal. Novas estruturas neuro-psicológicassão ativadas ao se descobrir o refazer criativo”(1992, p.12). A assimilação de novas experiên-cias concorre, assim, para as mudanças nos pro-cessos mentais, a percepção se amplia e osprocessos que envolvem o raciocínio passam aincluir cada vez mais abstrações. “O pensamen-to humano começa a apoiar-se no raciocínio ló-gico amplo; a esfera da imaginação criadora tomaforma, o que por sua vez expande enormementeo mundo subjetivo do homem” (LURIA, 1990,apud ALESSANDRINI, 1992, p. 12).

Na escola muito pouco se articulam os fato-res afetivos e cognitivos, e a arte poderia ga-rantir este elo. O não aprender – uma doençacrônica nas escolas públicas, em geral – podeadvir dessa falta de articulação. Fagali afirmaa respeito da não-aprendizagem:

… um dos pontos críticos desta não-aprendiza-gem se refere à falta de integração mundo interno-mundo externo, teoria-prática, conhecimento-vida,passividade-atividade, recepção-ação e constru-ção, a percepção de parte e o todo, as linguagensverbais e não-verbais. Em suma, a compartimenta-lização, as cisões e desintegrações têm sido o gran-de mal que interfere no não aprender, na não trans-formação e na não-criação. (1992, p. 7).

Penso que estas cisões, mencionadas pelaautora, e presentes, via de regra, na mediaçãodidática mecânica, estão na raiz da insatisfa-ção crescente que tem se apoderado de educa-dores e educandos. A não-aprendizagem afetaenormemente a confiança que o professor po-deria gerar em si mesmo e no poder do seutrabalho. No entanto, ele constata, cada vez

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mais, perdido e descrente, o quão distante en-contram-se seus alunos daquilo que ele teria porobjetivos de aprendizagem. E o que pode mo-ver o mundo interno e externo do sujeito no pro-cesso contínuo que caracteriza a aprendizagem?

A meu ver, por meio da arte, como dimen-são estruturante da condição humana, lúdica nasua definição (de tal modo que se torna puratautologia se dizer de uma arte lúdica) pode-sefazer emergir a singularidade de cada um e oprazer em ensinar e aprender, estando-se intei-ro nesta atividade. Pois aprender implica emampliar as percepções, utilizando-se dos dife-rentes canais sensoriais que possuímos. São asemoções que imprimem significado às aprendi-zagens; sem elas, os objetos de conhecimentonão são apreendidos em sua dinâmica, são as-similados como corpos inertes. A arte em suasmais variadas manifestações (literatura, músi-ca, plasticidade...) pode propiciar a apropria-ção do saber articulado à emoção. Desta forma,o objeto de conhecimento, em sua estrutura in-terna, pode ser explorado e integrado às neces-sidades do educando, mediante outras relaçõesque não absolutizam o raciocínio, mas casam-se com ele - a relação entre o saber, o sentir eo fazer integrados, propiciados pela atividadeartística, poderão render aprendizagens sempresignificativas, duradouras e prazerosas.

Luckesi compreende que o ser humano éum ser em constante movimento e, a partir daí,concebe a visão lúdico-biossistêmica da edu-cação. Por acreditar que o homem é um serinacabado, e passível de transformações ao lon-go de sua vida, assume o conceito corpomentecomo fundamental à qualquer prática educati-va que tenha na ludicidade seu ponto de parti-da. Assim, “para praticar uma educação e umavida lúdica, necessitamos de vivenciar integra-da e simultaneamente, a mente e o corpo, ou,se preferirmos, o corpomente ou a mente cor-po” (2000, p. 26).

O autor ressalta que o educador é aqueleque amorosamente acolhe, sustenta e confron-ta a experiência vivida pelo educando, permi-tindo, assim, a organização criativa e equilibradade sua vida. Além disso, a prática educativalúdica, por centrar-se na plenitude da experiên-

cia, propicia ao educador e aos educandosaprender a ser e viver melhor (2000, p. 40).

O que sustento, apoiando-me no ideário deDeheinzelin, Luckesi, Alessandrini e outros, é queé preciso estar-se inteiro e pleno no que se rea-liza para que a aprendizagem seja, de fato, signi-ficativa. O fazer integrado ao sentir, estimulará,assim, o pensar. Por meio da linguagem artística,o educando poderá expressar seu sentimento, seupensamento e suas necessidades, ativar a cogni-ção, integrando melhor o mundo interno com omundo externo. Dessa forma, o trabalho educa-tivo poderá fazer eclodir novas aprendizagens,respeitando-se o aluno como ser inteiro, corpo-mente e emoção. Com a arte poderá o alunoestabelecer uma relação positiva com o apren-der/construir o conhecimento, tornando-se maisreceptivo, aberto às novas aprendizagens e cons-truções. Com isso, romperíamos o ciclo viciosoem que vemos emaranhados professores e alu-nos, insatisfeitos os primeiros porque não conse-guem ensinar e os últimos porque não conseguemaprender.

Eclipses didáticos na sala de aulae o ensino lúdico

Aqui sustento o argumento de que as práti-cas pedagógicas – falando especificamente doensino fundamental nos seus primeiros anos –estão passando ao largo da necessidade do lú-dico nas vidas dos escolares, saibamos aqui:professores e educandos. Pela experiência vi-vida na pesquisa de onde ilustro alguns extratosneste artigo, pude verificar que a ludicidade nãoencontra terreno dentro dos muros escolares, anão ser em raríssimas ocasiões de recreaçãoentre os próprios educandos e de maior sensi-bilidade por parte dos professores presentes.Tal realidade pôde ser constatada também comopresente a partir do relato de alunos nossos decursos de licenciatura e Pedagogia, em situa-ção de estágio e pré-estágio, quando verificamem suas observações e diários itinerantes depesquisa que o espaço para o prazer e a ludici-dade em sala de aula e nas práticas educativasestá longe de ser o ideal.

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Quero aqui chamar a atenção para o fatode que quanto mais o professor (a) se encontracolado ao livro didático, menos criativas e lúdi-cas são suas atividades.

Dos resultados encontrados na pesquisa re-alizada no ano de 2001 sobre a mediação do-cente em face do uso do livro didático, pudemosconstatar, como padrão de conduta predominan-te (72,5%): a mediação didática do tipo mecâ-nico com uso do manual didático escolarconduzida pelas docentes. A desconfiança ini-cial se esclarecia aqui como resposta ao eclip-se a que chamamos atenção neste artigo. Dototal de 40 aulas observadas, apenas 28%, re-presentaram sinais de práticas mais criativas.Do que se pode depreender que 20% das pro-fessoras conseguem desenvolver atividadescriativas e lúdicas, sem uso do manual escolar.Mas 78% representam a prisão ao manual. E,por assim dizer, perda da autoria no trabalhopedagógico e, por que não dizer, perda do gostodo ensinar e do aprender.

O esquecimento da ludicidade no trabalhopedagógico pode ser vislumbrado a partir dasfalas de professoras sobre práticas muito li-gadas ao que reza o manual escolar. Diriaque o potencial pedagógico e o potencial in-telectual, psíquico e sócio-cultural das crian-ças são muito desperdiçados em atividadesque reproduzem um ensino pautado em carti-lhas. As poucas atividades lúdicas que obser-vei não tinham relação com o manual.Vejamos alguns exemplos.

Numa determinada aula observada por mim,a professora da 2ª série desenvolve uma ativida-de extremamente instigante e não presente, comosugestão, no manual didático de sua classe. Tra-ta-se da reciclagem de papel, atividade que eladesenvolve a partir de uma receita de papiermaché. A atividade de recriação do lixo e suatransformação em produto utilizável (o papel),além de lúdica, tornaram possíveis as interces-sões com outros objetos de conhecimento (ciên-cias e artes, sobretudo). Abaixo a sua mediação:— O que é reciclagem? (Pergunta a profes-sora à sua turma)— O lixo que vai para o lixo.— E o que é isso aqui dentro? (mostra a mis-

tura que faz com restos de papel jornal e água).— Reformar o lixo.— Jornal. (diz outro aluno).— Ah, pensei que fosse siri catado... (dizsorrindo). Vocês estão fazendo uma experi-ência, é? Me chamem depois...

A professora passa a fazer outra atividadeOrganiza palavras por ordem alfabética: amen-doim, bolo, canjica, laranja.— A laranja deve ficar de fora, pró. (Diz oaluno achando que o “L” depois do “C” não épossível).— Posso beber água? (essa é uma questãorecorrente na sala; significa a justificativa parafugir da sala).— Amanhã tem aula, pró? (é sábado)— Não!— Ah, mas tem que ter!

Exclama uma criança totalmente enlevadacom a atividade desenvolvida. A professora co-meça a mexer a mistura de papier maché, sozi-nha; os alunos ficam em sua volta observando amagia que irá fazer... Já é hora do recreio. Dolado de fora, o que se ouve são os gritos dascrianças que saem para o recreio. Mas, aqui nasala, os alunos permanecem atentos ao proces-so de reciclagem... A professora deixa a mistu-ra de papel descansando e vem conversarcomigo; informo-me que trabalharão hoje com oALP (símbolos); pergunto sobre suas férias, res-ponde-me falando do seu não descanso, de suafalta de repouso e revolta contra com o governo.Perguntei sobre o uso do livro: em duas semanasde trabalho, só não usou o livro por dois dias.Chama os alunos e começa a passar o papel noliquidificador. Todos estão alegres e em voltadela. Ela também está alegre. Canta “Eu vou,eu vou...”, eles cantam com ela... olha a recei-ta: “3 colheres de cola”... Vamos ver gente? (conta junto com eles...!) Tomara que dê certo! Dê certo! Dê certo!! (todos repetem) Pró, a gente vai chorar, viu pró?

A emoção deles é tão grande, que um alunochega a dizer que vai chorar. Finalmente liga oliquidificador. Todos correm para ver a mistu-ra. Todos olham. A cola não dissolveu. Eu nãoposso perder um só instante dessa interação...

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Tomo nota de tudo, registro com o olhar e aescrita... A professora mostra-me a mistura.Mostra orgulhosa a toda a sala. Finalmente des-liga o liquidificador, passa a mistura na peneirae continua com o trabalho riquíssimo de reci-clagem do lixo, produzindo papel reciclado. Aclasse inteira participa e se sente motivada, aprofessora conduz a atividade com tal habilida-de que envolve a todos – sinal claro de que,quando não se utilizam do manual, o que têm aproduzir na classe é muito mais rico.

Assisti a outras aulas não muito interessan-tes assim. Aulas em que o aspecto cognitivopredominava sobre o afetivo e demais dimen-sões do espírito humano. Na maioria atividadescoladas ao livro didático:4

— Agora fecha o livro de matemática e pegao ALP.— Ah!... (que desânimo...)— Ô pró... vamos pegar o caderno...— Depois do recreio, vamos fazer um bo-cado de caderno, viu? Página 129.— Pró, esqueci o livro em casa!— Esqueceu? O que é que eu digo? EsseALP não pode ficar fora da pasta! Pronto?Agora quero atenção, hein?

A atividade do manual reproduzida pela pro-fessora nesta aula de 1ª série provém de um tex-to longe de representar a realidade sócio-culturaldos educandos. É um texto que fala das comidasitalianas, fortemente presente no cardápio dospaulistas – não gratuitamente a região de ondeprovém a maioria dos manuais didáticos. Veja-mos a seguir, a atividade mediadora da profes-sora, explorando o texto mencionado:— Quem aqui gosta de pizza? Alguns respondem:— Eu!— Observem a pergunta – qual o nome dacasa que vende pizza?— Pizzaria— Já comeram pizza?— Eu já, eu já.— Eu não. Eu não!— Não acredito, Michael. Vou trazer umapra você comer.

Os manuais didáticos no Brasil, na sua qua-se totalidade, são produzidos nas regiões Sul e

Sudeste do País. Os textos destes manuais fa-zem menção às realidades sócio-culturais des-se espaço geográfico; são as representaçõesdeste real distante de nossos alunos, baianos,que estão presentes no manual escolar e quesão reproduzidos pela professora, sem qualquervislumbre de intercessão com a realidade cul-tural vivida pelas crianças da Bahia, como noexemplo citado aqui. Como os professores es-tão colados ao manual, não fazem a ponte, nãoestabelecem ligações com a nossa realidade,não conseguem ressaltar, por exemplo, os praze-res da culinária baiana, uma das mais ricas dopaís, em sua singularidade afro-descendente, nosseus cheiros, temperos e cores.

Para finalizar, um último exemplo ilustrativode um problema muito sério presente nas salasde aula de escolas públicas e particulares, capi-taneado pelos manuais didáticos atuais. Trata-se da utilização do merchandising na sala deaula. As imagens publicitárias, extremamentepresentes nos manuais destinados, atualmente,aos níveis de ensino fundamental e médio, apa-recem como justificativa a um trabalho lingüís-tico sócio-construtivista (conforme o título domanual didático), atrelado à cotidianeidade dascrianças: quereria o manual traduzir o que serialeitura de mundo? Se for isso, importa saberque, para Paulo Freire (2000) a leitura do mun-do sempre significou outra coisa: o compromis-so deste educador que criou um pensamentopedagógico, muito longe de reproduzir a comu-nicação persuasiva das propagandas, estava emdesvendar o significado político-social da pala-vra escrita e, de modo mais amplo, do mundoletrado. Essa nova metodologia tem levado pro-fessores dos níveis fundamental e médio a ar-riscadas peripécias pedagógicas, uma vez quelidam com um público vulnerável a todo tipo deapelo comercial. Ademais, a presença da pro-paganda de produtos e marcas comerciais (ad-vindas, em maioria, de potentes multinacionais!)em manuais comprados com verbas públicas edistribuídos em todas as escolas públicas destePaís é, no mínimo, um desrespeito ao contribu-

4 CÓCCO e HAILER, ALP, Análise Linguagem e Pensa-mento. São Paulo: FTD, 1995.

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inte que paga por isso, no final das contas5 .Abaixo a situação de ensino/aprendizagem con-duzida pela professora de 1ª série: Qual a marca de pasta dental? Eu uso Colgate. Ninguém usa Kollynos? Todo mundo usaColgate? Tem a Kollynos, a Sorriso, Tandy.Qual o nome do leite (que aparece no manual)? Leite Ninho. Nescau, Leite em pó. Só Ninho? Não, Nescau. Em pó! Mas, qual o nome do leite? Ninho. Mas, tem outras marcas. Quero saberItambé, ninguém usa? Cotochés?... Que mais? (Diz e escreve no quadro, em 1ºlugar - Ninho). Vejam o que vocês maisusam em casa e coloquem. Eu só uso mais Ninho. Qual o sabão? OMO (unânimes). Que mais? Qual o outro? Brilhante, ô tia, e aquele que chegou novo? Não tô lembrada, não. O Ala..., Ariel. Pode ser sabão em pedra também. Sabão de coco. Minuano. Tem o azul, pró. Serve para que esse material? Lavar casa, chão, o carro. E a pasta é pra quê? Escovar o dente...

Esta situação se refere aqui ao abuso de umtipo de texto que vem sendo apresentado nosmanuais como marca de produtos (merchandi-sing), sem que se diga nada a respeito, nenhumaressalva; os professores desavisadamente tra-balham com este tipo de texto num tal torpor quenão se dão conta de que fazem propaganda semreceberem nada por isto. E a reprodução de umhabitus, tal como denunciaram em idos de 1970,Bourdieu e Passeron, vai se sedimentando empráticas pedagógicas alienadas e alienantes.

Bem, essas práticas alienadas, mecânicas eacríticas estão longe de constituir-se em ativi-dades lúdicas, menos ainda em ensino lúdico.

Elas roubam o espaço que poderia estar sendoutilizado com mais gosto para ambos os sujei-tos do ato educativo, professores e educandos.Um trabalho pedagógico que dispensa autoriajamais poderá ser lúdico, pois o ser criativo e,conseqüentemente, o trabalho como experiên-cia plena nascem do desejo. E o desejo é autor.

(In) conclusõesOs exemplos que trazemos aqui são

ilustrativos de outros contextos escolares. Evi-dentemente, a escola atravessa graves neces-sidades. Necessidades mínimas de funciona-mento referentes, sobretudo, ao material deapoio para o ensino, onde se inclui os recursosdidáticos e, nestes, o manual didático escolar.Aliás, a biblioteca está abarrotada de manuaisdidáticos – estes são, praticamente, a únicafonte de informação e pesquisa dos professo-res e alunos, o que empobrece enormementea prática educativa.

No processo de mediação didática docente,ante os olhos e ouvidos dos alunos e o profes-sor se antepõe, qual num eclipse, o livro didáti-co, a roubar a autoria e criatividades docentes,assim como a autonomia intelectual dos edu-candos. O contexto ilustrado aqui pode bem serestendido a outras realidades.

Entretanto, há sinais nesta prática de que exis-te um potencial latente, adormecido. Um poten-cial criativo e lúdico que hiberna, mas que podeser despertado à luz da esperança por melhorescondições para o ensino. Esses nossos profes-sores ainda mantêm acesa a chama, mesmo quesob condições tão adversas de trabalho, de tem-po, de salário… Freire diagnostica: “É esta for-ça misteriosa, às vezes chamada vocação, queexplica a quase devoção com que a grande mai-oria do magistério nele permanece, apesar daimoralidade dos salários. E não apenas perma-nece, mas cumpre, como pode, seu dever. Amo-rosamente, acrescento” (2000, p.161).

5 As imagens publicitárias mencionadas aqui e presentes nosmanuais analisados, se encontram no capítulo de análise dosmanuais escolares da tese “Decifra-me ou te devoro. O que podeo professor frente ao manual escolar?”, Salvador: UFBA, 2002.

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Cristina Maria d’Ávila

Acredito, como Freire apostou, que aindapodemos construir um futuro melhor paranossos alunos e professores, religando razãoe sensibilidade. Saber sensível este que podetransformar toda uma roda de práticas me-cânicas e sem sentido. Um ensino lúdico que

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 26.03.06

traga na sua raiz a dimensão artística certa-mente fará brotar os frutos da verdade inter-na de cada um vivificado em experiênciassignificativas. A inefável arte de ensinar veráentão crescer a flor do desejo. O desejo desaber.

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Maria José Etelvina dos Santos

LUDICIDADE E EDUCAÇÃO EMOCIONAL NA ESCOLA:LIMITES E POSSIBILIDADES

Maria José Etelvina dos Santos*

* Mestre em educação pela FACED/UFBA; Especialização em Psicopedagogia pela UESC; graduada e licenciada emPsicologia pela Faculdade de Ciências Humanas do Recife. Professora na Universidade do Estado da Bahia - UNEB –Campus XV. Endereço pra correspondência: Rua Cecília Meireles, S/N° Centro – 45.400/000 Valença - Bahia. E-mails:[email protected] e [email protected]

RESUMOEsta pesquisa teve por objetivo investigar as atividades lúdicas como recursode prática educativa, que tenham presente o desenvolvimento emocional doestudante, como também compreender as possibilidades e limites de se trabalharas emoções no contexto escolar, mediadas por atividades lúdicas.Conseqüentemente, minha preocupação constituiu-se a partir das constantesqueixas dos professores com relação ao que chamam de “comportamentoinadequado” de seus educandos, tais como: agredir física e moralmente oscolegas, funcionários e professores, humilhar, coagir, xingar, não prestar atençãoà aula e, sobretudo, apresentar dificuldades na aprendizagem. Tomando comoreferência a etnopesquisa-ação, o estudo foi composto por um diagnóstico inicial,uma intervenção e um diagnóstico final. Ancorada na visão psicanalítica, emestudos atuais sobre emoção e ludicidade, me propus a fazer este estudo, queapontou para a necessidade de redirecionamento na função da escola dentroda sociedade, para um olhar mais crítico sobre o contexto sócio-econômico emque os educandos estão inseridos e para o fortalecimento de políticas públicasque privilegiam uma educação integral.

Palavras-chave: Educação emocional – Ludicidade – Psicanálise – Emoção

ABSTRACTLUDICITY AND EMOTIONAL EDUCATION IN SCHOOL –LIMITS AND POSSIBILITIES

The purpose of this research was to investigate the playful activities as a resourcefor educational practice, considering the emotional development of the student,as well as understanding the possibilities and limits of working with emotion inthe school context through playful activities. Consequently, my concern lays onthe constant complains of teachers about the so called pupils’ “inappropriatebehaviour”, such as: physical and morally attacking the classmates or the schoolstaff , including teachers, humiliating, coercing, offending, paying no attentionto the class, and, especially, presenting learning difficulties. Based upon anethnographical research-action, the study leads to an initial diagnostic, an

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Ludicidade e educação emocional na escola: limites e possibilidades

intervention, and, in the end, to a final diagnostic. Strongly based on apsychoanalytic view, upon current studies about emotion and playful teaching,I decided to make this study, that pointed out to the need to redirect the functionof the school in our society, to a critical look over the socio-economic contextthat the students experience and to the strengthening of the public policies thatvalue a global education

Keywords: Emotional education – Playful Teaching – Psychoanalysis –Emotion

IntroduçãoEfetuei a ligação deste estudo aos meus so-

nhos, esperanças e interesses pessoais, únicosdentro de mim; à minha relação profunda com avida, uma vez que, em nenhum momento, possome separar da minha inspiração, pois sou pessoae educadora, partes inseparáveis. Assim, justificoa escolha pelo uso da 1ª pessoa do discurso, porser essa a que melhor expressa sonhos, emoções,motivações e sentimentos. A minha vivência commeus educandos foi abstraída num processo deindividuação, no meu aprendizado de ser.

Nos cursos para formação de professores,onde atuo como docente de Psicologia, a quei-xa principal dos professores recai sobre o com-portamento dos educandos, comentam que sãoindisciplinados, agressivos, não prestam aten-ção à aula, xingam o colega e isso faz com quenão consigam dar aulas satisfatórias. Gostari-am de aprender a lidar com esses comporta-mentos que chamam de inadequado e queprejudicam a aprendizagem do educando e dosdemais estudantes em sala de aula.

A criança é suscetível aos fatores que pro-vavelmente se chocam com sua fragilidade in-terna, prejudicando seu aprendizado. Tais fatorespodem ser, por exemplo, falta de afeto, de aco-lhida e de motivação do lar, ciúmes de outroirmão, sentimentos de culpa, de solidão, de re-jeição, de abandono, separação dos pais.

As crianças com comportamentos conside-rados não condizentes com o ambiente escolarterminam sendo marginalizadas pelo professore excluídas do processo ensino-aprendizagem.São rotulados como problemáticas, imaturas,desinteressadas, agressivas, violentas...

Talvez muitas crianças apresentem compor-tamento inadequado1 na escola devido à faltade respeito ao seu ritmo pessoal e ao seu realprocesso de desenvolvimento. Isso se dá porparte de familiares e professores que pressio-nam a criança, querendo que elas correspon-dam a expectativas altamente fora do alcancede seu domínio, o que vem resultar em insegu-rança, fracasso e frustração, fatores pertinen-tes ao desenvolvimento de sentimento dedesvalor e incompetência pessoal.

Para compreender a criança nesse emara-nhado contexto e conhecer suas aspirações, faz-se necessário investigar aspectos pessoais,através de uma reflexão mais profunda, dirigi-da ou semi-dirigida, onde se dê oportunidade aela de descobrir seus próprios sentimentos, va-lores pessoais, familiares e sociais.

Nesse contexto, entendo que a educaçãoemocional mediada por atividades lúdicas é umapossibilidade de a escola intervir no mundo inter-no e nos significados interpretados pela vivênciadireta das experiências, possibilitando aos edu-candos ressignificar, rever conceitos, valores esentimentos que, porventura, estejam no âmagode seu comportamento e que possivelmente in-terfiram nas suas relações interpessoais e emsua aprendizagem escolar. Mas, quais são as

1 Considera-se “comportamento inadequado”, neste estudo,os comportamentos dos educandos que, com freqüência, sãoexpressos através do ato agressivo como, por ex.: agredirfísica e moralmente outro colega, funcionários e professo-res, coagir, humilhar, xingar, ameaçar, ficar desatento à aulae, por fim, apresentar dificuldade na aprendizagem. Entende-mos que a agressividade é necessária para a aprendizagem,como esclareceu Freud, que em toda pulsão existe um quantumde agressividade que é sadio e promotor de aprendizagem;mas, o ato agressivo não, ele é inibidor do pensamento e porisso serve à destruição e não à construção.

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Maria José Etelvina dos Santos

possibilidades e limites de educar emocionalmen-te o educando mediado por atividades lúdicas?Utilizando a pesquisa-ação, por considerar o su-jeito no contexto em que se insere, pesquisei essetema utilizando a psicanálise como aporte teóri-co, por confluir em seu centro de estudos asemoções e a ludicidade, dois fenômenos presen-tes no âmago desta pesquisa.

O estudo é importante quanto à contribui-ção na compreensão do mal-estar na escolareferente ao comportamento do educando e,conseqüentemente, do professor. Faz uma re-flexão sobre problemas preliminares de margi-nalização e evasão. Parte de uma maiorcompreensão dos sentimentos das crianças ecoopera no desenvolvimento de suas potencia-lidades.

A importância da ludicidade navida das crianças, na educação ena escola

Ao observar uma criança, percebemos quea maior parte de seu tempo é utilizado em brin-cadeiras simples ou tecnologicamente sofisti-cadas. As crianças revelam uma irresistívelatração e parecem desenvolver habilidadesatravés do brincar. Ao longo do tempo, as brin-cadeiras vão se modificando no mundo infantil.Em um primeiro momento, observamos que brin-ca com o seu próprio corpo, em seguida desco-bre os objetos e suas potencialidades paraproduzir prazer e bem-estar ao manuseá-los.

Brougére (1998), estudando a relação dolúdico com a aprendizagem, postulou que a pri-meira relação com a aprendizagem acontecequando a criança aprende a brincar. Nesse pro-cesso, a criança desenvolve certo tipo de co-municação peculiar, diferente das normas decomunicação da vida comum. É nessa fase quedesenvolve as representações simbólicas, na qualo imaginário e a fantasia adentram sua vida etudo pode ter um outro sentido. Este momentoé muito importante na vida da criança, pois osbrinquedos e objetos deixam de ser utilizadosapenas para aquilo que foram criados e pas-sam, no imaginário da criança, a ser tudo aquilo

que querem, desejam e necessitam a cada mo-mento de sua vida.

A ludicidade é uma necessidade do ser humanoem qualquer idade e não pode ser vista apenascomo diversão. O desenvolvimento do aspectolúdico facilita a aprendizagem, o desenvolvimen-to pessoal, social e cultural, colabora para umaboa saúde mental, prepara para um estado interi-or fértil, facilita os processos de socialização,comunicação, expressão e construção do conhe-cimento (SANTOS, 1997, p. 12).

Este autor considera que os jogos e as brin-cadeiras permitem compreender como a crian-ça vê e constrói o mundo. Através deles acriança aprende a dominar e conhecer o seupróprio corpo e as suas funções, a orientar-seno espaço e no tempo, a manipular e a cons-truir os papéis necessários para as futuras eta-pas da sua vida, a elaborar suas fantasias, seustemores, a sentir emoções, a saber perder eganhar; enfim, ela pode desenvolver as suaspotencialidades em um ambiente seguro, longeda ansiedade dos fatos reais, controlá-los erevê-los, se assim desejar. Desta forma, as ati-vidades lúdicas, permitem a representação dosfatos, possibilitando a liberação da imaginaçãoe a presença da espontaneidade como tambémo desenvolvimento da criatividade. Todos es-ses fatores são essenciais para o desenvolvi-mento normal e sadio do ser humano.

Chateau (1987, p. 14) nos adverte que “épelo jogo, pelo brinquedo, que crescem a almae a inteligência. Uma criança que não sabe brin-car, uma miniatura de velho, será um adulto quenão saberá pensar”.

Segundo este autor as atividades lúdicas sãoelementos que contribuem, de forma significa-tiva e fundamental, para o processo de forma-ção social, afetiva e intelectual da criança. Aobrincar, está em contato direto com o outro, vi-venciando uma relação de trocas, tanto afeti-vas como também de experiências, que lheproporciona ganhar ou perder, obedecer a re-gras ou transgredi-las, lidar com a diversidade,com a antecipação ou julgamento da situaçãodo momento e, tantas outras experiências que,aos poucos, vão amadurecendo-a para a vidaadulta.

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Ludicidade e educação emocional na escola: limites e possibilidades

Piaget (1975) nos lembra que o pensamentoinfantil é qualitativamente diferente do pensa-mento do adulto, como também, que cada cri-ança é única e deve ser tratada e compreendidade forma diferenciada, a partir de sua lógica edo contexto em que se insere. O mundo infantilexiste na proporção que é possível à criançajogar com ele, retirando das vivências lúdicaspossibilidades de prazer e de domínio sobre arealidade, que, às vezes, pode ser desestrutu-rante e paralisadora. O jogo passa a ser umaforma de interação com o mundo externo; semas atividades lúdicas a condição para que a in-teração ocorra de forma efetiva seriam insufi-cientes.

A partir de vários estudos sobre a importân-cia da ludicidade na vida da criança, como os dePiaget (1975), Vygotsky (1998), Chateau (1987),Brougére (1995), Marcelino (1995), Kishimoto(1998), Huizinga (1996), algumas escolas come-çaram a adotar esse princípio do aprender brin-cando, mas têm encontrado muita resistência porparte dos próprios professores, pais e educan-dos que questionam em uma aula lúdica: “quan-do vão começar a estudar, porque só fizerambrincar?”. A falta de conhecimento sobre as pos-sibilidades lúdicas no processo de aprendizagemdesencadeia este tipo de comportamento doseducandos, dos pais e, em muitos casos, dos pró-prios professores, por considerarem que brinca-deira não é coisa séria.

O educador é um mediador, um organizador dotempo, do espaço, das atividades, dos limites, dascertezas e até das incertezas do dia-a-dia da crian-ça em seu processo de construção de conheci-mentos. É ele quem cria e recria sua propostapolítico-pedagógica e para que ela seja concreta,crítica, dialética, este educador deve ter compe-tência para fazê-la (SANTOS, 1997, p. 61).

É de suma importância que o profissional deeducação compreenda que as atividades lúdi-cas no contexto da sala de aula podem propor-cionar riquíssimos resultados aos seus educan-dos, por exemplo, no sentido de escuta sensívelaos apelos das crianças, abrir-se à história indi-vidual de cada um, dessa forma evitando queseus sentidos fiquem comprometidos, sua ima-ginação e criatividade seja inibida e que sua

sensibilização e riqueza de expressão se esvai-am. Mas, para o educador incorporar o lúdicocomo um instrumento facilitador de aprendiza-gens em seu universo pedagógico, é necessárioque os cursos de formação de professores va-lorizem sua própria vivência lúdica. E exigirdesse profissional a ludicidade no seu fazer pe-dagógico significa exigir deles um posicionamen-to contrário ao modelo que vivenciou na suaformação.

Há muitas críticas aos cursos de formaçãode professores, por não possibilitarem uma for-mação adequada aos seus participantes e é,geralmente, no ensino infantil que este contin-gente vai lecionar, gerando insatisfação, desâ-nimo, evasão e até agressão em muitoseducandos por não saberem lidar com muitoscomportamentos manifestados em sala de aula,justamente pela falta de base, preparo e com-preensão da criança como um ser histórico so-cial e lúdico.

O sentido real, verdadeiro, funcional da educa-ção lúdica estará garantido se o educador esti-ver preparado para realizá-lo. Nada será feito seele não tiver um profundo conhecimento sobreos fundamentos essenciais da educação lúdica,condições suficientes para socializar o conheci-mento e predisposição para levar isso adiante(ALMEIDA, 1994, P. 42).

É mister, portanto, repensar a formação doeducador, proporcionando vivências lúdicas,experiências que utilizem ação, pensamento elinguagem; dessa forma, serão maiores as chan-ces de que possa trabalhar com crianças deforma prazeirosa.

Segundo Santos (1997, p. 14), a formaçãolúdica deve possibilitar ao futuro educador co-nhecer-se como pessoa, saber de suas possibi-lidades e limitações, desbloquear suas resistên-cias e ter uma visão clara do jogo e do brinquedopara a vida da criança, do jovem e do adulto.

Refletindo sobre estes aspectos, cabe per-guntar: de que forma o educador pode incluiros jogos e brincadeiras em seu fazer pedagógi-co? Onde e como deverão ser empregados?Qual o custo orçamentário da escola para in-cluir o lúdico na educação? Em que contextosócio-cultural pode acontecer?

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O fazer pedagógico de todo educador deveser planejado, a inclusão do lúdico na educa-ção também deve ser organizada com objeti-vos, meios e fins a serem alcançados. O lúdicodeve ser incluído de acordo com a leitura queo educador faz de sua turma e de seus pais,porque cada estudante possui sua maneira deser e agir no mundo, seu modo particular deenfrentar situações. Então, as peculiaridadesdos educandos, do seu contexto e de seus paisdevem ser consideradas, senão o educador se-meará em campo estéril e não conseguirá con-tribuir no processo de aprendizagem de seuseducandos. Os pais e as próprias crianças re-sistirão a qualquer tentativa de inclusão do lú-dico em sala de aula. Então, não basta terapenas boa vontade e intenção, é necessáriaa aceitação, compreensão e conscientizaçãodos pais, educandos e comunidade escolar, emgeral, de todos os benefícios de uma educa-ção centrada em atividades lúdicas. Para queisto ocorra, o professor pode promover umasemana de palestras, encontros, semináriosatravés da ludicidade para esclarecer à comu-nidade escolar de sua nova prática e tê-loscomo parceiros de todo o processo.

A aceitação, por parte da comunidade es-colar, já autoriza o educador a colocar suas ne-cessidades financeiras no PDE (Plano deDesenvolvimento Escolar), o que possibilita aaquisição dos instrumentos necessários à apli-cação da proposta, apesar de também poderutilizar material de sucata, que pode ser solici-tado à comunidade, e construir os jogos e brin-quedos junto com seus educandos, sendo ummomento rico no desenvolvimento da criativi-dade, imaginação, socialização, pertencimento,independência e decisão da turma. “Brincar édecidir se vai fazer desaparecer um objeto, de-cidir se está na hora de deitar seu neném / bo-neca. Quem está brincando, está decidindo; umjogador é um tomador de decisões e esta é, semdúvida, uma das características importantes dojogo.” (BROUGÉRE, 1998, p. 25).

Aprender uma brincadeira ou jogo é, sobre-tudo, apropriar-se de suas estratégias e regras.É sucumbir ao perder e ganhar. Utilizar jogos ebrinquedos no ensino é muito interessante, prin-

cipalmente quando são sugeridos, criados pelosprofessores e educandos, e não impostos.

O papel do educador como agente de umprocesso historicamente construído é, além deinformar, orientar as pessoas a construírem suaprópria identidade, levando-as a contribuírem deforma significativa com a sociedade, e a ludici-dade tem sido enfocada como um dos meiospara alcançar esse encontro identitário.

Com base nas idéias de Marcelino (1997), anegação do lúdico pela escola nada contribuipara o desenvolvimento da criança, para a su-peração de seus conflitos, porque é negada tam-bém a expressão de uma linguagem própria.

Cabe à maioria das escolas não tolher a vi-vência deste componente tão significativo enecessário ao desenvolvimento dos educandos,e dissociar a idéia da falta de seriedade, de ba-gunça e indisciplina que se agregam ao lúdico eatribuir-lhe o caráter de seriedade que realmen-te o evidencia.

É fundamental o resgate do lúdico no âmbi-to escolar como uma forma de conviver, revi-ver o prazer e a alegria do brincar, transfor-mando o ensinar e o aprender mais envolventee prazeroso.

A visão psicanalítica de desenvol-vimento emocional e ludicidadee suas implicações para o contex-to escolar

O jogo tem sido estudado por psicólogos, fi-lósofos e pedagogos, sendo válidos seus desco-brimentos ainda hoje, mas alguns estudosdescrevem apenas aspectos parciais do proble-ma ou mostram os fenômenos sem considerarseu significado inconsciente, que será redimen-sionado por Melanie Klein, partindo das desco-bertas de Freud sobre o inconsciente infantil esuas considerações sobre o brincar na vida dacriança. Afirma, em seus estudos: “Pelo jogo, acriança traduz de um modo simbólico suas fan-tasias, seus desejos, suas experiências vividas”(KLEIN, 1997, p.27). Essa compreensão dasignificação do jogo na criança é hoje coisaadmitida, mas, na época, ela abria um campo

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Ludicidade e educação emocional na escola: limites e possibilidades

novo na exploração do psiquismo infantil. Inici-almente, é numa perspectiva profilática e edu-cativa que a autora aborda o jogo na psicanálise.“Ao brincar, a criança está tão dominada peloinconsciente que realmente é desnecessáriorecomendar-lhe que exclua deliberadamente asinterferências conscientes. A técnica lúdica pro-porciona abundância de material e dá acessoaos estratos profundos da mente.” (KLEIN,1997, p. 86).

A técnica criada por Melanie Klein baseia-se na utilização do jogo e continua a investiga-ção de Freud. Pensa que a criança, ao brincar,vence realidades dolorosas e domina medos ins-tintivos, projetando-os ao exterior nos brinque-dos. Esse mecanismo é possível, porque muitocedo ele tem a capacidade de simbolizar. Essedeslocamento das situações internas ao mundoexterno aumenta a importância dos objetos re-ais que, se em um princípio, eram fonte de ódio,produto da projeção dos impulsos destrutivos,com o jogo, e também por ele, se transformamem um refúgio contra a ansiedade, sentimentosurgido pelo mesmo ódio. “A criança expressasuas fantasias, seus desejos e suas experiênci-as reais de um modo simbólico, através de brin-cadeiras e jogos”. (KLEIN, 1997, p.27)

O brinquedo permite à criança vencer omedo aos objetos reais, assim como vencer omedo aos perigos internos; faz possível umaprova do mundo real, sendo, por isso, uma pon-te entre a fantasia e a realidade principalmentequando a realidade é intolerável, a brincadeirafaz-se mais necessária ainda, uma vez que, fu-gindo de fato da experiência desagradável, acriança poderá reelaborar a realidade de formamenos sofrida e com menos ameaça do mundoadulto que tanto a aflige.

Outros analistas assumem a posição kleini-ana e seguem seus princípios no tratamento comcrianças através da ludicidade, como DonaldW. Winnicott. Seu prestígio nos países de influ-ência psicanalítica é considerável pela riquezae originalidade de sua compreensão do desen-volvimento da criança em interação com o seuambiente, principalmente o papel da mãe naconstituição da personalidade. Um mérito cen-tral movia a sua maneira de ser consigo mesmo

e com os outros: o brinquedo, não no sentido dejogo, jogo de sociedade, organizado por regras,mas sim no sentido de “atividade”, isto é todoato que é uma “experiência de vida”, uma ex-pressão livre de si mesmo e declara: “Consti-tuiria visão estreita supor que a psicanálise é oúnico meio de fazer uso terapêutico do brincarda criança”. (WINNICOTT, 1975, p. 74).

Em seus estudos Winnicott mostra que umdesenvolvimento afetivo bem sucedido revela-se por meio de possibilidades de crianças quese realizam na arte de viver e na vida cultural,por intermédio do jogo e do espaço potencial.

Outro psicanalista que estudou o imaginárioinfantil foi Bruno Bettelheim que evidencia que“Brincar é muito importante, porque enquantoestimula o desenvolvimento intelectual e afeti-vo da criança também ensina, ensina sem queela perceba, os hábitos necessários a esse cres-cimento (...) algumas pressões inconscientes nascrianças podem ser elaboradas através das brin-cadeiras”. (BETTELHEIM, 1988, p. 168).

As brincadeiras infantis possibilitam à cri-ança entender como as coisas funcionam: o quepode ou não ser feito com os objetos, e, os rudi-mentos do por quê sim e do por quê não, comotambém, brincando com outras crianças, apren-dem que existem regras de sorte e de probabi-lidades e regras de condutas, que devem sercumpridas. A brincadeira tem duas faces: umadirigida para o passado, ou seja, permite que seresolvam simbolicamente problemas não resol-vidos do passado e outra, para o futuro, a fimde permitir que se enfrentem direta ou simboli-camente questões do presente. É também aferramenta mais importante de que se pode dis-por para se preparar para as tarefas do futuro,afirma Bettelheim (1988, p. 175).

Esse autor afirma ainda que a tarefa maisimportante e também mais difícil na educaçãode uma criança é ajudá-la a encontrar signifi-cado na vida. Confirmou na prática clínica quese as crianças fossem criadas de um modo quea vida fosse significativa para elas, não neces-sitariam ajuda especial. Acredita que:

Para dominar os problemas psicológicos do cres-cimento – superar decepções narcisistas, dile-mas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de

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Maria José Etelvina dos Santos

abandonar dependências infantis, obter um sen-timento de individualidade e de auto-valoriza-ção, e um sentido de obrigação moral – a criançanecessita entender o que está se passando den-tro de seu eu inconsciente. Ela pode atingir essacompreensão, e com isto a habilidade de lidarcom as coisas, não através da compreensão ra-cional, da verbalização, mas familiarizando-se comele através de brincadeiras, contos, devaneios –ruminando, reorganizando e fantasiando sobreelementos adequados em respostas a pressõesinconscientes. (BETTELHEIM, 1980, p. 16).

Assim, crianças que não têm oportunidadede brincar sofrem interrupção ou retrocessosintelectuais e mentais, comprometendo todo oseu desenvolvimento.

Na América Latina, Arminda Aberastury foipioneira da Psicanálise Infantil e traz em seuslivros a noção de que a atividade lúdica é amelhor expressão plástica da vida de fantasia edo desenvolvimento psicológico infantil.

Ao brincar, a criança desloca para o exterior seusmedos, angústias e problemas internos, dominan-do-os por meio da ação (...) Por meio da atividadelúdica, a criança expressa seus conflitos e, destemodo, podemos reconstruir seu passado, assimcomo no adulto fazemo-lo através das palavras.Esta é uma prova convincente de que o brinquedoé uma das formas de expressar os conflitos passa-dos e presentes. (ABERASTURY 1992, p. 15 a 17).

As situações lúdicas também possibilitam àscrianças o encontro com seus pares, fazendocom que interajam socialmente, quer seja noâmbito escolar, ou não. “O jogo não suprime,mas canaliza tendências. Por isso a criança quebrinca reprime menos que a que tem dificulda-des na simbolização e dramatização dos confli-tos através desta atividade.” (ABERASTURY,1982, p. 48-49).

Como podemos observar, os psicanalistassão unânimes em considerar os jogos e brinca-deiras infantis essenciais para o equilíbrio men-tal e emocional dos indivíduos; consideram quea escassez ou a ausência de brincadeiras navida dos infantes pode provocar retardo ou difi-culdades futuras de adaptação à realidade.

Outros estudiosos e terapeutas infantis acre-ditam que é na escola que as manifestaçõescomportamentais das crianças tornam-se mais

significativas e reveladoras de suas condiçõesno lar por ser o espaço escolar menos ameaça-dor e proporcionar um contato direto com ou-tros colegas que estão passando pelas mesmassituações conflituosas.

Violet Oaklander, terapeuta infantil, escla-rece em seu livro que:

A criança que se envolve em comportamentoshostis, intrusivos, destrutivos, agressivos e vi-olentos é uma criança que possui sentimentosprofundos de ira, sentimentos de rejeição, inse-gurança e ansiedade, sentimentos de mágoa, emuitas vezes um senso de identidade difuso –tem também uma opinião muito pobre a respeitodo seu eu que lhe é conhecido. É incapaz deexpressar o que está sentindo, ou não está dis-posta a isso, ou ainda tem medo de manifestarseus sentimentos; pois se o fizer poderá causarreação agressiva nos adultos que cuidam dela.(OAKLANDER, 1980, p.233)

Tal criança sente a necessidade de fazer oque faz como um meio de sobreviver a umambiente hostil, e é na escola que se sentirá àvontade para expressar-se com segurança, semmedo de ser “punida” com tanta severidadecomo fazem aqueles que cuidam dela. Então aescola passa a ser o ambiente propício para tra-balhar a questão emocional mediado por ativi-dades lúdicas dos aprendizes por ser umambiente “menos ameaçador” do que o lar.

Atualmente, estudos recentes sobre o rea-prendizado emocional, especialmente, os deDaniel Goleman, Psicólogo, PHD, pela Univer-sidade de Harvard, corroboram com a visão deque os jogos ajudam na cura emocional.

As brincadeiras, feitas repetidas vezes, permi-tem que as crianças revivam o drama em segu-rança, como brincadeira. Isso oferece duas rotasde cura: de um lado, a memória repete o contextode baixa ansiedade, dessessibilizando-a e permi-tindo que um conjunto de respostas não trau-matizadas se associe a ela. Outra rota de cura éque, na mente delas, as crianças podem magica-mente dar à tragédia outro resultado, melhor.(GOLEMAN, 1995, p. 222-223).

Assim, pela brincadeira, a situação traumá-tica pode ser encarada sem ameaça pela crian-ça e, neste processo ressignificar os efeitos dasituação incômoda vivida em seu passado.

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Ludicidade e educação emocional na escola: limites e possibilidades

Goleman (1995) acredita que as criançastraumatizadas se tornam menos entorpecidasdo que os adultos porque usam a fantasia, asbrincadeiras, os jogos e atividades lúdicas paralembrar e repensar suas provações e não re-presando em poderosas lembranças que depoispodem irromper em comportamentos conside-rados “inadequados”.

É importante esclarecer que, apesar de fo-carmos nosso estudo na perspectiva emocionaldos indivíduos, entendemos que razão e emo-ção são inseparáveis e compartilhamos dos es-tudos de Antonio Damásio. “Em primeiro lugar,é evidente que a emoção se desenrola sob ocontrole tanto da estrutura subcortical como daneocortical. Em segundo, e talvez mais impor-tante, os sentimentos são tão cognitivos comoqualquer outra imagem perceptual e tão depen-dente do córtex cerebral como qualquer outraimagem.” (1996, p. 190).

O autor acredita que o corpo é o palco dasemoções, onde se desenrola a trama emocionale racional e, que, portanto, não podemos sepa-rar corpo, emoção e razão da vida mental deum indivíduo. Enfatiza também que a emoçãotem uma influência imensa em todos os aspec-tos e níveis da vida de um ser humano.

Ludicidade – suporte para a edu-cação emocional na escola

O GEPEL2 , grupo de pesquisa sobre ludici-dade e educação, dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação FACED/UFBA, doqual participo, vem aprofundando o conceito deludicidade ao longo de suas reuniões. Muitosteóricos têm pesquisado a ludicidade a partir deum olhar sócio-histórico, como John Huizinga(1996), que enfatiza que o brincar é mais antigoque a cultura; Walter Benjamim (1984), comsuas pesquisas histórico-sociais sobre o brin-quedo e os brincares; Giles Brougére (1995),com a sociologia do brincar; Tizuko MorchidaKishimoto (1998), que contribui com seus estu-dos sobre esta temática no Brasil e tantos ou-tros que se debruçaram sobre a questão daludicidade. Outros teóricos buscaram entender

a ludicidade como recurso de prática educati-va, como Henri Wallon (1968), Vygotsky (1998),Constance Kamii (1985), Piaget (1975) etc.Outro aspecto da ludicidade bastante estudadoe que vem sendo aprofundado e retomado naAcademia é o aspecto psicológico, abordadoanteriormente como base para esta pesquisa.Esses estudos corroboram com a crença de quea própria atividade lúdica é curativa e restaura-dora, conforme comentamos anteriormente.Porém, a questão que se faz presente é comopodemos saber se uma pessoa foi tocada ver-dadeiramente pela atividade lúdica propostacomo vivência de autodesenvolvimento?

Cipriano Carlos Luckesi (In: PORTO, 2002,p. 26) elucida esta questão, refletindo em seustextos que compreende ludicidade como umfenômeno interno do sujeito, que possui mani-festações no exterior. A atividade lúdica nãoadmite divisão: temos que estar inteiros, plenose, caso estejamos com o corpo presente na ati-vidade, mas a mente em outro lugar, então, nossaatividade não será plena e, por isso mesmo, nãoserá lúdica. Então, conclui que o que caracteri-za a ludicidade é a experiência de plenitude in-terna que ela propicia ao sujeito.

Portanto, Luckesi acredita em uma educa-ção lúdica que libere os bloqueios impeditivosdos educandos para a aprendizagem e concor-do com sua visão, quando afirma:

A atividade lúdica propicia um estado de cons-ciência livre dos controles do ego, por isso mes-mo criativo. O nosso ego, como foi construído,em nossa história pessoal de vida, na base deameaças e restrições, é muito constritivo, cen-trado em múltiplas defesas. Ele reage à liberdadeque traz a atividade lúdica em si mesma. Por isso,uma educação centrada em atividades lúdicastem a possibilidade, de um lado, de construir umEu (não um ego) saudável em cada um de nós,ou por outro lado, vagarosamente, auxiliar a trans-formação do nosso ego constritivo num Eu sau-dável. Educar crianças ludicamente é estarauxiliando-as a viver bem o presente e preparar-se para o futuro. Educar ludicamente adolescen-

2 GEPEL – Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação eLudicidade do Programa de Pós-Graduação em Educação daUniversidade Federal da Bahia, sob Coordenação do Prof.Dr. Cipriano Carlos Luckesi.

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tes e adultos significa estar criando condiçõesde restauração do passado, vivendo bem o pre-sente e construindo o futuro (LUCKESI, 2000, p.21-22).

Mais adiante o autor conclui: “Deste modouma educação lúdica, a nosso ver, é uma orien-tação adequada para uma prática educativa queesteja atenta à formação de um ser humano oude um cidadão saudável para si mesmo e paraa sua convivência com os outros, seja na vidaprivada ou pública” (2000, p. 22).

Acredito em uma educação lúdica pautadanos objetivos da educação para o século XXI,segundo a Unesco, ser, conviver, fazer e co-nhecer, antes de qualquer coisa deve “começarpor se conhecer a si próprio, numa espécie deviagem interior”, pois “o século XXI exigirá detodos nós grande capacidade de autonomia ede discernimento, juntamente com o reforço daresponsabilidade pessoal, na realização de umdestino coletivo” (DELORS, 2001 p. 20).

Então, nada melhor que atividades lúdicaspara favorecer a descoberta de si mesmo, desuas limitações ocorridas através de bloqueiosimpeditivos ao crescimento, o que Freud cha-mou de forças regressivas, que, depois de des-bloqueadas, afloram como possibilidades decrescimento e liberdade, o que Freud chamoude forças progressivas.

Winnicott (1982) fez um estudo muito inte-ressante sobre a ludicidade, o mundo interno in-fantil e como as brincadeiras podem restaurar oequilíbrio emocional das crianças. Admite, emseus estudos, que a criança adquire experiênciabrincando. Enfatiza que, assim como o adultoestrutura sua personalidade, através das experi-ências vividas, a criança evolui por intermédiode brincadeiras. Uma situação lúdica proporcio-na expressar seus conflitos, sua agressão, suasangústias, seu mundo interno e tolerado pelosadultos que presenciem tais atividades.

Sobre a agressão na brincadeira esclarece:

A agressão pode ser agradável, mas acarreta ine-vitavelmente o dano real ou imaginário de alguém,de modo que a criança não pode evitar ter de fazerfrente a essa complicação. Até certa medida issoé conseguido na origem, ao aceitar a criança adisciplina de exprimir o sentimento agressivo sob

a forma de brincadeira e não apenas quando estázangada. Outro processo é usar a agressividadenuma forma de atividade que tenha uma finalida-de básica objetiva. Mas essas coisas só se con-seguem gradativamente. Compete-nos não ignorara contribuição social feita pela criança ao exprimirseus sentimentos agressivos através das brinca-deiras, em lugar de o fazer em momentos de raiva.Poderemos não gostar de ser odiados ou feridos,mas não devemos ignorar o que está subentendi-do na autodisciplina, relativamente aos impulsoscoléricos (1982, p. 162).

Mais adiante, o autor conclui: “Conquantoseja fácil perceber que as crianças brincam porprazer, é muito mais difícil para as pessoas ve-rem que as crianças brincam para dominar an-gústias, controlar idéias ou impulsos queconduzem à angústia se não forem dominados”(1982, p. 162).

Winnicott acredita que a ludicidade propiciao desenvolvimento de esquemas emocionaissadios nas crianças se forem dadas condiçõesadequadas para se expressarem, criarem e se-rem elas mesmas; pois, as brincadeiras servemde elo entre, por um lado, a relação do indivíduocom a realidade interior, e, por outro lado, a re-lação do indivíduo com a realidade externa oucompartilhada. Denomina de tendência saudá-vel da brincadeira quando está relacionada aosdois aspectos da vida, ou seja, o funcionamentofísico e a vivência das idéias. No entanto, se arelação do mundo interior não estiver conjuga-da com o mundo externo, a criança não podebrincar, pelo menos da forma como entende-mos a brincadeira, que se configura em mútuasinterações sociais com outros seres humanos.Neste caso, resta à criança brincar, porque abrincadeira é uma das coisas que propendempara a integração da personalidade, ou seja, sóassim, ela pode restaurar seu equilíbrio emoci-onal, que nada mais é do que conjugar seu mun-do interno com o mundo externo.

Nesse estudo, Winnicott revela também que“as brincadeiras, tal como os sonhos, servem àfunção de auto-revelação e de comunicaçãocom o nível profundo” (1982, p. 165).

Ao mesmo tempo em que manifesta o mun-do interno, as brincadeiras restauram ou res-significam o revelado, porque uma vez que o

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material veio à tona, mostrou-se, era devido nãoestar resolvido e, como um círculo vicioso, re-torna à superfície toda vez que tenha oportuni-dade, com o propósito de se atualizar e serresolvido para retornar ao mundo interno resol-vido, tranqüilo, amadurecido, passando a ser umfortalecedor para outras condutas e pensamen-tos. Um conflito resolvido torna-se um aliadodas forças progressivas. Outros surgirão ou res-surgirão, mas dada à oportunidade para primei-ro expressar-se, num contexto propício, de umaforma lúdica, onde o ego não se sinta ameaça-do, então ocorre a restauração e o equilíbrio ouhomeostase. Sendo assim, tudo volta à norma-lidade, pelo menos temporariamente, até aflo-rarem outras questões e tudo volta a acontecernovamente; porém, a cada ciclo, o ser humanosai mais fortalecido, mais gente, mais humano.

Como enfatiza Lúcia Helena Pena (2005,p.92) em sua tese de doutorado:

As experiências lúdicas não existem por si, exis-tem como vida vivente, enquanto experiência doser senciente. Na atividade lúdica, o que importanão é somente o produto da atividade, o quedela resulta, mas a própria ação, o momento vivi-do. Possibilita a quem a vivencia, momentos deencontro consigo e com o outro, momentos defantasia e de realidade, de ressignificação e per-cepção, momentos de autoconhecimento e co-nhecimento do outro, de cuidar de si e olhar parao outro, momentos de vida, de expressividade.

Não há garantias de que as atividades lúdi-cas despertem ou elaborem conflitos, angústiasou ansiedades vividas pelo sujeito. Na realida-de, elas encerram possibilidades, potencialida-des que poderão ser ativadas ou não por quemas vivencia. O sujeito é que lhe dará significa-dos, criará elos de sentido e se permitirá, estan-do aberto às mudanças que se operarem, oucaso contrário, nada ocorrerá no nível profun-do, mas, superficialmente, todos somos afeta-dos quando brincamos.

A experiência da pesquisaNo intuito de alcançar a resposta à questão

levantada, tomei como referência a etnopesqui-sa crítica, por considerar, como Roberto Sidnei

Macedo (2000, p. 262), que a etnopesquisa-açãonos conduz a um campo onde a Academia con-cretamente sai dos seus muros e age em ter-mos de uma intervenção com a comunidade,assumindo como principal objetivo da pesquisaa solidariedade e a ética onde o pesquisadordeverá estar implicado à situação a ser conhe-cida e transformada.

O autor considera a implicação e a subjetivi-dade elementos constitutivos do processo de cons-trução de conhecimento, rompendo assim com aconcepção positivista de pesquisa. O ideal deneutralidade científica há muito tempo vem sen-do questionado. A pesquisa de campo ocorreuem uma escola da Rede Pública de Ensino Fun-damental. Trabalhei com uma turma de acelera-ção, composta por 25 educandos, na faixa etáriade 9 a 15 anos, inserida no Projeto de Regulari-zação do Fluxo Escolar3 da 1ª à 4ª série da Se-cretaria de Educação do Estado da Bahia,pertencente ao programa: Educar para vencer.

Esta turma foi escolhida pela direção da es-cola porque, sob a alegação de era a que apre-sentava o maior índice de “comportamentoinadequado” no cotidiano escolar, confirmadopela professora e pela equipe de coordenaçãodo Programa do Fluxo Escolar onde esta turmaestava inserida.

A pesquisa constou de três grandes momen-tos característicos da pesquisa-ação: o diagnós-tico inicial para verificar o estado emocionalatual dos educandos, a intervenção contandocom 40 atividades lúdicas que foram aplicadasdurante um semestre e o diagnóstico final, sen-do reaplicados os mesmos instrumentos de in-vestigação do diagnóstico inicial.

O diagnóstico inicial constou da observaçãoda rotina escolar da turma escolhida, a entre-vista com a direção da escola, coordenaçãogeral e de área do “Projeto Educar para Ven-cer” e da professora da turma; posteriormenterealizei entrevistas com os pais e testagem comos educandos através das Fábulas de Duss4 e,

3 Projeto do governo do Estado da Bahia que objetiva corri-gir, num prazo máximo de cinco anos, os elevados índicesde distorção idade-série observados nas escolas fundamen-tais, onde mais de 70% dos educandos encontram-se nestasituação.

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complementando este teste, com as Frases paraCompletar5 , de Madeleine Thomaz. Estes tes-tes foram aplicados com o intuito de verificar oestado emocional inicial da turma.

As Fábulas e os Contos de Madeleine Tho-maz denunciaram o estado emocional em quese encontravam os educandos. Sentimentos deculpa eram o que mais emergiam nas respostasàs Fábulas, talvez por sentirem-se culpados pelasituação familiar de carências, desentendimen-tos e desencontros vivenciados pelo grupo, oque era expresso através de respostas autopu-nitivas.

Sentimentos de rejeição e abandono tambémforam os que mais surgiram nas expressões dosestudantes; aliados aos sentimentos, estavam osconflitos fraternais, principalmente com os irmãos.O ciúme, que está na base dos conflitos familia-res, foi evidente nas respostas às fábulas.

A relação com os pais é muitas vezes per-cebida como persecutória, o que revela umarelação de amor e ódio, o que seria normal, senão fosse o conteúdo do ódio maior do que oamor. Na realidade a forma punitiva de educarcaracteriza a relação dos pais com os filhoscomo forma de manter a autoridade e o medodos pais de solapar a autoridade, manifestarcarinho ou afeto pelos filhos.

A transição pelo complexo de Édipo e com-plexo Anal ajuda a manter a visão de caos reale de sentimentos confusos com relação aos paise irmãos.

Há um misto de obediência passiva6 e re-beldia em relação aos pais, o que me leva asupor que aquelas crianças que sucumbiram aspunições em nome da boa educação se resig-naram e, sob pena da rejeição, obedecem ce-gamente e se tornaram passivos frente àsagressões sofridas pelo meio social no qual es-tão inseridas. As crianças que resistem às pu-nições e não têm medo da rejeição ou já sesentem tão rejeitados que não se incomodammais com as rejeições sofridas, respondem comagressão aos estímulos do meio e lutam paraserem percebidos e aceitos.

As Fábulas de Duss e os Contos são reve-ladores, desvelam os conflitos e complexos exis-tentes no mundo interno das crianças. Trazem

à tona sentimentos advindos de experiênciasreais e traduzidos em sensações, emoções quese interiorizam povoando o mundo interno dascrianças e servindo de estímulo para que ex-pressem apatia ou rebeldia, resignação ouagressividade, amor ou ódio, subordinação oucriatividade.

A intervenção foi realizada após o términodo diagnóstico inicial. Foi composto de 40 en-contros, em dias alternados, com duração deuma hora mais ou menos e acontecendo sem-pre na primeira aula. Os encontros tinham comobase atividades lúdicas relativas à expressão dossentimentos dos estudantes e constou de qua-tro temáticas básicas, escolhidas a partir dasdificuldades emocionais apresentadas no diag-nóstico inicial, a saber: identidade, integração,comunicação e grupo. As atividades foramselecionadas em diversos livros que continhamjogos e exercícios vivenciais para o desenvolvi-mento emocional especificamente relativa àstemáticas selecionadas, com duração de tempovariado e nível de complexidade mínimo.

Após a intervenção, realizei o diagnósticofinal, reaplicando os mesmos instrumentos dodiagnóstico inicial e as respostas e entrevistasforam reveladores das mudanças operadas notranscorrer da intervenção pelos educandos.

A mãe continuou sendo a figura de valênciana vida dos jovens e não poderia ser diferente,por constituir pessoa pela qual os educandossentem maior vinculação e por ser dado a ela olugar de cuidadora, provedora e responsávelpelos atos dos filhos.

Houve um maior contato com as mágoas,os “sentimentos obscuros”, ou seja, a desco-berta dos motivos que levavam os jovens a sen-tirem tristeza, solidão, rejeição, raiva, mudançade ânimo, etc, fazendo com que, conhecendocom clareza dos motivos reais que os faziam

4 Fábulas de Duss – Teste projetivo psicanalítico que inves-tiga os processos inconscientes de um determinado com-portamento.5 Frases para Completar – Investigam a natureza dos confli-tos atuais e conscientes de um determinado comportamento.6 Segundo Maud Mannonni (1977), para conseguirmos seramado e aceitos pelos nossos pais podemos nos tornar tudoaquilo que eles desejam que sejamos, até loucos.

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sentirem-se de determinada maneira, pudessemexpressar e conversar com as pessoas que es-tavam causando os sentimentos e terem a pos-sibilidade de expressando e falando7 o queestavam sentindo, elaborarem de alguma for-ma os incômodos advindos destas sensações.

A relação com os pais passou de persecu-tória para uma relação de confiança básica. As-sumiram os pais reais e abandonaram os paisidealizados. O desejo de morte dos pais cedeulugar a desejos mais promissores de viagens eobjetos reais.

A rivalidade com os irmãos parece ter sidoapaziguada, quando observamos respostas me-nos agressivas e mais solidárias e fraternais nafábula do carneirinho, que investiga este aspectona dinâmica familiar.

O sentimento de culpa tão expressado nodiagnóstico inicial, refletido na autopunição, ce-deu lugar a heteroagressão no diagnóstico finale a não se culparem tanto pelos humores pa-rentais. Perceberam que existem outros moti-vos que deixam os pais tristes e zangados.

A tomada de consciência das mudançascorporais, dos medos assumidos como reais enão imaginários parece ter forçado o cresci-mento, o amadurecimento comportamental. Ofato de saber os “por quês”, parece ter dadoaos sujeitos pesquisados um poder, um controlesobre os acontecimentos que promoveu ummaior bem-estar e um equilíbrio emocional.

Enfim, os achados da segunda testagem dasFábulas e dos Contos denotam mudanças nasrespostas e, conseqüentemente, no comporta-mento dos sujeitos pesquisados. O percentualde mudanças ocorridas em cada sujeito nãopode ser medido. Sabemos que todos foramafetados de uma forma ou de outra. Não sãomais os mesmos. Algo aconteceu que é impos-sível mensurar, mas é possível verificar atravésdas manifestações de comportamento, visívelno cotidiano escolar e social.

Considerações finaisDesejei falar nesta pesquisa de algo univer-

sal sobre o brincar e o amar. Queria mostrar

como uma atitude amorosa e uma escuta sen-sível8 aos sinais9 da sala de aula, em relaçãoaos estudantes pode lhes propiciar bons come-ços. Atitude amorosa que abarca, dialeticamen-te, liberdade e limites, disciplina, rotina eorganização.

O respeito à criança como ser humano quedesde a mais tenra idade sente, pensa e se ex-pressa a seu modo, brincando, e seu direito aesse brincar são as mensagens mais importan-tes. Simples, básicas, primordiais.

Penso que diante da trajetória percorridacom a instituição escolar e seus atores sociais,diria que os limites são muitos, começando porobservar que a escola continua a fragmentar oser humano e a privilegiar apenas a razão, ointelecto, promovendo apenas a cultura do su-jeito e não o ser total. Separa a cabeça das mãos,a razão da emoção, não abarca a totalidade, naformação do ser como tal para a vida. Obser-vei nesta pesquisa que a escola continua a re-produzir a mesma rígida organização no agru-pamento, na seleção, na disposição do mobiliário,na seriação, na autoridade do professor, natransmissão dos conteúdos, na cosmovisão doséculo passado.

Segundo Maria Cândida Moraes (1997,p.14): a escola não cumpre seu papel; está com-

7 Françoise Dolto afirma em conferência realizada emGrenoble (1987) e intitulada “Tudo é Linguagem” que, en-quanto as necessidades devem ser satisfeitas, os desejos de-vem ser conhecidos e expressos em palavras. O conheci-mento de vivências passadas facilitará a integração dasmemórias vinculadas aos sentimentos e impulsos que man-tidos inconscientes podem ser vividos desordenadamente,através de diferentes atos, freqüentemente incompreensí-veis para o próprio sujeito, que atônito pergunta-se: porque fiz isto? A negação à palavra e, portanto, ao conheci-mento acerca do significado das ações que envolvem osindivíduos conduzem, muitas vezes, a manifestações sinto-máticas de toda ordem, o que nos permite afirmar que odesconhecimento de si pode conduzir à “comportamentosinadequados”.8 Oferecer uma escuta sensível, significa abrir espaço para o“não dito” e para o “mal dito”, isto é, dar ao educando aoportunidade de falar sobre coisas que são omitidas oudistorcidas no contexto da escola. O professor, por meio desua escuta, possibilita ao sujeito articular seu desejo atravésda fala e da brincadeira, via atividades lúdicas na escola, epor conseguinte simbolizar aspectos que a ciência com seupragmatismo, jamais irá alcançar.9 Os “sinais” sempre revelam alguma coisa que está oculta ecifrada. Tanto o investigador quanto o educador necessitamestar atentos para eles, tendo em vista descobrir o seu signi-ficado.

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pletamente dissociada do mundo e da vida; ademanda educacional não sai qualificada dosbancos escolares. E denuncia: a presença deuma política educacional fragmentada, desarti-culada, descontínua e compartimentada cola-bora para o prevalecimento das atuais taxas deanalfabetismo, evasão, repetência, baixa quali-dade do ensino e tantas outras mazelas da edu-cação brasileira. Considera que o aspecto maisgrave de tudo isso está no fato de que a maioriados projetos desconsidera o aprendiz como prin-cipal centro de referência de toda ação educa-cional. Desconhece as reais condições sociaise de pensamento do educando, a natureza deseus processos cognitivos e emocionais, seuprocesso de funcionamento, aspectos fundamen-tais para que a aprendizagem ocorra.

Os educandos eram rotulados de agressivo,brigão, problemático, deficiente cognitivo, pos-suidor de dificuldade de aprendizagem, etc. Ospais eram considerados os culpados pelos com-portamentos considerados inadequados pelosprofessores e, diziam que: “nada podiam fa-zer, porque o que podiam, já realizavam nasala de aula, não eram milagrosos e que afamília deixava a cargo da escola a educa-ção de seus filhos, quando na realidade erafunção deles educarem seus filhos”.

Dividido no conhecimento, dissociado emsuas emoções e em seus afetos, com a mentetecnicista e o coração vazio, sem um trabalhobem remunerado e satisfatório, compartimen-talizado no viver e profundamente infeliz, o pro-fessor também está em crise e precisando deajuda.

Então, quais as possibilidades de uma edu-cação emocional na escola mediado pela ludi-cidade? Como falar em valores humanos quepassam pela emoção, afetividade, sensibilida-de, sentimentos, se na escola, a cosmovisãocontinua sendo Newtoniano-cartesiano e ondeo estudante é visto apenas como um ser frag-mentado, reduzido, racional, um intelecto sepa-rado de si mesmo, vestido de uniforme escolar,

que pensa aquilo que os outros querem que elepense? Onde sua vida, seu sorriso, suas lágri-mas e dores não encontram ressonância?

Penso que o professor precisa se apropriarde um saber que lhe foi negado, para que com-preenda que tudo está interligado, que o com-portamento de seu educando não é apenas umcomportamento, é a manifestação de váriosfatores que correspondem à condição sócio-econômica e psico-afetiva em que seus paisestão inseridos. Precisa compreender o contextoda escola, dos pais e de sua própria escolhaprofissional, precisa compreender seus motivose suas emoções também, precisa se encontrar,se autoconhecer, se descobrir como ser huma-no e como mediador do outro. Para se chegar aestas compreensões, são necessárias políticaspúblicas que proporcionem constante capacita-ção ao professor e valorização profissional, as-sistência a sua ação pedagógica através de umprojeto pedagógico que integre os vários sabe-res e inclua a ludicidade como metodologia deensino, sabendo que, para tanto, é necessárioauxiliar o professor no seu fazer pedagógico,porque não se pode cobrar o que não foi ofere-cido aos professores.

Então, uma educação integral, lúdica, que con-temple o ser humano total para um mundo global,deve ser como falou Jacques Delors (2001, p.49)em relatório para Unesco: “A educação tem, pois,uma especial responsabilidade na edificação deum mundo mais solidário, e a Comissão pensa queas políticas de educação devem deixar transpare-cer, de modo bem claro, essa responsabilidade. Éde algum modo, um novo humanismo que a edu-cação deve ajudar a nascer”.

Isso requer novos métodos de ensino, novoscurrículos, uma nova cosmovisão para a erarelacional, novos valores, e novas práticas edu-cacionais, que contemplem as emoções, a ra-zão, o corpo, a subjetividade dos educandos.Com certeza, uma prática absolutamente dife-rente da que estamos acostumados a encontrarem nossas escolas.

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Recebido em 09.02.06Aprovado em 18.04.06

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SÉCULO XXI: O JOGO NECESSÁRIOPARA O APRENDIZADO E PARA O MUNDO DO TRABALHO

Nilce da Silva*

* Doutora em Didática e Metodologia do Ensino na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, comdoutorado sanduíche na Université Paris-Nord e pós-doutorado na Université Paris-Nord. Professora da Faculdade deEducação da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Faculdade de Educação da Universidade deSão Paulo. Avenida da Universidade, 308. Bloco A. Sala 111. Butantã. São Paulo. SP. CEP: 05508-900. E-mail:[email protected]

RESUMOEste artigo tem como principal objetivo apresentar algumas das característicaspara uma Pedagogia do Século XXI, levando em consideração os trabalhosfeitos pelo grupo de pesquisa, ensino e extensão “Acolhendo Alunos em Situaçãode Exclusão Social e Escolar: ao papel da instituição escolar” – http://www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br/, desde 2002. Ancora-se nos seguintesconceitos de D. Winnicott: “espaço de criação” ou “espaço transicional”,“objetos transicionais” e “fenômenos transicionais”. Em seguida, baseadosnestes conceitos, discutiremos a palavra “criatividade”. O artigo descrevetambém, de acordo com Domenico De Masi, o “mundo do trabalho”implementado pela “Revolução Industrial”, que será o objeto destas reflexões,cujas características sobrevivem nos nossos tempos e, decorrente deste diálogocom a Pedagogia, apresentamos um possível paradigma de estudo, trabalho e“tempo livre” que se instala como resultado das novas e atuais tecnologias deinformação. Finalmente, consideramos a “criatividade” como eixo norteadorda Pedagogia deste novo milênio.

Palavras-chave: Criatividade – “Tempo livre” – Pedagogia – Jogo

ABSTRACTXXI CENTURY: THE ESSENTIAL GAME FOR LEARNING ANDFOR THE WORLD OF WORK

This paper main objective is to present some of the characteristics for a XXICentury Science of Education taking in consideration the academical works thathave been made by the group of research, teaching and community works called“Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar: a importância dainstituição Escolar” – http://www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br/, since 2002.This project is based in some of Winnicott’s concepts like: “space of creation”or “transactional space” or “transactional objects” and “transactionalphenomena”. Latter, based in theses concepts, we’ll discuss the word“creativity”. This article describes, in accordance with Domenico De Masi,

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the “world of work” implemented by the “Industrial Revolution”, that will bethe object of these reflections, whose characteristics survive in our days and,as result of this dialogue with the educational sciences, we present one possibleparadigm of study, work and “free time” which take place as result of the newand actual technologies of information. Finally, we consider “creativity” as aguide for Educational Sciences in this new millennium.

Keywords: Creativity – “Free time” – Educational Sciences – Game

IntroduçãoNão é do trabalho que nasce a civilização:

ela nasce é do tempo livre e do jogo. (Alexandre Koyré)

Este artigo1 tem como principal objetivoapontar algumas das características necessári-as para a constituição de uma Pedagogia paraSéculo XXI, cujo fio condutor é, do nosso pontovista, a criatividade.

Freud (final do século XIX), ao inaugurar aPsicanálise, foi o primeiro pensador a chamar anossa atenção a respeito da importância da cri-ação do poeta, do escritor, dentre outros artis-tas que sabem, por meio da técnica, expor asfantasias, os anseios, os desejos, os devaneioscomuns a uma variedade de homens e mulhe-res – que, por sua vez, não sabem, não podemou não querem expressá-los – sem nos causarrepulsa enquanto leitores ou ouvintes, pelo con-trário, causando-nos admiração.

O escritor, por meio da sua criatividade, su-aviza o caráter dos nossos pensamentos e de-vaneios egoístas por meio de alterações,disfarces, figuras de linguagem, estética e nossubordina ao texto que nos oferece, na formade belo, as suas e as nossas fantasias e dese-jos secretos. Por meio da criação da obra dearte, neste caso, literária, temos a possibilida-de de liberar nosso interior – constituído pelasnossas mais profundas fontes psíquicas – pormeio das palavras do poeta, do romancista, doescritor. Ou seja, usufruímos o bom livro, dapoesia, por exemplo, pois estes são meios deobtenção do prazer e ainda porque por meiodestes instrumentos existe a possibilidade dalibertação das tensões das nossas mentes por

meio da palavra do “outro” que, na verdade, étambém a nossa palavra.

Tal situação torna-se ainda mais interessan-te, de acordo com Freud (1920, 1929) e outrosestudiosos, já que aceitamos por meio das obrasde arte, com menos auto-acusações, vergonhase culpas, a nossa própria realidade interior.

Neste sentido, há que se considerar que nãoé apenas a pessoa que tem domínio das técni-cas da escrita literária – a alfabetizada, a letra-da, a culta – que sente a necessidade deexpressar seus sonhos e devaneios. Tal neces-sidade, chamamos a atenção dos leitores, é hu-mana e é ela que possibilita a realização culturalda espécie e, em última instância, a manuten-ção da vida.

Ao recorrermos às obras de Winnicott (2001,1994, 1990, 1988), sabemos que já no bebê anecessidade de criar se manifesta com toda asua força. E, por isto, o estudo de alguns con-ceitos deste psicanalista – “espaço de criação”ou “espaço potencial” ou “espaço transicional”,“objetos e fenômenos transicionais” – mostram-se promissores para a compreensão das rela-ções educacionais, sobretudo, conformeapontaremos, nos dias de hoje.

Assim, na tentativa de compreender a cria-tividade no adulto, recorremos ao estudo damanifestação criativa no bebê que, para dimi-nuir a angústia gerada pela ausência materna,cria e, neste processo/ resultado, acalma-se.

Vejamos, agora, mais atentamente, o que nosdiz o referido psicanalista inglês.

1 O trabalho de investigação apresentado neste artigo, rea-lizado no âmbito do grupo de pesquisa, ensino e extensão“Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Esco-lar: o papel da instituição escolar” conta com o apoio doCNPq e da FAPESP.

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Aspectos da teoria de D. Winnicott:o espaço de criação

Para Donald Winnicott (2001, 1994, 1990,1988), “espaço de criação” é um conceito quepretende explicar a relação “mãe” e “bebê” e,mais amplamente, significa a possibilidade decompreender a relação que as pessoas estabe-lecem com o mundo – realidade – exterior.

Este autor nos alerta para o fato de que a“mãe”, para que permita o pleno desenvolvi-mento de seu filho, não pode ser cruel, mesmoque sob o disfarce da proteção que limita ouainda sob pretextos educacionais e da civilida-de, sob ameaças veladas, que aniquilam a almae têm preços emocionais muito altos. No outroextremo, a “mãe” também não pode ser figuraausente ou inexistente: aquela que nunca podeou que nunca está, a que abandona ou aindaaquela que é displicente, que deixa seus filhosao sabor dos acontecimentos sem introduzi-losno mundo que os rodeia.

Tendo em vista estas considerações, Winni-cott define a “mãe suficientemente boa”, queseria um meio termo entre a “mãe que sempresabe”, “que sempre está”, “que sempre pode efaz” e a “mãe que nunca está”, “que nuncapode” e “nunca faz”. Ou seja, seria uma mãeque cuida, que tem desvelo pelos seus filhos eque, ao mesmo tempo, permite-lhes ser inde-pendentes dela, se constituírem como pessoasdiferentes do que ela é e, assim, matá-la simbo-licamente. Em síntese, é a mãe que permite queseu filho não seja tudo aquilo que ela é à suaimagem e semelhança, e sim, possibilita-lhe seruma pessoa diferente, com gostos diferentes,dona de si própria.

Para o referido psicanalista inglês, esta re-lação entre mãe e filho é um instante, não tãobreve, muito significativo para todo o desenvol-vimento da criança, pois a marcará por toda asua vida.

Quando a criança é apenas um bebê, a pri-meira relação que ela estabelece com a sua mãese constitui em torno da amamentação. Nasprimeiras semanas deste ato, o bebê pensa queele é o próprio seio da mãe, pois quando mama,a sua satisfação é total, é uterina, ou ainda, é de

completude e satisfação. Aos poucos, com odistanciamento da mãe, conseqüência das ou-tras demandas da vida, e todo o processo dedesenvolvimento neurológico sofrido pelo bebê,ele começa a perceber que o seio materno nãoestá sempre à sua disposição e que, portanto, oseio da mãe não é ele, bebê. Esta distância, quepouco a pouco se constrói entre mãe e bebê –ou ainda, o fim desta ilusão vivenciada pelo bebêde onipotência – origina determinadas condi-ções que foram definidas por Winnicott (2001,1994, 1990, 1988) pelo conceito de “espaçotransicional” ou “espaço de criação”, ou ainda,“espaço potencial”.

Na medida em que o bebê percebe que elenão é a mãe e que, entre eles, existe um “espa-ço” – físico e temporal – ou ainda que a mãe érealidade exterior a ele – o bebê precisa preen-cher esta distância que o separa da mãe por“algo” que diminua a sua angústia da sua desi-lusão e conseguir suportar o sofrimento prove-niente da espera do seio materno. Parapreencher este espaço, o bebê precisa “inven-tar”, colocar algum “substituto” da mãe enquan-to a aguarda, ou seja, ele precisa criar paranão sofrer. E assim, o bebê, enquanto a mãenão vem, contenta-se com uma mamadeira, dis-trai-se com uma chupeta, com um paninho oumesmo com o seu dedo. Assim, ele joga comestes objetos culturais na tentativa de suportaro sofrimento da realidade vivida.

Estes objetos que se encontram entre a es-pera do bebê pela mãe e a chegada da mãe –objetos que minimizam a angústia – foram cha-mados por Winnicott (2001, 1994, 1990, 1988)de “objetos transicionais”, e despertam, ao mes-mo tempo em que acolhem, a criatividade dobebê para a solução da angústia da separação.Estes fenômenos foram conceituados como “fe-nômenos transicionais”.

Há que se entender que os “objetos transi-cionais” não pertencem totalmente à realidadeinterior do bebê, porém nela influenciam direta-mente; nem pertencem à realidade exterior, ouseja, situam-se em uma área intermediária.

Segundo Winnicott (2001, 1994, 1990, 1988),esta situação de ilusão/ desilusão – quando obebê pensa que o seio da mãe é ele mesmo e,

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logo em seguida, decepciona-se ao perceber queo seio da mãe não é ele, e por isso, ele buscasuportar a realidade por meio da criatividade –repete-se na relação estabelecida entre o serhumano e a disputa que trava consigo mesmopara definir o que é “realidade interior” e o queé “realidade exterior” ao longo da vida. E, sen-do assim, para que este ser humano não su-cumba, obviamente, faz-se mister criar.

Neste sentido, percebe-se que o “objeto tran-sicional” antecede a função simbólica que viráquando a criança já puder distinguir entre fan-tasia e objetividade. Enquanto brinca na transi-cionalidade, a criança repousa da árdua eincessante tarefa de ter que discriminar a reali-dade interna da externa, isto porque, o “objetotransicional” “é oriundo do exterior, segundonosso ponto de vista, mas não o é, segundo oponto de vista do bebê. Tampouco provém dedentro; não é uma alucinação” (WINNICOTT,1988, p. 18).

Dito de outro modo, o “objeto transicional”,fruto e berço da criatividade, tem como funçãopreencher o vazio produzido pela ausência docorpo materno. Ou seja, ele é constituído paraevocar a união perdida com a mãe e re-signifi-car a ausência materna. Destacamos que, aolongo da vida de estudos de Winnicott, obser-va-se que, muito rapidamente, o “objeto transi-cional” será mais importante do que o objetooriginário. Isto é, com ele a criança poderá su-portar a espera pelo reencontro sem se deses-perar, e ainda, explorará os limites ao testar adurabilidade do mundo, ou ainda, nas palavrasde Winnicott “(...) a criança fica com a ilusãode que o mundo pode ser criado e de que o queé criado é o mundo” (1994, p. 44).

Do nosso ponto de vista, conforme assina-lamos acima, a angústia vivenciada pela crian-ça, desde o momento do nascimento, é tambémvivenciada pelo jovem e pelo adulto. Dito deoutro modo, esta necessidade de encontrar subs-titutos para o que realmente se deseja e o quê equando, de modo incerto, se poderá ter, exigeque nos mantenhamos nesta ilusão saudável,aspecto constituinte da essência humana.

Sendo assim, na próxima parte deste artigo,trataremos, especificamente, da necessidade de

viver “fenômenos transicionais” entendidos porWinnicott (2001, 1994, 1990, 1988) como o “jo-gar”, o “brincar”. E neste sentido os sujeitos denosso interesse serão os adultos e a obrigatori-edade da permanência no mundo do trabalhopara a própria sobrevivência.

Apenas para adiantar o posicionamento queaqui defenderemos, procuraremos demonstrarque há a possibilidade de que as relações detrabalho sejam entendidas na perspectiva do“jogo”, da existência de “objetos transicionais”e, por isso, podem tornam-se salutares, além depromoverem e acolherem a “criatividade”.

Vejamos, primeiramente, os significados quea palavra “criatividade” pode ter e como elaauxilia na reflexão do conceito winnicottiano de“espaço potencial”, terreno cuja natureza é ojogo, de fronteiras indeterminadas, que compõea nossa realidade.

Criatividade e mundo do trabalho:algumas considerações

Conforme falávamos, a zona psíquica queintermedeia a realidade exterior e a interior é amatriz da experiência cultural, a qual Winnicott(2001, 1994, 1990, 1988) denomina “espaçopotencial”. Segundo o referido autor, a atençãode diferentes estudiosos tem focalizado as rea-lidades psíquica, pessoal e interna do sujeito demodo parcial. Conseqüência desta lacuna é ofato de que a experiência cultural não encon-trou seu verdadeiro lugar nas teorias utilizadaspelos analistas em seus trabalhos. Justamenteneste vazio, a obra de Winnicott floresce, poisele se preocupa intensamente com o espaço daprodução da cultura para Winnicott ou ainda o“espaço da criatividade”.

Criatividade, neste contexto, é um conceitode difícil definição, pois, por mais que se tentedelimitá-lo, ele ainda parece incompleto em con-tato com as múltiplas dimensões humanas.

Ao longo de sua obra, Ostrower (1990) apre-senta a criatividade como geração da cultura ecorrobora, do nosso ponto de vista, com a pro-posta winnicottiana. Para ela, a composição denovos arranjos de idéias já conhecidos, que de-

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pois de passar pela elaboração mental de de-terminada pessoa, formam algo novo, longe dasidéias consideradas tradicionais, convencionaisou conhecidas, pertence ao conceito de criati-vidade. Dizemos, então, que criatividade podeser um trabalho valioso e incessante do cére-bro que busca novos padrões que transformamobjetos culturais comuns em objetos valiosos,propiciando o alívio para a tensão enfrentadapelo ser humano no confronto com a vida. Comisto, não queremos dizer que o processo cria-tivo é apenas um bálsamo para a alma huma-na, pelo contrário, para que, por exemplo, umadulto consiga produzir algo criativo é neces-sário o enfrentamento de processo doloroso.Esta pessoa precisa, antes de tudo, libertar-sedas castrações e restrições iniciais sofridas norelacionamento com seus pais, pois, quer quei-ramos ou não, a relação inicial entre mãe ebebê, conforme procuramos descrever, podeconstituir-se para toda vida com um modeloque interrompe ou não o fluxo criativo. E as-sim, nas palavras de Winnicott (2001, 1994,1990, 1988), caso um adulto não tenha tidouma “mãe suficientemente boa”, há a tendên-cia de que o mesmo padrão estabelecido derelação com a realidade continue o mesmo vi-venciado na infância.

Quando adultos, podemos manter boa partedessas restrições construídas enquanto éramosbebês. Poderá, portanto, ocorrer um embota-mento ou ainda um acomodamento de atitudesfrente à realidade que se constitui, fazendo comque a criatividade não encontre espaço paramanifestar-se e que a produção cultural da pes-soa reduza-se ao quase nada.

Destacamos, ainda que de passagem, que,até certo ponto, esta postura “não criativa” nãorepresenta perigo frente a outras pessoas, poisesta estabilidade significa segurança para osdemais e a manutenção da ordem social vigen-te, e, portanto, tanto no ambiente de trabalhocomo no ambiente escolar a passividade e asubmissão são atitudes bem-vindas.

Apesar disto, a criatividade pode ser desen-volvida e manifestar-se em cada pessoa desdeque encontre uma pequena fenda, mesmo numambiente opressor. E assim, apesar das dificul-

dades e obstáculos, apostamos que o mundo dotrabalho que se configura hoje, na era do conhe-cimento e da informação, tende a constituir-secomo local de criação. Para sustentarmos estaafirmação, recorremos à obra do sociólogo itali-ano, Domenico De Masi (2000).

É de conhecimento generalizado, a insatisfa-ção diante do modelo centrado na idolatria dotrabalho e da competitividade resultado da Re-volução Industrial do século XVIII e que se per-petua em muitas partes do planeta. Porém, háque se compreender que este modelo, sobretudodevido às novas tecnologias inseridas no cotidia-no da sociedade, está, aos poucos, mostrando-seineficaz e sendo substituído por novas formas deorganização do trabalho; fato que implica direta-mente na psicologia do desenvolvimento do adul-to, já que ele precisa relacionar-se do ponto devista da transicionalidade dos objetos e das rela-ções pessoais de um jeito ou de outro.

A proposta apresentada pelo sociólogo Do-menico De Masi, parece-nos muito interessan-te: é recomendável libertar-se da idéiatradicional de trabalho como dever para queeste se misture com o tempo livre, estudo ejogo, constituindo o conceito de “ócio criati-vo”. Vejamos mais atentamente as idéias des-te nosso contemporâneo.

Para este autor, hoje, o mercado de trabalhotende a valorizar as atividades criativas, mes-mo que, nos dias atuais, exista a tendência his-tórica para que se associe à idéia de ócio umpensamento negativo. Assim, quando a civili-zação cristã refere-se à pessoa ociosa, indicajustamente aquela que nega o preceito bíblicode que ganharemos o pão com o suor do ros-to. Conseqüência desta idéia, o ócio encontra-se vinculado à preguiça, um dos sete pecadoscapitais; à vadiagem; ao não querer fazer nadae à formação de indivíduos perigosos para asociedade, pois, se nada produzem, irão se apro-veitar daqueles que trabalham.

Para os católicos, o trabalho é uma senten-ça condenatória, como reafirmará a RerumNovarum, em 1891: “As massas católicas im-pregnadas da Rerum Novarum que tinham ou-vido falar em todas as igrejas, estavamconvencidas de que tinham o dever de sofrer

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em silêncio e trabalhar” (DE MASI, 2000, p.51 e 52). “A encíclica deixa claro, desde o co-meço, que a propriedade privada é direito natu-ral – logo divino. E o faz com o seguinteraciocínio abstruso: como os animais têm o di-reito de usar as coisas, mas não de possuí-las, ohomem que é superior aos animais, deve terum direito a mais. Por conseguinte, o direito àpropriedade” (DE MASI, 2000, p. 53). E ainda:

...a Igreja compreende que a indústria é sua ini-miga: porque racionaliza o mundo, substitui amagia pela ciência e raciocínio, torna vã a fé navida depois da morte com a confiança no pro-gresso. E o papa adverte para o perigo de que asclasses pobres pretendam enriquecer. Quantomenor for o número de pobres, menor será onúmero de fiéis com o qual a Igreja poderá con-tar. (DE MASI, 2000, p. 55).

A seguinte passagem bíblica, destacada porDe Masi na obra a que nos referimos, é muitosignificativa também: “Depois do pecado, o ho-mem deveria trabalhar para expiar o pecado: aterra será maldita por sua causa; é pelo traba-lho que tirarás com que alimentar-te todos osdias da tua vida” (DE MASI, 2000, p. 54).

Ou seja, a Igreja Católica tem pregado, du-rante séculos, que o dever do rico é dar a cadaum o salário que este merece e ser caridoso.Com a difusão e defesa destas normas, induz oser humano à passividade e não promove a cri-atividade, o jogo e, finalmente, a cultura.

Mesmo não sendo o foco deste artigo, faz-se interessante notar que a ética protestante,sobretudo a calvinista, condiciona o trabalho àsalvação e, assim, é muito mais rígida do que aética católica.

Na prática isto significa que Deus ajuda quem seajuda. Assim, o calvinista, como às vezes se per-cebe, criava sua própria salvação ou, como seriamais correto, a convicção disto. Esta criação,todavia, não podia como no Catolicismo consti-tuir-se no acúmulo gradual de boas obras isola-das a crédito de alguém, mas, muito mais, emsistemático autocontrole que a qualquer momen-to se via ante a inexorável alternativa: escolhidoou condenado” (WEBER, 1987, p.80).

Entretanto, hoje conforme anunciamos aci-ma, a possibilidade real do tele-trabalho – que

pode ser feito em toda a parte, inclusive emcasa – fará com que os trabalhadores, homense mulheres, possam ter uma maior autonomiano que diz respeito ao uso do seu tempo.

Além desta maior autonomia, na antiga so-ciedade industrial, a formação se dava de umavez só na vida e esta servia até a aposentadoriado trabalhador. Hoje, porém, século XXI, a for-mação é contínua, sendo que um dos fatoresque influencia nesta necessidade é o aumentoda vida média da população.

Segundo De Masi (2000), na segunda me-tade do século XIX, a vida média dos homensera de trinta e quatro anos, e, das mulheres,trinta e cinco anos: menos da metade da atualexpectativa de vida do brasileiro que, diga-sepassagem, não é “bom” exemplo neste sentido.

Temos que, hoje, um grupo privilegiado depessoas pode passar dos setenta anos de vidaem alguns locais do planeta. Nestas “institui-ções escolares”, estas pessoas passarão maisda metade da sua vida na escola e no processode trabalho. Conseqüência outra destes “novostempos” é o novo significado atribuído à velhi-ce que, segundo De Masi (2000) passa a serconsiderada como o último período da vida deuma pessoa, quando pela fatalidade da doençaela perdeu a vitalidade que possuía e, portanto,tal situação independe da faixa etária.

Desta maneira, em total consonância com aperspectiva de De Masi (2000), defendemosque se trabalhar significa também estudar, e seesta junção contiver a satisfação derivada doato de aprender, o ócio criativo é o modo devida mais saudável para estes nossos tempos.

Afirmamos que os procedimentos burocrá-ticos que impedem a realização de atividadescriativas precisam ser enfraquecidos das insti-tuições escolares e de trabalho, mesmo porqueaqueles que a elas se encontram presos, nomundo atual, cuja atividade crescente é a pres-tação de serviços, não obterão os melhores re-sultados.

Vejam a seguinte passagem do sociólogoitaliano:

Em primeiro lugar, a passagem da produção debens à produção de serviços. Em segundo, acrescente importância da classe de profissionais

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liberais e técnicos em relação à classe operária.Em terceiro, o papel central do saber teórico... Emquarto lugar, o problema relativo à gestão dodesenvolvimento técnico: a tecnologia tornou-setão poderosa e importante, que não pode mais seradministrada por indivíduos isolados e, em algunscasos-limite, nem mesmo por um só Estado. Emquinto, a criação de uma nova tecnologiaintelectual, ou seja, o advento das máquinasinteligentes, que são capazes de substituir ohomem não só nas funções que requerem esforçofísico, mas também nas que exigem esforçointelectual. (DE MASI, 2000, p. 36).

Dito de outro modo, a sociedade pós-indus-trial pode ser definida como uma sociedade cria-tiva; já que, para as tarefas rotineiras, as máquinasencontram-se prontas para realizá-las.

Ainda à luz das idéias deste estudioso dapós-modernidade, a cega devoção zelosa demuitos trabalhadores faz com que eles perma-neçam nas instituições. Porém, na medida emque suas forças criativas se exaurem nesteambiente, dedicam-se a inventar regras e pro-cedimentos inúteis para fazer com que seuscolegas tenham “dores de cabeça” e só os pre-judicam. Ou seja, existem intelectuais que pas-sam mais de 20 anos na escola e depois aindase vêem obrigados a realizar uma função quelhe exigiria no máximo oito anos de estudo.

Com relação ainda ao trabalho intelectual,De Masi (2000) chama nossa atenção para umoutro tipo de pseudo-intelectuais: aqueles quepagam pouco ou não pagam pelas idéias dosoutros, ou ainda as roubam.

O referido sociólogo defende também a eli-minação do que ele classifica como “trabalhosartificiais”, como, por exemplo, o trabalho deascensorista, pois esta atividade dispensa umapessoa especial para ser executada, além deque, a tarefa em si mata a alma deste “pseudo”profissional.

Por todos estes motivos, defendemos a pro-posta de De Masi: que o trabalho, ao unir estu-do e jogo, promova, sobremaneira, situações emque a transicionalidade e a criatividade sejamincentivadas. Há que se valorizar a dignidadehumana e desprezar a subordinação.

O cérebro precisa de ócio para produzir idéi-as. Ele é alimentado pela transdisciplinaridade

e por estímulos ideativos, e por este e outrosmotivos aqui apresentados, a luta que se travahoje no mundo do trabalho é a luta entre os bu-rocratas e os criativos, que segundo De Masi(2000), será ganha pelos últimos, afirmação queencontra total apoio na teoria de Winnicott (2001,1994, 1990, 1988), pois os criativos consegui-rão, já que se encontram iludidos, ter qualidadede vida melhor, desempenho de alto nível e con-cluirão que “a vida vale à pena de ser vivida”.

Nesta discussão, não há como deixar de re-correr a J. Huizinga (1971), historiador holan-dês do final do século XIX, início do XX, maisespecificamente a sua obra Homo Ludens, poisé no momento do “jogo” que o ser humano écapaz de expressar toda a sua criatividade. Suaobra corrobora com nossa posição francamen-te winnicotiana de que:

... desde a mais tenra infância, o encanto do jogoé reforçado por se fazer dele um segredo. Isto é,para nós, e não para os outros. O que os outrosfazem, ‘lá fora’, é coisa de momento e não nosimporta. Dentro do círculo do jogo, as leis ecostumes da vida quotidiana perdem validade.Somos diferentes e fazemos coisas diferentes.(HUIZINGA, 1971, p. 15).

Para o referido historiador, a vida deve servivida como um jogo; explicada nesta metáfora:fazendo sacrifícios, cantando e dançando. Sóassim, o ser humano, em alusão à parte da mito-logia grega, poderá conquistar o favor dos deu-ses e defender-se de seus inimigos triunfando nocombate, ou ainda, quando se refere a Aristóte-les quando classificou os vários aspectos doHomem, dividindo-os em homo sapiens (o queconhece e aprende), homo faber (o que faz,produz) e homo ludens (o que brinca, o que cria).

Continuando este raciocínio, o referido au-tor holandês, defende a idéia de que é no jogo epelo jogo que a civilização se desenvolve e queeste sendo mais antigo do que a cultura exercefascínio, pois ultrapassa os limites da atividadefísica ou biológica.

Este encantamento produzido pelo jogo sedeve ao fato de que, em comum acordo dentreas teorias acerca do fenômeno, é “algo” que seacha ligado ao jogo, e não o jogo, propriamentedito, é o objeto que proporciona prazer intenso.

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Faz parte ainda do Homo Ludens em ação,a tensão e a incerteza, cercada pela busca devirtudes, honra, nobreza e glória.

Para Huizinga (1971), no mito e no culto seoriginam as grandes forças instintivas da civili-zação humana:

... o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústriae a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elastêm suas raízes no solo primitivo do jogo (...) Ohomem primitivo procura, através do mito, dar contado mundo dos fenômenos atribuindo a este umfundamento divino. Em todas as caprichosas invençõesda mitologia, há um espírito fantasista que joga noextremo limite entre a brincadeira e a seriedade.(HUIZINGA, 1971, p. 7).

Um dos exemplos mais fantásticos do jogo,sobretudo para os adultos, diz respeito ao “usodas palavras”, sejam estas nas batalhas ver-bais, no jogo das metáforas; na dança e namúsica e, ainda, na poesia.

Não menos importante ainda há estreita re-lação entre jogo e conhecimento, e que estaprática humana, em sua função, apresenta doisaspectos: a luta por algo ou a representação dealgo. Nas palavras do autor, “o atrativo que ojogo exerce sobre o jogador reside exatamentenesse risco. Usufruímos com isso de uma liber-dade de decisão que, ao mesmo tempo, estácorrendo um risco e está sendo inapelavelmen-te restringida” (HUIZINGA, 1971, p. 149).

Em suma, “o jogo possui uma essência pró-pria”, independente da consciência daqueles quejogam. O horizonte temático não pode ser limi-tado, nem dominado apenas pela subjetividade.O que é possibilitado ao jogador é a decisãosobre qual jogo quer ou não quer jogar. Segun-do Huizinga, “trata-se de uma realidade que ul-trapassa a esfera da vida humana”. Portanto,seu fundamento não reside na subjetividade, pois,se assim fosse, limitar-se-ia à humanidade”(1971, p. 5 e 6).

Para os seres humanos e, no caso especifi-camente deste artigo, o “adulto”, a ânsia de sero primeiro no jogo escolhido assume tantas for-mas de expressão quantas as oportunidades quea sociedade oferece para tal.

Neste ponto, retomamos uma das questõesassinaladas na obra em questão: Até que pontoserá possível verificar a presença do elemento

lúdico em épocas culturalmente mais desenvol-vidas e contemporâneas? De que maneira, oespírito lúdico domina as atividades do homem?

Defendemos, nesta linha de argumentação,ao relacionarmos Winnicott (2001, 1994, 1990,1988), De Masi (2000) e Huizinga (1971), queo conhecimento escolar, mais especificamentena educação de jovens e adultos – nos seusdiferentes níveis e modalidades – pode se tor-nar um jogo muito atraente de ser jogado, des-de que, do nosso ponto de vista, ele seja ligadoao trabalho. E que o trabalho, tarefa em princí-pio dos adultos, é um jogo também que podeser criativo, desde que haja o ócio necessáriopara tanto.

Vale a pena ressaltar a seguinte passagemda obra de J. Huizinga:

Sempre que nos sentirmos presos de vertigem,perante a secular interrogação sobre a diferençaentre o que é sério e o que é jogo, mais uma vezencontraremos no domínio da ética o ponto deapoio que a lógica é incapaz de oferecer-nos.Conforme dissemos desde o início, o jogo estáfora desse domínio da moral, não é em si mesmonem bom nem mau. Mas sempre que tivermos dedecidir se qualquer ação a que somos levadospor nossa vontade é um dever que nos é exigidoou é lícito como jogo, nossa consciência moralprontamente nos dará a resposta. Sempre quenossa decisão de agir depende da verdade ouda justiça, da compaixão ou da clemência, oproblema deixa de ter sentido. Basta uma gotade piedade para colocar nossos atos acima dasdistinções intelectuais. Em toda consciência moralbaseada no reconhecimento da justiça e da graça,o dilema do jogo e da seriedade, até aquiinsolúvel, deixará de poder ser formulado. (1971,p. 236).

Feitas estas considerações, gostaríamos dedelinear uma proposta possível para a Pedago-gia do Século XXI.

Proposta para a Pedagogia do sé-culo XXI

Conforme as características apontadas an-teriormente, a Pedagogia do Século XXI estáse constituindo por uma série de tarefas, rela-

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ções, modos de ensino, em que a criatividadeserá a palavra central: o eixo gerador. A áreada emoção humana ganhará, portanto, o seumáximo valor nos locais em que a prática doensino se desenvolver.

Sendo assim, professores, necessariamen-te, precisarão ser profissionais que tenham maiortempo livre para que eles mesmos possam re-lacionar-se com a docência de modo a reunirestudo, trabalho e criatividade. Dito de outromodo, os professores precisarão do ócio criati-vo que implica em menos tempo encarceradosem instituições de ensino e mais tempo livre,uma vez que, todos concordamos, no trabalhointelectual a inspiração é TUDO.

Neste sentido, os alunos saberão que podemcontar com seus professores de uma maneiranão presencial, porém, totalmente comprometi-dos com eles.

Frente a esta exposição e aos dados quecoletamos, consideramos a urgência, para quese promova o aprendizado de um modo geral,uma Pedagogia capaz de preparar os indivídu-os para o sucesso, para a superação de obstá-culos, para que não sejamos pessoas vivas semilusões, incapazes de criar e anestesiadas. Estaconstrução, do aprendizado do sucesso, será,como sabemos, um processo doloroso, sobre-tudo porque os dias de hoje são sombrios e aironia entre colegas é traço social internaliza-do. Porém, enfatizamos, se quisermos nos man-ter alfabetizadores vivos, precisamos criar esuperar estes desafios.

Uma das sugestões que fazemos para con-tribuir com este problema pessoal e social aomesmo tempo, é a implantação de “espaços decriação” não só para os alunos em situação deaprendizado da leitura e da escrita da LínguaPortuguesa, mas também, para os professores(as) alfabetizadores (as) para que estes sejamouvidas, e assim, ao ouvirem a si próprios, tor-nar-se-ão capazes de encontrar caminhos parasua formação, ou ainda, para se iludirem, nosentido winnicottiano do termo, e alçarem seuspróprios vôos por meio de atos criativos.

Nesta direção, para que a escola venha aservir para o mundo do trabalho que hoje seconfigura, tendo em vista a sociedade da infor-

mação com a sua velocidade intrínseca, defen-demos que a Pedagogia do Século XXI promo-va o jogo no sentido de promoção da cultura, damesma forma que a empresa – que desejarsobreviver neste mercado globalizado – deveráfazer.

A Pedagogia do Século XXI precisa levarem consideração as experiências ilusórias detodos os atores sociais e promover o jogo, nãono sentido de devaneio, mas de possibilidade deilusão para a criação do mundo adulto. Ou ain-da, esta nova Pedagogia sacralizará o “espaçode criação” e a experiência de vida criativa,aprimorando os conjuntos simbólicos inventa-dos pelas humanidades para permitir novas for-mas de expressão como toda a ludicidadepermitida para a vida humana. Assim, construi-remos um mundo em que a Ética terá maiorimportância do que regras burocraticamentedefinidas.

Defendemos que, mais do que nunca, a ati-tude do ócio deve ser aprendida, preservada ecultivada, mesmo porque, conforme os traba-lhos de Winnicott, o jogo criativo é decorrênciado repouso, estado de indeterminação, não ori-entado a nenhum fim ou objetivo específico.

Assim, este “estar à-toa” precisa ser defen-dido para e pelos educadores deste novo sécu-lo, para e pelos seus alunos.

Ainda que de passagem, gostaríamos deapresentar aqui, como exemplo, um trabalho quetemos desenvolvido em sala de aula de gradua-ção de Pedagogia na Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo, que denomina-mos “atividade livre”. Três dias do semestreletivo, burocraticamente definidos como aulaspráticas, têm sido dedicados ao desenvolvimentode todo e qualquer tipo de reflexão que o alunopossa fazer no sentido de relacionar algo da suavida aos textos estudados em sala de aula. Oaluno deixa de ir à Faculdade neste dia e temcomo compromisso produzir um texto em quefaz uso do conteúdo estudado em sala de aulapara “iluminar” qualquer experiência de sua vidasocial (ida ao cinema, ao teatro, museus, dentreoutras) ou mesmo da sua vida interior (lembran-ças, recordações, episódios vividos, por exem-plo). Constatamos que, durante três anos, as

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atividades escritas pelos alunos referentes aestes momentos são as melhores atividades pro-duzidas durante o curso. Acompanhamos, por-tanto, o re-visitar de muitos alunos de Pedagogiaàs suas infâncias quando, por exemplo, relêemtrabalhos produzidos no início das suas vidasescolares; observamos como os mesmo recor-rem às suas lembranças enquanto alunos e re-fletem sobre seu papel como mães e ou filhas,dentre outras incursões mentais, produzindomaterial textual, em verso, em prosa ou disser-tativo, esteticamente belos e teoricamente em-basados nas leituras feitas durante o curso.

É, portanto, nesta aparente ociosidade que,Oxalá, conseguiremos acompanhar a socieda-de do conhecimento e dela fazer parte comoatores e construtores; não apenas, como con-sumidores. Ou ainda, nas palavras de PauloFreire:

Seres programados para aprender e que neces-sitam do amanhã como o peixe da água, mulhe-res e homens se tornam seres roubados sese-lhes nega a condição de partícipes da produ-ção do amanhã. Todo amanhã, porém, sobre quese pensa e para cuja realização se luta implicanecessariamente o sonho e a utopia. (...) Não háamanhã sem projeto, sem sonho, sem utopia, semesperança, sem o trabalho de criação e desen-volvimento de possibilidades que viabilizem asua concretização. É neste sentido que tenhodito em diferentes ocasiões que somos esperan-çosas não por teimosia, mas por imperativo exis-tencial. É aí também que radica o ímpeto com queluto contra todo fatalismo. Não faço ouvidos de

mercador ao discurso fatalista de educadores queem face dos obstáculos atuais ligados à globali-zação da economia reduzem a educação à puratécnica e proclamam a morte dos sonhos, da uto-pia. Se já não há classes sociais, portanto seusconflitos, se já não há ideologias, direita, esquer-da, se o desenvolvimento não tem nada que vercom a política, mas com a ética, a do mercado,malvada e mesquinha, se a globalização da eco-nomia encurtou o mundo, se o mundo ficou maisou menos igual, cabe à educação o puro treinoou adestramento dos educandos. Recuso essepragmatismo reacionário tanto quanto o discur-so acomodado que fala dos famintos brasileirosou dos desempregados do mundo como umafatalidade do fim do século. O meu discurso emfavor do sonho, da utopia, da liberdade, da de-mocracia é o discurso de quem recusa a acomo-dação e não deixa morrer em si o gosto de sergente, que o fatalismo deteriora. (FREIRE, 2001,p. 85 e 86).

Finalmente, ainda que de modo modesto, nos“espaços de criação” instalados e coordenados peloGrupo Acolhendo na cidade de São Paulo (consul-tar www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br), pro-fessores e seus alunos podem conhecerem-sea si mesmos e, no caso específico de situaçõesde stress, poderão perceber as modificaçõesque podem promover para si próprios para queencontrem e criem instrumentos para minimi-zar o sofrimento da vida. Em suma, temos pro-curado oportunizar o jogo entre estesprofissionais e seus alunos no sentido que Eins-tein já nos alertou: Brincar é a mais elevadaforma de pesquisa.

REFERÊNCIASDE MASI, Domenico. O ócio criativo: entrevista a Maria Serena Palieri. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de SigmundFreud, XXI, 1929.

_____. Além do princípio do prazer. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud,XVIII, 1920.

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971.

OSTROWER, F. Acaso e criação artística. São Paulo: Campus, 1990.

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1987.

WINNICOTT, D. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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_____. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_____. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

_____. A natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

_____. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

Recebido em 06.05.05Aprovado em 20.04.06

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SE DER A GENTE BRINCA:crenças das professoras sobreludicidade e atividades lúdicas

Ilma Maria Fernandes Soares*Bernadete de Souza Porto**

* Autora do artigo. Mestre pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – FACED/UFBA. Professorado Departamento de Ciências Humanas – DCH4 – da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus de Jacobina-BA. Endereço para correspondência: UNEB, DCH4, Av. JJ Seabra, 157, Bairro da Estação – 44700-000 Jacobina - BA.E-mail: [email protected]** Co-autora: orientadora da pesquisa. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora ecoordenadora do Núcleo Didático-Pedagógico, na Universidade Sete de Setembro, Fortaleza/CE. Endereço para corres-pondência: Faculdade 7 de Setembro, Rua Almirante Maximiano da Fonseca, 1395, Edson Queiroz – 60811.024Fortaleza-Ce. E-mail: [email protected]

RESUMOEsse estudo analisa as crenças de quatro professoras das séries iniciais doEnsino Fundamental público, do município de Salvador-BA, sobre a ludicidadee as atividades lúdicas. Tem a pesquisa qualitativa como opção metodológica ea observação, a entrevista e a (auto) biografia como instrumentos investigativos.A questão básica que norteou esse trabalho foi: quais as crenças que osprofessores têm elaborado sobre a ludicidade e as manifestações lúdicas?Constata-se, ainda, que a incorporação do elemento lúdico na escola requerque se mexa em várias convicções sobre a função da escola, o papel exercidopor professores/as e alunos, o que, de alguma forma, justifica a resistênciadesses/as profissionais a um trabalho pautado na ludicidade. Diante dessaresistência, secundariza-se o papel da ludicidade e das atividades lúdicas. Ofato de a escola pesquisada ser voltada para a formação das crianças dascamadas populares também é um aspecto que limita ou inviabiliza a vivêncialúdica nesse espaço educativo. No âmbito do estudo das crenças de professores,esse trabalho contribui ao acrescentar três características relacionadas àsconvicções: a inter-relação dos aspectos pessoais e profissionais; o seu caráterde generalização e a sua influência na criação de estereótipos.

Palavras-chave: Ludicidade – Atividades lúdicas – Crenças

ABSTRACTIF POSSIBLE WE’LL PLAY: teachers’ beliefs on playfulness andplayful activities

This study analyses the beliefs of four teachers of the primary public schoolfrom Salvador (Bahia, Brazil) about ludicity and playful activities. It is a

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qualitative research whose methodology is based upon observation, interviewand (self)-biography as investigative tools. The basic interrogation which guidedthis work was: what beliefs did teachers elaborated about ludicity and playfulactivities? It was also observed that the integration of the playful dimension inthe school requires to deal with several convictions about the school foundation,the role played by the teachers and students, which somehow justifies theresistance of such professionals to a playful work. Because of this resistance,the role of ludicity and playful activities is downplayed. The fact that theresearched school focuses on the education of children is also an aspect thatlimits or undermines a daily life based on playfulness in the educational space.In the study of teachers’ beliefs, this paper contributes adding three convictionrelated features: the personal and professional aspects interrelation, itsgeneralization feature and its influence on the creation of stereotypes.

Keywords: Playfulness – Playful activities – Beliefs

Esse artigo, fruto da pesquisa que realizeino período dedicado ao Mestrado em Educa-ção, objetiva apresentar as crenças detectadasem quatro professoras das séries iniciais doEnsino Fundamental público, do Município deSalvador-BA, no ano de 2004, sobre a ludici-dade e as atividades lúdicas. A abordagemmetodológica para o desenvolvimento deste tra-balho se embasou nos pressupostos da pesqui-sa qualitativa, sendo a observação, a entrevistasemi-estruturada e a autobiografia os três ins-trumentos investigativos utilizados. A escolapesquisada localiza-se em um bairro popular,sendo sua população eminentemente de negros.No que se refere às professoras que contribuí-ram para a feitura desta pesquisa, os nomesfictícios adotados são: Cândida, Margarida,Mariazinha e Teresinha.

Diante da compreensão de que as crençascompõem um sistema que se organiza de for-ma a sustentar e justificar as demais, tornou-setambém necessário, para uma melhor compre-ensão da temática dessa pesquisa, analisar al-gumas convicções sobre educação, escola,aluno e trabalho docente, de forma a compre-ender onde as convicções sobre ludicidade eatividades lúdicas se alicerçam. Dessa forma,esse trabalho apresentará as crenças presen-tes em cada um desses blocos, discutindo asmais fecundas para a compreensão desse es-tudo. No entanto, antes da apresentação das

crenças, torna-se importante discutir três con-ceitos-chave que nortearão esse trabalho: lu-dicidade, atividades lúdicas e crenças.

1.ESCLARECIMENTOS CONCEITUAISPARA A COMPREENSÃO DESSE ES-TUDO

O primeiro conceito que trago é o de ludi-cidade, que entendo como fenômeno subjeti-vo que possibilita ao indivíduo se sentir inteiro,sem divisão entre o pensamento, a emoção ea ação. Essa plenitude é decorrente da absor-ção, da entrega, da liberdade associada aocomprometimento do indivíduo, do significadoque possui para ele a atividade que está sepropondo a realizar. Assim, a ludicidade secaracteriza como uma atitude das pessoas enão inerente a algo ou alguém. Também nãopoderá ocorrer,se mediante atitudes impositi-vas, rígidas, que negam a espontaneidade, e orespeito às diferenças. Essa definição encon-tra-se embasada nas discussões e estudos re-alizados pelos membros do GEPEL, a partirdo trabalho de Cipriano Luckesi (2000; 2002).O autor define a ludicidade a partir de umponto de vista interno e integral do sujeito. Essaplenitude poderá ser vivenciada com a presen-ça da espontaneidade, da flexibilidade e, nes-se sentido, proporciona prazer e significado

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para os seus participantes. Essa compreensãopode ser esclarecida a partir de Cipriano Lu-ckesi (2000), quando assinala:

Enquanto estamos participando verdadeiramen-te de uma atividade lúdica, não há lugar, na nos-sa experiência, para qualquer outra coisa, alémdessa própria atividade. Não há divisão. Esta-mos inteiros, plenos, flexíveis, alegres, saudá-veis. Poderá ocorrer, evidentemente, de estar nomeio de uma atividade lúdica e, ao mesmo tem-po, estarmos divididos com outra coisa, mas aí,com certeza, não estaremos verdadeiramenteparticipando dessa atividade. Estaremos com ocorpo aí presente, mas com a mente em outrolugar e, então, nossa atividade não será plena e,por isso mesmo, não será lúdica. (p. 21)

Já atividades lúdicas é expressão que serefere aos jogos, às brincadeiras, às festas. Sãoassim denominadas por possibilitarem a mani-festação do elemento lúdico, no entanto, escla-reço que a ludicidade não se apresentasomente nessas atividades, pois ela pode en-contrar-se presente em diferentes momentos davida humana, seja individual ou coletivamente,sem esquecer, ainda, que não é o fato de pro-por uma atividade com jogos ou brincadeiras,por exemplo, que “magicamente” a ludicidadecom suas características estarão presentes.

O elemento lúdico pode encontrar-se pre-sente em diferentes momentos da vida huma-na, seja individual ou coletivamente. Essadiferenciação, trabalhada pelo GEPEL, a partirdas elaborações de Cipriano Luckesi (2000),caracteriza a ludicidade como “fenômeno in-terno, que possui manifestação no exterior” (p.26). Já as atividades lúdicas são concebidascomo formas de manifestação da ludicidadepor trazerem elementos tais como a alegria e aespontaneidade.

As características elaboradas por JohanHuizinga (2000), por Christie (apud KISCHI-MOTO, 1998), Washington Oliveira (2002) emrelação à ludicidade nos fazem perceber queé necessário estabelecer uma relação de res-peito, de confiança entre professor e aluno paraque possa estar presente o elemento lúdico. Sobesse aspectos, a ludicidade é importante por-que é mediante o respeito mútuo, a entrega dosparticipantes, a conquista de uma práxis mais

criativa, envolvente e flexível, que se desenvol-ve o vínculo afetivo entre educando e educa-dor. Esse vínculo é de grande importância nãosomente para a busca de conhecimento, masretroalimenta os participantes do processo en-sino-aprendizagem para que eles continuem adesafiar os problemas que se apresentam nofazer-pedagógico. Isto foi demonstrado pelaProfessora Mariazinha, durante a entrevista:

A gente cria vínculos com os alunos, um vincu-lo de afetividade mesmo. Eu falo muito de vin-culo de afetividade porque, pra mim, mealimenta muito, principalmente com as crian-ças, né? (...) E a gente precisa trocar um poucocom os colegas porque cria um vazio, um senti-mento de incompetência, às vezes, até não ter acerteza do que está fazendo, se está bom ou não.Aí a gente ainda troca com os colegas.

Em relação aos estudos sobre a importân-cia da ludicidade para o desenvolvimento sau-dável da criança, vários estudiosos discutemesse tema, como Simão de Miranda (2001),Janet Moyles (2002) e Adriana Friedmann(1996,) que enumeram diferentes aspectos doser humano que podem ser desenvolvidos pormeio de atividades lúdicas. Simão de Miranda(2001), ao concluir a sua pesquisa sobre o jogoinfantil, resume a importância das atividadeslúdicas em cinco categorias: o cognitivo (lin-guagem, elaboração do pensamento lógico,percepção, abstração), o social (cooperação,interação, auto-expressão, respeito à regra), oafetivo (sensibilidade, estima), o criativo (ima-ginação, criação) e o motivacional (estímulo,alegria, ânimo etc.).

Com base na análise de alguns estudiosossobre o tema, acrescento outras dimensões hu-manas desenvolvidas por meio de um trabalholúdico: contribui para a conquista da autonomia,da independência e da liderança; permite a ex-pressão das emoções e conflitos, auxiliando,assim, o desenvolvimento da maturidade emo-cional; favorece a desinibição. Ao exercer asua ação motivacional, estimula a exploração ea inovação e desbloqueia tensões, medos, poisnão supervaloriza os erros. Ao desenvolver es-ses aspectos, auxilia também no estabelecimentoda autoconfiança.

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A escolha por focalizar esse trabalho nosprofessores deu-se porque considero – mesmosabendo da influência dos pais, da direção e dacoordenação da escola – que eles são os prin-cipais responsáveis pela presença das ativida-des lúdicas nessa instituição. Além do mais,como acentua Miguel Arroyo (2000), “olhar osmestres é o melhor caminho para entender aescola e o movimento de renovação pedagógi-ca.” (p. 12). É esse mesmo autor a afirmar queos/as professores/as são mantidos em segundoplano, como apêndices, um recurso nas pesqui-sas e propostas educacionais, esquecendo quesão eles os responsáveis diretos por qualquertransformação na escola. Portanto, quando merefiro a professor e não educador é, justamen-te, para ficar mais bem delimitado o sujeito destapesquisa, relacionando-o ao local de trabalho,como profissão.

Já sobre o “brincar” infantil, tenho a clarezade que a responsabilidade em relação a sua vi-vência não se restringe ao professor nem à es-cola, mas acredito na importância desse espaçocomo uma possibilidade de vivenciar experiênci-as enriquecedoras que a família, a rua, o traba-lho não têm mais condições de propiciar,principalmente nos grandes centros urbanos.Além do mais, a escola é o espaço primordial, nanossa sociedade, de formação cultural e, portan-to, deve buscar trabalhar com os múltiplos sabe-res que circundam o contexto da criança.

O argumento principal que utilizo para a vi-vência lúdica na escola é embasado na medidaem que cabe ao professor, e não só a ele, atarefa de educar e o fenômeno lúdico é umapossibilidade de tornar esse processo educati-vo mais agradável e significativo. Com isso,atentar para a importância da ludicidade, dasatividades lúdicas na escola, não é contribuirpara sobrecarregar o professor – que de fatovem assumindo muitos papéis que algumas ve-zes lhe são alheios – mas buscar a consecuçãode uma educação mais prazerosa e uma com-preensão da criança como ser indiviso.

Feitas estas observações sobre a escolha dotema e do nível de ensino, considero necessá-rio, também, justificar a escolha pelo estudo dascrenças. A necessidade de aproximar das ques-

tões mais arraigadas dos/as professores/as foipercebida por mim, quando observei que a lu-dicidade e as atividades lúdicas eram valoriza-das no discurso dos/as professores/as, quando,de fato, no seu fazer-pedagógico, elas não seencontram presentes ou, quando utilizadas naescola, perdem muito das suas características.Essa mesma constatação é apresentada porautores como Gisela Wajskop (2001) e NelsonCarvalho Marcellino (1990) dentre outros. As-sim, constatei que, para que esses elementos,por mim considerados importantes na práxispedagógica ,pudessem estar presentes na es-cola e na sala de aula, aproximar-me do/a pro-fessor/a e das suas crenças poderia ser umcaminho ímpar no sentido de melhor poder ana-lisar os porquês da inclusão/não inclusão da lu-dicidade no processo educativo.

Reconhecendo as crenças como uma dasformas de compreender o mundo, é importanteconhecer, analisar e questioná-las, haja vista queas crenças interferem na consecução da reali-dade educacional, porque é a partir destas queos professores julgam, decidem; enfim, vivema sua práxis pedagógica.

Assim, para efeito deste ensaio e diante doreferencial sobre crenças, entendo-as comoformulações simbólicas que nos dão “certezas”subjetivas, pragmáticas, que aparecem, muitasvezes, de forma velada, feitas inconscientemen-te, através de nossas experiências, da rotina detrabalho, da linguagem, dentre outras. As cren-ças determinam o pensamento e a ação do su-jeito e servem como suporte em relação à rea-lidade, ou seja, nos dão segurança, tornando-se,muitas vezes, sólidas e cristalizadas, servindo,assim, de “chão firme”. Isto não quer dizer, noentanto, que não poderão ser modificadas. Comoformas de compreensão e ação no mundo, eladeve ser primeiramente detectada, questiona-da quanto a sua validade, pois a partir dessasações é que poderemos efetivamente sensibili-zar o sujeito que crê, para, posteriormente, con-frontá-lo com os conhecimentos elaborados poroutras áreas, tais como a Filosofia, a Epistemo-logia, a Arte.

Ainda em relação às crenças, opta-se porutilizar os vocábulos convicções e “certezas”

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com o mesmo sentido, diante do seu credo in-tenso, mesmo sem um conhecimento mais sis-tematizado do sujeito que crê.

Enfatizo a noção de que essa análise estácalcada no sentido de compreender as crençasdas professoras dentro de uma cultura, queabrange a cultura escolar e da escola, mas tam-bém da sociedade em geral. Assim, essa inves-tigação também possibilita conhecer um poucoa instituição escolar na sua essência, ao des-cortinar o véu que encobre e naturaliza pensa-mentos, sentimentos e ações cotidianas.

2. INICIANDO A TESSITURA... TRAZEN-DO ELEMENTOS PARA CONSTRUÇÃODA REDE DE CRENÇAS SOBRELUDICIDADE

Esse tópico está organizado em cinco blo-cos, onde serão apresentadas, respectivamen-te, as crenças sobre educação, escola, infância,trabalho docente e, por último, as convicçõesespecíficas sobre ludicidade e atividades lúdi-cas. A estruturação deste estudo com essessegmentos procura analisar o sistema de cren-ças das professoras, de forma a compreenderonde se alicerçam as suas convicções sobre apresença do elemento lúdico na escola. É im-portante dizer, todavia, que a ludicidade e asatividades lúdicas são o eixo central de todasas discussões.

2.1 As crenças sobre educação esua relação com a vivência daludicidade e das atividades lúdicas

As duas crenças a serem discutidas nessebloco se referem à educação: prepara para avida adulta e existe apenas uma cultura que é averdadeira!

A crença de que a educação prepara acriança para a vida adulta é muito comumna posição e nas falas de muitos professores,pais e pessoas em geral. Essa convicção emque se nega o presente, o universo infantil,visando à formação do futuro adulto, consti-

tui-se como um desrespeito à criança e con-tribui para que o processo educativo seja algodesinteressante. Dessa forma, observo que agrande questão da escola é que tudo o que alise realiza é com o objetivo alheio ao presen-te da criança, àquele momento específico.Não se pensa no processo de ensinar, comoalgo importante para o indivíduo naquele mo-mento histórico, mas a preocupação é com oamanhã, especialmente voltado para o mer-cado de trabalho e preparação para o vesti-bular. Sem tirar a relevância desse aspecto,acredito que a escola deve valorizar mais otempo presente, o tempo próprio da escola,com seus objetivos específicos, para essemomento que é único. Como nos diz GeorgesSnyders (1993), a escola deve preencher asduas funções: “... preparar o futuro e asse-gurar as alegrias presentes durante esses lon-guíssimos anos de escolaridade que a nossacivilização conquistou para ele.” (p. 27).Francisco Imbernón (2000) faz uma crítica aessa visão, argumentando que:

Para o senso comum, a educação tende a sercompreendida como preparação para a socieda-de, para a vida adulta, para o trabalho ou paraseguir adquirindo cultura, quando antes de maisnada, como afirma Bruner (1997, p. 31), é umaforma de viver a cultura. A educação preparapara participar do mundo na medida em que pro-porciona a cultura que compõe esse mundo esua história, transformando-a em cultura subje-tiva, o que dá a forma de nossa presença diantedos bens culturais, uma maneira de ser alguémdiante da herança recebida (LLEDÓ, 1998, p. 39).A isso chamamos saber. A qualidade da experi-ência cultural vivida é a preparação mais real quepode e deveria propiciar a educação. (p. 43-44).

Nesse sentido da educação, enquanto umaforma de viver a cultura, argumento que nãopercebi em momento algum a discussão ou qual-quer atividade que abrangesse a cultura negra,muito presente na vida dessas crianças, possi-bilitando que eu sistematizasse outra crença quenomeei: Existe apenas uma cultura que é averdadeira!

A percepção dessa crença ocorreu princi-palmente a partir das aulas de capoeira, minis-tradas por um mestre da comunidade, que

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trabalha voluntariamente há três anos com oseducandos do diurno, realizada de forma estan-que, desgarrada do trabalho pedagógico dasprofessoras. Assim, elas liberam os alunos enão participam nem presenciam as atividades.Dessa forma, não é possível garantir que as pro-fessoras contribuem para o estabelecimento deuma cultura escolar multiculturalista, que, comoargumenta Gimeno Sacristán (1998) como pos-sibilidade dessa instituição realizar “... um pro-jeto aberto, no qual caiba uma cultura que sejaum espaço de diálogo e de comunicação entregrupos sociais diversos” (p. 83).

Apesar das dificuldades encontradas, como,por exemplo, a falta de materiais necessários,ele observa que, ao associar as técnicas de ca-poeira às brincadeiras tradicionais, as criançasestão mais tranqüilas, respeitam mais os cole-gas. Por também ter essa percepção, é queconsidero importante que professoras exerçama sua influência pedagógica nesse momento.

Essa desvinculação do trabalho da capoei-ra realizado pelo mestre e o trabalho do pro-fessor provavelmente ocorre porque existe acrença de que a função educativa do profes-sor se restringe à sala de aula e à transmissãode uma cultura única, a verdadeira, a que cons-ta nos livros.

2.2 As crenças das professorassobre a escola pública e suas con-seqüências para a vivência lúdicanesse espaço educativo

Com esse tópico objetivo sistematizar ascrenças sobre escola e os aspectos a ela rela-cionados e como tais convicções interferem napresença da ludicidade e das atividades lúdi-cas nesse ambiente educativo. Assim, abordoas seguintes crenças:- A escola para as crianças das camadas

populares é importante!- A escola é sufocante!- A profissão de professor é muito exigente!- Não posso fazer nada!- Queria uma sala homogênea!- O tempo da escola deve ser bem utilizado!

Essa última está sustentada em outras quelhes dão suporte: Débora, olha, por favor, apontuação!

Um dos momentos em que observei a pre-sença dessa primeira crença que consiste naimportância da escola para as crianças das ca-madas populares foi quando questionei a Pro-fessora Teresinha – que ensina nas redespública e privada – em qual das duas ela gosta-va mais de trabalhar, e ela respondeu:

A pública. Porque na pública eu acho que ascrianças precisam muito mais de mim, do meuesforço, da minha dedicação como professor.Eu sinto que os alunos da escola particular,independente de mim, eles aprendem muita coi-sa em casa, porque têm acesso a computadores,a livros de literatura infantil, ajuda dos pais ea criança da escola pública, não. Só tem essaoportunidade aqui comigo, durante essas qua-tro horas. Se eu não souber aproveitar será umprejuízo pra elas.

A análise da crença da Professora Teresi-nha em relação à importância da escola paraas crianças das camadas populares está alicer-çada na visão de que os pais e o meio social deonde elas provêm não são adequados para asua formação.

A segunda crença apreendida diz que a es-cola é sufocante. Faz referência tanto ao posi-cionamento das professoras em relação aoespaço físico quanto ao sentimento delas frenteà profissão que exercem e a todo o seu fazer-pedagógico. Nesse sentido, as professoras tam-bém se referem à presença desse sentido dedesânimo perante a escola por parte dos alunos.

Muitos são os fatores enfrentados diariamen-te pelos professores/as que fazem com que sin-tam a escola como um lugar desgastante quedesencadeia uma “falta de energia”. Ao serquestionado sobre o que causa esse esvazia-mento, Mariazinha explica:

Esvazia porque a gente cuida demais e não écuidada. Acho que basicamente é isso. A gentese dedica muito. A gente cria vínculos com osalunos, um vinculo de afetividade mesmo. Eufalo muito de vinculo de afetividade porque,pra mim, me alimenta muito, principalmentecom as criança, né? E por exemplo, com as cri-anças menores, que não tem colaboração das

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famílias, às vezes é muita sobrecarga pra genteadministrar as questões das crianças peque-nas que, na verdade, deveriam ser administra-dam junto com a família. Aí eu sinto que a gentese esvazia bastante com isso. E a gente precisatrocar um pouco com os colegas porque criaum vazio, um sentimento de incompetência, àsvezes até não ter a certeza do que está fazendo,se está bom ou não. Aí a gente ainda troca comos colegas.

Em relação ao vínculo afetivo que Mariazi-nha declara ser um dos motivos do esvaziamentoda relação com a profissão docente, Wander-ley Codo e Andréa Gazzotti (1999) declaramque a concretização da ligação afetiva estabe-lecida entre educando/a e educador/a ocorreparcialmente, pois as crianças não permanecemo tempo inteiro na escola; além do mais, as ta-refas escolares requerem a obediência a algu-mas regras (p. 57).

Essa constatação de esvaziamento relativaà escola também ocorre para os professores,porque esse espaço é visto como o lugar dodever, da obrigação, sendo as alegrias desloca-das para outros ambientes. Esse sentimento detristeza, de desesperança, de estrangulamentoque acomete as professoras e os professores éresultado da fragmentação do seu trabalho, dosentimento de alienação ocasionado pela super-valorização do conteúdo, da racionalidade téc-nica do seu trabalho que os transforma emsimples executores, contribuindo para a elabo-ração de um conhecimento utilitário e funcio-nal, ocasionando, ainda, essa falta de prazer ede reconhecimento no trabalho que executa.

Quanto a esse sentimento de desprazer emrelação aos alunos, constato que, mesmo sa-bendo que na Educação Infantil as crianças nãovivenciam adequadamente atividades prazero-sas, é ao ingressar no Ensino Fundamental queelas são mais requeridas a priorizar o racional ea serem introduzidas nas noções de disciplina,obrigação, responsabilidade, exercícios. Sobreisso Nelson Carvalho Marcellino (2003) nosafirma que

Antes, havia a possibilidade de vivências praze-rosas, sem compromissos, e o tempo mágico dasbrincadeiras estava ao alcance das nossas mãos;agora, a obrigação sistematizada introduzia o

tempo do relógio e o “dever de casa” invadia oreino encantado, o reino do lúdico. ParodiandoAlthusser, podemos dizer que a infância é hoje operíodo da vida em que se fica entalado entre aobrigação e o prazer, entre o reino da escola e oreino do lúdico. E a nossa conformação socialtende a nos empurrar cada vez mais para dentrodesse reino escola, onde imperam os valores dasociedade neoliberal: racionalidade, produtivi-dade, eficiência, eficácia, competitividade, suces-so financeiro. (p. 18).

Desta maneira, entendo que a cada nível quea criança evolui dentro da escola, a idéia deobrigação vai se tornando mais complexa e apossibilidade de vivências lúdicas vai ficandomais escassa. A escola, com esse posiciona-mento, contribui para que, cada vez mais cedo,as crianças neguem a sua infância e sejam in-corporadas ao mundo adulto.

Diante da convicção de que a escola é su-focante, outra crença se apresenta: a que en-tende que a profissão de professor é muitoexigente. Alguns motivos que sedimentaramessa crença foram apontados durante a pes-quisa, em especial, durante a entrevista: a bai-xa remuneração; a característica de “monodo-cência” do/da professor/a das séries iniciais, queexige que ele/ela tenha domínio das diferentesáreas etc. Apesar dessa exigência e de outrasdificuldades enumeradas pelas professoras,entretanto, elas também apresentaram aspec-tos positivos referentes à profissão docente.Diante das dificuldades encontradas para a re-alização do trabalho pedagógico, todas as pro-fessoras apresentaram essa crença.

Compreendo que não é somente o fato deter que trabalhar com diferentes áreas que so-brecarrega o/a professor/a das séries iniciais,mas também a sua posição diante do seu fazerpedagógico. Nesse sentido, cabe a citação deJanet Moyles (2002), quando expressa que:

Se o papel é visto como o de instrutor, os profes-sores precisam “instruir” ou ensinar alguma coi-sa diretamente para todos, todos os dias – umatarefa muito difícil. Mas se o papel do professoré o de iniciador e mediador da aprendizagem, e ode provedor da estrutura dentro da qual as cri-anças podem explorar, brincar, planejar e assu-mir a responsabilidade, esta abordagem certa-

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mente libera os professores para passar mais tem-po com as crianças. O professor se torna umorganizador efetivo da situação de aprendiza-gem, na qual ele reconhece, afirma e apóia asoportunidades para a criança aprender à sua pró-pria maneira em seu próprio nível e a partir desuas experiências passadas (conhecimentos pré-vios). (p. 101).

Pela análise dessa citação, mesmo reconhe-cendo as inúmeras atribuições das professoras,percebo que outra atitude poderá ser tomadadiante do exercício da profissão docente, de umaforma que se torne menos desgastante e maisproveitosa para educandos e educadores.

Entendo, ainda, que o sentimento de insatis-fação das professoras está ligado a outra cren-ça: Queria uma sala homogênea! Quando merefiro a essa crença, estou expressando tanto odesejo das professoras de que todos os alunosse comportem e aprendam igualmente, tendoos “melhores” alunos como parâmetro, quantoà crença de que, independentemente do con-texto socioeconômico e histórico, as criançasdevem se comportar da mesma forma.

No que se refere à discussão sobre o tempoda/na escola e a influência deste na vivência daludicidade e das atividades lúdicas na escola,sistematizei a crença o tempo da escola deveser bem utilizado. Tal convicção encontra-sealicerçada em outras assim descritas:

No que tange à crença de que o tempo daescola deve ser bem utilizado, observo que assuas compreensões dizem respeito ao fato deque só é bem utilizado o período escolar se fordirigido ou relacionado para o ensino ou avalia-ção dos conteúdos. Qualquer atividade que fujadesse terreno é considerada “perda de tempo”,“momento roubado ao ensino”, como nos afir-ma Miguel Arroyo (2000). É possível identifi-car, na citação de Regina Leite Garcia (2000),a mesma compreensão de Miguel Arroyo,quando expressa que para os professores:

... tudo o que não seja aula formal na sala deaula, com trabalho no quadro, livro aberto, mui-to dever de casa e avaliação “muito severa”, éperda de tempo, num mundo tão competitivo,em que é preciso aproveitar o tempo, ao máximo,na corrida para o sucesso. Recreio, aula de arte,aula de educação física, qualquer atividade fora

da sala de aula, tudo é perda de tempo, na avali-ação do Banco Mundial, de onde emanam todasas diretrizes da Educação Brasileira hoje. (p. 7-8)

Vale a pena chamar a atenção para o fatode que o controle do tempo na escola não inco-moda somente os educandos, mas também asprofessoras. A este respeito, considero ilustra-tiva a fala da Professora Mariazinha:

Outro entrave é o tempo pedagógico, a exigên-cia desse tempo pedagógico, que a gente temque ficar, como é que eu digo (pausa) tem umarigidez nesse tempo pedagógico de sala de aula,de conteúdo. É uma coisa, assim, meio que me-cânica mesmo no trabalho com os alunos. É umaexigência acima da gente e aí eu acho que faltaum coordenador pedagógico, também, para ori-entar essa divisão desse tempo, de tal forma queas crianças possam ter recreação, possa partici-par de jogos, possam até ter outra pessoa nasala que divida com o professor ou que conteuma historia, ou dê aula de matemática.

Essa constatação de Mariazinha em rela-ção à rigidez demonstra como a escola estáorganizada segundo uma lógica mercadológica,onde o tempo é algo que determina, sufoca einibe a presença de atividades prazerosas noespaço escolar. Nesse caso, o tempo e as ativi-dades escolares estão organizados de forma aatenderem às necessidades do capital, da qua-lificação para o trabalho.

A Professora Mariazinha é quem nos trazoutra denúncia (em sua autobiografia), em re-lação à vivência da ludicidade na escola, noque se refere ao tempo:

As condições para que as crianças possam brin-car na escola (em algumas escolas por ondepassei) estão “escondidas” Não há uma cultu-ra que considere o tempo da brincadeira, comotempo pedagógico e que seja valorizado comotal. As crianças não têm, ou melhor, não pro-porcionamos às crianças a criação do hábitode brincar, temos dificuldade de oferecer alter-nativas, falo do coletivo das escolas.

A partir dessa constatação, explano sobre omedo evidenciado por muitos/as professores/as de serem considerados/as irresponsáveis eincompetentes na sua tarefa de educar pelo fatode utilizarem atividades lúdicas em sala de aula.Essa idéia será modificada quando forem re-

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vistas as crenças sobre escola, aprendizagem eatividades lúdicas e quando as professoras e osprofessores estiverem mais embasados em re-lação à presença do fenômeno lúdico na edu-cação escolar.

Enquanto estiver presente na escola a cren-ça de que o tempo deve ser bem utilizado semque haja uma reflexão sobre os resultados for-mativos das crianças, ela continuará sendo umlocal desinteressante para os estudantes e, aomesmo tempo, para os professores, pois a rea-lização de atividades mecânicas, repetitivas econtroladas não confere prazer a ninguém.

Outro aspecto que percebi em relação aotempo e às atividades lúdicas é que as profes-soras, geralmente, só permitem às crianças brin-carem ou desenharem quando resta um tempopara que seja indicado o momento de términodas aulas. A essa crença chamei de Eu utilizojogos e brincadeiras para preencher o tem-po! A fala de Cândida é representativa dessacompreensão:

Eu deixo eles brincarem na sala, geralmente,dia de sexta-feira, depois do recreio e no re-creio ou então quando falta pouco tempo praacabar e eu já acabei tudo, já venci o dia, aí eudeixo. Deixo brincar com as cards deles.

É no sentido da desvalorização das ativida-des espontâneas das crianças que apresento acrença relacionada ao tempo, a qual sucintamenteexpressa que o recreio não tem valor educati-vo. Essa crença foi percebida, explicitamente,em Margarida, Cândida e Teresinha. Essa con-cepção compreende que o recreio é o momentoem que as crianças podem extravasar suas ener-gias e depois, mais acomodadas, vão assistir àsaulas. Nelson Marcellino (1990) anota haver sidonessa perspectiva que as atividades recreativasforam introduzidas na escola.

O recreio possui, ainda, na concepção dasprofessoras e professores, o caráter de lazer(recompensa) do que propriamente de manifes-tação lúdica (espontaneidade, alegria, prazer,criatividade etc.). Nessa perspectiva de recom-pensa, também detectei outra crença que de-nominei Só brinca quem fizer tudo direitinho!A Professora Teresinha falou que, às vezes,deixa sem recreio as crianças que não se com-

portam devidamente ou não fazem os exercíci-os. É nessa perspectiva que subliminarmenteaparece a idéia de descanso como prêmio di-ante de um exercício realizado.

Diante das crenças agrupadas nesse tópico,observo como essas contribuem para delinearo que chamamos escola, por meio das suas in-terpretações e atitudes. Dessa forma, as con-vicções interferem na formulação da cultura daescola, através de seus discursos e práticas,como também são feitas dentro dessa cultura,mesmo que nunca cheguemos a disso nos darconta. Recorro a Miguel Arroyo (2000) quan-do diz:

Certezas múltiplas protegem nossas tranqüilida-des profissionais. Vêm do cotidiano. Dão a se-gurança necessária para repetir ano após anonosso papel. São os deuses que protegem a es-cola e nos protegem. Não constam em tratadosde pedagogia, nem nos regulamentos, nem nosfrontispícios das escolas. São certezas que nãose discutem, tão ocultas no mais íntimo de cadamestre. Não afloram. Tão inúmeras que não dápara contá-las nas pesquisas. São nossas certe-zas. Garantem velhas seguranças. Com um ter-mo mais na moda diríamos que essas certezassão a cultura escolar, a cultura profissional. Sãonossas crenças e nossos valores. Não se discu-tem, se praticam com fiel religiosidade. (p. 171)

É importante questionar, no entanto, até ondeessas “certezas” contribuem para tornar esseambiente educativo mais prazeroso para edu-candos e educadores. Nesse sentido, a escolaé vida, formada por seres humanos que dese-jam e que se decepcionam; que se alegram ese frustram. Refletir sobre essas crenças podeser um caminho para a presença da ludicida-de na escola e, talvez, até um pouco na nossavida fora dela. Trazer para a escola os elemen-tos lúdicos da cultura é preparar uma práxispedagógica que realça a identidade de cadasujeito, de sua comunidade. É possibilitar a cadacriança conhecer, mediante as manifestaçõeslúdicas, a singularidade das danças, dos jogos,dos folguedos, dos brinquedos, das músicas dasua região, mas também de outros povos, cul-turas diversas, vivenciando as diferenças e assemelhanças.

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Essa visão da escola é ainda mais contin-gente quando voltada para a educação das cri-anças das camadas populares. Autores comoNelson Marcellino (1990), Miguel Arroyo(1991), Gisela Wajskop (1995) e Gilles Brougè-re, (1998) entendem que as crianças das ca-madas populares não encontram nas escolaspúblicas a mesma freqüência de atividades pra-zerosas como as crianças que vão às escolasparticulares. Essa denúncia é grave e necessi-ta um cuidado mais atento à visão de escola ecriança que vigora nas escolas públicas.

2.3 Discutindo as crenças das pro-fessoras sobre seus/suas alunos/as: outra forma de conhecer as suasconvicções diante ludicidade edas atividades lúdicas

Com essa discussão objetivo analisar as cren-ças das professoras sobre infância, em especi-al a respeito das crianças das classes populares,buscando demonstrar como essas crenças in-terferem na vivência da ludicidade e das ativi-dades lúdicas na escola que atende às camadaspopulares e no seu papel como educadoras.Dessa forma, está sistematizada seguindo adescrição e análise de cinco crenças básicas:Como são carentes! As crianças da escolapública são muito violentas! As crianças dascamadas populares não valorizam a escola!Os alunos têm que ficar quietos! Elas sógostam de brincar! Eu não sei ensinar brin-cando! As crianças aprendem melhor brin-cando!

Conhecer as convicções que as professo-ras constituíram sobre seus/suas alunos/as éimportante para este estudo porque entendo queé a partir delas que esses profissionais se posi-cionam frente à ludicidade e às atividades lú-dicas. É válido dizer que essas crenças tambéminfluenciam na auto-imagem que as criançasfazem e na elaboração de propostas educacio-nais para essas crianças.

A primeira crença sobre infância, que foiobservada em todas as professoras, foi a quedenominei como são carentes! A carência é

vista em diferentes aspectos, todos eles relaci-onados ao déficit de aprendizagem nutricional,cultural e afetiva. O fato de as crianças com asquais trabalham serem moradoras de bairropopular e pertencerem à classe social menosfavorecida torna essa crença ainda mais robusta.No que se refere a essa convicção, foi interes-sante observar que todas as professoras pes-quisadas se ativeram aos fatores extra-escolarescomo causadores de carência e, em especial,aos aspectos familiares.

Outra crença que também merece atenção,especialmente nos dias atuais, em que a rela-ção professor-aluno tem sido um dos principaisproblemas enfrentados pelos docentes, diz res-peito à convicção de que as crianças da esco-la pública são muito violentas. Percebi issoem Cândida, Teresinha e Margarida, como umainterferência na relação que as professoras es-tabelecem com as crianças das camadas popu-lares, influenciando para que a ludicidade e asatividades lúdicas não se encontrem presentesna sala de aula nem na escola. Assim como nacrença anterior, essa compreensão demonstraa responsabilidade da família em relação aocaráter “violento” das crianças. Acreditar queas crianças das camadas populares são violen-tas interfere negativamente para a vivência lú-dica na escola freqüentada por essa parte dapopulação.

Similar a desvalorização da escola. Tambémpercebi uma outra convicção que compreendeque as crianças das camadas populares nãovalorizam a escola. Essa convicção esteveevidente em Margarida e Teresinha, quandocomparam as crianças da escola pública e daescola privada: o comportamento e a aprendi-zagem delas, além da forma de acompanha-mento dos pais.

Diante da afirmativa de que as crianças eseus pais não valorizam a escola, questionei aMargarida o que diferencia as crianças da es-cola pública e da escola particular e ela respon-deu:

A cobrança é maior. Eu acho que tem a cobran-ça dos pais que pagam, eles cobram mais por-que eles estão pagando e querem ver retorno. Eaqui na escola pública, não. Eles não cobram,

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eles não ajudam a gente a fazer um trabalho,tem que ter continuação. Aqui a gente passaum dever de casa e os alunos não fazem. Já oaluno da escola particular, não. Eu acho queos pais cobram muito porque eles estão pagan-do. Eu acho que os pais que colocam os filhosnuma escola particular, têm outro conhecimen-to, tem outra educação, sabe?! Os pais aquibotam os meninos pra estudar porque preci-sam, mas vê que não é importante. Já os meni-nos da escola particular, ele sabe que éimportante estudar e ter uma profissão, paraeles é a coisa mais importante que qualqueroutra coisa poder ter uma profissão. (...) Paramim, é essa a diferença.

Em relação a essa comparação entre os alu-nos e os pais da rede de ensino pública e priva-da, Gimeno Sacristán (1996) nos chama aatenção para a noção de que:

... essa comparação da qualidade do sistemapúblico com a do privado desconsidera duaspremissas metodológicas básicas: as condi-ções socioeconômicas e culturais dos alunosdos dois sistemas; os objetivos educacionais,assim como as condições materiais, humanas,técnicas e metodológicas dispostas para a suaconsecução. (p. 128)

Ainda nesse sentido, Vera Corrêa (2000)salienta que a escola particular não é melhor,mas que o seu ensino é “adequado” a uma de-terminada classe social. Assim, a baixa quali-dade da escola pública, entre outras questões,decorre do fato de ela não se adaptar à classesocial que a freqüenta, majoritariamente, as clas-ses populares. Diante disso, justificam-se mui-tas das dificuldades encontradas pelos alunosdas classes minotirárias na sua formação esco-lar. A noção de desinteresse dos pais e das cri-anças das camadas populares traz a dificuldadeem aprender no campo individual e não no so-cial. Não se questiona, por exemplo, sobre ofato de que os conhecimentos que a escola va-loriza não fazem parte da realidade cotidianadessas crianças; ao contrário, nega-se a suarealidade, objetivando inculcar-lhes outros co-nhecimentos considerados singulares e verda-deiros. É necessário olhar com maior atençãoa esse desinteresse das camadas populares àescola. Régine Sirota (1994) contribui nesse

sentido, ao expressar que a frágil participaçãode crianças de classes populares na escola nãosignifica desinteresse ou desinvestimento emrelação à escola primária, mas uma atitude re-ativa de defesa diante de uma situação contra-ditória. (p. 106)

Essa desvalorização da escola também ésentida pelas professoras, em cuja avaliação ascrianças não se comportam como deveriam.Esse problema, no entanto, se agrava, aindamais, porque existe nesses profissionais a con-vicção de os alunos têm que ficar quietos.Essa crença é tão presente que foi manifestapor todas as professoras, com exceção de Ma-riazinha.

Iniciarei a discussão dessa crença abordan-do o papel passivo das crianças de forma maisgeral e demonstrarei como essa crença se ma-nifesta frente à vivência lúdica na escola. Con-sidero interessante trazer nessa seção uma falada Professora Margarida, em que esta convic-ção aparece com muita clareza:

Não sei se é porque eu cobro muito de mim, euacho que eu deveria ter uma aula assim, comtodos alunos sentadinhos, ninguém levantas-se, ficassem só ouvindo. Eu acho que eu souincapaz de dominar a classe, me sinto fraca,apesar de que eu vejo que às vezes..., eu vejoque a falha não é minha, sabe, mas eu queriater uns alunos sentadinhos, bonitinhos pra tudoque eu pudesse ensinar, sem dificuldades.

Com a crença tão arraigada de que os estu-dantes têm que assumir atitude passiva, não édifícil perceber que as atividades lúdicas na es-cola e, em especial, na sala de aula, estão au-sentes, mas, quando são utilizadas, sãoescolhidas atividades em que requeiram ummínimo de movimento por parte das crianças.Mais uma vez, usando como exemplo a fala daProfessora Margarida, quero assinalar que apresença da ludicidade em sala de aula temrelação direta com a nossa compreensão, sa-beres e crenças sobre a criança:

Deixo. Eles brincam muito, às vezes quando euchego eu dou um tempinho pra eles conversa-rem, botar os assuntos em dia, principalmente,segunda-feira. Agora, sem correrem, para evi-tar está correndo e se baterem um no outro.

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Mas quando eu vejo, estão correndo, se baten-do. Eles não têm educação pra sentar e conver-sar, brincar. (...) Conversam entre si, não a salatoda; conversam comigo. Eu pergunto como foio final de semana, se foram passear. (entrevista).

Diante da dificuldade de alguns profissio-nais em lidar com a dinâmica das crianças, umaposição assumida por aqueles que buscam in-cluir as atividades lúdicas na sua prática peda-gógica é extrair dessas atividades qualquerpossibilidade de movimento e expressão dascrianças.

Não é somente a bagunça, incitada pelasatividades lúdicas em si, que incomoda as pro-fessoras, mas sim o fato de elas não saberemcomo “controlar” a turma nesses momentos, eo controle, como já discuti, é algo muito valori-zado pelas professoras. Nesse sentido, a Pro-fessora Cândida nos dá o seu testemunho:

Pra eu trabalhar da forma que eu trabalho naescola, assim, eu acho que, como eu te falei,da minha preocupação de está controlando aturma, algumas vezes eu faço uma dinâmica,brincadeiras e tal em sala, mas eu não voudizer que eu faço sempre. Isso! Então, o fatoda turma ser assim, eu trabalho poucas dinâ-micas mesmo.

Com isso, observo que ainda se encontrapresente em algumas professoras a crença deque o processo de aprendizagem ocorre maiseficazmente no silêncio e na passividade do queno movimento e na interação. Diante essa con-vicção, compreendi a resistência das professo-ras às atividades lúdicas, pois elas tambémcrêem que as atividades lúdicas geram ba-gunça. Essa crença busca justificar a resistên-cia das professoras às crianças vivenciaremjogos e brincadeiras na escola e na sala de aula,especialmente se a sua presença for em umasala com muitos/as alunos/as.

Em relação à disciplina, Johan Huizinga(2000) nos possibilita discordar da crença dasprofessoras de que atividades mais dinâmicasproduzem bagunça, ao demonstrar que, para apresença do elemento lúdico, é necessário quehaja a ordem. Essa não é concebida como obe-diência cega, repressora e arbitrária, mas comoelaboração coletiva para o bom encaminhamen-

to do que se propõe a realizar. Miguel Arroyo(2000) observa que:

Manter os alunos silenciados é a negação deuma matriz educativa elementar: só há educaçãohumana na comunicação, no diálogo, na intera-ção entre humanos. Escola silenciosa é a nega-ção da vida e da pedagogia. No silêncio osalunos poderão aprender saberes fechados,competências úteis, mas não aprenderão a se-rem humanos. Não aprenderão o domínio dasmúltiplas linguagens e o talento para o diálogo,a capacidade de aprender os significados dacultura. (p. 165)

É possível observar que a preocupação coma desordem se encontra muito evidente emMargarida, quando justifica por que não estãopresentes as atividades lúdicas no seu trabalho:

Eu faço muito pouco. Eu evito muito por causada bagunça que eles fazem muito. (...) Eu achoos jogos importantes, apesar de não fazer qua-se jogos com eles. Mas eu acho importante. Nãotenho paciência, às vezes, eu começo a quererfazer um jogo com eles, mas aí, bagunça tudo e,eu paro.

Essa falta de paciência a que Margarida serefere é oriunda da crença sobre o processopedagógico em que qualquer movimento da cri-ança é tipo como desrespeito e incômodo. Nessesentido, Cipriano Carlos Luckesi (2000) afirmaque “A atividade lúdica, por si, é ação, e, comotal, implica em movimento, e, como tal, implicaem movimento, em produção. Na medida emque agimos ludicamente, criamos nosso mundoe a nós mesmos de forma lúdica.” (p. 26).

A discussão das convicções que crêem nopapel passivo do aluno e de que o elemento lú-dico na sala de aula rompe com essa passivida-de é relevante para compreender a resistênciadas professoras a um trabalho sedimentadonuma perspectiva lúdica.

Julgo que o interesse das crianças por ativi-dades mais dinâmicas a elas incomoda por me-xerem com suas crenças sobre o ensino emostrarem a necessidade delas assumirem ou-tra atitude diante da práxis pedagógica.

Sobre a dificuldade das professoras emlidar com esse encantamento das crianças pe-las atividades mais dinâmicas, especialmente

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com as atividades lúdicas, Giovanina Olivier(2003) assinala que “A especificidade da infân-cia, que é justamente a possibilidade de viven-ciar o lúdico, é ignorada em prol da disciplina,do esforço, da aquisição de responsabilidades ede outras funções.” (p. 19).

A constatação de que a criança e as ativi-dades lúdicas não são valorizadas na escola ena sociedade se agrava, por que tais atividadessão voltadas para as crianças das camadas po-pulares. Essa visão sobre a criança pobre e quereflete na sua vivência lúdica tem origem des-de Froebel (apud KISCHIMOTO, 1998). Esseimportante estudioso do brincar, que defendeuo brincar livre da criança, acreditava que ascrianças pobres precisam de maior orientação,direção, controle e disciplina. (p. 30).

Noto que existe uma crença em relação aodesejo (e ao merecimento) de brincar que dife-rencia as crianças mais pobres das demais. Ascrianças das camadas populares não teriam o“comportamento” necessário para brincar. Ain-da em relação à vivência das atividades lúdi-cas, Tizuko Kischimoto (1993), na sua análisehistórica dos jogos, acentua que “As imagensde criança elaboradas por diversos segmentosda sociedade brasileira são responsáveis pelaspercepções coletivas que traduzem perfis dis-tintos para a criança pobre e rica, favorecendoou cadastrando o direito de brincar” (p. 96).Essa concepção é discutida por Paulo NunesAlmeida (2000), quando verifica que

Enquanto para uma classe social privilegiada oconhecimento fornecido pela escola se caracte-riza muito mais pelo jogo (condições normais enaturais de aprender), à classe menos favoreci-da o trabalho-jogo torna-se tão distante da reali-dade que leva os alunos ao desprazer, ao penoso,conseqüentemente ao fracasso, ao abandono eà reprovação em massa. (p. 61)

São posições discriminatórias que fazem comque as crianças das camadas populares, mes-mo sabendo que a escola é necessária, não sin-tam prazer em freqüentá-la, originando osentimento de que ir à escola é algo imposto echato. Concepções como essa inviabilizam apresença da ludicidade na escola, pois, paraque os sujeitos do processo pedagógico este-

jam envolvidos, é necessário que sejam respei-tados, não somente como aprendizes, mas comoseres humanos, que vivem em um contexto so-ciocultural específico. Conhecer as possibilida-des e limites concretos das crianças dascamadas populares é contribuir para a sua for-mação como sujeitos humanos, que devem serrespeitados e educados da melhor maneira.

A análise das crenças das professoras so-bre as crianças das camadas populares me per-mite constatar a força que essas convicçõesexercem sobre a prática pedagógica dessasprofissionais, inclusive dificultando a vivênciada ludicidade e das atividades lúdicas. Nessesentido, Miguel Arroyo (2000) assinala que:

Sem mexer nos valores, crenças, auto-imagens,na cultura profissional, não mudaremos a cultu-ra política excludente e seletiva tão arraigada emnossa sociedade. É a modernidade conservado-ra e o credencialismo democraticista que se con-tentam com a reciclagem dos mestres, a lubrifi-cação da função seletiva e excludente, arelativização do direito à educação e à cultura.Se contentam com limpar as artérias entupidasda escola, facilitando os fluxos escolares, res-peitando os ritmos diversos. O democratismoconservador não vai mais longe. (p. 177).

Mesmo não demonstrando uma boa aceita-ção ao interesse das crianças pela brincadeira,as professoras também crêem que as crian-ças aprendem melhor brincando. Essa foiuma frase que apareceu durante a entrevistade todas as professoras entrevistadas. No quese refere a Margarida e Teresinha, mesmo sa-bendo que, em nível de conhecimento teórico,ambas são as que menos mostraram embasa-mento sobre educação, essa afirmação sobre oprocesso de aprendizagem das crianças é frutode teorias, com as quais elas, em algum mo-mento, tiveram contato. Ouso ainda grifar que,embora elas saibam que as crianças aprendemmelhor brincando, tal constatação não interfereno fazer pedagógico que elas realizam, pois nãopautam o seu trabalho pela via da ludicidade.

Tal constatação em relação à aprendizagemdas crianças faz surgir um dilema nas profes-soras, pois elas também percebem a sua defici-ência em ensinar com base na prática de

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ludicidade. Essa comprovação das professorasMargarida e Cândida constitui uma crença quedenominei Eu não sei ensinar brincando! Essacrença não se refere somente às atividades lú-dicas, mas também a um trabalho que tenha ospressupostos da ludicidade. Essa deficiênciaé originada nos cursos de formação que elasfizeram. Vejamos como Margarida se expres-sa sobre esse assunto:

Eu acho que na minha formação de magistério,eu não tive aquele negócio de trabalhar, ensi-nar brincando, eu não tive.

A dificuldade que o/a professor/a tem emorganizar sua práxis pedagógica pela via da lu-dicidade ocorre também porque a sua forma-ção – incluindo todo o processo e não somenteos cursos de formação de professor – não lheconfere o ensejo de vivenciar atividades quetenham esse caráter. Geralmente, entretanto,esses cursos ensinam e solicitam que esse pro-fissional estabeleça a sua práxis pautada nasteorias de conhecimento que defendem o edu-cando como ser ativo e, também, que utilize asmanifestações lúdicas no processo de ensino-aprendizagem. Assim como a criança precisado adulto para ter acesso ao acervo lúdico dis-ponível na cultura, os futuros professores, quese encontram em formação, também necessi-tam vivenciar a importância dessas atividadesna condição de alunos.

Acredito que a presença da ludicidade napráxis do professor é muito mais do que a ado-ção de uma nova técnica de ensino. É, especi-almente, a adoção de uma nova atitude emrelação ao seu trabalho, aos sujeitos que deleparticipam. A escolha de uma posição que pri-vilegia a visão mecânica, fechada, postulada naracionalidade técnica ou em dimensões maisprazerosas, mais fluídas e expressivas do seufazer pedagógico são escolhas que, embora nãosendo somente uma opção racional, dependemmuito do próprio sujeito.

É importante mencionar, também, que, aobrincar com as crianças o professor não estásomente contribuindo para a formação da cri-ança, mas também proporcionando a si próprioentrar em contato, através da memória, com as

suas experiências culturais, positivas e negati-vas, as quais têm sua fonte no pessoal e no so-cial. Essa possibilidade não tem em si um carátercompensatório, pois acredito que a forma devivenciar a ludicidade na infância não é amesma no indivíduo adulto, haja vista que osreferenciais que os dois trazem em si são dife-renciados, mas talvez ajudem o adulto, ao co-nectar o passado e o presente, a estabeleceruma relação mais prazerosa com as crianças econsigo próprio.

2.4 Trabalho docente e vivêncialúdica na escola: que crençaspermeiam o que fazer pedagógi-co das professoras?

Neste tópico objetivo analisar as crenças dasprofessoras sobre a sua função docente, emespecial, nas séries iniciais, compreendendo adiscussão sobre o trabalho educativo, a especi-ficidade desse profissional e o seu papel frenteà ludicidade e às atividades lúdicas. Procuro,ainda, demonstrar que uma atitude lúdica doprofessor contribui para a realização de um tra-balho de qualidade na busca da formação hu-mana.

Um aspecto relevante em relação ao pro-cesso formativo e às crenças foi apresentadopela Professora Margarida, quando questioneia relação entre o seu fazer pedagógico e o cur-so de magistério que fez. Sobre isso ela relata:

Tudo que eu faço hoje, eu aprendi ensinando,perguntando aos colegas, por mim mesma, nãoo que eu aprendi no magistério.

Essa constatação de Margarida é de gran-de importância para o estudo das crenças, poiscomo já mostrei ao enumerar algumas caracte-rísticas das convicções, a escola é um espaçoformativo de grande importância para o/a pro-fessor/a, inclusive se tornando mais decisivo nasatitudes assumidas por eles/as em salas de au-las do que nos cursos de formação, como cons-tatam Ana Maria Sadalla (1998), Rita de C. Silva(2000), Maurice Tardif (2002) e Philippe Per-renoud (2001,) dentre outros. Assim, as esco-

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las onde esses/as profissionais atuam e as suassalas de aula devem ser entendidas como es-paço de formação para o qual convergem re-produção e inovação. Como constatam ManuelJacinto Sarmento (1994) e Rita de C. Silva(2000), porém, é mais preponderante a repro-dução, inclusive com forte influência dos pro-fessores antigos sobre os iniciantes, fazendocom que, aos poucos, os seus ideais e conheci-mentos sobre o ensino, aprendidos nos cursosde formação, sejam substituídos pela rotina epelo tradicionalismo. Esse “rito de passagem”,como denomina Manuel Sarmento (1994), ocor-re, principalmente, porque o jovem professor éobrigado a enfrentar uma escola fechada, do-minada pela burocracia, hábitos, e que é resis-tente às inovações pedagógicas.

Nesse momento, acredito que as crenças dosprofessores se tornam mais fortes, pois, ao per-ceberem que alguns conhecimentos obtidos noscursos de formação não resolvem os proble-mas mais emergenciais, recorrem ao períodoem que eram alunos/as, quando, na sua per-cepção, as coisas davam certo – especialmen-te quando se trata das questões referentes àdisciplina e aprendizagem – ou eram mais fá-ceis para o educador.

Com base nos recursos metodológicos utili-zados, detectei as seguintes crenças: Ser pro-fessor é como se fosse mãe! Professor clareiacaminhos! A gente transmite conteúdos!

A análise dessas convicções nos faz com-preender a necessidade de uma redefinição daprofissionalidade docente, em que os/as profes-sores/as adotem novas atitudes individuais ecoletivas, abdiquem do caráter de sacerdócio eassumam o caráter profissional do seu ofício,incorporando não somente aspectos racionais,baseados no Iluminismo, mas também afetivos,corporais, artísticos dentre outros.

A crença a gente transmite conteúdos de-monstra o caráter reducionista do papel forma-tivo do professor e interfere na vivência daludicidade e das atividades lúdicas na escola.Enfatizo que essa transmissão está atrelada e,na maioria das vezes, limitada, aos conteúdosque constam no livro didático adotado pela pro-fessora. É importante mencionar que esse pa-

râmetro de avaliação do professor, se encontrapresente em toda a sociedade e é sedimentadonos cursos de formação de professores/as.Miguel Arroyo (2000) faz uma crítica aos cur-sos de formação, explicando que:

O modelo de escola e de mestre que os centrosreproduzem na ocupação dos tempos e espaçosé para o aulismo, para ser meros aulistas. Essaslacunas no aprendizado são irreparáveis. Comoesses mestres vão valorizar a escola como espa-ço cultural, de socialização, de convívio, de tro-cas humanas se a escola em que estudaram e seformaram não equaciona tempos, espaços, ativi-dades de cultura, convívio e socialização? (p.131).

Tal crença desconsidera a aprendizagem, tor-nando-se um processo mecânico, impessoal eexterior aos sujeitos envolvidos. Diante dessa cren-ça relativa à função docente, atrelada à transmis-são de conteúdo, é possível afirmar que para asprofessoras, os conteúdos são supremos.

A supervalorização dos conteúdos é algomarcante no trabalho das professoras e faz comque muitas considerem, mesmo que tacitamen-te, que o sentido do seu fazer pedagógico serestrinja à transmissão de conteúdos, recaindono “aulismo”. Essa concepção as torna defen-sivas em relação às propostas de renovaçãopedagógica. No entanto, a necessidade premen-te que enfatizo no que diz respeito à função do/a professor/a na contemporaneidade, não sig-nifica abdicar dos conhecimentos historicamenteelaborados, mas assumir o seu caráter forma-dor numa perspectiva mais ampla, como a cria-tividade, a sensibilidade, a imaginação e aafetividade que sempre foram secundarizadasdo currículo escolar.

Ao mesmo tempo, percebo embutida a essacrença da supremacia dos conteúdos outra con-vicção relacionada ao papel das atividades lúdi-cas: as atividades lúdicas nas séries iniciaissó devem estar presentes na escola se o obje-tivo for a transmissão de conteúdo.

As três vezes em que pude observar Cândi-da utilizando jogos com os seus alunos forampara reforçar um conteúdo trabalhado em salade aula. A professora falou, durante a entrevis-ta, que aproveita do prazer que as crianças sen-

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tem com as brincadeiras e jogos para transmitiro conteúdo. É nesse mesmo sentido que ela seposiciona ao ser interrogada se as brincadeirasdevem estar presentes na escola:

Eu acho que tem que fazer parte sim, brincadei-ra que sirva para transmitir conteúdos. Paraos pequeninos eu acho que as brincadeiras tam-bém tem que servir para o lazer, para o prazerdeles, além do conteúdo, o prazer também. Atéporque pros pequeninos, você brinca de corda,de amarelinha, pois ajuda na coordenação de-les: de correr, de brincar, de pular no chão.Mas pros meus alunos que são de dez a quator-ze anos, eu acho que o mais importante do lúdi-co, é na hora do conteúdo, pra tornar a aulamais interessa pra eles e pra ver se eles se vol-tam mais pra aula. Seria, né, no caso. Com osmeus alunos eu acho que o lúdico tem que estáligado ao conteúdo. É está buscando forma detrabalhar o conteúdo de forma lúdica: fazerbingo, jogos em equipe pra quem consegue pri-meiro ou mais.

A professora esclareceu, durante a entre-vista que, ao se referir aos “pequeninhos”, elaestá falando das crianças do pré-escolar, de, nomáximo, seis anos. Assim como D. Mariazi-nha, Cândida também tem a crença de que asbrincadeiras devem fazer parte do trabalho comas crianças na Educação Infantil, sendo que,para essa, é mais forte a necessidade de asso-ciação dos jogos à transmissão de conteúdo.

Do mesmo modo, constato na atitude daProfessora Teresinha aspectos semelhantes àCândida ao destacar, veementemente, que osconteúdos são o foco principal do trabalho doprofessor.

Porque o professor tem que cumprir o conteú-do. A gente sabe disso. Que não pode deixarpassar nada. Você tem um programa para sercumprido e você tem que fazer, porque isso aí éuma coisa extra, porque as brincadeiras e osjogos não estão dentro do conteúdo, é você quecoloca. Então eu procuro colocar no espaçoda aula normal, para poder dar.

Essa crença, além de dificultar a vivênciadas atividades lúdicas mais espontâneas na es-cola, em especial na sala de aula, compreendecomo educativo somente o que objetivar a trans-missão ou reforço de conteúdos formais. As-

sim, os jogos educativos, ao serem utilizados poralgumas professoras, a partir do ponto de vistadelas, perdem seu caráter mais amplo, tais comoos aspectos corporais, a imaginação, a estética,a sensibilidade, dentre outros.

Com essa observação, percebo que a formacomo os jogos são utilizados nas escolas se ca-racteriza, muitas vezes, como exercício pedagó-gico do que como atividade que trazem em si osprincípios da ludicidade. Essa atitude diante dosjogos justifica a falta de interesse, de muitos es-tudantes, pelos jogos propostos em sala de aula.Os jogos educativos são, muitas vezes, ativida-des obrigatórias a serem realizadas pelos alunos,mesmo quando não há uma motivação interna,inclusive é comum a utilização de reforços (pu-nições e/ou prêmios), de forma a estimular nascrianças a conclusão das atividades.

2.5 Está sendo a escola um espa-ço para a vivência lúdica? Relaci-onando as crenças e as teoriassobre ludicidade e atividadeslúdicas.

Nesse último módulo objetivo analisar ascrenças das professoras sobre ludicidade eatividades lúdicas, avaliando a importância des-ses elementos para o trabalho educativo. É im-portante registrar o fato de que esse móduloacrescenta basicamente duas crenças sobreessa temática e sua relação com a educação.São elas:- Brincadeira é coisa de criança!- A competição é estimulante no processo

educativo!Por intermédio desta primeira crença, es-

clareço que a vivência lúdica não tem valorsomente para as crianças, mas para as pesso-as em qualquer idade e a sua contribuição paranós, adultos-educadores, é enorme. Um tra-balho que demonstra a importância da vivên-cia lúdica pelo adulto é realizado por AirtonNegrini (1998), em seu livro intitulado Terapi-as corporais: a formação pessoal do adul-to. Nesse livro, o autor indica que a ludicidadenão pode ser reservada somente à criança e

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essa compreensão é “... nada mais é do que aperda da naturalidade humana, imposta pelohomem ao próprio homem.” (p. 26). O autoracrescenta que é equivocado entendimento deque o adulto, quando volta a jogar (brincar), setorna criança novamente. Acontece é que es-sas atividades desbloqueiam as resistências,ampliam sensações de prazer, possibilitam aoeducador se conhecer, contribuem para umamelhor disponibilidade corporal e, assim, a pes-soa se conscientiza das suas possibilidades elimitações, além de despertar para uma atitu-de de escuta em relação aos circunstantes,para melhor compreendê-los e relacionar-secom eles.

Em relação à crença que compreende quea competição é estimulante no processo edu-cativo, não se limita às atividades lúdicas. Naverdade, a competição perpassa a escola emvários aspectos. Num sentido mais amplo, essacrença foi percebida em Teresinha e Margari-da e, em relação à competição presente nosjogos, com muita força, em Cândida e em Mar-garida.

Para a Professora Cândida, a competição éum elemento estimulador. Ela diz, inclusive, que“Se não houver prêmio, eles vão querer brin-car”. Por mais que pareça que os jogos em sisão naturalmente competitivos, isso não é ver-dade. Celso Antunes (2001) esclarece que “Nãoé sua natureza mas suas regras que mais clara-mente definem se é o mesmo competitivo oucooperativo”. (p.12). Paulo Ghiraldelli Júnior(2000) também faz uma crítica à competição,ao notar que:

A hipervalorização da competência e a proposi-ção da competitividade como um ideal educaci-onal sugerem, realidade, a volta ao “darwinismosocial” e à simples luta pela sobrevivência entreas diferentes espécies do reino animal, que ter-mina, inevitavelmente, com o extermínio dos maisfracos pelos mais fortes. (p. 77)

A valorização da competição, seja no pro-cesso de ensino-aprendizagem seja nos jogos,é contrária à compreensão de ludicidade aquidefendida, pois não contribui para a educaçãohumana nos seus aspectos formativos mais es-senciais, tanto no trato consigo mesmo quanto

com os outros, pois nega a solidariedade, a co-operação, a partilha, a interação.

A criação de um trabalho lúdico que se pau-te nos pressupostos elencados no início destaseção, não significa modismo, mas justifica-sediante das suas contribuições para a formaçãohumana. Assim, é necessário que os/as profes-sores/as tenham acesso aos conhecimentossobre a ludicidade. Somente assim entende-rão a importância desses aspectos e os inclui-rão com objetivos pedagógicos.

Quanto à desvalorização das atividades lú-dicas e da ludicidade isso só ocorre porque, deforma geral, as professoras desconhecem asinúmeras contribuições para o processo peda-gógico.

3. AMARRANDO OS FIOS: ALGU-MAS POSSÍVEIS CONCLUSÕES

As crenças sistematizadas e a sua análisepossibilitam fazer algumas considerações sobrea presença do elemento lúdico na escola. Nes-se sentido, um dos resultados é que a resistên-cia das professoras não é somente aos jogos ebrincadeiras, mas também a outras atividadesque tragam em si o princípio da ludicidade emque, portanto, haja maior participação das cri-anças. Desse modo, percebo a centralidade queos/as professores/as assumem em relação aotrabalho pedagógico. Em vários momentos, du-rante a fala das professoras, em especial deTeresinha e Margarida, é a sensação de des-conforto que sentem, quando se propõem a fa-zer essas atividades, que determina continuarou não um trabalho com esse caráter.

Percebi, durante a pesquisa, que as profes-soras, diante da deficiência em sua formação,compreendem a ludicidade como recreação econfecção de atividades e recursos, ou seja, umaatribuição a mais no seu ofício. Dessa forma,não se sentem preparadas, não consideram queisto faz parte do seu papel pedagógico e, assim,não demonstram esse desejo de vivenciá-la comseus alunos. É necessário que eles entendamque a ludicidade extrapola a utilização das ati-vidades lúdicas.

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Em relação às crianças uma conclusão a quechego é que as professoras trabalham com acriança ideal, ficando difícil e, por que não di-zer, impossível, as crianças se encaixarem nes-sas expectativas. Concluo também que seconcebe a criança como um ser universal, ne-gando-se o seu contexto histórico, sua individu-alidade, sua faixa etária e os aspectossocioculturais.

Após a análise das crenças das professo-ras, sistematizadas ao longo desse trabalho, épossível assinalar que a ludicidade e as ativi-dades lúdicas na escola são consideradas se-cundárias no processo pedagógico. Essadesvalorização é decorrente de vários fatores:

a vivência lúdica, na visão das professorasencontra-se limitada ao uso de atividadescomo jogos e brincadeiras, o que, nas suasconvicções, só justifica a sua utilização nasala de aula se for para o reforço ou avalia-ção de conteúdos, pois é a sua aquisição aprioridade da escola;

diante dessa supremacia dos conteúdos, os/as professores/as se cobram e são cobra-dos a cumprirem os assuntos estabelecidospara a etapa de ensino em que trabalham.Dessa forma, são estabelecidos horários rí-gidos para cada atividade e, nesse sentido, otempo disponibilizado para as atividadeslúdicas se restringe ao recreio, que a cadadia se encontra mais restrito, e uma partedo período das sextas-feiras, com o objetivode descanso. A realização de um trabalhopautado na ludicidade também é dispensa-da, diante da convicção de que realizar umtrabalho junto com os/as alunos/as, discutin-do, arriscando, é um desperdício de tempo,o que as faz optarem por prática mais disci-plinar, de exposição oral, cabendo aos alu-nos participarem com as respostas e ativi-dades que lhes são solicitadas pelo profes-sor. Dessa forma, o tempo de planejar tam-bém não é utilizado, geralmente, para orga-nização de atividades lúdicas a serem feitascom as crianças, nem com propostas quepossam ter a espontaneidade, o respeito àsdiferenças, a imaginação, a criatividade, a

participação, a iniciativa, a alegria, a curio-sidade, o questionamento de concepções eestratégias suas e dos colegas para aefetivação da aprendizagem.

por último, a desvalorizando da ludicidadee das atividades lúdicas é mais intensa se aescola for voltada para a formação das cri-anças das camadas populares, pois as pro-fessoras crêem que esses elementos são“perdas de tempo”, já que essas crianças,além de serem mais carentes culturalmen-te, e pelo fato de a escola necessitar supriressa privação, os seus comportamentos, vi-olentos e indisciplinados, também limitam aexperiência lúdica com esses/as alunos/as.

Ainda nesse terreno da disciplina, desvalo-rização da manifestação lúdica na escola, prin-cipalmente em sala de aula, também ocorre pelacrença de que a sua presença instiga a indisci-plina. Essa crença é decorrente do movimento,da expressão de alegria, da absorção que, ge-ralmente, ocorrem quando se utilizam ativida-des com esse cunho. Diante dessa convicção,percebi a dificuldade que as professoras têmem realizar um trabalho em que as criançasexerçam um papel mais ativo, em que mante-nham um contato mais intenso com os/as cole-gas. Essas questões fazem com que elas neguemou minimizem a importância de um trabalho lú-dico. Tal crença decorre do processo de esco-larização, guiado pela tendência tradicional, que,certamente, perpassou a formação dessas pro-fissionais, que supervaloriza a disciplina, a trans-missão de conteúdo, a homogeneização e negaa espontaneidade, a diferença, a flexibilidade, aincerteza dos resultados, a relevância no pro-cesso e não somente no produto. Diante disso,a presença da ludicidade é recusada, pois estabusca romper, entre outros aspectos, com a ri-gidez dos tempos cronometrados e com os pa-péis estereotipados.

Diante da secundarização da ludicidade noprocesso educativo, constato que as professo-ras desconhecem os estudos que trazem osbenefícios dessas questões para o desenvolvi-mento humano ou, se algumas a eles têm aces-so, esse conhecimento convive com as crenças

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que inviabilizam ou dificultam um trabalho quese paute na ludicidade. Dessa forma, defendoa importância dos cursos de formação, seja ini-cial ou continuada, em possibilitarem o acessoàs discussões que vêm sendo feitas sobre a rele-vância da ludicidade. Essas discussões, porém,devem vir acompanhadas de vivências lúdicaspara que os/as professores possam desbloquearsuas resistências e experienciar sensações, comoflexibilidade, inteireza e prazer. Assim, os pro-fessores compreenderão melhor o interesse dascrianças por essas atividades e se sentirão maispermeáveis em oferecer essas oportunidadespara os seus alunos. Essa junção do conheci-mento teórico e vivencial pode possibilitar me-xer nos valores e nas crenças que as professorastêm sobre a ludicidade, fazendo com que elascompreendam a importância desse elemento notrabalho educativo.

Acrescento o fato de que essas experiênci-as, juntamente com um momento de reflexãosobre elas e a posição assumida frente à vivên-cia lúdica na escola, podem possibilitar às pro-fessoras reverem as suas crenças, a partir dainstauração das dúvidas, do desafio de cami-nhar por lugares ainda incertos. Nesse sentido,as crenças podem ser mobilizadas a partir daatitude aprendente, flexível do educador emrelação a questionar as suas “verdades”. De-sestabilizar as “certezas” que temos tambémconstitui movimento de formação para os edu-cadores.

As crenças não são imutáveis. Assim, tra-zê-las à tona não é “culpar” as professoras pe-los males da educação, mas demonstrar comoessas convicções, associadas a outros meca-nismos, interferem na elaboração e perpetua-ção de ideais que nem sempre são os maisadequados para a efetivação de um processoeducativo de qualidade para as crianças pobres.

Ao mesmo tempo, constato que o movimen-to realizado pelas ludicidade e as atividadeslúdicas é exatamente o de romper com essesestereótipos presentes na sala de aula, poismexe com a linearidade das crenças, por exem-plo, em relação ao papel que professores e alu-nos assumem no processo pedagógico: professorque transmite aluno que absorve. Esse aspecto

causa desconforto em alguns/mas professores,pois é com essas “verdades” que foi possívelconstruir a sua compreensão do trabalho edu-cativo. Ainda sobre os estereótipos, em váriosmomentos durante a fala das professoras, emespecial de Teresinha e Margarida, ficou claraa sensação de desconforto que sentem quandose propõem a fazer atividades lúdicas; inclusi-ve é essa sensação que determina continuar ounão um trabalho com esse caráter.

Um aspecto que considero relevante e que,na minha compreensão, pode ser considerado umfator que justifica a resistência de algumas pro-fessoras em realizar um trabalho pautado na lu-dicidade, diz respeito ao fato de que aincorporação desse elemento à prática pedagó-gica não significa somente modificar as suas con-vicções sobre esse aspecto contingencialmente,mas incita a mexer em toda a sua rede de cren-ças sobre o processo educacional, que abrangesua visão de educação, escola, papel assumidopor professores e alunos, processo de ensino-aprendizagem etc. Diante desse fato, de que al-terar um dos componentes interfere em toda aestrutura do sistema de crenças, a viabilizaçãode um trabalho lúdico não é fácil de ser congre-gado ao trabalho docente, pois incita outra for-ma de sentir, pensar e agir, o que justifica apresença do tradicionalismo no fazer de muitos/as educadores/as, pois foi assim que aprende-ram a exercer o seu papel educacional, mas, aomesmo tempo, é algo possível e enriquecedor.

Por meio desta análise, é possível tambémsinalizar a marcante presença dos pressupos-tos tradicionais no trabalho pedagógico da mai-oria das professoras. Essa presença justifica-seporque tal tendência oferece ao professor mai-or segurança, uma vez que estabelece papéisbem determinados entre educandos/as e edu-cadores/as, frente ao tratamento com os con-teúdos, o ensino etc. Já a ludicidade corta essapolarização, pois, tanto o/a professor/a quantoo/a aluno/a assumem um papel ativo na elabo-ração do conhecimento, estabelecem uma re-lação mais horizontalizada, o que, diante dascrenças dos/as professores/as, torna o trabalhopedagógico mais difícil e, ainda, na compreen-são de alguns deles/as, muitas vezes, inviável.

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Assim, optar por continuar com um trabalho tra-dicionalista é mais tranqüilo e fácil, pois nãomexe com seu sistema de crenças.

Como contribuição teórica no campo dascrenças, penso ter esse estudo concorrido nosentido de ajudar a esclarecer o seu conceito,no sentido de que, ao analisar as crenças dasprofessoras, três características podem ajudarna compreensão e delimitação desse campo deestudo. São elas:

a) As crenças que os/as professores for-mulam sobre o processo pedagógico não seseparam das questões pessoais, mas a elasse misturam, pois suas convicções são fru-tos das vivências pessoais e profissionais.

Dessa forma, considero que as crenças, as-sim como os saberes dos/as professores/as,como argumenta Maurice Tardif (2002), sãoexistenciais, no sentido de que são constituí-das a partir do que se acumulou em termos deexperiência de vida e foram elaboradas a partirda sua forma de sentir, pensar e atuar no/sobreo mundo.

Acredito, também, que a identidade pessoaldo/a professor/a se encontra perpassada pelassuas vivências profissionais. Nesse sentido,considero relevante citar, como exemplo prin-cipal dessa constatação, a atitude da Professo-ra Mariazinha, que, conforme ela mesmademarca, a sua relação com a docência é per-meada pela experiência de ser mãe de uma cri-ança especial. Percebi que, em relação a essaprofessora, o seu interesse em se conhecer, aela possibilita maior abertura em buscar conhe-cer os alunos, como seres diferentes, nem porisso com menor valor.

b) As crenças são pensadas a partir deuma interpretação parcial da realidade, massão usadas para explicar genericamente di-ferentes situações, sem um conhecimento maissistematizado do fato.

Essa segunda característica diz respeito aocaráter de generalização das crenças. Essa pro-priedade ocorre diante da interpretação quegeneraliza algo contingente, que pode ter ocor-rido somente uma vez. Essa característica éresultante do fato de que as convicções natura-lizam o que parece estranho, o que, de alguma

forma, está associado à característica da segu-rança que as crenças nos proporcionam.

Essa generalização ocorre pelo aspecto prag-matista das convicções, que busca controlardiferentes setores sem maior compreensão dosporquês, que podem ser heterogêneos. Os prin-cipais elementos da pesquisa ,que me fizeramperceber essa característica foram o posicio-namento generalizado das professoras, porexemplo, em relação às crianças e seus mem-bros familiares; a função da escola; as convic-ções sobre o trabalho docente, à ludicidade eàs atividades lúdicas. Tal generalização, diantede um comportamento, fato ou experiência, porexemplo, torna-se visível, quando se utiliza ter-mos, como todos e nunca. Essa marca das cren-ças é perigosa, porque pode nos levar a enganos,diante da questão de que a interpretação de umrecorte da realidade não é a verdade em si, poisé um conhecimento parcial. Além do mais, nãose reflete sobre as causas, nem tampouco so-bre os efeitos dessa generalização, o que fazgerar a característica seguinte.

c) As crenças influenciam na criação deestereótipos.

Esse aspecto, extremamente ligado à gene-ralização, demonstra a dimensão ideológica dascrenças, pois a estereotipação é decorrente deum conhecimento sem maior fundamentação eanálise. Desse modo, perpetuam-se compreen-sões e comportamentos que, muitas vezes, li-mitam ou desvirtuam determinado objeto, sujeitoe práticas.

A pesquisa demonstrou mais fortemente osestereótipos das convicções das professorasquando essas se referiam aos alunos e famíliasdas camadas populares, na relação educando-educador e também em relação à ludicidade eàs atividades lúdicas. Essas crenças encontram-se permeadas por idéias negativas e/ou fecha-das, sendo que, muitas vezes, são desprovidasdo conhecimento real dessas questões. Mesmosem esse conhecimento mais aprofundado, es-sas convicções se multiplicam, exercendo fortepoder na prática pedagógica dessas professo-ras no momento em que norteiam o trabalhoque elas realizam como se fossem a “própriarealidade”. No sentido da vivência lúdica, cito,

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por exemplo, a convicção de que essa cria ba-gunça. Estereótipos como esses interferem narestrição ou ausência da presença da ludici-dade na escola e, em especial, na sala de aula.

Esclareço que o conhecimento científico tam-bém tem um caráter generalizante. No entanto,diferencia-se das crenças, no sentido de que asconvicções generalizam sem uma análise maissistematizada, por isso mesmo, cria os estereó-tipos; já na ciência, isso ocorre através de mé-todos que, utilizados num sistema de amostra-gem, tenta explicar e justificar todo umfenômeno. É nesse sentido que podemos afir-mar que as ciências criam paradigmas.

Diante do fato de a crença não ser um as-pecto consciente para o indivíduo, a necessida-de de transformá-la é algo complexo. Pontofundamental é trazê-la para o nível da consci-ência, para assim poder avaliá-la e, se neces-sário, redimensioná-la. Esse não é um movimen-to fácil, pois a rotina e a execução quasemecânica dificultam observar, refletir e questi-onar os valores e atitudes que perpassam o tra-balho que realizam cotidianamente. Diante dofato de as crenças serem elaboradas a partirde um contexto sociocultural, esse processo de

modificação também poderá ser mais eficaz,se realizado coletivamente, mediante o questio-namento, pois, como nota Eugenio Ramos(1997), as crenças não são imunes a dúvidas edesequilíbrios. Dessa forma poderão se esta-belecer o diálogo e o acesso a outros pontos devista, com os estudos elaborados pelas diferen-tes áreas do conhecimento, que poderão inter-ferir para modificar convicções que não contri-buem adequadamente para a melhoria doprocesso ensino-aprendizagem.

Quando afirmo a importância de um traba-lho profissional diferente, que torne a práxispedagógica do professor mais significativa parasi e para os educandos, não desconsidero queesse processo é doloroso, permeado por dúvi-das, medos e conflitos, haja vista não ser fácilabrir mão de certezas, presentes há décadas,na prática dos professores. Além do mais, paratentar mudar essas crenças temos que focali-zar não somente os professores, como cate-goria, mas é necessário atentarmos para todoo imaginário social que cristaliza um entendi-mento da profissão docente, que tanto influen-cia como é influenciado pelas convicções dasprofessoras.

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 16.04.06

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CORAÇÃO DE PROFESSOR:o (des)encanto do trabalho

sob uma visão sócio-histórica e lúdica

Sueli Barros da Ressurreição*Bernadete de Souza Porto*

* Autora do artigo. Psicóloga; psicoterapeuta corporal e especialista em psicopedagogia; mestre em educação pelaFACED/UFBA. Professora assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus XVII - Bom Jesus daLapa. Endereço para correspondência: Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XVII - Universi-dade do Estado da Bahia. Av. Agenor Magalhães, Amaralina – 47600.000. Bom Jesus da Lapa/BA. E-mails:[email protected] / [email protected]** Co-autora: orientadora da pesquisa. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Endereçopara correspondência: Faculdade 7 de Setembro, Rua Almirante Maximiano da Fonseca, 1395, Edson Queiroz –60811.024 Fortaleza-Ce. E-mail: [email protected]

RESUMOA pesquisa teve como objeto de estudo a afetividade no trabalho docente,analisando a importância da ludicidade e da vivência psicocorporal na formaçãode professores. Buscou, como pauta, a análise da ambigüidade do papel profissionalque permeia a crise do professorado neste século, diante das pressões e exigênciasadvindas das mudanças sociais, da racionalidade tecnocientífica, da pulverizaçãodo trabalho docente, da descaracterização de sua ação e seus reflexos na práticapedagógica. Ao mesmo tempo, discutiu a importância da ludicidade na formaçãoprofissional, no investimento afetivo e no reencanto do professor em seu trabalho.A investigação qualitativa foi realizada mediante um estudo de caso com vinte ecinco professores da rede pública de Ensino Médio, vinculados aos principaiscolégios situados na cidade de Salvador-Bahia. O estudo concluiu que as atividadeslúdico-corporais na formação de professores representam uma estratégia eficazpara enfrentar as adversidades do ofício, ao ampliar a consciência do educadore atuar no seu equilíbrio afetivo-energético. Dessa forma, podem contribuir paraformulações de políticas voltadas para formação docente e para prevenção dedoenças ocupacionais desta categoria.

Palavras-chave: Afetividade – Trabalho Docente – Formação de Professores– Ludicidade – Atividades lúdico-corporais.

ABSTRACTTEACHER HEART: the (dis)enchantment of his/her work accordingto a social-historical and ludic perspective

This research is about affectivity in teaching. It analyzes the importance ofplayfulness and psychological body experience in the teacher formation. Wehave analyzed the teachers’ ambiguity as professionals, which permeates the

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crises about teachers during this century, as they face pressures demandsresulting from social changes, techno-scientific rationality, from the pulverizationof teachers role, from the featureless of this action and its reflexes in thepedagogic practice. At the same time, it discussed the importance of playfulnessin professional formation and affective investment and renew the teacherenchantment in his/her work. The qualitative research was conducted througha case study involving twenty-five teachers from the high school public educationsystem, linked to the main high schools situated in Salvador (Bahia, Brazil).The research concluded that the play-corporal activities in the teachersformation represent an efficient strategy to face adversities, amplifyconsciousness and balancing its energetic-affective equilibrium. This way,teachers can help to formulate politics directed to their formation and to avoidprofessional sickness.

Keywords: Affectivity – Teaching – Teacher Formation – Playfulness – Play-corporal activities

Este artigo discute os resultados de umapesquisa realizada com um grupo de vinte e cin-co professores do Ensino Médio da Rede Esta-dual em colégios situados na periferia e no centroda cidade de Salvador –Bahia. O trabalho foiiniciado em 2004 e seus dados foram analisa-dos e apresentados no ano de 2005.1

A preocupação central da pesquisa consis-tiu em compreender a importância do Trabalhona estrutura psicológica do ser humano, segun-do enfoque sócio-histórico, e a relação que es-tabelece com duas dimensões fundamentaisdesta estrutura: a afetividade e a ludicidade2 .Partiu do pressuposto materialista dialético deque o trabalho tem uma função ontológica naconstituição e objetivação do ser humano(MARX e ENGELS, 1999) e de que a afetivi-dade e a ludicidade se apresentam como di-mensões constituintes do sujeito e fundamentalpara o entendimento do processo da sua subje-tivação, especialmente no que se refere a suaidentidade e estabelecimento de vínculos(ELKONIN,1998; WALLON, 1968 eVYGOTSKY, 1988).

Desta preocupação emergiu a curiosidadeepistemológica de saber como a afetividade seapresenta no trabalho docente e qual a contri-buição da ludicidade para a formação pessoale profissional do professor. Para tanto, apre-sentamos três fontes de nossa aspiração ao temade estudo: as pesquisas contemporâneas sobreo mal-estar dos professores, a nossa experiên-cia como docente de alunos-professores naUniversidade do Estado da Bahia e a nossa prá-tica clínica no atendimento aos profissionais deeducação.

A primeira fonte citada apóia-se nas pes-quisas realizadas, nas últimas décadas, sobreas conseqüências da relação alienada do ho-

Qual é, então, a maneira mais certa de viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogandocertos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o

favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando no combate.(Platão, apud Huizinga, 2004, p. 22)

1 O artigo é baseado na minha dissertação de mestrado,defendida em 17 de outubro no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação da FACED/UFBA, orientada por Bernadete deSouza Porto (UFC), e tendo como banca examinadoraCipriano Carlos Luckesi (UFBA), Eliseu Clementino deSouza (UNEB) e Lúcia Helena Pena Pereira (UFSJ).2 Apesar de não haver registro dicotomizado em Português,é largo o seu emprego em Pedagogia, Psicologia e ramoscientíficos afins, motivo por que aplicamos o vocábulo sem-pre grafado em itálico.

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mem com o trabalho e que ressaltam a impor-tância da dimensão subjetiva da atividade la-boral para a saúde do trabalhador.

Dentre estas pesquisas, pode ser destacadaa do espanhol Esteve (1999) sobre o mal-estardocente, na qual analisa a crise contemporâneana profissão do educador e onde conclui que,nos últimos vinte anos, não só na Espanha, comoem todo o mundo, o modelo socioeconômicoacelerado mudou de forma significativa o perfildos professores, suas relações e condições detrabalho na escola.

Tais mudanças acarretam pressões psicoló-gicas e sociais constantes sobre a atividadedocente, provocando efeitos permanentes decaráter negativo, denominados de “mal-estar”,que afetam a personalidade dos professores.

O autor observa que, embora o mal-estar semanifeste de forma individual no professor(frustração, tensão, ansiedade, esgotamento),apresenta-se como problema coletivo, ou seja,tem raízes no contexto social onde se insere.Neste sentido, aponta alguns fatores desenca-deantes, como por exemplo: aumento das res-ponsabilidades e exigências sobre os educado-res, resultando em acúmulo de funções antesdesignadas a outras instituições, a exemplo dafamília; a subvalorização da afetividade e darepresentação social docente nos programas deformação; precárias condições de trabalho emodificações no status social medido pelo ní-vel salarial; falta de autonomia e controle sobreo próprio trabalho.

No Brasil, Codo (1999), numa extensa pes-quisa realizada em todos os estados brasileiros,com cinqüenta e dois mil professores do ensinofundamental e médio, constatou que as mudan-ças educacionais contemporâneas fragmentamo trabalho destes profissionais, causando-lhesuma tensão emocional constante e impondo-lhesuma cisão entre seu “eu profissional” e seu “eupessoal”.

Esta cisão pode provocar, segundo o autor,um estado de apatia, um desencanto que o faz“perder o fogo” na sua atividade, e que, umavez não mediado, pode resultar num estresse3

ocupacional crônico denominado de Síndromede Burnout ou Síndrome da Desistência.

Também observamos, nestes últimos anos,que a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394)de 20 de dezembro de 1996, os ParâmetrosCurriculares Nacionais (PCN) e os pilares paraEducação para o século XXI, defendidos norelatório de Delors (2001), trouxeram propos-tas de mudanças significativas sobre as respon-sabilidades e competências para os professorese sua formação. Dessa forma, abriram vastocampo para pesquisa sobre profissionalizaçãoe formação de professores.

A segunda fonte de nossa aspiração ao temavem de nossa experiência na regência das dis-ciplinas Psicologia da Educação e Psicomotri-cidade, nos cursos de licenciatura da Universi-dade do Estado da Bahia (UNEB), nas quaisobservamos que as queixas dos alunos-profes-sores se resumiam, às vezes, em fadiga, senti-mento de impotência, ausência de motivação edespersonalização, o que de fato os tornavam,a priori, mais vulneráveis à chamada “quei-madura interna” ou Burnout (CODO,1999).

Percebíamos que o resultado da sobrecargade responsabilidades ocupacionais, a falta decondições de administrar a sua própria ativida-de e o esquecimento de sua pessoa afetiva do-tada de sonhos e de estima própria poderiampropiciar um desencanto no trabalho.

E, finalmente, a terceira fonte, advém donosso exercício clínico, na área de PsicoterapiaCorporal, onde tivemos oportunidade de ouvir ocliente-professor, sobre o quanto seu trabalhoestava sendo fatigante na medida em que pro-porcionava poucas condições para o investi-mento afetivo, assim como para a sua realizaçãoprofissional.

Nesta trilha, pensamos que as atividades lú-dicas e as vivências psicocorporais, inseridasnum espaço que possibilite aos professores com-partilharem seus impasses e questionamentosenfrentados no cotidiano de sua práxis, podemser um meio de ampliação de contato com os

3 Codo (1999) esclarece que não se pode confundir Burnoutcom estresse. O estresse é um esgotamento pessoal cominterferência na vida do sujeito e não necessariamente nasua relação com o trabalho. O Burnout envolve atitudes econdições negativas com relação aos usuários, clientes, or-ganização e trabalho.

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processos psíquicos, servindo como estratégiaspara atuar no equilíbrio afetivo-racional (LU-CKESI, 2000). Podem ainda assumir um lugarimportante na formação pessoal do professorna sua trajetória profissional, uma vez que aludicidade ocupa papel fundamental nas eta-pas do desenvolvimento psicológico e sociocul-tural como sustentam Elkonin (1998), Bróugérè(1998), Huizinga (1993), Vigotski (1998), den-tre outros.

Discorremos então com o objetivo principalde nossa pesquisa, qual seja, analisar a impor-tância da ludicidade e da vivência psicocor-poral na formação de professores, refletindosobre a relação afetividade e trabalho.

Para atingir tal objetivo, optamos pela abor-dagem qualitativa e usamos como dispositi-vos de análise entrevistas e atividadeslúdico-corporais inseridas numa situação degrupo focal com os professores, selecionadosatravés de um Curso de Extensão Universitá-ria. O curso teve como foco o próprio objetivoda pesquisa, ou seja, a discussão sobre aafetividade do professor no seu trabalho e aimportância da ludicidade e das práticaspsicocorporais na sua formação. Contou com oapoio da Universidade Federal da Bahia/Facul-dade de Educação (UFBA/FACED) e do Gru-po de Estudo e Pesquisa em Educação eLudicidade (GEPEL) da mesma Faculdade, parasua operacionalização, essencialmente no quetange à cessão do espaço físico, equipamentos,divulgação e emissão de certificados aos parti-cipantes.

Neste curso, disponibilizamos um espaçoonde os instrumentos oferecidos permitiam quea expressão lúdica e corporal dos professo-res se tornasse a principal mediadora pararefletir sobre sua situação de trabalho, seuenvolvimento profissional e seu equilíbrioafetivo presente na práxis pedagógica.

Assim, a vivência desses momentos de ex-pressão e reflexão, utilizando os dispositivosanteriormente citados, mostrou-se coerente como nosso objeto de investigação e ampliou nossapercepção sobre o problema da pesquisa, po-tencializando algumas questões que serão dis-cutidas a seguir.

SER OU NÃO SER? OS PROFESSO-RES RESPONDEM

Na primeira fase da pesquisa no grupo, bus-camos compreender como os professorespercebem seu trabalho e sua formação pro-fissional e quais os fatores presentes nestaatividade que trazem desencanto, ou seja,um “endurecimento afetivo” que os faz de-sistir de sua ação de cuidar, tirando-lhes aesperança, trazendo-lhes sentimentos deimpotência e frieza emocional.

Entendemos que a atividade docente, comopráxis, não se restringe ao desempenho de ha-bilidades técnicas, mas se apresenta como aelaboração de um saber socialmente comparti-lhado, tendo a finalidade de ampliar a consciên-cia dos educandos no seu desenvolvimentocomo seres sócio-históricos. Assim, a verda-deira práxis4 , é ação autônoma, refletida, co-nhecida e reconhecida pelo seu agente.

Por outro lado, estudos mostram que o tra-balho docente é afetado pelo ”fetichismo tec-nológico”, que, segundo Giroux (2000, p. 69),consiste numa “racionalidade tecnocrática” que,debilita a práxis pedagógica, reduzindo-a a me-todologias que não priorizam o pensamento crí-tico, sendo os estudantes levados a querer saber“como fazer”, como “funciona” e não interpre-tando sua ação. Supõe, desta forma, que todospodem aprender com a mesma técnica, negan-do-lhes sua característica sócio-histórica.

Tal racionalidade não reconhece o papel dapráxis educativa como um conjunto concretode práticas na qual são formadas identidades,de onde emergem formas diferentes de conhe-cimento, de experiências e de subjetividades.E, neste veio tecnocrático, o professor, por suavez, é visto basicamente como um receptorpassivo do conhecimento científico e participamuito pouco da determinação do conteúdo e dadireção do seu programa de ensino. (GIROUX,1997).

4 A práxis é a atividade humana real e efetiva que transfor-ma o mundo natural e social para fazer dele um mundohumano segundo explica Sanches-Vázquez (1968). Esteconceito e seus elementos serão discutidos no decorrer des-te capítulo.

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Arroyo (2000, p. 19), ao estudar o imagináriosocial do professor, na sociedade tecnocrática,observa que este é visto como “apêndice”, mero“recurso técnico”, pois a gestão tecnocrática negaa centralidade do sujeito no trabalho em trocadas técnicas, conteúdos e métodos. Assinala queo “ofício de mestre”, assim chamado por ele, éuma imagem construída social, histórica, culturale politicamente e, por isto, está amarrada a inte-resses que extrapolam a escola.

O autor questiona até que ponto a atividadedocente é um “ofício descartável”, destacando aespecificidade deste ofício. Supõe o domínio deum saber específico e de uma identidade pro-fissional no campo da ação. Afirmamos quedeste saber específico e de sua qualificação de-pendem a escola e outros espaços educativos.

Para Arroyo (2000), ter esse ofício significaorgulho, satisfação. É ter afirmação e defesade uma identidade individual e coletiva, por isso,remete-nos à memória, aos artífices, a uma açãoqualificada e profissional. Os professores sãomestres de um ofício que só eles sabem fazer:“porque aprenderam seus segredos, seus sabe-res” e uma “resistente cultura” contra a tecno-cracia e ao lemas pragmáticos utilitáriosimpostos pela política educacional.

Convergindo para este pensamento, Nóvoa(1995) sublinha que as mudanças e inovaçõespedagógicas são inteiramente dependentes doprocesso identitário do professor. O autor en-tende este processo como um espaço dinâmicode lutas e conflitos, de uma maneira de ser eestar na profissão e se alimenta do tempo paraassimilar e acomodar as transformações.

Na mesma direção, Pimenta (2002, p. 15-19) defende a posição de que o trabalho do pro-fessor cada vez mais se torne necessário paraa sociedade na constituição da cidadania, nasuperação das desigualdades sociais e do fra-casso escolar. Conceitua identidade com umaconstrução do sujeito historicamente situado, nãosendo exclusivamente individual nem exclusi-vamente social. E, como tal, a profissão pro-fessor emerge de um contexto histórico comoresultado das demandas sociais que, dinamica-mente, vão se transformando e adquirindo no-vas características, ressignificando os papéis,

reafirmando e revisando hábitos, prática e teo-rias. Como é também individual, a identidadeprofissional é formada pelo modo de ser decada professor, de sentir, de situar-se e relacio-nar-se no mundo e perceber a realidade.

No seu estudo sobre a construção da identi-dade do professor, divide os saberes da docên-cia em três: saber da experiência, do conheci-mento e pedagógicos. Nesta tônica, o saber daexperiência constitui-se em dois níveis. O pri-meiro é pessoal, é o saber sobre ser professorpor meio da história de vida, da experiênciaacumulada. O segundo nível é profissional, pro-duzido no cotidiano de sua práxis docente, numprocesso permanente de reflexão sobre suaprática em interação com os alunos, colegas econteúdos teóricos.

Já o saber sobre o conhecimento não signi-fica apenas informação teórica, mas o signifi-cado que tais conhecimentos têm para si próprioe para a sociedade. O saber pedagógico, noprocesso identitário do professor, é formado,segundo a autora, no confronto entre os conhe-cimentos da Pedagogia e as estratégias utiliza-das pelos professores na sua práxis.

Os autores, há pouco citados, reconhecemque os saberes são constitutivos da identidadeprofissional do professor, por sua vez, interde-pendente do seu eu pessoal. Assim, valorizamo profissional como sujeito do seu próprio tra-balho, como agente importante para transfor-mação social.

Em nossa pesquisa, observamos, nos depo-imentos, que os professores percebem o valorsocial de seu trabalho, o compromisso ético,político e socioafetivo que envolve esta ativida-de. Percebemos também como desafiador opapel de “ampliar a visão de mundo” dos edu-candos, preocupando-se em levá-los à reflexãocrítica da realidade e à autonomia de pensa-mento. Notamos que eles têm a consciência deque sua atividade exige, a todo instante, refle-xão sobre a ação, grande compreensão do seuprocesso, pois se configura como fundamental-mente intelectual. Exige, ainda, uma concilia-ção constante entre as técnicas e os saberes, econtextualização destes em face da realidadena qual se encontram. Notamos ainda que eles

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procuram fazer esta conciliação, quando ten-tam mostrar a importância da disciplina que le-cionam para a vida cotidiana, quando buscamconhecer a realidade socioeconômica dos edu-candos, respeitando seus conhecimentos espon-tâneos e encorajando o desenvolvimento dosseus potenciais.

Ao se reportarem sobre a ação básica de seutrabalho, os professores admitem que os afetoscomo querer bem, ser paciente, escutar, aco-lher, conciliar e outros similares, são qualida-des essenciais para o cuidado pedagógico.Reconhecem que sua atividade é multidimensio-nal, assim possuem dimensões política, forma-dora (principio organizativo), técnica, afetiva eética. Quando porém, indagados sobre os entra-ves que atravessam a realização do seu traba-lho, os professores trazem afetos de frustração,tristeza, insegurança, impotência, revolta,desânimo, decepção e angústia e exaustão.A “dor” de ser deste profissional é focada nasua identidade e na sua imagem social.

Ao apontarem os fatores contextuais queprovocam mal-estar, fatores que atingem a ima-gem social, observamos que eles se concen-tram numa desvalorização social do trabalho ena negação do professor como sujeito e figuraprincipal no planejamento e desenvolvimentodas ações pedagógicas. Tais fatores são: políti-cas públicas de formação docente, organizaçãosindical e precárias condições de trabalho.

Confirmamos neste estudo a desvinculaçãopolítica, social e cultural dos cursos de forma-ção inicial da realidade concreta dos educan-dos. Os professores se queixaram da falta dediscussão dos fundamentos filosóficos que em-basam as tendências pedagógicas e de contex-tualização dos conhecimentos acadêmicos àrealidade em que vão atuar (ou já atuam), fatoque reforça a dicotomia teoria/prática no tra-balho educacional.

Argumentam que os cursos de formaçãocontinuada são distanciados das necessidadesda maioria, vêm como “pacotes prontos”, mui-tas vezes, sem objetivos claros ou centrados nasnormas e nas técnicas, são desqualificadoresdas capacidades cognitivas dos docentes e nãooferecem condições operacionais para se con-

cretizar no interior das escolas. Acrescentam,ainda, que as políticas de formação se centramna formação pragmática e aligeirada, não sepreocupam com o financiamento ou apoio a umapós-graduação, a exemplo de cursos de mes-trado ou doutorado.Os professores percebemque sua formação deve contemplar a dialéticados saberes tácito, escolar, pedagógico e cien-tífico. Visualizam neste processo uma constan-te descoberta e autoconhecimento que contri-buem para a reflexão sobre a prática e trazemopções para solucionar os dilemas cotidianos.Suas declarações mostraram as seguintes ne-cessidades:• qualificação e ascensão profissional;• aprofundamento nos conhecimentos, princi-

palmente no que tange à disciplina, ou disci-plinas, que lecionam, buscando sua ressigni-ficação;

• reflexão sobre os pressupostos epistemoló-gicos que permeiam as propostas ou pro-gramas de formação profissional “centradosno contexto” (CANDAU, 2004);

• partilha com os colegas de idéias sobre oseu papel profissional, ensejando espaço parareconstrução constante da identidade nestaárea;

• reflexão sobre as relações interpessoais naescola, bem como a aprendizagem da con-vivência para desenvolver habilidades deescuta e tolerância frente às diversidadessocioculturais e étnicas, mormente em rela-ção à clientela específica com que lidam. Aesse respeito, sustentamos a idéia de que aaprendizagem da convivência nos cursos deformação pode levar os professores a com-preenderem a maneira de ser, o estilo de vida,os valores e crenças desta clientela, mudan-do assim seus pensamentos e atitudes emrelação a esta, poupando-a da tirania e dospreconceitos; e

• escuta, sobre suas indagações, anseios, con-tradições, receios, dúvidas e inovações. Istoporque a visão de mundo, os referenciais ea consciência da historicidade de seu sabere do papel social que desempenham são fun-damentais para qualquer projeto de forma-ção ou reforma pedagógica.

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Ao lado dos fatores ligados às políticas pú-blicas de formação, os professores apontaramo “apartheid profissional”, que os discrimina erotula como desinteressados e incompetentes.Além disso, são, em geral, responsabilizados pelofracasso escolar dos estudantes, reforçandorótulos e adjetivos que lhes são atribuídos e in-terferindo no envolvimento afetivo da sua ativi-dade.

Quando partem para a reivindicação dos seusdireitos e melhores condições de trabalho, sãochamados de “baderneiros” pelas autoridadesque ameaçam puni-los se permanecerem orga-nizados nos movimentos grevistas. Por outrolado, a atuação do sindicato apresenta-se am-bígua: ora cumpre o seu papel, fortalecendo aidentidade da categoria e conseguindo a ade-são de um grande número de professores nosmovimentos de luta, ora não consegue susten-tar a própria força, trazendo para os profissio-nais envolvidos exaustão, abatimento e inércia,afetando-lhes a auto-estima.

Os fatores que atingem diretamente o tra-balho pedagógico, ou fatores primários5 , atuamdiretamente na auto-estima do docente, à me-dida que este é negado como sujeito desta ati-vidade. Nos depoimentos, predominaram asprecárias condições físicas e materiais, super-lotação das salas, sobrecarga de trabalho, me-canismos de controle exercidos pela gestãoescolar, falta de acolhimento no espaço ondeatuam. Observamos como tais entraves ou ad-versidades se apresentam como dificuldadespara relações humanas na escola, para o vín-culo afetivo do professor com seu produto, paraa prática da dialogicidade (FREIRE, 1985 ) epara seu equilíbrio emocional. Notamos que odesgaste do professor frente a esta realidadepode ser propulsor de sua “desistência simbóli-ca” ou síndrome de Burnout e dos sintomas deestresse dos quais são vítimas.

Um outro entrave muito debatido foram osmecanismos de pressão e regulação dos gesto-res educacionais sobre o docente. Dentre es-tes, os professores destacaram o exame deCertificação Ocupacional6 , tido como um com-provante de que o professor não tem vez nemvoz nos programas que dizem respeito ao seu

próprio desempenho. Tal exame, segundo de-poimento do grupo, submeteu os professores auma prova desqualificadora e potencializou osrótulos e estigmas sociais contra a imagem desteprofissional. A avaliação, da forma como foirealizada, trouxe sentimentos de indignação,humilhação e desconfiança crescente em rela-ção aos órgãos gestores.

Concordamos com Vasconcelos (2003),quando afirma que o professor não é vítima nemvilão dessa história. Não sofre integralmentediscriminação social, é também valorizado ereconhecido em diversos contextos e seu tra-balho oferece flexibilidade para controlar e re-criar o seu processo; mas também não mereceser apontado como responsável pelas mazelasdo sistema educacional que o forma, ou defor-ma, por meio de métodos bancários e sob oimpério da práxis mimética, embora cobre deleuma postura autônoma e reflexiva.

Como nos disse uma professora, integrantedo grupo pesquisado, a partilha desses proble-mas ou entraves parece deixar o “fardo maisleve”. Mas, a quem recorrer e com quem com-partilhar? Ao coordenador pedagógico? Umafigura “formal” no espaço escolar que não éformada para praticar a “escuta” e, muitas ve-zes, em razão das circunstâncias, se posicionacontra os professores, conforme depoimento dogrupo. A direção? Esta ora provoca medo pormeio de pressões e chantagens, ora age comextrema indiferença ou apatia aos dilemas coti-dianos. Aos colegas? É preciso superar a con-corrência e a ausência de ética nesta profissão,fatores que contribuem para o isolamento doprofessor em seu trabalho e para desarticula-ção política deste em face da luta pelos seusdireitos.

Nossas observações e estudos realizados nospermitiram afirmar que o “corpo emocional”

5 Esteve (1999, p. 27), no seu estudo sobre o mal-estar,chamou de fatores primários ou diretos aqueles que “incidemdiretamente sobre a ação do professor em sala de aula, ge-rando tensões associadas a sentimentos e emoções negati-vas.” E as condições externas que incidem sobre a açãodocente de fatores secundários ou contextuais.6 Processo de avaliação dos conhecimentos e habilidadesdos docente, um dos projetos prioritários do programa “Edu-car para Vencer” do governo do Estado da Bahia.

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do professor, seu principal instrumento detrabalho e veículo de expressão afetiva, apre-senta-se estasiado;7 frente às adversidadesencontradas na sua práxis. Esta exaustão ouestase docente pode contribuir, por sua vez,para um desânimo ou endurecimento afetivoperante a atividade, como podemos observarno depoimento da professora a seguir: “Comose tivesse me sugado tudo, sem ânimo. Te-nho que me refazer energeticamente. Meenvolvo demais e penso que preciso me con-trolar bastante”.

Neste entorno, é necessário que a escola,como um “eixo de mudança em prol da quali-dade de ensino”, conforme declaram os pro-gramas e gestores educacionais, se torne umespaço de democracia, criatividade, promoçãoda saúde e acolhedora das pessoas que a man-têm viva, especialmente dos docentes. Paratanto, tais pessoas precisam ser fortalecidas noseu self (ego) e na sua imagem social, sendopercebidas como gente que, como tal, conver-sam, trabalham, criam, festejam, criticam, can-tam, brincam, entristecem, adoecem, entram emconflito, se encantam e desencantam. Isto pa-rece, todavia, esquecido nas reformas dos cur-rículos de formação docente e desenvolvimentoescolar, como afirmam Arroyo (2000) e Santos(2004).

A superação destes entraves começa peloreconhecimento social do trabalho docente pelasociedade (especialmente os órgãos gestores eplanejadores da educação) e pela organizaçãopolítica da categoria, implicando condições dig-nas de trabalho que permitam ao profissionalpotencializar seus conhecimentos e habilidades,e numa remuneração que permita ampliar seusconhecimentos e ter melhor qualidade de vida.

Acreditamos que a formação docente cen-trada no aspecto lúdico do trabalho, necessáriopara alimentar o prazer e o afeto do professorcom os elementos de sua práxis, possa tambémcontribuir para o enfrentamento destes entra-ves. Será isso possível? Pode o trabalho do-cente trazer satisfação e alegria ao professordiante das condições aqui debatidas?

Para ilustrar nossas questões, destacamosum trecho da entrevista feita com a professora

Solange, que consideramos significativo paradestacar a ambigüidade presente na dimensãosubjetiva do professor, tencionando levar o lei-tor a refletir sobre o próximo tema deste estu-do: a relação de amor e ódio do professor como seu trabalho e as estratégias de defesa queutiliza para enfrentar o mal-estar ou o própriodesencanto.

Pesquisadora – Professora, como você percebeo trabalho docente?

Profª A - Árduo, eu acho assim que é assim umdesmatamento, (...) principalmente no momen-to em que a gente está vivendo, de que se preci-sa valorizar mais o profissional. E que a gentevê que não estão abertos para isso. É um des-bravar mesmo, é você resistir aquele salárioque você recebe no final do mês. Mas você, alémde tudo, sabe que você está lidando com gente,que você precisa ajudar, por que você já conse-guiu subir degraus, por que você pode ajudaressa pessoa também a alcançar mais êxito navida, ser mais feliz. Então, é muito amplo, émuito grande. É um constante assim. É de sofri-mento, é de prazer, é uma mistura muito gran-de, é muito dura. Agora apesar de ser muitodura, eu me surpreendo de não ter ficado de-sencantada com ele.

Assim, após discutirmos os fatores que po-dem levar os professores a desistirem, o se-gundo momento de análise foi saber por que,apesar das pressões, discriminações e condi-ções precárias de trabalho, estes professorespersistem? Que trabalho é esse que causa tan-ta dor e tanto prazer?

TRANSFORMANDO O TÉDIO EMMELODIA ...

E ser artista no nosso convívioPelo inferno e céu de todo dia

Pra poesia que a gente não viveTransformar o tédio em melodia

(Frejat/Cazuza)

7 Na concepção reichiana, existe uma diferença entre êxta-se, quando a energia é descarregada, trazendo um estado dearrebatamento, encanto e absorção, e a estase quando aenergia fica parada, impedida de ser descarregada.

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Notamos com este estudo que, mesmo vi-venciando as dificuldades neste espaço de for-mação, os professores conseguem ver a“melodia” presente no seu trabalho, sendo umverdadeiro artista no “inferno e céu de cadadia”, como dizem os poetas. Os depoimentosanalisados mostraram que o grupo tem umacapacidade para se re-encantar ou re-equilibrardiante das adversidades. Observamos tal ca-pacidade nos seus discursos, quando narraramas opções para liberar suas tensões, buscandosaídas criativas para restabelecer os vínculos erepor as energias de acordo com suas necessi-dades e oportunidades.

Importante é registrar que nos pautamos naproposta de Negrine (1998) e Santos (2000), so-bre a formação lúdica para desenvolvermos umaatitude de escuta no grupo pesquisado. Assim,percebemos que os professores agem de formadiferenciada no enfrentamento do mal-estar oudesencanto; ora são mais emotivos, ora são maisracionais, a depender das circunstâncias. Nãodesistem totalmente, ao contrário, muitas vezesse entregam e se absorvem nas atividades comentusiasmo e arrebatamento, expressando, naspalavras de Reich (1979), equilíbrio energéti-co e capacidade de resposta ao prazer e detolerância com o outro.

Dessa forma, foi possível compreendermos,pelos depoimentos, a afirmação de Soratto eOlivier-Heckher (1999) que não são as con-dições de trabalho que fazem os professo-res permanecerem no ofício, mas a relaçãode prazer que estabelecem com o produtodo trabalho. Notamos, com este estudo, que,mesmo com salários baixos e com péssimascondições de trabalho, os professores se re-encantam a cada dia com o retorno cogni-tivo e afetivo dado pelos estudantes, peloprazer em se sentir importantes para eles epelo aprendizado contínuo que a atividadepedagógica proporciona. Assim, conseguemobter desse trabalho o maior prazer que elepode dar, são resistentes aos entraves e per-manecem comprometidos com o ofício. O de-poimento da professora, a seguir, ilustra estasafirmações:

Às vezes chego e pergunto: ‘E foi isso que euquis?’ Tem momentos que tem que ter ânimopara poder seguir, com o sorriso ou com o cari-nho deles, eles chegam e dizem “Professora euquero falar com a senhora”. .. essas coisas fazcom que você cada dia descubra a profissão,você ser pessoa, você está ali e saber que aspessoas confiam, acreditam em você, que vocêé útil, que gosta de você e mostra isso....

Percebemos no depoimento destacado ocerne do trabalho docente: a troca entre pro-dutor e o produto, troca de conhecimentos, afe-tos, experiências, crenças, hábitos, valores.Ocorre uma influência recíproca na vida doseducadores/educandos que os transforma e osleva a buscar constantemente coisas novas. Esteaspecto interativo, foi apontado pelo grupopesquisado como o mais importante na ati-vidade do professor; é ele que torna o tra-balho desafiante e envolvido por “alegria eesperança” (FREIRE, 2001).

Acreditamos que este aspecto precisa serpotencializado nos cursos de formação. Istoimplica considerar a vertente subjetiva no tra-balho educativo, que, para Vigotski (2001) eWallon (1964), tem como base as reações emo-cionais entre os pares. De acordo com os estu-dos aqui apresentados, cumpre-nos lembrar quea afetividade, como componente principal des-ta vertente, é a energia que move a vida e quea relação viva com o mundo, imprescindível paraa aprendizagem, depende do “colorido emocio-nal” (VIGOTSKI, 2001) e dos “conflitos dina-mogênicos” (WALLON, 1964) que a envolvem.Dessa forma, a afetividade permeia todo oprocesso de trabalho docente, atuando comovitalizadora do pensar e do fazer pedagó-gicos.

Uma vez que a vertente subjetiva é perce-bida como parte integrante do todo da açãodocente, compreendemos que a convivênciadiária com a atividade pedagógica, fortalece aidentidade profissional e as estratégias de de-fesa contra os entraves do cotidiano traz à tonaaspectos da dimensão lúdica como a flexibili-dade, o desafio, a absorção, a entrega, a pleni-tude, a tensão e a leveza. Desse modo, inferimosque tal dimensão, ao emergir no “fazer-peda-gógico”, pode ser uma mediadora eficaz na

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interação e nos sentidos e significados pre-sentes na afetividade e no processo identi-tário do docente. Assim é que as atividadeslúdico –corporais podem se tornar um valiosoinstrumento para o equilíbrio cognitivo e afeti-vo deste profissional. Conforme vimos emWallon (1964), Vigotski (2001), Reich (1979)e Luckesi (2002), as atividades, quando sãolúdicas e atuam nas tensões corporais, favo-recem a ampliação da consciência e reorgani-zam a emoções.

Inferimos que é neste lugar de vivacidade,criatividade e prazer onde se insere o aspec-to lúdico no trabalho docente. A ludicidade,como uma das dimensões constituintes do serhumano, está presente em qualquer idade, sexoou classe social, é relativa àquele que joga ebrinca e envolve afetos como alegria, tensão eprazer, ações que tendem a ser repetidas se-gundo o regulador orgânico: a emoção8 .

Tais ações são realizadas num processo deinteração social: “ Jogo é uma atividade em quese reconstroem sem fins utilitários diretos, asrelações sociais” (ELKONIN,1998). E, por isso,envolvem vínculos e estão internamente impli-cadas de afetividade.

Assim, concordamos com Porto e Cruz(2002), quando garantem que na formação do-cente “a capacidade lúdica do professor é umprocesso que precisa ser pacientemente traba-lhado pois não é imediatamente alcançada”. Épreciso que o professor compreenda a impor-tância psicológica e sociocultural da ludicida-de, não só teoricamente, mas vivenciandosituações lúdicas, que lhe proporcionem regu-lar suas próprias reações ao ter espaço paraexpressão dos sentimentos e desenvolvimentode sua criatividade.

Podemos inferir, com isso, que a afetividadee a ludicidade, como dimensões essenciais dodesenvolvimento humano, podem ser tambéma base de qualquer projeto educativo, seja for-mal ou informal. Neste sentido, não podemoscompreender o trabalho do educador sem con-siderarmos os sentimentos envolvidos no seuprocesso de escolha, aprendizagem e atuaçãoneste ofício.

Permeadas por estas informações, prosse-guimos nossa investigação buscando compre-ender que fundamentos essenciais poderiamtornar lúdica a prática pedagógica, assunto quediscutiremos a seguir.

O TRABALHO E A FORMAÇÃOLÚDICA DO PROFESSOR

No terceiro momento da investigação, pro-curamos saber dos professores o que entendiampor ludicidade e qual a importância desta paraseu trabalho. Os professores responderam quea ludicidade é algo que abre o sujeito para avida, disponibiliza e flexibiliza sua convivênciacom o outro, produz bem-estar, descontração,bom humor e, como linguagem, dá sentido à prá-tica pedagógica. Reconhecendo o fazer peda-gógico como coletivo, destacam que a dimensãolúdica contribui para formação pessoal eprofissional, pois fortalece os relacionamen-tos e aumenta o contato com o material deaprendizagem, ajudando a mobilizar e sensi-bilizar o educando para o conteúdo.

Para alguns professores, o lúdico é vistocomo diversas formas de expressão, dentre elas,a música e o desenho, usados como linguagempara mediar os conhecimentos espontâneos comos conhecimentos científicos (VIGOTSKI,1998), como podemos observar no depoimentoa seguir:

Tive uma experiência muito legal a semanapassada, eu levei uma música, a Arca de Noé,porque o livro traz o poema e trabalha o tempodo calendário e do relógio e eu achei que eramelhor colocar a música e pedir que eles dese-nhassem a partir do que eles estavam estudan-do, deixar o livro de lado. Eles relacionaram amúsica, com o poema e me coloquei bem atrás,bem de fora para ver de que forma ia ficar eficou muito lindo mesmo o trabalho. E me ques-tionei a atividade:’ Será que vou conseguir fa-zer com tranqüilidade, sem estresse, será que amúsica vai sensibilizar ou vai dispersar?’ Euconsegui, eu gostei...

8 “Se fazemos alguma coisa com alegria as reações emocio-nais de alegria significam nada senão que vamos continuartentando fazer a mesma coisa” (VIGOTSKI, 2001, p. 139).

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A ludicidade está presente na ação destaprofessora, no prazer que sentiu ao levar a músi-ca e no envolvimento dos estudantes nessa ativi-dade. Salientamos que a ação ou atividade lúdicanão se constitui apenas de jogos ou técnicas di-namizadoras, pois também está presente na dan-ça, na música, no desenho, na pintura e em outrasformas de expressão artística, ou seja, em ou-tros signos. Huizinga (2004), ao pesquisar o as-pecto cultural do lúdico, assinala que não é poracaso que encontramos na história da humani-dade diversas expressões para designar a ativi-dade lúdica. Quanto à música, esclarece que nasépocas arcaicas o homem tinha plena consciên-cia de que “a música era uma força sagrada ca-paz de despertar emoções e, além disso, era umjogo. Só muito mais tarde ela passou a ser apre-ciada como uma contribuição importante para avida e para a expressão da vida, em resumo, comouma arte no sentido atual da palavra.” (p.209).

Fátima Vasconcelos, pesquisando sobre o jogoinfantil na escola, tomando por base a concep-ção bakhtiana de linguagem, observou que o jogo,na sua dimensão simbólica, é uma forma de dis-curso que representa as interações e, para com-por o sentido lúdico, ele utiliza-se de gestos,objetos, entonações, mudanças de cenário e lin-guagem verbal. Neste sentido, o jogo é polifôni-co, nele estão imbutidos muitas falas, decorrentesda apropriação cultural da pessoa que joga: “Olugar imaginário do jogo é refratado e não refle-tido, na brincadeira ele cria um vínculo de repre-sentação”. (VASCONCELOS, 2003, p. 5).

Parafraseando Bakhtin (1995, p.35), a cons-ciência adquire forma e existência nos signoscriados por grupos organizados no curso dasrelações sociais. Nesta óptica, a ludicidade,como forma de linguagem, pode servir comoação mediadora da elaboração de sentidos narelação pedagógica, atuando como forma deinstrumentalização no movimento dialético decontinuidade e ruptura do conhecimento9 . Ou-tra professora do grupo esclarece esta afirma-ção no seu depoimento:

Quando eu busco uma atividade, eu gosto dedar uma atividade que envolva música (...) Poisjá sei que vai desencadear uma coisa diferenteem cada um. Que posso estar atenta àquela di-

ferença que vai ser desencadeada. Que cadaum vai poder se expressar, é aquela liberdadeque vai ser dada.

A partir dos autores e dos dados referidos,podemos acentuar que a ludicidade, como di-mensão do processo de formação do homem,pode estar presente como signo e ferramentana atividade mediadora do professor no proces-so de problematização, ao passo que nutre asações expressivas emocionais e cognitivas. Aação lúdica instrumentaliza o professor paramediar o educando a elaborar sua representa-ção mental do conhecimento. As atividades lú-dicas, como ferramentas, proporcionam contatocom instrumentos físicos ou simbólicos que di-namizam a apreensão do conhecimento. Sobreeste ponto, ilustramos um trecho da carta es-crita sobre o curso de extensão por uma pro-fessora participante onde demonstra a presençada ludicidade e da afetividade no cotidiano ena expressão do seu saber:

O curso foi muito bom, pois confirmei coisasque já sabia, todavia tinha receio, dúvidas decolocá-las em prática. Agora, mais do que nun-ca, sei que o jogo, o lazer, a criatividade, o brin-car não estão fora da realidade, assim como ossentimentos e valores também são conteúdosimportantes e urgentes, e fazem o trabalho do-cente também produtivo,leve, divertido e emo-cionante.

A ludicidade, conforme foi abordada nestapesquisa, é uma expressão mediada por umaatividade que resulta numa experiência de en-trega do ser humano em sua totalidade - moto-ra, afetiva e intelectual (LUCKESI, 2004).Neste sentido, as atividades lúdicas servemcomo recursos para o autoconhecimento, comoinstrumento de expressão espontânea, fornecen-do pistas eficazes para o processo de aprendi-zagem na medida em que envolve vínculos emedia a interação sujeito/mundo.

De acordo com Porto e Cruz (2002), a pre-sença da prática lúdica na educação assumiu

9 O processo ensino-aprendizagem é também um momentode ruptura, pois o educando nega a continuidade (o conhe-cimento cotidiano) para incorporar o conhecimento siste-matizado: “a ruptura é a confiança na obra prima e no papelda escola de modo que o aluno não fique alheio a ela.”(SNYDERS, 1995, p. 161).

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três posicionamentos. A primeira está ligada àpedagogia tradicional 10 que não admitia a pre-sença de jogos e brincadeiras em sala de aula.A segunda posição, de acordo com as autoras,se ancorou nas correntes pedagógicas escola-novista11 e construtivista, e admite a importân-cia do jogo como recurso ou fins paraaprendizagem de conteúdos:

Fica claro que, neste caso, o jogo só atinge seustatus de importante na escola se estiver associa-do a essa função de facilitar ou exercitar conheci-mentos. A proposição é feita pelo professor. Comessa prática, os professores acabam reduzindo apossibilidade de brincar a momentos, muitas ve-zes, sem significado para as crianças, pois des-carta uma das principais características do jogo,que é ser fruto de ação livre e voluntária. (POR-TO; CRUZ, 2002, p. 154).

A terceira posição se recusa à visão da ludi-cidade como adorno ao processo ensino apren-dizagem, e defende, além do jogo dirigido, abrincadeira livre na educação das crianças, ten-do como objetivo o desenvolvimento humano emsua integralidade afetiva, motora e cognitiva.

Na pesquisa realizada com os professores,observamos que uma boa parte deles utiliza osjogos como facilitadores da aprendizagem oupara substituir o material escolar, de que o alu-no, na maioria das vezes, não dispõe por contadas condições socioeconômicas, como podemosnotar no discurso da professora a seguir:

A gente divide a turma em grupos e eles gostammuito de competir. Se eu for trabalhar, por exem-plo, poluição da água, eu coloco dentro dasquestões o grupo que responder um número dequestões dentro do assunto. Fica uma certa ri-validade entre os grupos e eles ficam felizesquando conseguem acertar um determinadonúmero de questões. (...) Porque às vezes a mai-oria não consegue atingir a média. É muitocomplicado, tem turma mesmo que não gostade nada que exija assim, a população lá é mui-to carente, é tudo muito difícil, estou falandodo pessoal do fundamental, durante o dia, vaisem lápis sem caderno. Então, dentro destascoisas, destas atividades, eles conseguem se sairbem em alguma coisa. Para complementar: ‘Ogrupo que ganhou a brincadeira vai ganharmeio ponto na média’, isso motiva. E eu tam-bém me sinto melhor.

A professora, embora tenha utilizado o jogocomo mediador para a aprendizagem, trabalhacom dois aspectos que compõem a pedagogiatradicional; a competitividade e a prática de re-compensar os estudantes por meio de pontosna nota. No primeiro aspecto, ela criou um “cli-ma de rivalidade”, separando e dividindo a tur-ma em torno do jogo proposto. No segundoaspecto, reforça a avaliação classificatória erotulante que sustenta a prática tradicional napedagogia. Segundo Matui (1995), a educaçãotradicional apóia-se no maniqueísmo, atitude deseparar e dividir os seres , entre bons e ruins, ena educação este pensamento é responsávelpela separação entre prática e teoria, dissoci-ando o pensamento e a prática.

Já o terceiro posicionamento mencionadopelas autoras, ancora-se na construção dialéti-ca do conhecimento e parte do princípio daaprendizagem significativa, ou seja, aquela quetoma como contexto a vida e incentiva atos cri-ativos nos educandos, tendo como síntese atransformação da realidade, bases da Pedago-gia Histórica Crítica (SAVIANI, 2003).

Deste modo, configura-se uma educaçãocentrada na visão do ser humano integral e ina-cabado e na elaboração dialética do conheci-mento, supõe uma relação criativa e harmônicasujeito/ mundo. Neste sentido, as atividades lú-dicas podem servir como mediação na forma-ção e no trabalho do educador, para ampliar seuvínculo com os educandos, para estabelecermaior contato com os afetos ligados a sua prá-xis pedagógica, além do desenvolvimento do seunível de potencial cognitivo12 .

Partindo deste ponto de vista, a prática peda-gógica lúdica deve ser entendida não como aquelarealizada com a mera aplicação de técnicas de

10 Pedagogia que vê o homem dotado de um essência imutá-vel e pratica um ensino autoritário e rígido, no qual o pro-fessor é um ser completo , sabe mais e tem maior autorida-de, e o aluno é um ser incompleto, devendo ter respeito eobediência ao mestre. (MATUI, p. 1995).11 “Na escola nova, o adulto não é mais modelo para aeducação das crianças, porque ele também é um ser incom-pleto, em acabamento. Ninguém é dono da verdade; nãoexiste mais a autoridade do magister dixit.” (MATUI, 1995,p. 7).12 Nível de Desenvolvimento Potencial (VYGOTSKY,1988)

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dinâmicas de grupo para ensinar, mas aquela quetranscende o conteúdo e a técnica e atinge oâmago da interação educador-educando, ondeestão ancoradas a necessidade, desejo, espon-taneidade, liberdade, intencionalidade, dis-ciplina, flexibilidade e dialogicidade no pro-cesso pedagógico, como descreve Fortuna(2001):

Uma aula ludicamente inspirada não é, necessa-riamente, aquela que ensina conteúdos com jo-gos, mas aquela em que as características dobrincar estão presentes, influindo no modo deensinar do professor, na seleção de conteúdos,no papel do aluno... a aula lúdica é aquela quedesafia o aluno e o professor e situa-os comosujeitos do processo pedagógico. A tensão dodesejo de saber, a vontade de participar e a ale-gria da conquista impregnarão todos os momen-tos desta aula. (p. 116-117 – grifo nosso).

Por isso, o caráter lúdico do trabalho peda-gógico não se reduz a um conjunto de técnicasludopedagógicas e papéis legalmente definidose registrados em receituários, pois estas ativi-dades, quando mecanicamente realizadas, po-dem não ser lúdicas. O jogo, neste contexto, éusado com uma visão mais abrangente, repre-sentando uma ação lúdica, entendida comoaquela que traz espontaneidade, expressivi-dade, alegria e flexibilidade.

Desta forma, podemos tecer alguns comen-tários que auxiliam na caracterização da açãolúdica. No ensino-aprendizagem, nem sempreos jogos e brincadeiras são lúdicos. Enquantoutilizados meramente como fim de divertimen-to ou restritos a transmissão de conhecimento,podem se tornar tão mecânicos e desprazero-sos quanto algumas aulas expositivas taxadasde monótonas e “bancárias” (FREIRE, 1985).Os jogos não se reduzem ao entretenimento,pois, quando usados com ludicidade, tornam-se dispositivos fundamentais para estabelecervínculos no momento em que se realizam, àmedida em que trazem bem-estar e estimulama criatividade, facilitam a aprendizagem e aexpressão. E, por último, não somente os jogose brincadeiras podem ser utilizados como re-cursos lúdicos no processo de ensino, mas qual-quer outra experiência vivida nesta prática que

proporciona entrega, envolvimento, expressivi-dade e ampliação da consciência.

Porto (2004) esclarece que o lúdico numaatividade não é necessariamente um entreteni-mento, mas pode ser uma leitura ou escrita cri-ativa, o silêncio, o choro, configurando-se comoação integradora. E é por isso que não é o quefazemos com a atividade e sim o para que fa-zemos que torna uma atividade lúdica e inte-grativa.

Daí a necessidade de distinguir a “atividadeprodutiva lúdica” da “atividade recreativa ou deentretenimento”13 a fim de que nem a ludici-dade seja reduzida à recreação nem os jogos ebrincadeiras se limitem aos recursos didáticos.A “atividade produtiva lúdica” diz respeito a umaatividade efetiva, onde o sujeito se entrega aela com múltiplas possibilidades de interaçãoconsigo mesmo e com os outros e que abrecaminhos para construção mais prazerosa eautônoma do conhecimento, partindo de umamotivação interna. Portanto, pode ser realizadade variadas formas, desde uma brincadeira es-pontânea até uma leitura de um texto. As ativi-dades recreativas, por sua vez, são tãonecessárias quanto a primeira para o desenvol-vimento do ser humano, pois configuram o mo-mento em que ele possa brincar livre eespontaneamente e onde também ocorre ludi-cidade, porém não produzem conhecimento damesma forma que a primeira.

Nesta perspectiva, entendemos que o lúdi-co, no trabalho docente, ocorre quando há sin-tonia entre os princípios pedagógicos e osprincípios da ludicidade, propiciando maiorabertura de cada um para vida e resultandonuma experiência que vai da tensão ao prazer,do autoconhecimento ao heteroconhecimen-to, da espontaneidade à intencionalidade, dacomunicação à expressão, dos limites à au-tonomia, da emoção à razão.

Com arrimo nestes dados e na concepçãodialética do conhecimento, concluímos que umdos fundamentos da ação lúdica no trabalho

13 Cipriano C. Luckesi,(2004), aula ministrada na disciplinaLudopedagogia III, no curso de Pós-graduação na FACED/UFBA.

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docente é a mediação da continuidade, ouseja, do vinculo entre os conhecimentos espon-tâneos e científicos. Observamos que os pro-fessores, no primeiro momento do diálogo,tentam acolher as experiências de vida dos edu-candos, buscam escutá-los nas suas expectati-vas, visão de mundo e sentimentos. Acreditamosque esta seja uma forma de cuidar que emergedo afeto positivo do profissional com seu traba-lho, no qual ocorre um clima de liberdade, es-pontaneidade e respeito à comunicação eexpressão recíprocas. Tal clima é nutrido pelaludicidade como dimensão do ser humano, quetraz em si as características citadas.

Vemos como necessário para o desenvolvi-mento da afetividade positiva no trabalho que,na formação inicial e continuada, o professorpossa ser igualmente acolhido na expressão dosseus sentimentos e visão de mundo, constituin-do vínculos entre sua experiência cotidiana eos saberes necessários para a práxis pedagógi-ca. Notamos que os professores pesquisadosmostraram esta necessidade quando argumen-tam que precisam compartilhar o cotidiano desua prática para discutir as técnicas e ferra-mentas utilizadas e compreender os fatoresemocionais nela implicados, visando à forma-ção de vínculos entre os educandos, com estese os conteúdos, com os conteúdos em si.

Como outro fundamento da pedagogia lúdi-ca, apontamos o momento da análise que incluia problematização e a instrumentalização. Aproblematização abrange a mediação do con-fronto com a realidade e a ruptura dos conheci-mentos consolidados para incorporação dosnovos conhecimentos (GASPARIN, 2003).Analisamos este como momento importantepara ação lúdica, pois esta cria Zona de De-senvolvimento Potencial, segundo Vigotski(1988). Neste aspecto, destacamos a necessi-dade de desenvolver o comprometimento e acompetência política, teórica e técnica dodocente, potenciais indispensáveis para nego-ciação dos significados no processo de media-ção, onde o educador resume, valoriza,interpreta, age, decide e avalia.

Na instrumentalização, foi possível obser-var que os professores conscientes ou incons-

cientemente, utilizam na sua sala de aula váriasformas de expressão lúdica – como desenhos,poesias e música, auxiliando os educandos aelaborar uma representação mental dos conhe-cimentos analisados. Assim, os professores tam-bém nutrem seus educandos com ferramentaslúdicas, atuando nos campos onde brotam a cri-atividade, o desafio, a tensão e o prazer no pro-cesso de aprender. Os depoimentos mostraramque os professores que assim atuam tambémse nutrem dessas ferramentas, sentindo-se maisengajados e comprometidos com sua práxis.

Outro importante fundamento que destaca-mos como componente integrante da ludicida-de no trabalho docente foi a catarse, ou seja, aexpressão da nova forma de entender a reali-dade (GASPARIM, 2003). Na pesquisa, dispo-nibilizamos vários momentos em que o grupodeclarou seus sentimentos e percepções sobreo curso, ressignificando as vivências e opiniõesdebatidas. Neste momentos, os professores afir-maram que o curso representou um “interva-lo do seu cotidiano escolar” 14 no qual foipossível olhar para si mesmo (sentir, pensare agir), se conhecer na companhia dos co-legas com liberdade de expressão, esponta-neidade e superação de pré-conceitos”.Além do autoconhecimento, o professores re-velaram que o curso trouxe maior clareza so-bre seu papel como sujeitos da práxis, so-bre a crise de identidade profissional queatravessam e sobre as várias dimensões queassumem o seu trabalho. Desta forma, enten-demos, por que a catarse representa a síntesena perspectiva dialética da construção do co-nhecimento, em que foi possível perceber aconsciência ampliada, a criatividade, o co-nhecimento e autoconhecimento nos profes-sores pesquisados.

A partir de tais observações, reafirmamosnossa posição de que a formação docente inte-gra a tensão entre objetividade, formação teó-rica e lúdica, e a subjetividade que sugere aaprendizagem do ser e do conviver no tempo eespaço pedagógicos, carecendo de uma forma-

14 Semelhante ao jogo, de acordo com Huizinga (2004): umintervalo na vida cotidiana.

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ção pessoal. Esta tensão exige a mobilizaçãoequilibrada da energia entre razão e emoção que,de acordo com os estudos teóricos e os depoi-mentos dos atores sociais, recebe grande contri-buição da ludicidade para seu desempenho.

Desse modo, ampliamos nossa percepçãoda importância de elucidar a dimensão lúdicano trabalho docente a partir da integração dosprincípios da ludicidade com os princípios pe-dagógicos, segundo a óptica “sócio-histórica daconstrução do conhecimento” (GASPARIM,2003). Concordamos com Santos (2001), toda-via, quando afirma que o conhecimento destaimportância não é suficiente para garantir, noprocesso de formação, o desenvolvimento dacapacidade lúdica no trabalho pedagógico. Nes-te sentido, as atividades lúdico-corporais, utili-zadas nesta pesquisa como dispositivos deobservação e análise, se mostraram férteis nacompreensão de que a formação pessoal do-cente supõe a vivência da ludicidade paraaumentar o contato do profissional consigomesmo e com o seu objeto de trabalho (oseducandos) e para reconhecer os limites doinvestimento afetivo-energético na sua prá-xis. Sobre este assunto discutiremos no próxi-mo item.

A VIVÊNCIA LÚDICO-CORPORALNA FORMAÇÃO DOS PROFESSO-RES

A última fase da pesquisa teve como objetivoaprofundar a discussão da formação docente emsua vertente pessoal, analisando as atividadeslúdico-corporais como ferramentas para estaformação, tendo como caminho a abordagemreichiana. Assim, buscamos responder à tercei-ra e última questão norteadora desta disserta-ção: como as atividades lúdico-corporais, vi-venciadas na formação docente, podemcontribuir para o engajamento afetivo e parao equilíbrio emocional dos professores.

A formação pessoal docente, na perspecti-va que está sendo aqui apresentada, implicauma formação que “objetiva uma melhor dis-ponibilidade corporal do professor a partir das

vivências corporais que possibilitem a consci-entização das limitações e facilidade que cadaum apresenta na relação com os pares, com osobjetos e consigo mesmo.” (FALKENBACH,2004, p.66). A disponibilidade corporal implicamaior domínio e consciência dos movimentos,sentimentos e pensamentos a partir de experi-ências que abram espaço para o profissionalfalar de si: afetos, crenças, aspirações expec-tativas e opiniões.

Esta proposta de formação pessoal, formu-lada por Negrine (1998, p. 27), é integrada aoutras vertentes da formação inicial e continu-ada: teórica e pedagógica. O autor esclareceque, quanto mais se toma consciência das limi-tações, maiores as probabilidades de nos tor-narmos mais tolerantes com os outros, criandouma atitude de escuta de si e do outro, con-forme discutido neste estudo, e aqui retoma-mos com suas palavras: “dar tempo ao outro,não esperar que siga a mesma linha de quem ointerpela ou age com ela, aceitar que as pesso-as possam agir de forma diferenciada na solu-ção de problemas”. Acrescenta que a formaçãopessoal busca também descobrir potencialida-des que estejam adormecidas e que contribu-am para redimensionar a auto-imagem e aauto-estima dos professores. Para isto, propõeexperiências lúdicas, de sensibilização corporalem relação aos objetos, consigo mesmo e comseus iguais.

Indica que a âncora pedagógica da forma-ção pessoal do professor é o jogo, entendidocomo atividade lúdico-corporal e cujo instru-mento teórico-prático é o corpo. Para o autor, oadulto, quando brinca, revela o que é, libera ocorpo e, conseqüentemente, ativa o pensamen-to e a memória. E argumenta :

Toda ação pedagógica que oportuniza o adul-to brincar abre canais para que o indivíduo vi-vencie sensações de prazer que, de certo modo,desbloqueiam resistências. Neste sentido, suasexpressões são produto do inconsciente que, dealguma maneira, refletem seu estado interior.(NEGRINE, p. 1998, p.27).

Na mesma direção, Falcão (2002) lembraque a ludicidade, como estado de potência doser humano, não se situa num setor determina-

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do (psíquico, somático, espiritual), mas se cons-titui como uma síntese integradora. Dessa for-ma, assinala que o lúdico não é típico da idadeinfantil, a criança brinca porque é criança, maso adulto brinca, não porque ainda é criança, esim porque é um adulto que não perdeu a capa-cidade de brincar.

A capacidade de brincar envolve esponta-neidade, entrega, descontração, absorção eintencionalidade e, como na atividade de tra-balho, pede o uso criativo da cognição, a ima-ginação e o vínculo. Percebemos o quanto éimportante manter esta capacidade no adulto,especialmente no professor, cujo trabalho é es-sencialmente interativo e cujo corpo é bloquea-do pelos entraves decorrentes da ambigüidadede sua profissão e da despersonalização dasrelações vividas no ambiente escolar, como dis-cutimos amplamente neste estudo.

Neste sentido, compreendemos que não háespaço para o prazer, a alegria e criatividade numcorpo bloqueado e desencantado, e, por esta ra-zão, a prática da Pedagogia Lúdica precisa tra-balhar com a vivência simultânea da mente e docorpo, desbloqueando as resistências15 do pro-fissional de educação. Portanto, como instrumen-to teórico e prático desta formação, o corpo doprofessor precisa ser “lido” e “vivido” neste pro-cesso, e foi o que analisamos no discurso dosprofessores sobre as atividades lúdico-corporaisdesenvolvidas no curso de extensão.

Por que, então, não se tem atenção ao cor-po do professor na sua formação? Sobre esteassunto, uma das professoras, na entrevista, nosfala da importância do trabalho lúdico-corporal,durante sua experiência no curso de extensão:

Então é importante que a gente sempre estejavoltando pro nosso corpo na prática. Por-que uma coisa é a gente sentar, ir pra pales-tra, seminário, ir pra curso, ficar sentadinhobalançando a cabeça ou intervir ou interce-der com palavras. E outra coisa é a genteentrar pro corpo, porque nós somos o nossocorpo. Então a verdade está no nosso corpo,coisas que as vezes que a gente fala e o corpodiscorda e ali está a nossa verdade de cadaum de nós, um pouquinho ali. Assim, essa coi-sa da vivência é uma proposta que eu venhoa tempo fazendo, mas é difícil (...) que se

abrisse com a participação de professoresnessa área do corpo mesmo. Porque não temoutra solução se não começar do professor, oprofessor se amando, se gostando, se conhe-cendo. Não precisa ser a questão da terapianecessariamente, mas você trabalhar inici-almente pelo corpo.

Notamos neste depoimento que o sistemaeducacional contemporâneo não só nega ossaberes da docência, mas do que isso, nega oseu próprio corpo como expressão do seu ser eestar no mundo. Entendemos que esta tambémpode ser uma maneira de desvalorizar o traba-lho docente, pois negligencia a presença do seupróprio instrumento de trabalho. A professoraparece denunciar este fato e propõe que o afe-to e o autoconhecimento do professor sejamrelevados nos cursos de formação, começandopelo corpo onde habita a verdade dos sentimen-tos, pensamentos e ações.

A esse respeito, segundo Wallon (1968), ocorpo é o marco da existência concreta do serno mundo e é também onde se inscrevem a dore o prazer. Para ele, a emoção é a ressonânciahumana do desejo presente no corpo; este é in-tegrado nos três campos – motor, afetivo e cog-nitivo – por isso faz, sente e cria.Similarmente,na abordagem reichiana, a vida do corpo é a his-tória das emoções e sentimentos vividos pelapessoa, ou seja, o corpo é o campo energético,força que permite viver e agir. Reich explica aestrutura psíquica como unidade dinâmica defatores bio-psíquico-sociais. Sendo integradosenergeticamente, os processos psicológicos (psi-que) e os processos do corpo (soma) são funci-onalmente idênticos, como explica o autor:

O conceito de “identidade funcional”, que tivede introduzir, significa apenas que as atitidesmusculares e as atitudes de caráter têm a mesmafunção no psiquismo: podem substituir-se e po-dem influenciar-se mutuamente. Basicamente,não podem separar-se. São equivalentes na suafunção. (1961, p.230-231).

15 O conceito de resistência difere do proferido por Giroux(1997), discutido nos capítulos da dissertação em foco.Nestemomento de análise, ele ganhou o sentido psicanalíticoconcebido como forças inconscientes que se opõem aoprocesso de análise e a tomada de consciência para mantera neurose (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983).

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Os autores ora citados parecem convergirnas idéias da professora há pouco destacada,quando anota que a formação poderia começarpelo “professor se amando, se gostando, seconhecendo”. Desse modo, começar por ele éreconhecê-lo primeiramente no seu corpo, ex-pressão do seu ser e estar no mundo. Este re-conhecimento pode ser concretizado quandoancorados em experiências que envolvam ocorpo e o jogo. No corpo, ao mobilizar movi-mentos e sentimentos, tais experiências ativamo pensamento, a memória e desbloqueiam astensões.

Em se referindo ao jogo, podemos dizer queé importante se desenvolver a capacidade lúdi-ca, que requer o uso criativo da cognição, daimaginação e dos vínculos. Integradas, estasatividades lúdico-corporais nos mostrarammudanças significativas na expressão e naauto-estima dos professores, proporcionan-do maior contato consigo e com o outro emelhor saúde psíquica, que nas palavras deReich (1979), é “estar plenamente vivo em to-das as situações da vida”.

Como afirma Lowen (1977), as funções decontato, que representam as principais intera-ções com o mundo, se dão no patamar corpo-ral, no plano psíquico, com a terra e com asexualidade, e fazem emergir respectivamentea graciosidade, maior sensibilidade, senso derealidade e capacidade para o prazer. Obser-vamos tais funções na declaração dos profes-sores sobre a avaliação que fizeram do curso,usando o “corpo do grupo” como metáfora. Aose referirem à “cabeça do grupo”, mostraramque o desbloqueio das defesas racionais pro-porcionou maior integração entre os senti-mentos e pensamentos, trazendo maturidadee uma nova óptica na relação com o traba-lho: “o chão ficou mais firme e as idéias maisseguras”. No “coração do grupo”, observamosmaior graciosidade e prazer, ao declararem apresença de alegria e abertura para o diá-logo e para o acolhimento. Nas “mãos”, en-fatizaram a garra e a esperança no sentidoda renovação: “a partir delas tudo pode reco-meçar”, e nos “pés”, a firmeza e a ampliaçãoda consciência da missão social que desem-

penham, mostrando contato maior com a reali-dade e maior segurança na sua expressão.

Com âncora nesta análise, concluímos apesquisa, respondendo que a tônica das ativi-dades lúdico-corporais vivenciadas na for-mação docente possibilita contato integralcom o self (sentir, pensar e agir). Ao atua-rem nos movimentos e sentimentos, tais ativi-dades proporcionam maior consciência corporalque, por sua vez, leva o sujeito a escutar a simesmo e ter maior disponibilidade para as inte-rações.

Dessa forma, o trabalho contribuiu para for-talecer a auto-estima e a expressão desteprofissional e a aprendizagem da convivên-cia, fator importante para possibilitar o seu re-encanto com o trabalho e assim propiciar ummaior engajamento e equilíbrio afetivo-energé-tico.

Acrescentamos que o tema deste estudosugere a interpretação de outras abordagensteóricas para compreensão mais aprofundadade sua dinâmica, abrindo caminhos de análise.Considerando que a ludicidade ocupa papelfundamental nas etapas do desenvolvimentopsicológico e sociocultural, reconhecemos quea prática da pedagogia lúdica é apenas uma dasdimensões do trabalho docente que pode torná-lo mais vivo e engajado nos seus objetivos e,portanto, outras dimensões precisam ser eluci-dadas com este propósito.

Manifestamos, ainda, o argumento de que oemprego das atividades lúdico-corporais na for-mação de professores não pode obviamenteacabar com o mal-estar docente, pois este temorigem em um contexto social mais amplo, comoatestou a presente pesquisa. Quando, porém,inseridas num espaço que possibilite o profes-sor compartilhar seus impasses e questionamen-tos enfrentados no cotidiano de sua práxis, podemrepresentar uma estratégia eficaz para enfren-tar as adversidades de seu ofício, ao ampliarsua consciência e atuar no seu equilíbrio afeti-vo-energético.

Ao nos aproximarmos do final deste artigo,cumpre reiterar a noção de que, na elaboraçãode sua identidade, o professor tem alegrias, in-satisfações, prazer, amor e ódio, em decorrên-

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Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica

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cia do encontro com pessoas, do choque dasdiferenças subjetivantes de cada uma. Por isso,a relação do professor com sua profissão serásempre de encanto e desencanto, de envolvi-mento e abandono, de amor e ódio, em virtudeda especificidade do instrumento de sua práxis(conhecimento), a matéria-prima com a qual seencontra e desencontra (o educando) e a fina-lidade e o produto desta práxis: a consciênciatransformada dos educandos. Nesta perspecti-va, o cuidar do professor pressupõe uma apren-dizagem contínua e uma postura integrativa,respeitando o momento e a condição do edu-cando. É preciso, portanto, reconhecer o valornecessário do afeto no ato de educar e a im-portância deste no desenvolvimento integral dapessoa.

Almejamos que, a partir da nossa visão edos “pés onde pisamos”, a pesquisa aqui apre-

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16 Trecho da música “Daquilo que eu sei”, de Ivan Lins.17 Trecho da música “Coração de Estudante”, de Milton Nascimento

sentada possa contribuir para transformação naprática das políticas públicas de atenção ao tra-balho e à formação docente, tanto do ponto devista teórico-técnico, como na área de forma-ção pessoal e saúde do educador.

E, nesta parcela de contribuição que pude-mos oferecer, esperamos que os profissionaisde educação cuidem dos “brotos”. Dos seuspróprios brotos, mediados por uma forma-ção lúdica, que lhe proporcionem autoco-nhecimento e crescimento pessoal, e dosbrotos dos educandos, formando interaçõessadias e amadurecimento de suas potencia-lidades e autonomia de pensamento e expres-são. E, assim, “usando todos os sentidos”16 ere-encantando o coração, o trabalho docentepoderá continuar “dando flor e frutos”17 comonos diz a música (expressão contagiante do afe-to e do lúdico).

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 02.04.06

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O TEATRO-EDUCAÇÃO ENQUANTO COMPONENTECURRICULAR NO MEIO RURAL:

uma experiência na Escola Comunitária Brilho do Cristal

Rilmar Lopes da Silva*

* Mestre em Educação. Aluna especial do doutorado do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação –FACED/UFBA. Professora colaboradora da ACC - Atividade Curricular em Comunidade de Teatro-Educação – UFBA.Assessora de Currículo da Escola Comunitária Brilho do Cristal. Endereço para correspondência: Escola ComunitáriaBrilho do Cristal, Vale do Capão – 46930-000 Palmeiras-Bahia. E-mail: [email protected]

RESUMOEste artigo apresenta um relato sistematizado de uma experiência pedagógicaem Teatro-Educação desenvolvida na Escola Comunitária Brilho do Cristal(1991 a 1997), que fica localizada no Vale do Capão, Chapada Diamantina,Bahia. A Brilho do Cristal propõe um currículo construído numa relaçãodialógica, apoiando-se na Pedagogia Libertadora de Paulo Freire. A construçãode conhecimento se dá a partir do contexto sócio-político-cultural dessacomunidade rural, com o intuito de formar cidadãos com capacidade de seremcriativos, críticos, participativos e autônomos. Acreditando na Arte enquantoárea de conhecimento, o Teatro funciona como ponte-instrumento de todasas ações vivenciadas no Brilho do Cristal.

Palavras chaves: Teatro-Educação – Currículo – Pedagogia Libertadora –Área Rural

ABSTRACTTHE THEATER-EDUCATION AS COMPONENT OF CURRICULUMIN THE AGRICULTURAL REGION: an experience in the comunitaryschool Brilho do Cristal

This article presents a systemized story of a pedagogical experience in Theater-Education developed in the Communitarian School Brilho do Cristal (1991 to1997), located in the Valley of Capão, Chapada Diamantina, Bahia. The Brilhodo Cristal propose a curriculum constructed in a dialogic relation, supportingitself in the Liberating Pedagogy of Paulo Freire. The knowledge constructionis based on its social, political and cultural context of an agricultural community,with the intention to educate citizens with capacity to be creative, critical,participative and independent. Believing in the Art as knowledge area, theTheater works as bridge-instrument of all the actions lived in the Brilho doCristal.

Keywords: Theater-Education – Curriculum – Liberating Pedagogy –Agricultural Area

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Caminhando com o Teatro noBrilho

Ninguém educa ninguém,ninguém educa a si mesmo,

as pessoas se educam entre si, mediatizadas pelo mundo.

(FREIRE, 1996, p.43)

Este artigo é fruto do segundo capítulo daminha dissertação de mestrado intitulada: “OTeatro-Educação Enquanto Componente Cur-ricular no Meio Rural: O caso da Escola Co-munitária Brilho do Cristal”, sob a orientaçãodo Professor Dr. Sérgio Farias, pelo Programade Pós-Graduação da Faculdade de Educaçãoda Universidade Federal da Bahia. A EscolaComunitária Brilho do Cristal fica localizada noVale do Capão, Chapada Diamantina - Bahia.Considerando o contexto de área rural e deEscola Comunitária que sofre todo o descasocom o ensino de Teatro por parte das políticaspúblicas, é interessante saber como o Teatro-Educação se constituiu enquanto elemento cur-ricular no Brilho do Cristal, no Vale do Capão,no período de 1991 a 1997.

O Teatro faz parte das práticas pedagógi-cas da Brilho do Cristal desde a sua fundação,tendo estado presente em todo o processo deconstrução da Escola como exercício metodo-lógico experimental. Metodologicamente bus-quei trabalhar o Teatro-Educação através dejogos, brincadeiras e processos de improvisa-ções; tudo isso dentro de uma perspectiva daPedagogia Libertadora, que apresenta o diálo-go, a problematização e a contextualização comonorteadores da prática pedagógica. Nosso re-ferencial teórico era composto por Paulo Frei-re (1987, 1996), Augusto Boal (1988, 1991),Paulo Dourado & Mª Eugênia Milet (1984),Viola Spolin (1992), livros didáticos e revistaseducativas. Tínhamos também um rico referen-cial humano, as crianças e as professoras, chei-as de conhecimentos e de boas idéias, prontaspara trocar experiências, num exercício expe-rimental. Para melhor entender o lugar do Tea-tro-Educação enquanto elemento curricular nocontexto do Brilho do Cristal, que propõe a cons-

trução de um Currículo Crítico no qual as idéiasde Paulo Freire é o principal referencial políti-co-pedagógico, procurarei reconstruir os pas-sos dessa caminhada.

Vai começar o espetáculoO encontro do Teatro com a comunidade do

Vale do Capão se deu no final do ano letivo de1991, na festa de encerramento da Escola In-tegrada, neste momento o Brilho do Cristal ain-da não existia. A Escola Integrada (1988) foium projeto de um grupo de mães e pais, vindode outros lugares para morar no Vale do Ca-pão, alguns com formação acadêmica. Essaspessoas se juntaram para fazer a Escola Inte-grada e convidaram a se juntar ao projeto umpequeno grupo de mães e pais nativos que es-tavam insatisfeitos com a Escola Municipal.Nossos alunos eram nativos e alternativos1 .Oficialmente a Escola Integrada não existia, osalunos eram matriculados na Escola Municipal,logo, a submissão à prefeitura, a falta de auto-nomia, a falta de recursos financeiros, a prefei-tura colaborava com apenas um salário mínimo,enfim, tudo isso nos levou a realizar o sonho determos nosso próprio prédio, uma escola Co-munitária.

Mesmo com todas as carências, pudemoscontar com a criatividade de todos e assim oespetáculo começou. As crianças da multisse-riada (3ª e 4ª série) apresentaram uma adapta-ção teatral do conto Chapeuzinho Vermelho.A idéia dessa concepção cênica se deu pelofato de as crianças estarem trabalhando esseconto nas aulas de Português. Então um grupode criança sugeriu a montagem do referido con-to e a sugestão foi aceita por todos. O grupo decrianças alternativas já tinha tido oportunida-des de estudar em outras escolas e algumasaté já tinham feito teatro na escola. Ao contrá-rio, as crianças nativas começavam seus pri-meiros contatos com o Teatro além de trazerem

1 A comunidade do Vale do Capão denomina de nativos aspessoas que nasceram no Vale do Capão e alternativos aspessoas que vem de outros lugares morar no Vale do Capão.

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uma experiência de educação extremamenterepressora, baseada no autoritarismo.

Para realizar a construção cênica, fizemosalguns encontros com as crianças. Brincamos,identificamos o local, as ações e os persona-gens da peça. O Vale do Capão era inspiradorde simplicidade, ainda não havia luz elétrica,Rede Globo também não, o vestido de chitasatisfazia e o forró na “boca da noite” traziamuita alegria. Porém, nem tudo era poesia e amaioria das pessoas da comunidade, nativa doVale do Capão, é analfabeta ou semi-analfabe-ta, não tem assistência médica e suas habita-ções são precárias. Diante de tal contexto nãopoderíamos deixar de contemplar a subjetivida-de e a singularidade de cada um, assim como, adiversidade do grupo e da comunidade. NossoTeatro deveria ser contextualizado para quetodos o entendessem, para que houvesse inte-ração e troca de conhecimento. Nossas cons-truções cênicas teriam em sua estética a “cara”do Vale do Capão.

Como não tínhamos material cênico, fazíamosuma coleta na casa dos alternativos (roupas, sapa-tos, perucas, xales, panos e maquiagem); lembroque numa dessas vezes encontramos no caminhoum cavalete velho, meio torto, jogado fora por al-gum pedreiro. Carregamos o cavalete e o coloca-mos no palco, ainda sem saber onde o usaríamos.Rapidamente uma aluna providenciou um tapetecolorido de tiras de tecido, colocou-o sobre o cava-lete e falou: professora esse é o lugar onde ogalo vai cantar - não deu tempo de perguntar-lhe:que galo? pois no mesmo instante, um menino, umdos mais tímidos da escola, pulou sobre o cavaletee soltou um som bem alto: - curu-cu-cuuu... todosvibraram e apontando para o menino falaram: - eleé o galo... - o galo que vai acordar a vovozinha.O galo, que não existia no roteiro, passou a existir.Tais atitudes retratavam a fluência do processo cri-ativo, o nível de envolvimento das crianças no jogo,no fazer teatral.

Com o galo cantando, a vovozinha gritando,o lobo rosnando e a platéia vibrando, a drama-turgia da peça Chapeuzinho Vermelho mar-cou o início de um diálogo estético2 com acomunidade. Foi hilário, algo fantástico. Nuncaesquecerei das bocas abertas, dos olhos arre-

galados, dos aplausos e da alegria de todos di-ante desta cena teatral. A alegria era contagi-ante e dentro de mim ela ecoava a cadalembrança dos momentos agradáveis do pro-cesso de encenação. Não foi o grande espetá-culo, porém, foi grandioso para as crianças,especialmente para os nativos que nunca ti-nham tido a oportunidade de fazer Teatro.

Para falar um pouco mais da chegada doTeatro no Vale do Capão ofereço esse poema,como fruto de minhas lembranças.

Nossa luz era o dia, luz elétrica não existiaAs cortinas se fechavam antes do fim do diaBons dias...

O espetáculo continuou. A apresentação, amaterialidade do Teatro, significava o surgimentodo grande aliado. Naquele momento tinha cer-teza da possibilidade de interagir com aquelascrianças, com a comunidade escolar, tendo oTeatro como mediador.

Após a apresentação, refletindo sobre o tra-balho, percebi que a marca do nosso modelo deeducação separatista, excludente, estava refle-tida em nossa construção cênica. Tínhamos emcena personagens com fala e personagens semfala. A maioria dos alternativos tinha fala en-quanto a maioria dos nativos não tinha fala. Écerto que esta distribuição não foi pré-estabe-lecida, ela foi se moldando de acordo com iden-tidades, facilidades e passividades.Lamentavelmente por falta de formação, dereflexão prática e teórica fortalecemos nossosistema opressivo quando nos acomodamos di-ante da realidade. Percebi que não acredita-mos no outro, logo não acreditamos natransformação.

Quando o oprimido-opressor exerce sua violênciacontra um novo oprimido, ele reforça a estabilida-de da sociedade opressora. Quando, ao contrário,dirige sua violência contra o opressor, ele inicia ummovimento de decomposição dessas estruturassociais opressoras. (BOAL; 1991, p.28)

Muitas vezes somos os oprimidos-opres-sores, somos nós que fazemos essa sociedadeopressora e oprimida. Construímos uma socie-

2 Chamo aqui diálogo estético a relação de interação criada,durante a apresentação cênica, entre os atores e a platéia

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dade cujo modelo social está fundado em mo-delos hierárquicos: o patrão oprime o operário,que oprime a esposa, que oprime o filho queoprime o irmãozinho, que oprime... , modelosque estimulam o desejo dos oprimidos de umdia ser opressor ou ter o seu momento de opres-sor. Manter as crianças, que têm dificuldadesem falar sem fala traduz nossas raízes sociaise culturais.

É necessário acreditarmos que cada crian-ça, mesmo sem coragem de falar, tem algo anos dizer. Tal exercício, tão distante da rotinadas nossas escolas, as deixava inibidas. Algu-mas acham que suas falas são besteiras, outrasacham que têm a voz feia. Infelizmente os fan-tasmas da nossa educação tradicional rondamnossas crianças e a nós. Dialogar significa daro direito a todos de falarem, escutarem, refleti-rem e proporem.

Não há também diálogo se não há uma intensa fénos homens. Fé no seu poder de fazer e refazer.De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais,que não é privilégio de alguns eleitos, mas direi-tos dos homens. A fé nos homens é um dado apriori do diálogo. Por isso existe antes mesmo deque ele se instale. (FREIRE, 1987, p.81).

Portanto, para transformarmos essas estru-turas sociais opressoras precisamos mudar nos-so comportamento diante delas e precisamosnos reconstruir no exercício pedagógico. Tor-na-se imprescindível a construção de cidadãosautônomos, líderes, capazes de interferir nosmodelos sociais autoritários.

Minhas reflexões me faziam aumentar odesejo de estabelecer um diálogo com a comu-nidade através do Teatro. Vislumbrava a possi-bilidade de interferir de maneira crítica e criativano modelo de educação do Vale do Capão. Eassim, as primeiras reflexões sobre o Teatro-educação no Vale do Capão iam aflorando.

Brincando com o Teatro no BrilhoIniciamos o ano letivo de 1992 em festa, pois

estávamos no nosso próprio prédio3 . Ter nossoprédio significou nossa independência, nossaautonomia. Em assembléia geral, as crianças

elegeram o nome da escola - Escola Comunitá-ria Brilho do Cristal. Começamos com duassalas de aulas, uma varanda, uma pequena se-cretaria-biblioteca, horta, pomar, jardim, balan-ços e um aumento significativo no número decrianças na escola. Fundamos nossa Associa-ção de Pais Mestres e Amigos da Escola Co-munitária Brilho do Cristal. Acreditávamosnuma proposta coletiva, segundo a qual nossosencontros semanais com todos os professoresseriam não só para planejar como também pararefletirmos nossas práticas pedagógicas, paradarmos e pedirmos ajuda um ao outro.

Nossa equipe discente era formada por vin-te e um alunos, entre sete e quinze anos, dividi-dos em três grupos: uma sala multisseriada de1ª e 2ª série, uma sala multisseriada de e 3ª e 4ªsérie e um grupo de três crianças, de sete anos,na alfabetização. Tínhamos uma grande dife-rença de idade em nossas salas de multisseria-das, o que se constituiu em um grande desafio.Segundo os pais das crianças nativas, o costu-me local era de colocar as crianças na Escola apartir dos oito ou nove anos, pois consideravamque antes disso as crianças ainda estavam mui-to novas. Por outro lado, normalmente, desdeos cinco ou seis anos as crianças já ajudavamna roça e já possuíam uma pequena enxada.

Havia um grupo de mais ou menos cinco alu-nos que se assumiam enquanto burros. Algu-mas vezes ouvi frases assim: esse negócio deestudo não é para mim... isso não entra naminha cabeça... eu não tenho jeito para osestudos... eu sou burro mesmo... Através dedepoimentos das crianças e de alguns pais nati-vos, soubemos que era costume, na Escola Pú-blica do Vale Capão, os professores colocaremorelha de burro nas crianças, assim como, lite-ralmente, chamá-los de burros. A situação era

3 Em 1991 solicitamos à comunidade de Lothlorien a doa-ção de um terreno e nosso pedido foi atendido. Construímosnosso primeiro núcleo durante o ano letivo de 1991. Emsala de aula, fizemos nossa trena, medimos nosso terreno,desenhamos a planta-baixa da “escola dos nossos sonhos” efizemos a maquete. Em mutirão limpamos o terreno, cata-mos pedras para os primeiros alicerces, tiramos madeira namata para fazer o telhado, ganhamos telhas e cimento,fizemos rifas e pedágio, fizemos nossos adobes e levanta-mos nossas paredes.

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constrangedora, as crianças nativas eram ex-tremamente reprimidas, suas vozes eram abafa-das, podíamos perceber, através de sua posturacorporal, vergonha, susto e medo. Porém nãoera difícil roubar um sorriso de sua boca.

A dificuldade no processo de aprendizagemapresentada pelo grupo nativo era enorme emrelação à comunicação e expressão, tanto cor-poral quanto emocional. A maioria das crian-ças nativas já tinha freqüentado outro modeloescolar e trazia marcas de uma educação tra-dicional, autoritária, centrada na cópia e no cas-tigo. Conhecia de perto a repressão escolar e odescaso dos órgãos públicos, no caso a prefei-tura, com a Instituição Escola.

Trabalhar o Teatro numa perspectiva liber-tadora significou a construção de uma propostapedagógica cujas bases eram o diálogo, o amor,a brincadeira, a improvisação e a construçãocoletiva. Acreditávamos que assim poderíamoscontribuir para um melhor desenvolvimento fí-sico, emocional e racional das crianças. Coleti-vamente, na sala de aula com os alunos e noplanejamento com os professores discutíamosnossas propostas, nossas experiências. Comoaponta Freire (1996, p. 39) “é pensando critica-mente a prática de hoje ou de ontem que sepode melhorar a próxima prática”. Assim bus-quei a construção de um Teatro experimentallibertador.

A partir da realidade vigente me perguntava:Como construir uma proposta metodológica li-bertadora que consiga preencher as tantas lacu-nas detectadas? Como formar cidadãos capazesde ler e interpretar o mundo que os rodeia? Comoimpedir a evasão? Essas perguntas norteavamminha prática, por vezes me perseguiam.

Além do impressionante quadro de abando-no4 da Educação no Vale do Capão, fiquei im-pressionada com a reação das crianças diantedos alternativos. Quando as crianças viam umvisitante ou um novo morador do Vale do Ca-pão, corriam e se escondiam atrás da porta,deixando parte do rosto para o lado de fora.Num movimento de dentro para fora os seusrostos saíam, se moviam. Através dessa rea-ção, dessa imagem, via um gesto de resistênciaà inibição, um espanto e uma curiosidade dian-

te do novo, confirmando a premissa de Freire:

A curiosidade como inquietação indagadora,como inclinação ao desvelamento de algo, comopergunta verbalizada ou não, como procura deesclarecimento, como sinal de atenção que su-gere alerta faz parte integrante do fenômeno vi-tal. Não haveria criatividade sem a curiosidadeque nos move e nos põe pacientemente impaci-ente diante do mundo que não fizemos, acres-centando nele algo que fazemos. (1996; p.32)

A curiosidade das crianças me deixava cu-riosa. Apostei nesta curiosidade que nos mo-via. Juntos podíamos criar e recriar muitasestórias e através do Teatro contá-las. Nesseprocesso de reconhecimento, de troca, de prá-ticas e de reflexões, íamos trocando, nos dandoconta da nossa realidade e das nossas necessi-dades.

As interrogações me perseguiam: como in-terferir de maneira construtiva nos processosde aprendizagens das crianças? Elas precisa-vam ler e entender o mundo em que viviam,precisavam falar, chorar, discordar, brincar, gri-tar, dançar, poetizar, pintar e teatralizar. Acre-ditava que através do Teatro-educação poderiaajudá-las a ler as palavras, os gestos, o olhar, osilêncio, as formas e o mundo.

O diálogo tão defendido por Paulo Freiretornou-se ação imprescindível em nossas práti-cas pedagógicas. A práxis pedagógica passoua ter seu lugar de honra no Brilho do Cristal.Entre ação-reflexão-acão fui construindo mi-nha proposta teatral. Sendo a coletividade ter-reno fértil para desenvolvimento das crianças einerente à natureza do Teatro, na busca de umfazer teatral crítico e criativo, procurávamosexercitar o máximo a valorização da coletivida-de, todos eram sujeitos do processo. Em rodarefletíamos nossas práticas pedagógicas, nos-sas propostas cênicas, as temáticas trabalha-das eram discutidas e sugeridas pelas crianças.As construções coletivas nasciam a partir de

4 Abandono pedagógico vivido por muitos anos, reveladopor uma população basicamente composta de analfabetos,inconscientes da real necessidade da educação para o desen-volvimento da comunidade. Até o final dos anos oitentaprevalecia a educação autoritária, as orelhas de burros, e oíndice de abandono a Escola era alarmante.

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estórias coletivas construídas pelo grupo, estó-rias contadas pelos avós das crianças, estóriascriadas pelas crianças, adaptações de estóriasda literatura infantil, assim como sugestões detemas que elas estavam trabalhando na Esco-la. Todas as atividades teatrais tinham comobase metodológica as brincadeiras e os proces-sos de improvisação.

A brincadeira de faz de conta, assumir pa-péis, personagens, tão predominante nas crian-ças, favorecem a criação de situaçõesimaginárias a partir das experiências vividas. Areorganização de experiências vividas é consi-derada por Vigotski imprescindível no processode desenvolvimento das crianças, logo a cultu-ra, o saber construído no cotidiano, a troca deexperiência e a interação devem ser valoriza-das. Torna-se necessário um diálogo entre edu-cação, sociedade e cultura se desejarmos formarseres criativos, críticos.

Cabe à escola a tarefa de estimular a frui-ção do conhecimento que cada criança traz dasua experiência de mundo e valorizá-lo enquantoconteúdo significativo. É fundamental que aEscola receba outros elementos da cultura, quenão a escolarizada e, assim, possa beneficiar eenriquecer o repertório imaginativo da criançaatravés de jogos. Koudela afirma “que:”... oprocesso de atuação no Teatro deve ser basea-do na participação em jogo. Por meio do envol-vimento criado pela relação do jogo, oparticipante desenvolve liberdade pessoal den-tro do limite de regras estabelecidas e cria téc-nicas e liberdades pessoais necessárias para ojogo.” (1998, p.43)

A atividade com o brincar de fazer Teatroera oferecido às crianças que queriam partici-par, independentes da série que estivesse cur-sando. Procurava incentivar a participação dascrianças. Algumas, porém, preferiam apenasassistir. As crianças nos desafiavam constan-temente a sermos um, a encontrarmos a unida-de na diversidade.

Na busca de contemplarmos as diversida-des culturais e sociais tão presentes em nos-so contexto, optamos, em relação a nossaorganização espacial, pela atividade da roda.Além de acreditarmos na roda enquanto sím-

bolo da unidade, enquanto sistema de organi-zação espacial, na roda todos se vêem, nãohá uma distribuição hierárquica, provocado-ra de tensões, do tipo primeiro e último, fren-te e atrás, etc. A roda tornou-se elementoconstituinte de nossas práticas pedagógicas:roda de chegada, roda de conversa, roda dacomida, roda do agradecimento, roda de as-sembléia, roda de reunião, roda de cadeiras,roda de esteiras, roda de avaliação, roda dedança e brincadeiras de roda. Assim fomosnos reconhecendo e tecendo o nosso diálogo,afinal como coloca Freire:

Não há diálogo, porém, se não há um profundoamor ao mundo e aos homens. Não é possível apronúncia do mundo, que é um ato de criação erecriação, se não há amor que a infunda. Sendofundamento do diálogo o amor é, também, diálo-go. Daí que seja essencialmente tarefa de sujei-tos e que não possa verificar-se na relação dedominação. Nesta o que há de patologia de amor:sadismo em quem domina: masoquismo nos do-minados. Amor não. Porque é um ato de cora-gem nunca de medo, o amor é compromisso comos homens... Este compromisso, porque é amo-roso, é dialógico. (1987, p.80)

Acreditávamos no compromisso amoroso,na dialogicidade. Nesses dois primeiros anosna busca de uma construção pedagógica li-bertadora, experimentamos, ousamos, cria-mos e recriamos tendo como companheiro detodas as horas a brincadeira, o jogo e o Tea-tro. Dessa forma criamos nossos textos esubtextos.

Textos e SubtextosApós dois anos de experiência com o brin-

car de fazer Teatro, na interação com as crian-ças, me senti preparada para fazer uma propostamais ousada. Como eu também era professorade História aproveitei para trabalhar constru-ções cênicas a partir de algumas temáticas des-sa área. Com a proposta interdisciplinarpudemos contemplar toda a turma, inclusive ascrianças mais tímidas se interessaram pela pro-posta. Foi extremamente motivadora a idéia demontarmos as cenas de nossas pesquisas his-

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tóricas: Invasão dos Portugueses, A semanaSanta Antigamente, entre outras.

Nossas aulas de Teatro envolviam o traba-lho com os principais elementos constituintesdo Teatro: corpo, espaço e tempo. O trabalhocom as temáticas de História não impediu quetrabalhássemos também com outras temáticas,como adaptações de pequenas estórias e cons-truções coletivas. Por uma necessidade do gru-po, nossa ênfase foi dada ao trabalho corporal,porém procurávamos seguir um roteiro em nos-sos encontros: exercícios corporais, respirató-rios, espaciais, brincadeiras, jogos teatrais,improvisações, avaliação. Todas as atividadeseram desenvolvidas de maneira lúdica, tendo ojogo como uma das principais ferramentas me-todológicas. Para Spolin:

O jogo é uma forma natural de grupo que propi-cia o envolvimento e a liberdade pessoal neces-sários para a experiência. Os jogos desenvolvemas técnicas e habilidades pessoais necessáriaspara o jogo em si, através do próprio ato de jo-gar. As habilidades são desenvolvidas no pró-prio momento em que pessoa está jogando,divertindo-se ao máximo e recebendo a estimu-lação que o jogo tem para oferecer. (SPOLIN;1992, p.4)

Jogamos com o corpo, jogamos nas impro-visações, jogamos em cena e assim fomos nosassumindo enquanto jogadores. Desafiávamos-nos diante das regras que nos traziam limites.Num exercício dialógico e problematizador cri-ávamos e recriávamos as regras.

Durante o processo de construção cênicanão trabalhamos com texto escrito e sim comtexto oral e com texto corporal, ou seja, expres-são corporal. Procurava evitar ao máximo asupervalorização do texto escrito. Quando re-contávamos, procurávamos improvisar, não fi-carmos presos ao texto original. Contávamos erecontávamos o texto várias vezes, de váriasmaneiras: diferenciando-lhes a voz dos perso-nagens, diferenciando-lhes a postura corporaldos personagens, com adereços, mudando o fi-nal, explorávamos, enfim, várias possibilidadesde contar a estória. Esse processo aconteciade maneira participativa. O texto tornava-sepretexto para a construção de um novo texto.

Quando esse novo texto começava a tomar for-ma, as crianças construíam um roteiro e emseguida, dependendo do processo de alfabeti-zação de cada criança, escreviam a cena, oesquete. No caso das crianças menores ,essasadaptações se davam apenas na oralidade.

Nossas construções cênicas eram permea-das por brincadeiras. Era um grande exercíciode imaginação. Um dia recebemos uma doa-ção de alguns livros de contos infantis. As cri-anças nativas, por nunca terem tido acesso aoscontos, estavam encantadas com o mundo en-cantado. Não se cansavam de escutar a mes-ma estória repetidas vezes. Naturalmentetiveram a grande idéia de encenar um dessescontos, que foi Rapunzel.

O processo de construção cênica de Rapun-zel foi cheio de fantasias. Como a estória deRapunzel é bem simples, rapidamente foi cons-truído o seu roteiro cênico, a adaptação. Váriascrianças queriam fazer o príncipe, outras tan-tas queriam fazer Rapunzel. Fizemos, então, umrodízio de personagens. O contrário ocorreu coma Bruxa, pois ninguém queria fazer a bruxa. Elasficavam assustadas com a risada da bruxa e aachavam muito feia. No dia da estréia de Ra-punzel entrei em cena fazendo a bruxa. Estarem cena com as crianças foi extremamenteprazeroso e divertido. Confirmávamos umarelação de companheirismo, e de cumplicida-de. Juntos esquecíamos o texto e juntos impro-visávamos. Claro, que na segunda apresentaçãode Rapunzel já tínhamos nossa bruxinha dandobelíssimas gargalhadas. Depois da primeira bru-xa assumida por uma criança, muitas outrascrianças também quiseram subir na vassoura esoltar a gargalhada. Não é difícil de constatarem tal atitude o quanto aprendemos com o ou-tro, com a coragem do outro, daí a importânciado fazer coletivo, da interação.

A cada apresentação, percebia que o diálo-go estético ia crescendo. Assim que uma apre-sentação terminava já chegavam duas ou trêscrianças falando que queriam fazer Teatro. Fi-zemos várias montagens de Rapunzel, apresen-tadas por vários grupos. Houve uma montagemde Rapunzel em que as crianças fizeram o cas-telo da bruxa em cima da árvore e a corda de

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brincar de pular virou as tranças de Rapun-zel. Tais idéias, fruto da imaginação das crian-ças, eram experimentadas e refletidas por todosnós. Sempre incentivei a experimentação dasidéias, tínhamos muito tempo, muito espaço,muito corpo, ainda éramos crianças, se errás-semos, se não desse certo, mudaríamos, mistu-raríamos e transformaríamos. Nosso lema era:vamos ver se dá certo.

O principal objetivo em nossas construçõescênicas não era a formação de ator e sim expe-rimentar o fazer teatral baseado em brincadei-ras e jogos teatrais. Para que, de maneira lúdica,a criança pudesse se apropriar dos elementosconstituintes do Teatro e, conseqüentemente,fazer uso dos mesmos em seus processos criati-vos, expressivos e estéticos. Koudela observaque: “O objetivo do sistema de jogos teatrais nãoé a interpretação, mas a atuação que surge darelação de jogo”. (1998, p.50)

O jogo, a ludicidade propicia prazer, descon-tração, espontaneidade; pré-requisitos importan-tíssimos para a fluência dos processos criativos.Spolin substitui o termo ator por jogador. Com ointuito de formarmos jogadores teatrais (assu-mindo a terminologia de Spolin), produzimosmuitas cenas interessantes. O desejo de mos-trá-las era grande, as crianças se sentiam, defato, autoras, criadoras das cenas. Com certe-za, compartilhar o resultado desse processo coma comunidade escolar era inevitável.

Apresentar o Teatro à comunidade era inte-ressante pelo caráter de entretenimento e pelaoportunidade do público, a partir da apreciação,identificar alguns elementos do Teatro: cama-rim, coxia, palco, platéia, personagens e texto.Mas, antes de tudo, era significativo pelo reco-nhecimento dos processos criativos das crian-ças: reconhecê-las como construtoras de suasestórias, de seus conceitos. Precisávamos cons-truir uma cultura teatral, cultura essa que valo-rizaria o processo criativo.

Os finais das apresentações eram fortemen-te marcados pelos aplausos que me enchiamde alegria. Sentia a pulsação do Teatro na nos-sa escola, não só enquanto entretenimento, mas,sobretudo, enquanto processo criativo-interati-vo. A maioria dos pais e amigos do Brilho do

Cristal gostava muito do Teatro, o que estavamuito bem refletido através dos aplausos, dasrisadas, dos comentários positivos e incentiva-dores após as apresentações. Mas não só tí-nhamos aplausos, lamentavelmente haviaaqueles que não assistiam, não aplaudiam e fa-lavam assim: essa escola é de bruxa, essaEscola só faz brincar...

A fama de Escola de bruxa parece ter nas-cido das tantas apresentações de Rapunzel, dastantas risadas das bruxas que ecoavam na vizi-nhança. A personagem bruxa é muito popularno mundo da literatura infantil, cheio de misté-rio, tanto que a bruxa passou a ser cotadíssimapelas crianças no Teatro e daí tornaram-se ine-vitáveis às repetidas apresentações de Rapun-zel. Aos poucos, a idéia de escola de bruxa foise diluindo na medida em que vieram as fadas,os gnomos, os sacis, os lobisomens e as crian-ças. Quanto ao comentário Escola que só fazbrincar considero tal questionamento pertinenteà realidade dos pais das crianças nativas, umavez que eles não conheciam nenhuma escolaque colocasse como prioridade a brincadeira, aalegria, no processo de ensino e aprendizagem.

Apostamos nas brincadeiras, mesmo saben-do que teríamos que enfrentar um conflito cul-tural. Procuramos compreender o motivo de taisreações, afinal nossa escola abalava os princí-pios da educação tradicional, vigente no Valedo Capão. Sabíamos que o diálogo levaria a to-dos uma melhor compreensão da questão: brin-car ou não brincar? Procuramos dialogar sobretais questões em nossas reuniões pedagógicas,em nossas assembléias e em visitas particula-res às casas dos nativos.5 Sempre procura-mos falar da importância das brincadeiras, doTeatro e das artes em geral para o processo dedesenvolvimento da criança. Também aprovei-tamos a temática em questão para esclarecer-mos e fortalecermos nossas propostas emrelação a uma pedagogia que respeita o homemintegral, que tem corpo, que pensa, que brinca,que imagina, que cria. Em nossos encontros

5 Nossas visitas aconteciam periodicamente a partir das ne-cessidades. Inicialmente visitamos quase que toda a popula-ção para esclarecimento sobre os objetivos da nossa escola.

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pedagógicos eu procurava, sempre que possí-vel, relatar alguma atividade teatral que estavadesenvolvendo com as crianças e assim abrirdiscussões em relação às experiências peda-gógicas teatrais e à sua importância no proces-so de construção de conhecimento. Paradefendermos nossas idéias precisávamos co-nhecê-las.

No entanto foram às crianças, com sua trans-parência, as principais responsáveis pela aceita-ção da proposta pedagógica da Brilho do Cristal,tanto por parte dos pais como por parte dos pró-prios professores. Além de serem bastante re-ceptivas às brincadeiras, as crianças falavam bemda Escola em suas casas e com seus colegas.Com prazer, elas convidavam seus pais, familia-res e amigos a participarem de nossas festas,que eram muito alegres; tinha teatro, brincadei-ra, fogueira, muita comida e forró. Nossa escolaé marcada pela brincadeira e pelo jogo. Não sóconstruíamos uma escola como também cons-truíamos relações e conhecimento.

Aos poucos, de mãos dadas, fomos nos cons-tituindo enquanto grupo, nos apresentando, nosfortalecendo e refletindo sobre nossas propos-tas pedagógicas. E nesse processo de constru-ção de uma identidade pedagógica o Teatrofalava alto. O Teatro falar alto significava aevidência do Teatro no currículo da Brilho doCristal. A arte até hoje ainda sofre preconcei-tos, para muitos não serve para nada. No Valedo Capão não era diferente. Não bastaria teruma proposta de Teatro e executá-la, era pre-ciso criar estratégias, mecanismos dialógicos afim de problematizar os estereótipos dados àsartes, em específico ao Teatro: coisa de vea-do, coisa do diabo, coisa de desocupada edesocupado. O desafio estava posto; eu apos-tava que, com o próprio fazer teatral, podíamostransformar os preconceitos. Através do Tea-tro dialogaríamos, interagiríamos e dessa ma-neira a aceitação aconteceria. Dessa forma oreconhecimento do Teatro foi se fazendo namedida em que a platéia ia se constituindo.

O ano de 1994 chegava com novas refle-xões. A sensação é que estávamos realmentenum movimento contínuo. Naturalmente aindatínhamos muito da Pedagogia Tradicional, afi-

nal fomos todos educados dentro desse mode-lo, então nem sempre conseguíamos transgre-dir. Porém tínhamos a liberdade paraexperimentar, assumir nossos limites e, mesmosem uma base teórica sólida em relação à in-terdisciplinaridade, buscávamos uma nova ati-tude, um novo olhar sobre as questõesdisciplinares. Refletimos nossa experiência apartir da proposta interdisciplinar. Em nossosplanejamentos coletivos sempre procurávamosidentificar a partir dos relatos e dos planos deaula dos colegas, em que conteúdo, em que áreade conhecimento poderíamos trabalhar juntospara que pudéssemos construir um diálogo in-terdisciplinar.

Reavaliando o caminho percorrido com oTeatro na Brilho do Cristal me propus a desen-volver o Teatro de bonecos, dessa vez com amultisseriada da 1ª e 2ª série e com a multisse-riada de 3ª e 4ª série trabalharíamos com o Te-atro convencional, com atores e atrizes.

O Teatro de bonecos foi muito bem aceitopelo grupo da 1ª e 2ª série: os bonecos trouxe-ram alegria, ousadia e interação. Além dapossibilidade de trabalharmos a voz e a imagi-nação tivemos a oportunidade de quebrar o gelo,a passividade, a inibição de alguns. De ondevinham os textos dos bonecos? Em meio a todaessa animação, os textos iam sendo construí-dos. Quando a criança pegava o boneco, deimediato ela buscava animá-lo e estabelecia umdiálogo com outro boneco ou com as pessoasque estavam próximas ao boneco. Assim, apósuma familiarização das crianças com o bonecoeu sugeria duplas, trios, a irem para trás dopano. Inicialmente os bonecos se apresentavam;em seguida estabeleciam um diálogo espontâ-neo entre eles (bonecos) e com a platéia. Aplatéia interagia sem dificuldades, respondia,perguntava, torcia, sugeria, identificava-se comdeterminados personagens, criava e resolviaconflitos. Num processo interativo, improvisa-cional e criativo.

Mais tarde, senti necessidade de criarmosuma estória ou de fazermos uma adaptação. Lialguns poucos textos de Teatro de Boneco, po-rém não me convenci de que seriam os ideaispara trabalhar com as crianças. Resolvi traba-

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lhar com construção coletiva a partir de umtema. As crianças escolhiam um tema, normal-mente entre os que estavam sendo trabalhadoscom o professor das outras disciplinas. Na se-mana da higiene, por exemplo, como um grupode alunos estava pesquisando sobre o piolho, ascrianças criaram o esquete6 Piolho para quete quero.

O processo de construção dos esquetes sedava de maneira interativa. De início, eles ex-ploravam o tema espontaneamente, brincavamlivremente com os bonecos, passeavam pela sala,buscavam interações com outros bonecos e in-ventavam estórias. No momento em que os per-sonagens já estavam definidos entre eles, a estóriaestava fluindo bem, organizávamos nossa apre-sentação. Normalmente tínhamos uns dois ou trêselencos para cada estória, formando uma platéiabem receptiva com as crianças que não esta-vam apresentando. Quando nossa construçãodramatúrgica oral já estava tomando forma, par-tíamos para escrever um roteiro da estória queestávamos improvisando. Mais tarde, após a ex-ploração do roteiro, as crianças maiores escre-viam os diálogos, o texto.

A existência de um texto ou de um temacomo referência estimulava a improvisação. Aimprovisação no momento da ação cênica dei-xava as crianças mais à vontade. Seu universofluía continuamente. Lembro que ouvi uma cri-ança incentivando a outra, falando assim: va-mos, a gente inventa a estória na hora...

Com a turma multisseriada da 3ª e 4ª sérietrabalhamos com o Teatro convencional, comconstruções coletivas a partir de adaptação deestórias que eles escolhiam para ler. Inicialmen-te os textos eram bem pequenos, mas para elesjá eram enormes, extremamente significativose desafiadores. As maiores dificuldades se da-vam em relação à respiração, voz e movimentocorporal. Atividades como pular, dançar, reque-brar, entre outras, eram desafiadoras de seuslimites corporais. Persistindo nas brincadeirascorporais, elas foram se soltando.

Não podemos separar o fazer teatral da apre-sentação; quando se fala em Teatro se pensaem apresentar. Dessa forma, as crianças sem-pre estavam perguntando: quando a gente vai

apresentar? Para que as crianças melhor en-tendessem o lugar da platéia, esse ente paraquem elas iriam apresentar, procurava traba-lhar também com jogos cujos objetivos eramexercitar o ator e a platéia. Penso que um dosmaiores incentivos do fazer Teatro na escolafoi o exercício de apresentar e assistir. Nossasconstruções cênicas saiam de dentro da sala eiam para a varanda para serem assistidas peloscolegas. Apresentar o Teatro significava tam-bém um exercício de formação de platéia. Aformação de platéia não é só importante paraformar leitores estéticos, mas, antes de tudo,por ser elemento constituinte do Teatro.

A platéia é o membro mais reverenciado do Tea-tro. Sem platéia não há Teatro. Cada técnicaaprendida pelo ator, cada cortina e plataformano palco, cada análise feita cuidadosamente pelodiretor, cada cena coordenada é para o deleite daplatéia. Eles são nossos convidados, nossosavaliadores e o último elemento na roda que podeentão começar a girar. Ela dá significado ao es-petáculo. (SPOLIN; 1992, p.11)

Do desejo de apresentar o espetáculo nas-ce a platéia. E a platéia, por sua vez, se alimen-ta do espetáculo assistido, sem o espetáculo elatambém não existiria. Nessa relação interativarealiza-se o processo de conhecimento e auto-conhecimento. Acreditamos também que, apartir da apreciação, podemos despertar identi-dades em relação ao fazer teatral, por exem-plo: logo após as crianças da 1ª e 2ª sérieassistirem o Teatro do grupo da 3ª e 4ª sérievieram falar que também queriam fazer Teatrode gente, não só Teatro de boneco. Por outrolado, as crianças da multisseriada da 3º e 4º sérieresolveram também fazer Teatro de Bonecos.No final, bonecos e crianças se revezavam nopalco.

Não incentivávamos a criança pequena apre-sentar seus jogos dramáticos, pois queríamosevitar seu constrangimento. Porém, elas pedi-am para apresentar, com certeza, por termos acultura teatral muito presente na escola. Comobuscávamos valorizar as vozes dos sujeitos en-volvidos, procuramos dialogar com as crianças,

6 Esquete: nome dado a um pequeno texto teatral.

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refletir a respeito de suas proposta e elas, fir-mes em seu propósito, não abriam mão da apre-sentação. Tornou-se impossível evitar que ascrianças apresentassem seus Jogos Dramáti-cos. Slade afirma que o Jogo Dramático não éTeatro e, por isso, não deve ser apresentado.Para ele:

Todos são fazedores, tanto ator como público,indo para onde querem e encarando qualquerdireção que lhes apraz durante o jogo. A açãotem lugar por toda parte em volta de nós e nãoexiste a questão de quem deve representar paraquem e quem deve ficar sentado vendo quemfazendo o quê! (1978; p.18).

Compreendo o pensamento de Slade (1978),porém acredito que a apresentação não invali-da o caráter de Jogo Dramático. Também, pen-so que mesmo no palco as crianças continuamno jogo dramático, fazendo e refazendo as re-gras. O público, para as crianças, não se cons-titui enquanto platéia, elemento constituinte doTeatro, e sim enquanto convidados das crian-ças a assistirem seu jogo, seu Teatro. Não háum representar, naquele momento elas estãojogando e partilhando esse momento. Tal exer-cício, além de desinibir e de fortalecer a auto-estima, também facilitará a absorção, maistarde, dos Jogos Teatrais.

Nossa referência principal para a criançaapresentar ou não sua cena era o seu desejo,independente da idade. Nosso lema era um aju-dar o outro, respeitando as diferenças, os ta-manhos. Não existia nenhuma censura, sejaestética, seja etária. Acredito que as criançasvivenciavam seu jogo dramático no palco, nãoapresentavam Teatro. A platéia, por sua vez,assistia a um Jogo Dramático, não a uma peçateatral.

Normalmente a platéia não se dá conta dojogo dramático e cobra um comportamento te-atral, fazendo crítica do tipo: falaram baixo, fi-caram o tempo todo de costas, ficaram muitojuntinhas, e tantas outras. Para evitar esse equí-voco procuramos, antes das apresentações, in-formar a platéia sobre o que ela ia assistir: umjogo dramático, um jogo teatral, uma colagemde cenas, uma construção coletiva, uma adap-tação de texto, uma releitura ou uma peça de

Teatro. Neste processo a platéia mostrou-secomo uma grande aliada, pois além da partici-pação enquanto platéia, muitas pessoas se ofe-reciam para ajudar: montar e desmontar ocenário; recolher doações de roupas, adereçoe maquiagem; maquiar as crianças; costurar,reformar roupas e tantas outras atividades. Aforça da coletividade era pulsante, o que torna-va fértil a existência do Teatro.

Nossas construções cênicas foram toman-do forma a cada ano, a cada experiência. Acultura teatral na Brilho do Cristal se tornou umfato. Após a montagem do Casamento daRoça na festa junina de 1994 nasceu o Grupode Teatro Infantil do Brilho, que funcionavaà tarde, fora do horário escolar.

O Grupo de Teatro Infantil do Brilho seencontrava duas vezes na semana. Além dasaulas de Teatro confeccionávamos nossas rou-pas, nossos adereços e nosso cenário. Os tex-tos encenados eram construções coletivas dogrupo a partir de um determinado tema ou es-tória, definida pelas crianças. De maneira im-provisada construíamos nossas cenas que maistarde se tornariam nossos textos, nossa cons-trução coletiva. Nossos textos inicialmente eramconstruídos apenas na oralidade, a partir de es-tórias infantis. Recontávamos várias vezes e,de posse do entendimento da estória, as crian-ças improvisavam e recriavam sem nenhumadificuldade.

Para escrever nossos textos, como as cri-anças ainda não tinham uma fluência na escri-ta, primeiramente trabalhei com pequenosrelatórios. Nos relatórios pedia para que elascontassem o que estavam fazendo nos encon-tros do grupo de Teatro. O segundo exercício,antes de chegarmos à escrita do nosso texto,foi cada um escrever sobre seu personagem.Depois passamos a construir nossos roteiros e,a partir dos roteiros, começamos a escrevernossos diálogos, que se tornaram nossos tex-tos. Trabalhávamos com pequenas construçõescoletivas: esquetes e colagem de cenas. Ostemas dessas construções eram livres ou base-ados nas temáticas dos eventos da Brilho doCristal. O Teatro nos dava ânimo, nos fazia cri-ar, pensar, imaginar. Quanto mais nos encon-

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trávamos, mais produzíamos, mais nos uníamos,mais nos construíamos e mais sorríamos.

O Grupo de Teatro Infantil do Brilhomarcava sua presença cênica em todos oseventos da Brilho do Cristal. Além das apre-sentações nos eventos da escola tivemos a opor-tunidade de construirmos uma parceria com oIBAMA, que nos proporcionou apresentaçõesem diversos lugares da Chapada Diamantina,como: Lençóis, Piatã, Palmeiras, Mucugê eAndaraí. Também pudemos viajar para Salva-dor, onde nos apresentamos no Teatro SantoAntônio, no Teatro Lauro de Freitas, no HotelPelourinho e no Festival de Cultura Alternativaem Arembepe. Viajar para Salvador foi um pre-sente inesquecível para os nativos. Além deconhecer um Teatro de verdade, com direito acamarim, foi possível conhecer uma cidadegrande, o mar, o Pelourinho, o Elevador Lacer-da, o elevador de um prédio, a escada rolante, oShopping Center, o Aeroporto – assim comocrianças dormindo na rua, favelas, poluição; edessa maneira eles construíam conhecimento ese reconheciam enquanto moradores de um lu-gar privilegiado.

Todas as construções cênicas significavam,também, incentivo à leitura, escrita e criativida-de, três lacunas profundas que as crianças tra-ziam em relação ao processo de ensino-apren-dizagem. Desejávamos vê-las estimuladas paraa leitura e a escrita de maneira criativa, críticae alegre. Nesse contexto o Teatro funcionoucomo um dos maiores estímulos na construçãode conhecimento das crianças do Brilho do Cris-tal. O Teatro tornou-se o fio condutor dos pro-cessos criativos do Brilho do Cristal, como cos-tumávamos falar um para o outro: Tudo noBrilho Vira Teatro.

Tudo no Brilho Vira TeatroAs sementes do Teatro brotavam dia após

dia. Sempre tinha alguém com uma boa idéia.Em meio a toda simplicidade da nossa Escola eda nossa comunidade, nosso Teatro estavamarcando seu lugar enquanto elemento curri-cular imprescindível nas ações pedagógicas da

Brilho do Cristal. Na alegria, na brincadeira ena ousadia, contamos e recontamos estórias dofolclore, estórias que os avôs contavam, contosinfantis, parlendas e provérbios, além das estó-rias que criávamos. Divertíamos-nos, interagí-amos, nos reconhecíamos enquanto sujeitosparticipantes da história, construtores da socie-dade. Num exercício sensível, lúdico e criativo,Tudo no Brilho vira Teatro. Para melhor en-tendimento da afirmativa Tudo no Brilho ViraTeatro, apresentarei o processo de construçãode cinco atividades de Teatro-Educação queconsiderei significativas na construção da iden-tidade teatral 7 do Brilho do Cristal.

- Ato PúblicoA Escola Brilho do Cristal tem em seu ca-

lendário pedagógico algumas datas cuja explo-ração pedagógica era considerada relevante,como: Semana do Meio Ambiente, Semana doÍndio, Semana do Folclore, Semana da Prima-vera, Semana do Carnaval, Semana da Crian-ça, entre outras.

Na preparação da Semana do Meio Ambi-ente no ano de 1993, quando pensávamos umaproposta de comemorar esse dia com algumaatividade fora dos muros da Brilho do Cristal,tivemos a idéia de fazermos uma passeata, umato público. Os professores apresentaram aproposta para seus alunos, explicaram o que éum ato público e discutiram os objetivos. O atopúblico envolveria uma passeata de mais oumenos dois quilômetros para ir até a Vila e dedois quilômetros para voltar. As crianças abra-çaram a idéia com entusiasmo, afinal como ascrianças gostam mesmo é de movimento, dequebrar a rotina e de extrapolar os muros daEscola, andar não foi problema. As idéias aflo-raram em relação às possíveis ações educati-vas durante a passeata.

7 Chamo aqui de identidade teatral a nossa linha de constru-ção cênica, ou seja, o nosso jeito de trabalhar com o Tea-tro-Educação, que tem como eixo norteador da dramaturgiaa construção coletiva: criação de textos a partir de temáticas,adaptações de narrativas (literatura infantil, textos didáti-cos) e releitura de textos (contextualização).

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Na Semana do Meio Ambiente, todas as dis-ciplinas trabalhavam com a exploração do temagerador, meio ambiente. No caso do Teatro otema gerador era condutor das improvisações.A construção cênica sobre o meio ambiente,elaborada para o ato público trazia em sua in-dumentária elementos exagerados e bastantescoloridos, lembrando um pouco a estética doTeatro de Rua8 . Durante o ato público, nossaconstrução cênica era apresentada uma vez naBrilho do Cristal e outra vez no Coreto, no cen-tro do Vale do Capão.

O tema tornou-se realmente instigador decuriosidades e de processos criativos; e comoTudo no Brilho vira Teatro quem não estavaem cena, no esquete, procurava uma roupa ouuma fantasia interessante para compor o per-sonagem que ia para a passeata. As conversasentre as crianças giravam em torno da pergun-ta: você vai como para a passeata? Eu vou defolha, eu vou de girassol, eu vou ser umaárvore, eu vou de palhaço, eu vou de bor-boleta, eu vou de madame, eu vou de cor-cunda, eu vou de fada, eu vou de bruxa eeu de macaco...

No quartinho do Teatro, espaço onde guar-damos as indumentárias e os adereços teatrais,a confusão era grande, entre as fantasias e rou-pas exóticas os batons e os espelhos se perdi-am, enquanto uns passavam pasta d’ água norosto do colega. As meninas olhavam com co-biça para o acervo de sapatos de bico e saltofino. Naquele momento elas percebiam que erahora de realizar o desejo de andar de salto alto,mesmo que o sapato fosse bem maior que o pé.Assim elas iam experimentando suas idéias,opinando sobre a roupa do colega, ajudando unsaos outros, mergulhados no processo criativo.

No dia da passeata tudo estava pronto: Aspoesias viraram placas, as latas de leite compedrinhas dentro viraram instrumentos musicais.Os personagens da passeata brilhando de pur-purina com as placas para o alto, pela Rua doVale do Capão, cantavam e gritavam as pala-vras de ordem: Tire o sabão do rio queremoságua limpa. Andar faz bem ao coração e nãopolui o Capão. No caminho, além de cantar egritar as palavras de ordem, pregávamos as pla-

cas com poesias ecológicas, brincávamos comos moradores que encontrávamos nas janelas,com os motoristas que passavam de carro, nomeio do caminho, no Largo dos Brancos, pará-vamos e em roda, junto com os moradores, can-távamos. Chegando ao centro, no coreto,fizemos apresentação de poesias e Teatro paraos moradores. Após o lanche, voltamos para aEscola cantando e brincando.

A experiência com o Ato Público deu certo.No Carnaval não resistimos e botamos o Blocodo Brilho na rua; muitos outros atos públicosforam realizados. O ato público se consolidoucomo uma prática pedagógica do Brilho do Cris-tal. E até hoje não abrimos mão desse diálogo,tão prazeroso, com a comunidade.

- Do Surgimento da Terra aos Tem-pos de Hoje

Em 1994 o Teatro já fazia parte do imaginá-rio das crianças da Brilho do Cristal. Assimdurante uma pesquisa sobre a origem da Terra,a partir da teoria do Big-Bang, na sala da mul-tisseriada de 3ª e 4ª série , uma das criançassugeriu fazer a encenação da origem da Terrae sua evolução até os tempos de hoje. A cons-trução cênica foi um processo de intensa criati-vidade, que durou uma unidade - dois meses.Essa atividade teve participação ativa de todosda turma, desde: brincadeiras corporais, esco-lha de jogos, pesquisa do tema, elaboração deroteiro, construção de personagens, confecçãode indumentária, construção do cenário, a es-crita do texto até a apresentação. Lembro deum diálogo criativo no processo de construçãocênica que era mais ou menos assim:– Como vamos fazer a poeira cósmica?– Com um pano fino.– Já sei! Com filó.– Tem um monte de pedaços de filó na casinhado Teatro– Podemos pintar os filós de azul claro.

8 O teatro de rua traz em sua estética visual as cores fortes,adereços exagerados, placas informativas além da forte pre-sença da linguagem corporal a partir da ampliação gestual.

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– Lá em casa tem um mosquiteiro velho– Traga para a gente fazer a poeira cósmica...

Outra situação extremamente criativa foiuma criança intrigada com o desafio da formafísica do personagem dinossauro. Ela mexia emtudo no quartinho de Teatro em busca de algoque solucionasse seu problema. De repente, nomeio dessa aflição, ela pegou um cabo de vas-soura e colocou sob o lençol deixando seu rostoescondido, só aparecendo parte do corpo. Como lençol para o alto, em movimentos lentos egrandes falou: eu sou um dinossauro. Realmenteestávamos na frente do dinossauro. A cada ins-tante as soluções criativas iam surgindo, comouma mágica.

Primeiramente as crianças fizeram a pes-quisa e escreveram todo o resumo. Depois,transformaram o resumo em cenas, deram onome às cenas e criaram um roteiro. Em segui-da, fizeram o texto. A colagem de cena apre-sentava uma seqüência bem marcada dosurgimento da terra e de sua evolução até che-gar ao homem de hoje. O homem de hoje paraeles é o homem que produz lixo, anda rápido,come lixo, é superficial, é intelectual e é igno-rante. Para fechar o espetáculo, eles fizeram oplaneta Terra de papier-mâché e cada um emcena, na medida em que recebia a Terra da mãodo colega, falava uma poesia da própria autoriaem homenagem a Terra. A experiência de vê-los, numa atitude plena, com a Terra na mãorecitando sua poesia é indescritível.

Esse trabalho foi apresentado para os alu-nos da Brilho do Cristal e para mães e pais nareunião pedagógica9 . Dessa forma,os pais e asmães iam tomando consciência, cada vez mais,da importância do Teatro na educação das cri-anças.

- A invasão dos PortuguesesPerseguíamos o diálogo entre as disciplinas,

que fluía cada vez mais. Como estava sendotambém professora de História, resolvi proporàs crianças de 1ª a 4ª série encenarmos a inva-são dos portugueses ao Brasil. Pesquisamoscoletivamente e individualmente o conteúdo te-

mático. Identificamos as indumentárias dos por-tugueses e dos índios daquela época, o que nosserviu de inspiração para construirmos nossaindumentária. Todos ficaram muito empenha-dos nas construções de adereços, cenários eaté construíram uma oca de palha. Para ma-quiar os índios fizemos as tintas com argila, uru-cum, carvão e açafrão.

Tivemos uma apresentação itinerante queacontecia em vários lugares da Escola. Tínha-mos curumins por todo os lados. Lembro-mebem das caravelas em alto mar e chegando aterra firme. O mar era o campo de futebol, imen-so, as caravelas eram duas caixas de papelãoemendadas, com os fundos desfeitos. Todosseguravam nas bordas da caixa-caravela ecom uma postura imponente navegavam rumoàs terras indígenas. Quando eles navegavamna caravela, em alto mar, víamos seus pés, empassos, provocando o deslocamento da cara-vela, porém não deixávamos de ver a caravelae seu movimento e isso é o que para mim éinesquecível, esse momento de entrega, essemomento em que a criança assume o jogo, ojogador ou o personagem. A estética teatralestava além das aparências.

- Um Minuto de TeatroNo ano de 1995 faltou professor de Por-

tuguês e lá fui eu ser professora de Portuguêse Teatro na terceira e quarta série. Persistindona união e não na separação, propus o projetoUm minuto de Teatro. O projeto deveria serexecutado pelas crianças de maneira mais in-dependente possível, como quase todas as nos-sas propostas. Os objetivos gerais eramtransformar textos literários em textos teatraise fazer a encenação do texto adaptado. Os ob-jetivos específicos eram incentivar construçõesautônomas, trabalhar escrita e leitura, identifi-

9 Nossas reuniões pedagógicas acontecem a cada bimestre etêm como objetivo principal refletir nossos processos pe-dagógicos. Metodologicamente, optamos em trazer paranossas reuniões um pouco de nossas práticas, não só deteatro como das outras áreas, como forma de melhor seestabelecer um diálogo crítico.

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car a diferença nos dois gêneros literários tra-balhados, trabalhar atividades corporais e exer-citar processos criativos teatrais a partir dereleituras e improvisações.

Os grupos eram orientados por mim no senti-do de organização prática e técnica: chave dasala, cuidado com as roupas de teatro da Escola,manter a ordem das coisas, assumir compromis-so com o grupo, organização de um cronogramade encontros para o desenvolvimento do proces-so, contemplando leitura de texto, brincadeiras,exercícios de voz, aquecimento, improvisaçõese ensaios. As crianças se encontravam em ho-rário extra, à tarde. Desses encontros eu nãoparticipava, eram executados somente por elas.No horário de aula as crianças relatavam comoestava se dando o processo e, na medida da ne-cessidade, eu procurava ajudá-las.

Todas as segundas-feiras crianças da tercei-ra e quarta série se dividiam em grupos e cadagrupo escolhia uma estória da literatura infantilpara encenar. A partir daí os grupos passavamtoda a semana elaborando a construção cênica.Liam o texto, contavam as estórias identifica-vam o lugar, as ações, os personagens, separa-vam as cenas e escreviam. O texto era adaptado,às vezes aumentado ou diminuído, dependendoda necessidade. Quando precisava de ator ouatriz para complementar o elenco, elas mesmasconvidavam outras crianças de outras turmas eassim tínhamos também atriz convidada.

Na sexta-feira, no horário do intervalo, a se-cretaria virava camarim. De vez em quando sevia uma criança correndo, procurando algo, ou-tras chegando com caixas, um outro grupo arru-mando o cenário. Antes de começar, o apresen-tador, uma das crianças do grupo, fazia a chamadaao público, apresentava o trabalho, o tema, a es-tória que foi adaptada e pedia silêncio.

Um aspecto interessante desse projeto erasua proposta de autonomia, uma vez que as cri-anças faziam tudo sozinhas: marcavam os en-saios em horários extras na escola, escolhiam otexto, escreviam o texto teatral, dirigiam, vesti-am seus personagens, maquiavam-se e monta-vam o cenário.

Um fato curioso é que na Escola havia umgrande buraco, largo e não muito profundo, de

onde tinha sido tirada a terra para fazermos osadobes10 para construir as paredes. Um dia,um grupo de crianças resolveu apresentar suacena no buraco. A platéia foi formada ao redordo buraco. O sucesso foi grande, pois tínhamosuma excelente visão da cena. A partir dessedia, o projeto Um minuto de Teatro passou aser apresentado no buraco, que se tornou nos-so Teatro de Arena e Areia.

O projeto um minuto de Teatro conseguiumobilizar a Brilho do Cristal tanto no fazer tea-tral quanto na construção de platéia e de apreci-adores. A platéia vibrava. Os pequenos tinhamos olhos arregalados. Às sextas-feiras, as crian-ças falavam uma para a outra: hoje é dia deTeatro! O estímulo provocado pelas apresenta-ções era grande. O rodízio de artistas convida-dos aumentava e assim todas as criançasparticiparam ativamente desse projeto. Passoua ser comum encontrar pela Escola grupos decrianças, sob ou sobre as árvores, organizandopeças para apresentar na hora do intervalo, nascasas das colegas ou em festas de aniversários.

- Bolo das mãesOs anos se passavam, as crianças, algumas

já pré-adolescendo, cheias de iniciativas, tinhamse apropriado dos principais elementos consti-tuintes do Teatro. O exercício da sua criativi-dade era ação permanente nas rotinas dascrianças. Dessa forma, as palavras, os textos,as idéias, Tudo no Brilho vira Teatro, a exem-plo do bolo do dia das mães que também virouTeatro.

Estávamos preparando a festa para o Diadas Mães, escrevendo poesias que iríamos en-cenar no dia da festa, quando, de repente, umacriança falou de uma idéia que se estabeleceuno seguinte diálogo:– Vamos fazer um bolo para a festa do Dia dasMães?– Lá em casa tem ovos– Mas Rilmar não come açúcar branco e ela émãe... tem comer do bolo.

10 Adobe é o tijolo de barro feito à mão, secado no sol,típico da região.

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– Faz o bolo com rapadura– Rapadura é muito cara.– A gente pode fazer o melaço– A gente pega cana na roça de pai.– Eu sei onde tem cana fita.– Depois a gente passa no escoraçador da casade Elidiane– É aí a gente pega a garapa e põe no tachopara cozinhar– Demora muito para dar o ponto– A gente faz o fogo no terreiro, com três pe-dras é fácil.– Eu sei fazer– Eu mexo o taxo,– Eu também– Eu também...– Vamos marcar o dia para a gente ir tirar ascanas...

Após esse diálogo, todos partimos para aorganização do feitio do melaço do bolo dasmães. Como Tudo no Brilho Vira Teatro eisque uma aluna falou sua grande idéia: “Podía-mos fazer o Teatro da estória do bolo das mães,podíamos contar com foi que fizemos o bolo, aaula onde tivemos a idéia de fazer o bolo, a idéiade fazermos o Teatro até o dia da apresenta-ção...” Todos ficaram entusiasmados. Assumi-mos a proposta e lá fomos nós escrever osdiálogos, reconstituir nossa história e identificarnossas cenas.

Inicialmente, após relembrar oralmente nossoprocesso de fazer o bolo, que, inclusive, estavaem plena ação, identificamos as cenas: a idéiade fazer o bolo e o melaço, pegar a cana, moera cana, fazer o fogo, mexer a garapa, a buscados outros ingredientes, fazendo o bolo e fe-chamento. Naturalmente todas as cenas pre-vistas no roteiro tinham acontecido e isso foibastante interessante, pois, enquanto providen-ciávamos a confecção do bolo, as crianças iden-tificavam cenas para o teatro, como porexemplo, quando estávamos moendo a canauma criança falou: Regina não tem força paramoer a cana... e uma outra rapidamente falou:Vamos colocar isso na cena...

Ficou combinado, entre eles, que os perso-nagens não podiam ser interpretados pela pró-pria pessoa. Cada uma faria um colega e uma

aluna fez o personagem professora Rilmar. Fi-cou acordado que íamos dar um caráter en-graçado aos personagens através do exagero.Essa proposta evitava que eles se preocupas-sem em fazer a cópia do colega, além de tor-nar o exercício mais descontraído. Foi tudomuito divertido, as crianças se viam na outrae, às vezes, não conseguiam dar seguimentoaos ensaios de tanto que riam ao se verem naoutra. Entre as cenas colocamos músicas epoesias. Na festa das mães, durante a apre-sentação, as mães não sabiam se riam da co-micidade da cena ou se choravam de emoçãodiante da construção cênica.

Assim, vivemos momentos inesquecíveis dofazer teatral. A partir de improvisações pude-mos trabalhar com pequenas cenas, grandiosaspara as crianças. Isso nos deu possibilidade deconstruirmos os textos coletivamente, na salade aula. Normalmente os textos eram escritosdepois que estavam bem vivenciados na cena.O texto, nesse caso, é um registro do que foiconstruído cenicamente, ele não é um texto quefoi escrito para ser encenado e sim uma ence-nação, um texto corporal cênico, que se tornoutexto literário-teatral.

Nesse exercício dialógico e dialético exer-citamos: falar e escutar, criticar e propor, refle-tir e expressar o pensamento, exercíciosfundamentais para a reflexão crítica não só doselementos constituintes do Teatro como tam-bém da constituição de nossa sociedade. Des-sa forma, não é difícil concordar com Moreirae Silva, quando dizem que:

O currículo não é o veículo de algo a ser transmi-tido e passivamente absorvido, mas o terrenoem que ativamente se criará e produzirá cultura.O currículo é, assim, um terreno de produção ede política cultural, no qual os materiais existen-tes funcionam como matéria prima de criação,recriação e, sobretudo, de contestação e trans-gressão. (1995, p. 28)

Assim, nosso currículo foi se constituindoenquanto espaço de construção de conhecimen-to. A fruição das crianças em relação à apre-ensão da proposta de Teatro-Educaçãopossibilitou uma desmistificação do fazer tea-tral, da idéia errônea de que criança não faz

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Teatro, além de provocar uma ruptura com oTeatro enquanto ferramenta metodológica. Noexercício de criticar, ser criticado e propor bus-camos fortalecer o espírito coletivo, nos torna-

mos cúmplice um do outro nessa caminhada deacertos e erros no fazer teatral, no processo dealfabetização estética teatral e na construçãode leitores críticos da imagem teatral.

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 29.03.06

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DO DESENHO DAS PALAVRAS À PALAVRA DO DESENHO

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu *

* Doutor em Educação e mestre em Artes pela USP, licenciado e bacharel em Teatro pela UFBA, professor adjunto doDEDC/Campus XV, docente do quadro permanente do programa de pós-graduação em Crítica Cultural do campus IIe colaborador do programa de pós-graduação em Educação e Contemporaneidade do campus I da Uneb. Endereço paracorrespondência: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB, Departamento de Educação/Campus XV, RuaCecília Meireles, s/nº, Centro – 45400-000 Valença/BAHIA, Fone: (75) 36410599. E-mail: [email protected]

RESUMOO artigo expõe a evolutiva do grafismo infantil, segundo a perspectiva dapsicologia sócio-histórica e apresenta uma proposta terminológica original paraa etapização do desenvolvimento gráfico-plástico infantil. Discute ainda aproblemática relativa à formação do professor em arte-ensino na educaçãoinfantil e séries iniciais da escolarização nacional.

Palavras-chave: Arte infantil – Educação infantil – Ensino de arte – Formaçãode professores – Psicologia sócio-histórica

ABSTRACTFROM DRAWING WORDS TO GIVING DRAWING SOME CHANCETO SPEAK

The article exposes a historical-cultural psychological approach to child’s artand proposes an original taxonomy to its developmental features. It also presentssome problems related to art-teaching in Brazilian primary school today.

Keywords: Child art – Children education – Arts teaching – Teachers trainingprograms – Cultural historical psychology

Seria totalmente injusto pensar que todas as possibilidades criadoras das criançasse limitam exclusivamente às artes. Lamentavelmente a educação tradicional, que tem

mantido as crianças alijadas do trabalho, fez com que elas manifestassem e fomentassemsua capacidade criadora preferentemente na esfera artística. (Lev Vygotsky)

ApresentaçãoA problemática relativa ao ensino das artes

no país, hoje, põe em cheque a formação deprofessores oferecida nas licenciaturas em arte(Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), noscursos de pedagogia, em escolas normais su-periores, nas habilitações para o magistério de

nível médio e nos programas para o aperfeiço-amento em serviço do educador.

(1) Que tipo de (in)formação os profissio-nais da educação estão tendo para trabalharemcom seus alunos, de modo sistemático, as dife-rentes linguagens artísticas? (2) Se a habilita-ção para o magistério na educação infantil eséries iniciais do ensino fundamental é prerro-

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Do desenho das palavras à palavra do desenho

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gativa do pedagogo, por que nos cursos de peda-gogia e de formação de professores não são ofe-recidas disciplinas que contemplem aespecificidade estética de cada uma das lingua-gens artísticas (Artes Visuais, Dança, Música eTeatro)? (3) Por que não se busca sinalizar pro-cedimentos metodológicos para o trabalho siste-mático com cada uma das linguagens artísticasnestes cursos? (4) Se cabe exclusivamente aoartista, ao arte-educador e ao professor de arte(egresso das licenciaturas em Artes Visuais,Dança, Música e Teatro) o trabalho pedagógicocom as artes na educação infantil e séries inici-ais do ensino fundamental (1ª à 4ª série), por queé tão rara a presença desses profissionais nes-tes níveis da escolarização?

Parece-me que evitar formular questões comoas que são apresentadas acima – ou não procu-rar respondê-las – revela uma silenciosa orques-tração no sentido de “deixar tudo como está praver como é que fica”. Então, quero expor aquimeu ponto de vista em relação a esse tema.

Não tenho a ambição de ser “dono da verda-de”. Aqui, assumo propor um equacionamentonão desinteressado para essa problemática. Meuentendimento é o de que o professor da educa-ção infantil e das séries iniciais é essencialmente“polivalente”, ou seja, é aquele profissional “li-cenciado” para realizar a transposição didáticados conhecimentos de diferentes áreas do saberem creches, pré-escolas e nas séries iniciais doensino fundamental (1ª à 4ª série).

Ora, não se tem notícia de professores deMatemática ou de Língua Portuguesa, por exem-plo, atuando na educação infantil e nas quatroprimeiras séries do ensino fundamental. As li-cenciaturas em Matemática e Língua Portugue-sa têm em vista o exercício do magistériounicamente da 5ª à 8ª série do ensino funda-mental e ao longo do ensino médio. O mesmoocorre com as licenciaturas para o ensino dasdemais áreas do conhecimento (artes, educa-ção física, ciências naturais, história e geogra-fia) (BRASIL, 1998, 1997).

Os cursos de pedagogia precisam, portanto,assumir a especificidade da formação profissi-onal que se propõem a oferecer criando condi-ções de igualdade no oferecimento das

diretrizes metodológicas para o trabalho pe-dagógico com todas as áreas de conheci-mento. Afinal, a licença para o exercício domagistério na educação infantil e séries ini-ciais do ensino fundamental é prerrogativado pedagogo. Essa licença é o “caroço” dasua identidade profissional. É fundamental ocompromisso dos departamentos de educaçãoda Uneb para com a elaboração de uma matrizcurricular que não comprometa a excelência doensino de arte que os artistas, arte-educadorese professores de arte brasileiros almejam – etêm perseguido historicamente (JAPIASSU,2002, p. 49-54).

Tenho procurado estar atento ao desenvol-vimento da área de Artes Visuais no Brasil atra-vés de publicações especializadas (BARBOSA,1996; DEHEIZELIN, 1998; FERRAZ & FU-SARI, 1993a, 1993b; MOREIRA, 1984; PEN-NA, 2001; PILLAR, 1996a, 1996b, 1993). Alémdisso, busco freqüentemente participar dos en-contros (virtuais e presenciais) promovidos pelaFederação de Arte-Educadores do Brasil/FAEB. Interessa-me muito o estudo da estéticado grafismo infantil na perspectiva da psicolo-gia sócio-histórica e de sua teoria histórico-cul-tural da atividade-CHAT (AZENHA, 1995; DECAMILLIS, 2002; FERREIRA, 1998; LEVIN,1998; LURIA, 1994; MARÍN, 1985; ROCCO,1990; VYGOTSKY, 2001, 1998, 1996, 1982).

Meu objetivo com este texto é contribuir –ainda que modestamente – para a (in)formaçãodas práticas pedagógicas com as Artes Visuaisdo(a) professor(a) que irá atuar na educaçãoinfantil e séries iniciais do ensino fundamental.

Busco expor, de maneira objetiva, ao longo dotexto, subsídios teórico-práticos para que o(a)leitor(a) tenha condições de compreender melhore valorizar a expressão gráfico-plástica infantil.

Por uma estética do grafismo in-fantil

A estética do grafismo infantil refere o estu-do das condições de produção e efeitos (apre-ciação) da criação gráfico-plástica infantil.Trata-se de um campo de estudo que busca co-

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nhecer as condições materiais de produção dografismo infantil e entender o psiquismo da rea-ção estética (fruição e apreciação dos resulta-dos perceptíveis da atividade criadora da criança).

Muitos pedagogos, psicólogos, professorese arte-educadores buscaram conhecer melhore entender mais, sob variados enfoques, a esté-tica do grafismo infantil. Entre eles podemosrelacionar, por exemplo, Ana Angélica AlbanoMoreira, Analice Dutra Pillar, Arno Stern, Ce-lestin Freinet, Esteban Levin, Florence de Mé-redieu, Georg Kerschensteiner, Jean Piaget, K.Bühler, Herbert Read, Liliane Lurçat, Luquet,Luria, Rolando Valdés Marin, Rhoda Kellogg,Rudolf Arnheim, Schaefer-Simmern, Sueli Fer-reira, Victor Lowenfeld, W. Lambert Brittain eLev Vygotsky.

Esses estudiosos do grafismo infantil, semexceção, reconhecem haver determinadas fa-ses, etapas ou períodos que são comuns aossujeitos em processo de apropriação do dese-nho enquanto sistema de representação. E, defato, desde o rabisco sem intencionalidade derepresentação até a representação gráfico-plás-tica propriamente dita de objetos, qualquer umpode, claramente, identificar aspectos visuaisinvariantes no processo de apropriação do de-senho como sistema semiótico de representa-ção por parte do sujeito.

Evidentemente a criança precisa, para apren-der a desenhar, encontrar-se imersa em um am-biente no qual o lápis e o papel, por exemplo,sejam parte do “kit de ferramentas” culturalmen-te disponibilizado a ela e em efetivo uso por par-te dos membros mais experientes do seu meiosocial. Esses objetos (lápis e papel) e seus signi-ficados culturais convidam explicitamente o su-jeito a usá-los de um modo muito preciso. Osseus significados culturais só podem ser efetiva-mente apropriados pelo sujeito através da suaparticipação guiada em determinado meio so-cial. A participação guiada se dá basicamentede duas formas: (1) a partir da observação pe-riférica dos modos de agir com esses objetospor parte dos membros mais experientes do meiocultural do sujeito e (2) mediante instruções ex-plícitas ao sujeito de como ele deve fazer usodesses objetos (ROGOFF et al., 1993).

Adiante serão expostos alguns aspectos vi-suais invariantes que caracterizam etapaspercorridas por sujeitos aconchegados nas cul-turas letradas ocidentais – e em processo departicipação guiada nessas sociedades – aolongo da sua “tomada de posse” do desenhoenquanto complexo sistema de representaçãosemiótica.

Não se tem notícia – ao menos até aqui –de nenhuma tentativa de unificar, nos estudosnacionais relativos à estética do grafismo in-fantil, por exemplo, os diferentes termos utiliza-dos para caracterizar o desenvolvimento daexpressão gráfico-plástica da criança. Geral-mente, as publicações nacionais que tratam dografismo infantil costumam tomar emprestadaa nomenclatura formulada por um determinadoautor – em razão de ele ser o esteio teóricoutilizado para penetrar o vasto continente epis-temológico dos saberes sobre a expressão psi-cográfica da criança (p. ex: PILLAR, 1996a,1996b; MOREIRA, 1995). Quando não é as-sim, apresentam-se exposições de diferentesconcepções do desenvolvimento gráfico-plásti-co infantil acompanhadas de suas terminologi-as específicas para referir as sucessivas fasesda figuração no desenho da criança (p. ex: FER-REIRA, 1998).

A nomenclatura que proponho neste artigoserve ao propósito de sintetizar – sem reducio-nismos – a complexidade dos pontos de vistaenredados nas diferentes abordagens à estéti-ca do grafismo infantil. Não se trata de ecletis-mo, mas de simplificação. Busco concretizaraqui a necessária transposição didática do co-nhecimento já historicamente acumulado na área– que, a bem da verdade, e é bom que se diga:encontra-se “vivo”, em processo contínuo de(co)laboração. Evidentemente – é claro – aescolha de uma nomenclatura revela muito dolugar de onde nos propomos olhar para deter-minado objeto de estudo.

Meu pensamento é o de que nenhuma dasterminologias disponíveis no momento me pa-recem suficientemente claras para situar o(a)leitor(a) no âmbito dos saberes já historica-mente constituídos sobre o grafismo e, ao mes-mo tempo, fornecer-lhe acesso à perspectiva

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da psicologia sócio-histórica na abordagem aodesenho como sistema cultural de representa-ção semiótica.

Por exemplo, a “etapização” do grafismoinfantil formulada por Vygotsky deixa “de fora”todo um período da aquisição do sistema de re-presentação do desenho que me parece ser defundamental importância para a formação do(a)professor(a) da educação infantil e séries inici-ais do ensino fundamental. Além disso, o quese tem acesso, hoje, em língua portuguesa - arespeito da “etapização” da expressão psico-gráfica infantil formulada por Vygotsky – re-sulta de traduções livres, ou melhor, de traduçõesda tradução do russo para o espanhol.

Até a elaboração deste artigo, não se tinhanotícia do interesse de qualquer editora do paísem adquirir os direitos de publicação, em portu-guês, do ensaio psicológico em que Vygotskyaborda a problemática da construção do siste-ma semiótico do desenho – publicado sob o tí-tulo La Imaginación y el arte em la infânciapela editora Akal de Madrid (VYGOTSKY,1982).

Vygotsky, em verdade, não se propõe a in-vestigar ali o processo de apropriação do dese-nho como processo semiótico. O que ele faz nolivro é: (1) sinalizar a matriz conceitual que deveser utilizada na (co)laboração de conhecimen-tos a respeito do grafismo infantil numa pers-pectiva histórico-cultural e (2) destacar algunsaspectos visuais invariantes do desenho dacriança que caracterizam etapas muito nítidasdo processo de desenvolvimento do grafismo,discutindo-os (VYGOTSKY, 1982).

Apenas no oitavo capítulo desse livro é queVygotsky aborda o grafismo infantil. Seu focoali é o desenho como expressão observável daimaginação criadora humana. O objetivo dasua publicação é, antes, o de demonstrar a teseda constituição social da imaginação enquantofunção psicológica cultural e de como ela é re-dimensionada pelo pensamento verbal (JAPI-ASSU, 2001).

Sueli Ferreira esclarece isso muito bem: “ateoria de Vygotsky apresenta um avanço nomodo de interpretação do desenho” porque “(a)a figuração reflete o conhecimento da criança;

e (b) seu conhecimento, refletido no desenho, éo da sua [da criança] realidade conceituada,constituída pelo significado da palavra” (FER-REIRA, 1998, p. 40).

A nomenclatura para caracterizar as eta-pas do grafismo infantil e a “etapização” da ex-pressão psicográfica da criança que apresentoa seguir é, portanto, uma iniciativa que traduz omeu esforço docente no sentido de tentarre(a)presentar uma abordagem ao grafismo in-fantil que possa dar conta de estabelecer umelo entre os pressupostos teórico-metodológi-cos da teoria histórico-cultural da atividade-CHAT e o relativismo estético pós-moderno –no qual se fundamentam as diretrizes educaci-onais para a compreensão das produções artís-ticas na contemporaneidade.

O que basicamente faço a seguir é: (1)(re)tomar o conceito de esquema formuladopor Viktor Lowenfeld e W. Lambert Brittain(LOWENFELD & BRITTAIN, 1977);1 (2)apoiar-me em parte da nomenclatura utilizadapor estes psicólogos para caracterizar etapasdo grafismo infantil (LOWENFELD, 1954);(3) buscar estabelecer um diálogo entre a ter-minologia que proponho e aquela originalmen-te utilizada por Vygotsky (FERREIRA, 1998;VYGOTSKY, 1982); e, por fim, (4) justificara pertinência dos termos dos quais me sirvopara caracterizar as etapas do processo deapropriação do sistema do desenho. Antes,contudo, é meu dever apresentar ao leitor anomenclatura e a “etapização” originalmenteformuladas por Vygotsky.

A evolutiva do grafismo infantilsegundo Vygotsky

Sabe-se que o primeiro estudo brasileiro quemencionou a nomenclatura utilizada porVygotsky para caracterizar as etapas do pro-

1 O uso da palavra esquema por Lowenfeld & Brittaindifere do uso que Vygotsky faz deste vocábulo em sua pro-posta terminológica para a caracterização das etapas dografismo infantil. Adoto o conceito de esquema deLowenfeld & Brittain como ponto de partida para propor anomenclatura que apresento aqui.

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cesso de (co)laboração do desenho como sis-tema semiótico é o livro Imaginação e lingua-gem no desenho da criança, da Profª. Drª.Suely Ferreira, baseado em sua dissertação demestrado defendida na Unicamp (FERREIRA,1998).

Conheci a professora Suely quando ela fa-zia parte da diretoria da Federação de Arte-Educadores do Brasil-FAEB. Depois, sempreacabávamos nos “batendo” em encontros daFAEB e da Associação de Arte-Educadoresde São Paulo-AAESP – ou em seminários daInternational Society for Cultural and Acti-vity Research-ISCAT (Sociedade Internacionalpela Atividade e Pesquisa Cultural).

Suely informa que as quatro etapas identifi-cadas ao longo do desenvolvimento psicográficoda criança por Vygotsky são: (1) Escalão deesquemas; (2) Escalão de formalismo e esque-matismo; (3) Escalão da representação maisaproximada do real e (4) Escalão da repre-sentação propriamente dita (1998, p. 29).

Pessoalmente, prefiro denominar as etapasdescritas por Vygotsky de: (1) etapa simbóli-ca em substituição a “escalão de esquemas” –porque, como ele próprio afirma, “el pequeñoartista es mucho más simbolista que naturalis-ta” (VYGOTSKY, 1982, p. 96); (2) etapa sim-bólico-formalista no lugar de “escalão deformalismo e esquematismo” – porque, nesseperíodo, ele afirma que já se começa “a sentir-se la forma y la línea” (1982, p. 97); (3) etapaformalista veraz (ou formalista-verossímil) emsubstituição a “escalão de representação maisaproximada do real” – na qual passa a existir,segundo ele, uma “representación veraz” dosobjetos desenhados (1982, p. 97) e (4) etapaformalista plástica (ou formalista propriamentedita) no lugar de “escalão da representação pro-priamente dita” – porque, nesta etapa, Vygotskyafirma ser possível identificar-se “la imagemplástica” (1982, 99).

Daqui em diante usarei os termos que apre-sentei acima para designar as etapas que ca-racterizam cada um dos períodos escalonadospor Vygotsky, descrevendo-os. Mas vale a penalembrar: Vygotsky efetua um recorte no desen-volvimento cultural do grafismo infantil despre-

zando a “pré-história” do desenho. Por exem-plo, a fase dos rabiscos, garatujas e “da expres-são amorfa de elementos gráficos isolados” nãointeressa aos objetivos que ele possui em seuensaio psicológico (1982, p. 94).

De fato, o desenho – enquanto sistema semi-ótico – só existe efetivamente após o períododos rabiscos. No período dos rabiscos certamentenão se pode falar de atividade representacionalstricto sensu por parte da criança. A intençãode Vygotsky no livro – já disse – é demonstraras interrelações entre a imaginação criadorae a criação artística infantil ,conforme elas seapresentam e podem ser observadas ao longoparticularmente de três formas de expressãoestética na escolarização do sujeito: Literatura,Teatro e Artes Visuais/Desenho.

Vygotsky no livro – volto a dizer – está a dis-cutir a constituição social de uma importante fun-ção psíquica cultural: a imaginação criadora.Seu objeto de estudo não é o grafismo infantilenquanto tal mas, antes, as relações entre a ima-ginação criadora e a criação artística emgeral (JAPIASSU, 2001). O desenvolvimentográfico-plástico da criança é abordado por elemuito rapidamente. E só se justifica no livro porser útil ao seu empenho de demonstrar o modocomo a imaginação criadora se amplia e ad-quire um funcionamento qualitativamente supe-rior ao longo do desenvolvimento cultural dosujeito ao interagir com o pensamento verbal.

Verifica-se que a argumentação elaboradapor Vygotsky no oitavo capítulo do livro – ondeele aborda o grafismo infantil – é desenvolvidaem diálogo com os resultados de pesquisas deestudiosos da expressão psicográfica da crian-ça de sua época (BARNÉS; BAKUSHINSKII;BÜLLER; KERSCHENSTEINER; LA-BUNSKAYA & PESTEL; LEVINSTEIN;LUQUENS; POSPIÉLOVA; RICCI; SAKÚ-LINA e SELLY). O ensaio traz também umpequeno anexo com a reprodução de aproxi-madamente duas dezenas de ilustrações cole-tadas por estes pesquisadores – e às quaisVygotsky recorre para demonstrar a pertinên-cia de sua “etapização”.

Os aspectos invariantes do grafismo in-fantil são demonstrados por ele através de de-

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senhos de variados objetos, de figuras huma-nas e de animais que foram elaborados por cri-anças de condições sociais distintas e dediferentes idades. Vejamos, a seguir, os perío-dos do desenvolvimento da expressão gráfico-plástica infantil – e o que os distingue ecaracteriza – conforme o pensamento deVygotsky:

(1) Etapa simbólica (Escalão de esque-mas) – É a fase dos bonecos “cabeça-pés”,que representam, de modo resumido, a figurahumana. Trata-se da etapa em que a visãodo sujeito encontra-se totalmente subordina-da ao seu aparato dinâmico-táctil. Esta etapaé descrita por Vygotsky como o momento emque as crianças desenham os objetos “de me-mória”, sem aparente preocupação com qual-quer fidelidade à coisa representada. Ou seja:os sujeitos desenham o que já sabem sobreos objetos que buscam representar, procuran-do destacar-lhes apenas os traços que julgammais importantes. É o período em que a cri-ança “representa de forma simbólica objetosmuito distantes de seu aspecto verdadeiro ereal” (VYGOTSKY, 1982, p.94). Vygotskyexplica-nos que a arbitrariedade e a licençado desenho infantil nesta etapa é grande por-que “o pequeno artista é muito mais simbo-lista que naturalista” (1982, p. 96 – destaquemeu). Então, nas representações da pessoahumana, de maneira geral, nesta etapa, cons-tata-se que o sujeito se limita a traçar apenasduas ou três partes do corpo fazendo com queos seus desenhos sejam “mais propriamenteenumerações, ou melhor dizendo, relatos grá-ficos abreviados sobre o objeto que queremrepresentar” (1982, p. 96). É também o perí-odo dos “desenhos-radiografia” (desenhos emque as crianças traçam pessoas vestidasmostrando suas pernas sobre a roupa, porexemplo).

(2) Etapa simbólico-formalista (Escalãode formalismo e esquematismo) – É a etapaem que já se percebe maior elaboração dos tra-ços e formas do grafismo infantil. A visão e oaparato dinâmico-tactil do sujeito lutam parasubjugarem um ao outro. É o período em que acriança começa a sentir necessidade de não se

limitar apenas à enumeração dos aspectos con-cretos do objeto que representa e em que elabusca estabelecer maior número de relaçõesentre o todo representado e suas partes. Háuma espécie de mescla de aspectos formalis-tas e simbolistas na representação plástica nestaetapa. Constata-se que os desenhos permane-cem ainda simbólicos, mas, por outro lado, já sepodem identificar neles os embriões de umarepresentação mais próxima da realidade. Tra-ta-se de um período que não se distingue facil-mente da fase precedente embora os desenhosrevelem uma quantidade bem maior de deta-lhes. As figuras representadas assemelham-semais ao aspecto que de fato possuem a olhonu. Há nítido esforço do sujeito em tornar suasrepresentações mais verossímeis. Sobrevivemainda, nesta etapa, os “desenhos-radiografias.”

(3) Etapa formalista veraz (Escalão darepresentação mais aproximada do real) –É o período em que o simbolismo que se en-contrava presente nas representações típicasdas duas etapas anteriores definitivamentefenece. A visão passa a subordinar totalmenteo aparato dinâmico-táctil do sujeito. Nestafase, as representações gráficas são fiéis aoaspecto observável dos objetos representa-dos, mas a criança ainda não faz uso das téc-nicas projetivas. Nos desenhos deste períodoas convenções realistas - que enfatizam a pro-porcionalidade e o tamanho dos objetos - sãovioladas com freqüência e, em razão disso,“desestabiliza-se” toda a plasticidade da fi-guração.

(4) Etapa formalista plástica (Escalão darepresentação propriamente dita) – Nestaetapa a plasticidade da figuração é enriquecidae ampliada porque a coordenação viso-motorado sujeito já lhe permite o uso vitorioso das téc-nicas projetivas e das convenções realistas.Observa-se uma nítida passagem a um novomodo de desenhar. O sujeito não mais se satis-faz com a expressão gráfico-plástica pura e sim-plesmente: ele busca adquirir novos hábitosrepresentacionais, diferentes técnicas gráficase conhecimentos artísticos profissionais. O gra-fismo deixa de ser uma atividade com fim em simesma e converte-se em trabalho criador.

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A estética do grafismo infantilUma vez apresentada a “etapização” do

grafismo infantil segundo Vygotsky, passo aexpor um panorama dos períodos que caracte-rizam o desenvolvimento do desenho como sis-tema de representação do modo como julgoadequado a uma intervenção pedagógica tendoem vista a formação de professores para atua-rem na educação infantil e séries iniciais doensino fundamental:

(1) O rabisco descontrolado ou garatujadescontrolada – O rabisco descontrolado ougaratuja descontrolada caracteriza o períodode desenvolvimento da coordenação motora finanecessária à manipulação objetal do marcador(lápis, caneta, pincel etc). As marcas gráfico-plásticas produzidas pelo sujeito sobre o suporte(p. ex: folha de papel, parede, chão) são muitomais o resultado do “exercício” da coordenaçãode ações motoras (praxias) absolutamente indis-pensáveis para o uso adequado de variadas fer-ramentas culturais. A produção gráfico-plásticada criança, nesta etapa, possui uma naturezamuito mais expressiva do que semiótica ou sim-bólica (Figura 1). Ou seja: as “descargas” mo-toras incontroladas é que geram os rabiscos e“zigue-zagues” no suporte. Nesta fase, apenaso acaso pode levar o sujeito ao traçado, por exem-plo, das formas circulares. Traçar um círculo ain-da é uma tarefa de difícil solução para a criançaneste momento. O destrismo (uso preferencialda mão direita) e o sinestrismo (uso preferenci-al da mão esquerda) ainda não podem ser clara-mente identificados. Verifica-se que as marcasgeralmente ultrapassam os limites do suportefornecido ao sujeito (o desenho extrapola as bor-das da folha de papel). Observa-se também, emgeral, que as marcas inscritas pelo sujeito nossuportes, nesta fase, são “registradas” ali de talmodo que sugerem ter sido empregada ou muita“força” no traçado dos rabiscos ou, ao contrário,ter havido pouquíssima “pressão” com o marca-dor sobre o suporte. Costuma-se recomendar,para uso das crianças, nesta etapa, marcadoresresistentes tais como lápis de carpinteiro, giz decera, canetas hidrográficas e/ou pincéis gran-des e grossos.

Figura 1Garatuja descontrolada

(2) O rabisco controlado ou garatuja con-trolada – O rabisco controlado ou garatu-ja controlada caracteriza maior diferenciaçãoentre as marcas produzidas no suporte por ummesmo sujeito. Constata-se que o “zigue-za-gue” incontrolado da etapa inicial cede lugaràs formas circulares. Isto é: os traçados cir-culares – anteriormente frutos do acaso – ago-ra são claramente intencionais. Nesta etapa,as formas circulares se repetem freqüente-mente e vão sendo aperfeiçoadas com basenas praxias já adquiridas pela criança. Obser-vam-se, neste momento, dois fenômenos mui-to curiosos: (1) uma espécie de proliferaçãode “círculos” justapostos de diversos tamanhos– como se houvesse a “produção em série”de muitas “bolinhas” (Figura 2); e (2) a irra-diação ou desenho de formas circulares cilia-das (Figura 3). A criança demonstra comnitidez estar em um processo acelerado deaperfeiçoamento do traçado das formas cir-culares. E revela claramente já conseguir man-ter suas marcas dentro dos limites do suporteque lhe foi fornecido. Em outras palavras: osujeito nos informa ter adquirido, nesta fase,um maior controle sobre os movimentos damão. Neste período, as linhas “retas” (traçoslongos) se multiplicam e são aprimoradas pelosujeito. Surgem os primeiros atos gráficos –a tentativa de representar deliberadamenteobjetos através do grafismo (LEVIN, 1998, p.121). Nos primeiros atos gráficos tudo ocor-re como se a intenção representacional pri-meira do sujeito fosse “traída” ao longo daexecução das marcas – agora simbólicas –impressas no suporte. Isso acontece pela difi-

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culdade que o sujeito ainda experimenta emcoordenar as ações motoras complexas solici-tadas no processo de representação gráfico-plástica dos objetos. Paralelamente, ao associaras marcas produzidas sobre o suporte a deter-minados objetos da realidade concreta, a cri-ança começa a “dar nome” ao seu desenho (adizer quais objetos seu desenho busca repre-sentar).

Figura 2Garatuja controlada

Figura 3Irradiação

(3) A representação gráfico-plástica pré-esquemática – A representação gráfico-plás-tica “pré-esquemática” equivale ao períododenominado por Vygotsky de etapa simbólica(escalão de esquemas) e caracteriza a faseem que não se observam formas gráficas in-variantes para referir um determinado objeto.Sol, nuvens e pássaros, por exemplo, não sãorepresentados do mesmo jeito ou por um únicoe mesmo esquema gráfico nos sucessivos ediferentes desenhos do sujeito.2 Verifica-se,nesta etapa, o fenômeno da justaposição (Fi-

gura 4), isto é, a colocação, lado a lado, de ele-mentos que compõem o objeto representadopela criança sem aparentemente existir qual-quer relação lógica entre eles. Na representa-ção da figura humana, por exemplo, braços,cabelos, olhos e boca são desenhados ao ladoou “fora” do traçado do corpo. O grafismo, atéentão, ato impulsivo converte-se definitivamen-te em ato gráfico (LEVIN, 1998). O desenho,neste período, resulta de uma ação intencionaldo sujeito. Isto é: o desenho persegue clara-mente o objetivo de representar simbolicamen-te um determinado objeto. As marcas feitas pelacriança sobre o suporte começam a ser plane-jadas com antecedência em sua mente - valedizer, no plano intramental. Verifica-se que, nestaetapa, as praxias da criança já se encontrambastante desenvolvidas e consolidadas permi-tindo-lhe miniaturizar as marcas produzidassobre o suporte. É a partir desta etapa que sepode iniciar o aprofundamento de estudos daexpressão gráfico-plástica infantil ou expres-são psicográfica do sujeito (MARIN, 1985;VYGOTSKY, 1982).

Através da análise do processo de produ-ção gráfico-plástica do sujeito pode-se exa-minar, por exemplo, o modo como as criançasrepresentam a realidade social e consegue-se inclusive identificar estágios da constru-ção pessoal da criança concernentes àexpressão político-ideológica de determinadostemas em seus desenhos. Tais estudos cos-tumam focalizar basicamente três aspectosda atividade representacional gráfico-plásti-ca: (1) sua dimensão psicomotora; (2) suadimensão estético-conceitual, ou seja, osprincípios gráficos utilizados na construçãodos objetos representados; (3) a dimensãográfico-ideológica, quer dizer, o significadoe sentido das comunicações através do gra-fismo (MARIN, 1985, p.27).

2 O conceito referido por esquema (esquema gráfico, for-ma gráfica invariante), na nomenclatura de Lowenfeld &Brittain, difere do sentido desta palavra na expressão esca-lão de esquemas utilizada por Vygotsky. O escalão de es-quemas vygotskiano equivale ao que Lowenfeld & Brittainchamam de etapa pré-esquemática. Por isso optei por uti-lizar a expressão etapa simbólica na tradução da nomen-clatura formulada por Vygotsky.

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Figura 4Justaposição

(4) A representação gráfico-plástica es-quemática – Este período equivale à etapasimbólico-formalista (escalão de formalis-mo e esquematismo) de Vygotsky. Nesta fase,observa-se a repetição de esquemas gráficos(formas gráfico-plásticas invariantes ou este-rotipia) na representação de determinados ob-jetos. A criança “descobre” uma solução gráficapara o desenho de alguns objetos (p. ex: o bo-neco “palito” para representar o ser humano; otelhado invariavelmente com chaminé para re-presentar a cobertura das casas; a letra “v” paraos pássaros etc).

Determinados esquemas gráficos, inclu-sive, podem ser compartilhados por mais deuma criança, revelando a existência de umaautêntica cultura gráfica infantil (Figura 6).Neste caso, os sujeitos aprendem com os seuspares e com os membros mais experientesdessa “cultura gráfica infantil” muitos dos es-quemas freqüentemente observáveis em seugrafismo. Mas, atenção: só se pode afirmarexistirem esquemas gráficos, comparando-sesucessivos desenhos de um mesmo sujeito oude determinado grupo de crianças. Evidente-mente não se deve subestimar o poder auto-reprodutivo dessa cultura de esquemas nemtampouco a velocidade do seu movimento deexpansão no mundo globalizado. A dissemina-ção de esquemas gráficos nas sociedades

letradas pós-modernas ocidentais pode apre-sentar-se, à primeira vista, como resultante deuma tendência universal ou “natural” dos se-res humanos a um tipo muito preciso de práti-ca gráfica, e levar-nos a crer que a constru-ção do sistema de representação do desenhopela criança é algo espontâneo, “inato” e“igual” para todos os sujeitos. Então, vale apena lembrar que os esquemas são constru-tos histórico-culturais, ou seja, são artefatos“não-naturais”. O psicólogo Karl Ratner ex-plica muito bem esse fenômeno da “naturali-zação” de construtos histórico-culturais quan-do afirma que “a igualdade psicológica só existena medida em que tenha a sustentação de se-melhanças na vida social concreta. A univer-salidade sócio-psicológica não é um dado:ela tem que ser construída” (Destaquesmeus). (RATNER, 1995, p.119).

Ainda neste período verifica-se também ocurioso fenômeno da transparência ou raio-x (o “desenho-radiográfico” ao qual se refe-re Vygotsky). Isto é: a revelação de objetosque não seriam visíveis a olho nu por trás deuma superfície opaca no desenho (p. ex: aodesenhar a fachada de uma casa a criançamostra os móveis e objetos que supostamen-te estariam em seu interior). Além da trans-parência (Figura 5) pode ocorrer ainda,nesta fase, um outro intrigante fenômeno: orebatimento. O rebatimento é uma modali-dade de representação do espaço tridimensi-onal em que as indicações de profundidade eperspectiva encontram-se desenhadas numúnico plano (p. ex: ao desenhar uma estradaentre árvores a criança representa as árvo-res como se estivessem “deitadas” ao ladodo caminho).

Neste período “esquemático” a laterali-dade axial da criança é finalmente definida(seu “lado direito” e seu “lado esquerdo” setornam evidentes) porque se observa, agora,que a dominância lateral (destrismo ou si-nestrismo) organiza o ato motor e as praxias(coordenação de ações físicas) do sujeito. Es-tabiliza-se, enfim, a prevalência manual dacriança (recorrência do uso da mão esquer-da ou direita).

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Figura 5Rebatimento (à esquerda) e transparência (à direita)

Figura 6Esquema gráfico para

a representação de mãos e pés

(5) A representação gráfico-plástica pós-esquemática – Esse período equivale às etapasformalista veraz ou formalista verossímil (es-calão da representação mais aproximada doreal) e formalista plástica ou plástica propria-mente dita (escalão da representação propri-amente dita) de Vygotsky. A superação dos es-quemas gráficos comuns à fase anterior só podeocorrer se - e quando - o sujeito for submetido auma intervenção pedagógica ou “participaçãoguiada” que o desafie a experimentar novas pos-sibilidades para o tratamento gráfico-plástico desuas representações através do desenho. Geral-mente constata-se uma tendência dos sujeitos emreproduzirem as convenções realista-naturalis-tas na representação dos objetos neste período(modalidade dominante ou hegemônica de dese-nho). Pode surgir o interesse, nesta etapa, emconhecer e dominar as técnicas projetivas eeuclidianas - ou “clássicas” - da representaçãográfico-plástica do espaço.

As técnicas projetivas consistem em con-venções que nos permitem visualmente diferen-ciar e coordenar nosso ponto de vista em rela-ção aos objetos representados graficamente.

Através delas pode-se “projetar” um objeto noespaço, fornecendo-se a noção de primeiro esegundo planos, além da impressão de profun-didade (desenho em perspectiva). Já as técni-cas euclidianas são aquelas convenções quepermitem organizar visualmente o desenho demodo tal que os objetos possam ser traçados,considerando-se sua posição, distância e pro-porção em relação ao conjunto de referênciasespaciais que organizam e estabilizam a reali-dade graficamente representada. As conven-ções projetivas e euclidianas são técnicas emgeral muito utilizadas para criarem um efeitode “ilusionismo” e de “fidelidade” da coisa re-presentada. O senso comum, por exemplo, cos-tuma denominar por “desenho bem feito” asrepresentações gráfico-plásticas que recorremàs técnicas projetivas e euclidianas.

Verifica-se também, neste período, a incor-poração de um intrigante procedimento por par-te dos sujeitos: o uso da linha de base. A linhade base é a definição - quase sempre explícita- da superfície geral em que se apóia a “cena”mostrada pelo desenho (p. ex: ao representaruma casa, seus habitantes e arredores o sujeitotraça uma linha definindo a base sobre a qualserão apoiados os objetos e figuras do dese-nho).

Recursos pedagógicos para a cole-ta sistemática do grafismo infantil

Acredito ter exposto até aqui uma propostaterminológica que considero adequada à com-preensão da “etapização” do grafismo infantil,relacionando-a à nomenclatura originalmenteutilizada por Vygotsky. O leitor deve ter perce-bido que a nomenclatura apresentada buscaatender às diretrizes formuladas pela teoria his-tórico-cultural da atividade-CHAT numa claraabordagem à expressão psicográfica da crian-ça na perspectiva da psicologia sócio-histórica.

Cabe mais uma vez lembrar que o proces-so de apropriação e (co)laboração do desenhocomo sistema de representação semióticopressupõe a intervenção deliberada do(a)professor(a) porque “não se trata de algo mas-

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sificado, natural, espontâneo, ou seja, do sur-gimento por si mesmo da criação artística in-fantil, mas que esta criação depende da habi-lidade, de hábitos estéticos determinados, dedispor de materiais etc” (VYGOTSKY, 1982,p. 102). Além disso, “no fomento da criaçãoartística infantil, incluindo a representativa,será necessário estar atento ao princípio deliberdade, como premissa indispensável paratoda atividade criadora” (1982, p. 102).

Com o que foi dito anteriormente evidencia-se toda a complexidade da problemática subja-cente ao gerenciamento das intervençõespedagógicas no âmbito do ensino das artes naeducação infantil e séries iniciais do ensino fun-damental: se, por um lado, é importante garan-tir a inventividade e liberdade de criação porparte da criança, por outro, é necessário tam-bém assegurar-lhe a posse dos materiais, re-cursos e técnicas úteis ao pleno desenvolvimentode sua atividade criadora.

No caso específico do processo de apropri-ação e (co)laboração do grafismo como siste-ma semiótico, fazer com que o sujeito venha asuperar a fase esquemática solicita o compro-misso do(a) professor(a) para com a elabora-ção de uma ambiente de aprendizado rico,estimulante e desafiador.

Neste sentido, o paradigma metodológicotriangular pode ser um grande aliado do(a)professor(a) para a melhoria da qualidade desuas intervenções pedagógicas com as ArtesVisuais na educação infantil e séries iniciais doensino fundamental (DEHEIZELIN, 1998).

A “etapização” do grafismo infantil forneceum “passeio” pelos principais períodos que ca-racterizam o desenvolvimento psicográfico dacriança. A nomenclatura que refere cada umadas fases descritas aqui me parece a mais apro-priada para lidar com o relativismo estético pós-moderno na contemporaneidade.

Evidentemente a identificação e delimitaçãode períodos comuns ao processo de apropria-ção e (co)laboração do desenho como sistemade representação, por parte do sujeito, não im-plica necessariamente compreender o “etapis-mo” ou “etapização” como “uma referêncianaturalizada da passagem do sujeito por um

percurso universal abstrato” (OLIVEIRA eoutros, 2002, p. 44).

Examinando-se o ensaio psicológico deVygotsky, constata-se que ele recorre a dese-nhos de crianças com diferentes idades (7 a 10anos) para discutir os típicos “desenhos-radio-gráficos” da etapa simbólico-formalista (es-calão de formalismo e esquematismo)(VYGOTSKY, 1982, p. 95). E mais: que algu-mas legendas dos desenhos chegam a explici-tar, inclusive, o capital cultural de seus autores:“não desenham em casa nem possuem livroscom ilustrações”; “desenha em casa e possuilivros com ilustrações” (1982, p. 112-117).

A incorporação desse tipo de legenda aosdesenhos demonstra haver uma clara tentativade sinalizar a compreensão do “etapismo” como“uma referência historicizada da passagem porum percurso culturalmente contextualizado”(OLIVEIRA e outros, 2002, p. 44).

Embora Vygotsky não explicite a adoção deum sistema “rizomático” para interrelacionar asdiferentes dimensões (cognitiva, afetiva, psico-motora, histórico-social ou cronotópica) enre-dadas na atividade do desenho, parece que eleadvoga uma análise de dados menos “estrutu-ralista” e menos “evolucionista” dos processosdesenvolvimentais.

Um indício desse tipo de análise – rizomá-tica ou pós-estruturalista – é a importância con-ferida por ele à articulação de diferentes níveisgenéticos (filogenético, macrogenético e on-togenético) em sua abordagem à constituiçãosocial do psiquismo humano – se bem que nãose pode negar que Vygotsky tece, muitas ve-zes, uma argumentação ambígua em torno daidéia de desenvolvimento (VYGOTSKY &LURIA, 1996).

Mas o desenvolvimento, na perspectiva histó-rico cultural, deve ser pensado como o conjuntodos processos de transformação que ocor-rem ao longo da vida do sujeito - e que serelacionam “tanto a fenômenos orgânicos, matu-racionais, que permitem asserções universalizan-tes sobre certos aspectos do desenvolvimento(especialmente nas menores idades), como a pro-cessos enraizados historicamente, que requeremuma contextualização histórico-cultural para se-

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rem adequadamente compreendidos” (OLIVEI-RA e outros, 2002, p. 43). Desse ponto de vista, aabordagem desenvolvimental ou evolutiva diver-ge muito do modo “desenvolvimentista” ou “evo-lucionista” de aproximação de um objeto.

Se o(a) professor(a) estiver atento às pro-duções gráfico-plásticas dos seus alunos, po-derá acompanhar os ritmos pessoais de cadacriança e identificar eventuais fases comunsà toda sua turma de educandos. Mas não bas-ta entender os mecanismos psicomotores, cog-nitivos, afetivos e histórico-culturais enreda-dos no grafismo infantil. É preciso oferecerum ambiente de aprendizado desafiador e es-timulante aos alunos que busque: (1) valorizarsua expressão psicográfica; e (2) promoveravanços nos processos singulares de apropri-ação e (co)laboração do sistema de represen-tação do desenho através da exposição do su-jeito à variadas obras de arte e do estímulo àsua experimentação artística .

Adiante, passo a expor alguns instrumentospedagógicos úteis nesse sentido. Porém, inici-almente, é necessário fazer uma distinção mui-to grosseira entre desenho e pintura. Emborarude, a diferenciação será útil para esclarecera especificidade estética dessas duas modali-dades de expressão gráfico-plástica bidimensi-onal. Evidentemente o conceito de desenho podeser ampliado - e as fronteiras entre desenho,pintura e escultura se tornarem pouco nítidas.Não cabe aqui uma discussão conceitual a esserespeito.

No desenho, pode-se dizer, o sujeito deixa-rá sempre o suporte - ou parte dele (papel, telaetc) - à mostra do observador. Ou seja: as mar-cas impressas em um determinado suporte nãoocupam nem preenchem toda a extensão de suasuperfície. Já na pintura, ao contrário, toda asuperfície do suporte é recoberta por tratamentoplástico. Atenção: deste ponto de vista dese-nho colorido não é pintura!

Tanto o desenho como a pintura são re-presentações gráfico-plásticas bidimensionais,isto é, buscam correlacionar duas dimensõesna representação visual do objeto: a altura e alargura das formas. Embora nos desenhos epinturas as formas representadas possam si-

mular possuir expessura e volume, elas – a re-presentação propriamente dita dessas formas -não são tridimensionais. Falta-lhes a terceiradimensão, o volume. Desenhar e pintar emperspectiva uma caixa, por exemplo, diferemuito de representá-la, moldá-la ou esculpi-laem três dimensões. Todavia, na escultura aaltura, largura e volume das formas são da-dos palpáveis, concretos. A escultura é umarepresentação gráfico-plástica tridimensional.

Os instrumentos pedagógicos de coleta dografismo, relacionados a seguir, aplicam-se in-distintamente às representações bi e tridimen-sionais das crianças, isto é, aos seus desenhose pinturas (representações plásticas bidimen-sionais) e esculturas (representações plásticastridimensionais).

(1) O desenho espontâneo – [Leia-se pin-tura espontânea, escultura espontânea]. Éo desenho onde não existe uma proposta temá-tica por parte do(a) professor(a). A criançabusca desenhar o que quer e o que lhe é signi-ficativo em um dado momento.

(2) O desenho da história – [Leia-se pin-tura da história, escultura da história]. O(a)professor(a) lê, conta ou apresenta através devídeo, CD-ROM, teatro de sombras ou de fan-toches, por exemplo, uma história para as cri-anças. Em seguida, propõe aos alunos quedesenhem “de cabeça” (sem uso de modelospara cópia) a história que lhes foi apresentada.

(3) A história do desenho – [Leia-se his-tória da pintura, história da escultura]. O(a)professor(a), após a atividade de desenho es-pontâneo do aluno, solicita ao aluno que contea história do seu desenho.

(4) O desenho de vivência – [Leia-se pin-tura de vivência, escultura de vivência].O(a) professor(a), após uma determinada vi-vência do grupo (excursão ao zoológico, ida aoteatro, por exemplo) solicita aos alunos o regis-tro gráfico-plástico daquela experiência.

(5) O desenho de observação – [Leia-sepintura de observação, escultura de obser-vação]. O(a) professor(a) apresenta um deter-minado objeto ou imagem à turma e, em seguida,solicita aos escolares que desenhem o que lhes écolocado à mostra (cópia do modelo).

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(6) O desenho a partir de interferência“sobre” o suporte – [Leia-se pintura a par-tir de interferência “sobre” o suporte, es-cultura a partir de interferência sobre omaterial a ser moldado]. O(a) professor(a)apresenta ao grupo suportes com uma determi-nada interferência gráfico-plastica (contendoparte de uma imagem recortada de revista, porexemplo) e, a seguir, solicita aos escolares quecompletem, desenhando, o fragmento de ilus-tração colada sobre o suporte.

(7) O desenho a partir de interferência“no” suporte – [Leia-se pintura a partir deinterferência “no” suporte]. O(a) professor(a)oferece à turma suportes em formatos variados(suporte em forma de círculo, de estrela etc) e, aseguir, pede aos escolares que façam um dese-nho espontâneo sobre eles.

(8) O desenho a partir da “reunião departes” – [Leia-se pintura a partir da “reu-nião de partes”, escultura a partir da “reu-nião de partes”]. O(a) professor(a) ofereceaos alunos envelopes grandes contendo varia-das formas recortadas em cores e tamanhosdiversos (não apenas formas geométricas). Aseguir, pede aos escolares que elaborem comelas uma composição gráfico-plástica utilizan-do as formas disponibilizadas nos envelopessobre um determinado suporte (pode ser dese-nho espontâneo, desenho de vivência, da histó-ria etc). Feita a composição, o(a) professor(a)pode solicitar ao aluno que, a seguir, desta vezsobre um novo suporte, desenhe, pinte ou es-culpa a composição elaborada com as “partes”(neste caso desenho de observação do própriodesenho do sujeito). Atenção: as composiçõescom as formas podem ser feitas solitariamenteou em grupo (duplas, trios etc). Os desenhosde observação da composição, no entanto, pre-cisam ser individuais. Pode-se propor tambéma composição de formas no computador a par-tir de softwares gráficos (o programa paint, porexemplo). Mas o desenho observado deve sernecessariamente feito do modo tradicional (ma-nualmente).

(9) O diálogo gráfico – [Leia-se diálogoplástico no caso de se solicitar pintura ou es-cultura ao aluno]. O(a) professor(a) propõe a

uma dupla de alunos que, por exemplo, faça umdesenho [pintura ou escultura] em conjunto,de maneira que os escolares se revezem, emturnos, na produção gráfico-plástica conjunta.

(10) O desenho de memória – [Leia-sepintura de memória, escultura de memória].O(a) professor(a) propõe um “jogo” no qualele(a), professor(a), irá pedir aos escolares quedesenhem “de memória” determinados objetosou cenas que serão revelados a todo o grupo(uma espécie de “ditado” gráfico-plástico).

Acredito que essas dez propostas para aatividade gráfico-plástica, relacionadas e des-critas acima, são suficientes para animar umasérie de intervenções pedagógicas do(a)professor(a) na educação infantil e séries inici-ais do ensino fundamental. Não se quer dizercom isso que as propostas para atividade comas Artes Visuais na escolarização devam serestringir apenas a elas ou exclusivamente ao“fazer” artístico. As propostas que foram apre-sentadas aqui constituem um importante con-junto de ferramentas pedagógicas úteis na coletada expressão psicográfica da criança. Costu-ma-se, porém, adotar alguns procedimentos paraa catalogação e o arquivamento sistemático daprodução gráfico-plástica do aluno:

(1) A primeira coisa a fazer é confeccionarportfólios (envelopes grandes para a guardados desenhos e pinturas de cada aluno). Pode-se propor aos próprios alunos a confecção dosseus respectivos portfólios. Embora estes se-jam encontrados já prontos em papelarias épossível confeccioná-los, por exemplo, a partirda junção de duas folhas de cartolina unidaspor fita adesiva ao longo de três das suas ex-tremidades. Em apenas uma das folhas de car-tolina - ou em cada uma delas - poderá ter sidosolicitado, anteriormente, um desenho ou pintu-ra da criança. Neste caso, as folhas devem serunidas com as faces nas quais se encontram osdesenhos ou pinturas das crianças voltadas parao exterior, claro. Toda a produção gráfico-plás-tica do aluno ao longo do ano deve ser arquiva-da em seu portfolio pessoal. Isso permitirá oacompanhamento longitudinal dos avanços, re-cuos e aspectos gráficos da expressão psico-gráfica do pré-escolar ou escolar.

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(2) Além do portfolio alguns hábitos preci-sam ser rotinizados por parte do(a) professor(a).O mais importante deles é, sempre, providenci-ar a identificação dos autores dos desenhos naface do suporte que não foi utilizada pelo sujei-to (“atrás” do desenho). A identificação deverevelar o nome do aluno, sua idade, a data daconfecção do desenho e o tipo de atividadeque lhe foi proposta. Exemplo: Bruna, cincoanos, 08 de maio de 2004, desenho espon-tâneo. Isso facilitará a avaliação por parte do(a)professor(a) da trajetória única, pessoal e in-substituível da criança em seus movimentos deapropriação e (co)laboração do desenho comosistema semiótico. Pais e pesquisadores do gra-fismo infantil, no entanto ,podem ser mais pre-cisos na identificação do tempo de existênciada criança. Neste caso, costuma-se revelar nãoapenas quantos anos a criança tem mas, tam-bém, informar a quantidade de meses e dias devida do sujeito. Exemplo: Luis, 1; 6 (30). Nes-te tipo de anotação o(a) pesquisador(a),professor(a) ou pai registra a quantidade de anos(um), de meses (seis) e dias (trinta) de vida queo sujeito possui. Observe que após o nome dacriança coloca-se uma vírgula, para logo de-pois ser informado o número que correspondeà quantidade de anos que ela possui. Em segui-da, separado por um ponto e vírgula, informa-se a quantidade de meses de vida do sujeito.Por fim, entre parênteses, registra-se com pre-cisão os dias de vida da criança (PIAGET,1978).

Considerações finaisEspero aqui ter compartilhado com você,

leitor, alguns conhecimentos teórico-práticos queme parecem indispensáveis à implementaçãode intervenções pedagógicas tendo em vista aapropriação e a (co)laboração do desenho en-quanto sistema de representação por parte doeducando.

A discussão sobre a quem cabe a responsa-bilidade do ensino das artes na educação infan-til e séries iniciais do ensino fundamentalcontinua. Na introdução ao artigo eu me posici-

onei em relação a essa problemática. E minhaopinião – já disse - é a de que esta é uma prer-rogativa do pedagogo, ou seja, do profissionalda educação - (in)formado e licenciado paraexercer o magistério nestes níveis iniciais daescolarização. Mas isso não significa excluir de-finitivamente a possibilidade de o licenciado parao ensino das diferentes linguagens artísticas(Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), dosartistas e arte-educadores atuarem junto aosprofissionais da educação infantil e das sériesiniciais do ensino fundamental.3 Mas – é claro– o professor de arte, o arte-educador e o artis-ta autodidata, neste caso, necessitam obter(in)formações adequadas para gerenciaremcompetentemente suas intervenções pedagógi-cas nestes níveis da escolarização.

A principal questão continua sendo a da(re)conceptualização dos processos (in)formativosdos profissionais da educação na perspectiva damelhoria da qualidade da educação que é ofereci-da no país. Penso que, paralelamente à tradicio-nal ênfase no saber (conhecimento), asuniversidades e agências (in)formadoras do(a)professor(a) devem cuidar também para que osaber-fazer (transposição didática do conheci-mento) e o ser (exercício consciente da profissãodocente e da cidadania) recebam a mesma aten-ção por parte dos propositores das matrizescurriculares dos cursos para a formação de pro-fessores. Isso só pode ser alcançado, no meuentendimento, a partir da indissociabilidade en-tre pesquisa-ensino no âmbito da prática refle-xiva do futuro candidato a professor.

Não se deve, no entanto, jamais esquecer que“a escola é sempre construção dos sujeitos soci-ais, que se apropriam de determinado modo daescola e das determinações sociais e estatais apartir das suas histórias particulares, e de suasexperiências” (SAWAYA, 2002, p. 205). Então,não podemos ser ingênuos: a melhoria da quali-dade da educação nacional requer a melhoria daqualidade dos processos (in)formativos dos pro-

3 A Prefeitura de São Paulo fez acertadamente concursopúblico para o ensino de artes nos CEUs abrindo inscriçõespara licenciados em arte, artistas e arte-educadores autodi-datas.

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fissionais da educação além, é claro, da eleva-ção dos índices nacionais de desenvolvimentohumano-IDH e da valorização (melhor remune-ração) do magistério. Mas daí a cruzar os bra-ços em sala de aula - e esperar a coisa ser resol-vida ao nível das macropolíticas educacionais -é, no mínimo, falta de compromisso com as clas-ses sociais alijadas de uma escolarização de boa

qualidade. Equivale a aliená-las do direito uni-versal à cultura escolar.

Hoje, estou sinceramente convencido de quesão as micropolíticas na esfera do cotidiano pro-fissional do(a) professor(a) – no âmbito de suaprática docente em sala de aula – que funda-mentalmente (re)dimensionam o poder revolu-cionário da educação.

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Recebido em 15.02.05Aprovado em 26.07.05

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AS ATIVIDADES LÚDICAS NA ALFABETIZAÇÃOPOLÍTICO-ESTÉTICA DE JOVENS E ADULTOS

Cilene Nascimento Canda*

* Mestranda em Educação, pela Universidade Federal da Bahia. Diretora do Centro Municipal de Arte-Educação eCultura Mário Gusmão - Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador. Endereço para correspondência:Avenida Cardeal da Silva, nº 30, Edf. Cláudia, Apto 22A. Federação – 40.231-250. Salvador-BA. E-mail:[email protected]

RESUMOO presente artigo tem como objetivo analisar a importância da ludicidade naconstrução do processo de conscientização na alfabetização de jovens e adultos.A metodologia utilizada baseou-se no método da pesquisa-ação, no contextoda alfabetização de jovens e adultos em uma escola municipal de Salvador. Apesquisa-ação desenvolveu-se por meio da realização de círculos de leitura,vivências em atividades lúdicas, entrevistas com estudantes e levantamentobibliográfico. Este texto trata do entrelaçamento de dois conceitos educacionais:a ludicidade e a conscientização, considerando o contexto da exclusão social,do desenvolvimento da auto-estima e do aprendizado da leitura e da escrita dejovens e adultos.Palavras-chave: Alfabetização de jovens e adultos − Auto-estima − Ludicidadee Conscientização

ABSTRACTTHE PLAYFUL ACTIVITIES IN THE POLITIC AND AESTHETICLITERACY OF YOUNG AND ADULTS

This paper aims to analyse the importance of the playful in the awarenessconstruction in the young and adult literacy. The methodology used was basedin the action – research, in the context of the young and adult literacy in amunicipal public school of Salvador (Bahia, Brazil). The research was donethrough reading circles, experiments in playful activities, interviews with studentsand literature review. This text treats the entwinement of two educationalconcepts: the playful and the awareness, considering the social exclusion context,the self-esteem development and the learning of writing and reading abilities ofyoung and adult.

Keywords: Young and adult literacy − Self-esteem − Playful and Awareness

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1. Introduzindo idéias preliminaresO presente artigo tem como objetivo te-

cer reflexões sobre a contribuição da ludici-dade no desenvolvimento do processo deconscientização na alfabetização de jovens eadultos. Esse se apresenta como um dos fru-tos da pesquisa de Mestrado “Aprender ebrincar: é só começar: A ludicidade na alfa-betização de jovens e adultos” que se encon-tra em andamento na Pós-Graduação emEducação, da Faculdade de Educação/ Uni-versidade Federal da Bahia, orientada pelaprofessora doutora Bernadete Porto. Nestapesquisa foi utilizado o método da pesquisa-ação, estando no atual momento em fase deanálise dos dados coletados e escrita da dis-sertação final. Por esta razão, convém res-saltar que este artigo não tem a finalidade deapresentar os dados e resultados da pesqui-sa; busca-se apenas refletir sobre a ludicida-de na alfabetização de jovens e adultos,trazendo à luz alguns elementos vivenciadosna práxis pedagógica. Nesta pesquisa-ação,realizada na Escola Municipal do Pau Miúdo,são trabalhados, basicamente, dois conceitosna área educacional: o conceito de ludicida-de e de conscientização, buscando discutir asua importância na alfabetização de jovens eadultos. Estes dois conceitos constituem-secomo foco central deste artigo.

Na primeira parte, busca-se compreenderquem é o aluno trabalhador inserido neste con-texto de profundas desigualdades sociais, par-tindo dos questionamentos: Como a realidadede exclusão social afeta a auto-estima destesestudantes? Quais as influências desta práticasocial no aprendizado da leitura e da escrita?

Na segunda parte deste artigo, busca-se re-fletir sobre a baixa auto-estima como um dosgraves problemas da Educação de Jovens eAdultos (EJA), situando-a no contexto de ex-clusão social brasileiro. Neste sentido, preten-de-se refletir sobre a importância da ludicidadepara o desenvolvimento da auto-estima dos edu-candos que participam de uma sociedade mar-cada pela fragmentação das dimensõeshumanas, como o pensar, o sentir e o agir.

A terceira parte deste artigo apresenta umareflexão sobre o conceito de ludicidade, basea-do nos conhecimentos construídos pelo Grupode Estudo e Pesquisa em Educação e Ludici-dade (GEPEL1 ). Além disso, estabelece-seuma compreensão sobre o conceito de consci-entização, construído pela Pedagogia Liberta-dora, tendo como principal representante oeducador Paulo Freire.

Ao final deste texto, serão tecidas algumaspossibilidades de interseção entre os dois im-portantes conceitos no âmbito da alfabetizaçãode jovens e adultos, tendo como centro a com-preensão do cenário social e econômico queinfluencia diretamente na educação das cama-das populares da sociedade. O entrelace des-tes dois conceitos e das reflexões dos estudantesentrevistados na pesquisa poderá contribuir paraa compreensão do desenvolvimento de uma al-fabetização político-estética de jovens e adul-tos, trabalhadores deste país.

2. Quem são os estudantes jovense adultos do nosso país?

O povo foge da ignorância,Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos,Contemplam essa vida numa cela

Esperam nova possibilidadeDe verem todo esse mundo se acabar

(...) Ê, ô, ô, vida de gado,povo marcado ê, povo feliz.

(Zé Ramalho)

O trecho da música de Zé Ramalho reme-te-nos aos anseios de uma classe excluída deuma série de setores sociais, mas que busca amelhoria da qualidade de vida, por meio da edu-cação e do trabalho. A esperança é o elementoque estimula o sujeito social a caminhar, mes-

1 O Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade(GEPEL) é um grupo formado por mestrandos e doutoran-dos da Universidade Federal da Bahia. O GEPEL está inseri-do na Linha de Pesquisa Educação, Arte e Diversidade, doPrograma de Pós-Graduação em Educação. Atualmente, oGEPEL é coordenado pelo professor doutor CiprianoLuckesi.

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mo sem saber, ao certo, que direção seguir. Otrabalho educativo junto a esses sujeitos permi-te-nos perceber, claramente, esta esperança eestes anseios. Olhar para a Educação de Jo-vens e Adultos representa um olhar sob a mi-nha2 práxis pedagógica; significa visualizarmeus sonhos e utopias, frente à construção deuma sociedade mais justa, além de verificar asdificuldades de aprendizagem e os desafios en-contrados nesse segmento de ensino. Olhar paraeste campo é deparar-se com as contradiçõesexistentes nos processos humanos: sonhos Xrealidade e possibilidades X limitações. É de-parar-se com o campo de incertezas que reve-lam fraquezas e conquistas na práxis pedagógi-

ca. É a compreensão de estar construindo umpercurso que não está instituído e que está sen-do trilhado permanentemente.

Olhar para estes trabalhadores analfabetos éolhar para uma parte da sociedade excluída detodo um processo oficial de acúmulo de conhe-cimentos historicamente construídos pela huma-nidade na consolidação permanente da cultura,conforme se verificou nesta pesquisa de Mes-trado, realizada na Escola Municipal do Pau Mi-údo. Neste grupo específico, grande parte dosalunos jovens e adultos sofreu a exclusão da es-cola durante a infância, tanto no que concerneao acesso, quanto à oportunidade de permanên-cia, como mostra o gráfico3 abaixo:

Com base nas respostas anunciadas pelos30 estudantes, em entrevistas coletivas destapesquisa, 63% tiveram a oportunidade de estu-dar na infância, enquanto 30% nunca tiveramcontato com uma sala de aula e 6,67% preferi-ram não opinar sobre esta questão.

Revelou-se também que 80% dos entrevis-tados que estudaram na infância, afirmaram quea experiência escolar não possibilitou o desen-volvimento da leitura e da escrita, por diversosmotivos anunciados por eles. Os motivos maisfreqüentes estavam relacionados ao fato de te-rem estudado durante um tempo restrito na es-

cola, seja por conta da distância entre a escolae a casa do aluno, principalmente para os dasáreas rurais do interior da Bahia; ou por contada necessidade de trabalhar durante a infância,dificultando as condições de freqüência a umainstituição formal de ensino e de acompanha-mento do ritmo escolar. Esta situação está re-presentada no gráfico a seguir:

2 Optei, conscientemente, em utilizar as 1ª e 3ª pessoas,por reportar-me, algumas vezes, à minha pesquisa e práticapedagógica e, outras vezes, ao contexto sócio-educacional.3 Fonte: Entrevistas realizadas com os estudantes da Educa-ção de Jovens e Adultos em sala de aula.

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Este gráfico4 mostra que grande parte deadultos não se alfabetizou durante a infânciapor sofrerem privações sociais, principalmentea exploração do trabalho infantil. Esta situaçãode exclusão social confirma a exploração dotrabalho de meninas e meninos brasileiros e detodo o mundo, conforme os dados apresenta-dos por Maurício Silva (2002):

De acordo com a OIT, 250 milhões de crian-ças entre 5 e 14 anos trabalham em todo oplaneta. Desse número, estima-se que 140milhões sejam meninos e 110 milhões, meni-nas. Elas, assim como os meninos e as mu-lheres adultas, continuam sendo exploradosem virtude de custarem menos para o capita-lista, sendo, portanto, mais hábeis e por pos-suírem mãos mais delicadas que os homens.(SILVA, 2002, p.37)

É necessário ressaltar que estes dados anun-ciados não incluem a situação do trabalho in-fantil doméstico e não-remunerado que submeteestas crianças a tarefas forçadas, impedindo-as de freqüentarem a escola na faixa etáriaadequada, conforme conta a estudante do tur-no noturno desta escola pública:

Eu nasci no interior da Bahia, em Ribeira doPombal. Minha infância não foi boa não. Agente trabalhava na roça para ajudar na casa.Minha mãe tinha 10 filhos e eu ajudei a criar.Eu fazia comida, lavava roupa, ia pegar águalonge, por isso não pude estudar. Eu ia para aescola um dia sim, um dia não. Tinha até sema-nas que eu nem ia. Eu e meus irmãos, a gentequase não brincava, porque o trabalho era

pesado demais e não sobrava tempo. (Raimun-da de Jesus de Souza, 29 anos).

No Brasil, crianças que passam por este tipode situação são, na maior parte das vezes, anal-fabetas e encontram-se vulneráveis, no ambi-ente de trabalho, aos maus-tratos físicos epsicológicos, bem como abuso emocional e se-xual pelos patrões e familiares. Além disso, es-tas crianças sofrem privações de cunhoemocional, conforme aponta Silva:

... são privadas do afeto e do apoio de seus pais,e sujeitas a humilhações por parte dos filhos deseus patrões, podendo, assim, serem afetadasde maneira indelével em suas auto-estimas, en-fim, impactando, do ponto de vista socioemoci-onal, suas subjetividades que, assim, conver-tem-se em coisa. Esta forma de exploração éconsiderada uma das formas de exploração in-fantil mais difundidas e menos pesquisadas, eque envolve muitos riscos para as crianças. (SIL-VA, 2002, p.39 e 40)

Neste sentido, percebe-se que atuar no cam-po da alfabetização de jovens e adultos é de-frontar-se com a exclusão de uma série deconhecimentos e práticas sociais importantespara a consolidação do bem-estar humano e so-cial, desde a fase da infância. É confrontar-secom uma série de injustiças sociais a que estãosubmetidos os sujeitos que tanto contribuem parao desenvolvimento econômico e cultural do país.

4 Fonte: Relatos realizados pelos estudantes da Educação deJovens e Adultos em sala de aula.

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A exclusão também ocorre na participaçãoem atividades lúdicas, pois nos momentos emque as crianças deveriam estar freqüentando aescola e participando de atividades lúdicas, sãoexploradas no âmbito do trabalho, muitas ve-zes, escravo, conforme afirma este estudanteem entrevista desta pesquisa:

A melhor lembrança da infância era quando eujogava bola com meus amigos. Só tinha o do-mingo para brincar, mas com tempo contado,porque às cinco horas da tarde tinha que soltaros animais que estavam amarrados. Eram só duasou três horas de brincadeira por semana, só nodomingo. Tinha domingo que nem brincava. Osmeus amigos iam me chamar em casa, mas eunão podia sair, porque estava trabalhando. (Jo-sias Brandão, 33 anos).

Apesar de todo este panorama de exclusãosocial, percebe-se, por outro lado, que olhar paraos estudantes jovens e adultos é possibilitar-seao encontro com sujeitos que trazem consigouma significativa bagagem de experiênciasconstruídas ao longo da vida, que contribuírampara o que são hoje e, ao mesmo tempo, para aconstrução da sociedade e da cultura.

Considerar o analfabeto brasileiro apenascomo um sujeito sem conhecimentos proporci-onados pela falta de leitura sistematizada, alémdo autoritarismo expresso nesta conduta, é des-considerar que a educação se dá em diferentescontextos da vida humana e não somente naescola. Esse conhecimento construído por jo-vens e adultos, ao longo de suas vidas, é ex-presso por Nelma Pereira Silva, estudante daalfabetização de jovens e adultos, ao ser ques-tionada sobre as ações que ela poderia desem-penhar por meio da habilidade da leitura e daescrita:

Ah! Eu ia escrever tudo o que aconteceu de bome de ruim na minha vida. Eu teria um diário ouescreveria um livro. Eu tenho muita coisa paracontar. Mas só tenho coisas ruins para contar.Mas não vou falar, não. Se fosse escrever, euescreveria. Um dia, você vai ler meu livro e vaisaber das minhas histórias, ia saber das coisasque eu fiz e as que eu deixei de fazer. A senhoraprecisaria de muito tempo para ler todas elas.(Nelma Pereira Silva, 27 anos, estudante da alfa-betização de jovens e adultos).

Compreender os educandos adultos queapresentam suas experiências de vida mar-cadas pelo analfabetismo é considerá-loscomo parte integrante de uma classe socialesquecida pelos poderes públicos, fruto deuma cultura marcada por profundas desigual-dades sociais. Significa verificar que tais su-jeitos não se consideram capazes de contribuirpara a implementação da vida cultural e polí-tica do país. Olhar para a educação de jo-vens e adultos é conviver com sujeitos queapresentam a auto-estima espezinhada pelaspráticas sociais excludentes. É confrontar-secom a busca e a esperança por uma dignida-de a ser conquistada por meio da aquisiçãoda leitura e da escrita, conforme ressalta aeducanda entrevistada:

Dizer que não sei ler é motivo para darem risadaou criticarem quem não sabe ler. Eu fico com ver-gonha, me sinto muito mal. As pessoas só que-rem destruir a gente, só porque a gente não sabecomo elas sabem. Quero aprender para poderensinar aos meus netos também. (Rosa MariaLima, estudante entrevistada, 53 anos).

A análise desta estudante demonstra a im-posição de um sistema hierárquico que esta-belece a escrita como uma estrutura que estásituada acima dos seres humanos e não comoum produto do processo de construções cul-turais. Indica também a impregnação cultu-ral dos grupos sociais, nos quais a escritaestabelece uma relação de poder no convívioentre os sujeitos, separando aqueles que sa-bem e os que ainda não sabem ler. Esta dis-tinção contribui, intensivamente, para ferir aauto-estima de jovens e adultos que se matri-culam na escola, na busca de uma valoriza-ção humana nas relações estabelecidas nafamília, no bairro, no trabalho e em outrossetores sociais.

Assim, para compreender os diversos fato-res que contribuem para a baixa auto-estima dejovens e adultos, é necessária uma reflexão maisabrangente das condições que estão submetidasestas classes economicamente desfavorecidas,frente a um processo de desqualificação das prá-ticas culturais voltadas para a coletividade e ainclusão social.

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3. A exclusão social e a fragmen-tação das dimensões humanas

Eu quero aprender a lerpara adquirir dignidade.

(Alcelino dos Santos, 43 anos,estudante da Educação de

Jovens e Adultos)

Pensar e atuar na Educação de Jovens eAdultos sem considerar o sistema capitalista deexclusão social significa simplificar e fragmen-tar a compreensão da situação de abandono vi-vida por este público. No trabalho na educaçãode jovens e adultos, torna-se imprescindível re-fletir sobre este sistema que hierarquiza as rela-ções com o conhecimento sistematizado pelaescola e pela universidade, tendo como hegemo-nia as práticas que envolvem a relação com alíngua escrita. Aqueles que ainda não dominameste código de comunicação escrita estão fada-dos à exclusão em diversos aspectos.

Além disso, percebe-se que a supervalori-zação da língua escrita é um processo maisamplo e que abrange diferentes setores sociais,pois com a hegemonia da ciência baseada nointelecto, as práticas sociais voltadas para acoletividade, sensibilidade e afetividade estãosendo, aos poucos, eliminadas do convívio soci-al, principalmente, nos espaços da educaçãoformal. Dessa forma, percebe-se que o racio-cínio tem assumido, hegemonicamente, um lu-gar de destaque na produção de conhecimentosnão somente na escola. O pensamento científi-co, por exemplo, caracterizado pela mensura-ção, classificação e quantificação dos dadoscoletados em testes rigorosos tem ocupado oprincipal espaço da produção do saber histori-camente acumulado. Verifica-se, nesse contex-to, a fragmentação entre as estruturas humanas(razão/emoção e corpo/mente) em detrimentodo aprendizado integral e potencializador dacriatividade e da re-invenção do conhecimentohumano. Confirma-se, portanto, a ruptura en-tre o pensar e o fazer, a razão e a emoção eentre o físico e o racional, dificultando a com-preensão sobre o fazer do sujeito como açãocoletiva e cultural.

As atividades relacionadas à inteligência docoração e à afetividade não têm sido conside-radas como práticas propulsoras do desenvol-vimento das diferentes dimensões da vidahumana. Neste modelo de sociedade, a emo-ção torna-se espetacularizada e transformadaem objeto sensacionalista dentro de um merca-do de consumo que produz padrões e estereóti-pos culturais, massificando as formas de pensar,de sentir e de agir no campo social.

Essa fragmentação tem causado diversosdanos para a aprendizagem escolar de jovens eadultos e na vivência no campo social. Os estu-dantes analfabetos que não dominam o sistemaescrito da língua encontram-se inseridos nestarealidade que privilegia o pensamento racionale técnico. O problema da supervalorização darazão também é encontrado na escola, na qualos conhecimentos são compartimentados emdisciplinas, cabendo ao aluno o aprendizadomínimo de conteúdos para a formação de umamão-de-obra barata e sem uma contextualiza-ção mais ampla sobre a realidade sócio-históri-co-cultural do país. A escola ainda está pautadanesta lógica racionalista de acúmulo de conteú-dos, sem destinar uma abordagem crítica, re-flexiva e questionadora em relação aosconhecimentos trabalhados.

Em geral, a reflexão sobre a importância dosconteúdos para a vida dos educandos e sobre afonte histórica e cultural que deu origem aoconhecimento é realizada de forma superficiale técnica. Pouco tem se refletido, na escola,sobre o porquê e o para quê trabalhar com de-terminados conhecimentos, condutas e valorescom os aprendizes. Nesse sentido, torna-sepossível ressaltar que nenhuma forma de co-nhecimento é neutra, pois nenhum ser humanoou grupo social é neutro em sua atuação cultu-ral. Assim, o conhecimento é transmitido deforma unilateral dentro de uma estrutura cogni-tivista que se separa do desenvolvimento daimaginação e da criatividade.

É evidente que fora da escola o aluno jovemou adulto também se encontra nessa estruturafragmentada, na medida em que as relaçõessociais estipulam o momento certo para o tra-balho (considerado como atividade séria e pro-

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dutiva) e o momento de brincar, o amar e a ex-pressão criativa (considerados, nesse tipo desociedade, como não-sério, banais ou utilizados,simplesmente, como alívio para o estresse cau-sado pelo excesso de trabalho). Assim, Wa-shington Oliveira (2000) contrapõe-se a estacompreensão, afirmando:

... precisaremos superar a percepção do sensocomum, onde o brincar é uma atividade que seopõe a trabalhar, caracterizada pela futilidade eoposição ao que é sério. A idéia de que o traba-lho tem uma função moralizadora, consideradaantídoto da vagabundagem, coloca a brincadei-ra como uma fantasia que pode ser vivida empequenos momentos, como uma concessão, paraaliviar o fardo da dura realidade. (OLIVEIRA,2000).

No fazer cotidiano e no conhecimento cons-truído pelo senso comum, o fazer humano en-contra-se cada vez mais separado do prazer.Além disso, as formas de relacionamento hu-mano da sociedade atual caracterizam-se pelaexploração do trabalho em função do enrique-cimento das estruturas dominantes, das relaçõesdescartáveis de amor e amizade, da não-con-templação da estética produzida por diferentesgrupos sociais, contribuindo para a dificuldadedo sujeito em atribuir sentido para a vivêncialúdica, artística e política na sociedade. O sujei-to, impedido de expressar suas emoções e sen-timentos, encontra-se desapropriado nãosomente dos meios de produção, mas tambémda possibilidade de criação e de relação com omundo de forma mais prazerosa, mais solidáriae mais humana.

Em contraposição à fragmentação das es-truturas humanas (corpo, razão, emoção e in-tuição), encontra-se, no mesmo cenário social,a possibilidade de contemplação estética e vi-vência lúdica que permite a retomada da con-cepção do sujeito enquanto ser completo eintegral. Trata-se da ludicidade como uma dasoportunidades existentes do ser humano mani-festar-se inteiro em suas quatro dimensões: afísica, a emocional, a cognitiva e sócio-cultural.

No entanto, no bojo da educação de jovense adultos, percebe-se o distanciamento das clas-ses oprimidas socialmente no que se refere ao

desenvolvimento integral. Esta fragmentaçãoentre as dimensões humanas e a falta de senti-do de atuação no mundo do trabalho dificultamo desenvolvimento satisfatório da auto-estimados estudantes analfabetos.

3.1. A auto-estima dos estudantesanalfabetos

Quando a gente não sabe ler é como se fosseum cego que não enxerga a realidade.

O mundo está aí na frente, mas o analfabeto não vê.A gente se sente um nada, porque saber ler é tudo.

(Dona Zenilda, estudante daEducação de Jovens e Adultos).

Um dos problemas da alfabetização de jo-vens e adultos, bastante discutido nesta pesqui-sa, está relacionado à baixa auto-estima dostrabalhadores derivada dos processos de exclu-são social, da supervalorização do conhecimen-to sistematizado por meio da escrita, conforme éapontado na fala de Dona Zenilda (acima), e dafragmentação entre o pensar, o agir e o sentir deforma integrada. As rupturas entre a razão e aemoção, e entre o trabalho e o prazer têm con-tribuído para a alienação do sujeito em relaçãoao significado e ao sentido do próprio fazer eestar no mundo. A baixa auto-estima dos jovense adultos analfabetos dificulta a aprendizagemescolar e a convivência participativa no contex-to social. Além disso, a baixa auto-estima difi-culta que os sujeitos sociais percebam-seenquanto agentes de mudança da situação dedesigualdade social que vivenciam. Os jovens eadultos são oriundos das classes econômicasmenos favorecidas, espezinhadas pelas práticascapitalistas, que sobrevivem em situações deabandono, fome, extrema violência e desempre-go. Diante desses problemas sociais, tais estu-dantes apresentam a falta de esperança emrelação às próprias perspectivas de vida e emrelação aos rumos políticos do país.

Além disso, percebe-se que as práticas dealfabetização de jovens e adultos, enquanto seg-mento de ensino inserido neste contexto de de-sigualdade social, não atendem ao desenvolvi-

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mento integral do ser humano e, conseqüente-mente, ao processo de conscientização de mun-do. As práticas de alfabetização de jovens eadultos ainda apresentam-se separadas da ex-periência vivenciada pelo aprendiz e enfatizan-do as estruturas cognitivas de forma fragmen-tada das outras dimensões humanas. Isto tudo,aliado às condições precárias de sobrevivên-cia, tem causado a baixa auto-estima que deri-va no baixo rendimento de aprendizagem e eva-são escolar.

Em contraposição a essa visão fragmenta-da do ser humano e à baixa auto-estima, apre-senta-se a educação lúdica e política, enquantouma das possibilidades de retomada da concep-ção do sujeito integral, atuante na realidade só-cio-cultural por meio da aquisição da línguaescrita. Neste sentido, a pesquisa desenvolvidana Escola Municipal do Pau Miúdo busca com-preender a contribuição da ludicidade para oprocesso de conscientização de jovens e adul-tos. A ludicidade é concebida, nesta pesquisa,como um dos fatores que favorecem o desen-volvimento da auto-estima dos educandos, poisdesencadeia três importantes experiências:

a) estado de prazer na tarefa de aprender ese relacionar com a descoberta e construçãoda língua escrita;

b) reconhecimento das próprias potenciali-dades, por meio da integração das quatro di-mensões humanas: a física, a emocional, acognitiva e a sócio-cultural;

c) compreensão das questões sociais quevivenciam na relação com o meio em que estáinserido, como o bairro, a família, o trabalho, aescola, a igreja, etc.

A seguir, serão tratadas questões relaciona-das à ludicidade como possibilidade de integra-ção das dimensões humanas.

4. A ludicidade, uma experiênciaplena para o ser humano

Viver é afinar um instrumentode dentro para forade fora para dentro.

(Walter Franco)

Segundo os estudos realizados no Grupo deEstudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade, aludicidade se apresenta como uma experiênciainterna do ser humano, conforme ilustra, acima,a letra da música de Walter Franco5 . A ludicida-de se caracteriza pela inteireza em que o sujeitose encontra durante a realização de determina-da atividade. Tal atividade não é, necessariamen-te, caracterizada como jogo, brinquedo oubrincadeira, como convencionalmente algunsautores têm definido a ludicidade.

A atividade pode ser considerada lúdicaquando o sujeito não está somente sentindo pra-zer na sua realização, mas quando se encon-tra inteiro, ou seja, quando sentimentos,pensamentos e ações estão agindo de formaintegrada e não-fragmentada no momento pre-sente da atividade desenvolvida. Assim, aoouvir uma música que transmite uma sensa-ção de prazer e bem-estar, de reflexão sobrea vida e nos permite a construção de novosolhares em relação à realidade, pode-se con-siderar que o ato de ouvir a música se consti-tuiu em uma experiência lúdica. Nestemomento de contato com a música, não háespaço para as preocupações e problemasexternos à sala de aula, pois, neste instante, oque se torna mais importante é a realizaçãoda atividade desenvolvida com prazer e intei-reza, nas relações com a língua escrita.

Neste sentido, compreende-se que, quandoo sujeito apresenta-se inteiro na atividade lúdi-ca, este momento é caracterizado pela plenitu-de da experiência, em que se percebe a inteirezadas dimensões humanas, tais como as físicas,emocionais, cognitivas e sócio-culturais do su-jeito. Numa linha próxima a essa compreensão,Kishimoto menciona que a atividade lúdica apre-senta seis características importantes no seudesenvolvimento:

• A liberdade de ação do jogador - re-fere-se à capacidade de escolha da atividadelúdica a ser realizada pelo participante, bemcomo a escolha de quando começa ou terminaa brincadeira. Nesse sentido, o caráter de im-

5 Walter Franco é cantor e compositor; gravou a músicaSerra do luar, em 1978, no álbum Respire fundo, pela CBS

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posição e obrigatoriedade do jogo torna-se con-traditório com o sentido de ludicidade que seestá trabalhando nessa pesquisa.

• A flexibilidade - é a capacidade de oser humano reestruturar a atividade que estiverdesenvolvendo, ou seja, as regras podem sermodificadas mediante o acordo prévio com ogrupo participante da atividade lúdica.

• A relevância do processo de brincar- não há uma preocupação com o produto, re-sultados ou objetivos previamente estabeleci-dos. O objetivo da atividade se encerra nelamesma, importando apenas o momento presentede plenitude. Não se brinca buscando a produ-tividade, pois a única função da brincadeira é avivência do próprio processo lúdico.

• A incerteza dos resultados - refere-se à impossibilidade do sujeito saber, antecipa-damente, o término da atividade e o que seráproduzido por meio desta, pois o que importa éa ação do presente; o seu final deve ser sem-pre imprevisível, com a possibilidade de (re)construção pelo próprio sujeito da atividade.

• Controle interno - A ação de brincar éguiada pelo envolvimento na atividade, portan-to, quem controla a ação são sujeitos que parti-cipam da atividade e não o educador que estivertrabalhando com a turma.

• Intencionalidade daquele que brinca- todos os envolvidos devem estar com a inten-ção de brincar naquele momento; a atividadelúdica não deve ser imposta, e sim trabalhadaem forma de acordos coletivos. Esta é a carac-terística principal que distingue se o brincar élúdico ou não.

Tais características da atividade lúdica de-vem ser observadas de forma bastante cuida-dosa no âmbito da alfabetização de jovens eadultos, no sentido de considerar as individuali-dades presentes na turma, a intencionalidade ea liberdade de escolha da atividade, já que, demodo geral, os adultos não estão habituados aparticipar de vivências que envolvem o corpo,a imaginação e a criatividade. Por esta razão,ao se propor a vivência em uma atividade lúdi-ca, deve-se começar com atividades mais le-ves que não exijam muito esforço e movimento;os trabalhos com música, poesias, ou jogo com

palavras e poemas, por exemplo, apresentambastantes resultados e possibilitam a aberturapara a proposição de atividades com graus cadavez mais complexos e interativos. Assim, o pro-cesso de inserção da atividade lúdica na salade aula deve ocorrer de forma gradual e pro-gressiva porque, em geral, os estudantes nãoestão acostumados a participar deste tipo deatividade e isto pode contribuir para uma gran-de resistência dos educandos em relação à lu-dicidade.

Além disso, o envolvimento prazeroso viven-ciado por esses aprendizes está muito voltadopara um prazer externalizado, como, por exem-plo, a recepção passiva dos programas humo-rísticos veiculados pela televisão. É nessesentido que se torna necessário distinguir ostermos como entretenimento, diversão e recre-ação da questão da ludicidade. A recreação, adiversão e o entretenimento, que também têmuma importância na sociedade, apresentam-secomo estruturas externas do sujeito, ou seja, éalgo que é lançado de fora para dentro, já que osujeito se apresenta de forma passiva e recep-tiva. Não há liberdade de escolha e a flexibili-dade na ludicidade e sim uma alegria externa,previsível e programada. Já a ludicidade se re-laciona ao campo do fazer, sentir e pensar hu-mano de uma forma mais ampla e conjunta. Elanão está vinculada somente à presença em jo-gos e brincadeiras, mas também à “atitude dosujeito envolvido na ação, que se refere a umprazer de celebração em função do envolvimen-to genuíno com a atividade, a sensação de ple-nitude que acompanha as coisas significativase verdadeiras” (RAMOS, 2000, p.52).

Isto só é possível quando os sujeitos encon-tram-se plenos na atividade desenvolvida, comenvolvimento e presença integral, para absor-ver o seu real valor da atividade que se destinarealizar, de forma que “este envolvimento fazcom que a ludicidade permeie qualquer ativida-de humana, quer sejam jogos, brincadeiras, ouo ‘fazer cotidiano’ que não se constituem comobrincares e, até mesmo, o campo do trabalho”.(RAMOS, 2000, p.52).

Assim, constitui-se como objetivo da escolaproporcionar o espaço para que os sujeitos pos-

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sam dialogar, discutir, opinar, brincar, com es-paços para a dúvida, os erros e para a criativi-dade. Na alfabetização de jovens e adultos aludicidade vivenciada no cotidiano de algunsestudantes que já participam destas experiên-cias deve ser valorizada, pois estas ações inte-gram a dinâmica da sociedade e enriquecem acultura que é reconstruída a cada dia pelos su-jeitos sociais.

Mesmo com a exclusão dos estudantes nosmeios sociais, conforme foi anunciado anteri-ormente no presente artigo, foram identifica-dos, através da a pesquisa, educandos quetrabalham com artesanato e corte e costura, queparticipam de clubes de mães, grupos de capo-eira e associação de moradores, buscando umaparticipação ativa na sociedade, embora exis-tam diversas dificuldades que, muitas vezes,impedem que esses sujeitos continuem a de-senvolver este tipo de atividades. Muitos des-tes estudantes aproveitam o tempo livre, quandonão estão executando atividades remuneradas,para o lúdico nas igrejas, como o canto-coralou nas festas de finais de semana na comuni-dade. No entanto, alguns estudantes advertemsobre a restrição do lúdico em seu cotidiano,conforme a citação abaixo:

Eu não tenho tempo pra me divertir. No sábado edomingo, eu fico em casa pra tomando contados meus netos, para minha filha ir trabalhar.Lavo, passo, cozinho e ainda costuro pra fora.Isso tudo no fim de semana. (Maria do Carmo,estudante da educação de jovens e adultos).

Neste sentido, é função da escola favore-cer condições de estímulos para que cada vezmais os estudantes possam participar dessesespaços. A escola, quando inserida neste uni-verso cultural da comunidade, incentiva a atua-ção desses sujeitos, valorizando a criação deespaços propícios para a manifestação de suashabilidades e de expressão de seus interesses,pensamentos e idéias, de forma que o conheci-mento passe a ser trabalhado com vida, na di-nâmica cultural e isso possibilita o crescimentoda alegria de aprender e de recriar novos olha-res em relação ao mundo.

Isto demonstra que a ludicidade se apresen-ta como estado interno do sujeito que pode ser

compartilhado socialmente “de dentro para fora,de fora para dentro” (Walter Franco), enrique-cendo a convivência comunitária dos aprendi-zes na alfabetização de jovens e adultos. Aludicidade é um estado de escolha livre e pes-soal, que não pode ser imposta, para que não seperca o seu caráter essencialmente lúdico ecriador.

No entanto, no bojo desta discussão e dian-te das experiências vivenciadas na alfabetiza-ção de jovens e adultos, pode-se afirmar que aatividade lúdica vivenciada por um adulto, quenão tem acesso a este tipo de trabalho lúdico,apresenta desafios maiores do que para a cri-ança que vivencia com mais freqüência e natu-ralidade o lúdico no seu convívio cotidiano. Taldesafio inicia a possibilidade do reconhecimen-to e da expressão da capacidade individual deromper bloqueios estabelecidos na sua históriade vida. Isto implica na exploração das poten-cialidades de jovens e adultos, possibilitandodesencadear um processo de autoconhecimen-to e auto-estima por meio da percepção dospróprios limites e capacidades.

Evidentemente, ao propiciar o espaço deacolhimento do aprendiz, o educador conse-gue propiciar o desenvolvimento do autoco-nhecimento e auto-estima, mesmo comdeterminadas limitações. De acordo com Lu-ckesi (2002), o acolhimento está relacionadoà recepção do educando no estágio atual emque ele se encontra. Segundo o autor, é ne-cessário aproximar-se do aluno, para que,após sentir-se acolhido, ele possa seguir no-vos caminhos a serem trilhados. Acolher éreceber o outro da forma como ele é, semjulgá-lo. No entanto, é necessário criar umespaço seguro para que o educando realize oseu caminho de aprendizagem. O educador éresponsável pela preparação e sustentaçãodo ambiente e das atividades, buscando queo estudante efetue o movimento de apreen-são dos conhecimentos da vida. O educadoré responsável por dar vida ao espaço ondetrabalha, tanto do ponto de vista físico, quan-to psicológico. Neste ambiente educativo, ojovem e adulto precisam ter a certeza de queserá acolhido, orientado e não julgado.

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Nessa relação de acolhimento, verifica-seque a ludicidade valoriza o sentido de coopera-ção, de estabelecimento de vínculos e de per-cepção das potencialidades na vivência domomento presente. Segundo os estudos de Lu-ckesi, a ludicidade assume um caráter internode absorção na realização da atividade e estaabsorção nem sempre se apresenta de formaalegre e divertida. Uma atividade realizada coma escrita, em que os participantes expressamos sentimentos a partir da visualização de umafotografia, ou da escuta de uma música ou daapreciação estética de um espetáculo teatralpode representar para eles um grande esforçode abstração e de expressão por meio do siste-ma da língua escrita. O ato de perceber os pró-prios limites, verificados na atividade lúdica, porexemplo, não se caracteriza como um momen-to divertido, mas como um desafio de romperlimites; assim, o prazer é sentido na busca dasuperação do limite encontrado.

Neste sentido, convém afirmar que, quandoo sujeito está inteiramente presente na atividade,está mobilizando as quatro dimensões, física,cognitiva, emocional e sócio-cultural, em ummesmo momento. Nesse instante, o sujeito ma-nifesta-se de forma mais aberta e sensível paraconhecer melhor as suas potencialidades e limi-tes, buscando superar determinados desafiosencontrados na atividade essencialmente lúdica.A atividade lúdica relaciona-se com o reconhe-cimento dos limites e dos avanços do sujeito narealização de atividades que ativem as potencia-lidades desse sujeito e as possibilitem evoluir.Nesse processo, o educando apresenta-se livre,participativo e voltado para a prática do autoco-nhecimento. Portanto, a atividade lúdica plenavoltada para o autoconhecimento possibilita ocontato do sujeito consigo mesmo, com o outro ecom o mundo social de que participa.

5. A alfabetização de jovens e adul-tos e o processo de conscientização

Do ponto de vista da Educação Libertado-ra, alicerçada pelas idéias do educador PauloFreire, a alfabetização é concebida como pro-

cesso voltado para a democracia da cultura,compreendido como um ato de criação capazde desencadear outros atos criadores. PauloFreire (1978, p. 104) pensava “numa alfabeti-zação em que o homem, porque não fosse seupaciente, seu objeto, desenvolvesse a impaci-ência, a vivacidade, característica dos estadosde procura, de invenção e reivindicação”. Nes-se sentido, as relações que homens e mulheresestabelecem no mundo são decorrentes dos atosde criação e recriação de representação da re-alidade cultural.

Nessa relação entre sujeito e objeto, resultao conhecimento, que é expresso pela linguagem.Sendo assim, o ato de alfabetização é alicerça-do pela capacidade de inquietação, de consci-entização e de contextualização do mundo queo sujeito vivencia e constrói por meio do seutrabalho. O aprendizado da palavra escrita éum processo de descoberta, de criatividade ede sentido vinculado com a cultura construída eelaborada por homens e mulheres no percursodo estar-no-mundo.

No processo de alfabetização de jovens eadultos, baseada na conscientização, os sujei-tos não aprendem simplesmente a decodificaras palavras escritas nem a codificar as pala-vras faladas de forma desconexa da realidadesocial dos aprendizes. Os sujeitos dão conti-nuidade à interpretação da realidade em quevivem, representando-a de forma gráfica. Aspalavras que simbolizam o contexto social ecultural dos aprendizes são encharcadas devida, de experiências, de emoções vivencia-das pelos sujeitos.

Todas as palavras fazem parte do universoconceitual e vivente do adulto e o processo dealfabetização tem a função de ampliar a cons-ciência do mundo que constrói a cada dia. Aspalavras só fazem sentido se tiverem efetivossignificados na existência cultural do aprendiz.Aos poucos, o universo cultural do estudantevai se ampliando e, ao mesmo tempo, estabele-cendo uma aproximação crítica da realidade.A alfabetização não é somente um aprendiza-do da leitura das palavras, consiste em umaapreensão de mundo e da compreensão da im-portância do ato de ler e de interpretar os fatos,

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os nexos e as contradições da realidade. É nes-se sentido que Paulo Freire afirma que: “Aconscientização é um compromisso histórico.É também consciência histórica: é a inserçãocrítica na história que implica que os homensassumam o papel de sujeitos que fazem e refa-zem o mundo. Exige que os homens criem suaexistência com um material que a vida lhes ofe-rece.” (FREIRE, 1980, p.26)

A conscientização é um processo a ser cons-truído por meio da interação social e do diálogocrítico e participativo, no qual se destaca a valo-rização de cada sujeito, enquanto construtor erealizador da cultura. Cada trabalhador analfa-beto, ao tomar consciência de sua existênciaontológica, busca criar e transformar sua reali-dade por meio da força de trabalho, agora cons-ciente e contextualizada. Assim, a conscientiza-ção não se refere somente a uma atitude dedenúncia da situação dos oprimidos pelos opres-sores, mas também à atitude de considerar o serhumano como ser da práxis, da criação e da trans-formação através da força do trabalho. Tanto oeducador quanto o educando são seres oprimi-dos socialmente e por meio do processo da cons-cientização apresentam-se como criadores denovas possibilidades e realidades. É nessa pers-pectiva que Paulo Freire considera que:

Uma das características do homem é que somenteele é homem. Somente ele é capaz de tomar dis-tância frente ao mundo. Somente o homem podedistanciar-se do objeto para admirá-lo. Objetivan-do ou admirando- admirar se toma aqui no senti-do filosófico- os homens são capazes de agirconscientemente sobre a realidade objetivada. Éprecisamente isto, ‘práxis humana’, a unidade in-dissolúvel entre minha ação e minha reflexão so-bre o mundo. (FREIRE, 1980, p. 25 e 26)

O processo da conscientização caracteriza-do pela atitude de compreender a realidade eintervir sobre ela (consciência + ação) está vol-tado para a construção de mudança da polari-dade opressores X oprimidos. A unidadedialética entre a ação e a reflexão constitui ofazer humano de forma inacabada e, por issomesmo, permanente. O ser humano é o únicoser capaz de pensar sobre seus próprios atos,de planejar a sua ação e de recriar a sua pró-

pria prática. Além disso, somente o ser huma-no é capaz de reconhecer a existência de ou-tras realidades sociais e culturais, reconhece quenão existe apenas o ‘eu’, mas também o ‘ou-tro’ e, ainda, compreende que ele não vive nummomento presente, mas numa realidade histó-rica e cultural pautada pelo ontem e com osanseios voltados para o futuro. Esse posiciona-mento sobre a própria temporalidade se confi-gura no pensamento da conscientização, frutodo sujeito que pensa, sente e age na realidadesocial e política.

6. Tecendo alguns fios para brin-car de concluir

Os estudos teóricos e as experiências naprática pedagógica mostram que a necessida-de do estudante jovem e adulto não se resumesomente à aquisição da leitura e da escrita, masa uma ampliação da compreensão do ato daleitura de mundo e do contexto da escrita. Estepercurso é alimentado por aprendizagens e pro-dução de conhecimentos que valorizem tambéma expressão corporal, emocional e cognitiva deforma integrada.

É nesse sentido que se percebe a necessi-dade de uma abordagem de educação pautadano desenvolvimento integral do ser humano; umprocesso de educação lúdica que possibilita aossujeitos a experimentação de suas habilidades,ampliando suas capacidades de atuação nomundo, de expressão, criação e construção denovas formas de conhecer e intervir na realida-de. Na pesquisa realizada na Escola Municipaldo Pau Miúdo, percebeu-se que esta forma deinteração com o conhecimento contribui paraelevar a auto-estima, permitindo que os estu-dantes percebam-se enquanto agentes capazesde contribuir com a sociedade, de forma lúdicae política, conforme afirma Maria do Carmo,uma das estudantes entrevistadas: “Agora queeu já sei ler, eu entendo melhor as coisas davida: consigo fazer coisas sozinha, sem depen-der de ninguém. Agora, eu sou uma mulher in-dependente”. Com a auto-estima valorizada, oseducandos compreendem as inúmeras possibi-

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Cilene Nascimento Canda

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lidades existentes de atuação em diversos se-tores por meio do uso da língua escrita.

Assim, ao se construir um processo de alfa-betização político-estética, pensa-se no sentidode não trabalhar apenas a apropriação da pala-vra escrita, tampouco com o desenvolvimentoindividual de forma isolada do contexto social.Na verdade, a alfabetização político-estéticaestá pautada na vivência lúdica que possibilitea abertura sensível dos sujeitos sociais para asquestões políticas e econômicas que estão co-locadas no bojo da sociedade.

Partindo para a análise do público que com-põe a alfabetização de jovens e adultos, perce-be-se a distância existente entre a realidadeconcreta desses trabalhadores e um estado equi-librado de valorização do ser humano, de con-templação estética e de participação artística,lúdica, cultural e política na própria comunida-de e na cidade como um todo.

Nesse sentido, a ludicidade apresenta-secomo processo que possibilita ao sujeito o re-conhecimento das suas potencialidades de for-ma integral. O processo lúdico é caracterizadopela absorção da experiência plena que diz res-peito à presença completa do sujeito na experi-ência vivenciada. A educação lúdica baseia-seem uma abordagem de desenvolvimento inte-gral e não voltada somente para a aquisição deconteúdos na escola e fora dela. Este processode desenvolvimento integral do ser humanoabrange, de forma dialética, as quatro dimen-sões principais do sujeito: física, cognitiva, emo-cional e sócio-cultural. Estas quatro dimensõesconstituem o ser humano e quanto mais traba-

lhadas forem, maiores possibilidades de ampli-ação terá o seu desenvolvimento.

Diante da atividade essencialmente lúdica,o jovem ou adulto, no espaço de acolhimento ede sustentação do ambiente lúdico, tem a pos-sibilidade de escolher entre romper e superar olimite estabelecido até aquele momento ou es-tagnar-se naquela situação. É saudável que istoocorra, pois o adulto precisa encontrar um es-paço propício para decidir se deseja e se podeparticipar do desafio, pois a atividade verdadei-ramente lúdica apresenta o espaço para a deci-são, a espontaneidade e a escolha. A atividadeperde o seu caráter lúdico, ou seja, de experi-ência plena, quando não atende aos princípiosde entrega e espontaneidade no ato de brincar.

No entanto, a partir do envolvimento na ativi-dade e após a concretização da atividade pro-posta, os estudantes começam a perceber quesão capazes de executar determinada tarefa,quando estão envolvidos e absorvidos na ativi-dade realizada. Desse modo, a superação de umalimitação ocorre quando o sujeito apresenta-seinteiro e pleno na atividade, ultrapassando seuspreconceitos e estigmas construídos historica-mente. Após esta superação e da sucessão dediversas experiências realizadas com êxito, osestudantes vão tornando-se mais autoconfiantes,vão conquistando, aos poucos, a elevação da auto-estima e passam a julgar-se aptos a aprender e acomunicar-se por meio da língua escrita. Emsuma, estas foram algumas inquietações e pro-posições para a construção de uma educaçãolúdica e política e, por isso mesmo, mais saudá-vel, mais solidária e mais humana.

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Recebido em 30.09.05Aprovado em 10.03.06

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Susana Couto Pimentel

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O ESPECIAL DOS JOGOS E BRINCADEIRASNO ATENDIMENTO ÀS DIFERENÇAS

Susana Couto Pimentel*

* Mestre em Educação Especial. Doutoranda em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia,e bolsista da FAPESB. Professora Assistente da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. Endereço paracorrespondência: UEFS, Campus Universitário, BR 116 Norte, Km 3, 44031-460 Feira de Santana-BA. E-mail:[email protected]

RESUMOEste artigo discute a potencialidade dos jogos e brincadeiras na promoção dosprocessos de aprendizagem e desenvolvimento de alunos com necessidadeseducativas especiais. Para melhor compreensão dessa discussão serão utilizadosepisódios de observação da prática docente de alunas do curso de LicenciaturaPlena em Pedagogia para as Séries Iniciais do Ensino Fundamental daUniversidade Estadual de Feira de Santana, no município baiano de SãoSebastião do Passé, bem como analisadas as considerações destas alunassobre o uso de jogos de brincadeiras em sua prática pedagógica. Esses episódiosforam observados durante o desenvolvimento do componente curricular Jogose Recreação e apontam para a eficácia do uso de jogos e brincadeiras noatendimento a pessoas com necessidades educativas especiais.

Palavras-chave: Jogos e brincadeiras – Necessidades educativas especiais– Processos de ensino e aprendizagem.

ABSTRACTTHE SPECIAL CHARACTER OF FUN AND PLAY WHILEATTENDING TO SPECIAL NEEDS CHILDREN

The present article discusses the potentiality of games and playful activities inthe promotion of learning and development of students with special educationalneeds. To better understand this discussion some episodes of observation willbe used from the teaching practice of students with a degree in Pedagogy, inthe initial grades of Elementary School of the Universidade Estadual de Feirade Santana (State University of Feira de Santana), in the city of Sao Sebastiaodo Passe, Bahia, Brazil as well as the students´ considerations about the use ofplayful activities in their pedagogical practice. These episodes were observedduring the development of Games and Recreation, a curriculum component,and they point out to the efficiency of using games and playful activities to dealwith people with special educational needs.

Keywords: Games and playful activities – Special educational needs – Learningand teaching processes.

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A proposta de ensino envolvendo a utili-zação do lúdico não é nova e tem sido com-partilhada por docentes não apenas daEducação Infantil como também do EnsinoFundamental. Este provável “consenso” fun-damenta-se em estudos psicogenéticos querespaldam o uso de jogos com fins pedagógi-cos considerando a sua importância para odesenvolvimento infantil.

Estudos da neurociência também têm apon-tado para essa direção tendo em vista as des-cobertas de que o brincar coloca em atividadeos hemisférios direito e esquerdo do cérebro,sendo cada hemisfério dominante para algunscomportamentos. O hemisfério direito é domi-nante para: habilidades espaciais; processoemocional; atenção visual; memória auditiva ede frases; reconhecimento de objetos e figu-ras; música. O hemisfério esquerdo é mais es-pecializado em habilidades de linguagem,matemática e lógica. No entanto, os dois traba-lham em conjunto trocando informações atra-vés do corpo caloso. Assim, ao colocar ematividade esses dois hemisférios, o jogo poten-cia a inovação, interação social, internalizaçãode conceitos e capacidade de expressão, alémde promover o desenvolvimento psicomotor(SANTOS, 2001).

Todos esses estudos apontam para caracte-rísticas essenciais do jogo, tais como suas di-mensões educativa e lúdica. Para que o jogoseja utilizado como uma estratégia metodológi-ca, ampliando o enfoque do seu caráter recrea-tivo, precisa ser analisado em suas possibilidadesde potencializador do processo de construçãode conhecimento, que é a principal função daescola.

É na sala de aula que a ludicidade ganha espaço,pois a criança se apropria de maneira mais praze-rosa dos conhecimentos, ajudando na constru-ção de novas descobertas, desenvolvendo eenriquecendo sua personalidade e, ao mesmotempo, permitindo ao professor avaliar o cresci-mento gradativo do aluno, numa dimensão quevai além das tradicionais provas classificatórias(SANTOS, 2001, p. 15).

Porém, entender o jogo como estratégiametodológica não significa reduzi-lo a um mero

instrumento didático, pois o jogo, como tal, étambém conteúdo. Os conteúdos inerentes aojogo contribuem para promover o desenvolvi-mento de estruturas cognitivas, psicomotoras,afetivas e morais, criando possibilidades de cons-trução de atitudes necessárias ao exercício daautonomia e da cidadania.

Todavia, ainda que assuma a dimensãoeducativa com finalidade de ensino, sendo uti-lizado como recurso pedagógico ou conteú-do, o jogo é uma é atividade essencialmentelúdica. E certamente uma condição sine quanon, para considerar-se um jogo como tal, éo seu caráter lúdico. Portanto, utilizá-lo emsala de aula é trazer de volta o sentido da“palavra grega utilizada para escola - SCHO-LÉ (ócio, descanso, vagar), [que] traz a idéiade uma prática lúdica, menos rígida e seve-ra” (SANTOS, 1998, p. 53). Esta propostade construção do conhecimento transversali-zada por atividades lúdicas tem sido defendi-da numa proposta de educação inclusiva,como forma de promover o desenvolvimentoinfantil e de favorecer o atendimento às dife-renças na sala de aula.

A proposta de educação inclusiva assumi-da oficialmente no Brasil a partir da Declara-ção de Salamanca, em 1994, e da Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional – LDB9.394/96 – tem sido permeada pela idéia deadaptação curricular para atender às necessi-dades educativas especiais que se apresentamna escola. Essa compreensão de adaptaçãocurricular deve estar embasada, entre outrosaspectos, na proposta de funcionalidade do cur-rículo para os alunos com necessidades espe-ciais. Entende-se por funcionalidade do currí-culo a adequação dos seus objetivos aodesenvolvimento de habilidades necessárias àvida cotidiana de forma a promover a autono-mia de todos os sujeitos que estão incluídos noespaço escolar. Diante disso, coloca-se paraos educadores dessa chamada escola inclusi-va o desafio de construir um currículo funcio-nal, considerando-se o que foi dito anterior-mente acerca da importância do jogo noprocesso de ensino e de aprendizagem de cri-anças com necessidades especiais.

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Susana Couto Pimentel

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As reflexões feitas neste texto foramconstruídas a partir da prática docente da au-tora no trabalho com o componente curricu-lar Jogos e Recreação, ministrado no Cursode Licenciatura Plena em Pedagogia da Uni-versidade Estadual de Feira de Santana, nomunicípio de São Sebastião do Passé - Bahia.É importante esclarecer que as alunas dessecurso são regentes de classe na rede munici-pal de ensino naquela cidade. Assim, a partirdos estudos e discussões realizados duranteo curso, as professoras têm possibilidade derefletir sobre sua própria prática e (re) dire-cioná-la num processo ativo de ação-refle-xão-ação.

Tendo como base o caráter deste cursocomo formação continuada em exercício, a pro-posta elaborada para o desenvolvimento docomponente curricular Jogos e Recreaçãoprevia, além de estudos de teorias que subsi-diam a compreensão do jogo como potenci-alizador dos processos de aprendizagem edesenvolvimento da criança, a observação decrianças em situação de brincadeiras espon-tâneas e a elaboração e aplicação de planeja-mentos de jogos de três tipos: brincadeirastradicionais, construção de brinquedos de su-cata e jogos para o trabalho de conhecimen-tos específicos.

Vale ressaltar que os episódios descritos eanalisados neste texto foram resultados da ob-servação da prática docente em duas turmasde primeira série do Ensino Fundamental, umaem escola especial (Escola 1) e outra em esco-la regular que recebe alunos com necessidadeseducativas especiais no processo de educaçãoinclusiva (Escola 2).

1. Os jogos e brincadeiras no de-senvolvimento infantil

Para Vygotsky (1998, p.121), “o brinquedopreenche necessidades da criança”, pois atra-vés do brinquedo ela pode ter satisfeitas deter-minadas necessidades não passíveis de seremrealizadas naquele determinado momento. Porexemplo, por não poder dirigir um automóvel, a

criança senta-se numa cadeira, toma um deter-minado objeto como volante e “faz de conta”que está dirigindo. A esse mundo ilusório desatisfação de necessidades e desejos Vygotskychama de brinquedo. Assim, pode-se dizer queo brincar implica uma ação consciente a partirde uma situação imaginária. Desse modo, o brin-quedo traz consigo um elemento motivacionalque lhe é intrínseco. Para a criança, esta moti-vação potencializa a importância do brincar ede tudo o que a envolve.

Também, segundo Vygotsky (1998, p. 126) “éno brinquedo que a criança aprende a agir numaesfera cognitiva, ao invés de em uma esfera visu-al externa, dependendo das motivações e tendên-cias internas, e não dos incentivos fornecidos pelosobjetos externos”. Desse modo, o objeto deixa deser o determinante da ação do brincar e a situa-ção imaginária passa a ampliar o significado ime-diato dos objetos. Por exemplo, a criança vê umatampa de panela, conhece a sua utilidade, masnaquele momento lhe dá outro sentido fazendo datampa de panela o volante do seu carro. A crian-ça passa a agir independente das determinaçõesdadas pelo seu campo visual. Isso demonstra avan-ço com relação ao desenvolvimento infantil, poisa ação da criança passa a ser regida pelas idéiase não mais pelos objetos.

O brinquedo, enquanto objeto utilizado nabrincadeira, constitui-se uma representação darealidade, fornecendo à criança a possibilidadede manipulação e de substituições de objetosreais (KISHIMOTO, 2001). Diante disso, aconstrução de brinquedo, por si só, já represen-ta inúmeras possibilidades de aprendizagenspara a criança, pelo seu caráter de estímulo àcriatividade e à representação. A construçãode brinquedo com sucatas, por sua vez, poten-cializa e enriquece essas aprendizagens.

A sucata possibilita um olhar sobre duas di-mensões, podendo ser vista como o que a soci-edade de consumo considerou imprestável parao seu uso ou, por outro lado, como o “convite”à criação, construção e possibilidades de múlti-plas expressões (WEISS, 1993). Dessa forma,o trabalho com sucata possibilita questionamen-tos e reflexões de ordem política, social, ética,econômica e ecológica.

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Como um meio de expressão artística, a su-cata é considerada um material rico e de enor-me potencial para ser explorado. A diversida-de de cores, formas, consistências, texturas etamanhos incentivam a pesquisa e favorecemum trabalho com inúmeras possibilidades deexploração, desde o momento de sua seleção.

Ao selecionar o material de que vai fazeruso para a construção do seu brinquedo, a cri-ança envolve-se num mundo ilusório, ou seja,um copo plástico passa a ser a torre de umcastelo. De acordo com Vygotsky (1998, p.127), “os objetos perdem a sua força determi-nadora. A criança vê um objeto, mas age demaneira diferente em relação àquilo que vê.Assim, é alcançada uma condição em que acriança começa a agir independentementedaquilo que vê”. Essa mudança do domínio doobjeto/visível para a ação/imaginada sugere umavanço no desenvolvimento cognitivo da cri-ança, pois ela passa a dirigir seu comporta-mento não somente pela percepção imediatados objetos, mas pelo significado da situaçãoimaginária.

Todo esse processo não deve ser anali-sado à parte dos resultados no campo dodesenvolvimento motor. O manuseio da va-riedade de materiais, a realização de movi-mentos através de ações motoras, táteis, vi-suais e auditivas proporciona o trabalho coma psicomotricidade, lateralidade e equilíbrio.Por tudo isso, é importante se garantir naescola um espaço onde a vivência da cons-trução do brinquedo de sucata seja uma re-alidade ,de forma a favorecer o desenvolvi-mento da criança.

Os jogos e brincadeiras são também cons-truções culturais, sendo mantidos e difundidosculturalmente. De acordo com Friedmann(1996), as brincadeiras tradicionais fazem par-te da cultura popular e têm como característi-cas o fato de serem parte da tradição de umpovo; anônimas quanto a sua criação; coletivi-zadas pelo grupo do qual é parte e transmitidasde geração em geração. Por isso, são passíveisde modificações na forma (regras), tendo emvista que não há preocupação com o seu regis-tro em forma escrita, porém não no conteúdo.

É, portanto, através da oralidade de um povo,de sua memória, que as brincadeiras tradicio-nais se perpetuam na cultura popular.

A forma como a sociedade atual está orga-nizada não tem favorecido a perpetuação des-sas brincadeiras tradicionais. Outrora, eramcomuns brincadeiras nas calçadas e o incenti-vo da família para que isso acontecesse. Hoje,com a disseminação da violência e da insegu-rança, a cultura do medo tem impossibilitadonão apenas essas cenas, como também a subs-tituição dessas práticas lúdicas por momentosem frente ao televisor, videogame ou computa-dor. Os brinquedos confeccionados pelos adul-tos e crianças foram também substituídos pelosbrinquedos produzidos em série pela indústria.

No meu tempo, parte da alegria de brincar es-tava na alegria de construir o brinquedo. Fizcaminhõezinhos, carros de rolimã, caleidoscó-pios (...). (...) Os grandes, morrendo de inveja,mas sem coragem para brincar, brincavam fa-zendo brinquedos. As mães faziam bonecasde pano, arte maravilhosa hoje só cultivadapor poucas artistas. (...) Hoje, quando a meni-na quer boneca, a mãe não faz boneca: comprauma boneca pronta que faz xixi, engatinha,chora, fala quando a gente aperta o botão, e élogo esquecida no armário de brinquedos (AL-VES, 1997, p.119, 120).

Nesse contexto, a escola tem uma impor-tante função: a socialização do conhecimentohistoricamente construído, pois “... o ser huma-no nasce na cultura, mas não nasce com a cul-tura. A cultura é aprendida socialmente, nãotransmitida geneticamente. Logo, a inserção doindivíduo em determinado contexto cultural sefaz mediante o processo gradativo de assimila-ção da cultura.” (SANTOS, 1998, p. 53).

Dessa forma, o resgate dos jogos tradicio-nais pela escola e a confecção de brinquedosde sucata representam a garantia da perpetua-ção do patrimônio lúdico-cultural infantil nessasociedade globalizada. Entretanto, essa defesanão deve ser confundida com uma propostanostálgica, pois o resgate desses jogos e brin-quedos dentro da escola deve ser visto não comoa única, mas como mais uma possibilidade devalorização do lúdico pela educação.

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2. Os jogos e brincadeiras no pro-cesso educativo e no atendimen-to às diferenças

A escola é, por excelência, um espaço queabriga diferenças, sejam culturais, religiosas, ét-nicas ou políticas. Porém, apesar de estar ideal-mente “aberta” para receber as diferenças, tendoem vista o mote de educação para todos, aescola tem demonstrado dificuldade de trabalharcom algumas diferenças como, por exemplo, di-ferenças físicas, sensoriais e cognitivas.

Abrir o espaço escolar para inclusão destasdiferenças ultrapassa a idéia de garantia deacesso. Esta idéia aponta para um entendimen-to equivocado de que, garantido o acesso, ossujeitos que apresentam estas diferenças de-vem se adequar às condições oferecidas pelaescola. Esta é a lógica que permeia o paradig-ma da integração, ou seja, a escola faz suaparte “consentindo” em abrir o seu espaço parasujeitos com tais diferenças, porém estes de-vem buscar condições para garantir sua per-manência e sucesso no ensino escolar.

Estar aberto para a inclusão de alunos comnecessidades educacionais especiais na escolaregular implica, sobretudo num investimento daescola em adaptar-se para atender devidamen-te essa nova demanda. Isso requer adequaçõesque envolvem desde a estrutura física do espa-ço escolar até alterações na proposta curricu-lar. Porém, para que estas alterações curricu-lares aconteçam, é necessário investimento naformação continuada do educador que desen-volve os atos de currículo.

Esta demanda de adaptação do currículo im-plica em situações de alterações significativasque envolvem mudanças em termos de introdu-ção ou eliminação de conteúdos, objetivos e/oucritérios de avaliação; ou não-significativas quenão implicam em grandes modificações com re-lação à proposta curricular desenvolvida para osdemais alunos. Contudo, o que determina asmodificações curriculares é a proposta de aten-ção às necessidades e diferenças apresentadaspelos alunos e, sobretudo, a confiança em suaspotencialidades de aprender e se desenvolver.Nesta perspectiva, o jogo, enquanto linguagem

estruturante do humano, assume a dimensão demediação da pessoa com necessidade especialna escola, tornando-se uma proposta eficaz deatendimento às necessidades.

No trabalho com jogos e brincadeiras sãoapontadas distintas possibilidades e finalidades:1. recreativa; 2. ensino de conteúdos escola-res; 3. diagnóstica, a fim de se ajustar o ensinoàs necessidades infantis; 4. ação espontâneaprazerosa e livre (KISHIMOTO, 2001).

No entanto, para que o jogo alcance ao má-ximo o seu potencial no desenvolvimento infan-til, é necessário que ele seja planejadointencionalmente como forma de atender às ne-cessidades apresentadas pelas crianças.

Descobri que o jogo e a brincadeira não é apenasuma forma de divertimento, mas algo de suma im-portância para o desenvolvimento cognitivo dacriança, agindo como facilitador de sua aprendi-zagem, além disso, estimula o pensamento criati-vo, desenvolve coordenação motora, promove ainteração social e ajuda a adquirir valores éticos emorais. (...) Passei a inserir o lúdico no meu planodiário não como algo solto, mas com o objetivode tornar as aulas mais agradáveis e levar os alu-nos a uma melhor compreensão através de jogose brincadeiras (M. F. S. R/ Aluna do Curso dePedagogia/ Noturno – Auto-Avaliação).

Na transcrição acima, observa-se que a do-cente em questão aponta a sua descoberta dopotencial do jogo e, por isso, passa a incluí-locomo elemento em seu planejamento.

Pesquisas (AGUIAR, 2004; MIRANDA,1999) têm demonstrado o potencial do jogo nosprocessos de ensino e aprendizagem de alunoscom necessidades educativas especiais. Con-teúdos que envolvam a formação de conceitose as habilidades operatórias de identificar (apartir de percepção das características dos ob-jetos como: cor, textura, forma, consistência),ordenar, classificar e generalizar têm sido tra-balhados mais eficazmente com a utilização dejogos como procedimentos de ensino.

No episódio descrito a seguir, se observa aprofessora da Escola 11 trabalhando, a partir

1 A turma trabalhada é uma classe de 1ª série de uma escolaespecial com um total de seis alunos presentes naquele dia.Todos os alunos apresentam deficiência mental (DM) es-tando na faixa etária de 14 a 26 anos.

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da brincadeira “Fitas”2 , a nomeação e identifi-cação de cores e de numerais. Essa brincadei-ra constitui-se um legado da cultura popularsendo, portanto, uma brincadeira tradicional.

Durante o desenvolvimento da brincadeira,verificou-se que os alunos inicialmente rejeita-ram assumir o papel de anjo mal, preferindo serchamados de Anjo Ja e Anjo Jo (iniciais dosnomes dos alunos). Após o esclarecimento daregra da brincadeira, a professora disse paraos alunos que representariam as fitas quais assuas cores e, a partir de então, os anjos deveri-am adivinhá-las. Porém, no decorrer da brinca-deira os alunos diziam sempre a mesma cor eainda que não tivesse nenhuma fita com aquelacor mantinham a mesma opção. Entretanto, essaopção de cor não era feita de forma aleatória,pois eles escolhiam a cor das paredes da esco-la, das nuvens (já que a brincadeira foi feita naárea externa) ou da grama. Percebe-se que essaera uma estratégia utilizada pelos alunos paralembrarem-se das cores.

Foi possível vivenciar (...) as situações coloca-das no ato de planejar e ainda ir além nas desco-bertas, pois os alunos desenvolviam estratégiasinteressantes (...) na brincadeira (M. P. S. S./Alu-na do Curso de Pedagogia /Noturno – Auto-avaliação).

Como se pode ver no depoimento em desta-que, a brincadeira como parte do processo demediação pedagógica proporciona avanços nodesenvolvimento das estratégias de aprendiza-gens pelos alunos.

Outra situação observada foi a repetiçãoda cor a partir do acerto. Nesses momentos, aprofessora fazia mediações, solicitando que oaluno escolhesse outra cor que ainda não ti-vesse sido dita. Era notória nesses instantes asolicitude dos colegas, sugerindo outras possi-bilidades de cores. Isso demonstra o ambientede cooperação que era estabelecido a partirda brincadeira, o que favorecia a aprendiza-gem dos alunos.

No decorrer da brincadeira a professora tam-bém fazia intervenções do tipo: – Jo tem quan-tas fitas? – (Jo, contando, respondia) Um, dois,três. – E Ja? – perguntava a professora. – Uma(todos diziam). A professora então solicitava

que os alunos reconhecessem o numeral três eo numeral um. Ao visualizarem o numeral três,os alunos diziam que era a letra E. A professo-ra fazia novas mediações, mostrando a diferen-ça entre ambos até que o grupo os pudessediferenciar.

Para Mantoan (1997), a ausência dessasmediações e interações desencadeia, nas pes-soas com necessidades educativas especiais, ochamado déficit circunstancial que se constituia partir destes determinantes sociais e se trans-formam em obstáculos para aprendizagem edesenvolvimento do sujeito. Este déficit circuns-tancial associado ao déficit real ou orgânicopotencializa as dificuldades vivenciadas por es-tas pessoas.

Assim, é possível perceber a importância dasmediações sociais para o brincar e as possibili-dades de criações de zonas de desenvolvimen-to proximal através do jogo, isto é, a possibilidadede resolver-se uma situação problema sob amediação de um adulto ou colaboração de umcompanheiro mais capaz. Para Vygotsky (1998,p. 134), “o brinquedo cria uma zona de desen-volvimento proximal da criança”, pois possibili-ta um comportamento para além do seuhabitual.

A professora também solicitou que Jo se-parasse três cadeiras e todos os demais vibra-vam com o seu acerto. À outra aluna, aprofessora solicitou que separasse três meni-nos. E outra vibração acontecia a partir do acer-to. Durante a brincadeira, podia-se observar ointeresse e envolvimento de todos os alunos.Outro avanço observado foi com relação àmemorização do verso pelos alunos e, mesmo

2 FITAS - CONTEÚDOS: CONCEITUAIS - Identificarcores. PROCEDIMENTAIS - Desenvolver a oralidade, per-cepção, atenção e seqüenciação. ATITUDINAIS - Desen-volver a autonomia, observação e obediência de regras.PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS: O grupo escolhe trêscolegas para serem: Anjo Bem, Anjo Mal e o proprietáriodas fitas. O proprietário das fitas dirá no ouvido dos demaisparticipantes do grupo suas respectivas cores. O Anjo Beme o Anjo Mal vão, em seqüência, tentar adivinhar as coresdas fitas dizendo ao proprietário: - Tum, tum, tum. Esteresponde: - Quem bate? - Sou eu, Anjo Bem. - O quedeseja? - Uma fita. - Que cor? – (Diz uma cor) Quandoacerta, leva a fita e quando erra, o proprietário diz: - Escor-rega na gameleira pra lamber sabão. Vence a brincadeiraquem conseguir o maior número de fitas.

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quando houve esquecimento, os colegas foramsolícitos em ajudar. Ainda como parte da açãomediadora da professora foi solicitado aos alu-nos que apontassem para algo que possuía acor da fita que ele representava e todos vibra-vam com os acertos dos colegas. Após a con-clusão da brincadeira, a professora trabalhouas quantidades de fitas que cada “anjo” alunoobteve e o reconhecimento dos numerais cor-respondentes a essa quantidade, solicitando-lhesque dissessem o que se encontrava na sala na-quela mesma quantidade. Em seguida, ela pe-diu aos alunos que fizessem a contagem erepresentassem numericamente a quantidade demesas, de portas, de cadeiras existentes na salade aula.

Segundo Mantoan (1997), a pessoa comdeficiência mental vivencia alguns obstáculoscognitivos que dificultam sua adaptação ao meio,por isso, torna-se importante a realização deatividades que se ajustem às suas condições aotempo em que possibilitem a conquista progres-siva de sua autonomia intelectual. Nesse senti-do, o jogo e a brincadeira assumem ascaracterísticas deste tipo de atividade.

É importante ressaltar que todo este poten-cial pedagógico do jogo torna-se mais ampliadoa partir do planejamento dessas situações didá-ticas. Isso significa que, quanto mais intencio-nal for a ação docente no trabalho com jogos ebrincadeiras, mais potencial educativo o jogo teráentre os alunos. No entanto, no desenvolvimentoda disciplina Jogos e Recreação no curso deLicenciatura Plena em Pedagogia, em São Se-bastião do Passé, a idéia de planejamento dejogos foi acolhida não sem dificuldades, poisplanejar aulas para ministrar disciplinas especí-ficas não representava problemas, tendo emvista que essa é uma atividade cotidiana dosprofessores; mas pensar em planejar jogos ebrincadeiras tendo clareza do que os mesmosproporcionavam para as crianças trouxe certainquietação inicial, porém muito crescimento.

Com o planejamento das brincadeiras pude com-preender que o brincar possui funções que atéentão eu desconhecia. Para mim as brincadeirasnão passavam de um passatempo lúdico, no en-tanto, descobri que todo o seu processo contri-

bui para o desenvolvimento (...) do indivíduo (J.A. O. S./Aluna do Curso de Pedagogia /Vesper-tino – Auto-avaliação).

Além dos estudos de fundamentação teó-rica, o desenvolvimento de uma observaçãodo brincar espontâneo da criança proporcio-nou maior sensibilização do grupo com rela-ção às possibilidades da utilização desserecurso também em sala de aula. Com a ob-servação, registro e análise de brincadeirasespontâneas desenvolvidas pelas crianças foipossível para o grupo de alunas concluir queessas também proporcionam o desenvolvi-mento de diversos aspectos como, por exem-plo, cognição (raciocínio, argumentação,atenção, memória etc); comportamento soci-al (cooperação, conflito, integração etc);emoções/afetividade (interesse, motivação,satisfação, tensão); valores; psicomotricida-de; linguagem; iniciativa, criatividade, auto-nomia e criticidade.

Hoje tenho um novo olhar para qualquer tipo dejogo ou brincadeira infantil, espontânea ou não, eaprendi aplicar de forma significativa e prazerosana minha prática pedagógica (Z. F./Aluna do Cur-so de Pedagogia /Vespertino – Auto-avaliação).

Após esses momentos, a construção de umArquivo de Jogos, foi assumida pelo grupo edirecionada para a elaboração de planejamen-tos de jogos, brincadeiras e construção de brin-quedos, de forma a deixar claro as funçõeslúdica e educativa na execução dessas ativida-des. Os planejamentos foram divididos em: brin-cadeiras tradicionais, jogos para ensino deconteúdos específicos e construção de brinque-dos de sucatas. O material foi produzido pelogrupo de alunas de forma a ser utilizado comoum recurso auxiliar para docentes que desejamtransformar sua matéria em brinquedo, sedu-zindo seus alunos a brincar na certeza de que“depois de seduzido o aluno, não há quem osegure” (ALVES, 1997, p. 123)!

A proposta de confecção de brinquedos desucatas foi tão envolvente para os alunos dasséries iniciais que, de acordo com relato dassuas professoras, possibilitou inclusive mudan-ça no momento do recreio escolar.

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Após a confecção dos brinquedos de sucata orecreio melhorou muito, pois os alunos passa-ram a brincar e diminuíram as brigas e acidentes(V. S./ Aluna do Curso de Pedagogia/ Noturno –Depoimento).

Noutro episódio observado em uma turmade primeira série do Ensino Fundamental veri-ficou-se o envolvimento de um grupo de alunosna faixa etária de seis e sete anos onde se en-contravam inseridos dois alunos de dezesseis evinte anos, ambos com deficiência mental e umaaluna, cega, de sete anos de idade. Nessa tur-ma foi utilizado o jogo de boliche de números3

e observou-se que, a partir da mediação feitapela professora, os alunos com necessidadesespeciais incluídos na turma foram desafiadosa participar da brincadeira. Aos dois alunos comDM, a professora solicitou que assumissem aliderança dos grupos que seriam formados apartir da seleção de colegas feita por eles; aum deles a professora delegou a tarefa de aju-dar a criança cega a fazer o registro da quanti-dade de pinos derrubados no boliche.

Observa-se que com essa atitude, a profes-sora evidencia a preocupação de envolver atodos com a brincadeira proposta. Ainda queno arremesso do boliche pela criança cega hou-vesse maior necessidade de mediação pedagó-gica, como por exemplo, chegar a criança paramais perto dos pinos e orientá-la a arremessara bola para frente, o envolvimento dela na ativi-dade proporcionou benefícios não apenas deordem cognitiva através de novas aprendiza-gens, como também de ordem social e afetiva.

Entretanto, nesse episódio é importante umaanálise que aborde não apenas o potencial dojogo, mas que também enfoque as questões re-lacionadas à prática da inclusão de alunos comnecessidades especiais na escola regular. Comojá abordado anteriormente neste texto, a propos-ta de educação inclusiva traz não apenas a ques-tão da inserção ou acesso do aluno comnecessidade especial em uma escola regular, mas“é fruto do exercício diário da cooperação e dafraternidade, do reconhecimento e do valor dasdiferenças (...)” (MANTOAN, 2003, p. 9).

Nesta perspectiva, não basta apenas inseriro aluno com necessidade especial em sala de

aula regular, mas oferecer-lhe condições paraque participe da vida escolar, interaja com seuspares, aprenda e se desenvolva a partir de suaspotencialidades. É justamente essa possibilida-de de interação social entre alunos com e semnecessidades educacionais especiais que pos-sibilita a troca e, portanto, a ampliação da ca-pacidade individual.

Sendo assim, observa-se na exposição doepisódio da Escola 2 um esforço empreendidopela professora para criar um espaço de parti-cipação e interação entre seus alunos. Entre-tanto, há que se considerar que seria tambémnecessário garantir condições mais favoráveispara se proceder a inclusão. Por exemplo, dis-cutindo a regulamentação da LDB 9.394/96,noque se refere ao atendimento de educandos comnecessidades especiais ,preferencialmente narede regular de ensino, Carvalho (1997) apontaque uma classe inclusiva deveria receber atétrês pessoas com necessidades especiais namesma área de excepcionalidade e que nestasclasses o número total de crianças não deveexceder a vinte e cinco. Entende-se que estascondições favoreçam o trabalho mediador doprofessor, embora se reconheça que a hetero-geneidade continue existindo não apenas entreos alunos com necessidades especiais, apesarde se tentar reduzir as diferenças quando setrabalha com o mesmo tipo de excepcionalida-de, mas também entre os demais alunos.

No entanto, constata-se que na classe emquestão há dois tipos diferentes de excepecio-nalidade (Deficiência Mental e Visual), além deuma enorme diferença com relação à faixa etá-ria dos alunos (6 - 20 anos) o que certamentedificulta o trabalho docente tendo em vista asespecificidades de interesses de crianças e ado-lescentes. Apesar dessas considerações, a pro-fessora desta classe procurou utilizar favora-

3 BOLICHE DE NÚMEROS - CONTEÚDOS/OBJETI-VOS: CONCEITUAIS - Estabelecer relação número, nume-ral. PROCEDIMENTAIS - Identificar os números. Lançar abola de forma a derrubar os pinos. ATITUDINAIS - Respei-tar as jogadas dos colegas. PROCEDIMENTOS DIDÁTI-COS: A sala será dividida em grupos de no máximo 5 alunos.Cada grupo terá a sua vez de jogar a bola para acertar ospinos. O grupo irá identificar os números derrubados, somaros valores e um membro registrará no quadro/caderno.

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velmente o jogo, permitindo para os diferentesalunos a possibilidade de desenvolvimento nosaspectos: 1. afetivo – nas relações de ajuda eaceitação do outro com suas diferenças e es-pecificidades; 2. social – nas interações e tro-cas entre os pares de alunos, ampliando as pos-sibilidades individuais; 3. cognitivo – naelaboração de estratégias para fazer os regis-tros; 4. psicomotor – durante o próprio jogo como desafio de acertar os pinos do boliche. As-sim, a ludicidade não foi utilizada com ênfaserestrita a recreação/ lazer, mas buscando inte-grar o sentir, o pensar e o agir dos educandosque dela participaram.

Dessa forma, ambos os episódios descritosfornecem elementos para apontar que no aten-dimento a crianças com necessidades especi-ais o jogo proporciona maior interação entre osalunos e maior envolvimento dessas criançascom o conteúdo específico que se está traba-lhando. Para elas, isso significa que numa rela-ção estabelecida a partir do jogo/brincadeira ofoco deixa de ser o seu déficit real, isto é, oproblema orgânico instalado para que sejamfocalizadas suas possibilidades construídas emsituação de interação social no jogo. Assim, aquestão não está no que ela não consegue fa-zer, mas no que ela pode fazer sob condiçõesde mediação pedagógica adequada através douso de jogos/brincadeiras.

Isso ocorre, pois no jogo os padrões e co-branças de eficiência, estabelecidos pela soci-edade, são flexibilizados e abre-se a possibili-dade para tentativas, erros e mediações sociais.Esta flexibilização reforça o caráter educativodo jogo que é subsidiado pela proposta de inte-ração social e pela perspectiva inclusiva que seestabelece em seu desenvolvimento.

Considerações finaisDiante do exposto, é possível visualizar o

potencial dos jogos e brincadeiras no trabalhocom crianças com necessidades educativasespeciais, pois, a partir dessa inserção do lúdi-co no espaço escolar, a aprendizagem torna-semais desafiadora e prazerosa proporcionandoum maior envolvimento dos alunos.

Com estes princípios de desafio e prazer, ojogo assume um importante papel no processode adaptação curricular para a pessoa com ne-cessidade educativa especial, equilibrando asconcepções de funcionalidade e ludicidade nodesenvolvimento do currículo. Assim, pode-setrabalhar através do jogo questões da vida co-tidiana que atendam às necessidades especí-ficas dos alunos, ajudando-os a avançar emseu desenvolvimento a partir dos objetivos pro-postos.

Porém, vale ressaltar que, como parte doprocesso de mediação pedagógica, os jogos ebrincadeiras precisam ser intencionalmente pla-nejados. O planejamento de jogos e brincadei-ras pelo professor é imprescindível para que sealcance a plenitude de suas possibilidades noprocesso educativo. Nesse planejamento é im-portante que o docente tenha clareza dos as-pectos do desenvolvimento aí envolvidos e dasaprendizagens que proporcionam para as cri-anças.

Garantir também no planejamento docenteespaços e momentos de brincadeiras espontâ-neas, construção de brinquedos de sucata e brin-cadeiras tradicionais é igualmente importanteno processo de avaliação dos alunos pelo pro-fessor, pois estas também proporcionam confli-tos, aprendizagens e desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

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FRIEDMANN, Adriana. Brincar: crescer e aprender: o resgate do jogo infantil. São Paulo: Moderna, 1996.

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KISHIMOTO, Tizuko M. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 2001.

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Ser ou estar, eis a questão: explicando o déficit intelectual. Rio de Janeiro:WVA, 1997.

_____. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer? São Paulo: Moderna, 2003.

MIRANDA, Teresina G. A educação do deficiente mental: construindo um espaço dialógico de elaboraçãoconceitual. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.

SANTOS, Cássio Miranda dos. Levando o jogo a sério. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 4, n. 23, p.51-67 set./out., 1998.

SANTOS, Santa Marli Pires dos (Org.). A ludicidade como ciência. Petrópolis: Vozes, 2001.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.São Paulo: Martins Fontes, 1998.

WEISS, Lese. Brinquedos & engenhocas: atividades lúdicas com sucata. São Paulo: Scipione, 1993.

Recebido em 28.02.06Aprovado em 12.04.06

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Miguel Almir Lima de Araújo

ARTE: ESTAMPAS HÍBRIDAS DE ARCO-ÍRIS EM FLOR –SINERGIA, RELIGAÇÃO E ECOFRATERNIZAÇÃO

Miguel Almir Lima de Araújo*

* Doutor em Educação pela UFBA. Professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB e da Universidade Estadualde Feira de Santana - UEFS. Endereço para correspondência. Departamento de Educação - Campus XI/UNEB - R.Álvaro Augusto, s/n, Bairro da Rodoviária – 48700-000 Serrinha/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOO texto aborda a Arte como expressão ontológica da condição humana, comsua potência de transfiguração do real, através de nossa sensibilidade eimaginação criantes, do senso intuitivo e com-preensivo, dos feixes domitopoético. Realça, sobretudo, sua configuração arco-írica como “agregadosensível” que, em suas in-tensidades, se traduz numa urdidura policrômica ehíbrida que pode desbordar processos pregnantes e anímicos de sinergização,religação e ecofraternização. A articulação dos símbolos da Arte, em seupathos originário de celebração e de afirmação da vida, ao tocar fundo emnossos corações e almas, potencializa momentos e encontros mestiços in-tensivos entre as diferenças que podem levar a entrelaces interculturais queunem nossas singularidades mediante os elos/elãs de nossas semelhanças.Destarte, a Arte pode nos co-implicar, nos fluxos tensoriais da coexistência doestar-sendo-no-mundo-com-os-outros, mediante o compartilhamento de nossosdesejos, sonhos e paixões mais intensos e vastos. As in-tensidades do estadopoético da Arte fomentam os fluxos alquímicos das mutações que jorram oadvento do novo, a fruição do sentimento do mundo, a re-encantação do existir,do coexistir; conduzem a anima mundi; infundem poéticas de compartilhamentoque entrecruzam a Ética e a Estética nas estampas finas das teiasecofraternizantes.

Palavras-chave: Arte – Arco-íris – Anímico – Ecofraternização

ABSTRACTART: HYBRIDS IMPRESSION OF RAINBOW IN FLOWER -SYNERGY, RELIGATION AND ECO-FRATERNIZATION

The text approaches Art as onthologic expression of human condition, with itscapacity of reality transfiguration through our creative sensibility and imagination,through intuitive and comprehensive sense and mythopoetics bundles. It mainlyemphasizes its rainbow like configuration as “sensitive aggregates” that in itsin-tensities, translates itself into a hybrid and polychromic warp that can overflowvivid and pregnant processes of reconnecting and eco-fraternization. TheArt symbols articulation, in its original pathos of celebrating the affirmation of

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Arte: estampas híbridas de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternização

life, when touching deep in our hearts and souls, it potentializes intensivesmongrel moments and meets among the differences that can bring uptranscultural interlaces, that unit our singularities across the links of oursimilarities. Therefore, the Art can co-implicate us in the tensional floods ofthe coexistence of “to be – being” in the world with the others through sharingour most intense and vast desires, dreamers and passions. The in-tensities ofArt poetic state foments the alchemic floods of mutations, that gush the comingof the new and the “feeling of the world”, the re-enchantment of existing, ofco-existing, conduces to an anima mundi; infuses shearing poetics thatintercross the Ethics and the Aesthetics in the fines impressions of the eco-fraternities textures.

Keywords: Art - Rainbow – Animic World – Eco-fraternization

A vida só é possível pelas miragens da arte.(Nietzsche)

O verdadeiro objeto da arte é criar agregados sensíveis.(Deleuze)

A Arte, como uma das formas singularesde expressão da condição humana, se caracte-riza, em seus modos de transfiguração do real,pela presença intensiva da imaginação e da sen-sibilidade criantes, dos sentimentos e das cren-ças mais viscerais, dos feixes da intuição, daconsciência compreensiva, dos flancos do mi-topoético. A Arte emerge a partir de nossa re-lação de espanto e de assombro diante dos fluxostensoriais e da porosidade das contingências docotidiano, e se materializa, com o sopro de nos-sa imaginação criante, através dos símbolospolifônicos que traduzem luzes e sombras, afranja da penumbra, do crepuscular, o admirá-vel do existir humano. Se enreda e se desenre-da por seus meandros incomensuráveis eindeterminados. Assim, a Arte garimpa as sen-das descomunais dos enigmas que constituemos desvãos do ser, dos paradoxos e dos impon-deráveis da existência humana. Evoca e nosmergulha na imensidão do anímico, do co-mo-vente e do alumbrante, da poeticidade do uni-verso.

Noutro texto (ARAÚJO, 2002) teci consi-derações acerca da Arte, em suas dimensõesvastas, de modo mais amplo. Nesse pequenoensaio, procuro realçar a mesma em suas po-tencialidades sinérgicas e agregantes, que inci-dem nos processos de religação, de entrelaça-

mento e de celebração da vida e que levam àfraternização, à ecofraternização.

Através das linguagens peculiares de seussímbolos, de suas imagens polissêmicas comoa Música, a Dança, o Teatro, as Artes Plásti-cas, a Poesia, a Literatura etc., as expressõesda Arte plasmam os tons mestiços e arco-íri-cos de nossos desejos e paixões, de nossas am-bigüidades e paradoxos; estampam as silhuetasde nossa existência demasiadamente humana,nos rasgos de suas in-tensidades e ambigüida-des em seu estado nascente e ad-mirante, vi-vente e originário.

As expressões da Arte brotam da matériadisforme de nossos sonhos, de nossa relação deperplexidade e de ad-miração diante da plastici-dade dos fenômenos, das vicissitudes do mundo,dos influxos da vida cotidiana. Co-movidos pelopathos que arrebata, impulsiona e nos precipitanas venturas do existir, somos compelidos à frui-ção sensível do vivido, de modo in-tensivo e de-sinstalante. O pathos transgressivo da Arte, comseu cunho anárquico e com a verve de seu im-pulso criador, de sua pulsão criante, nos inspira enos implica em processos de criação e de inven-ção de imagens e formas sensíveis que transfi-guram o real, que o recriam e o ressemantizam;que o re-velam em suas dimensões e camadasmais vívidas, encantadas e anímicas.

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Miguel Almir Lima de Araújo

Essa transfiguração se traduz na composi-ção e na materialização de formas poéticas queapresentam a in-tensidade de nossos sentimen-tos e desejos, de nossas sensações e inquietu-des, de nossos sonhos e delírios, nas sagas dastragicomédias do humano. Formas poéticas quese plasmam mediante a potência de nossa sen-sibilidade e imaginação criantes com suas res-sonâncias quânticas. A plasticidade estésicadessas estampas poéticas, tecidas com a fine-za de seus relevos e cores, de seus silêncios esons, de seus recurvamentos e espessuras, pro-porciona novos sentires e sentidos, novos mo-dos e perspectivas de relação com a vida, como mundo, em seus fluxos escorrentes.

A Arte, ao tocar com intensidade na ima-nência de nossa sensibilidade, de nossa intuiti-vidade, de nosso imaginário mítico, portanto, dosdesvãos da condição humana, em suas instân-cias originárias e pregnantes e em nosso estarsendo-no-mundo-com-os-outros, nos conduz aosconfins do indizível, da desmesura, dos estadosincontornáveis, curvos e admiráveis do existir;nos conduz ao âmago magmático de nosso co-ração e de nossa alma, nos anima com os fei-xes do elã vital; infunde o anímico.

Mobilizando nossos sentires mais in-tensose inefáveis, a Arte nos inspira e nos leva a es-tados de fruição e de encantamento, nos preci-pita no estado poético, na poeticidade doser-sendo, em que a vida pode resplandecer,com seu fulgor aurorecente, e assim, pode flo-rejar a sua pujança primavérica.

As expressões da Arte, ao nos mobilizar paraesses estados intensos em que se desbordamos sentimentos mais pregnantes e vastos, paraos ermos do “sentimento do mundo”, pode nospossibilitar a dissolução de nós e de couraçasque nos aprisionam e nos enrijecem; pode nosaproximar com mais intimidade e desnudamen-to de nós mesmos e dos outros. O estado defluidez e de ludicidade das proezas da Arte, nojogo de seus movimentos sincopados, de seusmatizes de gratuidade e de inutileza, co-movee mobiliza o corpo e o espírito nas travessurasdas folias e na abertura graciosa do riso queestampa alegria e contenteza. Viceja o feixelampejante dos sentimentos de ternura e de

acolhimento, de compaixão e de cordialidadena partilha e na fruição das coisas simples, dagrandeza supremal dos enigmas da existênciahumana e dos seres do universo.

As formas expressivas da Arte, em seu sen-tido mais originário, despontam a partir das di-mensões imensuráveis de nosso imagináriomítico, mitopoético, e traduzem arquétipos pro-fundos de nosso inconsciente coletivo. Dessaforma, as imagens, os símbolos da Arte, re-ve-lam sonhos, desejos e crenças coletivas quepovoam a humanidade, em suas camadas maisfundas e sutis, em seus repertórios mitopoéti-cos vastos, inspiradores e alumbrantes. Proje-tam o estandarte de nossas utopias e esperançasna dinâmica de seus ritos de celebração e dere-encantação da vida.

A Arte não explica, nos implica. O explicartende a separar e fragmentar. O implicar noscumpliciza, nos en-volve e nos empatiza comos outros, com a vida, com as coisas. Com essapotencialidade de nos dis-por para a aberturasimpatizante e aproximante, de fomentar os lia-mes que entrelaçam, a Arte, em seus sentidosoriginários, pode compelir a atitudes abertas esimpáticas que nos fraternizam, que nos eco-fraternizam (com todo o universo). Nos con-duz a posturas de reconhecimento do brilho decada estrela humana (de si mesmo e dos ou-tros) na constelação da teia do humano, do eco-humano. Dessa forma, podemos sorver afruição das centelhas, das energias, dos “agre-gados sensíveis” que fazem vibrar a radiânciado humano, do profana e divinamente humano,através dos elos que nos sinergizam e que nosentrelaçam na afirmação de nossa condição deseres singulares e semelhantes, com a plurali-dade de nossas diferenças.

Irradiados com esse elã sensível, podemosconverter as formas singulares de nossas di-ferenças em condições que nos dis-põem acompartilhar a diversidade de sentimentos ede valores, por meio daquilo que nos une – oliame e o núcleo da condição humana: o pul-sar de nossos corações e o vibrar de nossasalmas. Pulsar que nos faz arrepiar na in-tensi-dade do laço terno do abraço caloroso que nosamoriza.

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Arte: estampas híbridas de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternização

Nessa perspectiva, a Arte se re-vela comoemanação de formas encantadas de celebra-ção da vida, de sua renovação permanente, nofluxo dos movimentos cíclicos de suas estações.Com seu tom iniciático, a Arte, mediante os maisdiversos ritos de iniciação (manifestações ecelebrações coletivas), nos inicia nas aprendên-cias pregnantes de nosso ser-sendo, nos hori-zontes do anímico. Assim, co-movidos pelo seuelã vital, podemos, nas proezas de cada aven-tura, renascer para a “eterna novidade do mun-do” nas franjas dos arrebóis de cada alvorecer;podemos renascer redivivos, alvorecentes!

Como expressão vívida e pregnante de cele-bração da vida, as linguagens de Arte proporcio-nam encontros mestiços, encruzilhadas híbridas,em que a diversidade de valores e de cosmovi-sões, de crenças e de sentires podem se interpe-netrar com in-tensidade, na composição daestampa mestiça que pode fazer flamejar a “com-paixão do coração” e o “humanismo do espírito”.Despojados e simpatizados nessa teia do ser-sen-do-com-os-outros, do estar a-con-te/cendo, nafruição do estado poético que nos anima e nos co-move, que nos implica e nos co-implica, podemosfruir a jorrância dos sentimentos mais preciosos ealtaneiros da amorosidade ecofraternizante.

Sabemos que, nas populações que constitu-em as diversas tradições culturais, também es-tão presentes as posturas etnocêntricas quetendem a segregar e excluir. Porém, tambémsabemos/sentimos que, em muitas das experi-ências pregnantes plasmadas mundo afora, essapotencialidade agregadora e entrelaçante daArte tem se afirmado e se expandido.

A abertura e a plasticidade do estésico, dovigor de nosso ser sensível, fomentam e mobili-zam a imaginação criante nos processos de cri-ação de imagens poéticas que co-movem ocorpo e o espírito, a alma e o coração humanos,na manifestação de nossos sentimentos maisintensos e finos. A vibração dos acordes des-ses sentimentos ecoa ressonâncias que nos en-volve com intensidade e que fazem irradiar, paranós e para os outros, a empatia entrelaçante,através dos fios invisíveis das sinergias que nosco-implicam, que nos conduzem ao espírito decompartilhamento e de solidariedade, de afir-

mação e de reencantação da vida, do mundo.Essas ressonâncias, provocadas pela vivên-

cia oceânica com a fruição da Arte, suscitamnossa sensibilidade e consciência compreensivapara a escuta e a percepção de nossa condiçãode seres coexistentes, complementares e inter-dependentes, na teia viva, in-tensiva e vibranteda vida, da cultura, do universo/pluriverso. Des-sa forma, as expressões da Arte fomentam osentimento anímico de nosso co-pertencimentona teia planetária e viva do ecossistema.

De modo geral, com as devidas exceções, asinstituições religiosas, os partidos políticos, as di-versas instituições sociais etc. tendem a segre-gar e excluir, desencadeando posturas intoleran-tes, etnocêntricas e reducionistas, cimentadas emideologias que se pretendem portadoras de ver-dades únicas e imutáveis. Dessa forma, os espí-ritos e os corações se armam e se enrijecem nainstauração de relações e de posturas frias e res-sentidas, competitivas e barbarizantes.

Os lampejos da expressão do “sentimentodo mundo” proporcionados pela Arte podem nosdis-por para o estar-sendo-com-os-outros, nanervura in-tensiva do mundo vivido, para os la-ços que nos interligam e nos ecofraternizam.Lampejos que, assim, nos abrem e nos impe-lem para a vivência da poética do existir, dadança co-movente do cosmos com seus ritmose contornos mestiços e transversais.

Em todo o mundo, cada vez se expande umpouco mais a emergência de grupos, ONGS,movimentos diversos que, através das múltiplaslinguagens de Arte, plasmam e envidam proje-tos, vivências e celebrações que, com a intensi-dade do pathos criador, do elã da poeticidade daArte, vão afirmando a vida, os valores humanos,infundindo o estado anímico e ecofraternizantenos compassos fecundos de reencantamento domundo. Nesse sentido, concebemos Arte, nãocomo um mero instrumento ou recurso pedagó-gico, mas como uma forma de conhecimentoontologicamente constituída que, com suas ca-racterísticas e sentidos peculiares, pode propor-cionar o sorver degustante desses processos dere-encantamento da vida, do mundo.

Na proporção em que toca fundo em nossasensibilidade, em nossa intuição e em nossos

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Miguel Almir Lima de Araújo

sentires mais despojados, o cuidado primorosoe sensível para com a plasticidade do estésico,da fruição estética do mundo, potencializadoatravés das linguagens de Arte, nos conduz aosterritórios da Ética. Assim, os sentimentos dobem, da liberdade, da paz, da dignidade, do al-truísmo etc. são compreendidos como constitu-tivos da magnitude da condição humana. Estéticae Ética configuram assim, instâncias estrutu-rantes e constituintes da condição humana, deforma implicada e coexistente, na complexida-de de sua inteireza aberta e híbrida.

Nesse horizonte compreensivo, as expressõesda Arte, em sua condição mais originária e aními-ca, agregam coexistencialmente a Ética e a Esté-tica, o bem e o belo, a forma e o conteúdo, adelicadeza e a elegância, o útil e o agradável, osentimento e o pensamento, no cuidado com essainteireza dinâmica e in-tensiva da condição eter-namente precária e inacabada do existir humano.

O advento da sensibilidade, do cuidado como sensível, da busca da delicadeza, do espírito defineza e de poeticidade, proporcionados pelasexpressões da Arte, pode, portanto, propiciar oburilar do estado anímico de nosso ser-sendo, nabusca permanente da vivência dos valores hu-manos, das metamorfoses que nos renovam evivificam, que nos tornam melhores uns com osoutros. O elã do estado poético pode operar aalquimia que converte o feio em bonito, o metalpesado em ouro, a lama em lótus, mediante osprocessos in-tensivos de transmutação de valo-res, de sentires e de posturas que nos tornammais humanos, amorosos e altivos. Possibilita-nos compreender e vivenciar os paradoxos eambigüidades do humano em que nosso existirse constitui de dor e de prazer, de tristeza e dealegria, de feieza e de boniteza. As expressõesda Arte podem nos proporcionar estados de “har-monia conflitual” em que aprendemos a dançarmelhor com os fluxos tensoriais de suas ambiva-lências, de suas torsões pregnantes.

A Arte se instaura na interligação e no en-trecruzamento entre Caos e Cosmos, entreDesordem e Ordem, como instâncias que po-tencializam os processos de criação e de trans-mutação. Ela é androgínica ao fomentar ajuntura simbiótica e in-tensiva entre masculino

(Apolo) e feminino (Dioniso), como potenciali-dades energéticas que constituem a inteirezade nosso ser-sendo. Simbiose que se traduz narelação de coexistência fecunda e criante en-tre essas polaridades interpolares. Essa coexis-tência não incide na redução de uma polaridadena outra. É no interfluxo da relação de copula-ção entre as diferenças – na interpolaridade –que podem ser fecundados os processos deengravidação e de partejamento do novo, dossentidos anímicos do existir.

As potencialidades criadoras e transmutan-tes das expressões da Arte, nas texturas do es-tado poético, quando conduzidas pela inteligênciasensível e espirituosa, quando mobilizadas porsentimentos mais altivos e sublimes, mediante opoder incomensurável de nossa imaginação esensibilidade criantes, opera com nossas dores,conflitos e angústias como motes, como forças emomentos germinais que podem, como vimos,nos inspirar para os fluxos de transformação, departejamentos renovantes e alargantes.

Assim, o feixe tensorial dos conflitos, das doresdo mundo que nos perturbam e até nos fazemchorar, com sua agudeza cortante, podem seconfigurar como momentos promissores das tra-vessias e se tornar passagens alvissareiras. Pas-sagens que, mediante nossa sensibilidade eimaginação criantes, podem se desdobrar no risodesmesurado da contenteza que resulta do nas-cimento amanhecente do novo vivificante.

Na proporção em que as expressões da Artetocam nossos sentimentos mais fundos e singe-los, elas nos dis-põem e mobilizam para mo-mentos celebrativos em que, despojados eabertos, podemos compartilhar com os outrosnossas alegrias e tristezas, nossos sonhos e uto-pias; em que podemos urdir a teia dos laçosafetivos da compaixão, da empatia, da solidari-edade, da fraternura. A festa que as manifes-tações da Arte nos propiciam pode fazer jorrara sinergia que nos entrelaça e ecofraternizano cultivo dos valores e sentimentos mais pre-ciosos, nos impelindo às buscas da beleza su-premada; nos infunde o elã do anímico que fazvicejar a dinâmica in-tensiva da unidade namultiplicidade através da plasticidade de suasformas simbólicas.

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Arte: estampas híbridas de arco-íris em flor – sinergia, religação e ecofraternização

A Arte se plasma como experiência vivida,penetrante, que atravessa por dentro, pelas entra-nhas da nervura do vivido, do vivente, e implica nocultivo de nossa subjetividade vital, ao mesmo tem-po em que afirma e nos conduz à dinâmica dasrelações intersubjetivas. Os símbolos da Arte in-terligam, interpenetram e nos enredam nas estam-pas da teia animada que entretece o humano, ointerhumano, fazendo ecoar as ressonâncias dosversos que versejam o universo, na roda mestiçae pregnante da ecofraternização.

As urdiduras poéticas da Arte trazem graçae encantação. Podem, assim, nos tornar maisgraciosos e altaneiros. Nos imergem pelos des-vãos do sublime, da sutileza, dos mistérios ine-fáveis do ser, do universo, nos fazendo celebrara insustentável beleza da leveza do ser. Nosdis-põem com mais audácia e terneza para astravessuras das travessias oblíquas que nos atra-vessam, que atravessamos. Assim, podemostrilhar em nossas sagas com mais denodo epaixão, com mais inventividade e vigor, com

mais poeticidade e alumbramento. As urdidu-ras da Arte nos precipitam com afinco e des-prendimento pelas ondulações da tensividade dovivido, e assim podemos bailar com mais de-senvoltura nos volteios de suas curvaturas.

A potência germinal e criante da Arte nos re-nova e nos reinventa cotidianamente. Nos meta-morfoseia nos ciclos das estações de nossos ve-rões, invernos, outonos e primaveras. Infunde ossentimentos dos estados de alumbramento que nosco-movem nas itinerrâncias nômades, no des-bordar de nossas utopias. Renova o espírito e ocoração na movência dos fluxos de nosso ser-sendo-com-os-outros, no advento e na fruição donovo renovante e reencantante.

Como estampas híbridas de arco-íris em flor,a Arte desborda os fractais das curvaturas edos entrecruzamentos do existir, da teia poli-crômica e semovente do coexistir, mediante oarco do abraço intercultural/transcultural que,de modo in-tensivo e pregnante, entrelaça ostons multicores de nossas tradições culturais.

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 05.03.06

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Juvino Alves

BANDAS, FILARMÔNICAS E MESTRES DE BANDA DA BAHIA:formação de músicos e cidadãos

Juvino Alves*

Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana, fundada em 1878,em Cachoeira-Bahia. Arquivo da Sociedade Minerva Cachoeirana

(Foto do início do século XX)

RESUMOO presente trabalho1 traça um panorama histórico das Bandas e SociedadesFilarmônicas da Bahia e do seu papel educativo, ressaltando ainda a figura dosmestres de Banda. As Sociedades Filarmônicas surgiram oficialmente com oadvento oficial das Bandas Militares em 20 de Agosto de 1808, ao finalizar-seo Brasil colonial. Essas Sociedades são centros culturais de formação musical

* Juvino Alves dos Santos Filho é doutor em música pela UFBA com concentração em Clarineta. É um dos coordena-dores do Projeto Roda de Choro e Presidente da Casa de Choro da Bahia. Bolsista Desenvolvimento TecnológicoRegional – DTR 2 da Fundação de Apoio à Pesquisa da Bahia – FAPESB, junto ao Programa de Pós-Graduação emEducação e Contemporaneidade, no Projeto Memória da Educação na Bahia. É professor da Faculdade de Filosofia,Ciência e Letras de Candeias-Ba. Estuda formas alternativas de educação musical na sociedade brasileira. Endereço paracorrespondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, RuaSilveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 SALVADOR/BA E-mail: [email protected] Texto apresentado no VII Colóquio de História da Educação na Bahia, em Mesa Coordenada 3 sobre “O Ensino/Aprendizado de Arte na Bahia”, coordenada pelo autor deste no dia 16/12/2006. Projeto Memória da Educação na Bahia.

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Bandas, filarmônicas e mestres de banda da Bahia: formação de músicos e cidadãos

e cidadania, além de constituírem laboratórios das diferentes tendências doque acontece na música no Brasil e no mundo. Apresenta o Mestre de BandasManuel Tranquillino Bastos, que viveu num período de grande intensidade daatividade musical das Bandas e Filarmônicas – o final do século XIX e início doXX. Naquele momento, existia grande quantidade de Bandas na Bahia, tendosido o Recôncavo Baiano o centro de manifestação dessas corporações, muitasdelas criadas pelo próprio Tranquillino Bastos.

Palavras-chave: Ensino da Música na Bahia – História da Educação para asArtes – Bandas, Filarmônicas e Mestres da Bahia – Musicologia.

ABSTRACTBANDS, PHILHARMONIC SOCIETIES AND MASTERS OFBAHIA: EDUCATION AND CITIZENSHIP

This study delineates the historical path of the Bands and Philharmonic Societiesof Bahia and their educational role, emphasizing the position of the Bands’masters. The Philharmonic Societies officially started with the creation of theMilitary Bands on August. 20th, 1808, at the end of the Brazilian colonial period.These societies are cultural centres of musical education and citizenship, besidesfunctioning as laboratories of different trends in relation to Brazilian and worldmusic. The text presents the Master of Bands Manuel Tranquillino Bastos,who lived within a period of intensive musical activities among the Bands andthe Philharmonic Societies – at the end of the 19th century and beginning of the20th century. At that time, there was a great amount of bands in Bahia, and the“Bahian Recôncavo” was the centre of manifestations of such institutions,many of them created by Tranquillino Bastos.

Keywords: Musical Education in Bahia – History of Art Education – Bands,Philharmonic Societies and Masters of Bahia – Musicology

1. Bandas de Música e Filarmôni-cas: as origens

Os termos Banda de Música e Filarmôni-ca indicam duas distintas e independentes cor-porações musicais. O primeiro se refere aosconjuntos musicais das corporações militares eo segundo às sociedades civis. Segue abaixo orelato de entrevistas onde é definida a diferençaentre Banda de Música e Filarmônica, por doisexperientes músicos que conviveram em ambasas corporações. De acordo com o primeiro de-les, Mestre de Banda Bernardo da Silva2:

Banda de música, quando se diz banda de músi-ca, é o caso das bandas militares ou de profissi-

onais, significa banda de profissionais, de músi-cos que recebem remuneração para executarempeças musicais. E a filarmônica é um conjunto demúsicos amadores, que sem recompensa mone-tária se reúnem para executar peças musicais,também. A filarmônica é uma sociedade musicalde fins filantrópicos, entendeu? Quando se reú-ne uma banda sinfônica com uma filarmônica,isto é, uma banda de profissionais com uma ban-da de amadores, aí se dá o nome de sinfofilarmô-nica. (SILVA, 2002).

2 O Mestre Bernardo da Silva é um renomado e experienteMestre de Banda, integrante da Sociedade Filarmônica 30de Junho da Cidade de Serrinha-Ba. Ele atou também comoMestre de Banda na Banda da Polícia Militar MaestroWanderley em Salvador-Ba, chegando à patente de capitãonessa corporação.

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Juvino Alves

E segundo Igaiara Índio dos Reis3:

A Filarmônica, ela é uma corporação musicalonde existem sócios. É como se fosse uma coisaprivada, já entendeu? Então tem a diretoria, têmsócios, os sócios contribuem, e tal. E a banda demúsica não. A banda de música, no caso da ban-da Maestro Wanderley, é uma coisa pública, en-tendeu? Ela é paga pelo poder público, emusicalmente tem muita diferença. Ah, tem mui-ta diferença, tem muita diferença, porque a ban-da de música, a banda de música profissional,ela justamente, ela pega o que há de melhor, detarimbado das filarmônicas. Ela incorpora, já en-tendeu? E a filarmônica não. (REIS, 2003).

Quando Igaiara Índio fala que a “Banda deMúsica pega o que há de melhor, de tarimbadodas Filarmônicas, ela incorpora”, ele está sereferindo aos bons músicos que são formadospelas Filarmônicas e que, geralmente, vão to-car nas Bandas de Música. As filarmônicasforam grandes formadoras de músicos no Bra-sil. Sobre isso podem ser citadas palavras deVicente Salles, um grande estudioso desse tipode tradição musical: “a banda de música é, pois,o conservatório do povo e é, ao mesmo tempo,nas comunidades mais simples, uma associa-ção democrática, que consegue desenvolver oespírito associativo e nivelar as classes sociais.No Brasil, tem sido, além disso, celeiro dosmúsicos de orquestra, no que tange a madeiras,metais e percussão”. (SALLES, 1985, p. 11).O termo banda também se refere à filarmôni-ca, como um sinônimo. O termo filarmônica éparticularmente usado no estado da Bahia, maisdo que em qualquer outro estado. Banda é otermo mais utilizado no Brasil.

No Brasil, as primeiras manifestações debanda de música são encontradas na Bahia.De acordo com Almeida (apud KIEFER, 1976,p. 19):

... visitando a Bahia, em 1610, o francês Pyrardde Laval cita um potentado de então, cujo nomenão menciona, mas que diz ter sido capitão-ge-neral de Angola, o qual possuía uma banda demúsica de trinta figuras, todos negros escravos,cujo regente era um francês provençal. E comodevesse ser melômano, queria que a todo ins-tante tocasse a sua orquestra, a acompanhar, ain-da, uma massa coral “4.

Um tipo de corporação musical muito im-portante no Brasil colonial foi aquela dos cho-romeleiros: 5

Os conjuntos instrumentais dos choromeleirosé que nunca devem ter faltado às festividadesda Senhora do Rosário, como também, muito pro-vavelmente, deviam abrilhantar o dia da coroa-ção dos reis e rainhas angolas ou crioulos. Ascharamelas constituíam especialidade dos ne-gros, escravos ou não. Trata-se seguramente deuma herança direta da cultura portuguesa, im-plantada no nordeste brasileiro já desde remo-tas eras, inclusive no meio indígena. (DINIZ,apud CARNEIRO, 1998, p. 17).

A música de barbeiros foi um outro tipo demanifestação musical ocorrida nesse mesmoperíodo no Brasil e, em particular, na Bahia eno Rio de Janeiro. Através de relatos históricosé possível constatar a existência de gruposmusicais bem organizados chamados de choro-meleiros e barbeiros que contribuíram enorme-mente para a formação do que hoje chamamosde Banda de Música e Filarmônica. SegundoTinhorão (1998, p. 160), em 1802 o negocianteinglês Thomas Lindley, preso no Forte do Mar,na Bahia, por tentativa de contrabando, via pas-sar, “freqüentemente, bandas de música emgrandes lanchas, tocando pelo caminho rumoàs vilas da vizinhança, na baía, para comemo-rar o aniversário de algum santo ou por ocasiãode alguma festa especial”. E ainda acrescenta:“Esses músicos são pretos retintos, ensaiadospelos diversos barbeiros-cirurgiões da cidade,

3 Igaiara Índio dos Reis é compositor, trombonista e tenen-te da Polícia Militar da Bahia.4 Esta banda é também referida por Campos, João da Silva,em artigo intitulado “O lendário Bângala”, publicado inQuatro Séculos de História da Bahia, Álbum Comemorativodo 4º Centenário da Cidade de Salvador da Revista Fiscal daBahia, 1949, pág 210-211. Para este autor, o Bângala (Ca-pitão-mor Balthazar de Aragão) fora o organizador da refe-rida banda de música – também denominada de “saubara” –composta de 30 escravos negros e regida por um francês daProvença.5 Os choromeleiros eram conjuntos musicais de caráter mi-litar e religioso formados por instrumentos de palheta, co-nhecido como charamela (antigo instrumento de palhetadupla, de som estridente, do qual descendem o oboé e ofagote). O termo “choromelleyros” (ou charamelleiros)abrangia não apenas os tocadores da charamela, mas tam-bém os de outros instrumentos de sopro. (CARNEIRO,1998, 17)

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Bandas, filarmônicas e mestres de banda da Bahia: formação de músicos e cidadãos

da mesma cor, os quais vêm ser músicos itine-rantes desde tempos imemoriais”.

Manuel Querino, em seu livro Bahia de Ou-trora, de 1916 (QUERINO, apud TINHORÃO1998, p. 162), narra a participação dos barbei-ros, nos fins do século XIX, na ainda hoje co-nhecida Festa do Bonfim: “E todos subiam edesciam acompanhados pelos ternos de barbei-ros, ao som de cantatas apropriadas, numa ale-gria indescritível. Enquanto uns se entregavamao serviço da lavagem, outros, a um lado daigreja, entoavam chulas e cançonetas, acom-panhados de violão”.

Pelo visto a música de barbeiros perdura aténossos dias. No caso da Bahia ainda existemvestígios desses grupos em cidades do interior.Sobre isso o Mestre Bernardo da Silva dá umtestemunho, acrescentando uma suposta origemda filarmônica através do grupo de barbeiros:

Ainda conheci uma aqui. Vi tocar aqui em Serri-nha em [19]52 um grupo de barbeiro de TanqueGrande, eu vi. Era uma coisa até engraçada, viu?Era. Era tudo de ouvido. E daí do grupo de bar-beiro se resolveu criar escolas, com a finalidadede fazer música. De estudar música, canto e dan-ça, não é? Se destinava a tudo isso, o canto adança e a música. Depois se desmembrou, nãoé? As escolas de dança, as de canto e as demúsica. Aí surgiram as filarmônicas, que é dife-rente dos grupos de barbeiros. Enquanto os bar-beiros eram músicos que tocavam de ouvido, asfilarmônicas tocavam por música, como é até hoje,não é? (SILVA, 2002).

2. Bandas de Músicas e Filarmôni-cas e o ensino de música

O século XIX no Brasil é marcado pelo sur-gimento de importantes manifestações musicaiscomo a chegada aos Salões Imperiais de dan-ças em voga na Europa como a Polca, a Ma-zurca, o Schotisch, a Quadrilha; pelo surgimentodo Choro; o advento do Nacionalismo Musicalnão só no Brasil, mas em outros países do mun-do; e pelo movimento que pode ser considera-do o mais amplo, difuso – ocorrido em todo oBrasil concomitantemente – e uma das maisimportantes manifestações culturais brasileiras:

a Banda de Música e a Filarmônica, que seconstituíram como verdadeiros laboratórios dasdiferentes tendências de tudo que acontecia namúsica no Brasil, e no mundo, apontando, paraos anos que viriam, características estético-musicais muito próprias dentro do amplo uni-verso da cultural musical brasileira.

As Sociedades Filarmônicas surgiram ofici-almente e em suas formações como são vistasaté hoje, a partir do advento oficial da BandaMilitar no Brasil Colonial, quando foi determi-nada a organização de uma banda de músicaem cada Regimento de Infantaria.

Com o decreto de 20 de agosto de 1802, ficoudeterminada a organização, em cada regimentode infantaria, de uma banda de música com ins-trumentação fixa, passando o seu financiamentodas mãos da oficialidade para o Erário régio.Outro decreto, de 27 de março de 1810, estabele-ceu que em cada um dos quatro regimentos deInfantaria e Artilharia da corte, fosse formadauma banda de música com 12 ou 16 músicos, nãopodendo este número ser aumentado por moti-vo algum. Um novo decreto, de 11 de dezembrode 1817, determinou aos batalhões de Infantariae de Caçadores a organização de suas respecti-vas bandas de música, utilizando-se os seguin-tes instrumentos: duas primeiras clarinetas,sendo uma delas também o mestre, duas segun-das clarinetas, um flautim, uma requinta, duastrompas, dois clarins, dois fagotes, um trombãoou serpentão, um segundo serpentão, um bom-bo e uma caixa de rufo. (REIS, apud SCHWEBEL1987, p. 8).

As Sociedades Filarmônicas, de Euterpe ouLítero Musicais são verdadeiros centros cultu-rais de formação musical e cidadania, que têmcomo objetivo desenvolver em cada indivíduouma nobre e importante qualidade humana: asensibilidade. Essas sociedades atuam comoextensões da família na formação educacionale músico-profissional do sujeito na sociedade,incorporando-o eticamente na coletividade. Se-gundo afirmação de Fred Dantas, “Elas eramconstituídas de uma diretoria que se interessa-va pela criação de bibliotecas, salas para audi-ção de poemas e apresentações de dança”.(http://www.casadasfilarmonicas.org.br/). AsBandas ligadas a essas sociedades apresentam-se em coretos, festas e comemorações cívicas

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e religiosas. Ainda segundo Fred Dantas, “ASociedade Filarmônica Erato Nazarena, da ci-dade de Nazaré-Bahia, fundada em 1863, foi aprimeira a ser criada no Estado da Bahia”. (http://www.casadasfilarmonicas.org.br/).

A atividade musical das Bandas e Filarmôni-cas na Bahia foi muito intensa no final do séculoXIX e início do XX; basta observar a quantidadede Filarmônicas que surgiram na Bahia nesseperíodo. Segundo a Casa das Filarmônicas, 6

existem hoje no Estado da Bahia cerca de oiten-ta e seis filarmônicas e uma banda em atividadehttp://www.casadasfilarmonicas.org.br/). Des-sas, vinte e duas Filarmônicas ultrapassam oscem anos de existência e a Banda da PolíciaMilitar do Estado da Bahia “Maestro Wander-ley”, a que já me referi, hoje com seus 154 anosde idade, é a mais antiga corporação musicalmilitar do Brasil em atividade. De acordo comminhas pesquisas, além dessas corporações,existem ainda quatro Filarmônicas e três Ban-das ainda não incluídas nesta lista. Destas qua-tro Filarmônicas, três estão desativadas e umaestá em atividade, sendo que somente três têmmais de cem anos de existência. Sendo assim,no período de vida de Tranquillino Bastos exis-tiam cinqüenta e duas corporações musicaiscivis e militares em plena atividade na Bahia.Vale a pena salientar que a maioria dessas cor-porações está localizada no Recôncavo Baianoe proximidades.

Durante minhas pesquisas, constatei a pre-sença de dois outros tipos de corporações liga-das e originadas das Bandas e Filarmônicas. Aprimeira é uma orquestra constituída somentepor mulheres, de nome “Lyra de Ouro SobreAzul”, que atuou em fins do século XIX e iníciodo XX. Essa Orquestra era formada por flau-tas, violões, bandolins e bandurras e era agre-gada à Filarmônica 30 de Junho, da cidade deSerrinha-Bahia. Para essa formação instrumen-tal, eu encontrei no arquivo da Sociedade Or-pheica Lyra Ceciliana uma obra intitulada “UmPasseio a Badajoz - Novo Passa-Calle”, daautoria de Joaquim José d’Almeida. A partitu-ra dessa obra indica os seguintes instrumentos:flautas, violinos, violoncelos, bandolins, bando-letas (bandurras), violas e violões. A segunda

corporação é a Banda de Música de Gaita7 ousimplesmente Banda de Música que é formadaapenas de homens e suas primeiras manifesta-ções são, aproximadamente, da década de 1920.

Segundo Lydia Hortélio (1984, p. 3), quedocumentou e estuda essa tradição musicaldesde 1968, essas Bandas originaram-se dasBandas de Música e das Filarmônicas: “AsZabumbas são certamente mais antigas e delasprovavelmente saíram as Bandas de Músicainspiradas nas Bandas de Música da cidade,embora seu conteúdo musical seja mais próxi-mo da tradição cultural de origem.”

Essas Bandas também são chamadas de“Banda de Gaita”, “Bandinha de Gaita” ou“Música de Gaita” e são formadas por: gaitas,caixa clara, bombo e par de pratos. “As gaitassão imitações em madeira das clarinetas exis-tentes nas Bandas e Filarmônicas. A influênciadas Bandas e Filarmônicas sobre a Banda deGaita pode ser observada também nas estrutu-ras composicionais das músicas que elas to-cam”. (HORTÉLIO, 1984, p. 5). Estudos deLydia Hortélio detectaram quatro dessas Ban-das: Banda da Lagoa Cavada, Banda da Fa-zenda Tira Barro, Banda da Fazenda GrotaFunda e Banda de Zé de Bilia; dessas, só estáem atuação a última, as demais foram extintas.Todas essas Bandas foram localizadas em fa-zendas do município de Serrinha-Bahia.

3. Mestres de Banda da BahiaOs Mestres de Banda são verdadeiros após-

tolos, dedicados ao ensino da música atuandotambém como regente, compositor, arranjador,conduzindo eticamente seus discípulos na soci-edade, e assim formando cidadãos e profissio-nais da música. Segundo Fred Dantas (2003, p.103-4), na filarmônica a hierarquia de tutores epupilos é estabelecida da seguinte maneira: ummestre, um contramestre, um professor, os dis-

6 Casa das Filarmônicas, sociedade civil de direito privado,sem fins lucrativos, cujo principal objetivo é preservar,manter e soerguer as sociedades filarmônicas.7 Tipo de flauta de formato vertical construída pelos pró-prios tocadores.

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Bandas, filarmônicas e mestres de banda da Bahia: formação de músicos e cidadãos

cípulos e os aprendizes. O mestre rege a bandae prepara o repertório, com arranjos próprios,arranjos de outros compositores e composiçõespróprias. O contramestre é um músico experi-ente, de destaque entre os demais que afina abanda, ensaia os trechos mais difíceis com oscolegas e substitui o mestre na sua ausência. Oprofessor de música é uma pessoa, às vezesmúsico veterano, com especial talento para pe-dagogia, responsável pela escolinha de músicaque irá prover o corpo musical de novos execu-tantes. Os discípulos são músicos de destaque,que o mestre seleciona para transmitir seusconhecimentos de regência, instrumentação eliderança. Finalmente, os aprendizes são os alu-nos matriculados na escola de música mantidapela sociedade filarmônica.

Uma das mais importantes personalidadesna criação, organização e difusão das Socieda-des Filarmônicas na Bahia foi o Mestre de Ban-da Manuel Tranquillino Bastos8 que atuavacomo compositor, educador musical, arranjador,instrumentista, escritor, teórico musical e oboli-cionista, ao lado de relevantes figuras de suaépoca, como o distinto poeta Sabino de Cam-pos, que escreveu a letra do “Hymno da Ca-choeira”, composto por Tranquillino Bastos, em1922. De acordo com Jorge Ramos, Tranquilli-no nasceu da união de um português com umanegra alforriada e, ainda menino, aprendeu atocar clarineta e se incorporou ao Coro de San-ta Cecília, a padroeira dos músicos e, mais tar-de, à Banda Marcial São Benedito, formadabasicamente por músicos negros. (A TARDE-Cultural [Salvador-Ba], 07 de Outubro de 2000).

Fred Dantas afirma que “Manuel Tranquili-no Bastos foi o principal compositor surgido noseio das filarmônicas da Bahia no final do sé-culo XIX”. (DANTAS, 2003, p. 116). De acor-do com sua autobiografia, escrita em seu“Caderno de Anotações” (BASTOS, 1910-1924), Tranquillino foi o responsável pelo surgi-mento de mais de seis dessas sociedades, criandoou organizando-as. Dentre elas estão a BandaMusical da “Sociedade Euterpe Ceciliana” esua “orchestra religiosa”, que mais tarde tor-nou-se a “Sociedade Cultural Orpheica LyraCeciliana” (1870), a “Filarmônica Comercial”

e a “Harpa Sanfelixta”, da cidade de São Félix,a Banda da “Sociedade Filarmônica Victoria”,de Feira de Santana e a “Sociedade MusicalLyra São Gonçalense”, de São Gonçalo dosCampos, hoje todas centenárias e algumas de-las extintas, como a “Sociedade FilarmônicaVictoria”, a “Harpa Sanfelixta” e a “Filarmôni-ca Comercial”. A primeira Banda regida porTranquillino pertencia à “Sociedade RecreioCachoeirano”.

Manuel Tranquillino Bastos esteve sempreà frente dos movimentos sociais e políticos desua cidade natal e de seu país. Isso pode serverificado através de algumas de suas obras9

como o “Hymno Abolicionista” (1884), “Hym-no 13 de Maio” (1888), “Hymno da Cachoei-ra”, o “Dobrado Navio Negreiro”, homônimodo poema de Castro Alves, seu contemporâ-neo. A Letra do “Himno Abolicionista” procla-ma: “Brasileiros cantai liberdade/ Nossa pátrianão quer mais escravos/Os grilhões vão que-brar-se num povo/De origem somente de Bra-vos”...) e, mais adiante: “O jugo do servilismo/Role em pedaços no chão/ Pize altiva a liberda-de sobre o pó da escravidão (...) Quebre-se osferros da tyrania, sejamos todos livres um dia”.

Essas obras eram compostas como formade protesto e repúdio à escravidão, expressadotambém através de seus escritos em crônicasque versavam ainda sobre assuntos diversoscomo arte, religião, cultura, vida, morte, com-portamento social, música, e vários outros te-mas humanísticos. Essas crônicas erampublicadas numa coluna dominical denominadade “Cartas Musicaes” no semanário “O Peque-no Jornal” que circulava em Cachoeira. Elasforam escritas entre 1924 até sua morte, em1935. Tais crônicas foram arroladas por Tran-

8 Ver, a respeito, SANTOS FILHO, Juvino Alves. ManuelTranquilino Bastos (1850-1935): mestre dos mestres debanda da Bahia. In:MENEZES, Jaci et al Educação na Bahia:

memória, registros, testemunhos. Salvador: EDUNEB, 2005;e SANTOS FILHO, Juvino Alves. Manuel Tranquillino Bas-tos: estudo de duas obras para clarineta. Universidade Fede-ral da Bahia, Tese de Doutorado, 2003.9 Uma pequena amostra da obra de Manuel Tranquilino Bas-tos foi produzida pelo autor desse texto no CD “CartasMusicaes – Manuel Tranquilino Bastos – O Mestre dos Mes-tres de Banda da Bahia”, projeto vencedor do Prêmio BraskenCultura e Arte 2002, patrocinado pela Braskem S.A.

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quillino em um livro, não publicado, intitulado“Minhas Percepções”. Tranquillino Bastos le-gou à posteridade um acervo com cerca de1.500 (hum mil e quinhentos) documentos mu-sicais entre manuscritos e impressos constan-do partituras, livros de crônicas e de teoria damúsica de sua autoria e de outros autores brasi-leiros e estrangeiros.

Tranquillino Bastos formou muitas geraçõesde músicos em várias cidades da Bahia duran-te sua longa atividade – que durou mais de ses-senta anos – como professor de música,regente, compositor, arranjador, instrumentista,formando músicos de renome, como Irineu Sa-cramento, que o sucedeu à frente da banda daSociedade Orpheica Lyra Ceciliana e que con-quistou notoriedade como Mestre de Banda naBahia.

O domínio que Manuel Tranquillino Bastospossuía em muitas áreas do conhecimento hu-mano, como a medicina natural, a homeopatia,o estudo do espiritismo, da filosofia, conheci-mento de línguas, o domínio das letras, um am-plo e variado conhecimento musical e umaelaborada apreciação crítica do mundo, docu-mentada em seu livro não publicado “MinhasPercepções”, o distingue dos demais Mestrese faz de Manuel Tranquillino Bastos um homemalém do seu tempo.

Outros destacados Mestres de Banda e com-positores que viveram na Bahia na época deManuel Tranquillino Bastos serão aqui tambémreferidos: Lourenço José de Aragão (1815-1887), João Manoel Dantas (Cachoeira, 1815-1874), Miguel dos Anjos de Sant’Anna Torres(Salvador, 1837-1902), José de Souza Aragão(Cachoeira, 1819-1904), Francisco José daCosta (Cachoeira, 1830-1908), Eduardo Men-des Franco (Cachoeira, 1852- ?), Heráclio Pa-raguassu Guerreiro (Maragogipe, 1877-1950),Álvaro Villares Neves (Rio de Contas, 1886-1986), Isaias Gonçalves Amy (Queimadas,1888-1960), Júlio Cézar Souza (Mucugê, 1889-1983), Ovydio Santa Fé Aquino (Belmonte,1898-1987), Almiro Oliveira (Nazaré, 1903-1993), Armindo Oliveira (Nazaré), AmandoNobre (Maragogipe, 1903-1970), Ceciliano deCarvalho (Senhor do Bomfim), Esaú Pinto (Rio

de Contas), João Antônio Wanderley (Salva-dor), Estevam Moura (Santo Estevão, 1907-1951), Norberto de Aquino-Mestre Xaxá (Ira-rá), João Sacramento Neto (Condeúba, 1933-?), Osório de Oliveira (Santo Amaro), SantaIsabel, João Mariano Sobral, Tertuliano Santos(Feira de Santana), Waldemar da Paixão (Sal-vador), Irineu Sacramento (Cachoeira), CarlosTeixeira (Nazaré), Anthenor Bastos (Cachoei-ra), Candido Alves de Almeida (Castro Alves),João Nunes Azevedo (Serrinha) e MartinhoPereira de Araújo (Remanso, 1887[?]-1971Salvador).

Além dos mestres e compositores, tambémpodem ser citados alguns importantes músicosdessa mesma época, que estiveram ligados àsBanda e Sociedade Filarmônica: Lourenço Joséde Aragão (1815-1887), também compositor eMestre de Banda; Feliciano Batista, que toca-va também oboé e corno-inglês; Joaquim Silvé-rio de Bittencourt e Sá (Salvador, 1829-1899),que foi também compositor, organista, tocadorde violeta e teve como irmão o compositorManuel Tomé de Bittencourt e Sá; AnthenorBastos (Cachoeira, 1889- ?) filho de Tranquilli-no Bastos, que além de clarinetista foi compo-sitor e Mestre de Banda, atuando na “SociedadeFilarmônica Filhos de Apolo” de Santo Amaroda Purificação e Eustáquio Rebouças da Cruz(Maragogipe, 1837-1881), que estudou inicial-mente fagote e oboé.

4. ConclusãoAs Bandas e Filarmônicas – que represen-

tam centros de fomento a manifestações cultu-rais no Brasil, juntamente com os Mestres deBanda – que representavam o esteio dessascorporações, ensinando a arte musical edando,ao mesmo tempo, os princípios na for-mação do cidadão, tiveram total falta de ampa-ro, vivendo momentos de decadência. Contudo,vivem agora instantes de esperança em atua-rem em suas reais funções, em decorrência dosurgimento de instituições como a Casa das Fi-larmônicas e a FUNARTE, que vêm realizan-do trabalhos na busca de ampará-las e

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Bandas, filarmônicas e mestres de banda da Bahia: formação de músicos e cidadãos

soerguê-las. São também, como se pode verem diversos momentos do nosso texto, espaçosde participação dos negros na sociedade baia-na, seja como escravos, no passado, seja comohomens livres. Executores, portanto, não ape-nas do trabalho pesado, mecânico, manual, mastambém do que se pode considerar expressãode linguagens artísticas.

Manuel Tranquillino Bastos revela-se um in-divíduo de incontestável importância cultural. Suaatuação sócio-política e artístico-cultural, teste-munhada pelos vários acontecimentos históricos,o consagrou como abolicionista, fundador e or-ganizador de Bandas e Sociedades Filarmônicas,escritor, clarinetista, Mestre de Banda. Em suaépoca, Tranquillino teve o merecido reconheci-mento pela sociedade; hoje, contudo, é apenasmais um grande vulto da história da música bra-

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sileira que esmaece, dia após dia, na memóriadaqueles que o conhecem ou conheceram, salvotrabalhos como este aqui realizado e o de seubiógrafo Jorge Ramos que tenta trazê-lo, junta-mente com sua obra, para os nossos dias.

Bandas, Filarmônicas, Mestres e instrumen-tistas são, no nosso entendimento, elementos degrande importância no estudo dos diversos pro-cessos educativos da sociedade brasileira, atu-ando não apenas na aquisição de habilidadesreferentes ao uso de instrumentos e à execu-ção de textos musicais, de peças escritas outransmitidas “de ouvido a ouvido”, como tam-bém da transmissão de valores no aprendizadoda solidariedade, da disciplina, do trabalho co-letivo, da formação de coletividades. Mais ain-da, no que poderíamos chamar de “Educaçãoda Sensibilidade”, articulando múltiplas formasde expressão do belo, da dor ou da alegria.

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 18.04.06

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Katharina Döring

UMA ESCOLA DE MÚSICA EARTES BRASILEIRAS NA BAHIA

Katharina Döring*

* Mestre em Etnomusicologia. Professora Assistente de Arte-Educação, Departamento de Educação, Campus I –UNEB. E-mails: [email protected] / [email protected]

RESUMOO presente artigo propõe a reflexão sobre a possível criação de uma Escolade Música e/ou Artes, através dos departamentos da UNEB, no interior daBahia. Essa idéia surge a partir de estudos e práticas de pesquisa e ensinocom tradições musicais populares que refletem a diversidade estética e artísticadesse país e não se encontram inseridas nas instituições de ensino dos diversosníveis no estado da Bahia. A metodologia consiste em reflexões teóricas apartir de estudos e literatura sobre identidade e diversidade cultural, EstudosCulturais, arte-educação / educação musical e processos civilizatórios dospovos afro-ameríndios. As principais linhas da argumentação, para umatransformação da prática e teoria em arte-educação com identidade ediversidade cultural, são frutos de observações e pesquisas de campo emregiões culturais distintas como também da prática de ensino com educaçãomusical e arte-educação em diversas instituições educacionais e socioculturais.O artigo se conclui com a apresentação de dois projetos no âmbito da UNEBque estão em fase de implantação e poderão trazer experiências práticas paraalicerçar e ampliar a proposta inicial da autora.

Palavras-chave: Educação Musical – Arte-Educação – Identidade eDiversidade Cultural – Artes e Culturas Populares Locais

ABSTRACTA SCHOOL FOR BRAZILIAN MUSIC AND ARTS IN BAHIA

The present article proposes a reflection about a future creation of a Music orArt School in the interior of Bahia, by intermediation of the UNEB universityfaculties. This idea originates from several studies and practical experienceswith popular musical traditions that reflect the aesthetical and artistic diversityof this land and which is not included in the diverse levels of educational systemof the state of Bahia. The methodology consists in theoretical reflectionssubstantiated by studies and literature about cultural identity and diversity,Cultural Studies, art and music education, and processes of civilization of theAfro-Amerindian peoples. The principal items and arguments for atransformation in practice and theory of art-education with cultural identityand diversity are resulting from observation and research in various culturalregions as well as from practical experience in art and music education in

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Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia

several educational and sociocultural institutions. The article concludes withthe summary of two projects which are in process of realization in the realm ofthe UNEB and might bring some practical experiences to corroborate andenrich the suggestion of the author.

Keywords: Music Education – Art-Education – Cultural Identity and Diversity– Local Popular Arts and Cultures

IntroduçãoComo seria uma Escola de Música e Artes

que incluísse e refletisse os processos identitá-rios e a diversidade cultural das suas regiões?Muitas pessoas, principalmente artistas, com-positores, professores de artes, mestres da tra-dição oral, educadores, pesquisadores, e agentessocioculturais já devem der sonhados com umaescola com cara nordestina / brasileira. No en-tanto, ainda não encontramos uma escola des-sa característica no Nordeste inteiro, uma regiãoque deu origem a inúmeros estilos, gêneros eritmos musicais, poéticos, cênicos e coreográ-ficos e incontáveis músicos e compositores re-conhecidos regional e (inter)nacionalmente.Existem sim, algumas iniciativas que partiramprincipalmente de diversas organizações no ter-ceiro setor, utilizando a arte de forma geral (dan-ça, música, teatro, artes plásticas etc.) e muitasvezes a cultura regional, como uma ferramentade transformação social voltado para jovens ecrianças em situações de risco. Na cidade deSalvador p. ex. encontramos várias instituiçõesque ensinam práticas locais (capoeira, dançaafro, música popular entre outros), inclusive comproduções artisticamente muito interessantes,sem falar do valor social agregado a estas ati-vidades e os resultados decorrentes.

Na presente reflexão me concentro na ques-tão do ensino musical, sendo que os argumen-tos aqui colocados podem ser ampliados parauma escola de artes de forma geral, abrangen-do o campo das artes cênicas e visuais igual-mente. A ênfase na música como eixo centralda minha argumentação se deve principalmen-te à minha própria formação e experiência emeducação musical e etnomusicologia, como tam-bém ao fato de que, na minha avaliação, o ensi-

no musical na Bahia entre as formações artísti-cas ainda está mais distante dos conteúdos re-gionais e experiências locais, do que todas asoutras linguagens artísticas. Por outro lado, sãoe sempre foram as criações e inovações musi-cais que renderam à Bahia um reconhecimentonacional como berço da musicalidade genuina-mente brasileira, a qual não está inserida naeducação musical.

Os espaços formais de ensino musical seconstituem na teoria e prática em 80 % do re-pertório, da metodologia e das referências es-téticas e culturais cultivando a música clássicaeuropéia, a qual tem sua importância e contri-buição inegável para a música e cultura brasi-leira, porém não representa as culturas, artes evivências regionais do seu povo e também nãorepresenta a música popular brasileira que jáconstitui um universo musical internacionalmen-te reconhecido. Antes de esboçar idéias e mo-delos práticos e teóricos para o fundamento deuma escola de música com cara nordestina,gostaria fazer uma reflexão mais profunda so-bre processos e conceitos culturais identitários.

Olhando mais de perto para a região doNordeste, e neste caso a Bahia, percebe-se quecoexistem há muito tempo práticas culturais eestilos musicais de diversas origens étnicas eépocas históricas, mas nem sempre de formapacífica ou coerente, como percebe Armstrongbuscando dados para a aplicação dos EstudosCulturais no contexto da Bahia.

Quanto ao tema da miscigenação em si, existeum elenco vasto de abordagens possíveis àquestão. Por exemplo, o pesquisador deve inter-rogar as pessoas sobre como percebem as rela-ções raciais, e a sua própria identidade? Ou deveestudar os discursos, as palavras? E dentro dorepertório de discursos, deveríamos admitir to-

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Katharina Döring

dos os tipos (políticos, comerciais, artísticos...)ou somente a classe de discurso que parece ade-quada à pesquisa? Um exemplo da ambigüidadedo discurso figura na indústria do axé music,nas letras e na promoção. Misturam-se retóricasde amor e progresso, que sugerem integraçãoracial harmoniosa. Escamoteiam-se mil contradi-ções subjacentes. O sujeito lírico é negro, masos cantores são desproporcionalmente brancos.Ao mesmo tempo, celebram-se a miscigenação eo afro-centrismo. Isto nas palavras. E nos “fa-tos”? (ARMSTRONG, 2001, p.77)

As contradições são muitas, nos discursosartísticos e estéticos em si e principalmente nosdiscursos daqueles que falam e comentam so-bre os fatos culturais e se apropriam deles paraconstruir seu próprio discurso político. E quan-to ao discurso pedagógico? As dificuldades naspráticas e teorias pedagógicas já são imensas,pensando somente nos muitos conteúdos quevem do legado europeu e das constantes inova-ções no cenário internacional que contrastamcom o cotidiano de professores e alunos naBahia o qual envolve o desafio permanente dosproblemas existenciais (pobreza material, vio-lência, alienação nas mídias de massa, políticasde aparências, imediatismo e resultados emcurto prazo, falta de mobilidade e poder aquisi-tivo), adversários de processos educativos de-morados, pacíficos e contínuos. Nossaspreocupações diárias são marcadas pela carên-cia de todo tipo de material (em qualidade equantidade) didático e do acesso à tecnologia ea saberes diferenciados que podem estar aonosso redor, no entanto despercebidos e exclu-ídos dos nossos códigos e da nossa visão peda-gógica.

A realidade é que poucos professores bra-sileiros têm se aproximado da diversidade cul-tural do seu país – são poucos os educadoresna Bahia p.ex. que trabalham com as manifes-tações tradicionais e populares desta macro-região e suas micro-regiões e muito menos aindacom tradições e práticas culturais de outrosestados brasileiros. A imagem do “Outro” (ne-gro, índio, sertanejo, subalterno...) ainda domi-na no imaginário de muitos, que não percebemque são eles, os “Outros” – que são eles queestão construindo ou desconstruindo as identi-

dades culturais regionais. O que falta muitasvezes para criar práticas e teorias pedagógicasmais consistentes e convincentes é a dimensãodo reconhecimento do qual Canclini fala emseguida. O discurso do “Outro”, artificial- e his-toricamente construído, também está presenteno aproveitamento do folclore e em todos osdiscursos que querem separar, segmentar e clas-sificar as representações culturais e expressõesartísticas dos povos e dos indivíduos em esca-las valorativas.

À medida que o especialista em estudos culturaisqueira realizar um trabalho cientificamente con-sistente, seu objetivo final não é representar avoz dos silenciados, mas entender e nomear oslugares em que suas questões ou sua vida cotidi-ana entram em conflito com os outros. As catego-rias de contradição e conflito estão, portanto, nonúcleo desta maneira de conceber os estudosculturais. Porém não para ver o mundo a partir deum só lugar de contradição, mas para compreen-der sua estrutura atual e sua possível dinâmica.As utopias de mudança e justiça, neste sentido,podem articular-se com o projeto dos estudosculturais, não como prescrição do modo comodevem selecionar-se e organizar-se os dados, mascomo estímulo para indagar sob que condições(reais) o real pode deixar de ser a repetição dadesigualdade e da discriminação, para converter-se em palco de reconhecimento dos outros. Reto-mo aqui uma proposta de Paul Ricoeur quando,em sua crítica ao multiculturalismo norte-america-no, sugere mudar a ênfase sobre a identidade parauma política de reconhecimento. Na noção deidentidade há apenas a idéia do mesmo, enquan-to reconhecimento é um conceito que integra di-retamente a alteridade, que permite uma dialéticado mesmo e do outro. A reivindicação da identi-dade tem sempre algo de violento a respeito dooutro. Ao contrário, a busca do reconhecimentoimplica a reciprocidade.” (CANCLINI, 1999, p. 28- grifos meus)

A idéia do reconhecimento é fascinantecomo uma moção inclusiva que possibilita en-xergar as semelhanças e diferenças que temoscom outros sem discriminação, enquanto a ques-tão da afirmação da identidade (cultural, étni-ca, racial, social) sempre remete à idéia deseparação, fronteira, demarcação definida, oque muitas vezes limita mais as pessoas na suadefinição e atuação em vez de libertá-las.

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Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia

Diversidade cultural brasileira eprocessos educacionais

As possibilidades e potencialidades das Ar-tes e Culturas Brasileiras nos espaços e pro-cessos educacionais, formais e/ou informais,ainda estão longe de serem compreendidas eexploradas. O grande campo das culturas bra-sileiras regionais que se alimenta das narrati-vas, corporeidades, práticas cênico-musicais edos imaginários, mitos e religiões dos povosancestrais ameríndios, africanos e europeus seencontra ainda marginalizado como um simples“folclore”, enquanto na verdade as inspiraçõesinovadoras muitas vezes são extraídas e “apro-veitadas” desse campo sem, no entanto, lhedevolver reconhecimento material e simbólico,autoria e participação ativa.

Nos últimos anos percebo em diversos en-contros sobre história e memória oral, sobrefolclore e cultura popular e sobre educaçãocom identidade e pluralidade cultural, o cres-cimento do interesse e da preocupação com aforma e o conteúdo da transmissão do patri-mônio imaterial, isto é, dos saberes, valores,celebrações e modos de fazer do povo brasi-leiro. Aos poucos estão surgindo em algumasuniversidades e instituições de ensino artísticoalgumas linhas de pesquisa e ação, embora nãosão claramente definidas e carecem de fun-damento teórico que já se encontra nos diver-sos campos científicos (antropologia, históriaoral, estudos culturais, etnomusicologia, comu-nicação etc.). Estes conhecimentos ainda sãopouco conectados com a área de educaçãocultural, artística e patrimonial de forma maisabrangente, não obstante o interesse em pes-quisar e transmitir a arte e cultura brasileiraestá crescendo pela parte dos professores eestudantes em diversas instituições culturais eeducacionais, formais e informais.

Existem poucas pesquisas e tentativas prá-ticas na educação brasileira que buscam umaligação entre as tradições, saberes, práticas evalores das culturas populares brasileiras e aárea de atuação e teoria pedagógica. Graçasao movimento negro e suas iniciativas e reivin-dicações que defendem inclusão social, com-

bate ao racismo, políticas afirmativas e o res-peito pela diferença cultural, étnica e religiosa,temos acesso a diversas pesquisas e projetosque trabalham com os conteúdos da história ecultura da ancestralidade africana em projetospedagógicos. Nos últimos anos também pode-mos assistir a um esforço bastante grande porparte do terceiro setor e do poder público naquestão da educação específica para os índiosbrasileiros e seus descendentes que preservamos valores e saberes históricos e culturais dasdiversas tribos indígenas. Estas iniciativas de-fendem a educação especializada para deter-minados grupos étnicos e raciais que afirmamo desejo de manter sua história e singularidadeatravés das tradições orais. No entanto, temosuma grande maioria de brasileiros que se defi-nem como um misto cultural, étnico-racial e his-tórico e que pouco sabem das diversas culturase práticas artísticas locais do seu povo, com-postas pelas tradições indígenas, africanas eeuropéias.

Cultura e Educação são processos constan-temente interligados na formação do indivíduo edo coletivo e alimentam o imaginário e o conjun-to de suas ações e produções. Porém, na eradas redes, das sociedades apreendentes, das pro-duções e processos interdisciplinares e interati-vos, muito pouco podemos identificar sociedadesmonoculturais e partir da construção de identi-dades culturais homogêneas dos indivíduos, pois,“o pluralismo cultural não existe somente entreas nações, ele está no interior das nações, nointerior das comunidades que as compõem, e ospróprios indivíduos não escapam à lei geral dadiferenciação interna e da mestiçagem.” (FOR-QUIN, 1993, p. 126). As identidades pluricultu-rais estariam no interior de cada indivíduo, portantoas identidades a serem construídas nos proces-sos pedagógicos são por natureza pluriculturais,o que não significa que eles não possam ter fun-damentos característicos de cada país, etnia, clas-se, região geográfica etc. Para poder inovar,absorver, criar e transformar, é necessário antesde tudo, estar enraizado no chão seguro de umaidentidade formada, determinada pelos fatoressocioculturais, históricos, estéticos e religiosos deuma região ou alguns grupos de pertencimento –

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um processo que deve acontecer na infância ejuventude e conseqüentemente não se reduz aoambiente familiar e religioso. O papel da escolae universidade neste processo é mais do que so-mente uma contribuição – acaba sendo forma-dor de opiniões e valores, se considerarmos quea maior parte da alimentação cultural das crian-ças e jovens brasileiros é a televisão e cada vezmais a internet. As possibilidades do novo sécu-lo com suas transformações tecnológicas e con-ceituais que exigem de nos qualidades tais comoflexibilidade, sociabilidade, interatividade, criati-vidade e mobilidade, não acrescentam muito seos jovens não estiverem com uma base sólida deauto-conhecimento e auto-estima que deveria sealimentar dos imaginários, saberes, práticas, nar-rativas e vivências culturais especificas.

A transmissão envolve o conceito e o estu-do sobre as culturas européias antigas e as cul-turas orais dos povos afro-ameríndios as quaisvivem momentos de valorização tanto nas cria-ções musicais e artísticas em geral como tam-bém nos estudos acadêmicos (pós-graduação)de diversas áreas (história, educação, artes, li-teratura, comunicação, antropologia etc.) Porum lado, os conteúdos e assuntos das artes eculturas locais ainda não entraram nos currícu-los p. ex. nas escolas superiores de música,como tampouco nas diversas escolas de for-mação artística, e por outro lado os demais pro-fessores passam por uma carência muito grandede materiais didáticos específicos e principal-mente de experiências, metas e parâmetros paratrabalhar com artes e culturas locais em salade aula. A preocupação com as tradições oraisnão deveria somente contemplar o conteúdo emsi, desassociado do seu contexto social, históri-co e cultural e sim, levar em conta as formastradicionais de transmissão as quais envolvemconceitos como oralidade, “ecologia da cultu-ra”, o respeito pelo saber notório e pela práticado cotidiano, como p. ex. a arte do improviso ea capacidade da espontaneidade, a convivên-cia - “osmose” do saber e fazer e entrosamen-to permanente da prática com a teoria.

Os processos identitários são hoje complexos eplurais, há uma combinação de raízes e esco-lhas. Apenas reforçar as raízes pode inibir nossa

capacidade de criação e invenção e, portanto,desestimular a liberdade de criar cultura; poroutro lado, abrir mão das raízes e viver em fun-ção apenas das escolhas é negar heranças cul-turais valiosas para nosso processo vital. A vidasocial sem escolhas é negar a criação, o ato fun-dador da cultura; construir uma sociedade semraízes é como criar árvores que se resumem afolhas e frutos. Tomando a metáfora a árvore, asraízes são os nossos mitos e crenças – substra-to essencial da cultura. Devemos valorizar o lo-cal e nos abrirmos para os patrimônios univer-sais da humanidade. Trata-se da construção deidentidades abertas, móveis, individuais e cole-tivas, plurais, que passem pelos parâmetros dedebate público e não sejam estabelecidos a pri-ori pelas elites locais, que muitas vezes desejamfortalecer sua própria memória. O processo demodernização das cidades tem tratado a ques-tão da identidade de forma a valorizar a memóriados seus dirigentes históricos e não as manifes-tações diversas de seus grupos sociais consti-tutivos. A identidade se constrói com qualidadecultural, promovendo um verdadeiro encontrodas diferenças. (FARIA, 2003, p. 37)

A questão fundamental das raízes e esco-lhas e do encontro das diferenças traz a tonaum fundamento importante de uma sociedadee uma escola dinâmica que seria capaz de pre-servar e cultivar suas raízes, isto é, suas heran-ças culturais e matrizes étnicas, e ao mesmotempo estaria aberta e criando espaços paraoutras heranças, influências e conhecimentosartísticos que são frutos dos conhecimentos dediversas culturas e valores que se tornaramuniversais. Hamilton Faria resumiu de formaexpressiva o que deveria ser o norte das nos-sas buscas, idéias e ações em prol das artes eculturas locais: a combinação de raízes e esco-lhas! Parece fácil, mas não é, todos nós sabe-mos disso. Quais as raízes que nos alimentarame continuam alimentando de verdade? Temmuitas lacunas, mentiras, omissões e negaçõesquando se trata de desvendar raízes culturais,históricas e étnicas dos brasileiros. Os efeitosnegativos, herança da colonização, da escravi-dão e do genocídio praticados nessa terra emquinhentos anos, certamente levarão ainda bas-tante tempo para serem superados e transfor-mados em algo que traz esperança, criatividade,prosperidade e qualidade de vida para o seu

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povo. As artes e culturas locais das muitas re-giões brasileiras com suas expressões e pro-duções tão diversificadas e complexas podemoferecer mais um caminho para a compreen-são e a construção de uma, ou melhor, váriasidentidades brasileiras que não precisam copi-ar modelos idealizados e aplicados em outroscontextos culturais. Educação e produção cul-tural com arte e cultura popular, também nãosignifica de buscar uma estratégia de marke-ting ou método para vender seu produto “regi-onalizado” com cara de chapéu de palha ouorganizar festas caipiras em escolas e simdesenvolver pensamentos e ações que integramvalores e conhecimentos artísticos da huma-nidade com os saberes e valores culturais de-terminados pela memória oral e o patrimônioimaterial de um povo e suas regiões, tradiçõese realidades distintas.

A essência do projeto “Uma Escola de Mú-sica / Artes com Cara Nordestina / Brasileira”seria o trabalho com as expressões artísticas eidentidades culturais regionais valorizando assonoridades, as corporeidades, os conhecimen-tos e as práticas est-éticas e po-éticas de popu-lações negras, indígenas, caboclas, sertanejasentre outras as quais historicamente não sãoinseridos nos espaços pedagógicos formais.Para modificar essencialmente a estrutura for-mal e seus agentes, o sistema educacional (uni-versal) quanto à educação cultural e estética,serão necessárias inúmeras experiências (par-ticulares) em projetos pilotos e formas de ensi-no-aprendizagem no campo artístico e informalcom as artes e culturas locais. Vem-me a men-te uma frase de Rubem Alves no prefácio dolivro Fundamentos Estéticos da Educação deJ. F. Duarte: “A questão não é incluir a arte naeducação. A questão é repensar a educaçãosob a perspectiva da Arte. Educação como ati-vidade estética.” (1997, p.12)

Dessa maneira quero dizer que não é sufici-ente a inclusão das artes e culturas locais emalguns momentos pedagógicos (tipicamente nasdatas comemorativas), seria mais interessanteperceber o que estas artes e culturas têm acontribuir para todas as expressões e lingua-gens artísticas e a forma como elas podem ser

(re-)produzidas e transmitidas nos espaços edu-cacionais específicos num processo contínuo enão “relâmpago”:

Semple é crítico desse exemplo (“cursos rápidossobre as formas artísticas africanas ou india-nas”), argumentando que as formas artísticas nãotêm a menor chance de serem realmente contex-tualizadas e são trivializadas quando colocadasfora do currículo normal da escola. Sua objeçãomais fundamental a esse modelo, contudo, é queele implica que o conhecimento europeu está nocentro da filosofia educacional e quaisquer ou-tras filosofias do mundo têm importância secun-dária. Baseado no princípio da omissão, issoimplica que há somente um ponto de vista corre-to. Semple admite que o modelo de fusão que elaprefere é idealístico, mas identifica a necessida-de de estabelecer a diversidade cultural comointegrante, não periférica, a educação dominan-te das artes.” (MASON, 2001, p. 123)

Mason se refere aqui a uma situação típicados Estados Unidos e da Europa onde as artes“étnicas” são aceitas num espaço delimitado ecomo experiências “exóticas” mas não são ab-sorvidas de fato nas estruturas de ensino-apren-dizagem, assim fazendo parte do tronco escolarcomum, uma situação que corre o risco de serrepetido no Brasil, onde encontramos cursos deelementos da cultura popular ou em projetossociais que geralmente trabalham a prática, masnão os fundamentos teóricos e conceituais ouentão ultimamente em espaços culturais maisfreqüentados pela classe média urbana que temum interesse parcial nessa aprendizagem, noentanto nem sempre conecta estas vivênciasnum nível mais profundo e transformador.

Na Europa o processo do multiculturalismotem sido diferente porque parte da idéia de umanação com identidade cultural historicamenteconstruída que nas últimas décadas teve que sedeparar com as minorias culturais dos imigran-tes, oriundo dos mais diversos paises e conti-nentes. Discursos de “tolerância”, conteúdos eespaços pedagógicos diferenciados para mino-rias étnicas e religiosas não questionaram adominância dos valores culturais do ocidente enem são mais aceitos pela segunda e terceirageração de imigrantes que querem ter igualmen-te acesso à circulação de bens e informações e

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tampouco se fechar num gueto cultural nasmetrópoles européias, segundo Forquin que con-sidera que:

... numa sociedade multicultural é injustificávelprivar certos indivíduos de benefícios intelectu-ais e sociais que podem propiciar a ampliação dosconhecimentos e o acesso a uma pluralidade desistemas de referências e de valores. Para aquelesque se poderia chamar de multiculturalistas ‘libe-rais’, o respeito que se deve ás culturas não devese exercer em detrimento do princípio de justiçaentre as pessoas, e a identidade cultural não devese tornar nem um rótulo nem uma marca suscetí-veis de constituir obstáculo ao desenvolvimentoda identidade individual. O multiculturalismo dasociedade não deve ser também concebido comouma justaposição de ‘monoculturalismos’ fecha-dos. Isto significa que, numa ótica pluralista libe-ral, não é somente a sociedade que é ou deve setornar autenticamente multicultural, são os pró-prios indivíduos.” (1993, p. 138-139)

Ele traz uma reflexão importante sobre aquestão da necessidade de respeitar e incluirconteúdos, processos e valores particularesque de forma exclusivista não representariamuma solução e sim deveriam estar em diálogocom os conteúdos, processos, e valores uni-versais de determinada época e região culturale assim mesmo vão transformando os pilaresde uma suposta universalidade que na verdadese compõe e recompõe pelas diversas contri-buições e reivindicações particulares no casomais ideal de uma sociedade pluralista.

A conclusão parece ser que a universalidade éincomparável com qualquer particularidade e,entretanto, não pode existir à parte do particular.Nos termos da análise anterior: se apenas prota-gonistas particulares, ou constelações de prota-gonistas particulares, podem atualizar a qualquermomento o universal, nesse caso a possibilida-de de tornar visível o não-encerramento ineren-te a uma sociedade pós-dominada – isto é umasociedade que tenta transcender a própria formade dominação – depende de se tornar perma-nente a assimetria entre o universal e o particu-lar. O universal é incomparável com o particular,mas não pode, entretanto existir sem o último.”(LACLAU, 2001, p. 248)

Laclau aponta uma pista para o eterno con-flito entre verdades universais que se tornam

hegemônicas, pouco flexíveis e exclusivas everdades particulares que nascem no bojo demovimentos, lugares e pessoas autênticas, ex-periências originais que precisam lutar para seureconhecimento e assim de certa forma pas-sam a tornar ser parte do universal que já nãoseria mais o mesmo. A diversidade das artes eculturas locais brasileiras pode servir muito bempara ilustrar uma situação que estaria digamosjustamente no ponto da mutação onde o uni-versal ainda resiste e marginaliza (“folcloriza”)estas musicalidades, narrativas e corporeidades,percebendo ao mesmo tempo, que o chão estáfértil para uma ampliação e incorporação àCultura Brasileira.

Evidentemente os resultados de um projetoeducacional artístico e cultural com cara nor-destina ainda serão parciais e não podem abran-ger toda a complexidade da inserção das artese culturas locais nos espaços e processos edu-cacionais e as implicações acima discutidas. Noentanto, pretende se construir o início de umdiálogo em longo prazo entre os saberes dosmestres da tradição oral e dos jovens que decerta maneira se complementam, pois são am-bos saberes e experiências particulares quebuscam uma inserção, um reconhecimento emesmo uma transformação dos paradigmasuniversais de uma cultura brasileira que aindanem se conhece profundamente. Para este di-álogo estético e musical acontecer, é necessá-rio afirmar o valor da ancestralidade e dorespeito profundo pelos conhecimentos e atitu-des dos mais velhos e saber escutar e aprendercom eles de forma presencial, complementadopor dinâmicas e recursos didáticos e materiaisdo ensino musical e da arte-educação contem-porânea. Pois, não se pretende criar um ensi-no-aprendizagem que consiste na repetição eimitação das artes e culturas locais sem refle-xões e contribuições estéticas próprias, quedevem ser desenvolvidas a partir desse encon-tro entre as gerações e regiões. Isto significaque toda a qualidade e o legado da cultura mu-sical européia e de outras culturas universaliza-das, como também a vivência cultural, osdesejos e ideais musicais dos jovens nas perife-rias urbanas e rurais fazem parte desse diálo-

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go. Os mestres e educadores, portanto, deveri-am trabalhar com as referências musicais, po-éticas, corporais e estéticas do universo juvenil,apoiado em teorias e experiências seculares damúsica euro-brasileira, erudita e/ou popular,como também com as práticas e saberes damúsica afro-brasileira e ameríndia.

PerspectivasQuais seriam parâmetros, conteúdos e refe-

rências metodológicas para a construção de uma“Escola de Música com Cara Nordestina / Bra-sileira”? Somente uma resposta complexa dotamanho de um doutorado em Educação Musi-cal e/ou Artística/Cultural/Patrimonial poderiasatisfazer essa necessidade de fundamentar, pla-nejar, projetar e realizar um empreendimentodesta natureza o que não impede ousar realizaros primeiros passos nesta direção. Acredito naexperiência e trajetória prática e teórica de edu-cadores, músicos, produtores, antropólogos, mes-tres, artistas e professores das demais linguagensartísticas que principalmente no Nordeste nosúltimos anos estão buscando e construindo umarealidade cultural original e inovadora e darianeste momento somente algumas idéias nortea-doras que podem servir como linhas de ação ereflexão a construção de um projeto educacio-nal nesta linha:

• Interdisciplinaridade - o ensino musi-cal não deveria somente contar commúsicos, compositores e educadoresmusicais profissionais e sim contar coma experiência e contribuição profissionalda etnomusicologia, tradição e memóriaoral, sócio-antropologia, história, produ-ção cultural, comunicação, literatura, arte-educação, ludicidade, e principalmentedas linguagens artísticas cênicas (dançae teatro).

• Diversidade musical - o ensino musi-cal deveria pesquisar, registrar, sistema-tizar e transmitir os diversos estilos mu-sicais nordestinos contextualizando-oscom a ajuda da equipe interdisciplinarquanto à diversidade de gêneros (cêni-

co-) musicais e suas variações locais emtermos de: ritmos, melodias, harmonias,arranjos, tonalidades, timbres vocais einstrumentais, poesias, instrumentos,materiais, técnicas etc.

• Integração artística e cultural – o en-sino musical deveria contemplar e estu-dar as diversas expressões musicais dacultura popular em combinação com asoutras linguagens artísticas, sendo que asmúsicas de tradição oral geralmente seapresentam de forma integrada e com-plexa com as narrativas e corporalidadesespecíficas das matrizes africanas,ameríndias e luso-ibero-árabes que de-veriam ser estudadas através da dança,do teatro, da literatura oral, da estética earte visuais.

• Perspectiva profissional contemporâ-nea – uma escola de música brasileiracontemporânea deve proporcionar umaformação flexível para um mercado detrabalho na visão do séc. XXI. As novasdimensões no campo profissional devemlevar ao estudo das artes com especiali-zações para uma prática contemporânea,formando músicos em diversos estilos deexecução, educadores musicais, direto-res musicais, arranjadores, compositores,técnicos de gravação e mixagem, produ-tores musicais, críticos, pesquisadores eradialistas e músicos/artistas interdisci-plinares que buscam interface profissio-nal com outras linguagens artísticas(dança, teatro, cinema, poesia etc.)

• Relação com a comunidade – o ensi-no musical brasileiro, deveria reconhe-cer o privilégio de participar de uma mu-dança cultural que abre o horizonte paraseus tesouros culturais e musicais locaise procurar caminhos para trocar seusprivilégios intelectuais e materiais com aspessoas e regiões que produzem e pre-servam as riquezas culturais, mas care-cem de acesso aos bens materiais e asinformações e estruturas da sociedadeurbana contemporânea. Recomendo ainclusão de mestres e músicos da cultu-

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ra popular ao corpo docente como tam-bém a elaboração de um projeto paraleloao ensino formal da escola que aconte-ceria tanto nas comunidades como naprópria escola com jovens das periferiasurbanas e rurais.

As possibilidades da Uneb -Multicampi

A Universidade do Estado da Bahia é amaior Universidade pública e multi-campi doBrasil num estado que está entre os piores índi-ces de educação pública deste país. A respon-sabilidade social da nossa instituição é enorme,visto que a maior parte dos estudantes vem declasses populares e muitas vezes precisamoscontornar os equívocos do ensino fundamentale médio durante os cursos de graduação, osquais também estão seguindo modelos formaisque não são atualizados dentro de uma pers-pectiva da Cultura Brasileira. Por outro lado,encontramos muita disposição e talento entreos estudantes que são a próxima geração paraassumir os destinos da educação e do trabalhoneste país. O talento artístico dos baianos, p.ex. já é um chavão encontrado e repetido namídia por toda parte. O que surpreende, é quenem sempre os supostos talentos estão na ca-pital onde o acesso à cultura e arte e à produ-ção e ao ensino artístico profissionais estão dealcance fácil. Nos últimos dois anos, foi reati-vado o Festival Universitário de Música commuito sucesso e entre as quatro universidadesparticipantes (UNEB, UFBA, UNIFACS, Uni-versidade Católica de Salvador - UCSal) sedestacaram inclusive como finalistas e premia-dos muitas composições e apresentações mu-sicais dos estudantes da UNEB, na sua grandemaioria vindo dos interiores da Bahia. A diver-sidade cênico-musical nas regiões culturais daBahia está registrada em inúmeras gravaçõesem áudio e vídeo pela IRDEB e por outras pro-duções independentes, e comprovada pelo gran-de número de compositores e músicos reconhe-cidos os quais encontraram suas inspiraçõesmusicais nas manifestações tradicionais que

marcaram sua infância. A UNEB poderia as-sumir seu papel como mediador cultural nas di-versas regiões e implantar escolas de música eartes que recebessem as pessoas com seus ta-lentos e suas tradições musicais, incentivandoum aprendizado artístico que constrói um diálo-go com as artes e culturais locais.

Um projeto pensado e formatado por mimnesse sentido, é a Escola ABC, inicialmenteprevisto para vários campi da UNEB e aprova-do pelo Ministério de Cultura como Ponto deCultura no departamento de Conceição de Coi-té no semi-árido da Bahia. Sendo que o projetoainda está em fase de implantação, não serápossível trazer os primeiros resultados, mas paraampliar a discussão acima esboçada, gostariade apresentar o conteúdo do projeto, que natu-ralmente é uma proposta que precisa ser trans-formada em ação e preenchida de vida.

Apresentação do projetoArvore de conhecimento - Barracão de

movimento - Canteiro de corpo e som –Uma escola de Artes ABC como espaço per-manente da cultura e herança estética do nos-so povo. Um lugar e um centro da memória,de aprendizagem e de continuidade produtivaem torno das práticas culturais, musicais, poé-ticas, cênicas e religiosas que se formaram apartir das matrizes culturais indígenas, africa-nos e europeus criando expressões artísticasparticulares nas diversas regiões geo-culturaisda Bahia. Através da pesquisa da memória dosmais velhos e oficinas de música, dança e ar-tes serão transmitidos práticas e conhecimen-tos teóricos da cultura local, dando destaquepara as tradições cênico-musicais, plásticas epoéticas de cada localidade em diálogo com ahistória e o ensino das linguagens artísticas emescolas formais. A pesquisa e transmissão des-ses saberes serão fortalecidas e renovadascom o diálogo entre tradição oral e cultura di-gital que envolve oficinas de informática, re-gistro audiovisual/fonográfico, educação eprodução cultural, através dos quais a juven-tude cria estratégias de geração de renda e

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Uma escola de música e artes brasileiras na Bahia

produz resultados culturais numa linguagemcontemporânea, disponível para escolas e acomunidade em geral. O projeto aconteceráem Conceição de Coité, campus da UNEB nointerior da Bahia, tecendo laços permanentescom as comunidades, disponibilizando suasexperiências técnicas e acadêmicas a serviçoda população rural e construindo o fundamen-to de um curso profissionalizante e/ou univer-sitário em Artes.

Objetivos do projeto– Preservar e revitalizar o patrimônio

imaterial da população negra, mestiça,cabocla etc. em seus aspectos musicais,cênicos, po-éticos, est-éticos, espirituais,históricos e criativos;

– capacitar adolescentes/jovens para estu-dar, pesquisar e transmitir as manifesta-ções culturais locais de forma artística eprofissional mediante cursos e oficinasem música, dança, criação cênica, artesvisuais, informática (Word, Internet,Finale, Coreldraw, Photoshop, etc.) pro-dução cultural, tecnologia de vídeo eáudio digital, educação;

– pesquisar e estruturar a memória espe-cifica de cada localidade e grupo cultu-ral, mediante pesquis-ação e utilização dastecnologias digitais através dos agentescultura viva e os mestres do notório sa-ber, os griôs

– promover apresentações, palestras, se-minários e encontros permanentes e tem-porários de aprendizagem e troca de sa-beres envolvendo toda comunidade, emespecial crianças, adolescentes, jovens epessoas da terceira idade, que se desta-cam como mestres de tradição oral;

– produzir diversos resultados culturais, taiscomo programas de rádio, vídeo –documentário, cd-áudio, uma página nainternet, uma revista/livreto com textose as fotografias das pesquisas e apre-sentações/lançamentos em dados mo-mentos e lugares;

– desenvolver parcerias com as escolaslocais para criar um diálogo cultural eartístico, possibilitando a criação de ban-das-mirins, grupos teatrais, corais, ofici-nas de arte, artesanato, apresentações emostras nos espaços educacionais e co-munitários;

– articular parcerias permanentes com ins-tituições culturais; unidades de ensinosuperior na área de artes, comunicação,turismo e história; profissionais da áreade produção cultural; setor público, pri-vado, terceiro em geral.

JustificativaA Escola ABC (Arvore de conhecimento

- Barracão de movimento - Canteiro de cor-po e som) se dirige principalmente aos jovens eidosos para juntos construírem uma ponte entreos saberes orais dos mais antigos e as aspira-ções e preocupações da juventude que não acei-ta mais o lugar do “Folclore” e busca a inserçãoem processos de formação, mercados de traba-lho e uma identidade cultural que dialoga com acontemporaneidade. Através de cursos perma-nentes em informática básica e específica, e nasdiversas linguagens artísticas que serão supervi-sionados por professores universitários das di-versas áreas, instrutores locais e pelos mestresda tradição oral, os jovens trabalham e estudamo fundamento prático e teórico das memóriasculturais, musicais, poéticas, cênicas e religiosas.Este trabalho será fortalecido por oficinas espe-cíficas e intensivas, onde o jovem escolha suaárea de capacitação gerando resultados na áreade produção cultural, tecnologia de vídeo e áu-dio, construção de acervo cultural, artesanato eculinária, educação entre outros. A pesquisa - oregistro da memória local é um trabalho básicono qual toda comunidade, mas principalmente osagentes Cultura Viva e os mestres antigos esta-rão envolvidos criando todos os subsídios paraos cursos, as oficinas e os outros trabalhos e pro-dutos que serão realizados em forma de progra-mas de rádio, cd–áudio, vídeo-documentário,encontros da cultura popular, formação de ban-

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Katharina Döring

das-mirins, corais, grupos de teatros, semináriose palestras, assim beneficiando diretamente e in-diretamente toda a população regional.

Este trabalho se justifica por ser uma açãoafirmativa das populações negras e caboclasque vivem em condições precárias nas áreasrurais, mas que dispõem de uma riqueza e di-versidade cultural que ainda não tem encontra-do seu devido reconhecimento simbólico ematerial. Visto a enorme quantidade de jovenstalentosos e inspirados nas culturas locais semperspectiva de renda e realização individual,percebe-se uma demanda crescente de ofere-cer cursos e atividades artísticas e culturais quevalorizam os saberes locais, mas conseguemestabelecer pontes para os saberes globaliza-dos, tanto os formais/impressos como os virtu-ais/digitais. A UNEB, como universidade públicae multi-campi com muitos anos de experiênciana pesquisa e na extensão universitária, reco-nhece seu papel de intermediador neste pro-cesso que busca a democratização e a trocados saberes e fazeres e afirma a necessidadede criar perspectivas profissionais e descentra-lizadas para a atividade e o ensino artísticos nasregiões geo-culturais da Bahia.

EspaçoUm outro campo de atuação que abrange a

herança das artes e culturas locais é o processode revitalização do Samba de Roda do Recôn-cavo baiano o qual foi declarado como Patri-mônio Imaterial da Humanidade pela Unesco nodia 25 de novembro 2005. Como etnomusicólo-ga estou pesquisando o samba de roda e princi-palmente o samba chula há vários anos eparticipei como consultora, pesquisadora e pro-dutora durante o inventário e a elaboração dacandidatura do samba de roda do Recôncavo noano 2004. A UNEB, representada pelo Depar-tamento de Educação, Campus I, foi incluída por

mim no dossiê oficial da candidatura do sambade roda, enviado para a Unesco, como uma dasinstituições parceiras no processo de revitaliza-ção do samba de roda. Desde 2004, estamos comum grupo de colaboradores discutindo e elabo-rando junto com os sambadores que se organi-zaram na “Associação dos Sambadores eSambadeiras do Estado da Bahia”, as diversasmedidas, parâmetros e projetos de revitalizaçãoe preservação das tradições do samba.

A transmissão dos saberes da oralidade éuma das preocupações mais urgentes dos sam-badores e principalmente das mulheres entreas quais encontramos várias professoras deensino fundamental e médio que tem experiên-cias com projetos educacionais formas e infor-mais e que se revoltam contra a deformaçãona mídia de valores ancestrais do samba de rodaque se reflete em comportamentos equivoca-dos entre seus filhos e alunos. Os homens sam-badores estão empenhados também nosprocessos de transmissão musical, revitalizan-do instrumentos antigos, como a viola machete,que estava quase extinta, além de toques e can-tos que correm o risco de serem esquecidos epadronizados demais em função da música co-mercializada. Para os sambadores e as samba-deiras, a preservação e transmissão dessamemória cultural e estética de matriz africanae da sua história específica, representam umdos parâmetros mais importantes a serem al-cançados. A consciência de que eles herdaramo samba de roda nas suas formas primordiaisdos seus ancestrais africanos está de aceita-ção geral, reconhecendo também as misturascom outras culturas antigas (ameríndias e por-tuguesas) no decorrer dos séculos. A transmis-são da história e cultura do povo negro nadiáspora através do samba de roda e outras tra-dições cênico-musicais constitui uma das me-tas do futuro centro de referência do Samba deRoda no Recôncavo Baiano.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 04.05.06

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Izabel Dantas de Menezes

ARTE EM MOVIMENTO:a potencialidade da arte na formação de educadores

Izabel Dantas de Menezes*

* Mestre em Educação, professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, no Departamento deEducação, Campus XIII. Endereço para correspondência: Rua Dr. Orman Ribeiro dos Santos, S/N- 46880000 Itaberaba/Bahia. E-mail: [email protected] Este artigo foi preparado a partir da dissertação de Mestrado: “Formação de educadores além ‘do chão da escola’: Quais ossentidos educativos tramados pela rede MIAC?”, do Programa de Pós-graduação Educação e Contemporaneidade da UNEB,realizada entre os anos de 2003 e 2004, orientação Profa. Dra. Cristina D’ Ávila. Traz o resultado da pesquisa que foianunciada num artigo anterior de minha autoria, publicado nesse mesmo veículo, Revista FAEEBA – Educação eContemporaneidade, v, 12, n. 20, 2003.

RESUMO1

Considerando que a contemporaneidade trouxe a necessidade da re-significaçãoda educação e do conhecimento a partir de orientações também sensíveis eque a idéia de “formação” é entendida enquanto um fenômeno polissêmico ecomplexo, que acontece, também, para além ‘do chão da escola’, este artigoprocura compreender a potencialidade da arte na formação dos educadores eeducadoras do movimento sócio-cultural MIAC. O Movimento de IntercâmbioArtístico Cultural pela Cidadania é uma rede formada por diversas instituiçõesde Salvador – Ba, que tem como princípio basilar da sua pedagogia a utilizaçãoda arte como provocadora de mobilização social e de aprendizagens acercados direitos e das formas emancipatórias de atuar na comunidade e na escola.

Palavras-chaves: Formação de educadores – Movimentos sociais – Sabersensível – Arte e educação

ABSTRACTART IN MOTION: The Potentiality of Art in Educator’s Formation

In this paper, we use the concept of “formation” as a polysemic and complexphenomenon which happens beyond the classroom, in the cloth of social relations,in various spaces and times. In this sense, we try to understand the potentialityof art in educators’ formation within the social movement MIAC (Movementof artistic and culture exchange in favour of citizenship), believing that it favoursa different pedagogy, able to ally reason, sensibility, critical sense and creativity.The MIAC is a network formed by various institutions from the City of Salvador(Bahia, Brazil) and has as its basic pedagogical principle, the use of art toprovoke social mobilization and learning about human rights and emancipatoryways of acting within the school and community.

Keywords: Educators’ formation – Social movements – Sensible knowledge– Art and education

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Arte em movimento: a potencialidade da arte na formação de educadores

1. O ‘saber sensível’ 2

Em suma, o sensível não é apenas um momentoque se poderia ou deveria superar, no quadro deum saber que progressivamente se depura. Épreciso considerá-lo como elemento central noato de conhecimento. (MAFEFESOLI, 1998, p.189)

Assim como Duarte Jr (2001), preferi, nes-te artigo, utilizar a expressão “saber sensível”em detrimento do termo “conhecimento sensí-vel”, porque a primeira possui um sentido maisamplo do que o segundo no que se refere a suaaplicabilidade no cotidiano, ou seja, o “sabedor”não se limita aos conhecimentos parciais sobrea realidade, ele encharca suas ações diárias desaberes e habilidades mais abrangentes e in-corporados entre si e ao seu viver cotidiano.

Considerando a educação moderna, pode-mos constatar uma preferência latente do inte-lecto e uma desvalorização da sensibilidade. Aofazer um histórico sobre a “razão instrumental”ou “razão calculante”, Duarte Jr (2001) desta-ca que, através da desvalorização do ser hu-mano em nome do lucro, e da separação entreo corpo e a mente, o homem moderno foi sub-metido a uma deseducação dos seus senti-dos em virtude de um ambiente deteriorado,espaços coletivos frios e imposições consumis-tas na nossa forma de ser e de viver em socie-dade. Sobre a investida da racionalização nasociedade moderna, como estratégia de anula-ção das dimensões sensíveis humanas, DuarteJr (2002) refere que:

... o nosso estilo moderno de viver precisa servisto como diretamente vinculado a uma manei-ra de se compreender o mundo e de sobre eleagir, maneira que se veio identificando como tri-butária dessa forma específica de atuação da ra-zão humana: a forma instrumental, calculante,tecnicista, de se pensar o real. (...) Tal conheci-mento, tendo (epistemologicamente) negadodesde os seus primórdios o acesso sensível doser humano ao mundo, veio crescendo, desuma-nizando o nosso planeta e as nossas relaçõessociais (...) a crise desse tipo de conhecimentoque engendrou e a ela deu sustentação, em de-trimento de outros tipos de saberes, em especialo saber sensível. (DUARTE JR, 2001, p, 69-70)

Hoje se faz necessário o reconhecimento dasensibilidade humana, enquanto forma de sa-ber, sob pena de ficarmos cristalizados nummundo que nos toma como mercadorias e àprodução do conhecimento como atividade “ci-entífica” elaborada por poucos ‘iluminados’.

A superação desta concepção passa inicial-mente pelo fortalecimento de uma educação quenão tenha na divisão sujeito/objeto, na dualida-de corpo/mente e na supervalorização da razãopura, seus pilares e forma. Deve-se entendertambém a importância de voltarmos “às coisasmesmas”, ou seja, ao refinamento e desenvol-vimento dos nossos sentidos em face do mun-do, e que, para tanto, é preciso lançar mão deuma proposta educativa que tenha como prin-cípio o saber sensível como aquele “saber pri-meiro que vem sendo sistematicamentepreterido em favor do conhecimento intelecti-vo” (DUARTE JR, 2001, p. 14).

Mas o que significa esse “saber sensível”?Através de que se alcança esse saber sensível?Como se inter-relacionam os desejos individuaise coletivos neste processo de educação do sen-sível? Para responder a estas inquietações citoinicialmente Maffesoli (1998), quando traz a fi-gura mitológica de Dionísio como contraponto àfigura de Prometeu, que representa toda a ins-trumentalidade racional moderna:

... convém elaborar um saber “Dionisíaco” queesteja o mais próximo possível de seu objeto.Um saber que seja capaz de integrar o caos ouque, pelo menos, conceda a este o lugar que lheé próprio. Um saber que saiba, por mais parado-xal que isso possa parecer, estabelecer a topo-grafia da incerteza e do impossível, da desordeme da efervescência, do trágico e do não-racional.Coisas que, em graus diversos, atraves-sam as histórias individuais e coletivas.Coisas,portanto, que constituem a via crucis do ato deconhecimento ... (MAFFESOLI, 1998, p.13).

Um saber também que se faz dialetizante,próprio da vida cotidiana, que é tecida entreopostos que se complementam: perfeição –imperfeição, caos – harmonia, tragédia – co-

2 Título inspirado na obra de DUARTE JR, João Francisco.O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. Curitiba:Criar Edições, 2001.

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Izabel Dantas de Menezes

média, etc. É com base na percepção destaambivalência que o saber sensível encontra seusentido fundador, trazendo para o seu foco deinteresse a vida com suas diversas manifesta-ções, formas e expressões de sensibilidades.Diante disto é que Duarte Jr (2001) afirma quea arte é para o ser humano o seu encontro pri-meiro, sensível, com o mundo.

2. A arte na educação do sensívelA arte nos liga a um “saber sensível” de nós

mesmos e da realidade que nos cerca, muitoantes da nossa compreensão “concreta” acer-ca das coisas. Ela, segundo Duarte Jr (2001)situa-se, “... a meio caminho entre a vida vividae a abstração conceitual, as formas artísticasvisam a significar esse nosso contato carnal coma realidade, e a sua apreensão opera-se bemmais através de nossa sensibilidade do que viaintelecto.” (DUARTE JR, 2001, p.68).

Este saber sensível não se opera por inter-médio da fragmentação entre o nosso corpo e anossa emoção; ao contrário, este saber conectaas nossas dimensões num “tecer junto”, que vaida nossa emoção ao nosso intelecto, da escutaao diálogo, do sonho à ação e do individual aocoletivo. Para modificar a realidade, já nos diziaFreire (1981), é necessário conhecê-la, ou seja,“perceber a dramaticidade da hora atual” parapoder transformá-la. Para tanto, é preciso edu-car, educar os olhos, os ouvidos dos educandos.Assim, educar para a sensibilidade é:

... sobretudo e primeiramente, a educação dosnossos sentidos perante os estímulos mais cor-riqueiros que a realidade do mundo moderno nosoferece em profusão (...) é voltar primeiramentepara o nosso cotidiano mais próximo, para a ci-dade onde vive, as ruas e praças pelas quaiscircula e os produtos que consome, na intençãode despertar sua sensibilidade para com a vidamesma, consoante levada no dia-a-dia. (DUAR-TE JR, 2001, p. 25)

O reconhecimento do papel transformadorda arte passa pela valorização do saber sensí-vel, que consegue agregar as dimensões do su-jeito; expressar valores e idéias; descobrir o eucriativo que existe em cada um; dar formas e

expressão aos nossos sentimentos e pensamen-tos, atitude dialógica intercultural entre indiví-duos e grupos de díspares, e a condição de ator/autor do sujeito; enfim, consegue interpretar e/ou inventar a vida.

Desta forma, a arte evoca, no indivíduo,memórias e reflexões de si mesmo, da realida-de que o cerca, à medida que o sujeito expres-sa de diversas formas e linguagens as suashistórias, frustrações, projetos, culturas e dese-jos. Este olhar, cada vez mais sensível e críticoacerca da realidade, é uma construção assegu-rada por um processo educativo que “repensea educação sob a perspectiva da arte” (RU-BEM, 1981, apud DUARTE JR, 1981, p. 16).

No entanto, verifica-se a exclusão de umaparcela significativa da população, tanto noacesso à arte produzida, quanto aos própriosmecanismos que possibilitam o seu desenvolvi-mento. No entendimento de Porcher (1982), aarte sempre teve na sociedade moderna umaconotação de requinte...

... aristocrática, enquanto exercício de lazer emarca registrada da elite. As muralhas estéticasdefiniam o território fechado de uma certa formade ócio elegante. Mas esse lazer ocioso, essautilização do tempo livre não foram dados a todospor igual dentro da sociedade: construíram-seem privilégio das classes sociais favorecidas, queforam também as classes sociais dominantes.Quando se tornou obrigatória, a escola primárianão se propunha a abrir a todos o acesso a essetipo de responsabilidade. (PORCHER, 1982, p. 13– grifos meus).

Ao recuperar, mesmo que brevemente, ahistória do ensino de Arte3 , pode-se observar a

3 Ao longo do século XX, registraram-se ações e práticasdiferenciadas, representadas por correntes teóricas pedagó-gicas de pensamento que influenciaram as tendências peda-gógicas do Ensino de Arte no Brasil. Essas tendências peda-gógicas são representadas por escolas de pensamento que sedividem em: Pedagogia Tradicional, Nova e Tecnicista. NaPedagogia Tradicional o ensino da arte, no caso o desenho,estava diretamente relacionado à preparação técnica para ouniverso do trabalho. O que se valorizava neste ensino eramo traço, o contorno e a repetição de modelos de objetos quegeralmente vinham de fora do país. A boa expressão artís-tica estava na grande capacidade do indivíduo de reproduziruma copia perfeita. A Pedagogia Nova tinha como foco aexpressão, como um dado subjetivo e individual em todas asatividades que passam dos aspectos individuais para os afe-tivos. Nesta linha pedagógica o aluno é visto como um ser

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Arte em movimento: a potencialidade da arte na formação de educadores

integração de diferentes orientações e concep-ções referentes às finalidades, à formação eatuação dos professores. Estas orientações so-freram, contudo, variações e enfoques diver-sos, de acordo com o contexto histórico e a suarealidade sócio-cultural, que, a depender, influ-enciaram o ensino da arte através de políticaseducacionais, enfoques filosóficos, pedagógicose estéticos.

Observa-se também que neste percurso his-tórico a predileção pela racionalização da práti-ca pedagógica criou um estatuto seletivo, quetornou insignificantes e menores os saberespautados em lógicas afetivas e culturais, nãopermitindo a inclusão da afetividade e do dese-jo nas práticas de aprendizagem, conforme Fer-nandes (2005); uma prática pedagógica artísticavoltada ao desenvolvimento e preparação dedestrezas úteis para a formação de mão-de-obraespecializada para o trabalho; uma presença daarte na escola marginalizada presente nas da-tas comemorativas como ornamento decorati-vo; uma idéia da arte como representante deum saber ‘não sério’ e inferiorizado, conformeBarbosa (1975).

Neste contexto, cabe ressaltar que estasorientações sobre a arte e a educação não sãoas únicas a transitarem no cenário. É interes-sante mostrar que, historicamente, a perspecti-va da arte como instrumento de transformaçãoindividual e coletiva esteve presente nos traba-lhos teórico-práticos que colocam em foco agrandeza da arte e sua capacidade educativa.Pode-se citar como exemplo o trabalho do dra-maturgo judeu-alemão Bertold Brecht (1898-1956). Ele escreveu dezenas de peças épicas

de espetáculo, e outras mais, para experimen-tação pública das chamadas peças didáticas,pois tinham uma intenção pedagógica e faziamparte da sua pedagogia político-estética, con-forme Ricardo Japiassu (2001).

A peça didática ensina quando nela se atua, nãoquando se é espectador. (...) a peça didática ba-seia-se na expectativa de que o atuante possaser influenciado socialmente, levando a cabodeterminadas formas de agir, assumindo deter-minadas posturas, reproduzindo determinadasfalas... (KOUDELA, 1991, apud. JAPIASSU, 2001,p. 32).

Ou ainda: “A peça de Brecht pode ser sub-dividida em quatro pontos principais: a peça di-dática é para Brecht sinônimo de exercíciocoletivo; a peça didática visa autoconhecimen-to; auto-significa um Eu coletivo e não Eu indi-vidualizado; o público não é passivo, porématuante” (KOUDELA, 1992, p. 34).

A pedagogia de Brecht, segundo a profes-sora Ingrid Koudela, significa:

... algo como o termo greco-romano ‘ateneu’(uma espécie de escola de cultura geral, de retó-rica, filosofia, direito), cujo sentido pode ser com-binado, por analogia talvez, com o neologismo‘politeu’. Tal conceito pretende que se entendapor ‘locais de aprendizagem’ espaços para ondeindivíduos se dirigem a fim de ampliar as suaspossibilidades de intervenção na polis (ou, aomenos, refleti-las, experimentá-las no terreno doludus), o espaço da cidadania, o espaço político,na acepção mais ampla. Tal espaço lúdico teriaum denominador comum com o processo de de-salienação. (KOUDELA, 1992, p.43)

Aqui no Brasil, dentre outras experiências,cito a do MIAC – Movimento de IntercambioArtístico Cultural pela Cidadania, proposto em1997 pelo CRIA como uma rede de mobiliza-ção social formada por diversas instituições egrupos culturais da cidade de Salvador-Ba, quetem como princípios a parceria entre adoles-centes e adultos; a utilização da arte-educaçãocomo metodologia especial; a integração esco-la, comunidades e outros grupos comprometi-dos com a luta por uma educação pública e dequalidade; a gestão participativa; a valorizaçãoda diversidade cultural (Relatório MIAC, 2001,p.15-18).

criativo, e deve ser estimulado a realizar tarefas que tenhamum significado para ele mesmo. Desta forma, foge-se dacompetitividade e da idéia de perfeição, possibilitando queo aluno desenvolva sua expressão artística através do “apren-der-fazendo”, da experimentação. A Pedagogia Tecnicistaenfatizava um “saber exprimir-se” espontaneístico, namaioria dos casos, caracterizando pouco compromisso como conhecimento de linguagens artísticas. Esta pedagogia éorientada por uma concepção mais mecanicista na qual oque importa é cumprir os objetivos específicos do planeja-mento de aula. Não há aqui uma valorização nem do sujeito(aluno), nem do objeto (a arte). (Vide texto adaptado porFERNANDES, 2005, p. 177-178, do livro de FERRAZ,Maria Heloisa. Metodologia do ensino da arte. São Paulo:Cortez, 1999).

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Izabel Dantas de Menezes

Espaço onde a arte experimentada potenci-aliza a condição de sujeito que consegue ex-pressar, falar de si, de suas fraquezas, sonhos,resistências, desejos, necessidades e vontades,e também do mundo. As expressões artísticascriadas nesta Rede serviram para que seus par-ticipantes interpretassem a si e ao mundo, pri-mando por relações dialógicas entre os grupos,pessoas e instituições de culturas4 díspares,numa atitude que se quis intercultural. Esta in-terculturalidade, na medida em que possibilitoua relação dialógica entre sujeitos e culturas dis-tintas, promoveu, em certa medida, a rupturacom orientações monorreferenciais de produ-zir conhecimento. De acordo com Fleuri (2004),nesta relação intercultural é preciso:

Superar o modo de entender o mundo por oposi-ções (ou/ou) e elaborar um modo de compreenderas relações por conexões (e/e) (...); em lugar de seentender educação como a busca de conformar opensamento e o comportamento das pessoas apadrões culturais pré-definidos e homogêneos,entende-se que as pessoas se educam e se huma-nizam construindo processos identitários entresuas diferenças. (FLEURI, 2004, p. 17)

A pesquisa, desenvolvida por Fernandes(2005), sobre a rede MIAC, “Sociabilidade,comunicação e política: a Rede MIAC comoprovocadora de potencialidades estético-comu-nicativas na cidade de Salvador”, defende a tesede que o cidadão MIAC exercita a sua poten-cialidade estético-comunicativa através dodiálogo intercultural.

Na construção desse conceito, a autora re-corre à idéia de complementaridade, de ori-gem nagô, descrito pelo historiador MarcoAurélio Luz. Conforme o autor, “uma das prin-cipais características da visão de mundo nagôé de que os poderes e princípios que regem ouniverso são complementares.” (LUZ, 2000, p.35 apud FERNANDES, 2005, p. 147). Destaforma, para Fernandes:

A idéia de complementaridade apresenta-se tam-bém na ação desses jovens, que compreenderamque demandar políticas públicas não significaapenas reivindicar cidadania por intermédio deinstituições partidárias; esse é apenas um doscaminhos. É preciso tecer junto, e para que a tra-ma societal cresça é necessário comunicar, com

uso da arte e da educação, as diversidades cultu-rais da cidade. (FERNANDES, 2005, p. 187)

A arte consegue retirar da realidade imediataseu objeto e pensar num mundo possível. Comodiz Espinheira, é um tapete mágico, daí a sua com-plexidade e grandeza. É este “tapete mágico” quecoloca a pertinência de um devir para educadorese educadoras, na medida em que oportuniza aexpressão de culturas e identidades, bem comode direitos. O “tecer junto”, no cotidiano da redeMIAC, é forjado pelo desejo de participaçãocidadã e pelo diálogo intercultural entre sen-tidos, sentimentos e culturas díspares.

3. A potencialidade da arte na for-mação dos educadores do MIAC

O MIAC traz inspiraçãoNo verso, no olhar, na canção

Esse monte de jovensExercitando a cidadania

É momento de aprendizadoQuando estamos juntos

Tudo é emoção. Se transformaNum imensurável planeta

Que chamamosARTE-EDUCAÇÃO 5

4 Assim como Fernandes (2005), entende-se que “culturanão é simplesmente um referente que marca uma hierarquiade civilização, em que uma sociedade é mais civilizada que aoutra e que por isto é mais “avançada”. Ou ainda que “tercultura” significa ter acesso a bons estudos, à educação, aconhecimentos diversificados, ou ser um intelectual que“sabe pensar o mundo”, mas sim a maneira de viver total deum grupo, sociedade, país ou pessoa. Cultura é um mapa, umcódigo pelo qual podemos entender como as pessoas de umdado grupo pensam, vivem, se organizam, se vestem, feste-jam, trabalham, comem, estudam e modificam o mundo e asi mesmas. Cotidianamente estamos reencontrando-nos ereafirmando-nos culturalmente com o outro e, através dele,formando e construindo códigos comuns. E é justamenteesse comum entre o eu e o outro o que nos une, o que nosaproxima aos interesses múltiplos (racionais, emocionais,objetivos, subjetivos), o que dá sentido à existência social, éo que podemos denominar de cultura. Entendemos, então,por cultura o conjunto das práticas e relações sociais e sim-bólicas de uma determinada sociedade. Entendendo que ela édinâmica, híbrida, fluida, o que significa que não existemculturas “puras”, intocadas e isoladas. E que também nãoexiste uma cultura melhor do que a outra, mas sim umacultura diferente da outra.” (FERNANDES, 2005, p. 185)5 Jovens da Escola Estadual Azevedo Fernandes – RelatórioMIAC, 1999.

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Arte em movimento: a potencialidade da arte na formação de educadores

Para descrever as potencialidades da artena formação dos seus educadores e educado-ras, acredito ser de fundamental importânciaretomar três idéias centrais: primeira, a de queconsiderei o MIAC – Movimento de Intercâm-bio Artístico Cultural pela Cidadania - como umarede de mobilização sociocultural que, com seumodo de organização, é formativa, posto que“nos interroga, choca, sacode valores, concep-ções, culturas e estruturas” (ARROYO, 2000,p. 11); segunda, o conceito de formação de edu-cadores como um fenômeno amplo, complexoe polissêmico que acontece, também, além do“chão da escola”; e a terceira, o sentido da artecomo uma referência especial nesta formação.

A amplitude do processo de formação dosdocentes, entrementes, não está restrita ao es-paço formal, ou seja, apesar da imposição da“formação formal como o todo da formação”,outras possibilidades existem. Mesmo deixan-do claro o reconhecimento das demandas exis-tentes para que esses níveis de formação sejamacessados pelos educadores, é importante iden-tificar a existência de outros espaços de for-mação docente que estão para “fora do chãoda escola”, ou mesmo, dentro do universo es-colar, surgem por conta de circunstâncias quenão estão previstas dentro do roteiro/regulamen-to instituído pela unidade escolar.

Para aqueles que já atuam como profissio-nais da docência, a continuidade do seu pro-cesso de formação, além de se constituir numademanda que deve ser assumida tanto pelo po-der público, quanto pelo estabelecimento esco-lar, constituindo-se num direito e numaprerrogativa dos professores, pode (e deve) tam-bém ser pensada a partir das imbricações queesses profissionais constroem nas diversas es-feras da sua atuação profissional, política e/oucultural.

Nóvoa (2002) nos remete a um elementoimportante sobre o problema apresentado paraentender a “formação”. Todo o debate referen-te ao processo formativo esteve, por muito tem-po, fundamentado numa perspectiva de que aformação dos indivíduos estaria circunscrita a umespaço delimitado (a Escola) e a um período es-pecífico da formação (a infância). Tais limita-

ções só vão ser transpostas a partir da décadade 1960, quando alguns autores passam a reivin-dicar uma maior amplitude para o debate, tra-zendo à tona concepções como a de uma“Educação Permanente” (NÓVOA, 2002, apudJOSSO, p.08). Portanto, descrever e analisarsentidos educativos vivenciados por educadoresdentro do espaço MIAC é uma oportunidade deentender melhor a ‘pedagogia’, muitas vezesanônima, dos movimentos sociais.

Vale destacar, também, que os veios aquidestacados representam uma possibilidade, den-tre muitas possíveis, de compreender o que oseducadores/as percebem como fundamental nosseus próprios processos de formação, tomandoo espaço da rede MIAC e a arte como refe-rências. Os veios destacados correspondem, emprimeiro lugar, à formação identitária dos edu-cadores e educadoras; em segundo lugar, à for-mação para a conscientização do direito a terdireito; e, terceiro e último, à formação para aatuação político-pedagógica na escola e na co-munidade.

4. Aprendizado de direitosDiante da pluralidade de direitos: saúde,

moradia, terra, segurança, proteção, infânciaetc., o MIAC coloca a luta por educação dequalidade e a valorização das diferentes cultu-ras no campo dos direitos. Esta opção é desta-cada, também, por seus participantes, por suadimensão educativa para a formação de muitoseducadores e educadoras que participaram ouparticipam do MIAC. É o que pontuam as nar-rativas:

Tem também o que a gente chama dentro dasformações que são as discussões que enrique-cem demais, né? Coisas que eu até não tinha metocado, como no último trabalho nosso, e de re-pente aqui no MIAC eu vim ter um conhecimen-to de política, da questão econômica, e isso écoisa que a gente não se propõe a fazer um cur-so para aprender. E esses temas que vem sendodiscutidos aqui enriquecem muito o conhecimen-to da gente e cada vez que a gente aprende maisalguma coisa a gente revê a nossa prática, nãosó como profissional, mas como cidadã. Às ve-

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zes a gente vem para uma reunião para escreverum projeto e antes começa um bate-papo que éenriquecedor pra caramba, quantas coisas a gen-te aprende e ensina? (Educadora H – NELCYPIAGGIO)

E o MIAC é muito interessante e importante por-que lá a gente faz as descobertas; eu já me emo-cionei várias vezes com o MIAC, lá a gente faztrabalho com políticas públicas e também leva agente a viver os direitos; por exemplo, eu nuncaentrei no Clube Baiano de Tênis, um dia me vi lácom o MIAC, assistindo um filme que tem a vercom nossas vidas de educador popular, muitascoisas assim. Eu me vi ali naquele filme; o queme despertou também outras coisas, encorajan-do, acordando. (...) Estou me lembrando do queaconteceu com as mulheres que foram retiradasaqui do Pelourinho e que receberam uma quan-tia irrisória para isso. E levaram os filhos, quenão queriam ficar lá. A prefeitura então inventouum projeto que se chamou “Os Nossos Filhos”– porque os meninos já haviam se acostumadoaqui e voltaram para ficar por aqui. Tem a Gam-boa de Baixo também. Precisamos discutir “Te-cendo a Cidade” criando um sentido políticopara isso, questionar isso... (Educadora E –MARINALVA GÓES).

O aprendizado dos direitos leva tais educa-dores a questionar e indagar sobre a brutal ex-clusão dos setores populares urbanos dosserviços públicos mais básicos. Quando PauloFreire (1981) justifica a Pedagogia do Opri-mido, sinaliza que tal pedagogia se nutre dosujeito como problema de si mesmo ou da pro-blematização de nos formarmos humanos. Seuobjeto de teorização é a trágica descoberta denós mesmos (ARROYO, 2004, p.5-7).

Esta descoberta, segundo Freire (1981), sefaz especialmente nos movimentos sociais:

Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens,no mundo atual... manifestam, em sua profundi-dade, esta preocupação em torno do homem edos homens, como seres no mundo e com o mun-do. Em torno do que e de como estão sendo...buscando a afirmação dos homens como sujeitosde decisão. Todos estes movimentos refletem osentido mais antropológico do que antropocên-trico de nossa época. (FREIRE, 1981, p.27)

Os dramáticos processos da convivênciahumana trazem grandes interrogações para os

homens e mulheres. Os sujeitos, segundo Ar-royo (2004), “... reeducam as teorias pedagógi-cas, as humanizam ou as aproximam dasgrandes interrogações que estão em sua ori-gem. Pedagogia como acompanhamento daspossibilidades de sermos humanos, de realiza-ção do humano possível...”.

A possibilidade de questionar e atuar politi-camente como “sujeitos de decisão” ou como“atores/autores” capazes de contribuir para amelhoria da qualidade social da educação, con-tribuindo efetivamente para a construção decondições mais humanas e solidárias, pela con-seqüente atuação política nos seus espaços (es-cola, comunidade, conselhos, fóruns, etc.), sófoi possível de ser feita pela formação desen-volvida internamente no movimento.

As falas a seguir representam um destesmomentos de mobilização e pressão cidadã. Sãoreflexões críticas a respeito das concepçõespolítico-pedagógicas instituídas e mapeadasdurante a “roda de discussão” na Escola Re-nan Baleeiro, ação que fez parte das atividadesda “Semana de Ação Mundial 2004” – O polí-tico vai à escola. O político convidado foi ummiaqueiro, o professor Albertino Nascimento,componente do Conselho Estadual de Educa-ção da Bahia, representando o SINPRO – Sin-dicato dos Professores da Rede Particular deEnsino, também parceiro do MIAC.

É importante registrar que o MIAC, aqui emSalvador, na ação de O político vai à escola,quebrou a lógica do político parlamentar queestá colocada na campanha. Pensamos em trazeressa questão do político de forma mais ampliada;afinal de contas, somos todos seres políticos nocotidiano do nosso fazer, particularmente naescola. A participação do MIAC tem o papelfundamental de enriquecer essa participaçãopopular dentro do Conselho (...) Portanto, é umaroda dinâmica como essa que nos move, faz comque estejamos sempre em movimento. (Membrodo Conselho Estadual de Educação da Bahia,Albertino Nascimento).

Acredito muito num pacto entre professor e alu-no no sentido de buscar melhorar a qualidadeda educação; é preciso estabelecer relações decumplicidade. A partir disso, certamente come-

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Arte em movimento: a potencialidade da arte na formação de educadores

çaremos conjuntamente a criar alternativas paramelhorarmos a situação da educação, principal-mente no que diz respeito à qualidade do ensinopúblico. (Educadora H – NELCY PIAGGIO)

Aqui, as narrativas demonstram que a Edu-cação não é uma dádiva e passa a ser exigidacomo um direito. Esse processo sacode umavelha “cultura política de clientes agraciadospelos políticos e governantes”. Esta dimensãopedagógica é peculiar aos movimentos sociaiscomo um todo e no MIAC, na medida em queessa reeducação política vai pontuando a edu-cação não como mercadoria, mas sim como umdireito (ARROYO, 2004).

A escola não consegue ver essas questões so-ciais, ou melhor, não dá conta de atender às ne-cessidades dos alunos; temos que atuarbaseados nos padrões instituídos, que, na maio-ria das vezes, não são sensíveis às particulari-dades dos nossos alunos (...) Não podemosconceber a educação pública num sistema per-verso como esse, como concebíamos há 20, 30anos atrás, em que tínhamos uma situação dife-rente, onde ainda existiam empregos e uma con-dição de vida diferenciada. Hoje, os nossosalunos precisam trabalhar para sobreviver e anossa escola não é, em momento algum, sensí-vel a essa realidade. Nós, que estamos à frenteda direção das escolas, estamos o tempo todopreocupados com a questão legal do processo, enão com a questão social; em conseqüência dis-so, expulsamos esses meninos da escola. (...)Acredito na educação, mas a partir de uma outralógica; acredito em pessoas que fazem diferente.Existem pessoas que ocupam esse espaço parafazer diferente; no nosso caso, buscamos que aescola tenha interação com a comunidade, abri-mos as portas para que possamos compartilhar,vivenciar o mesmo espaço (...) Encontros comoos do MIAC na escola são fundamentais paraque possamos compreender melhor e continuar-mos a nossa luta por mudanças efetivas. (Edu-cadora A – AIDÊ)

Nesse depoimento, a dimensão pedagógicapassa por reconhecer que a formação humanaé inseparável das condições básicas de sobre-vivência. Ele fala sobre as teorias pedagógicas,o que a concepção crítica de educação tantopontuou, a pertinência “que têm as lutas pelahumanização das condições de vida no proces-

so de formação. A luta pela vida educa, por sero direito mais radical da condição humana”(ARROYO, 2004, p. 07). Como pensar currí-culos, práticas pedagógicas, tecnologias, políti-cas públicas, sem incluir a relação entre ascondições de sobrevivência dos alunos e seusrespectivos processos formativos?

Diante destas questões sociais com asquais, diariamente, os docentes se deparam,destaco, neste processo de luta e de aprendi-zagem por direitos, uma formação do MIACque tinha como objetivo discutir sobre a valo-rização dos professores e construir um “pa-rangolé itinerante6 ” que circularia por algumasescolas. O momento era para que os próprioseducadores falassem das diversas dimensõesda valorização, vivenciadas ou almejadas poreles, tecendo, através de histórias, depoimen-tos, desenhos, enfim..., uma grande colcha deretalhos que expressasse a pluralidade dossentidos ali emergidos.

A metodologia, portanto, é inspirada no “pa-rangolé” e no “Jogo Jogante”, numa homena-gem a Felipe Serpa, pedagogo. Ela seguiuinicialmente com a acolhida das pessoas numaante-sala, através de uma dinâmica coordena-da por Eliciana (coordenadora do Lar JoanaAngélica). Depois seguiram para outra sala,ouvindo um recital de poesia “Corredor da Po-esia”; a sala encontrava-se ambientada com doismóbiles no teto, com uma grande interrogação“o que é valorização docente?”. No chão, umatrilha com pegadas num pano contendo imagens,palavras, artigos da LDB, desenhos e objetos.A atividade começou com um convite a um Jogoda Trilha; este jogo, afirmou um dos coordena-dores da atividade, é “um jogo-jogante”.

Esse ano Felipe Serpa foi a pessoa que co-meçou esse ano uma ação do MIAC; quandonós pensamos em discutir Qualidade Social da

6 Parangolé - escultura móvel criada pelo artista plásticoHélio Oiticica, em 1960. Utilizando-se do seu corpo, oindivíduo veste o parangolé que pode ser uma capa feitacom camadas de panos coloridos que se revelam à medidaque ele se movimenta correndo ou dançando. Oiticica oconvida a participar do tempo da criação de sua obra eoferece entradas múltiplas e labirínticas que permitem aimersão e intervenção do “participador”, que nela inscrevesua emoção, sua intuição, seus anseios, seu gosto, sua imagi-nação, sua inteligência. (SILVA, 2002, p.167)

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Educação, entramos em contato com ele e eleprontamente aceitou. Disse: “se é para subver-ter essa escola que está aí eu vou a qualquerlugar, onde é?” Ele usava muito esta metáfora,ele dizia assim, o grande lance da educação eda vida é a gente buscar se compreender jo-gante, antes do dado marcar os pontos, naquelemomento que você sacode e joga os dados;antes dele marcar os pontos, aquele momentoé um momento de muito sentido possibilidadede construir a trilha. (RELATÓRIO FORMA-ÇÃO, 2003)

Observei que o Movimento usou nesse mo-mento de formação artístico-pedagógica duasimagens que sugeriam e instigavam a partici-pação. Ao invés de assumir o lugar de alguémque recebe a informação, ou de quem esperapor um direito, próprio da perspectiva da “ban-cária de educação”, o sujeito assume o lugarde “ator/autor” de todo o processo, reconhe-cendo que o segredo da conquista de cada di-reito está na participação de cada um que, nocaso do MIAC, completa com suas vivências,significados e desejos a mobilização em prol daeducação. Sobre o parangolé diz Silva (2002,p.167):

Ele é pura proposição à participação ativa do“espectador” – termo que se torna inadequado,obsoleto. Trata-se de participação sensório-cor-poral e semântica e não de participação mecâni-ca. Oiticica quer a intervenção física na obra dearte e não apenas a contemplação imaginal, se-parada da proposição. O fruidor da arte é solici-tado à “completação” dos significados propostosno parangolé. E as proposições são abertas, oque significa convite à co-criação da obra. As-sim a obra requer “completação” e não simples-mente contemplação. Segundo o próprio Oiticica,“o participador lhe empresta os significados cor-respondentes – algo é previsto pelo artista, masas significações emprestadas são possibilidadessuscitadas pela obra não previstas, incluindo anão-participação nas suas inúmeras possibilida-des também. (SILVA, 2002, p.167)

Com a força destas imagens, a discussãofoi intensa, com vários depoimentos, histórias ereflexões críticas sobre a temática. Para con-cluir o trabalho, foi construído o “parangolé iti-nerante” que, no início de 2004, deveria começar

a sua itinerância pela Escola Renan Baleeiro7 .Destaco a fala que segue como uma referên-cia deste sentido de co-autoria e de jogador-jogante defendido pelo MIAC:

Acho importante confirmar o que já foi dito arespeito da lógica e atuação do governo em rela-ção à educação no nosso estado; vende-se a ima-gem do sucesso, da educação de qualidade e oque acontece de fato, quando estamos traba-lhando nas escolas e projetos educacionais pro-movidos pelo governo, é nos depararmos comuma outra realidade, que é extremamente contra-ditória. Existe uma política social oficializada epublicizada que, na verdade, é meramente de fa-chada, não acontece efetivamente. As mudan-ças necessárias não acontecem, e o nosso desafioé, acima de tudo, resgatar a esperança e crençana educação e, sobretudo, na escola. (EducadoraB – ANA CLÁUDIA, na roda de discussão em24/04/04).

A crença de que é possível a existência deoutro mundo encontra-se também em MiltonSantos (2004, p. 18), quando ele nos convoca arefletir sobre a existência de três mundos emum só: o mundo como nos fazem crer, o mundocomo é e o mundo como pode ser. Com isto,ele afirma a “pertinência da utopia” (2004, p.160)e nos convida a completar a lista com as ques-tões que ainda não foram mapeadas pela “glo-balização perversa” e que nos interessamenquanto ser humano. Sem perder de vista estecontexto o MIAC sinaliza com:

• necessidade de uma educação de quali-dade social em condições de construircidadania;

• reais condições de justiça sociocultural;• democratização da gestão escolar, atra-

vés da participação de todos os segmen-tos da escola;

• acabar com a exclusão sócio-cultural, de-mocratizando o conhecimento, as vagas,o acesso e a permanência na escola;

• ampliar e garantir os espaços da partici-pação dos jovens;

• incluir a arte e a cultura popular e o diálo-go permanente nas práticas pedagógicas;

7 O parangolé esteve na escola no dia 24/04/04 como parteda programação da “roda de discussão”.

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• valorização dos profissionais da educa-ção, através de planos de carreiras, re-muneração digna e formação continua-da;

• avaliação democrática do sistema e dasinstituições educacionais.8

Quem nos convida a entrar na luta pela ga-rantia desses direitos, de forma poética e meta-fórica, é Marinalva:

... atravessar o rio como Che Guevara9 , atraves-sei e por ter tido essa coragem de atravessarmuitas coisas e estar aqui de pé conseguindofalar, porque teve uma época na minha juventu-de em que eu não falava - era muito oprimida,muito calada, não sabia falar nada –, mas depoispassei por um estudo com Ana Célia, do movi-mento negro, e descobri muitas coisas maravi-lhosas, como a questão de gênero racial, vimentender sobre candomblé... muitas coisas boastenho aprendido nos movimentos. As pessoasme criticam e dizem que temos que trabalhar paraganhar dinheiro; eu não ganho dinheiro, masganho muita coisa que quem com tanto dinheironão vai chegar nunca a ter. Esse é meu lado CheGuevara, que saiu para fazer aquela viagem e viutantas coisas que mudou, e não era mais aquelemesmo homem de antes da viagem. Bem assim éa vida da gente, quando temos que tomar deci-sões, quando queremos nos descobrir, a gentese ver, ver o outro, e vai todo mundo junto nessacaminhada em busca de deixar uma sociedademais transformada, como a gente gostaria, maisigual, com mais respeito, combatendo a discrimi-nação e sabendo dividir, como a gente divide noMIAC. (Educadora E – MARINALVA GÓES).

5. Aprender com o MIAC e atuarna comunidade, na escola e no“chão da sala”

Fala comunidadeComunidade da periferia da cidade

Comunicabilidade cadê?Você que é discriminado

Pode mandar o seu recadoExija mais respeito, combata os preconceitos

Você tem direitos,Trabalho, salário digno, saúde,

Moradia, educação de qualidade, com base narealidade

Somos afrodescendentes,Somos negros resistentes.

Nada de racismo; discriminaçãoGera confusão.

Temos nessa crença,Religiosidade é cultura na nossa

Da nossa raça.(Educadora E – MARINALVA GÓES).

O aprendizado dos direitos, destacado peloseducadores e educadoras como uma dimensãoformativa, amplia a possibilidade de cada umfazer sua “leitura do mundo”, compartilhar omundo lido, conforme Freire (1981), e atuar deforma efetiva na comunidade, na escola e nasala de aula, em busca da transformação e re-construção destas realidades.

Esta é, para o educador, uma possibilidadeformativa que se revitaliza, à medida que o seu“saber ser” e seu “saber fazer” é mediatizadopor uma atitude crítica e reflexiva de si mesmo(dos seus complexos processos sociais, forma-tivos e culturais), da sua práxis pedagógica (dosprojetos da escola, da sua participação) e doseu cotidiano (dos modelos sociais e educacio-nais). Há, neste encontro, a articulação das di-mensões “pessoal, profissional e social”,conforme Nóvoa (1992), do educador e da edu-cadora, condição ímpar para a revitalização po-lítico-pedagógica do seu processo formativonum:

... incentivo para que a comunidade desperte paracriar coisas importantes para a própria comuni-dade, como a biblioteca do final de linha, a rodacom os professores comunitários. São muitascoisas bacanas, tiveram os Caldeirões, onde agente teve oportunidade de estar com outrosprofessores, uma coisa bem bacana, que é o es-paço onde a gente pode mostrar o que nós faze-

8 Texto MIAC escrito pelos participantes da reunião a par-tir de um texto elaborado por Cláudio Orlando. “Um movi-mento pela qualidade social da educação”, 1999.9 Aqui ela se refere ao filme “Diário de motocicleta”, filmeque discute o processo de formação do jovem Che Guevara.A cena onde o personagem atravessa o rio para ir ao encon-tro dos doentes de lepra é uma metáfora muito interessanteque representa a sua escolha política e de vida. Os educado-res e jovens do MIAC assistiram ao filme durante a “3ª.roda de discussão”, na sala de arte do Clube Baiano de Tênis,onde, após o filme, fizeram um debate sobre história de vidae formação.

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mos, porque na visão do sistema nós somos nin-guém (pausa). Então eu tive a oportunidade defazer exposição, mostrar artesanato, uma coisabaseada na cultura local, na cultura de origem deremanescente do Quilombo Oca do Tatu (...), sãomarcas que não são esquecidas por quem parti-cipa e pelos que vão assistir; são coisas que vãose construindo, se descobrindo, se reeducando,porque a educação oficial ela é muitas vezes tra-dicional e não trabalha uma realidade, uma iden-tidade mesmo da pessoa se gostar, gostar de sereducadora e se dar valor ao que faz, ser o que elaé, saber que ela pode crescer, ser inteligente,ter a certeza de que nós podemos fazer na comu-nidade e mostrar. Então tem tudo isso de bom noMIAC. Tenho muito a aprender ainda. (Educa-dora E – MARINALVA GÓES).

A relação que a educadora faz entre “si, osoutros e o meio” (PINEAU, 1985) demonstraum aprendizado tecido de forma contínua e re-lacional entre os seus saberes, a sua identidadedocente e de sujeito da educação e da História.Dentre os muitos entraves da formação docen-te, talvez o mais preponderante seja o da frag-mentação, pela “omni-ausência de duas grandesrealidades à pessoa do professor e à organiza-ção da escola” (Nóvoa, 2002, p. 56). Em “for-mação de professores e trabalho pedagógico”,Nóvoa (2002) apresenta o que seria, na sua vi-são, uma nova concepção da formação docen-te e a constrói ancorando-a no que chama de“trilogia da formação continuada: produzir avida, a profissão e a escola”. Esta trilogia é,sobretudo, um apelo a uma epistemologia queseja capaz de: “investir a pessoa e a sua expe-riência; investir a profissão e os seus saberes;investir a escola e os seus projectos” (2002, 56-62), conforme se observa na assertiva de Ma-laquias:

Na verdade os professores estão ávidos pornovas propostas; dizer que eles não queremnada, não condiz com a verdade. Eles foramformados para não quererem nada, é diferente.Então ele já vem da tradição do não querer nada,mas quando você propõe, percebe que não ébem assim, só que ele não sabe mais que posturatomar, porque já foi modificado pela ideologiado sistema, que é reprodutiva, adormeceu a suamemória, sua visão de mundo, mas quandocomeça a despertar, começa também a ver um

mundo diferente, e aí cada um segue umacaminhada diferente, uns vão mais rápido outrosmais devagar, cada um caminha no seu ritmo nosentido de querer melhorar (...); nosso trabalhoaqui tem sido feito baseado no resgate da auto-estima.10 (Educador F – MALAQUIAS)

Realmente, é uma prática recorrente noBrasil depositar apenas na figura do professora responsabilidade pelos baixos índices de apro-vação e aproveitamento discente: “a prevalên-cia do modelo tradicional de ensino: o professorse sente o todo-poderoso, repete conceitos enão sabe interagir com os alunos (...)” (PauloRenato – Ministro da Educação, em 2000 - ementrevista à Folha de São Paulo, 29/11/2000).Para a revitalização política e epistemológicada formação contínua, é necessário que se con-sidere a dimensão pessoal, profissional e orga-nizacional, em seus diferentes níveis e contextos,para uma efetiva formação identitária, pedagó-gica, e também política do educador inseridonum determinado contexto.

É importante frisar que, para a revitalizaçãodesta formação, assim concebida, os caminhosmais fecundos são trilhados a partir da atitudereflexiva sobre si mesmo, sobre o mundo, numarelação dinâmica e dialógica com o outro. As-sim, é possível rever o instituído e instituir ou-tras possibilidades democráticas, de troca deexperiências e saberes, de construção de co-nhecimentos que venham a colaborar com o quecada educador deseja para si, para os outros epara a sua comunidade...

Então, o MIAC representa um espaço caminhan-do para o espírito democrático, porque a demo-cracia a gente está em constante construção;

10 O professor é diretor da Escola Renan Baleeiro, parceira doMIAC. No momento ele fala da participação e reação docen-te frente à relação entre a escola Renan e os projetos, parce-rias com o MIAC e outros grupos culturais da comunidade no“jortudo”, jornada pedagógica – momento também de for-mação –, e no dia-a dia. Porque na Renan vários espaços sãoformativos: “pela primeira vez, o Colégio Renan Baleeiroparticipa desse projeto cultural através do projeto Corre Beco.O forró do trem é o forró da alegria, e está contando com aparticipação dos professores no evento, dançando forró eviva a alegria! (gritos!!!). É aprendizado do resgate da culturanordestina e o resgate da nossa auto-estima, também pelonordestino trem de ferro, uma orla linda que precisa ser maiscuidada e mais respeitada.” (AIDÊ) (Depoimento concedidodurante a atividade festiva da Renan no Trem da Calçada emParipe - Bairro de Salvador).

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então possibilita esses momentos de tensiona-mento do pensar, é tensionar e chamar a comuni-dade, diversas comunidades, grupos que pensammais a cidade e o país de forma diferente; e omais bonito é que, por mais que cada ser queestá ali representando um grupo ou instituição,cada um deve ter suas ansiedades e querer queas suas perspectivas, o seu projeto, sejam logocorrespondidos. Mas até por uma necessidadeda natureza da história não dá para querer queas resoluções dos problemas sejam matematica-mente resolvidos, é geralmente uma coisa ten-sionada que pulsa por mais que a gente busquepensar objetivamente o mundo e a educação.(Educador J – ROBSON POETA).

Observa-se que a discussão sobre o reco-nhecimento dos direitos e da democratizaçãoda participação dos sujeitos e da comunidadenos projetos pedagógicos da escola e do mode-lo de sociedade passa por assumir a tensão ine-rente à concretização destas questões. Lembroque a Nova LDB (Lei nº 9.394/96) diz que:

... os estabelecimentos de ensino, respeitadasas normas comuns e as do seu sistema de ensi-no, terão a incumbência, entre outras, de elabo-rar e executar sua proposta pedagógica (...),articular-se com as famílias e a comunidade, cri-ando processos de integração da sociedade coma escola (...), construindo conselhos escolarescom representação da comunidade.

No entanto, este direito, consagrado na le-gislação, de participação dos sujeitos como “ato-res/autores” dos rumos da escola, nem sempreé garantia de respeito e execução. A atuaçãoativa docente na escola não é uma tarefa sim-ples, passa por reconhecer estas tensões queenvolvem não apenas questões pedagógico/metodológicas, como também políticas e depoder. Cabe destaque ao depoimento que sesegue:

O primeiro impacto é o que nós estávamos dis-cutindo: a questão da sexualidade que era tabu;foi o maior impacto, e aí a supervisora achavaque a gente não devia tratar disso, que não tí-nhamos competência para educar a sexualidade.Depois veio a questão do poder, começamos aser referência na escola; as mães dos meninosiam lá para saber por que os filhos, que antesnão gostavam de ficar na escola, passaram aquerer ficar na escola o dia todo; isso incomo-

dou. Vinham à eleição de diretoria e aí na cabe-ça do grupo a gente estava fazendo aquele traba-lho, porque queria ocupar o lugar de direção,apesar de nos convidarem para fazer parte dachapa e termos rejeitado, isso incomodava. Naépoca, o trabalho foi tão forte que a Secretariade Educação foi lá assistir a um trabalho nosso,porque não acreditavam que o que estávamosdizendo era verdade (...), então vem sempre aquestão do poder; estávamos incomodando, di-ziam que o trabalho da gente estava aparecendomuito mais. (Educadora H – NELCY PIAGGIO)

Este dilema da participação se estende atéa comunidade e suas organizações e movimen-tos sociais que, entre ranços e avanços, acredi-tam que é possível participar e instituir umaescola cidadã, democrática para a sua comuni-dade. O MIAC é um deles; para o Movimento:

... a escola, espaço formal de educação, é o fococentral. Através do diálogo entre esta e o MIAC,trocando experiências e saberes, podemos con-tribuir para que a escola se torne mais viva emais democrática, incorporando a arte, a cultura,os espaços de escuta entre adultos e adolescen-tes, e os trabalhos planejados, avaliados, execu-tados coletivamente. (Texto – MIAC, 1999).

As Ações de Mobilização Regionalizadas –AMR11 foram oportunidades formativas paraos educadores do MIAC atuarem na sua co-munidade. O fragmento de diálogo em desta-que, no parágrafo anterior, evidencia algumassituações que foram vividas durante e a partirdas AMR. Elas nasceram da necessidade decada grupo/pessoa/instituição da Rede MIACtrabalhar mais diretamente com a sua comuni-dade, mobilizar a escola e as organizações exis-tentes no seu bairro/região em prol da educaçãopública e de qualidade. Outra atividade, citadano diálogo, aconteceu em 2004, na Escola Es-tadual Renan Baleeiro, em Águas Claras - Sal-vador, onde o MIAC, através de oficinasartísticas, rodas de discussão e apresentaçõesculturais, intercambiou saberes, ações, solidari-edade entre os grupos e instituições presentes.

11 AMR – Foi uma estratégia de organização do ModeloArtístico Pedagógico, movimento que visava a desenvolvermobilizações e trabalhos artísticos e pedagógicos nas comu-nidades, reconhecendo a arte, a cultura e os sujeitos de cadalocalidade.

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A valorização das manifestações culturaisdas várias localidades, o respeito à diversidade,o diálogo intercultural e o trabalho com a artecomo eixo dos processos pedagógicos pelo de-senvolvimento da cidadania formam as diretri-zes/princípios fundamentais que nortearamestas ações. Neste sentido, o MIAC, segundoFernandes (2005, p. 192):

... defende uma escola “fora do lugar”, isto é,uma escola em que os conteúdos, como raios deum círculo misterioso, atinjam todas as partesdo mundo social, mas cujo centro apresenta-seem lugar algum. Uma escola que interaja e incluaa realidade cotidiana em seus aprendizados, queconstrua esse novo caminho em parceria com osjovens e outros educadores da cidadã.

Esta escola “fora do lugar” potencializaaprendizagens e descobertas, como esta narra-da por uma educadora:

Descobri uma coisa linda! Que expresso em meuartesanato uma coisa baseada na cultura local,na cultura de origem de remanescente do Qui-lombo Oca do Tatu. Você sabia que Sete de Abrilfoi um quilombo? (Faço sinal com a cabeça quenão). Se chamava Oca do Tatu, ou Buraco doTatu, um destes nomes. No meu xadrez de suca-ta faço figuras que representam a cultura africa-na deste quilombo. Inclusive já fiz exposição noCaldeirão do MIAC da Boca do Rio; é uma mar-ca importante pra mim. Esse Caldeirão se cha-mou Seu Terno, Meu Peixe ... A Isca, Nossa Rede.(Educadora E – MARINALVA GÓES)

Segundo Fernandes (2005), há no MIAC:

... intencionalidade de mostrar aos jovens que atradição, com base na memória e na História, éconstituidora de suas experiências, vividas hojeem termos socioculturais. E que o “futuro” podeser construído hermeneuticamente com os “pés”fincados na diversidade cultural, sem utilizarmosum único “modelo sociocultural” como parâme-tro de desenvolvimento humano. (FERNANDES,2005, p. 184)

Esta intencionalidade, no entanto, adverteFernandes (2005), não é utilizada para afirmar“uma identidade fixa, ou um retorno idílico aopassado, mas sim para reconstruir a históriapessoal dessas crianças e jovens (...). No mo-mento em que lhes mostra que também têmcultura e história, o MIAC resgata a auto-esti-

ma promovendo o reencantamento comunitá-rio” (p.184).

Há, portanto, neste sujeito que experimentaa arte, uma possibilidade de exercitar a refle-xão acerca das suas histórias; reconhecer assuas identidades em contato com a cultura lo-cal; valorizar o seu lugar, suas origens; e, possi-velmente, ressignificar a sua história e a históriada sua comunidade. Este processo é possívelpela revitalização sensível da auto-estima, quetem na solidariedade, no amor, no respeito e naesperança seus eixos (FREIRE, 1981, p. 34).Quem acredita nisto é a educadora do MIAC,quando diz que o espaço da escola formal de-veria assumir, com toda a radicalidade e critici-dade, a magia da educação pelo e para o afeto,e mais o amor:

A riqueza desse debate precisa ser salientada; éde extrema importância estarmos aqui com tantagente nova no movimento discutindo sobre artee mobilização cultural, identidade racial, cultu-ral, e a inserção dessas temáticas nos diversosespaços de educação, no MIAC em particular, édespertar sempre a possibilidade de novos olha-res, é poder se perceber e perceber o outro, é aampliação de horizontes e a necessidade de ser-mos pró-ativos, chegarmos ao momento de nãopodermos mais ficar parados física e intelectu-almente (...) olhar que lançamos sobre nós mes-mos; precisamos estar todo o tempo revendo ereformulando os nossos conceitos, entendendoque estamos num processo de formação contí-nua. Essa é a mágica de se colocar enquantoaprendente, inclusive exercitando e aprimoran-do a educação sentimental, valorizando o afeto,o carinho, as relações interpessoais, saber daimportância de recuperar o valor do amor entreas pessoas. (Educadora B – ANA CLÁUDIA, 5ªroda, 29/05/04)

Duarte Jr (2001) discute também em seulivro O sentido dos sentidos: a educação dosensível sobre essa educação dos sentimentos,a que Ana Cláudia se refere de forma legítimae comprometida com este valor. Este autor, re-cuperando uma idéia de Horkheimer (apudDUARTE JR., p. 15) de que a “razão não bas-ta para defender a razão”, traça uma críticacontundente e oportuna à hegemonia de um tipode conhecimento centrado na razão pura quehipertrofia e desconsidera o saber sensível, cau-

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Arte em movimento: a potencialidade da arte na formação de educadores

sando o que ele chama de “anestesia” nos indi-víduos, para depois recuperar a pertinência e aurgência da educação da sensibilidade, recupe-rar o sabor sensível - a “estesia”.

Todo este processo de aprendizagem viven-ciado pelos educadores do MIAC é posto emprática não apenas na comunidade, durante asações desenvolvidas nos intercâmbios, reuniões,manifestações públicas, etc., mas também comona escola e no “chão da sala de aula”.

Sinalizo como importante na minha formação naquestão pedagógica: quando conheci o MIACno festival me apaixonei, era tudo o que eu que-ria fazer na escola... oficinas artísticas, integra-ção com os jovens de várias instituições, depoisos Caldeirões, onde participei da comunicaçãodo evento junto com outros jovens. Então, estaquestão pedagógica é diferente da proposta demuitas escolas que querem os alunos quietos,fazendo exercícios e o professor um tarefeiroobediente. Educação nesta visão é dar conteú-do, forçar o aluno a decorar e ensinar a ele que oimportante é a nota. Eu não aceito isto não!!!(Educadora C – JOSELEIDE CALISTO)

A fala da educadora me permite destacarduas questões fundamentais a respeito do seuprocesso da “mediação didática” em sala deaula: primeiro, é o sentido da incorporação daarte no seu discurso e na sua prática, o que atorna, segundo Cristina D´Ávila (2001), “uma‘leitora da alma humana’ por aproximar, na suaprática, ‘o pensar, do fazer e do sentir’, no eloentre o saber sensível e artístico ao saber didá-tico” (D’ÁVILA, 2001, p. 382); em segundolugar, quando ela diz “eu não aceito isto!” de-monstra uma posição crítica diante do que estáposto como prática pedagógica, a ponto de “as-sinar a sua autoria neste processo, deixando dereproduzir os modelos pedagógicos oferecidospor manuais escolares e por outras autoridadeseducativas” (D´ÁVILA, 2001, p. 380).

Ou ainda como nos afirma Freire (1981):

Sua solução estaria em deixarem a condição de‘seres fora de’ e assumirem a de ‘seres dentrode’. Na verdade (...) os oprimidos estiveram sem-pre ‘dentro de’. Dentro da estrutura que ostransforma em ‘seres para outro’. Sua solução,pois, não está em integrar-se, em incorporar-se aesta estrutura que os oprime, mas transformá-la

para que possam fazer-se ‘seres para si’. (FREI-RE, 1981, p. 85)

Foi experimentando a arte que se firmou noMovimento um dos princípios fundantes da sua“pedagogia”:

... um trabalho maravilhoso de mudança de com-portamento tanto na educação como na comuni-dade em geral; era uma comunidade extremamentecarente socialmente, culturalmente, educacional-mente, e as pessoas confundem muito comunida-de pobre com violência, pelo fato de ser periferia,são coisas completamente diferentes, essa comu-nidade não é violenta ela é violentada. Portanto,os dados de violência que existem por aqui sãona verdade de defesa, não de ataque, são atos desobrevivência. Se a gente provocar o aluno posi-tivamente ele responde, se provocar negativamen-te também, a nossa proposta de trabalho éprovocá-los positivamente e eles têm respondido.(Educador F – MALAQUIAS)

De uma brincadeira de fazer poesia, de fazerletra de música, passou a ser tão levado a sé-rio pelo alunado, eles perceberam que é pos-sível aprender, ter educação formativa enatural. Nós ousamos levar isso mais a sério eestamos tentando fazer uma coletânea, que jáestá pronta praticamente, com poesias feitaspelos próprios alunos, poesias didáticas, pe-dagógicas e poesias livres também, porque émuito importante deixar fluir do aluno, do serhumano Mazé, essa possibilidade de expres-sar o sentimento, através da poesia, da educa-ção, é muito importante essa coletânea quevamos fazer e lançar no final do ano. (Educa-dor G – MAZÉ)

Os educadores nos mostram, mais uma vez,a potencialidade da arte na “mediação didáti-ca” que, diante da definição de D’Ávila (2001),posso entender como uma “mediação didáticacrítica”, onde a aprendizagem ocorre “num fluirprovocativo”, significativo e prazeroso de “ex-pressão de sentimentos, pensamentos e neces-sidades...”, mediante a sua capacidade de “tecerjunto” todas as dimensões humanas, ou seja,“aprende-se pensando, fazendo e sentindo”(2001, p. 382).

Estas experiências educativas, que têm comoponto de partida a arte, assemelham-se ao con-ceito construído por Cipriano Luckesi (2000)corpomente que traduz a educação lúdica como

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Em síntese, essas educadoras e educadores“atores/autores” do/em Movimento aprendemcotidianamente a serem sujeitos “para si”, aose autorizarem a pensar individual e coletiva-mente a sua própria vida e formação, inventan-do, imaginando e instituindo na sua comunidade,na sua escola e na sua sala de aula práticaseducativas criativas, prazerosas e humanizadas.

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 17.03.06

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Isa Trigo

UM PERCURSO DE ESCUTAR POR TODOS OS LADOS,SEM SENTIR OU SENTINDO O SEU PRÓPRIO LADO:

reflexões sobre o fazer artísticoe cultural nosso de cada dia

Isa Trigo*

* Mestra e Doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA. ProfessoraTitular no Departamento de Educação – Campus I – UNEB – Salvador. Endereço para correspondência: Depto.Educação I - UNEB - Estrada das Barreiras, s/n. Narandiba, Cabula, Salvador, Bahia. E-mail: [email protected] Esse texto foi construído para a comunicação oral do VI Colóquio de História da Educação, ocorrido na UNEB em

dezembro de 2005

RESUMOO trabalho reflete sobre o fazer artístico e cultural possível dentro da UNEBpartindo de quatro eixos: a transmissão formal e informal de saberes, a formaçãodo artista das artes cênicas baianas e o treinamento e criação artística voltadospara as manifestações populares, buscando a formação de uma identidade e demaior auto-estima para os artistas e comunidade em geral. A autora parte da suaexperiência como docente, diretora e atriz, no campo das artes cênicas e visuais.

Palavras-chave: Artes cênicas – Manifestações culturais – Formação artística

ABSTRACTA JOURNEY OF LISTENING FROM EVERYWHERE, FEELING ORNOT FEELING YOUR OWN SIDE: reflections on our everyday artisticand cultural activities

The work reflects on the possible production of artistic and cultural manifestationat UNEB, considering four angles: the formal and informal transmission ofknowledge, the development of the scenic arts artists of Bahia, and the art’straining and creation oriented toward popular manifestations. It aims at theformation of identity and higher self-esteem for the artists and community as awhole. The author use her experience as a teacher, art director and actress inthe area of scenic and visual arts.

Keywords: Scenic arts – Cultural manifestations – Artistic formation

Este texto, eminentemente voltado paraquestões práticas, foi construído a partir de umacomunicação oral. Por ter sido exposto a umaplatéia, carrega a tessitura e a incompletude dacena “ao vivo”.1 Nasceu a partir de diversas

conversas com vários professores, funcionári-os e alunos da UNEB – e de fora dela – sobrea possibilidade da criação de um curso de Ar-tes na nossa universidade, e sobre a questãodas artes e da cultura dentro dela. O pensa-

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Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado: reflexões sobre o fazer artístico e ...

mento aqui se constrói sobre quatro pontuações,que se seguem logo abaixo, no próximo pará-grafo. A partir delas, dialogo com algumas ou-tras questões, como as formas diversas detransmissão, a formação do sujeito como artis-ta e cidadão e o mercado de trabalho para asartes dentro da sociedade.

O meu campo não é o da História da Edu-cação, nem o da Pedagogia formal. No entan-to, a questão da transmissão dos saberes,formais e informais, em ambientes diversos,em especial naqueles ambientes da cena, ocor-rendo num espaço teatral ou na rua, é centralno meu percurso acadêmico. Como me é caratambém a questão da formação do artista dasartes cênicas baianas e a transmissão dessesaber artístico. Seja este artista bailarino, mú-sico, dramaturgo ou ator. A terceira coisa queme interessa, e com ela labuto desde os 19 anosde idade, é a do treinamento e criação artísti-cos ligados à arte popular e à educação nãoformal, com pessoas ligadas às comunidades eàs manifestações culturais baianas. A quartaponta é construída a partir das três primeiras; éum desejo e um caminho, como todas as per-guntas são. Como construir um percurso ar-tístico e de transmissão para os artistaslocais que os torne artífices e gerenciado-res das suas próprias características cultu-rais, das suas festas e do seu cotidianoespecial?

A linha básica da minha vida profissional estáligada à Educação e às Artes, tendo sempretrabalhado nessas áreas de diversas formas.Tive, desde os cinco anos, uma formação artís-tica que incluiu música, dança e artes plásticas.A partir dos 19 anos me envolvi em teatro po-pular amador e de rua, quando também me ini-ciei como orientadora de trabalhos corporais eteatrais em associações e paróquias. Atueicomo atriz, desde então. Desta época são ostrabalhos feitos nos D.As e nos bairros popula-res, nunca mais abandonados. Esse tipo de ati-vidade me deu duas dimensões até hoje válidas:o compromisso com uma arte voltada para opovo e o popular, e um tipo de urgência e inten-sidade tanto na cena quanto no dia a dia, quebusco manter como princípio de vida. Priorita-

riamente atuando em instituições, pessoas egrupos ligados ao teatro para a comunidade oude fora dos muros da Escola de Teatro, traba-lhei ao lado de Antonio Gody e Geraldo Ara-gão, sob a indicação de Sergio Farias, comocoordenadora de Teatro no CECUP (Centro deEstudos e Cultura Popular), como coordenado-ra de pesquisa e atriz no projeto Teatro (Már-cio Meirelles, Ma. Eugenia Millet e ÂngelaFialho) e como atriz e assessora de peças efestivais da Casa Via Magia, dentre muitos ou-tros projetos.

Analisando minha trajetória, vejo que minhaprincipal motivação no trabalho artísticotem sido a compreensão dos seus proces-sos, com vistas à valorização do sujeito.Muitas outras iniciativas alimentaram, desdeentão, meu pensamento em ação sobre o fazerartístico enquanto baiana, um fazer artísticoconectado ao fazer cultural já existente na mi-nha terra. Essa motivação define minha atua-ção como pesquisadora, educadora e autora. Define também um olhar e um caminho me-todológico como pesquisadora, o que justificaminha narrativa de trajeto pessoal. A pesquisaem artes, feita a partir do artista-pesquisador,não pode prescindir do corpo e do olhar deste,criando seus próprios métodos e estratégias apartir desse lugar.

Nos últimos anos, tenho pensado no que se-ria um curso, ou melhor, um percurso de artesdentro da UNEB. Parto do referencial teóricodos estudos sobre o corpo, sobre a corporeida-de e os modos de uso do corpo (Marcel Mauss,Andrée Grau, Paulo Freire). Dos estudos so-bre voz e gesto vocal de Sara Lopes, dos ins-trumentos de Walter Smetack, da música paraa cena e dos sons dessa minha terra. Tenhotambém acompanhado as discussões sobre ocampo da Etnocenologia, criado a 10 anos, doqual me interessam principalmente as noçõesde espetacular e cotidiano e de estados psicofí-sicos como metodologia de trabalho do artistada cena, abordadas em especial os trabalhosde Armindo Bião, Jean-Marie Pradier e RafaelMandressi.

Voltando à UNEB, em 1995 pensei em criarum curso de artes cênicas, ou de cinema. Isso

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Isa Trigo

foi uma idéia inicial, que partilhei com a reitoriana época. Mas hoje não o faria com esta mes-ma ligeireza e vou dizer o porquê, mas não deimediato.

Trabalhando nesses anos todos com atores,dançarinos, músicos e professores das mais di-versas procedências dentro da área cultural daBahia, como atriz, bailarina, diretora e produto-ra cultural e também em outros estados e paí-ses, penso diferentemente agora. Um percursoem direção ao que é a cultura e as artes, espe-cialmente na UNEB, tem que ser pensado maisalém de um curso de graduação. Ela é um paísde diversidades, abrigando nos seus Campimuitíssimas coisas.

É preciso lembrar que a Bahia conta hojecom dois cursos de artes cênicas – um na UFBAe outro no ISBA; conta também com, pelo me-nos, dois cursos de Design e também de Moda,além do tradicional curso de Belas Artes daUFBA, que passa atualmente por uma refor-mulação curricular, ao que tudo indica, intensa,assim como o da Escola de Teatro da UFBA.Temos um mercado de trabalho que não absor-ve a mão-de-obra que sai. Essa mão-de-obraacaba indo dar aulas de arte, eventualmente sempreparo pedagógico, frustrada por não estar nospalcos, ou cumprindo o êxodo do Sul ou do es-trangeiro. Quanto à dança, como já falei, há aFundação Cultural, que serve a jovens desdeos 11 anos até 20, mais ou menos, habilitando-os para dançar e dar aulas, mas não em níveluniversitário, e a Escola de Dança da UFBA, amais antiga do Brasil, em pleno processo dereformulação curricular. Os jovens oriundos deambas as instituições em geral vão dar aulas narede pública secundária estadual, em academi-as ou viajam em excursões de ballet folclórico,fazendo eventualmente um espetáculo ou ou-tro, na melhor das hipóteses. Pensar cursos deartes é, portanto, pensar seu mercado, sua des-tinação, seu contexto atual.

Coloca-se a questão: o que é a UNEB hojeno panorama baiano das artes e da cultura? Oque é pensar as artes e a cultura dentro daUNEB? É propor cursos de graduação? Ou épensar a UNEB e seu entorno, suas vocaçõese as comunidades às quais serve ou deve ser-

vir? Que artista queremos formar? Que sujeito,que educador, que cidadão devemos formar?Como pode a arte contribuir para a vida baianae para a formação do indivíduo, artista ou não?

Proponho aqui pensarmos estas questõescambiantes a partir de três eixos de atenção.Esses eixos são os seguintes: o da transmis-são de saberes nos diversos contextos, o eixoda formação da identidade enquanto artis-ta e cidadão e o eixo de mercado de traba-lho na sociedade. Estão todos muito relacionadosuns com os outros. E, dentro destes eixos, ca-racterísticas tais como periodicidade do acon-tecimento artístico, como é encarado por partedos seus agentes e definições acerca de espe-tacularidade e teatralidade, cotidiano e extraor-dinário seriam pontos a destacar e a combinarentre os eixos.

Coloco aqui também minha posição: consi-dero que qualquer iniciativa de criação de cur-sos ou de política cultural dentro da UNEB devetomar como modelo de reflexão e de açãoo que as artes e as culturas populares den-tro daquela iniciativa já trouxerem. Querocom isso dizer que, ao pensar, por exemplo, napalavra teatro, termo ocidental europeu, pensoque ele não dá conta do que há aqui em Sauba-ra, ou em Cairu, ou num samba de roda, ou emoutros estados, por exemplo num Maracatu daZona da Mata, ou num Cavalo Marinho2 mani-festação popular em que há música, teatro, dan-ça e artes plásticas sendo construídos nasimultaneidade da manifestação, no tempo e noespaço.

Penso também que há uma deficiência decunho colonialista na formação do artista ditoprofissional a partir dos cursos formais em re-lação a aprofundar os saberes oriundos de nos-sas práticas, tais como a capoeira, o samba, asdanças, as lendas, os costumes, os saberes.Estes saberes, tão louvados de boca, são, naprática curricular, muitas vezes, desprezados

2 Manifestação cênica popular pernambucana. Consiste numaespécie de drama representado por vários personagens, de-nominados figuras, que dançam, cantam, falam e interagemcom a platéia. Nesta manifestação, que dura em média 10h,começando de tardinha e terminando de madrugada, hámúsica, encenação, dramaturgia, dança, máscaras, canto etradição popular.

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Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado: reflexões sobre o fazer artístico e ...

como menores do que outros, estrangeiros, oque se percebe na carga horária a eles destina-da, no lugar que ocupam no fluxograma e nasoutras atividades acadêmicas, na forma comoseus professores são tratados... Ao mesmo tem-po, o novo, o que vem de fora é indispensáveltambém. Não devemos ficar no nosso umbigo,todos sabemos disso. A questão é: como orga-nizar a transmissão mais ou menos sistemá-tica das artes sem incorrer nos velhos víciospedagógicos de uma escola formal e colo-nizadora e de uma atitude burocrática?

No âmbito do eixo de transmissão, me vêmà mente, pelo menos, dois tipos de transmissãotradicionalmente praticados, dois extremos di-dáticos, a partir dos quais muitas combinaçõessão possíveis e efetivamente ocorrem; o pri-meiro deles é o eixo da transmissão num largoperíodo de tempo, muitas vezes, iniciada natenra infância, multifacetada e eventualmentenão conscientizada pelos seus agentes; a esteeixo pertencem praticamente todas as tradiçõese manifestações culturais que aparecem sob aforma de festas mais ou menos institucionaliza-das e também outros saberes, tais como dan-ças rituais e religiosas afro-baianas, rodas desamba de fim de semana no bar ou na varandada casa familiar, aprendizados de Arrocha3 nasruas e bailes, pagodes4 e modismos diversos,sejam estes praticados pela juventude ou per-tençam a estruturas cênicas consideradas tra-dicionais, como o samba de roda, os ternos dereis, as festas estabelecidas e às cenas dentrodas festas. Uma imagem que ilustra isso mevem: num dia de sol, a da filha de um colega, dedois anos, dançando com seu pai, na festa deaniversário do sacerdote de uma casa tradicio-nal da tradição religiosa afro-descendente.

O outro modo de transmissão seria aqueleque ocorre dentro de escolas e institutos cria-dos para este fim. Escolas de arte, de dança,academias, universidade e escolas públicas, commais ou menos inserção dentro do currículoescolar, variando desde as academias de dançaparticulares, à Escola de Dança da FundaçãoCultural e a da UFBA, aos cursos livres de te-atro, pagos ou gratuitos. Quanto à música, estase dá através das aulas oferecidas à comunida-

de pela Escola de Música da UFBA, a EMUF-BA, e também pelos cursinhos particulares deinstrumentos ou escolas na cidade.

Há também todo um treinamento social,talvez o mais presente e invisível, mais ou me-nos informal, mais ou menos permanente, sen-do feito nos terreiros de Candomblé, nosbares da cidade, na farra; no próprio dia-a-dia baiano, pelos mais jovens – e tambémpelos mais velhos – que se encontra mais namodalidade de transmissão tradicional; e nis-so ele se mescla ao aprendizado dos jovensligados às aulas de dança afro e afins, comoa aeróbica que usa ritmos afro-baianos, asaulas de dança da Escola de Dança da Fun-dação Cultural; enfim, onde for necessárioum percussionista, haverá sempre uma redede meninos ao redor dos atabaques, que vão“pegando” os ritmos, na esperança de “ga-nharem uns trocados” com isso.

Observe-se aí que, dentro de uma escola,como é a da Fundação, por exemplo, vamosencontrar também a transmissão feita de ma-neira semelhante à tradicional, o que é interes-sante, pois é uma mixagem e se constitui numnicho adaptado de aprendizado, ainda que já comum outro tipo de preocupação, aparentementedidática, mas muito próxima daquela do Can-domblé, em que o sujeito vive imerso no ambi-ente sonoro, cinético e plástico e aprende, porassim dizer, por todos os lados, sem sentir.

Por todos os lados, sem sentir. Esta tam-bém é uma boa caracterização do cotidiano,daquilo que se faz todos os dias, do automático.O espetacular, em contrapartida – e também areflexão crítica – seria a possibilidade de seestranhar, de se desconhecer, de refletir, cor-poralmente, racionalmente, fisicamente. Estarum pouco de lado e poder se observar. Estaé a atitude que estamos tentando aqui. A atitu-de mais acadêmica, e paradoxalmente identifi-

3 Dança muito popularizada de alguns anos para cá em Sal-vador, misto de ritmos de guarânia e de samba. Em Recife,este mesmo estilo de música é chamado Brega.4 Tipo de música e dança oriunda dos sambas de quintal e deamigos, e mesmo chamado de pagode, que ocorre tanto noRecôncavo baiano quanto no Rio de Janeiro, ainda que comvariações.

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Isa Trigo

cada com o espetacular5 O treinamento insti-tucionalizado e mais formalizado tenta se darnesta segunda vertente. E como o espetacularé um conceito relacional, no sentido de que sãonecessárias as presenças tanto daquele que fazcomo daquele que vê, o que, para um, é espeta-cular, para outro, pode não ser. Para o turista, abaiana de acarajé é espetacular; a forma deandarmos na rua, de nos vestirmos e olharmosé inusitada, estranha e nova; espetacular, nestesentido. Para nós não, não percebemos nadadisso como espetacular. Talvez por isso não avalorizemos, apesar de ser tão original. Cegosde tanto vê-la.

Entro aí numa questão que desemboca emduas outras muito importantes: a identidade esua formação, o treinamento e sua visibiliza-ção. Ou seja: tudo indica que somos lindos, es-petaculares e imitados pelo mundo todo. E queusos fazemos de nós mesmos, em termos artís-ticos e espetaculares? O que ganhamos comisso? Creio que estes usos e criações depen-dem muito do quanto nos reconhecemos e doquanto utilizamos nosso próprio “material”, porassim dizer. Para isso, um treinamento é indis-pensável. Mas pode vir a ser também um veí-culo eficaz de alienação e inferiorização, comofoi e ainda é o balé clássico para muitos bailari-nos negros e pobres da cidade do Salvador.Então, o treinamento em artes cênicas pode vira ser um processo de espetacularização, deestranhamento, de reflexão viva e de liberta-ção. Pode ser também um processo de subor-dinação inconsciente a estéticas e a modos deuso do corpo estrangeiro, sempre muito maiseficazes do que um diálogo racional que, quan-do não conseguidos, levam a uma sensação deincompetência muito forte. De forma que umagrade curricular, uma escolha de práticas, linhase conteúdos pode ser – e vem sendo – umamaneira de reproduzir procedimentos e conteú-dos subordinantes, especialmente na área deartes. Ao educador artista, ao educador preo-cupado com as artes, cabe pensar e intervir.

Por isso, considero que a criação de umpercurso de aprendizagem artística, especial-mente se diz respeito às artes cênicas, nas quaisincluo a música, o teatro, a oralidade e a dança,

precisa ser pensado no contexto da cultura –ou das culturas – nas quais ele nasce. Isso sig-nifica que existem aprendizados, temáticas,modos de compreensão, métodos e conteúdosque precisam ser articulados ao meio local enele buscarem estratégias, e este meio tem queser ré-significado. Em outras palavras, espeta-cularizado, valorizado no que tem de interes-sante. Por exemplo, se vão ser aprendidos ospassos da dança de Iansã, que hoje são codifi-cados e muito difundidos de determinada ma-neira, é interessante conhecer como nasceramnos corpos dos mais velhos, por exemplo, e, aomesmo tempo, estudar o entorno destes pas-sos, suas implicações, suas mudanças, ver ondeeles reaparecem nas danças modernas... Nãoter preconceitos. Esta atitude pede um espaçofísico inexistente na UNEB para o um fazerpedagógico completamente diferente do queusualmente dispomos.

Deveremos enfatizar trilhas de criação, edefinir os objetivos de um percurso de aprendi-zagem a partir dessas vertentes. Percurso, maisque curso. Por isso, tenho hoje uma cautela quenão tinha anteriormente. Estou convencida deque a criação de uma graduação, pura e sim-plesmente, não adianta. Não sei se seria umagraduação, ou se seriam atividades, inicialmen-te no bairro do Cabula, de extensão, de criaçãode laços com as comunidades. Minha atitudehoje é escutar o mundo me dizer, de uma cer-ta forma. Criar o espaço propício e começar aarticular pessoas, grupos, trabalhos. Ver comoesses movimentos se desenham. Congregarpessoas que queiram pensar um percurso apartir do que temos de nosso. E, ao mesmo tem-po, não incorrer no erro de desprezar o que foicriado pela cultura alheia. Enfim, este é o mo-mento que vejo agora. De prospecção. De re-flexão e de contatos. Reconhecendo e limpandoo terreno.

O outro aspecto importante, a partir do re-ceber de todos os lados sem sentir é umaquestão que os mestres da tradição alegam.

5 Espetacular no sentido de sair de si, observar-se, criar suacena, estranhar-se, preparar e ampliar o que o outro vaiver, pensar-se. Seja na atividade cientifica, seja na cênica.

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Um percurso de escutar por todos os lados, sem sentir ou sentindo o seu próprio lado: reflexões sobre o fazer artístico e ...

Queixam-se que seus filhos não gostam do quefazem, não vêem graça em nada do que lhes éensinado e que os folguedos vão se extinguir.Compreende-se a sua angústia. Aqueles queseriam seus herdeiros, por terem sido “treina-dos” desde pequenos, muitas vezes talentosos,não se interessam pela arte do pai ou da mãe,pelo menos pelo modo como ela se apresenta.A questão não é mudar a cabeça do filho nema cabeça do pai. A questão é entender as ques-tões, pois todas elas estão imbricadas, se a pro-posta é criar uma “ensenanza”, como se dizem espanhol, um ensino-aprendizado, que cor-responda ao aprendizado das nossas competên-cias artísticas únicas. Há, então, uma transmis-são sendo feita; é preciso entender como e porquê ela funcionou e continua funcionando as-sim, e que elementos podem ser recriados eaproveitados numa situação mais formal ou in-tensa de aprendizagem.

Enfim, por que os herdeiros não se interes-sam pelo tradicional? E como fazer os jovenscompreenderem e ao mesmo tempo encontra-rem o que é novo e estranho dentro do que co-nhecem? Como poder aproveitar o que têm?Fazer como os estrangeiros, que usam o queabsorvem aqui e depois nos mostram o que usa-ram de nós...Temos que poder fazer melhor,diferente. Fazermo-nos. Pensarmo-nos.

A questão tem dois lados. Porque, muitasvezes, quando os jovens estão na tradição, co-meçando a se interessar por ela, e em algummomento dão uma sugestão, enfim, tentamconstruir a ponte entre o mundo contemporâ-neo e a manifestação, são barrados, de umaforma ou outra, por seus mestres, que, muitasvezes, acumulam o papel de pais e mestres. Adidática é sem palavras, normalmente. Um gestode cabeça, um ritmo, uma batida no instrumen-to, um olhar... E tudo se estabelece.

Cito o exemplo de um encontro. Novembrode 2005, Chã de Camará, Maracatu Estrela deOuro. Nesse encontro, estavam presentes osMestres do Maracatu, dos Caboclinhos e doCavalo Marinho. Discutiam quem poderia fa-zer o quê dentro de um possível espetáculo “con-densado”, destinado a viajar para o exterior. Emcerto momento, alguns citaram um dos meni-

nos que toca no Banco6 e no Coco7 , como al-guém que poderia ir no Cavalo Marinho. Eles,sem falar, eliminaram a possibilidade de o me-nino ser treinado para o Cavalo Marinho. Porquê? Não sei. Apenas vi a cara do menino. Tudose passou em poucos segundos, no silêncio dasdecisões corporais. O quanto isso motivou oudesmotivou este jovem? Ele não teve voz. De-veria ter?

Acredito que se deva buscar, sempre e an-tes de tudo, que as artes sejam formas de liber-tar as pessoas. No caso das artes cênicas e dotreinamento e transmissão em artes, que é aminha área, considero que a conscientização –ou melhor – a nossa reflexão espetacularizadasobre nós mesmos – pode lançar uma luz sobrenossos processos de individuação e de sociali-zação – e que estes processos, se forem poten-cializados por percursos educativos eficazes edelicados, podem ser verdadeiras vias expres-sas de desenvolvimento para nós.

Falemos do mercado. O que é isso? É apossibilidade – maior ou menor – de se susten-tar fazendo Arte ou ensinando Arte depois deconcluído um curso. Mas é mais que isso. Osujeito que não consegue se sustentar financei-ramente com o seu oficio pode sentir que, porisso, não é um artista ou um educador. E isso,em parte, é verdade, pois o tempo necessáriopara se dedicar ao trabalho precisa ser subsidi-ado financeiramente, senão o sujeito não temcomo se manter enquanto profissional. A pres-são social também colabora para essa compre-ensão. Mas num lugar onde não há públicoconsumidor de artes, pela própria pobreza ge-neralizada da população, como deve ser enca-rado este parâmetro? Ao mesmo tempo, hámercados e mercados. Há o mercado dos ba-res, dos restaurantes, dos shows folclóricos. Háo mercado – rarefeito – dos filmes – há o mer-cado – também rarefeito – das produções sub-sidiadas pelo Estado, o grande pagador e ogrande definidor – queira-se ou não – do rumo

6 O Banco é o conjunto musical do Cavalo Marinho. Édenominado assim porque consiste mesmo num banco demadeira, onde os músicos se sentam para começar a função.7 Coco. Manifestação musical e de dança e canto nordestina.

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Isa Trigo

cultural da terra. Há o mercado, para os arte-educadores, das escolas, dos cursos.

É preciso ver o que o mercado hoje aponta.E pensar a articulação com o estrangeiro e como turismo, por exemplo, que mobiliza um con-tingente nada desprezível de artistas pobressaindo e sonhando com o além mar. Há umêxodo e um sonho de sair e fazer a vida fora dopaís, do estado. Este imaginário está semprepresente na mente do artista. Há a televisãotambém. São estéticas e treinamentos diversos.E neste momento, os mercados se especializam.Mesmo que o samba de roda seja visto comoum espetáculo complexo e completo, ele é pri-oritariamente divulgado como música, e vendi-do em cds, de maneira mais ou menos

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Recebido em 28.02.06Aprovado em 17.03.06

abrangente. Enfim, no reino das artes, há for-matos e formatos. O que é hoje uma exposiçãode quadros? E uma instalação com vídeos?Quem consome, quem paga, para quem serve?

Estou certa de que novos horizontes pedemnovas estratégias e a derrubada de preconcei-tos. E por isso reafirmo: sou a princípio reticen-te quanto à criação de mais um curso de ArtesCênicas na cidade, principalmente se ele nãotiver um formato voltado para o popular, tantoem termos dos seus conteúdos quanto em ter-mos das suas dinâmicas e metodologias. É pre-ciso primeiro escutar este corpo coletivo falar.E apenas depois seguir o que ele indica, crian-do mecanismos institucionais que não esma-guem a criação e a arte dentro cada um de nós.

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ESTUDOSESTUDOSESTUDOSESTUDOSESTUDOS

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Maria de Lourdes S. Ornellas

FALA E ESCUTA DE PROFESSORES EM SALA DE AULA

Maria de Lourdes S. Ornellas *

* Dra. em Psicologia da Educação. Professora de Psicologia na Universidade do Estado da Bahia – UNEB e Psicana-lista. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Mestrado em Educação eContemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOFala e escuta de professores, na sala de aula, encontram-se ancoradas naminha experiência profissional como professora e psicanalista e compreendidaspor meio de saberes que as sustentam. Nesse sentido, uma pergunta emerge:que lugar e posição teriam as representações sociais de professores sobre falae escuta em sala de aula e como os suportes psicanalíticos permitiriamcompreender essas representações? Compreender o lugar e a posição queteriam as representações sociais de professores sobre fala e escrita significadefinir os seguintes objetivos deste estudo: a) analisar a fala e a escuta deprofessores, em sala de aula, compreendidas pelo campo das representaçõessociais; b) compreender diferentes sentidos que a fala e a escuta revelam emsala de aula, com base no referencial teórico da psicanálise. As categoriasdescritivas e teórico-interpretativas foram construídas a partir das entrevistase das observações, quando foram registrados os comportamentos verbais dosprofessores em três momentos da aula: recepção de chegada, durante a aula econclusão da aula. A pesquisa mostrou que a fala e a escuta de professoresem sala de aula estão ancoradas em representações de sedução, relaçãotransferencial, ambivalência, repressão e frustração. Essas representações,ao serem observadas mereceram atenção, desvelando, assim, os sentidos dafala e escuta em classe.

Palavras-chave: Representação social – Psicanálise – Professor – Fala –Escuta

ABSTRACT

SPEAKING WITH TEACHERS AND LISTENING TO THEM IN THECLASSROOM

As a teacher an psychoanalyst, I can understand what happens while speakingwith teachers and listening to them in the classroom with the help of theknowledge sustaining discourses. In this sense, a question surges: in whichplace and position would take place the teachers’ social representations aboutdiscourses and listening within the classroom and how psychoanalysis mayhelp to understand those representations. To understand the place and positionmeans to define this paper’s objectives: 1- analyse teachers’ discourses withinthe social representations framework, 2- understand various meanings revealed

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Fala e escuta de professores em sala de aula

through classroom discourses within a psychoanalytical framework. Descriptiveand interpretative categories were constructed through interviews and fieldworkobservations done at three different times: when students come by, during theclass and at the end of the class. Our research shows that teachers discoursesare based upon representation of seduction, transfer, ambivalence, repressionand frustration.

Keywords: Social representation – Psychoanalysis – Teacher – Discourse– Listening

Revelando a instância da letraNão fales as palavras dos homens.Palavras com vida humana.Que nascem, que crescem, que morrem.Faz a tua palavra perfeita.Dize somente coisas eternas.Vive em todos os temposPela tua voz.Lê o que o ouvido nunca esquece.Repete-te para sempre.Em todos os corações.Em todos os mundos.(Cecília Meireles, Cântico, 2001)

Escrever é uma tarefa não conclusa, que seimpõe tanto ao autor como ao leitor, e faz partedesse movimento a evidência de que, ao escre-ver, teremos um sentimento de estarmos sendoolhados por um possível leitor, indagando cadaletra até o seu próprio silêncio.

Colocar no papel os significados da fala eda escuta no processo de conhecimento signifi-ca também não ter dúvidas sobre os fios imagi-nários que circulam entre os dois elos e, assim,tenta-se, neste escrito, amarrar e desatar os fiosdo material teórico a ser tecido.

O ato de escrever é muito parecido com o ato deamor. Há o prazer do momento, o enlevo da expe-riência em si mesma. Mas, para quem deseja há aesperança de que o amor se transforme em se-mente e vire gravidez. Coisa escrita num papelsão sementes: ganham vida própria, ficam autô-nomas, desligam-se da intenção original do au-tor e passam a fazer coisas que nunca foramimaginadas. (Alves, 1995, p.192)

Nesse sentido, pode-se pensar que a fala ea escuta constituem uma via para que o ensino-aprendizagem se transforme em possibilidades

da cadeia discursiva entre professor e aluno.Este artigo, que no início era apenas uma idéia,foi, em seguida, ampliado e traduzido em umdiscurso destinado a mais de UM. É um estudosobre algo pouco explorado: o professor ensinaatravés da sua fala e da sua escuta.

Assim afirma Barthes: “... há uma idade emque se ensina o que se sabe; mas vem em se-guida outro, em que se ensina o que não sabe(...) (1978, p.47). Nesse enfoque tentei escre-ver e articular o objeto de pesquisa com a in-tenção de ensaiar algum recorte que possaconstituir um tecido mais consistente sobre areferida temática. Por detrás da folha em bran-co, há o leitor que pode ser comparado com opsicanalista – aquele que faz uso do divã. As-sociam-se a resistência da matéria na folha embranco, a resistência do interlocutor e o silêncioque, muitas vezes, fala mais que as palavras.Esse suporte, que é a folha de papel, sofreumudanças ao longo da história: passou pela pa-rede rochosa, pela areia, chegou ao pergami-nho, encontrou o papiro, demandou as paredesda casa paterna e, na contemporaneidade, ges-tou a tela e o teclado do computador.

Escrever é o começo do começo. Para en-gatar a sério uma conversa é preciso, comoquem nada quer, puxar por ela. Depois, assuntopuxa assunto, conversa traz conversa e, nestemovimento, escrever suscita leituras que susci-ta o reescrever.

Pode-se afirmar que este escrever é uma obses-são, é quase paixão. Escrever uma tese supõe terum título, um objeto, um problema, elaborar ca-tegorias, tecer costuras teóricas e viver com esteato amoroso uma boa parte do dia. Em seguidadormir com estas idéias, acordar e começar denovo. (MARQUES, 1997, p. 10)

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Maria de Lourdes S. Ornellas

Faz-se necessário pontuar a escrita. Escre-ver, deletar, apagar e reescrever. Pontuar a es-crita é fazer como os passarinhos a beber água;bico no pote e bico para cima, a contemplar odesfile das nuvens. O apoio bibliográfico é im-prescindível, ajuda a sair dos impasses. Tam-bém é importante a interlocução com os autoresdas obras mediante as citações, o que pode le-var os leitores a ampliar suas leituras e refle-xões e avaliar minhas ousadias interpretativas.

O valor das nossas pesquisas está direta-mente sintonizado com a qualidade das leiturasfeitas. Refiro-me não somente às leituras doslivros, mas à leitura de si, do outro, do mundo,bem como as conversas filosóficas e ideológi-cas com os nossos companheiros.

Freud associava o escrever ao fluir de umlíquido de dentro de nós, similar à simbolizaçãode um coito. Ernest Jones, seguidor de Freud,dizia: “... existe um vínculo interior entre o fatode urinar e o de escrever, e, certamente issonão acontece somente comigo.” (apud MAR-QUES, 1995, p. 133)

Não se pode perder de vista que escrever égestar uma interlocução de muitas vozes. Unspensam, refletem, outros criticam e tantos ou-tros silenciam ou tentam contribuir com suasindagações, registrando, assim, suas impressõesde nossas incertezas, titubeios e descaminhos.Nenhum pesquisador pode dispensar presençasassim, nem que sejam para espantar os demô-nios da solidão ou a tentação do monólogo con-sigo mesmo.

Quando comecei a escrever, as idéias nãoestavam claras. Em seguida, foram ganhandocontornos porque a todo instante o virtual leitorvinha à baila. O texto escrito é um ponto demediação entre o autor e o leitor. Cabe ao au-tor dar conteúdos e forma legível ao texto e, aoleitor não apenas assimilar a mensagem escri-ta, mas decodificá-la e transcendê-la. Pensan-do sobre o escrevente, Sartre diz:

... uma idéia mágica da palavra que nos faz escre-ver por escrever; inventam-se palavras, formam-se conjuntos de palavras, faz uma palavra comose faz um castelo de areia quando se é criança,pelo gosto de o fazer, não para o mostrar; ouentão, se o mostramos, os leitores são em todo

caso inessenciais, exatamente como o são ospais a quem o garoto diz: “vejam como eu fiz umlindo castelo de areia,” e a quem os pais respon-dem: “mas como é bonito este castelo de areia!”Não sem certa decepção, esbate-se depois essecaráter mágico da palavra que tem uma históriadentro da história da língua e uma relação histó-rica com o escrevente. (SARTRE, 1970, p. 76-80)

Escrever este artigo é, assim, demandar umenquadramento singular de desejos. O título estásimbolizado e ancorado na minha estrutura sub-jetiva e teorizado por meio dos saberes que asustentam. A teoria se constrói através da pes-quisa, ensina o mestre Florestan Fernandes(1978).

Gostaria que a fala e a escuta que aqui setrançarão fossem semelhantes às idas e vindasde uma criança que brinca em volta da mãe,dela se afasta e depois volta, para trazer-lheum brinquedo, um objeto, desenhando assim,neste espaço, um movimento lúdico, no qual obrinquedo e o objeto importam finalmente me-nos do que os olhares que deles se faz, porque:

... na hora em que os outros dormem, está eleinclinado sobre a mesa, lançando sobre uma fo-lha de papel o mesmo olhar que há pouco lança-va sobre as coisas... E as coisas renascem sobreo papel, naturais e mais que naturais, belas emais que belas, singulares e dotadas de uma vidaentusiasta como a vida do autor. (BAUDELAI-RE, 1993, p.226)

O ato de escrever é disseminado de senti-dos e precisa ser exercido graciosamente, nãotem ponto de partida nem ponto de chegada,mas circula produzindo significados e significan-tes. É por isso que na escrita o sujeito se tece ese engendra. Precipitar este artigo é convidar oleitor a uma constante busca de sentidos.

Partindo desse pressuposto, as tentativas deaproximação de possíveis representações soci-ais sobre fala e escuta de professores em salade aula foram realizadas neste estudo, median-te um instrumento de pesquisa que privilegiou odiscurso oral, seja por meio de observações re-alizadas em classe, seja por meio de entrevis-tas. Para a construção teórica, percorri ospassos da representação social que, de mãosdadas com a psicanálise, justificam os esforços

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Fala e escuta de professores em sala de aula

de pedir a estas duas concepções teóricas querevelem algo do que têm a dizer sobre este ob-jeto. Neste sentido, uma pergunta emerge: quelugar e posição teriam as representações soci-ais do professores sobre fala e escuta em salade aula e como os suportes psicanalíticos per-mitiram compreender estas representações so-ciais?

Compreender o lugar e posição que teriamas representações sociais do professor sobrefala e escuta em sala de aula significa definiros objetivos deste estudo:

♦ analisar a fala e a escuta de professoresem sala de aula, compreendidas pelocampo das representações sociais;

♦ compreender diferentes significados esignificantes que a fala e a escuta reve-lam em sala de aula, a partir do referencialda psicanálise.

A demanda feita neste escrito busca fazeremergir um encontro das representações soci-ais de professores sobre fala e escuta, com afinalidade de pensar como estas se lançam nasala de aula. Isto significa percorrer um cami-nho para conhecer o discurso do professor, ana-lisá-lo e encontrar significados e significantesque carrega, na busca de condições necessári-as para também entender o eco.

Escutar professores parece abrir uma portasingular para se chegar “às vitrines” e olhar oque brilha e o que embaça, os contornos e osentornos, as cores frias e quentes, as formasvisíveis e invisíveis de sua própria representa-ção social.

Representação social e psicanáli-se: um laço possível?

A representação social é um conhecimentodo senso comum e é formada em razão do co-tidiano do sujeito. É uma abordagem que seencontra hoje no centro de um debate interdis-ciplinar, na medida em que se tenta nomear,fazer relações entre as construções simbólicascom a realidade social e dirige seu olhar epistê-mico para entender como esta realidade cons-

trói a leitura dos símbolos presentes no nossocotidiano.

Por representações sociais, entendemos um con-junto de conceitos, proposições e explicaçõesna vida cotidiana no curso de comunicação in-terpessoais. Elas são o equivalente, em nossasociedade, aos mitos e sistemas de crenças dassociedades tradicionais, podem também ser vis-tas como a versão contemporânea do senso co-mum. (MOSCOVICI, 1978, p. 181)

Os estudos desenvolvidos no campo das re-presentações sociais, nos últimos trinta anos,consequentemente, reportam-se ao conceitotrabalhado por Moscovici (1978) e tomam comoreferência o estudo: La psychanalyse, sonimage et son public. A obra aponta para a di-ficuldade de conceituar as representações so-ciais, admitindo que, se por um lado o fenômenoé passível de observação e de identificação, poroutro, o conceito, pela sua complexibilidade,requer um tempo de maturação para que a de-finição seja construída de modo consciente.

Allport usa uma metáfora para historiar aorigem da representação social e sugere umaunidade orgânica entre a flor e a raiz:

Tanto a flor como suas raízes são européias, eexiste uma similaridade na forma entre a flor (umaforma sociológica de psicologia social) e a se-mente da qual ela nasceu (isto é, a sociologia).No caso da psicologia social, a semente e o sologerminaram, provieram de continentes diferen-tes (Europa e América do Norte) e de diferentesdisciplinas acadêmicas (sociologia e psicologia).(ALLPORT, apud ARRUDA, 1998, p.31-32)

Essa metáfora, além de sinalizar a origem,pontua os terrenos demarcados pela represen-tação social.Trata-se de um conceito germina-do nesta complexibilidade, no entanto não éapenas a soma das contribuições, é a constru-ção de algo novo, pretendendo observar umfenômeno básico da realidade cotidiana.

Fortalecendo a argumentação de Moscovi-ci (1978), Ibanez (1988) sinaliza duas justifica-tivas para essas complexibilidades conceituais:a primeira, refere-se ao fato de ser a represen-tação social um conceito híbrido, não perten-cendo a uma única área do conhecimento, vistoque sua origem vincula-se tanto à sociologia

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Maria de Lourdes S. Ornellas

quanto à psicologia – o que leva a concluir quea representação social é um conceito psicosso-cial. A outra justificativa deriva da primeira, poiscomo os conceitos aglutinados de outras áreassão mais restritos, uma vez que tratam basica-mente de objetos e não de fenômenos, consti-tuem-se em relação ao próprio conceito derepresentação social, os mais operativos.

Estas peculiaridades transformam o conceito derepresentação social em um conceito-chave queaponta mais para um conjunto de fenômenos eprocessos do que para objetos claramente dife-renciados ou até mecanismos precisamente de-finidos. Mas talvez a própria natureza dosfenômenos, aos quais o conceito de representa-ção social faz referência, requer um grau de com-plexibilidade conceitual e uma flexibilidadedificilmente compatível com critérios estritamenteoperativos. Assim, o tipo de realidade social parao qual o conceito de representação social apon-ta está imbricado por um conjunto de elementosde natureza diversa: processos cognitivos, in-serções sociais, fatores afetivos, sistema de va-lores... (SIC) que devem ter lugar simultaneamenteno instrumento conceitual utilizado para eluci-dá-lo. (IBANEZ, 1988, p.32)

Vale pontuar que a dificuldade na constru-ção da conceituação não lhe retira o mérito deser hoje um conceito fundamental na psicologiasocial. A representação recebe a nomeação desocial justamente porque é uma modalidade deconhecimento particular, que tem por funçãocompreender comportamentos e estabelecer acomunicação entre sujeitos. Esse conhecimen-to se nutre das ciências que, por sua vez, é apro-priada pelos sujeitos pertencentes a determina-dos grupos.

A representação, portanto, é compartilhadae elaborada por um determinado grupo, já quesua construção ocorre na relação dos sujeitosentre si e com os objetos. Nesse processo, des-constrói-se uma realidade que é única, especí-fica, mas que é compartilhada pela comunicaçãode sujeitos em interação com o outro. Não hárepresentação social sem objeto e sem sujeitosocial, coletivo no individual, pertencente a umdeterminado grupo.

Pode-se dizer que a representação social,ao estudar a ação humana, expressa uma es-

pécie de saber prático de como os sujeitos sen-tem, assimilam, aprendem e interpretam o mun-do, inseridos no seu cotidiano, sendo, portanto,produzidos coletivamente na prática da socie-dade e no decorrer da comunicação entre ossujeitos. “As representações sociais devem serestudadas articulando elementos afetivos, men-tais e sociais e integrando, ao lado da cogniçãoda linguagem e da comunicação, as relaçõessociais que afetam as representações e a reali-dade material social e ideal sobre as quais elasintervirão”. (JODELET, 2001, p. 41)

É possível pontuar que esse conhecimentotem uma base cognitiva e afetiva e, portanto,não constitui categoria bipolar, podendo, dessemodo, afirmar que as representações sociais nãosão saberes articulados apenas ao cognitivo, masse tecem, de forma dinamiza, em um processohistórico, que envolve tanto racionalidade quantoafetividade emotividade.

Pesquisadores da área de Educação, e tam-bém fora dela, mostram-se preocupados emintegrar aspectos afetivos e simbólicos na elu-cidação e análise das representações sociais,concebendo que na atividade representativa oobjeto deixa de existir como tal, para se con-verter num equivalente dos objetos aos quaisfoi vinculado como uma contingência psicosso-cial. Moscovici pensa representação associadaàs experiências subjetivas do sujeito, expressasna comunicação social simultaneamente comoum produto e um processo: “... a atividade re-presentativa constitui, portanto, um processopsíquico que permite tornar familiar e presenteem nosso universo interior, um objeto que estádistante e, de certo modo, ausente...” (MOS-COVICI, 1978, p.28)

No papel de sujeitos cognitivos, afetivos esociais, produzem e comunicam aos seus pa-res, incessantemente, suas próprias represen-tações, designadas tanto por conteúdosconscientes como por processos inconscientes.

... identificar a natureza complexa das represen-tações sociais implica, inevitavelmente estabe-lecer um intercâmbio entre intersubjetividades eo coletivo, na combinação de um saber que nãose dá apenas por processos cognitivos, mas quecontém aspetos inconscientes emocionais, afe-

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Fala e escuta de professores em sala de aula

tivos, tanto na produção como na reproduçãodas representações sociais. (LANE, 1993, p. 61)

Na última década, o estudo das representa-ções sociais tem espaço garantido na educa-ção e de modo específico na Psicologia daEducação. Observa-se hoje um número cadavez maior de pesquisas nessa área, o que podecontribuir para a construção de um novo olharno que se refere aos processos educativos esubjetivos que interagem na sala de aula. Nes-se sentido, Sousa nos diz:

No final da década de 1980 e início dos anos 90,as investigações nas áreas de educação passa-ram a exigir construções teóricas que concilias-sem pontos de vista do autor individual e doautor social e de perspectiva micro e macro. Énesse contexto que a “descoberta” da teoria dasrepresentações sociais, pelos educadores, sur-ge como uma das possibilidades teóricas rele-vantes da área da Psicologia, possibilitando acompreensão de um sujeito sócio-historicamen-te situado e, ao mesmo tempo, formando condi-ções para a análise de dinâmicas subjetivas(SOUSA, 2002, p.286)

A área de educação constitui um campo fértilpara a investigação da teoria das representa-ções sociais. Gilly acrescenta (1984, p. 364):

... o campo educativo aparece como um campoprivilegiado para verificar como se constroem,evoluem e transformam as representações soci-ais no interior dos grupos sociais, e esclarecesobre o papel dessas construções nas relaçõesdesses grupos com o objeto de sua representa-ção. A representação como conjunto organiza-do de significações sociais permite na nova viapara explicação dos mecanismos por meio dosquais fatores propriamente sociais agem sobre oprocesso educativo e influenciam resultados.

O estudo de Gilly (1994) sobre as represen-tações sociais no campo educacional, ao pro-duzir uma revisão de literatura, conclui que sãopoucos os estudos sobre representações soci-ais tanto na área da Educação quanto na áreada Psicologia da Educação. O autor tambémidentifica que os poucos estudos existentes nãopossuem o aporte teórico-metodológico das re-presentações sociais, uma vez que apenas es-tudam alguns aspectos das representaçõessociais ou, quando muito, esboçam fatores para

explicar resultados que nem sempre podem seridentificados como representação social.

Aspectos afetivos e emocionais constituem-se de processos subjetivos que emergem no in-terior da sala de aula e é possível que apsicanálise possa dar conta na produção e re-produção das representações sociais.

Freud acalentava um sonho de que a psica-nálise pudesse um dia vir a contribuir com asociedade como um todo e, especialmente, coma educação; acompanhava os movimentos so-ciais e sempre estimulava que a psicanálisepudesse estender-se a outras áreas do conhe-cimento. A partir daí, a psicanálise, ainda quesutilmente, ousou adentrar os muros da escola.

A psicanálise, por sua vez, não tem receitassobre o que deve ser feito na escola, mas refle-te sobre o que tem sido feito, visto que podecontribuir na escuta do discurso do professor edo aluno. Articular psicanálise e educação é umgrande desafio, e o fato de a psicanálise se ofe-recer como um importante fundante do instru-mento da escuta é o que possibilita, muitas vezes,contribuir para a leitura do mal-estar vivido peloprofessor no contexto educativo. “O mal-estarna escola tem diversas faces para serem olha-das e pensadas: é como se olhássemos um cubo,que tem seis faces, como sabemos, mas só po-demos, de um determinado lugar, ver três fa-ces, é necessário que nos desloquemos para quevejamos todas as faces.” (OUTEIRAL; CER-ZER, 2003. p.1)

Não restam dúvidas de que a psicanálisepode transmitir ao educador uma ética, um modode ver e de entender a prática educativa. É umsaber que pode gestar, dependendo, naturalmen-te, das possibilidades subjetivas de cada educa-dor, um lugar, uma posição, uma filosofia detrabalho que aponte para o desvelar dessa des-conhecida rede de relações circulando numainstituição escolar. A queixa do professor é de-sejar ser escutado e não vislumbrar a possibili-dade de decifrar o que e por que tal fato ocorre.

Nesse sentido, Kupfer acrescenta: “Antes,o professor parecia saber o que falava ao sujei-to. Hoje, pensa falar com um objeto; e se de-sespera porque não consegue ensinar nada paraeste suposto objeto.” (2000, p.121).

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Ora, a psicanálise é uma das áreas do co-nhecimento responsável pelo resgate do sujei-to. Essa constatação é escutada nos maisvariados planos.

Disto se encontram resquícios no discurso pseu-do-humanitário sustentado por muitos educa-dores, cuja bandeira é despertar o ser humanoque há em todos nós e que confunde a “tentati-va de atribuição de um lugar para o sujeito nodiscurso” com liberação da subjetividade e comlaissez-faire. E está presente também na pers-pectiva de resgate de um sujeito que faz oposi-ção à objetivação do mundo do consumo, quediz não à transformação do aluno em mercado-ria, não à banalização pela inteligência emocio-nal – banalização que nivela, acachapa, o que nosujeito é espesso, enigmático, dividido, não re-petido, não em série. (KUPFER, 2000, p. 228)

Pela escuta cuidadosa dos sintomas presen-tes no mal-estar na sala de aula, por parte doprofessor, é que penso que algumas fronteirassão possíveis entre psicanálise e educação, poisé preciso escutar o ambiente transferencial desala de aula, lugar onde acontece o ato educa-tivo. Nesse ambiente em que ocorre a escutada relação professor-aluno, visto como um cam-po de condutas humanas que se configura soba nomeação de disciplina ou (in) disciplina es-colar, constituindo, na atualidade, uma das pre-ocupações mais emergentes do professor.

Nos dias atuais, quando o professor se diri-ge para a sala de aula, questiona-se sobre comoadministrar a dispersão, a falta de atenção e deinteresse pelas atividades desenvolvidas emclasse. Diante desse mal-estar no ambienteescolar, a escuta pedagógica pode abrir um ca-nal de comunicação, porque o instrumento des-sa escuta envolve não só o sentido do ouvir,mas o de fazer uma leitura subjetiva do discur-so, apresentado pelo sujeito escutante.

Em relação a esse pensamento, Cerezer eOiteiral complementam:

A escuta de uma fala ou de um discurso é o quenos possibilita uma leitura subjetiva daquilo queestá sendo expressado. A fala tece e a palavraocupa um lugar estratégico na relação profes-sor-aluno: logo, o sistema de categorias quemodela o mundo do falante é essencial para queo sujeito filtre informações das situações quevivencia. (2003, p.60)

Por este caminho, em que a escuta é vistaessencialmente como instrumento de trabalhodo professor e neste sentido Kupfer diz:

Uma leitura que inclua o discurso social que cir-cula em torno do educativo e do escolar (...) esta-rá produzindo um inflexão na ação do psicanalistae o levará a uma prática que não coincida maiscom a clínica psicanalista “ortodoxa”, pois ele teráde se movimentar o suficiente para ouvir pais eescola. Isso amplia o campo de ação do psicana-lista, que passa a incluir a instituição escola comolugar de escuta (2000, p. 34)

Se a psicanálise pode contribuir, de algumaforma, com o campo de educação, terá de apon-tar para a necessidade de uma postura reflexi-va sobre a tarefa de escutar, que supõe umareconstrução a ser feita pelo professor junto aosalunos. Escutar é dar sentido ao mundo quecerca o aluno. Ao escutar os ditos e os nãoditos, produz-se e amplia-se o mundo das coi-sas, dá-se uma versão própria que é a réplica enão uma repetição.

A escuta das vozes e das situações é, naverdade, um diálogo dentro de nós mesmos comas muitas vozes que nos constituíram e nos cons-tituem. Escutar e falar fazem parte do proces-so educativo, porém, este binômio na escolaparece ter pesos diferentes entre os atores.

Esse mundo desejante, que habita diferen-temente em cada sujeito, estará sempre pre-servado cada vez que um professor renuncieao controle e aos efeitos de seu poder sobre oaluno. Matar o mestre – para falar, escutar etornar o mestre de si mesmo – é uma lição queprecisa ser ressignificada.

Se por um lado, Freud foi, de fato, um anti-pedagogo, por várias razões, foi também ummestre da educação. Seu jeito peculiar de fa-zer teoria revelou a singular relação que tinhacom o auto de pensar, falar e escutar. Freudpensou com a mente e com o desejo e, talvezpor isso, a fala e a escuta tenham ocupado umlugar singular no seu modo de educar.

A psicanálise já encerra em si mesma fatores re-volucionários suficientes para garantir que todoaquele que nela se educou jamais tomará em suavida posterior o partido da reação e da repres-são. Penso até mesmo que as crianças revoluci-

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Fala e escuta de professores em sala de aula

onárias não são desejáveis, sob nenhum aspec-to. (FREUD, 1976, v. 22, p. 348)

As conexões da psicanálise e educação pre-cisam ser ainda estabelecidas. Talvez, desde já,a psicanálise possa possibilitar à educação umoutro olhar, não narcísico, não tão etnocêntrico,mas um olhar em que o professor se coloqueno lugar daquele que investiga, daquele quequestiona o saber fechado, previamente estru-turado do aluno.

Em meio a toda impossibilidade de se casara psicanálise com a educação, é certo que am-bas começam a se olhar. Nesse caso, estãoabertas portas para que o saber da representa-ção social tome lugar entre esses dois saberes,mostrando ao leitor o que podemos ver por de-trás dele, sem, contudo, conduzi-lo para dentro,porque educar, segundo Freud, parece ser mes-mo uma tarefa difícil.

Após discorrer sobre as relações entre psi-canálise e educação, faz-se pertinente encontrarum ritmo, um compasso entre representação so-cial e psicanálise. Nesse sentido, Kaes diz:

A psicanálise é ela própria, objeto de represen-tação social. De fato, foi em relação a ela que S.Moscovici (1960) definiu o próprio conceito derepresentação social e seu método de estudo.(...) É pouco provável que os dois objetos coin-cidam, pois se constituem de projetos, episte-mológicos diferentes e práticos diferentes; masé possível que ligações pouco evidentes se des-velem (apud JODELET, 2001 p. 67-68)

Por esta via, é possível tentar percorrer umatrilha demarcando que tanto a representaçãosocial quanto a psicanálise foram e são influen-ciadas pela cultura. E nesse contexto, a repre-sentação social e a psicanálise são convidadasa comparecer neste estudo, entendendo queambas as áreas engendram-se no desfiladeiroda cultura. A palavra cultura pode ser entendiacomo:

O resultado de tudo o que o homem produz paraconstruir sua existência. No sentido amplo, an-tropológico, cultura é tudo o que o homem faz,seja material ou espiritual, seja pensamento ouação. A cultura exprime as variadas formas pelasquais os homens estabelecem relações entre si ecom a natureza. ... (ARANHA, 1996, p. 14-15)

Desse modo, pode-se resgatar que a repre-sentação social e a psicanálise estão presentesde mil maneiras na cultura e na vida cotidiana.Ambas as concepções são em si mesmas umaparte da cultura contemporânea, tanto no planocientífico-filosófico, quanto no efeito que essasposições teóricas têm sobre os costumes, asidéias, o senso comum e a própria civilização.

A problemática da cultura constitui, tantopara a teoria das representações sociais quan-to para a psicanálise, um espaço em que as for-mações culturais apresentam os mesmoselementos e estruturas fundamentais que vãoengendrar a vida cotidiana do sujeito, sua co-municação, opinião, atitude, etc. Portanto, am-bas as teorias se tecem e se aproximam do tecidosocial e contribuem para um sistema de inter-pretação da realidade.

Pela trilha da cultura é que se faz possívelmapear pontos em que a representação sociale a psicanálise se engendram no contexto dasala de aula. Sabemos o quanto a sala de aula éprodutora de cultura, de relação e comunica-ção e, por sua vez, é um espaço de construçãodas representações sociais.

Pode-se afirmar que tanto a psicanálise con-tribui com a educação, para desvelar os aspec-tos afetivos do desenvolvimento, quanto a teoriadas representações sociais reconhece igualmen-te a importância dos aspectos afetivos.

A escola é um espaço onde a construçãodas relações afetivas acontece, e ao mesmotempo, é onde acontece a fala e a escuta. Umafala, se bem elaborada, pode ser escutada, tro-cada e analisada na prosa da sala de aula, naprosa da relação. E nesse lugar se encontramos dois sujeitos: o professor e o aluno. Ambosos sujeitos são portadores de uma fala, de umaescuta e das representações que os sustentam.

Logo, pode-se dizer que a representaçãosocial de professores (sujeito) sobre fala e es-cuta (objeto) constitui um leque de possibilida-des para que se perceba um novo olhar sobre asala de aula, no que se refere à relação profes-sor aluno.

Vale pontuar que o campo das representa-ções sociais e da psicanálise encontra-se nocentro de um debate interdisciplinar, na medida

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em que se tenta nomear, fazer relações entreas construções simbólicas com a realidade so-cial e dirige seu campo epistêmico para enten-der como esta realidade constrói a leitura dossímbolos presentes no cotidiano que move cadasujeito à ação. Na condição de pesquisadora,pergunto: não seria essa capacidade de dar umanova forma às coisas pela atividade psíquicaque constitui uma representação social?

A fala é costurada a partir de um emara-nhado de representações sociais que servemde trama articulada nas esferas das relaçõessociais, ou seja, pela sua própria relação dialéti-ca com a cultura e a realidade. Escutar a fala eexercitar a escuta exige, ao mesmo tempo, osentido das representações sociais que elasapresentam.

Kaes (2001), ao pensar sobre representa-ção social numa vertente psicanalítica, elaboraa hipótese de que a representação é um traba-lho de lembranças daquilo que está ausente, queestá em falta. Logo, a representação tanto quan-to a psicanálise indicam uma ausência, se for-mam como traço e reprodução de um objetoperdido.

A representação social do professor sobrefala e escuta em sala de aula, de que trata esteartigo, busca superar dualismos, estabelecerinterfaces com outros campos do saber, paradizer o que não pode ser dito internamente, masque ainda insiste em dizer, representação e psi-canálise não constituem ambigüidades, pareceque algo evidente se desvela, mistura-se numasintonia de tons e formas, e expressa o desejode colocar o homem para realizar a tarefa queo mestre ensinou. “Assim como o planeta giraem torno de um corpo central enquanto rodaem torno do seu próprio eixo, assim também oindivíduo humano participa do curso do desen-volvimento da humanidade, ao mesmo tempoem que persegue o seu próprio caminho davida.” (FREUD, 1976, p.163)

Representação e psicanálise são como aimagem do tecelão: alguns fios aprecem parti-dos, outros estão unidos desenhando em seutrajeto uma peça necessariamente interminá-vel. Então, posso suspirar mais aliviada ante oesforço feito para encontrar na cultura um ca-

minho por meio do qual representação social epsicanálise se encontram, mesmo sabendo quea incerteza atormenta o laço possível.

Trilhas e atalhosA partir da delimitação do problema, o con-

texto escolhido para a coleta de dados foi umaescola pública do Ensino Médio, situada emSalvador-Bahia. Os sujeitos que colaboraramcom a realização deste estudo pertencem auma classe do ensino médio, de ambos os se-xos, encontrando-se na faixa etária de 16 a 19anos. A classe serviu de palco para que sepudesse proceder à observação dos professo-res. Optou-se por escutar, mediante observa-ção e entrevista, quatro professores durantecem dias. Em seguida foi estabelecido que aaula seria observada com base em três mo-mentos distintos: recepção de chegada, durantea aula e conclusão da aula. Com relação aotempo, esses momentos foram assim divididos:recepção de chegada (dez minutos), durante aaula (trinta minutos) e conclusão da aula (dezminutos).

Os registros de cada um desses momentosforam reorganizados em categorias descritivas,o que permitiu uma primeira leitura dos dadose, em seguida, as categorias teórico-interpreta-tivas foram também construídas, quando sebuscou o referencial da teoria psicanalítica, oque contribuiu para o processo da análise.

Com relação às categorias teórico-interpre-tativas das observações do momento de recep-ção de chegada, observou-se que a seduçãose fez presente, a relação transferencial mos-trou-se durante a aula, enquanto que, no mo-mento de conclusão da aula, destacou-se arepressão e a reatualização da sedução. Ascategorias teórico-interpretativas das entrevis-tas foram agrupadas em: ambivalência e frus-tração.

Trilhas e atalhos são nomeações do que cha-mamos de método, este não constitui normaautônoma, mas deve subordinar-se a uma cons-trução teórica no sentido de captar o objeto nasua especificidade, no seu ágalma.

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Fala e escuta de professores em sala de aula

Ajustes e AchadosPretende-se, neste momento, restituir o dis-

curso dos professores em sala de aula, na me-dida em que cada fala, com suas ausências epresenças, parece ter produzido uma nova des-coberta a partir das representações desveladasneste estudo. Fala não tem um único sentido. Afala tem sempre um mais além atrás do que dizum discurso, há o que ele quer dizer e, atrás doque quer dizer, há ainda um certo dizer.

... esta palavra alienada coloca o alente à escutado que não sabia ter dito nem “pretendia” dizer;pode-se resistir à palavra interpretante, seja ne-gando a sua identidade – “não foi o que eu dis-se”, seja negando sua alteridade – “foi exata-mente o que eu queria dizer”; a fala integrantenão bastou de compreender mais profundamen-te o que foi dito, mas, apenas de deixar ouvir oque a fala disse. A fala fala e nela o homem resi-de. (FIGUEIREDO, 1994, p. 128-129)

Fazer uma experiência com a fala é, da mes-ma forma, deixar-se atravessar por ela, acolhê-la no seu poder mais próprio, ou seja, na suaalteridade. Fazer uma experiência com a fala épreciso: “Por conseqüente, libertar a palavra paraseu outro dizer, para seu dizer outro, isto implicaem deixar que a fala fale e, mesmo quando aspalavras brotem da minha boca, colocar-me àescuta”. (FIGUEIREDO, 1994, p. 122).

Considerando o objeto deste estudo e que afala é uma das formas que permite ao sujeito ex-pressar sua subjetividade, sua singularidade e suasrepresentações sociais, fiz a opção pela análisede discurso como técnica de análise dos dados,uma vez que tal escolha me permitiria captar con-cepções, valores, atitudes e até mesmo contradi-ções na fala dos sujeitos da pesquisa.

Vale dizer que a categorização dos dadosfoi organizada à medida que surgiram conteú-dos latentes e manifestos nas falas. Em segui-da, foram interpretados à luz das teorias expli-cativas deste estudo, tomando como referência,as falas que emergiram das observações emclasse e das entrevistas dos professores, sem,no entanto, perder de vista que coube ao pes-quisador uma constante ida e volta ao materialde coleta.

A letra falada e a letra escrita, contidas nasobservações e entrevistas dos sujeitos dessaanálise, foram submetidas à análise de discur-so. Cabe lembrar que o que está dito, escrito éo ponto de partida: a análise e interpretação é oprocesso a ser seguido e a contextualização é opano de fundo que pode assegurar relevância.

Para analisar a fala dos professores, foi pre-ciso saber ouvir, sentir os tons, pausas, ritmos,de preferência, sem pressa, para que as falastomassem forma e o imaginário se encarre-gasse de captar o belo. A fala é como o dese-nho, composto de um conjunto de linhas econtornos, em que o falante representa, traça,projeta e manifesta o que sente e também oque não sente.

Assim posto, os ajustes e os achados a par-tir da fala dos professores produziram sentidose me deixaram confortável para armar o “que-bra-cabeça”, pedir licença ao leitor para tradu-zir a imagem o discurso e, desse modo, permitirque a mensagem fizesse eco.

Nesse caminho, analisaram-se as represen-tações sociais de professores sobre fala e es-cuta em sala de aula, compreendendo osdiferentes significados e significantes destasrepresentações com base no referencial teóri-co da psicanálise.

A pesquisa mostrou que a fala e a escritade professores em sala de aula estão ancora-das em representações de sedução, relaçãotransferencial, ambivalência, repressão efrustração, observadas nos momentos de re-cepção de chegada, durante a aula e de con-clusão da aula.

A sedução foi observada no momento derecepção de chegada e se reatualiza na rela-ção pedagógica porque, dada a assimetria exis-tente entre professor e aluno, remete àpolaridade inicial entre um que quer saber, sa-ber-suposto, saber do professor – e um que nãosabe e quer saber, o aluno.

A relação pedagógica entre um que detémo saber – o professor e o outro que quer saber– o aluno, reproduz a relação originária que é aprópria relação de sedução: o aluno atualizaconflitos edipianos na sala de aula, onde a auto-ridade cindida do professor personifica o co-

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nhecimento, ocupando o lugar superegóico dalei e da ordem – da onipotência das figuras pa-rentais introjetadas.

As falas a seguir ilustram o processo de se-dução em sala de aula:

Bom dia, meus amores, acalmem-se, vocês estãoagitados...

Vamos, meus queridos amigos, vamos entrandoe sentando...

Cada um olhe para mim e para dentro de si e sepergunte: como estou em relação aos ensina-mentos da professora?

Quando o professor emite essas falas, re-vela representações sociais, ancoradas na se-dução; observa-se que ele as utiliza para,possivelmente, manter a disciplina e sua autori-dade em sala de aula, bem como para reafir-mar sua posição de mediador do processoensino-aprendizagem, reforçando, desta manei-ra, no aluno, a busca do conhecimento.

O processo de sedução na relação pedagógicafundamenta-se na vinculação erótica à autorida-de professoral – atualização do vínculo originalpré-edipiano de identificação. Pode-se auxiliarou obstaculizar o processo educativo do aluno,obstaculiza-o quando o professor assume con-tratransferencialmente o lugar da autoridade pri-mordial, colocando-se no lugar da lei e da ordeme no lugar do conhecimento. Ao assumir esselugar, não cumpre sua função de mediador, poiso aluno fica vinculado a ele e não ao saber. (MOR-GADO, 1995, p. 35)

É preciso salientar, no entanto, que tais re-presentações sociais, ancoradas na sedução,podem dificultar o ato educativo, quando o pro-fessor também encarna o lugar da autoridadeprimordial, e, nessa possibilidade, pode deixarde assumir a função de mediador da aprendiza-gem, para estabelecer com o aluno vínculosapenas afetivos, não os transferindo para o pro-cesso de conhecimento.

Assim sendo, o professor precisaria inves-tir-se de sua autoridade pedagógica para neu-tralizar a autoridade primordial. Rompendo ofascínio sedutor que essa autoridade exercesobre ele e sobre o aluno, criará condiçõespara que a relação pedagógica centre-se noconhecimento.

Observou-se que, no momento nomeado dedurante a aula, as representações sociais anco-radas na relação transferencial se presentifica-ram, e a relação professor-aluno estabeleceu-sea partir da transferência do aluno e da contra-transferência do professor.

Pode-se pontuar que Freud (1900) estavacerto, ao afirmar que o aluno transfere ao pro-fessor, de uma maneira singular, algo da rela-ção entre pai e mãe, transfere também um saberque ele não tem e, assim, para estabelecer essarelação, o professor deve oferecer-se comodetentor do saber que lhe é suposto na transfe-rência.

Observemos uma fala entre aluno e professor:

Aluno: Prozinha, venha cá me tirar essa dúvida,a senhora sabe, venha pró, sente aqui.

Professor: Sei alguma coisa, um dia você chega lá.

Aluno: Pró, você está elegante...

Professor: Que bom saber disso.

Aluno: Pró, me ensine esse exercício.

Professor: Que ajuda você precisa?

Nessas falas, pode-se constatar que o alunoreconhece o saber do professor e este faz sem-blante, isto é, parece evidenciar que sabe e éessa a singular contribuição que a relaçãotransferencial pode oferecer para a educação,que o aluno, diante da sua castração (não sa-ber), possa encontrar no saber do professor umcaminho para seu processo de crescimento,considerando que o sujeito procura no outro osaber sobre aquilo que lhe falta. Na relação como analista, o sujeito busca o saber sobre aquiloque lhe falta, na relação com o professor naescola, o aluno supõe no professor o saber so-bre seus estudos, projetos, medos e desejos. Emsuma, é a falta que leva o aluno a transferir eesta tem como princípio constitutivo o sujeitosuposto saber (Sss) 1 .

Freud chega a afirmar que a relação transferenci-al está presente também na relação professor-aluno. Para ele, trata-se de um fenômeno quepermeia qualquer relação humana. Ë isso o que

1 Lacan utiliza esta nomeação para explicar que o sujeito(paciente) atribui um saber ao analista. (1993, p.87)

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Fala e escuta de professores em sala de aula

nos autoriza a substituir a expressão “relaçãoanalista – paciente” pela expressa “relação pro-fessor-aluno”. (KUPFER, 2001, p.88)

As representações ancoradas na relaçãotransferencial foram reveladoras de que a ên-fase dada às relações professor-aluno não es-tavam apenas no valor dos conteúdos transmi-tidos, mas sobretudo nas relações afetivas e desaber estabelecidas entre estes atores e é nes-se momento que a fala do professor ganha for-ça, passando, com isso, a ser escutada.

Observou-se que, no momento de conclu-são da aula, as representações sociais ancora-das na repressão se fizeram presentes. Nessesentido, dizem os professores.

A maioria de vocês não entregou o trabalho, otrabalho, me aguardem! Vocês vão ver o que vaiacontecer com vocês daqui pra frente!

Apenas cinco alunos apresentaram o trabalho eos demais não fizeram. Vou solicitar uma reuniãode pais para apertar a corda de vocês.

Hoje está sendo o último dia de discurso, agoraeu vou agir.

Estas falas, possivelmente, têm a intençãode barrar comportamentos indesejáveis apre-sentados pelo aluno no que se refere às tarefasescolares. Constitui-se de um dispositivo quemuitas vezes o professor utiliza para tentarmodelar o comportamento do aluno. Chema-ma, falando de repressão diz: “Qualquer impul-so, fora da consciência, de um conteúdorepresentado como desprazeroso ou inaceitá-vel; ação do aparelho psíquico sobre o afeto”(1995, p. 192)

Vale salientar que essas representações, sim-bolizadas nas falas do professor, são carrega-das de conteúdos repressivos para modificar aconduta da classe. O professor parece quererque os alunos aprendam a emitir um comporta-mento que possa se aproximar de maior disci-plina e responsabilidade com vistas a atingir seusobjetivos pedagógicos.

Nas entrevistas realizadas, a fala dos pro-fessores foi submetida ao mesmo processo decategorização que indicou duas categorias teó-rico-interpretativas: ambivalência e frustração.A ambivalência presente nos discursos dos pro-

fessores revela a coexistência de tendênciasafetivas opostas em relação a uma mesma si-tuação. As falas dos professores ilustram estaoposição:

Não sei o que é melhor, ser professora da redeparticular ou ensinar na rede pública. Essa pro-fissão é mesmo difícil.

Meus alunos em sala de aula são normais. Al-guns alunos apresentam dificuldades, problemasde comportamento também. É normal, agora comcertas restrições...

Eles não estão querendo mais ouvir. Não ou-vem. Estão só querendo conversar, brincar. Nãosei se é o sistema mesmo de ensino que estádecadente, mas acho que, particularmente, esseé o melhor ensino que ainda existe.

São falas ambivalentes que pontuam os con-flitos de sala de aula, onde o movimento demelhor/pior; saber/não saber, estão presentes eexpressos em meio a dois sentimentos opostos.Neste contexto, Kaufmann diz: ”O mais fre-qüente e o mais dramático são essas publica-ções duplas serem próprias de representaçõesde pessoas que o sujeito teme, ou ama ao mes-mo tempo.” (1996, p. 25-26)

Essa ambivalência, muitas vezes, é apresen-tada com certo mal-estar e denota a dificulda-de que o professor tem enfrentado em lidar como novo, com o diferente em sala de aula. Supe-rar este mal-estar implica que o professor nocotidiano da sala de aula pense o sentido sim-bólico da ambivalência na relação pedagógicae possa construir representações que forneçamo encontro da escuta desses discursos, com vis-tas a entender as marcas do desejo que circu-lam entre professor e aluno.

Frustração foi também uma categoria quese evidenciou nas entrevistas dos professores.As falas a seguir são ilustrativas dessa repre-sentação:

Sinto-me por baixo quando me esforço para en-sinar e vejo os resultados estão abaixo da média.

O nível do aluno está cada vez mais baixo. Oaluno está cada dia mais chegando à sala de aulamais despreparado.

O pior de tudo são as conversas paralelas. Euacho que quando há conversas paralelas é por-

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Maria de Lourdes S. Ornellas

que aquilo que se está ensinando não está inte-ressante para o aluno.

Pode-se dizer que a frustração é um estadodo sujeito que se acha impossibilitado de obtero objeto de prazer que almeja. Nesse sentido,frustração é compreendida como “denominan-do qualquer impossibilidade do sujeito se apro-priar daquilo que deseja.” (CHEMAMA, 1995,p. 88).

Os discursos dos professores são revelado-res do quanto o professor expressa o desejo dealgo que lhe falta: os resultados desfavoráveispodem ser entendidos como a insatisfação doprofessor devido à recusa do aluno em atenderuma exigência libidinal.

É possível afirmar que as falas dos profes-sores são marcadas de representações quedesvelam sentimentos frustrados que implicamfalta, ou seja, falta algo, há um obstáculo queprecisa ser revisto. É possível dizer que a falados professores participantes da pesquisa épermeada de frustração porque seus objetivosdisciplinadores e pedagógicos não foram al-cançados. Uma insatisfação bordeja seu tra-balho pedagógico, denuncia a não escuta doaluno, o professor, por isso, busca encontrar oobjeto perdido...

Pode-se pensar que essas representaçõessociais emergiram porque se revelam em ato.Este ato foi conduzido pelo pesquisador queno olhar, percepção e escuta, tentou fotogra-far algumas imagens, mesmo que tênues, daescuta da fala do professor em sala de aula,uma vez que revelaram, ainda que inconscien-temente, ser ele mesmo o sujeito da falta, su-jeito do desejo.

Em alguns momentos da observação e daentrevista, pude perceber que havia por partedos professores um movimento de transmitir.Mostraram algo mais do que comunicar a in-formação, evidenciaram o desejo de escutar oaluno, mas é possível pensar que a escuta rea-lizada tenha sido um trabalho feito pelas bor-das, na medida em que não se registrou partici-pação da classe, o que ficou registrado foi umavoz apenas – a do professor – que tentou anun-ciar uma mensagem ainda que difusa, mensa-gem de falas que não foram (des)cobertas.

Diante dos passos construídos, a minha ar-gumentação é de que a fala e a escuta de pro-fessores em sala de aula vão além da transmis-são de conteúdos, mas se revestem desubjetividades em que afetos, emoções, cren-ças, valores, contradições e representaçõespermeiam seu discurso. O professor é possui-dor da sua cultura e da sua história, desenvolverelação consigo mesmo, com o outro e com omundo, e essas dimensões estão (entre) laça-das na sala de aula.

Estes achados, sem dúvida, representam umavanço no conhecimento sobre a temática, namedida em que apontam alguns elementos es-senciais das representações da fala e escutade professores em sala de aula. No entanto, aomesmo tempo, tornam cada vez mais precisa anecessidade de transpor o nível de constata-ção, seja do que se passa no cotidiano da salade aula, seja do que ocorre no imaginário doprofessor e do aluno. Faz-se necessário refletircomo e por que essas falas e escutas são cons-truídas e ressignificadas.

Constituímos, como educadores, nossas pró-prias representações e, em razão delas, orien-tamos nossas atividades e as impomos ao aluno,na suposição de que sabemos o que é melhorpara ele.

Conhecer as representações sociais dos pro-fessores constituiu-se uma boa trilha para aju-dar a ajustar com maior visibilidade o quanto afala e a escuta em sala de aula podem contri-buir na eficácia do projeto pedagógico da esco-la. Este estudo pode contribuir para a educaçãona medida em que permite elaborar um novoproblema: o que o professor acha que o alunofala e escuta? Talvez seja uma outra porta quepoderá ser aberta com vistas a dar passagempara outros achados na busca de também darvoz e ouvido ao aluno.

Pode-se também arrematar que os profes-sores envolvidos neste estudo exercitaram, emcerta medida, a transmissão; os trabalhos depreenchimento da falta foram estruturantes parao ensaio das representações sociais pela via deancorar sua fala e escuta em sala de aula. Estapesquisa não esgota aqui e agora, por isso elanão se conclui de quase todo, mas exige outras

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Fala e escuta de professores em sala de aula

etapas processuais num ato em que o movimentode fala e escuta canaliza a interlocução do su-posto saber.

Como todo investimento libidinal, parece-meque o debate não está suspenso, há arquivosincandescentes a serem achados, ajustados,arremates a serem feitos, uma vez que me cons-tituo no lugar do sujeito da falta. Confesso que

gostaria de continuar escrevendo sobre essatemática, uma vez que o escrever exige sem-pre recomeçar. Mas, talvez esta escrita nãoacabasse, não tivesse medida e, possivelmente,seria uma simples repetição. Como remédio ouaté como “receita”, prefiro tentar tirar algunsvéus e, quem sabe, troco a repetição por umato de criação. E começo de novo...

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Recebido em 22.07.04Aprovado em 04.04.05

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Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher

A CONCEPÇÃO DE CONHECIMENTO PROFISSIONALE SUA AQUISIÇÃO POR PROFESSORES DO ENSINO MÉDIO

Herivelto Moreira 1

Guiomara Ribas 2

Elza Rumiko W. Soavinsky 3

Raimundo Fortes 4

Maria do Carmo Wiese 5

Ethel Fisher 6

1 Doutor em Educação, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da UniversidadeTecnológica Federal do Paraná. Endereço para correspondência: Rua Gastão Câmara, 559 – 80730-300 Curitiba/PR.E-mail:2 Mestre em Tecnologia e Professora de Pedagogia do UNIEXP.3 Mestre em Tecnologia e Professora da Faculdade OPET.4 Mestre em Tecnologia e Professor da Rede Pública do Estado do Paraná.5 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná.6 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná.

RESUMOO objetivo do presente artigo foi identificar a concepção de conhecimentoprofissional de professores do Ensino Médio de sete escolas públicas domunicípio de Curitiba. A abordagem metodológica foi a pesquisa qualitativa denatureza interpretativa. A técnica de coleta de dados foi a entrevista individualsemi-estruturada. Os participantes do estudo foram 30 professores, homens emulheres, de diferentes disciplinas, em diferentes estágios na carreiraprofissional. A amostra foi intencional. As entrevistas foram gravadas etranscritas literalmente. Os principais resultados mostraram que os professoresparticipantes deste estudo, na sua grande maioria, concebem o conhecimentocomo uma busca constante, a somatória de experiências adquiridas com aprática do dia-a-dia e o domínio do conteúdo de suas disciplinas.Palavras-chave: Formação em serviço − Conhecimento do professor −Repertório de conhecimentos − apropriação do conhecimento.

ABSTRACTTHE CONCEPTION OF PROFESSIONAL KNOWLEDGE AND ITSACQUISITION BY HIGH SCHOOL TEACHERS

The objective of the present article was to identify the conception of knowledgeof high school teachers from seven public schools located in Curitiba. Themethodological approach was qualitative of interpretative nature. The techniqueused to collect data was the semi-structured individual interview. The participants

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A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio

of the study were 30 teachers of different subject matter, career stages andsex. The sample was intentional. The interviews were recorded and transcribedliterally. The main results showed that for the vast majority of the teachers,knowledge is a constant search, the sum of acquired experiences in every daypractice and the domain of the content of their subject matters.

Keywords: In service training – Teacher’s knowledge – Knowledge base –Knowledge appropriation

INTRODUÇÃO7

Uma característica distinta de qualquer pro-fissão é o corpo de conhecimentos necessáriospara praticar essa profissão. Os profissionaisde qualquer área são chamados a prestar ser-viços porque possuem um entendimento únicoe uma visão crítica em relação a uma situaçãoque é inacessível ao leigo.

Para o professor, esse corpo de conhecimen-tos, também chamado de repertório de conhe-cimentos, reflete o alcance e a riqueza doconhecimento profissional necessário para queele exerça o seu trabalho nas escolas.

O repertório de conhecimento que os do-centes precisam ter para exercer a profissão émuito discutido na literatura de pesquisa na áreada formação inicial e da formação continuadade professores. Essa discussão se concentrana natureza desse conhecimento e na extensãopela qual os pesquisadores são capazes de en-tender o que os professores sabem.

Vários rótulos têm sido utilizados na litera-tura de pesquisa, principalmente na literaturainternacional, sobre o conhecimento do profes-sor, cada um indicando um aspecto relevantedesse conhecimento. Os rótulos ilustram prin-cipalmente o aspecto que é considerado o maisimportante pelos respectivos autores. Juntos,esses rótulos dão uma visão da maneira pelaqual o conhecimento do professor tem sido es-tudado até agora.

Os rótulos mais comuns são: “conhecimen-to pessoal”, indicando que esse conhecimentoé único; “a sabedoria da prática”, e, em publi-cações mais recentes, “conhecimento profissi-onal artesanal”, referindo-se a um componenteespecífico do conhecimento que é principalmen-

te o produto da experiência prática do profes-sor; “conhecimento orientado pela prática”, in-dicando que esse conhecimento é para o usoimediato na prática do professor; “conhecimentorelacionado com o conteúdo e o contexto”, co-nhecimento que é em grande extensão tácito eo conhecimento que é baseado na reflexão so-bre as experiências.

No Brasil, as pesquisas nessa área surgema partir de 1990, com a marca da produção in-telectual internacional (TARDIF, NÓVOA,GAUTHIER, SHULMAN, GOODSON, entreoutros) e influenciaram a busca de novos cami-nhos na pesquisa sobre formação inicial e con-tinuada de professores.

Apesar de toda a contribuição da literaturade pesquisa, esse tema é ainda carente de es-tudos empíricos, pois faltam estudos que nospermitam entender melhor como os professo-res concebem e adquirem os conhecimentosnecessários para desenvolver a prática peda-gógica. Nesse sentido, o objetivo deste artigo éidentificar a concepção de conhecimento deprofessores do Ensino Médio de sete escolaspúblicas do município de Curitiba.

REVISÃO DA LITERATURAHá certa tendência observada na literatura

internacional (GAUTHIER et, al, 1998; NÓ-VOA, 1992; PERRENOUD, 2001; 2002; TAR-DIF, 2000; SHULMAN, 1986; ZEICHNER,1993; 1998) e na literatura nacional (FIOREN-

7 O presente estudo é resultado do Projeto de Pesquisa “Aapropriação e o uso do conhecimento pelo professor”,apoiado pelo CNPq, processo 30530/2002-9.

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Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher

TINI et al., 1998; LÜDKE, 1996; 2001; PI-MENTA, 1996; 1999; SILVA, 1997; THERRI-EN, 1995, dentre outros) de redirecionar osestudos sobre a prática e os conhecimentos pro-fissionais dos professores que até pouco tempoobjetivava a capacitação destes, por intermé-dio da transmissão do conhecimento de umamaneira prescritiva, a fim de que aprendessema atuar eficazmente na sala de aula, para umaabordagem de analisar a prática que esse pro-fessor vem desenvolvendo, enfatizando a temá-tica do conhecimento docente.

Segundo Lüdke (2001), direta ou indireta-mente esse tema tem sido tratado por autoresconhecidos no Brasil, como Perrenoud, Antô-nio Nóvoa, Kenneth Zeichner e Donald Schönainda que, acompanhando análises voltadas paraoutras questões específicas, como as compe-tências ou a identidade do professor (PERRE-NOUD, 1993; NÓVOA, 1992; 1995), oprofessor-reflexivo (SCHÖN, 1995) ou, ainda,a questão do professor-pesquisador (ZEICH-NER, 1993; 1998).

Segundo Nunes (2001), os estudos sobre oconhecimento e a formação dos professores nãosão inéditos no Brasil, já que, de certa forma,vinham sendo desenvolvidos por meio da dis-cussão de temas como a prática docente, o pro-cesso ensino-aprendizagem, a relação teoria-prática no cotidiano escolar, etc., num contextodiferenciado, onde a escola era tida como localprivilegiado para a transmissão do conhecimen-to pelo professor, que, supostamente, detinhatodo o conhecimento a ser repassado ao aluno.

Nunes (2001) apresenta uma análise decomo e quando a questão dos saberes docen-tes aparece nas pesquisas brasileiras sobre for-mação de professores.

Da valorização quase exclusiva do conheci-mento (saberes específicos) que o professor ti-nha sobre a sua disciplina, característica dadécada de 1960, passa-se, na década de 1970,à valorização dos aspectos didático-metodoló-gicos relacionados às tecnologias de ensino,passando para um segundo plano o domínio dosconteúdos. Nos anos de 1980, o discurso edu-cacional é dominado pela dimensão sócio-polí-tica e ideológica da prática pedagógica. Já os

anos de 1990 foram marcados pela busca denovos enfoques e paradigmas para a compre-ensão da prática docente e dos saberes dos pro-fessores. Essa discussão foi introduzida em 1991,por um artigo de M. Tardif, C. Lessard e L.Lahaye, publicado na Revista Teoria e Educa-ção. Na literatura nacional, é possível destacarvários estudos nessa área, os quais passaremosa apresentar em seguida.

O estudo conduzido por Pimenta (1996) comalunos de licenciatura teve como objetivo re-pensar a formação inicial e continuada a partirda análise das práticas pedagógicas. A autoraidentificou três tipos de saberes da docência: a)o saber da experiência, b) o saber do conheci-mento e c) os saberes pedagógicos. Ela sugereque a fragmentação entre esses três tipos desaberes seja superada, considerando a práticasocial como objetivo central para possibilitarassim uma re-significação dos saberes na for-mação dos professores.

Partindo da relação teoria/prática, Fiorenti-ni et al. (1998) procurou identificar e caracteri-zar os saberes docentes e como esses saberespoderiam ser apropriados/produzidos pelos pro-fessores por meio de uma prática reflexiva einvestigativa. Sua principal conclusão é que aarticulação da teoria com a prática poderá con-tribuir na formação do professor/pesquisador deforma contínua e coletiva, utilizando a práticapedagógica como instância de problematização,significação e exploração dos conteúdos de for-mação teórica.

Guarnieri (1997) desenvolveu um estudosobre a atuação de professores iniciantes, apartir da idéia de que a profissão vai sendo cons-truída à medida que o professor articula o co-nhecimento teórico-acadêmico, a cultura escolare a reflexão sobre a prática.

Ainda, a respeito do assunto, Silva (1997)conduziu uma pesquisa com professores pormeio de entrevistas que revelou a existência deum conhecimento profissional que vai sendoconstruído ao longo da carreira e Therrien(1995) enfatizou que nos estudos sobre a for-mação de professores ainda persiste uma dis-sociação entre a formação e a prática cotidiana,não enfatizando a questão dos saberes que são

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A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio

mobilizados na prática, ou seja, os saberes daexperiência. Ele considerou que a pluralidadede saberes (curriculares, disciplinares, e de for-mação profissional) que envolve os saberes daexperiência é tida como central na competên-cia profissional e é oriunda do trabalho cotidia-no do professor.

Borges (1996) conduziu um estudo com pro-fessores de Educação Física para analisar comoeles construíam os seus saberes docentes. Con-centrou a investigação na trajetória profissionalde dois professores a partir da análise de suaformação e prática pedagógica. Concluiu quetanto as experiências esportivas, acadêmicas eprofissionais contribuem na gênese dos sabe-res que os professores de Educação Físicamobilizam no cotidiano escolar.

Caldeira (1995) buscou investigar os sabe-res implícitos construídos e apropriados peloprofessor em sua prática durante sua trajetóriaprofissional e pessoal. Partindo da suposição deque o docente se apropria e produz saberes naatividade escolar, procurou descrever e anali-sar a prática docente de uma professora doEnsino Fundamental e a reconstrução do pro-cesso de constituição do seu saber. A autora,baseada no estudo de Tardif et al. (1991), con-sidera os diversos tipos de saberes (das disci-plinas, curriculares, profissionais e da experi-ência) como integrantes da prática docente,sendo que a diferença estaria na relação doprofessor com cada um deles.

Todos esses estudos procuram, de certamaneira, enfatizar o conhecimento da experi-ência do professor, mas usar o rótulo “conheci-mento do professor” ou “conhecimento práticodo professor” ou “conhecimento da experiên-cia” como um conceito abrangente para as cog-nições do professor significa incluir formastácitas de conhecimento.

Muito embora o conhecimento da experiên-cia esteja recebendo mais e mais atenção naliteratura recente e alguns autores dão boas vin-das a essa progressiva atenção como uma pos-sível resposta a dúvidas sobre o profissionalismodo professor, é muito importante basear os jul-gamentos sobre os estudos do conhecimento doprofessor no exame preciso do que é o estudo

e não nos rótulos usados. Isso não altera o fatode que parece ser muito difícil compreender oscomponentes tácitos e intuitivos das cogniçõesdo professor na pesquisa sobre o seu conheci-mento, o que torna as iniciativas de desenvolvi-mento de teorias e de pesquisas nessa áreamuito importante.

O conhecimento do professor, derivado daexperiência pessoal significa que o conhecimen-to não é alguma coisa objetiva e independentepara ser aprendido e transmitido, mas ao con-trário, é a soma total das suas experiências.

Eraut (1994) enfatizou que é necessáriomuito mais pesquisas nessa área para entendermelhor o processo pelo qual os professores ad-quirem e integram os conhecimentos de dife-rentes fontes no modelo conceitual que orientasuas ações na prática. E, é claro, os professo-res podem diferir enormemente no grau peloqual utilizam o conhecimento teórico em seuconhecimento prático.

No entanto, ao investigar o conhecimentodo professor, o principal foco de atenção deve-rá ser na complexidade da totalidade das cog-nições, nas maneiras como isso se desenvolvee na maneira como isso interage com o com-portamento do professor na sala de aula. Oconhecimento e as crenças são vistos como in-separáveis, embora as crenças sejam vistas, demodo geral, como se referindo a valores pesso-ais, atitudes e ideologias e o conhecimento àsproposições mais factuais do professor (VER-LOOP; VAN DRIEL; MEIJER, 2001).

É importante observar que o repertório deconhecimentos que o professor detém afetacada aspecto do ato de ensinar. Ele afeta a re-lação professor/aluno, a interpretação do pro-fessor da sua disciplina e a sua importância navida dos alunos; como os professores trabalhamcom os livros textos recomendados; o planeja-mento curricular, a avaliação dos alunos e as-sim por diante.

Quando se fala de “conhecimento do pro-fessor”, o conceito de “conhecimento” deveser usado como um conceito abrangente e in-clusivo, resumindo uma ampla variedade decognições, desde opiniões conscientes e bemequilibradas a intuições inconscientes e irre-

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Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher

fletidas. Isso está relacionado ao fato de que,na mente do professor, os componentes doconhecimento, as crenças, as concepções eas intuições estão inextricavelmente entrela-çados.

Essas considerações sugerem um aprofun-damento nos estudos sobre o professor reco-nhecido como pessoa única e como aprendizque possuí e desenvolve um tipo especial deconhecimento. Esse conhecimento é significan-temente influenciado e determinado pelas ex-periências em vários contextos. Por outro lado,a maneira como o professor age em uma de-terminada situação e em um contexto específi-co, também pode determinar e influenciar essescontextos.

O PERCURSO METODOLÓGICOA metodologia utilizada foi a pesquisa quali-

tativa de natureza interpretativa. Essa aborda-gem foi utilizada para melhor definir o problematendo como base a realidade dos docentes, poissegundo Moreira (2002), na pesquisa qualitati-va o foco da investigação é na essência do fe-nômeno e a visão de mundo é função dapercepção do indivíduo. O objetivo é fazer comque as pessoas que estão participando do estu-do falem por si próprias, para proporcionar suasperspectivas em palavras e em ações. Portan-to, a pesquisa qualitativa envolve uma aborda-gem interpretativa e naturalista do que estásendo estudado.

Os participantes do estudo foram 30 pro-fessores do Ensino Médio de sete escolas pú-blicas de Curitiba. A amostra foi intencional.Isso significa que a amostra foi selecionada le-vando em consideração aquelas pessoas quepodiam contribuir mais para o estudo. Nessetipo de amostragem, como sugerem Bogdan eBiklen (1994, p.96) o número de participantesdo estudo não é definido a priori, pois “as en-trevistas caminham até a altura em que o estu-do atinge aquilo que se designa de saturação dedados, ou seja, o ponto da coleta de dados apartir do qual a aquisição das informações setorna redundante”.

A amostra constituiu-se de 10 professores e20 professoras com média de idade de 44 anos.Dos 30 participantes, cinco professores esta-vam no estágio inicial na carreira (cinco anosde experiência ou menos), quatorze no estágiointermediário (seis a doze anos de experiência)e onze no estágio avançado (treze anos de ex-periência ou mais). 21 professores possuíampós-graduação, sendo 17 em nível de especiali-zação e quatro em nível de mestrado. Ministra-vam, em média, 36 aulas semanais e possuíam,em média, 22,9 anos de magistério.

A técnica de coleta de dados foi a entrevis-ta individual semi-estruturada. A entrevistasemi-estruturada parte de um protocolo que in-clui um número de temas a serem discutidos naentrevista, mas que não são introduzidos damesma maneira, na mesma ordem, nem se es-pera que os entrevistados sejam limitados nassuas respostas e nem que respondam tudo damesma forma. O entrevistador é livre para dei-xar os entrevistados desenvolverem as ques-tões da maneira como eles quiserem. Ao usaresse tipo de entrevista, é possível exercer certotipo de controle sobre a conversação, emborase permita ao entrevistado alguma liberdade. Oprotocolo de entrevista foi elaborado a partir daexperiência dos pesquisadores e da literaturana área.

As entrevistas foram conduzidas no própriolocal de trabalho dos professores, sendo grava-das e transcritas literalmente.

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOSDADOS

A análise dos dados foi indutiva, isto é, asabstrações foram sendo construídas à medidaque os dados particulares foram coletados eforam se agrupando. Os dados foram segmen-tados, portanto, divididos em unidades de signi-ficados relevantes, embora tenha sido mantidaa conexão com o todo. A análise iniciou com aleitura de todos os dados de modo a proporcio-nar a familiarização dos pesquisadores com osmesmos. Os segmentos de dados foram cate-gorizados, de acordo com um sistema organi-

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A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio

zacional que deriva predominantemente dospróprios dados.

O objetivo desse tipo de análise foi tentardiscernir similaridades conceituais, melhorar opoder discriminativo das categorias e descobrirpadrões. A seguir, apresentamos as categoriasde análise.

A concepção de conhecimentoQuando perguntamos aos professores qual

a concepção que os mesmos tinham sobre oconhecimento, várias opiniões surgiram, vari-ando de um entendimento do conhecimentocomo uma busca constante, como uma soma-tória de experiências adquirida na prática do dia-a-dia, até o conhecimento como domínio doconteúdo.

Informação e conhecimento são, cada vezmais, peças-chave para o sucesso do profes-sor. As duas palavras parecem sinônimas, masnão são. Definir e diferenciá-las não é uma ta-refa fácil. Alguns professores participantes des-se estudo apresentaram essa dificuldade, aoopinar sobre o que o termo conhecimento signi-ficava para eles. Vejamos o que o professorÂngelo pensa a esse respeito “Bom, conheci-mento já no que você nasce está recebendo in-formações e tudo o que você carrega dentro devocê é o conhecimento. Pra mim, isto é idéiade conhecimento”. (Professor de EducaçãoFísica, dez anos de Magistério).

A informação é o conjunto de dados organi-zados em padrões cheios de significado quepodem ser possuídos e também transferidos deuma pessoa a outra. A informação é exterior àpessoa e de ordem social.

Já o conhecimento refere-se à capacidadede agir, fazer ou realizar. É normalmente cons-truído por professores e/ou aprendido em livros.É integrado à pessoa e de ordem pessoal. Dos30 professores participantes desse estudo, ape-nas três professores expressam essa noção demaneira clara. Vejamos as suas opiniões:

Conhecimento pra mim a pessoa só tem quandoela toma posse e põe em prática. Só o aprenderpor aprender, ouvir, escrever e retornar numa

prova pra mim não é conhecimento. Pra mim é nomomento que ela toma posse e usa na vida (...)eu acho que conhecimento é quando você in-corpora o aprendizado. (Professora de Portugu-ês, 30 anos de Magistério).

Conhecer alguma coisa pra mim é interiorizar, éfazer parte de mim aquilo. Aquilo tem que sernatural na minha cabeça. Quando eu digo eu seialguma coisa, aquilo tem que fluir naturalmente.Não é alguma coisa que eu tenho que forçar parademonstrar. Quando eu sei, quando eu conheçoaquilo eu já dou a resposta na ponta da língua.Então pra mim é algo já interiorizado. Se eu nãointeriorizei, eu não conheço. (Professor de Físi-ca, quinze anos de Magistério).

Eu acho que é tudo, pois é o papel da escola,aquisição do conhecimento, ou seja, a constru-ção do conhecimento. O conhecimento para mimé a capacidade de trabalhar com a informação deaplicar a informação na leitura de mundo, no casoda história, a informação passada na história temqual função? Que o aluno consiga fazer uma leitu-ra do mundo, consiga interagir, consiga pensarcriticamente, consiga estabelecer a relação pas-sado e presente e consiga se situar a partir des-sas informações, porque é comum as pessoassó terem informações, mas por exemplo, no casoda história, tem uma série de informações sobreo contexto histórico do problema da terra, doproblema da questão do negro e do menor aban-donado, mas tem visões do senso-comum e vi-sões racistas. Quer dizer a pessoa não conseguiutranspor a informação em conhecimento. (Pro-fessora de História, 18 anos de Magistério).

Vários entrevistados afirmaram que o co-nhecimento é um somatório de experiênciasadquiridas ao longo do tempo e, sendo assim,“devem ler muitos livros para memorizar”. Tal-vez aí resida um equívoco pedagógico, pois amemorização deve ser compreendida como umsubproduto de um trabalho de construção inte-lectual. A opinião abaixo ilustra muito bem essaquestão:

Conhecimento é a somatória de detalhes que levaa uma conclusão final. Por mais que você tenhauma certa quantidade de idéia, de assuntos, sem-pre é uma seqüência. A gente chega à conclu-são que essa somatória é infinita. Jamais a genteconsegue chegar a uma conclusão final. A gen-te tem uma conclusão parcial, mas o número ob-

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Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher

jetivo final, o resultado final, dificilmente a genteconsegue chegar... (Professor de Física, dez anosde Magistério).

Outra concepção de conhecimento que fi-cou muito clara na fala dos professores partici-pantes desse estudo é a do conhecimento comouma busca constante, principalmente do con-teúdo das respectivas disciplinas que ministram.Dos 30 professores entrevistados, onze conce-bem o conhecimento como uma busca cons-tante. Observemos as opiniões mais represen-tativas:

O conhecimento é uma busca que a gente estásempre fazendo. Conhecimento para mim é umacaminhada, mas prazerosa. (Professora de Geo-grafia, doze anos de Magistério).

Eu acho que o conhecimento é você ir atrás, vocêse aprofundar naquilo que você faz e nunca ficarparado. Sempre se atualizar, sempre estar pordentro do que está acontecendo e eu acho que oconhecimento você vai adquirindo com o tempoEu acho que é por aí, você estar sempre em bus-ca, você nunca tem o conhecimento completode tudo, você tem que ir em busca dele cada vezmais . (Professora de Português, três anos deMagistério).

Essas três concepções de conhecimentoforam as concepções que mais se destacaramna opinião dos professores participantes desseestudo. A próxima categoria trata de uma ques-tão correlata, pois diz respeito aos conhecimen-tos que os professores consideram maisrelevantes para o exercício do ato de ensinar.

O conhecimento do conteúdo e orelacionamento com o aluno

Essa questão teve como objetivo identificaruma questão importante que retrata muito bema noção que os professores têm sobre os co-nhecimentos exigidos para exercer o Magisté-rio de maneira competente. Foi possívelperceber que a grande maioria dos participan-tes desse estudo considera o conhecimento doconteúdo e o conhecimento pedagógico, isto é,como repassar ao aluno este conhecimento es-pecífico de suas disciplinas como os conheci-

mentos mais relevantes. Vejamos as opiniõesque expressam melhor essa visão:

O conhecimento dos conteúdos para passar paraos alunos e as dinâmicas para facilitar o conhe-cimento e o aprendizado dos alunos. (Professo-ra de Biologia, quinze anos de Magistério).

Conhecimento mais relevante? (pausa). Tanto é odo conteúdo da história, não dá para colocar emtermos de mais relevante, mas eu acho que o con-teúdo é fundamental, mas é também o conheci-mento das relações sociais da escola, da relaçãoprofessor-aluno, da experiência adquirida no dia-a-dia e a compreensão da história da educação. Oprofessor que não tem a compreensão da históriada educação e como se constroem as relaçõessociais ele acaba não conseguindo fazer a trans-posição metodológica, porque o trabalho meto-dológico essa transposição do conhecimento elaé resultado da interação que se desenvolve entreconhecimento teórico e a prática pedagógica euma prática que vai se construir. (Professora eHistória, 18 anos de magistério).

É importante enfatizar que, embora cada uma sua maneira, os professores têm uma boanoção de que para exercer o Magistério é pre-ciso muito mais do que simplesmente o conhe-cimento científico. Para eles, é preciso refletira respeito das questões da escola e da educa-ção de uma maneira mais ampla. Entendem,ainda, que há outros conhecimentos que os pro-fessores têm que pensar, discutir e aprofundar.Isso, em parte, corrobora a opinião de váriosautores já citados na revisão da literatura.

No entanto, alguns professores foram cate-góricos ao afirmar que o mais importante paraeles era o conteúdo específico da disciplina, poisacreditam que sem esse conhecimento fica qua-se impossível adentrar a sala de aula. A seguir,opiniões de professores que expressam bemessa concepção:

O mais importante para mim é o conhecimentoespecífico. Na verdade, o conteúdo. (Professorde Matemática, cinco anos de Magistério).

Eu acho que é fundamental o domínio do con-teúdo que tem que ser dado. Se você não temesse domínio, irá para a sala de aula inseguro.Conhecer também a história da Ciência é fun-damental. (Professor de Física, oito anos e ma-gistério).

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A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio

Os professores que têm uma opinião maisampla sobre os tipos de conhecimento são pro-fessores com mais tempo de dedicação aoMagistério, ao passo que os professores quetêm uma visão um pouco mais restrita sobre oconhecimento são professores em estágio ini-cial e intermediário da carreira que, possivel-mente, ainda estão tentando conseguir lidar comquestões relativas ao domínio da turma e as-pectos inerentes à administração da sala de aulae o repasse puro e simples do conteúdo.

Um outro aspecto muito interessante a serobservado é a questão de como os professoresparticipantes deste estudo adquirem o conheci-mento.

A aquisição do conhecimentoQuando perguntamos aos professores como

eles adquirem o conhecimento para exercer aprofissão docente, as respostas variaram: pormeio de cursos por iniciativa própria e por meiode cursos ofertados pela Secretaria de Educa-ção, leitura de livros na área específica e naexperiência do dia-a-dia.

Tenho feito cursos. O curso de especializaçãoque eu fiz foi muito bom. Tenho lido muitos li-vros, tenho visto outras realidades. Eu trabalheium tempo na Prefeitura de Curitiba. Vai da buscae do objetivo. (Professora de Português/Inglês,oito anos de Magistério).

Eventualmente. Eu leio revistas como a NovaEscola, jornais, etc. Cursos eu faço eventual-mente, quando a Secretaria nos oferece um cur-so, principalmente quando está dentro donosso horário de trabalho. É interessante por-que a gente considera esses cursos como tra-balho, então é muito bom. Mesmo assim, porexemplo, esse ano eu fiz um curso de informá-tica (internet e PowerPoint) para entendercomo eu posso preparar as minhas aulas comuma linguagem mais interessante para os alu-nos e foi super divertido, foi assim dois mesesde aula e foi no meu horário de trabalho, duasmanhãs e foi aqui na escola, pois temos umexcelente laboratório e temos a Internet à von-tade. Então, duas manhãs eu não trabalhava eficava no laboratório. (Professora de Biologia,doze anos de Magistério).

Eu fui atrás. O próprio governo ofertou várioscursos de “Tapeação” e não “Capacitação”. Ogoverno seleciona profissionais “teóricos” paraministrar as aulas a professores “práticos” quequerem aperfeiçoar suas práticas em sala de aula.Dois cursos que eu participei não corresponde-ram as minhas expectativas e frustração. A maio-ria dos profissionais falou dos vários fatores quecausam a surdez, tipos de surdez, aparelhos, exa-mes e outros. Mas não conhecem a cultura dosurdo, e as limitações educacionais dos mesmos.Então resolvi procurar um curso que me proporci-onasse resultados. Concluí o curso de EducaçãoEspecial e faço LIBRAS. Língua dos Sinais. Infe-lizmente a secretaria de educação não pensa emsuprir as necessidades educacionais, limitam des-pesa com xerox, laboratório práticos, recursos di-dáticos e mescla a capacitação profissional,teorizando os problemas e as soluções. Essa ati-tude é automaticamente passada as escolas quepouco conseguem fazer, sem apoio. (Professorade História, dez anos de Magistério).

Para aprofundar um pouco mais essa ques-tão, perguntamos aos professores de onde vinhao interesse em buscar o conhecimento. Todos osprofessores participantes do estudo responderamque o interesse era impulsionado pela própriavontade. A seguir, apresentamos as opiniões maisrepresentativas dessa questão:

Vem da minha vontade. O aluno me desafia muitopouco na sala de aula. Eu vou buscar mais conhe-cimentos para poder contextualizar mais as aulase trazer temas que agradem mais a idade deles eneste sentido, a química é privilegiada (Professo-ra de Química, cinco anos de Magistério).

Da minha vontade. Eu não consigo me imaginarsem buscar o conhecimento. Por parte do alunosó se for indiretamente. Quando eu percebo queuma maneira de agir em sala faz com que o alunotenha uma produtividade melhor ai eu sinto estí-mulo e vou buscar mais para aprofundar os meusconhecimentos, mas não é o aluno consciente-mente que me estimula a fazer isso. (Professorde Física, oito anos de Magistério).

Acho que depende da gente mesmo. Veja bem,os alunos estão cada vez mais acomodados, nãoprocuram se esforçar e infelizmente é a grandemaioria. Então o professor deve correr atrás, pes-quisar e se municiar de materiais para dar contado conteúdo, tentar mudar seu jeito de dar aula.Não é fácil porque como eu disse, a gente quase

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Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher

não tem tempo, mas a gente precisa dar um jeitopara buscar novos conhecimentos (Professor deHistória, 20 anos de Magistério).

A aquisição do conhecimento pelo profes-sor ainda está centrada em cursos sazonais ,deacordo com as necessidades individuais emdeterminados momentos da carreira. O modelode formação continuada de professores aindaestá calcado no interesse e na necessidade,particularmente está centrado na oferta da se-cretaria de educação.

A sustentação da prática pedagó-gica

Quando perguntamos aos professores parti-cipantes do estudo o que sustentava a sua práti-ca pedagógica na sala de aula, 17 dos 30professores responderam que era uma combi-nação entre um bom relacionamento com os alu-nos e o domínio do conteúdo. A esse respeito,vejamos o que nos disse um professor (Profes-sor de Química, dez anos de Magistério) “São osconhecimentos adquiridos durante a formaçãono curso superior”. O que se segue são as opini-ões mais representativas dessa questão:

Eu até já comentei que tenho uma boa compre-ensão da relação professor/aluno. O que sus-tenta a minha prática é a minha boa relação comos alunos e também acho que tenho uma boadinâmica na sala de aula e consigo fazer com queos alunos que têm mais dificuldades compreen-dam a matéria. Eu costumo fazer atendimentoindividual. A minha prática é essa. (Professor deMatemática, cinco anos de magistério).

É claro que o conteúdo é o mais importante, maspara você poder trabalhar o conteúdo você temque ter amizade, senão eles (referindo-se aos alu-nos) te respondem, você não consegue traba-lhar e passa a manhã inteira chamando a atençãodos alunos e lidando com a indisciplina, pois aindisciplina está gravíssima (Professora de Por-tuguês/Inglês,oito anos de Magistério).

O domínio do conteúdo é uma questão real-mente importante, pois muitos professores sesentem desafiados pelos alunos quando não têmesse domínio e acreditam que poderiam ser

desprestigiados por não saberem resolver umaquestão ou simplesmente não ter uma respostaimediata para o aluno.

Eu acho que o professor para entrar em uma salade aula e passar um exercício, principalmente emmatemática. Eu não estou falando de outras dis-ciplinas. Se eu passar um exercício matemático,uma equação ou uma inequação e tiver uma cer-ta dificuldade para resolver aquilo eu acho quedaí a aula vai por água abaixo. Eu acho que nãotem nada a ver a minha aula naquela situação, seeu não tiver segurança para fazer aquilo, é umasituação totalmente adversa. (Professor de Ma-temática, cinco anos de magistério).

Ao aprofundar um pouco mais essa questãocom os professores, foi possível perceber queas respostas continuaram sendo em torno darelação professor aluno e do domínio do con-teúdo. Para alguns professores, o domínio doconteúdo, ou seja, o saber científico é um dosprincipais fatores que trazem segurança na salade aula. O professor se impõe pelo que ele sabe,principalmente em disciplinas como Matemáti-ca, Física e Química, pois o domínio do conteú-do é a base para a autoridade do professor epara ser levado a sério pelos alunos.

Outros professores consideraram a relaçãoprofessor x aluno como o fator fundamentalpara a condução da aula.

A forma como trabalhar com os alunos. Eu tra-balho tendo como referência a amizade entre oprofessor e o aluno e não um estilo sempre man-dando. Eu trabalho com eles no espírito de con-versa e de diálogo, é mais no sentido de amizadecom os alunos. Se eu fosse uma ditadora, nãoconseguiria nem sequer dar aula. (Professora dePortuguês, oito anos de Magistério).

A aprendizagem pela experiênciae a contribuição para o trabalho

Essa categoria diz respeito aos saberes queos professores constroem na própria experiên-cia. Dos depoimentos colhidos, depreende-seque é na experiência que os professores vis-lumbram a possibilidade de aprenderem comcolegas de trabalho, com os próprios alunos e

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A concepção de conhecimento profissional e sua aquisição por professores do ensino médio

de refletirem sobre seu trabalho, reformulandosua forma de ser e agir.

Quando perguntamos aos professores se aexperiência do dia-a-dia na sala de aula ajudavano trabalho, todos responderam que sim. Issocorrobora a opinião de vários autores (NÓVOA,2000; PIMENTA, 1996) que afirmam que o pro-fessor aprende o seu ofício na escola. Os parti-cipantes desse estudo acreditam que a experi-ência do dia-a-dia colabora em dois sentidos: parao professor aperfeiçoar a sua didática, principal-mente na base da tentativa e erro e para apren-der a lidar com os problemas disciplinares, queem algumas escolas é um aspecto que toma amaior parte do esforço do professor. As opini-ões a seguir foram as mais representativas:

É fundamental. O meu trabalho se baseia no con-teúdo que eu tenho que saber, mas como agir nasala de aula, eu só descobri com a experiência dodia-a-dia. Eu comecei absolutamente verde e sócom o tempo fui adquirindo o jeito de agir nasala de aula. (Professor de Física, oito anos deMagistério).

Ajuda e ajuda muito. A partir das experiências,da necessidade que eu estou vendo em sala euvou propor elaborar o que se ministrar para osmeus alunos. Então se eles têm necessidade deaprender, por exemplo, uma ação social, porqueestá faltando isso para eles aí a gente vai relaci-onar a alguma situação. (Professora de matemá-tica, dez anos de Magistério).

Os depoimentos dos professores entrevis-tados confirmam que a prática é muito impor-tante no processo ensino-aprendizagem, damesma forma que os conhecimentos oriundosda experiência. Esses conhecimentos são tam-bém aqueles que os professores produzem nocotidiano de seu trabalho, “num processo dereflexão sobre sua prática, mediatizada pela deoutrem – seus colegas educadores” (PIMEN-TA, 1996, p. 77).

CONSIDERAÇÕES FINAISO objetivo desse artigo foi verificar qual a

concepção de conhecimento de professores desete escolas estaduais de Ensino Médio domunicípio de Curitiba. Para investigar essa ques-

tão, vários aspectos do conhecimento foram tra-tados com os professores. As evidências mos-tram que os professores participantes desteestudo, na sua grande maioria, concebem o co-nhecimento como uma busca constante, a so-matória de experiências adquirida com a práticado dia-a-dia e o domínio do conteúdo.

No entanto, para a maioria desses profes-sores, os conhecimentos mais importantes paraexercer a profissão se concentram ao redor dodomínio do conteúdo e do bom relacionamentocom os alunos.

Com certeza, o domínio do conteúdo é umcomponente central do arsenal de conhecimen-tos necessários para desenvolver um bom tra-balho na sala de aula, uma vez que as exigênciasem torno do ato de ensinar têm provocado umrenovado interesse no conhecimento do con-teúdo do professor. Embora a questão sobre oque os professores precisam saber sobre suasdisciplinas seja muito difícil de ser respondida.

A relação professor-aluno é outro aspectobastante relevante, pois conhecer o aluno e en-tendê-lo passa a ser uma condição para que oprofessor possa fazer a transposição didáticade seu conteúdo.

As respostas mais comuns em relação àconcepção de conhecimento tomam a forma deum relato das crenças dos professores sobre oconhecimento. No entanto, o conhecimento temque satisfazer uma “condição verdadeira”, en-quanto que as crenças, não. Sistemas de cren-ças são resistentes à mudança.

Neste momento, ainda está obscuro se ascrenças dos professores estão diretamente re-lacionadas às práticas em sala de aula, entre-tanto parece lógico que isto deva ser assim. Háuma concordância mais geral de que as cren-ças e as práticas existem em uma relação recí-proca uma com a outra. É provável que a práticainfluencie as crenças como também é possívelo contrário.

Observa-se que a palavra conhecimento éutilizada pelos professores para se referir ao“conhecimento livresco” que está publicamen-te disponível de uma maneira já codificada. Essanoção fica muito clara nos depoimentos dosprofessores participantes deste estudo. Nesse

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Herivelto Moreira; Guiomara Ribas; Elza Rumiko W. Soavinsky; Raimundo Fortes; Maria do Carmo Wiese; Ethel Fisher

sentido, é preciso que os professores rompamcom esta compreensão equivocada, para nãodesenvolver uma consciência limitada da natu-reza de seu conhecimento profissional.

Embora o conhecimento da experiência, ouseja, o conhecimento adquirido durante o pró-prio exercício do Magistério seja uma questãomuito valorizada pelos professores participan-tes deste estudo e por alguns autores nacionaise internacionais, ele não pode se constituir naúnica forma de conhecimento. A valorização

do conhecimento prático adquirido por meio daexperiência auxilia o profissional docente a ex-pressar o que sabe, à luz da teoria – reunifican-do saberes, mas é preciso enfatizar que confiarsomente no conhecimento da experiência po-derá dar a falsa impressão de que os conheci-mentos acadêmico, teórico e científico adquiridono âmbito da formação profissional não sãoimportantes e que os cursos de formação nãotêm dado conta adequadamente dessa forma-ção profissional.

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Recebido em 21.06.05Aprovado em 30.07.05

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Ellen Bigler

IN SEARCH OF AMÉRICA:LATINA/OS (RE)CONSTRUCTING THE U.S.A.

Ellen Bigler, Ph.D. *

* Professor, Department of Educational Studies/ Dept. of Anthropology. HBS 217-1. Rhode Island College. 600 Mt.Pleasant Avenue. Providence, RI 02906 - U.S.A. Email: [email protected]

ABSTRACTTaken collectively, Latinos are now the largest “minority” group in the USA.This chapter, with a focus on U.S. Latinos, explores the changing face of theUSA in recent decades and the significance of this demographic change forthe ongoing construction and negotiation of an American identity. The “culturewars” (e.g., debates over the canon, curriculum, and language) of the late1980s and 1990s, and the contested role of schools in the arena of criticalmulticulturalism, are examined for insights into the bases of resistance to change.The author draws from her experiences in public schools as both a teacher anda researcher, as well as her experiences educating future teachers.

Keywords: American Identity – US Latinos – Racialization – Latinization –Borderlands

RESUMOEM BUSCA DA AMÉRICA: LATINOS (RE)CONSTRUINDO OSESTADOS UNIDOS

Considerados coletivamente, os Latinos constituem atualmente o maior grupominoritário nos Estados Unidos. Este artigo, com enfoque nos Latinos dos EUA,explora a mudança da “cara” dos EUA nas décadas recentes e o significadodessa mudança demográfica para a subseqüente construção e negociação daidentidade americana. As guerras culturais (i.e. debates sobre o cânone, ocurrículo e a linguagem) das décadas de 80 e 90, bem como o papel controversodas escolas na arena do multiculturalismo, são analisadas através de registrosdas fontes de resistência às mudanças. A autora utiliza suas experiências emescolas públicas, como professora e pesquisadora, além de ser educadora naformação de futuros professores.

Palavras-chave: Identidade Americana – Latinos nos EUA – Racialização –Latinização – Fronteiras

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In search of América: latina/os (re)constructing the U.S.A.

we gave birthto a new generation

AmeRícan salutes all folklores,european, Indian, black, Spanish,and anything else compatible…

(Tato Laviera, AmeRícan, 1985, p.94)

Latina/os1 have long been invisible in the co-llective U.S. imagination. Their “invisibility” chan-ged forever on June 18, 2003, when the U.S.Census Bureau announced that U.S. Latina/os2

had reached a long-anticipated and symbolicallysignificant milestone in the U.S.; Latinos werenow the nation’s largest “minority,” displacingAfrican Americans (EL NASSER, 2003). Thenews coverage on the significance of this eventfor understanding who we are as a nation spokeof Hispanics as if they were a monolithic popu-lation. Never mind that there is no pan-ethnicLatina/o identity and that the term “Latina/os”encompasses diverse groups, histories, generati-ons, social classes, and even languages. Andnever mind that for Americans3 in some parts ofthe nation the news was not exactly news –California, for instance, where as of July 4 20014

over 50 percent of all babies born were alreadyHispanic (MURPHY, 2003). The nation had cros-sed a threshold that pointed beyond all doubt tothe growing latinization of the population.

In this chapter I examine the impact of theLatina/o presence in the U.S.A. through time,and the paradigms that they have challengedand/or helped undermine. Latinos have forcedthe nation to re-visit how the American Westwas “won” (and therefore how to characterizethe building of the United States); to re-visit whatconstitutes “the” immigrant experience; to re-think how we see one another racially (beyondthe black/white binary); and to re-conceptuali-ze what constitutes the “border” and being“American” in an era characterized by increa-sing global interdependence.

An Enduring – and Marginalized –Latina/o Presence

Mexicans and Puerto Ricans, unlike theirEuropean counterparts, initially became part of

the U.S.A. through conquest. The acquisition ofFlorida in the early 1800s brought people withSpanish roots into the nation. The first signifi-cant numbers of Latina/os to become part of theAmerican population, though, were incorporatedthrough U.S. acquisition of Mexican lands in themid-1800s. Mexico lost almost half of its landand three-quarters of its mineral resources in themid-1800s to its powerful northern neighbor(GONZALEZ, 2000). Texas’ contrived seces-sion and U.S. victory in the Mexican War werefollowed by the subsequent “purchase” fromMexico of what was to become the AmericanSouthwest. These acquisitions were a thin vene-er for 19th century U.S. imperialism. As oneChicana (Mexican American) poet put it, “Nocrucé la frontera, la frontera me cruzó a mí”(ROSALDO, 1997). These realities, however,run counter to the historical narrative traditionallytaught in U.S. history texts, depicting the U.S. asa nation of immigrants moving east to west intoseemingly uninhabited spaces.

Mexicans in the U.S., while their experien-ces differed somewhat depending upon theirstate of residence, rapidly came to constitute aclass of exploited laborers. Stigmatized, soci-ally segregated, and politically marginalized, they

1 This is a new term gaining popularity in the U.S. in orderto include women (Latinas), also sometimes written as La-tino/as.2 The umbrella terms “Latino” and “Hispanic” are oftenused interchangeably in the U.S. to refer to people of LatinAmerican origin. “Hispanic” was introduced by the U.S.government in the 1970s, and then adopted in the 1980census to identify U.S. residents who trace their ancestry toSpanish-speaking regions of the world. “Latino” gainedpopularity in the 1980s and 1990s, largely because morepoliticized community members felt it affirmed their LatinAmerican (and therefore racially mixed) origins rather thanprivileging their Spanish roots. As such, it also can embracethe growing Brazilian population now in the U.S. A recentsurvey by the Pew Hispanic Center revealed that only 24percent prefer to use the terms “Hispanic” or “Latino.”Overall 54 percent preferred to be identified by their countryof origin—though among American-born Hispanics thatdropped to 29 percent, with 46 percent preferring to beidentified as “Americans” (BUSTOS, 2002).3 I acknowledge the problems with using this term to referto only people of the USA. There is however no suitablesubstitute in English.4 There is a delicious irony here. July 4 is the date that the13 original colonies (all on the east coast, and populated byEuropean, African-origin peoples and Native Americans)declared independence from Britain.

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became what historian Rudolfo Acuña (1988)would later characterize as an “internal colony”.Yet their contributions to the development ofthe American West were invaluable (TAKAKI,1993); Mexican and Mexican American laborin agriculture and ranching, in mines and on therailroads played a significant role in the expan-sion of American capitalism into the Southwest.The numbers of Mexicans and Mexican Ame-rican communities grew as U.S. employers,hand in hand with the U.S. government, soughtto encourage migration to provide a source ofcheap labor. The enduring racism and margina-lization that these early Mexican-origin commu-nities encountered from the mid-1800s to themid-1900s set the stage for the particular formof political activism that was to mark the 1960sand 1970s.

Puerto Ricans too became U.S. Americansthrough conquest. The U.S. defeated Spain in1898 in the Spanish American War, acquiringPuerto Rico, the Philippines, and Guam in theprocess. The government refused to grant Pu-erto Rican demands for independence, and, infact, gave them less autonomy than they hadexperienced under the Spanish at the commen-cement of the war. Almost twenty years later,in 1917, the U.S. granted Puerto Ricans citi-zenship. Citizenship in turn made them eligibleto migrate freely to the mainland. There theyconstituted a readily available labor pool in theNortheast and filled 12,000 jobs created by thewar effort. The U.S. government inducted ano-ther 18,000 Puerto Rican men into the militaryfor World War I, where they were obliged toserve in racially segregated units (DEFREITAS,1999).

Puerto Ricans, like their Mexican Americancounterparts, suffered the consequences of aracialized social order in the U.S. that assumedAnglo-American superiority and the “racial”inferiority of racially “mixed” Mexican and Pu-erto Rican peoples. Assumptions of racial su-periority on the part of U.S. Americans wenthand in hand with assumptions of cultural supe-riority. Official government policy deliberatelyattempted to “Americanize” Puerto Ricans onthe Island through establishment of a secular

public school system. Students were taught U.S.heroes, holidays, symbols, historical narratives,and the English language (NEGRÓN DE MON-TILLA, 1975). Ironically, Americanization – inessence cultural and linguistic imperialism –contributed to a legacy of resistance to Anglo-American dominance on the Island that conti-nues to the present (ZENTELLA, 1981).

The U.S. occupation of Puerto Rico intro-duced American corporations to the Island andbrought about economic shifts that displacedsmall farmers and propelled thousands of Pu-erto Ricans into a migratory stream betweenIsland and mainland. By 1940 there were 70,000Puerto Ricans on the mainland (PADILLA,1985). “Operation Bootstrap,” the U.S. gover-nment program begun in 1947 to transform Pu-erto Rico’s plantation economy into an industrialone, created still further economic displacement.These shifts, alongside cheap air fares from theIsland to New York City, were intended to en-courage migration to meet demands for cheapmainland labor. The Puerto Rican “diaspora”was underway. The numbers of Puerto Ricanson the mainland reached nearly 900,000 by 1960,with the migrants concentrated overwhelmin-gly in the New York City metropolitan area(GROSFOGUEL and GEORAS, 1996). By1990, the mainland Puerto Rican population,despite significant return migration, topped 2.5million.

Cubans, the third largest Latina/o populati-on, initially settled along the east coast in thelate 1800s and early 1900s to work in factories.The demographics of Cuban immigrants chan-ged dramatically, however, with Fidel Castro’sascent to power in 1959. Island elites fleeingCastro, poured into Miami. By 1965, 210,000had entered the U.S. By 1973, another 345,000had arrived (PORTES and BACH, 1985). Theirrefugee status, the warm welcome and U.S.government aid they received, their social andcultural capital, and their light skins5 positionedthem very differently from their Mexican Ame-

5 Later waves of Cubans, in particular the marielitos of the1980s, included more dark-skinned and working class Cubans.By then the Cuban enclave was well established and able tooffer their own support (PORTES and STEPICK 1993).

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rican and Puerto Rican working class counter-parts. These early Cuban immigrants were ableto parlay their many advantages in to economicand political strength, benefiting later immigrantsand revitalizing Miami in the process.

By 1970, these three groups collectivelycomprised five percent of the U.S. population.Mexican Americans, the overwhelming majo-rity, remained concentrated in the Southwest(with a growing number making their way tothe Midwest), Puerto Ricans in the New YorkCity region, and Cubans in the Miami area. Inthe three decades since, Latina/os have disper-sed far beyond their traditional places of settle-ment, and their numbers have almost tripled asa consequence of increased (im)migration6 andthe higher birth rates of this relatively youngerpopulation. As of 2004, Hispanics7 comprised13.5 percent of the U.S. population and num-bered 39.9 million (NEW YORK TIMES, 2004).There are more Hispanics in the U.S. today thanare Peruvians, Chileans, or Canadians in theirrespective countries. Mexican Americans, num-bering 20.6 million, continue to constitute themajority group, approximately 60 percent. Pu-erto Ricans on the mainland (roughly half of allPuerto Ricans) now number 3.4 million, andCuban Americans 1.2 million. Other LatinAmericans seeking economic opportunity orpolitical refuge further swell the ranks of theLatina/o population. These include Dominicans(2.2 million), various Central American popula-tions (4.8 million), and 3.8 million South Ameri-cans (INFOPLEASE, 2004), including possiblyup to one million Brazilians (BALLVE, 2003).

The tremendous diversity within the Latina/o population is oftentimes obscured by the useof the umbrella term “Hispanic” in the media,or by the demographic dominance of MexicanAmericans. The opportunity to be seen as beingfrom one’s particular country of origin can de-pend upon where one lives in the USA. As Da-vis (2001, p.20) points out, in Los Angeles“Salvadoreans, Guatemalans and Ecuadoreans– as well as indigenous immigrants like Zapo-tecs, Yaquís, Kanjobals and Mixtecs – struggleto defend their distinctive identities within a he-gemonically Mexican/Chicano popular culture.”

In New York City, meanwhile, the dominantHispanic population is no longer Puerto Rican.Dominicans are catching up to Puerto Ricansnumerically, and Mexican immigrant communi-ties are on the rise. These demographic shiftsin turn make intercultural exchanges more like-ly. Fully half of the Spanish-surname marriagesin New York City are intermarriages betweenpeople of different Hispanic backgrounds, in con-trast to Los Angeles, for instance, where only14 percent of married people of Mexican originmarried non-Mexican origin Hispanics (seeDAVIS, 2001, p.22). This variability underlinesthe point that Latina/os fail to fit any one mold;they bring differing cultures and histories to theU.S., and live different realities depending on amyriad of factors from time of arrival to race togeneration to class to place of settlement. Ho-wever, despite such variability, there are simila-rities in their experiences that situate themlargely outside the so-called American “Mel-ting Pot.”

The American Melting Pot: Mobilityor Marginality

America is God’s Crucible, the great Melting-Pot where all the races of Europe are melting andre-forming! A fig for your feuds and vendettas(…) into the Crucible with you all! (Israel Zan-gwill, The Melting Pot, 1909, p.37)

Like other people of color8 , the U.S. Lati-na/o population set roots in a nation built uponprofound racial inequalities. The nation’s foun-ders from the outset sought to limit eligibility forcitizenship. Only white propertied males acqui-

6 The term connotes both immigration and the Puerto Ricanmigration (as U.S. citizens).7 The U.S. Census uses the term “Hispanic” and does notcount Brazilians among them.8 “People of color” is a term used currently in the U.S. torefer to non-whites, to reference their collective experiencesof discrimination historically and their commonalities. Itdiffers from the term “colored people,” which was usedalong with “Negro” to refer to African Americans up untilthe 1950s and was replaced with the terms “Black” or“African American.”

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red the right to vote. In 1790, Congress passeda bill limiting naturalization to “free white (male)citizens,” claiming itself a democracy while sys-tematically denying the rights of citizenship toboth people of color and women. It took ano-ther 75 years before slavery officially ended –and almost a century beyond that before racialsegregation laws in the South were ruled un-constitutional. Mexicans incorporated into theU.S. after the Mexican War of 1848 soon lostrights granted them in the Treaty of GuadalupeHidalgo, and were quickly overwhelmed nume-rically and ultimately subjugated by whites floo-ding into California in search of gold. Othersfared no better (TAKAKI, 1993). Native Ame-ricans became a conquered people and suffe-red the consequences of oftentimes-genocidalpolicies. Chinese workers who struggled alon-gside Mexicans to complete the nation’s firsttranscontinental railroad by 1869, found the openracism they encountered in their day-to-day li-ves codified in the 1882 Chinese Exclusion Actthat forbid further immigration from China. Anti-miscegenation laws (forbidding marriage acrossracial lines) were on the books of many statesas late as 1967, until the Supreme Court belate-dly declared them unconstitutional.

Being “American” had quickly come to beconstructed as being “white”. Newly arrivedEuropeans danced along racial border lines. Thereligious and cultural “otherness” of the Irish,arriving in large numbers in the mid-1800s, andthe cultural and “racial” differences of southernand eastern European immigrants, who pouredinto eastern cities between the 1880s and1910s9 , made them suspect. While most set-tled in urban areas in ethnic enclaves, maintai-ning their native languages and customs, theywere under tremendous pressure to abandonthem. Racist and prejudicial attitudes of the “old-timers” were further legitimated by many sci-entists’ arguments for the extant social hierarchybeing grounded in innate differences. MadisonGrant, a highly regarded anthropologist of the1920s, for instance argued that the:

… new immigration contained a large and incre-asing number of the weak, the broken, and thementally crippled of all races drawn from the lo-

west stratum of the Mediterranean basin…. Thewhole tone of American life, social, moral, andpolitical, has been lowered and vulgarized by…human flotsam. (HANDLIN, 1957, p.93-94, citedin: SANTA ANA, 2002, p.274)

MobilityIn a relatively short time, however, these

populations moved from being viewed as ques-tionably “white” to being accepted as part ofthe larger American community (DILEONAR-DO, 1992). The new European immigrants andtheir descendants benefited from a confluenceof factors that worked to reduce their segrega-tion and identity with their homeland cultures.Significantly, there was a steep decline in immi-gration from Europe beginning in the late 1910s,as nativist sentiments led to restrictive immi-gration policies designed to keep out the “unas-similables.” This meant less replenishment ofethnic communities, a phenomenon furthered bythe low numbers of immigrants arriving duringthe Great Depression and World War II eras.The children of immigrants, meanwhile, mixedwith native-born children in schools, factories,and the military. Factory jobs that did not requi-re education were widely available. Their sig-nificant voting power was courted by citypolitical machines. Federal legislation suppor-ting unionization in the 1930s and 1940s ensu-red that many blue-collar jobs paid a living wage.A booming World War II economy, the U.S.government-funded post-war GI Bill that pro-vided free college educations for returning ve-terans, an expanding economy and highereducation system, and an expanded middle classin the 1950s and 1960s10 all worked to their

9 Both the Irish and the southern and eastern Europeanpopulations were considered racially “other” and a threatto the assumed superiority of the (white) American stock.See for instance Roediger (1991) and Gould (1981) on then-dominant social constructions of race and how these groupsnegotiated and contested the boundaries of the racialconstructions they encountered in the U.S.A.10 See American Conversations: Puerto Ricans, WhiteEthnics, and Multiculturalism (BIGLER, 1999) for asummary of the differing experiences and thus differentoutcomes for white U.S. Americans and Puerto Ricans inthe 20th century.

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advantage. Marginalized people of color, thou-gh, were largely unable to take advantage ofmuch of this.

The vision of the U.S.A. as a bubbling cal-dron, a “melting pot” where all people blendedand lost their distinctive ethnic characteristics,had a firm hold on the social imaginary for wellover half of the 20th century. Accompanyingthis metaphor was an almost religious faith inthe American Dream, with the nation seen as aland of opportunity for all, where hard workwould provide the route to upward mobility. Newimmigrants and their descendants, so the storywent, would progress through hard work up thesocial class ladder, marching along a linear path,abandoning their foreign customs, tongues, andloyalties, and assimilating into the Americanmainstream.

The brunt of the descendants of the wavesof southern and eastern Europeans who ente-red at the turn of the 19th century did indeedachieve upward mobility. It was not hard workalone though that made possible their success– or explained the failure of populations of co-lor to rise in the social hierarchy.

MarginalityDescendants of turn-of-the-century Europe-

an immigrants did not experience the enduringconsequences of racialization and racial discri-mination that have long haunted people of colorin the U.S. Like Native Americans, ChineseAmericans, Japanese Americans, and AfricanAmericans, Latina/os endured prejudice, discri-mination, and oftentimes legalized segregation.11

Chicanos in the Southwest were politically, eco-nomically, and socially marginalized. Puerto Ri-cans in the New York area in the 1950s and1960s found themselves on the economic andsocial margins of society, heavily concentratedin the secondary labor market and deterioratinginner cities. Public schools for both populationswere inferior. Like other people of color, theywere essentially excluded from the Americanmelting pot.

The ensuing residential and occupationalsegregation they experienced, hand in hand withthe ongoing ethnic revitalization that occurs asLatina/os maintain connections to their home-lands and newcomers arrive on a regular basis,enhanced the likelihood of developing a distinctidentity and ethnic solidarity. As Nelson andTienda note:

(R)esidential and occupational concentration –are especially crucial to the formation of ethnicgroup solidarity in that they produce commonclass interests, lifestyles and friendships. Whenthe ethnic experience includes rejection, discri-mination and oppression, the elaboration of eth-nic ties provides a ready system of support forgroups distinguishable by race, national originor language. (1997, p.9)

While the maintenance of identity and lan-guage is understood as a voluntary phenome-non, and most certainly does have an elementof choice attached to it, it is also a product of adifferent reality for Latina/o communities whencompared to the experiences of early 1900ssouthern and eastern European immigrants.Identity may seem a voluntary phenomenon, butwe can also speak of the “structuring” of eth-nic identity12 .

Despite second-class citizenship, men fromthese marginalized groups fought valiantly fordemocracy in World War II13 . What they foundthough upon their return, though, was that theywere still denied full citizenship in their owncountry. Mexican American soldiers on leavedressed in zoot suits, for instance, became vic-tims of mob violence in California while policestood idly by. A decorated Mexican American

11 It is far beyond my capacity given space limitations totrace the experiences of these groups in this paper. For anexcellent and succinct insight into U.S. history seen fromthe side of the oppressed, see Ronald Takaki’s A DifferentMirror (1993).12 But at the same time the boundaries are porous, Latina/osare a diverse lot, and as recent studies substantiate, thereare many ways to “be” Latina/o and to characterize theLatina/o experience. See for instance García-Colón, 2004.We must therefore avoid overgeneralizing when trying toencapsulate “the Latina/o experience.”13 Soldiers from these groups, including Japanese Americanswhose own families were interned in the U.S. during the waras potential security threats, were among the most decoratedgroups.

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soldier was denied burial rights in a military ce-metery because of his race. These wartimeexperiences gave impetus to the long-simme-ring struggle for equal rights, and alongside theimpact of colonial independence struggles in the1950s, gave birth to the various civil rights mo-vements of the 1950s, and 1960s.

Turning Points: From “Greaser14 ”to “Chicano,” from “Spic15 ” to“Boricua”

The two largest and oldest U.S. Latina/opopulations, Mexican Americans and PuertoRicans, “invented” (KLOR DE ALVA, 1997)new identities in the U.S. that affirm that theyare “neither/nor” (i.e., not Mexican and not U.S.American), but rather something else. These“inventions” took different forms in the twocommunities, reflecting their different realitiesand histories.

Mexican Americans had long found them-selves suspended between two poles, acceptedas neither Americans nor Mexicans. They were“pocho,” too Americanized to be Mexican, andtoo “Mexican” in the U.S. to be American. Theterms “Mexican” or “Greaser,” were routinelyused disparagingly by whites in the southwes-tern U.S. while the “polite” term to refer to so-meone of Mexican descent was “Spanish” –reflecting the valuing of the Spanish (and the-refore European) side of Mexicans’ roots.Mainland Puerto Ricans were also derided onreturning to the Island for their perceived lossof Puerto Rican culture and the intermixture ofEnglish into their Spanish. In both MexicanAmerican and Puerto Rican communities, lightskin and “white” features were valued morehighly.

The 1960s marked an important moment inthe nation’s history. The Black Civil RightsMovement began as a push for integration intothe U.S. American mainstream, but the slowpace of change and the resistance AfricanAmerican activists encountered produced a newset of leaders, among them Malcolm X, whoargued instead for cultural nationalism and chal-

lenged assimilation as the goal. “Black Pride”16 ,with its rejection of mainstream aesthetic valu-es and representations, gave impetus to othersimilarly positioned groups. “Negroes” became“Blacks”; Mexican Americans became “Chi-canos”; and Puerto Rican mainlanders beganto refer to themselves as “Neoricans” or“Nuyoricans.” These terms affirmed their di-fferences, and represented the emergence ofnew “politicized” peoples, born of a fusion ofSpanish, Indian, African and American roots17 .

Chicano and Puerto Rican communities or-ganized and challenged mainstream “culturaldeficit” depictions of their communities and theunquestioned assumption that they were positi-oned like European immigrants to assimilate intothe mainstream. Instead, many argued, theywere better understood as “internal colonies.”Challenging the need to abandon their langua-ges and cultures to be accepted as “Ameri-cans,” they rejected the vision of the U.S. as amelting pot and the desirability of being assimi-lated.

In the Mexican American community, farmworker organizers César Chávez and DeloresHuerta fought for the rights of workers to unio-nize. Utilizing ethnic pride, shared religious be-liefs, and a sense of community and history toorganize Mexican and Mexican American farmworkers (ACUÑA, 1988), their actions sparkedthe Chicano Movement. Young and politicallyactive Mexican Americans took up the Far-mworkers’ banner to fight for their rights. Re-born “Chicanos” – originally a derogatory termused to refer to lower class members of thecommunity – they organized to reappropriatelands taken improperly from Mexican Ameri-cans, to organize youth, to form new politicalparties, and to celebrate their cultural roots.

14 The term is a derogatory one used in the U.S. to refer tosomeone who is of Mexican origin.15 The term “spic” is derogatory, and Puerto Ricans werefrequently referred to as spics.16 It was not totally new in the 1960s. Marcus Garvey in the1920s taught a similar doctrine with his “Back to Africa”movement.17 The thrust for equal rights and cultural pride also took offin other oppressed communities, including American Indiansand gays, who saw parallels in their own situations.

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El Movimiento, the Chicano Movement,flourished between the mid-1960s and the mid-1970s. The Southwest became “Aztlan,” themythical homeland of the Aztec peoples whoCortes conquered in the 1500s. Aztec legendheld that a drought had forced the Aztecs outof their original homeland northwest of Teno-chtitlán (central Mexico, now Mexico City); ledby their gods they roamed until a divine signappeared, an eagle perched on a cactus with aserpent in its mouth. Chicanos, turning Angloclaims on their head, thus claimed themselvesas the original inhabitants of the American Sou-thwest and positioned Euro-Americans as theoutsiders. They transformed the Indian herita-ge of Mexicans from a source of shame into asource of pride and an affirmation of their hy-brid roots. Chicanos “re-invented” themselves– not as hyphenated Americans, but as a peo-ple with a unique and valuable heritage and cul-ture. Chicano artists appropriated Mexicanimagery and the mural form for their public art;musicians and dancers resurrected “indigenous”music and dance and taught it to their children;social critics assailed the media for its lack ofpositive images of Mexican Americans; acti-vists demanded – and obtained – Chicano Stu-dies programs in the universities. A newgeneration of Chicano academics joined forceswith academics from other oppressed groupsand their allies to question media representati-ons, school curricula and textbooks, and histori-cal narratives that had long portrayed the nationfrom the perspective of the dominant Anglo-American group18 . While the Chicano Move-ment was in decline by the mid-1970s, it left inits wake a powerful legacy of social change.

In Puerto Rican communities in the Northe-ast and Chicago, activists organized around is-sues relevant to their urban communities: decenthousing, health care and community services,elimination of racial discrimination and policebrutality, drug abuse programs, and better edu-cational services for their children including su-pport for bilingual education. Puerto Ricanwriters and artists explored and valorized theiridentities as a hybrid people. Their spiritual ho-meland was one rooted in an actual physical

space, the island. Puerto Rico was “Boriquen,”the Taino Indian name for Puerto Rico, andPuerto Ricans “boricuas” (KLOR DE ALVA,1997). The Puerto Rican Young Lords Party,the most well-known political organization, sou-ght to develop links between mainland PuertoRicans and their island counterparts and advo-cated independence for the Island (YOUNGLORDS PARTY, 1971).

Puerto Rican activists also sought to build con-nections with their African American neighbors,joining forces to work for programs that benefitedboth communities. As Pablo Guzmán, a dark-skin-ned Puerto Rican activist succinctly put it:

Puerto Ricans like myself, who are darker-skin-ned, who look like Afro-Americans, couldn’t…(avoid seeing connections between the two com-munities), ‘cause to do that would be to escapeinto a kind of fantasy. Because before peoplecalled me a spic, they called me a nigger. (YOUNGLORDS PARTY, 1971, p.74).

Those connections – based in shared expe-riences of prejudice and discrimination andgrounded in their shared neighborhoods, scho-ols, and workplaces and the Afro-Caribbeanelements brought from the island – are visibletoday in much of the Nuyorican literature, mu-sic, language usage, and artistic production.

melao was nineteen years oldwhen he arrived from santurce (city in PuertoRico)spanish speaking streets…malaíto his son now answeredin black american soul english talkwith native plena sounds (African-based PuertoRican music)and primitive urban salsa beats. (LAVIERA, 1988,p.27)

18 See for instance the New York State Education DepartmentIbero-American Heritage Curriculum Project (1987): Lati-nos in the Making of the USA: Yesterday, Today andTomorrow, which involved academics from various Latinocommunities and Latin American countries. It was originallyconceptualized as a “celebration” of Hispanics to be releasedin 1992, marking 500 years of the “discovery” by Columbusof the “New World.” The academics involved in the Projectinsisted instead that it also look critically at the experiencesand situation of U.S. Latinos and the making of LatinAmerica. The heated national response to the New YorkState Education Department’s publication of a suggested“Curriculum of Inclusion” (see SOBOL, 1989), an analysisgenerated largely by minority academics, is also noteworthy.

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Ellen Bigler

The black/white racial binary that the U.S.was founded on – where one drop of “black”blood makes a person “black” – conflicts withnotions of race that Latinos bring to the U.S.(RODRÍGUEZ, 2000). Puerto Ricans, among allLatinos, have felt the impact of racialization inthe U.S. most profoundly. Indeed, different sha-des of color within the community have transla-ted into different experiences (KLOR DE ALVA,1997; RODRÍGUEZ, 1989). Dark-skinned Pu-erto Ricans must confront a society that seesthem first as “black”. Piri Thomas, a Puerto Ri-can writer, recounts in his autobiography DownThese Mean Streets his painful discovery of whatit meant to be dark-skinned when he applied fora sales job. Told that a job is filled, his light-skin-ned Puerto Rican friend who applies after him ishired for the position on the spot.

I didn’t feel so much angry as I did sick, likethrowing-up sick. Later, when I told this story tomy buddy, a colored cat, he said, ‘Hell Piri, Ahknow stuff like that can sure burn a cat up, but aNegro faces that all the time.’ ‘I know that,’ Isaid, ‘but I wasn’t a Negro then. I was still onlya Puerto Rican.’ (1967, p.104)

The racial diversity of the New York PuertoRican and Dominican populations, in turn, haspromoted a “more reciprocal and fluid relati-onship” (FLORES, 1993, p.183) to AfricanAmerican culture. The cultural sharing and fu-sion that takes place is visible in mainland Pu-erto Rican music, dance, and language. Latinorap for instance creatively comments on theselived realities in intermingling Spanish and Bla-ck English:

I rarely talk Spanish and a little trigueño(Spanglish)People be swearin’ (Black English verb construction)I’m a moreno (black)Pero guess what? I’m puertorriqueño.Word ‘em up.All jokes aside, I ain’t tryin’ to dis (Black Englishphrase equivalent to “disrespect”) any race.(lyrics by KT, in FLORES, 2000, p.129)

Race is not a fixed biological essence butrather a set of socially constructed meaningsthat vary from one location to another (OMIand WINANT, 1994). These meanings are sub-

ject to change and contestation, as seen in thecase of the counter-narrative launched by Lati-na/os and African American social movementsbeginning in the 1960s. “Race” in the U.S. –with only categories of “white” and now“nonwhite,” – differs from “race” in the Carib-bean and Latin America, where intermediarycategories exist and “race” is not as fixed (RO-DRÍGUEZ, 2000). People in the same familycan be classified as different races, dependingon their physical appearance. Changes in dressor social class can alter perceptions of one’srace. This fluidity runs counter to Americanways of evaluating race, and the encounter withAmerican categories can be disorienting forLatina/os. Jorge Duany, for instance (2003,p.274), recounts a colleague’s story of how shemoved from being an india clara (literally, alight Indian) in the Dominican Republic to beingperceived as “black” in the U.S. Dominicans inthe U.S. may choose to emphasize their “domi-nicanness” to avoid being taken for AfricanAmerican (DUANY, 2003). The experience ofliving in the U.S., though, can also result in agreater identification with African Americans,recognition of their common bonds, and ultima-tely greater opportunities for cultural exchangeas both Puerto Ricans and Dominicans live andinteract in close proximity with their urban Afri-can American counterparts. As Duany (2003,p.283-284) notes: “For many racially mixed im-migrants (from the Caribbean), coming to Ame-rica has meant coming to terms with their own,partially suppressed, sometimes painful, butalways liberating sense of negritude.”

As Puerto Ricans and “Dominican Yorks”on the mainland participate in these differentrealities, they become culturally differentiatedfrom their Caribbean counterparts. The returnto the idealized homeland can lead to disen-chantment and psychic pain (FLORES, 2000),as they struggle with the clashes between theimaginary and the “real,” and the disorientingidentity claims of “here” and “there”.

yo peleo por ti, puerto rico, ¿sabes?yo me defiendo por tu nombre, ¿sabes?entro en tu isla, me siento extraño, ¿sabes?entro a buscar más y más, ¿sabes?

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pero tú con tus calumnias,me niegas tu sonrisame siento mal, agallaoyo soy tu hijo,de una migraciónpecado forzado,me mandaste a nacer nativo en otras tierraspor qué, porque éramos pobres, ¿verdad?Porque tu querías vaciarte de tu gente pobre,Ahora regreso, con un corazón boricua, y tú,Me desprecias, me miras mal, me atacas mi hablar,Mientras comes mcdonalds en discotecasamericanas,Y no pude bailarla salsa en san juan, la que yoBailo en mis barrios llenos de todas tuscostumbres,así que, si tú no me quieres, pues yo tengoun puerto rico sabrosísimo en que buscar refugioen nueva york, y en muchos otros callejonesque honran tu presencia, preservando todostus valores, así que,por favor, no mehagas sufrir, ¿sabes? (LAVIERA, 1985, p.53)

The differing experiences and perceptionsof mainland and Island Puerto Ricans could nothave been more apparent than in their respon-se to Mattel’s release of “Puerto Rican Bar-bie” in 1997. Puerto Ricans on the Island weredelighted; Puerto Rican Barbie was an affir-mation of their existence. Mainland Puerto Ri-cans, on the other hand, were offended by herlight skin, Anglicized features, and colonial-tie-red dress. The divergent views were prominen-tly displayed in Island and mainland Puerto Ricannews coverage.

Evidently both communities wrapped a differentnarrative around the plastic and made the Barbiea desirable playmate – silent, but endowed – toengage in the increasingly high-stakes game ofinterests and intrigue called ‘Puerto Rican iden-tity.’ (NEGRÓN-MUNTANER, 2002, p.39)

Puerto Ricans’ disruption of racial catego-ries in this instance – and so many others—speaks to the emergence of new ways of being“Puerto Rican” on the mainland. Like Chica-nos’ insistence on defining who they are, it alsoreveals the socially constructed nature of ra-cial categories, providing yet another rent inthe fabric of American binary constructionsof race.

From Melting Pot to Tapestry?Latina/os have been major contributors to a

seismic shift in the U.S., from celebrating thenation as a homogeneous melting pot to concep-tualizing and (at least in name) valuing it as cul-turally pluralistic, a “tapestry” or a “salad” madeup of diverse and distinctive ingredients that takentogether comprise a whole, with all contributingto the “mix.” U.S. history and literature texts inschools today are more “multicultural” and sen-sitive to cultural stereotyping than texts in the1960s (REINHOLD, 1991). More accurate andbalanced treatments of Mexican-U.S. relationsmay still all too infrequently make their way intohigh school U.S. history texts (ROSALDO andFLORES, 1997), but there has been movement.Schools can no longer punish students for spe-aking Spanish on school grounds, as happenedinto the 1960s (CRAWFORD, 1995). Schoolsare now required to provide students assistancelearning English since the 1973 Supreme Courtcase Lau vs. Nichols. Teachers in training arerequired to complete coursework on multicultu-ral education. By 1997, the renowned Americanhistorian Nathan Glazer, who had earlier cha-racterized the calls for affirming cultural plura-lism and the emphasis on the oppressionexperienced by minority groups as divisive, epi-tomized the shift by proclaiming in print that “weare all multiculturalists now.”

BacklashThe transition has not been a smooth and

unidirectional one. The profound critique laun-ched by people of color, women, social histori-ans, and other academics and activistsconfronted a sustained counterattack beginningin the 1980s. It is a culture war that continuesto the present day.

In my own ethnographic research in upstateNew York in the early 1990s19 , in which I exa-mined community and school discourses regar-

19 See American Conversations (BIGLER, 1999) for a fullertreatment of the community conflict over multiculturalismand bilingualism.

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ding educational and economic success andLatina/os’ perceived inability to make progressin these areas, I repeatedly found Latina/oscompared unfavorably to earlier white Europe-an immigrants. Their greater economic margi-nalization was seen not as owing to forceslargely beyond their control – discrimination, lossof manufacturing jobs, globalization, impoveri-shed homelands – but rather as the product oftheir unwillingness to work hard and sacrifice.Outspoken community elders – descendants ofthe turn-of-the-century southern and easternEuropeans – envisioned welfare as somethingthat individuals abused to avoid work20 :

[Hispanics] seem to feel that they are owedsomething (…) [They should] exercise theirrights and return to their native homeland.America, love it or leave it.” (Letter to the Editor)

[Latinos are responsible for] 90 percent of alltroubles in Arnhem. (…) You people aren’twanted here – go get welfare somewhere else.(Letter to Latino community activists, read at aschool board meeting)

I can’t understand why the Hispanic populationdoesn’t want to be educated (…) Do you thinkthat (…) [European immigrants] were just handedeverything? No, they worked hard. (Speaker #13,public forum)

Latina/os’ insistence on maintenance of adistinct ethnic identity and their use of Spanishin public were held to be choices that represen-ted their unwillingness to “become” Americans:

Why are these [Puerto Rican] kids doing this?Why are they not speaking English when theycan? Why aren’t they trying to fit into themainstream? (…) There’s never going to be anAmerican identification if we all have our ownareas. They’re not different than earlier waves.They worked, they learned the language, and thatwas your key to success. (Debra Moskowitz, Euro-American Spanish language teacher, age thirty)

Keep your heritage and language, speak Spanishat home or with your friends, but learn to speakEnglish in school and the outside world if youwant to succeed. [Loud applause from theaudience.] Whether you like it or not, this is anEnglish-speaking country (…) I myself amlearning Spanish because I want to. You have to

want to learn English. (School board member,public forum)

They [Latinos] come here, they want their ownways, they want to change our ways. And ourways is our ways, and if they want their ownways, they should go back to wherever they camefrom. (Talk show caller)

Latinos, these older Euro-American citizens cla-imed, were confronting neither more nor less thanwhat their own grandparents had confronted.

If there’s been racism in Arnhem school district,maybe I’m naïve, I don’t know about it. I didn’tfeel it. . . . The Italians were called guineas andwops, so what’s new, what’s the difference?(Retired teacher, public forum)

(Speaking to a guest who is upset about herdaughter being called “nigger”) Let me tell yousomething. Just like the one lady said, they wereall – what are the Italian people called? Greaseballs, wops, and everything like that. (…) [Did]they make a big fuss over it, and have trouble inthe community over it? (…) I think it’s [thecomplaints in the Latino community about theirtreatment] turning a lot of people that did likethe Costa Ricans, the Puerto Ricans, theHispanics, I think it’s turning them the other waya lot. (local talk show caller)

What went unacknowledged in these com-munity discourses were the structural factorsand the ongoing racism facing Latina/os, diffe-rentiating them from earlier immigrants.

The Latina/o community challenged the pic-ture painted by the white ethnic senior citizens.“Difference” was not problematic; they por-trayed it as a positive quality and something thatthe nation was founded on. Spanish languagemaintenance was not a hindrance, but rather astrength.

Nowhere in the U.S. Constitution is English theofficial language. (…) They left it open so thatpeople who wanted to come (…) didn’t have to

20 The mid-1990s welfare reforms that put in place policiesprofoundly limiting people’s access to welfare wereenvisioned as the catalyst for putting people back to work,and initially deemed a success. The reality was otherwise: itwas the expansion of work opportunities in the late 1990sboom that meant that people could leave welfare. Withjobs once again in jeopardy, the perceived success of thecutbacks appears to have been overly optimistic.

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worry about speaking English to fit in. (…) The“English Only” movement is only gonna damagethe greater culture (…) because we’re such amixture of many, many cultures. (Latina/o collegestudent, public forum)

We should learn from other ethnic minorities whoregret that they can’t speak their native language.(…) We don’t want our children to have thatsame regret. (Latina/o community agency leader,newspaper interview)

It was racism and exclusion, they argued,that damaged the self-esteem and chances forLatina/os’ upward mobility:

The self-esteem of Hispanic students is sufferingin our schools, because we hear every day ofnegative messages about who we are and whywe are here (…). We want to achieve (…) toorganize as a group (…) [to] deal with theprejudice (…) constructively. (Latina/o highschool student, public forum)

Without that information [ethnic contributionsto the United States], children are handicapped– they are defenseless – and information abouttheir heritage is needed to arm them (…). If theyhear nothing (…) then they think, ‘I must benothing.’ (Latina/o community leader, newspaperinterview)

The debates in this particular community hadtheir own local “accent,” but they were heldagainst the backdrop of a larger national deba-te about language, the telling of history, and howto explain the prevailing sense of decline in thenation’s wellbeing. The impact of de-industria-lization and the move toward a service economywere being more intensely felt as economic res-tructuring threatened the traditional livelihoodof blue collar male workers. Minorities simulta-neously were entering the middle class and pre-viously “white” institutions in greater numbersbecause of the successes of the civil rightsmovements and demanding changes. Conser-vative whites, threatened by earlier gains likegovernment-supported affirmative action pro-grams and bilingual education, organized to oppo-se what they viewed as “reverse racism,”“government handouts,” and divisive languageand education policies they perceived as pan-dering to minorities. English Only and Official

English movements gained ground21 . Conser-vative intellectuals like historian Arthur Schle-singer joined the raucous debate in publishingThe Disuniting of America (1991), which ar-gued that the promotion of multiculturalism wasdangerous to democracy because it threatenedthe unity of the nation. Racial tensions werepalpable, albeit in a new form.

Into the 21st CenturyWhile the economic boom beginning in

the mid-1990s helped to momentarily quell someof the more strident voices, the subsequent eco-nomic downturn and the psychological and eco-nomic impact of the September 11, 2001 attackson the World Trade Center Towers have con-tributed to a climate of uncertainty and greaterpotential for conservative movements. Latinos,whose demographic growth is being highly pu-blicized, make an easy target.

Latina/os surpassed African-Americans asthe second largest “racial” group in New YorkCity in 1996; California joined New Mexico inbecoming a “majority-minority society” in 2000;and in seven of the ten largest cities Latina/osnow outnumber African Americans (DAVIS,2001). Calls to close the borders against the“brown tide rising” have become louder.

California governor Pete Wilson in his re-election campaign, for instance, spoke of “hor-des of Mexican immigrants,” “invaders” that“pour” into the U.S., and of California as a sta-te “awash under a brown tide” (SANTA ANA,2002, p.286-287). Books like Alien Nation(BRIMELOW, 1995), which argues that theAmerican people are in danger of being engul-fed by foreigners, hit a responsive chord amongmany Americans. With a sense of social andeconomic vulnerability on the rise since the late1990s, nativist forces have found new villains.African American “welfare queens,” purpor-ted to be living off the fat of the land, have been

21 See Bigler, 1999 for an analysis of this period, and an up-close ethnographic study of a community locked in conflictover multiculturalism and bilingual education.

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displaced by the “flood” of Mexican immigrantsas the culprits likely to bring down the nation.The well-read magazine Foreign Policy recen-tly printed excerpts from Who Are We by Sa-muel Huntington (2004b), Chairman of theHarvard Academy for International and AreaStudies, in which the author sounds the alarmagainst Hispanic immigration. “One index fore-tells the future,” he warns ominously, “In 1998,‘Jose’ replaced ‘Michael’ as the most popularname for newborn boys in both California andTexas” (HUNTINGTON, 2004a, p.38).

The persistent influx of Hispanic immigrantsthreatens to divide the United States into twopeoples, two cultures, and two languages. Unlikepast immigrant groups, Mexicans and otherLatinos have not assimilated into mainstreamU.S. culture, forming instead their own politicaland linguistic enclaves – from Los Angeles toMiami – and rejecting the Anglo-Protestantvalues that built the American dream. The UnitedStates ignores this challenge at its peril.(HUNTINGTON, 2004a, p.30)

Responding to the outcry over Huntington’sarticle, Patrick Buchanan, well-known spokes-person for right-wing causes and editor of TheAmerican Conservative, concurred:

Will the U.S. Southwest cease to be truly Americanby mid-century? Is Mexifornia reality andMexamerica22 a certainty? (…) It is impossible tosee who, or what, is going to stop the invasion ofthe United States before the nation’s character isaltered forever, and we become two nations withtwo languages and cultures – not unlike thePalestinians and Israelis on the West Bank.(BUCHANAN, 2004)

Huntington further argued that working classand middle class “white nationalism” in respon-se to loss of jobs, government affirmative acti-on programs, and perceived cultural andlinguistic threats from the expanding power ofHispanics may be moving the U.S. toward ra-cial conflict without precedent in our history.Continuation of large-scale immigration:

… could divide the United States into a countryof two languages and two cultures…. There isno Americano dream. There is only the Americandream created by an Anglo-Protestant society.

Mexican Americans will share in that dream andin that society only if they dream in English.(HUNTINGTON, 2004a, p.44-45)

Such arguments reflect an ignorance of,or willingness to ignore, our immigration andnational history and the changing internationalscene. Hispanics are not “invading” the UnitedStates: The percentage of the U.S. that is fo-reign born today, 12.4 percent (U.S. CensusBureau American Community Survey, 2005),is lower than in 1890, when 14.8 percent ofAmericans were foreign-born (SUÁREZ-OROZCO and ORFIELD, 2004). Three in fiveHispanics are native-born U.S. citizens, and over20 percent of immigrants were naturalized by2002 (DANIELS, 2004). Hispanics are not re-jecting education and choosing to remain impo-verished: Immigrant children are completingmore years of school than did immigrants a cen-tury ago (SUÁREZ-OROZCO and ORFIELD,2004). Latin American “fatalism” is not aboutto create a separate cultural divide within thenation: Three-quarters of English-speaking La-tina/os (the same percentage as the generalpopulation) disagree with the statement “Itdoesn’t do any good to plan for the future be-cause you don’t have any control over it”(SURO, 2004). As for the charge that Hispa-nics are not hard-working and in pursuit of theAmerican Dream, while most came to the U.S.with nothing, 78.6 percent of Hispanics todaylive above the poverty line (DANIELS, 2004).A recent survey by National Council of La Raza(2004) found that fully 90 percent strongly orsomewhat agreed with the statement “If youwork hard, you will succeed in America,” and89 percent strongly agreed that “It is importantthat Latina/o children get a college education.”

Finally, while Latinos do tend to value spe-aking two languages, they are not the firstAmerican immigrants to want to maintain theirnative language. German immigrants – the verymodel of successful assimilation – from thecolonial era through the early 1900s created lar-

22 The terms “Mexifornia” and “Mexamerica” combine thewords Mexico with California and America, signifying the“takeover” by Mexicans.

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ge linguistic enclaves with German-languageinstruction in public schools. In 1880, four ofevery five students of German descent in St.Louis, for example, attended bilingual schools(SURO, 2004). Germans by World War I wereeconomically and socially integrated into theU.S. Only the extreme anti-German sentimentsof the war era led them to abandon their lan-guage and oftentimes their very names.

Unfortunately for the nation, given the needin a globalized economy for speakers of otherlanguages, Latina/os do not appear to be retai-ning their language significantly better than ear-lier groups. The 2002 National Survey of Latina/os found that among second-generation adults,only seven percent relied on Spanish as theprimary language. Half had no Spanish skills atall, and the rest were bilingual. Learning En-glish is considered essential; eighty-six percentstrongly agreed in the National Council of LaRaza Survey (2004) that “The ability to speakEnglish is important to succeed in this country,”and 84 percent agree that “The governmentshould support and expand the numbers of pro-grams to help immigrants learn English.” His-panics also recognize the need to come togetherthemselves if change is to occur; eighty-eightpercent agreed that “It is important for the His-panic community to work together to build poli-tical power.”

Toward New ParadigmsPast models for understanding the immigrant

experience are no longer viable for many oftoday’s newcomers, who are better conceptu-alized as “transnationals.” The globalization thathas proceeded apace in recent decades has setmillions of people around the world into motion,as neoliberal policies displace peoples and FirstWorld countries hold out some meager measu-re of hope to the dispossessed. One could ar-gue that what the U.S. is witnessing is a “harvestof empire” (GONZALEZ, 2000). U.S. actionshave helped put in place policies and people thatpromoted inequalities in its hemispheric neigh-bors and ultimately economic instability that dri-

ves immigration (as with other colonial powers).Mexican workers who moved at the whim ofU.S. government needs, and Puerto Ricansshuttling back and forth between the Island andmainland in search of survival were perhaps theearliest transnationals. They are now joined bya multitude of people who hold multiple allegi-ances that straddle physical borders.

Transnational identities cross over territorialboundaries and national culture in ways that aredifficult to grasp from a traditional ethnographicperspective (APPADURAI, 1991, 1990). Recentapproaches to transnational communities havebegun by discarding the conventional image ofimmigration as a form of cultural stripping awayand complete absorption into the host society(ROSALDO, 1989). Rather, immigrants belong tomultiple communities with fluid and hybrididentities that are not necessarily grounded ingeopolitical frontiers but perhaps in subjectiveaffiliations. Border crossing becomes an apt imagefor not just the physical act of moving to anothercountry but also the crossover between cultures,languages, and nation-states in which transnationalmigrants participate. (DUANY, 1994, p.2)

Older notions of the nation-state, of imper-meable borders, and citizenship must be rethou-ght in the current era when one of every hundredpeople around the world are living in a countryother than their country of birth (FRITZ, 1998).Latinos are deeply insinuated into the fabric ofthis new globalized world as transnational ne-tworks and communities continue to expand.Sixty-one percent of Mexicans have a relativecurrently residing in the United States, and re-mittances from abroad are Mexico’s third-lar-gest source of income (THOMPSON, 2002).The number of Latin American countries allo-wing dual citizenship jumped in the 1990s fromfour to ten, including Mexico in 1998. U.S. La-tinos with dual citizenship are voting in federalelections in their home countries, or even run-ning for elected office. Regardless of whetherpeople hold dual citizenship, they retain connec-tions to their homelands; remittances from theU.S. to the Dominican Republic for instancegrew from 25 million dollars in 1970 to almost800 million dollars in 1995 (VÉLEZ-IBÁNEZand SAMPAIO, 2002).

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Latina/os are by definition adept border cros-sers and border straddlers. They cross racialborders, cultural borders, language borders, phy-sical borders. They re-invent themselves as “notneither,” as Sandra Maria Esteves (1984, p.26)puts it, continuing to maintain their claims to theright to distinctive identities, to exist in the “bor-derlands.” Those “borderlands” are visible incontemporary Latina/o literatures and the arts.Chicano artist and social critic Guillermo Gómez-Pena, poet Sandra Maria Esteves, Chicana acti-vist and author Gloria Anzaldua, Nuyoricanethnographer Juan Flores, all examine and em-brace “the ‘Border’ – everything that representsthe interpenetration of social formations and stan-ds between simple choice of national identity –as a distinctively Latino and dialectical episte-mology” (DAVIS, 2001, p.18).

Being PuertorriqueñaAmericanaBorn in the Bronx, not really jíbara23

Not really hablando bienBut yet, not gringa either. (SANDRA MARIAESTEVES, Not neither, 1984)

Creatively playing with English and Spanish,Guillermo Gómez-Pena reflects in his artisticmanifesto on what “The Border Is” (1993):

Border culture means boycott, complot, ilegali-dad, clandestinidad, contrabando, transgressi-on desobediencia binacional…But it also means transcultural friendship and co-llaboration among races, sexes, and generations.But it also means to practice creative appropria-tion, expropriation, and subversion of dominantcultural forms.But it also means a multiplicity of voices awayfrom the center, different geo-culturalrelations among more culturally akin regions….But it also means regresar, volver y partir: to re-turn and depart once again . . .But it also means a new terminology for newhybrid identities and métiersConstantly metamorphosizing….

To live in these borderlands can be painful,and Anzaldúa (1987, p.2-3) paints vivid imagesof that pain with words:

1,950 mile-long open wound dividing a pueblo, a culture,

running down the length of my body, staking fence rods in my flesh, splits me splits me me raja me raja This is my home this thin edge of barbwire.[This open wound that is the U.S./Mexicanborder is]… where the Third World grates against the firstand bleeds. And before a scab forms it hemor-rhages again, the lifeblood of two worlds mer-ging to form a third country – a border culture.

Straddling that border, poet Aurora LevinsMorales sees the emergence of a new hybridself, and can affirm her “wholeness”:

I am a child of the Americasa light-skinned mestiza of the Caribbeana child of many diaspora, born into this continentat a crossroads.I am not african. Africa is in me, but I cannotreturn.I am not taína. Taíno is in me, but there is no wayback.I am not european. Europe lives in me, but I haveno home there.I am new. History made me. My first languagewas spanglish.I was born at the crossroads and I am whole.(1986, p.50)

Latina/os have challenged traditionalanalytical frames that assume they will tra-vel a unilinear path of language and culturalloss, cultural identity shift, and disappearan-ce into the larger social body. This is in partan outcome of their unique histories in a raci-alized society. It is in part a response to thediffering conditions of contemporary immigra-tion and the economic restructuring in a glo-balizing society that favors bi-national ortransnational identities. It is in part the pro-duct of a series of endless choices they makeand the stories they tell themselves and others.As Stuart Hall reminds us, identity is “‘pro-duction,’ which is never complete, always in

23 “Jibara” is a term used in Puerto Rico to reference the“genuine” Puerto Rican. In the past it meant someone whowas a “country bumpkin.”

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process” (1990, p.222). Challenging the nati-onal ideology of monoculturalism and assimi-lation, and forcing Euro-Americans toconfront their own checkered past, they haveencountered powerful opposition in the pro-cess. “Producing” themselves within the na-tion-state, they have contributed to are-defining of what it means to be American.The “Latinization” of the U.S. goes beyondcross-over artists, food, and music that haveentered the mainstream; these are only themost visible elements of a nation in transiti-on. Latinos are forging cross-national allian-ces, revitalizing spent urban areas, remakingurban ethnoscapes (DAVIS, 2001). “AmeRí-can,” proclaims Nuyorican poet Tato Laviera:

AmeRícan defining myself my own way any waymanyways Am e Rícan, with the big R and theaccent on the í (1985, p. 95)

As always, the U.S. is being “reinvented”from forces within and without. But these newrealities co-exist with a nostalgia for an ideali-zed past. What remains to be seen is whether“America becoming24 ” will embrace the diver-sity and potential of the growing numbers ofLatinos and become the nation that it has solong claimed to be. The “threat” to the nationfor the foreseeable future will not be Latinos,but rather the failure of the national will to cre-ate a more equitable25 and just society that candeliver on the promise that is America.

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24 The phrase “America Becoming” was used as part of the title of a report on the state of racial relations and racial equityin the U.S., commissioned in the 1990s by then-President Bill Clinton25 A review of statistical data underlines the critical nature of this situation. Almost twenty-two percent (21.9) of Hispanicslive below poverty level (2004), compared to 8.6 percent of non-Hispanic whites. Information available at <http://www.census.gov/Press-Release/www/releases/archives/income_wealth/005647.html>, accessed September 6, 2006. Only57 percent of Hispanics have a high school or beyond education (2003) compared to 89 percent of non-Hispanic whites.Information available at <http://www.census.gov/Press-Release/www/releases/archives/education/001863.html>, accessedSeptember 6, 2006.

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Recebido em 02.08.04Aprovado em 24.08.06

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PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Porqueescrever é fazer história: revelações, subversões, superações. Prefácio RuiCanário. Campinas, SP: Graf. FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.

Naddija Nunes ∗

PRADO, Guilherme do Val Toledo & SOLIGO, Rosaura (org.). Why toWrite and do History: revelations, subversions and overtaking. Prefácio RuiCanário. Campinas, SP: Graf. FÉ/UNICAMP, 2005. 384 p.

O livro Porque escrever é fazer história,organizado por Prado & Soligo, professores daFaculdade de Educação da UNICAMP, o pri-meiro, coordenador, e o segundo, integrante doGrupo de Estudos e Pesquisas em EducaçãoContinuada – GEPEC, apresenta a leitura e aescrita sob cinco perspectivas: 1) a escrita comoinstrumento para refletir sobre quem somos; 2)o exercício da capacidade de escrever e pen-sar; 3) a sistematização dos saberes e conheci-mentos construídos; 4) o uso da escritafavorecendo o desenvolvimento intelectual; e5) a afirmação profissional.

Esta publicação reúne artigos de professo-res-pesquisadores, integrantes do GEPEC e daFaculdade de Educação da UNICAMP, e deprofissionais com experiência na área de for-mação continuada de diferentes estados doBrasil, apresentados sob a forma de relato deexperiências cujo foco é a leitura e a escrita.

Os organizadores desta obra articularamtrês partes compostas em capítulos distintos,mantendo a intertextualidade e o diálogo entreos diferentes textos, através de artigos que re-velam a importância da leitura e da escrita nodesenvolvimento pessoal e profissional dos edu-cadores. A segunda parte relata as dificulda-des e a importância da produção de textos para

estudantes e pesquisadores sobre as questõesapresentadas no ato de escrever, a potenciali-dade do trabalhar com memórias na graduaçãoe na pesquisa acadêmica, além de provocar aescrita no âmbito da graduação e da pesquisa,visando à contribuição na subversão de meto-dologias convencionais de tratar a escrita noespaço acadêmico. E por último, as supera-ções na forma de relatos, manifestando a im-portância da produção de textos nas práticasda formação continuada, as quais valorizam eincentivam a escrita dos educadores em tipolo-gia e gênero discursivos diversos como meiode superar a cristalização dessas práticas.

A primeira parte do livro está subdivididaem três capítulos em cujo primeiro destacoquatro revelações anunciadas por Soligo &Prado, no artigo Leitura e escrita: dois capí-tulos desta história de ser educador, comoconquistas obtidas pela leitura e pela escrita:“a possibilidade de utilizá-las como resposta anecessidades de diferentes naturezas; o direi-to de autoria; o exercício da expressão” e que“ler e escrever são atividades de risco.” (p.24). Ao longo do texto, os autores apresentamum registro de um jogo de transgressão, fru-to de uma interlocução imaginária, entre pen-sadores da atualidade que vêm manifestando

* Mestre em Educação. Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB/Departamento de Educação I.Diretora da Editora UNEB e Diretora da Associação Brasileira de Editoras Universitárias - Região Nordeste ABEU-RN. Endereço para correspondência: UNEB/DEDC I, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected] / [email protected]

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idéias sobre possíveis riscos e conquistas queo leitor pode experienciar através da leitura eda escrita.

A primeira emoção com palavras é de ElisaLucinda (2002)1 , poetisa e atriz brasileira: “Apoesia é síntese filosófica, fonte de sabedoria ebíblia dos que, como eu, crêem na eternidadedo verbo, na ressurreição da tarde e na vidabela, amém!”; Guiomar de Grammont (in: PRA-DO; CONDINI, 1999, p. 71-73) revela: “Lerrealmente não faz bem. A criança que lê podese tornar um adulto perigoso, inconformado comos problemas do mundo, induzido a crer que tudopode ser de outra forma.” (p. 27); Paulo Freire(1995, p. 29 e 34) eternizou na expressão que“ler (...) é um trabalho paciente, desafiador,persistente. Não é tarefa para gente demasia-do apressada ou pouco humilde” (p. 29). Nestamesma perspectiva de revelações Prado &Soligo conduzem o leitor para uma reflexão so-bre a escrita e convidam Percival Leme (apudBRITO, 2003, p. 49) para manifestar que ris-cos são estes que a escrita tem? “É uma armaperigosa, se não por outra razão, porque seudestino é a leitura. A escrita documenta. Co-munica. Organiza. Eterniza. Subverte. Faz pen-sar. ...” (p. 32). Ao concluir o texto, elesconclamam os educadores a ensinar todos osseus alunos a ler e a escrever.

Prado & Soligo, ao reunirem contribuiçõessobre o gênero textual memorial, no artigo Me-morial de formação: quando as memóriasnarram a história da formação, anunciampara os educadores a necessidade de enfrentaro desafio de assumir a palavra e escrever so-bre o processo de formação e a sua práticaeducativa. O memorial de formação é o regis-tro que preserva a nossa história do esque-cimento. Nele o autor assume ser, ao mesmotempo, escritor/narrador/personagem da suahistória. As autoras conduzem o leitor a ela-borar o seu memorial por caminhos antes nun-ca sugeridos e configura-se como um textodidaticamente correto. Concluem com uma re-velação de Clarice Lispector (1982): “É na horade escrever que muitas vezes fico conscientede coisas, das quais, sendo inconsciente, euantes não sabia que sabia.” (p. 23).

Em seu texto O diálogo sobre as memó-rias nos clássicos e nossas clássicas me-mórias, Cunha2 manifesta que “esse exercíciode escrita abre a possibilidade de lançar umnovo olhar para as experiências vividas, a re-alidade, o mundo e a cultura, revelando sabe-res e conhecimentos tecidos na prática da vidae da profissão de professoras.” (p.63). A au-tora busca na literatura revelar, através dosclássicos, a intenção da escrita de cada autor,assim como responder por que escrevemosmemoriais? Para que registrar memórias? Eneste sentido, transportando Soares (1991) aotexto, ela reescreve: “nossa vida é bordada semconhecimento prévio do desenho riscado e semconhecermos por inteiro a peça. Voltarmospara olhar, admirar e pensar sobre o bordadojá feito pode desvendar o risco desconhecido,garantindo a compreensão de partes ignora-das.” (p. 71).

O conjunto de artigos da parte II, que tratade subversões, inicia-se com a reflexão sobrea relação do escritor e seu/s outro/s no ato daescrita e no ato da leitura. Enfoca a questão‘quem escreve/quem lê’ e ‘o que se escreve/oque se lê’, envolvendo confrontos, concepções,idéias, contradições, desdobramentos surgidosde conseqüências da escrita, quando esta é so-cializada e lida. Destaca-se dentre o conjuntode textos o que Mota3 intitula O escritor e seuoutro, no qual toma como referência a sua ex-periência como pós-graduanda no Curso deMestrado em Educação. O texto se processapartindo de questionamentos como: quem é esseescritor? O que está por trás do ato de escre-ver? Eu, a escrita e o outro. O escritor e seuOutro: encontros e desencontros. Para ela, o“escritor é o autor que componha uma escritaseja de que tipologia for (...) o importante é es-crever para alguém ler.” Ela confessa que aleitura deu-lhe suporte e segurança para escre-ver. (p. 71).

1 Fragmento da palestra proferida por Elisa Lucinda, sobre autilidade da poesia, na 14ª feira internacional do livro deCuba, em janeiro de 2005.2 Professora universitária e integrante do GEPEC3 Integrante do GEPEC, mestre e professora (conveniada)da Universidade Federal do Acre.

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O artigo de Ropelato4 & Souza5 , Escrita desi: um ponto na linha do avesso, pelo própriotítulo já sugere o estilo adotado no texto. Rico emmetáforas e conduzido como pauta musical, ana-lisa a produção escrita de futuros profissionais daeducação e os modos como os universitários inte-ragem com os textos que produzem. Neste senti-do, as autoras apontam que “a escritura necessitade desenvolvimento e de sucessão, simultaneida-de e instantaneidade”. (p. 98).

Fernandes6 traz partes do seu memorial deformação para deixar marcas com possibilida-des de mostrar-se como sujeito-professora emformação. No seu artigo Entre a disciplina ea (re)invenção: a escrita das professoras nocotidiano escolar e nos entremeios do dis-curso pedagógico, ela busca estabelecer umarelação entre o seu memorial e os escritos dasprofessoras. Ela considera que é preciso cons-truir autonomia e a autoria daquilo que falamose escrevemos, a partir da reflexão sobre o quenos atravessa e influencia, de forma a poderlidar criticamente com esses determinismos.

Tamboril7 reflete em seu artigo, Memóriasde escrita e desenvolvimento da competênciaescritora na formação de professoras: umaexperiência escritora na formação de profes-soras: uma experiência no Portal da Amazô-nia, a importância da escrita como estratégia deformação de professoras, tomando como refe-rência a própria experiência. Ela é convencidade que “professores e professoras também que-rem aprender e não só ensinar”. (p.131)

Varani8 , em Memórias de professores napesquisa em educação: experiências que re-existem, confessa que a escola é um espaço depossibilidades. A experiência vivida com umgrupo de professores, que gestou um projetopolítico pedagógico em uma escola pública emSão Paulo, levou-a a destacar duas lições: aprimeira, que “o processo de recuperação dememória supera perspectivas que não conside-ram a escola como espaço de produção”, a se-gunda, que “o conjunto de experiências relatadopelos professores reflete o conjunto do traba-lho docente coletivo.” (p. 140).

Nogueira9 narra uma experiência de pes-quisa conseqüente de um programa de forma-

ção continuada. Memórias e quintais confir-ma que a escrita de memoriais se constitui comoespaço para interagir com momentos esqueci-dos, “de conhecer a força real de suas históri-as, de narrar suas memórias.”

Em Escrita de professoras: estratégia deformação e instrumento de valorização pro-fissional, Zibetti10 apresenta experiências deformação de professoras alfabetizadoras cujaênfase foi no uso da escrita como estratégiaformadora e reflete sobre algumas conquistase desafios desta prática.

Melo11 revela em Resistência, dificulda-des e avanços: o registro escrito como es-tratégia de formação na Universidade queas escritas foram evoluindo: de registros maisdescritivos para registros mais reflexivos. Usaro registro como dispositivo de formação reafir-ma o quanto esse tipo de proposta é um recur-so importante para o desenvolvimento pessoale profissional que deve ser considerado noscursos de formação de professores.

Garcia12 e Dutoit13 em Ler e escrever, aquem se destina? Uma abordagem sobre oensino da leitura e da produção de textosno Ensino Superior, evidenciam desafios ealertam para que “professores e alunos pen-sem em projetos ou programas que superem aslimitações sobre a leitura e a escrita e as enca-

4 Carla Clauber da Silva Ropelato: mestre em educação,professora colaboradora da Universidade de Joinville esupervisora da Secretaria Municipal de Educação.5 Roselete Fagundes Aviz de Souza: mestre em educação,professora colaboradora da Universidade de Joinville esupervisora da Secretaria Municipal de Educação.6 Carla Helena Fernandes: pedagoga, doutoranda na Unicampe integrante do GEPEC.7 Maria Ivonete Barbosa Tamboril: pedagoga, mestre e dou-toranda na USP.8 Adriana Varani: doutora pela Unicamp e integrante doGEPEC.9 Eliane Greice Davanço Nogueira: professora da Universi-dade de Mato Grosso do Sul e integrante do GEPEC.10 Marli Lúcia Tonatto Zibetti: professora da UniversidadeFederal de Rondônia.11 Elisabete Carvalho de Melo: professaora da UniversidadeFederal do Acre.12 Midian Garcia: professora da Faculdade Jorge Amado e daUESB, Bahia.13 Rosana Dutoit: professora, coordenadora de projetos daAbaporu.

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rem como práticas que lhes caberá ensinar.”(p. 185)

Chaluh14 , ao refletir sobre os processos deleitura e de escrita ocorridos no espaço de for-mação, no artigo Leitura e escrita: possibili-dades para a reflexão, procura compreendero significado da inclusão da literatura na disci-plina Prática de Ensino nas Séries Iniciais, aotempo em que instiga sobre o sentido de valori-zar a leitura e descobrir pistas que permitamentender a prática de leitura que privilegia a li-teratura. Ela busca em Larrosa (2002) umadefinição para a formação de um outro tipo deleitor que possa fazer da ‘leitura uma aventu-ra’. Além disto, compreender que “o mais im-portante não é ter um método para ler, mas saberinteriorizar-se por territórios inexplorados noqual possamos produzir sentidos novos e múlti-plos.” (p. 199)

A experiência da escrita ou reflexões so-bre relatos de formação docentes narradosna liberdade da leitura, contribuição trazidapor Santos15 , propõe a “leitura do cotidiano es-colar como possibilidades de organização denarrativas das experiências docentes e de or-ganização de conhecimentos lastreados na ex-periência.” (p. 214).

Ferreira16 , em Uma experiência de pro-dução coletiva de textos, conclui a segundaparte narrando três experiências que aconte-ceram em momentos diferentes nos encontrosdo GEPEC. Ao compreender a produção cole-tiva de textos, a partir “do pressuposto de que aação de ler e socializar a própria produção re-flexiva extravasa e amplia o texto e seu con-texto inicial, abrindo-o para o infinito”, elaconfirma que assim “as idéias já não são maisde um único sujeito, mas daqueles que fazemdo texto um exercício de polifonia.” (p. 241).

Em superações, última parte desta obra,Fujikawa17 destaca no seu artigo, A escritacomo pretexto de reflexão da prática peda-gógica e como estratégia de intervenção naformação de professores, a socialização dosregistros como estratégia de intervenção privi-legiada na formação, a possibilidade da revisãodas ações e dos posicionamentos assumidos nasdiferentes experiências vivenciadas.

Rosa18 , ao revelar sobre A escrita dos pro-fessores: instrumento de reflexão sobre aprática pedagógica, anuncia que a escrita éum auxílio à memória e que escrever vai alémdo contar, necessitando de escolhas e decisãosobre o quê e como contar.

Neves19 evidencia, em seu artigo O Rela-tório de aprendizagem como estratégia deavaliação formativa e de desenvolvimentoprofissional docente, a relação existente en-tre a leitura, escrita e oralidade; o exercício deescrever sobre a prática sendo um elementodesafiador do professor.

Foi escrevendo sobre O que revelam pro-fissionais da educação quando refletem porescrito sobre sua trajetória profissional, queMoraes20 acredita ser competência profissio-nal essencial à atuação de um professor refle-xivo a capacidade de registrar o que pensasobre o que faz.

Vaz21 e Veliago22 afirmam, no artigo Lerpara simplesmente ler. Ler para melhor es-crever, que os educadores precisam “assumiro seu próprio lugar como participantes da cul-tura escrita”. (p. 319).

Corroborando com estas idéias, Broner23

em A escrita de diários no processo de for-mação profissional revela os sentidos que ela-borou no exercício da formação de professorese destaca a linguagem escrita como o caminhopara um trabalho voltado para indivíduos e as

14 Laura Noemi Chaluh: doutoranda pela Unicamp e inte-grante do GEPEC.15 Professora mestre e integrante do GEPEC.16 Cláudia Roberta Ferreira: professora, mestre, participan-te do grupo GEPEC.17 Mônica Matie Fujikawa: mestre em educação e formadorade educadores.18 Maria da Conceição de Carvalho Rosa: professora doInstituto de Aplicação de UERJ19 Josélia Gomes Neves: professora da Universidade Federalde Rondônia.20 Marilza Bode de Moraes: professora assistente do CAP-UERJ.21 Débora Vaz: pedagoga, coordenadora pedagógica e forma-dora de professores.22 Rosangela. Pedagoga Veliago: coordenadora pedagógica eformadora de professores.23 Ester M. Broner: Professora, pedagoga, formadora deprofessores na Universidade Hebraica de Jerusalém.

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histórias de seus percursos na construção desua identidade em contextos de aprendizagem.Afirma que escrever é “um ato solidário do pen-samento”.

Soligo confessa numa carta aos leitores, aimportância deste gênero textual na vida e naformação pessoal e profissional e a transportapara o seu texto. Ressalta que a carta é umgênero que deve ser valorizado e que favorecea escrita e apresenta uma maneira de como sepode vê-la em face do texto acadêmico. Paraela, é motivo de sobra tomar a carta como umtexto de relevância em nossa vida, na forma-ção pessoal e profissional.

Esta resenha não seria mais instigante senão fosse descritiva. A beleza explícita nos tex-tos, as emoções expressas e sentidas pelos seusautores, as revelações, as subversões e as su-perações, os reflexos conseqüentes marcadosno leitor não estariam tão visíveis para convi-

dá-lo se não fosse por este caminho, conside-rado o mais acertado por esta resenhista. Oconjunto de textos aqui publicados encanta qual-quer leitor mais avisado sobre a escrita e a lei-tura, patrocinou em mim muita inquietação,sobretudo os registros que deixam a escrita e aleitura na existência humana. Na condição deleitora, necessito revelar que não somente li,mas vivi o lido. Assim confirmo o que Larrosa(2002, p.17) evidencia: “A experiência da leitu-ra não consiste somente em entender o signifi-cado do texto, mas em vivê-lo”.

Sem dúvida, a leitura deste livro favorecerá,substancialmente, os profissionais interessadosna leitura e na escrita, professores formadoresem diferentes níveis de ensino e no leque abran-gente de habilitações, desde que considerem queler e escrever são práticas sociais e culturaisque devem ser conquistadas para se ter acessoao conhecimento.

REFERÊNCIASBRITO, L.P.L. Sociedade de cultura escrita, alfabetismo e participação. In: RIBEIRO, V.M. (Org.). Letramentono Brasil. São Paulo: Global Editora/Instituto Paulo Montenegro/Ação Educativa, 2003. p.50-51

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho d’Água, 1995.

LARROSA, J. Nietzsche e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

LUCINDA, Elisa. A escrita: memória dos homens. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

LINSPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de janeiro: Rocco, 1984.

PRADO, J.; CONDINI, P. (org.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999.

SOARES, M. Metamemórias-memórias: travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez. 1991.

Recebido em 06.02.06

Aprovado em 08.05.06

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COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, 58 p.

As crianças como sujeitos sociaisEric Maheu ∗

COHN, Clarice. The Anthropology of Children. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005, 58 p.

* Mestre em Antropologia Cultural na Université Laval (Canadá) e doutorando na Université de Montréal (Canadá).Professor adjunto do curso de pedagogia da Fundação Visconde de Cairu. Endereço para correspondência: FundaçãoVisconde de Cairu, Rua do Salete, n. 50, Barris – 40070.200 Salvador-BA. E-mail: [email protected]

O livro de Clarice Cohn atende muito bemaos objetivos da coleção “Passo a Passo”, naqual está publicado, por ser muito acessível eatualizado. Este volume constitui verdadeiramen-te uma introdução ideal sobre o assunto para osneófitos e me parece muito bem vindo no con-texto atual, pois a área de educação no Brasil ébastante dominada por perspectivas psicológi-cas pouco atentas às dimensões mais veladasdas variações culturais.

Por esse motivo, embora sejam relativamen-te conhecidos os trabalhos pioneiros de Phili-ppe Ariès sobre a criança no Antigo Regime,persiste ainda, entre os pesquisadores em edu-cação, uma forte tendência em naturalizar ainfância e, por isso, em não ouvir as vozes daspessoas rotuladas como “crianças”. Quantaspesquisas sobre a escola brasileira procuramsaber como os alunos representam a escola,quais são as suas estratégias para aprender ounão aprender, como eles dão um sentido aomundo que os rodeia? As crianças que apare-cem nas pesquisas são, ora vitimas, ora refle-xos (da exploração, da corrupção, da desigual-dade, do racismo, do subfinanciamento daeducação pública, etc.). Uma perspectiva an-tropológica sobre a criança pode nos permitir,como afirma Cohn, superar esta perspectiva dacriança como um ser incompleto a ser forma-do, o que nos impede de considerar seriamenteo seu ponto de vista como sujeito social. Cohninicia a sua apresentação dos estudos antropo-lógicos pelos estudos clássicos de MargarethMead e Gregory Batheson, que relativizaram e

desnaturalizaram tanto a infância como a ado-lescência, mas que, como as perspectivas es-trutural-funcionalistas a seguir, mantinham avisão da criança como objeto (de um processode socialização) e ser inacabado. Estes abor-dagens permitiram a inserção das crianças emseus contextos socioculturais, porém não abri-ram as perspectivas para uma concepção maisativa da infância.

O olhar sobre as coisas muda com o surgi-mento de uma perspectiva mais complexa e maisdinâmica da cultura como sistema simbólico nosanos 1960. Enquanto a sociedade era pensadasó em termos da transmissão e aquisição (devalores, normas) não se podia conferir umaperspectiva ativa à criança que doravante pas-sava a “… ter um papel ativo na definição desua própria condição.” (p.32)

A autora ilustra este papel ativo, doravante,presente na antropologia da criança em váriaspesquisas: sobre as crianças Xicrin que elamesma estudou, sobre meninos de rua de SãoPaulo e crianças Fiji. Em todos estes casos, ascrianças pesquisadas se revelam como produ-tores de cultura e como tendo uma relativa au-tonomia cultural em relação ao mundo adulto.

No final, aborda a questão da pesquisa emeducação enriquecida por uma antropologia dacriança: “em cada caso, uma concepção depessoa, criança e aprendizagem conformará ummodelo específico de transmissão e apropria-ção de conhecimentos” (p.39). Em cada con-texto sociocultural existe um modelo diferente,não só de ensino e aprendizagem, mas também

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de transmissão e de conhecimento. A autoraconclui, comentando sobre as interfaces entrea antropologia da criança e outras disciplinasou práticas interdisciplinares, e cria um reper-

tório de técnicas relevantes para a pesquisa.Recomendações para a leitura e bibliografiacomentada completam esta estimulante e útilobra.

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QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. Universidade e desigualdade: brancos e negrosno ensino superior. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.

Ações Afirmativas, Ensino Superior e Políticas Públicas

Jocélio Teles dos Santos *

QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. University and Inequality: Whites andBlacks in Superior Education. Salvador: Líber Livro, 2004. 167 p.

* Professor do Depto. de Antropologia e Diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA. Endereço paracorrespondência: Rua Carlos Conceição, 42, Residencial Praia de Buraquinho, Casa 7 E, Buraquinho – 42700-000Lauro de Freitas-Bahia - CEP – E-mail: [email protected]

Nos últimos meses a Universidade Federalda Bahia vive uma experiência inédita. O sis-tema de cotas implantado provocou reaçõesdiversas que podem ser vistas na imprensa,seja em matérias sobre as ações judiciais ouem cartas dos leitores. Vários são os argu-mentos utilizados para a defesa ou a crítica àadoção das ações afirmativas. Um deles é opercentual que a UFBA reservou para os alu-nos oriundos da escola pública: 43%. Essequestionamento aparece na própria universi-dade ou em debates que se multiplicam emvárias cidades do país. Qual foi o critério lógi-co para tal reserva de vagas? A resposta seencontra no livro recém-publicado, Universi-dade e Desigualdade. Brancos e Negros noEnsino Superior, de Delcele MascarenhasQueiroz, professora da Uneb. Em 1997, o Pro-grama A Cor da Bahia da Faculdade de Filo-sofia e Ciências Humanas apoiou uma pesqui-sa proposta por Delcele Queiroz.

Tratava-se de uma incursão inédita: um le-vantamento sobre a distribuição dos alunos emtermos de cor, gênero, escolaridade dos pais,renda familiar. Até aquele ano, vários eram osestudos no país sobre desigualdades raciais emespaços como o mercado de trabalho. Mas, nãohavia um desenvolvimento sistemático de algosimilar com relação à educação superior. Ha-via, com certeza, muito impressionismo, ou o

popular “achismo”. A razão era que o quesitocor não existia nos formulários de inscrição parao vestibular em nenhuma universidade do país.

A realização da pesquisa provocou reaçõesdas mais diversas, desde o questionamento depais, estudantes, professores e a administraçãocentral da Universidade sobre a necessidadeda resposta a uma pergunta que é similar aoque respondemos no censo demográfico. Lem-bro-me de reações em programas de televisãoe rádio da cidade do Salvador como, por exem-plo, “Eu acho que não tem nada a ver!”, “Se aUFBA quer saber a cor é por que quer discri-minar.” A pesquisa realizada por Delcele Quei-roz na UFBA se estendeu, em 2000, para ou-tras instituições públicas do país como a UFRJ,UFPR, UnB e UFMA, assim como as reaçõesà inclusão do quesito cor nos formulários dasuniversidades. Se, naquele período, não se fa-lava em sistema de cotas no país, por outro ladoum levantamento científico acerca da distribui-ção dos alunos por cursos de prestígio (Medici-na, Engenharias, Odontologia, Direito, Comuni-cação-Jornalismo) nas universidades indicavao secular dilema brasileiro: a possibilidade deinclusão de negros em espaços de prestígio in-dicava, de imediato, a sensação de incômodo,quando não de tergiversações.

A pesquisa realizada na UFBA deu comoresultado a elaboração da tese de doutorado e,

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finalmente, a edição em livro. Os dados levanta-dos mostram, primeiro, que o percentual de pre-tos e pardos, em 1998, era de 41,8% e que elesse encontravam em cursos considerados na so-ciedade como de baixo prestígio. Segundo, que osistema de classificação racial brasileiro era ab-sorvido e reproduzido em um ambiente universi-tário, tanto as cinco categorias do IBGE (preto,pardo, branco, amarelo e indígena) quanto àsvariadas categorias de “uso múltiplo” no cotidia-no como negro, moreno, moreno claro, escuro,preto e mulato eram auto-identificadoras paraaqueles que ingressaram nas universidades pú-blicas federais. Terceiro, ao trabalhar com umasérie histórica (1993-1998), podemos percebercomo a perversão do sistema era contínua. Osnegros tinham um crescimento na seleção daUFBA, mas isso ocorria em cursos considera-dos de baixo prestígio. Os ingressos em cursoscomo Medicina, Odontologia, Direito se auto-declaravam brancos, haviam estudado em esco-las particulares e a escolaridade dos seus paisera de nível superior.

Destaco a importância desse estudo para aUniversidade Federal da Bahia, posto que ele muitonos auxiliou na elaboração da proposta de açõesafirmativas aprovada. Ao contrário de universi-dades cuja decisão pelas cotas foi tomada pelaAssembléia Legislativa, ou mesmo por determi-nações de percentuais que não têm nenhuma con-

sistência com a distribuição de estudantes negrose de escolas públicas nessas universidades, aUFBA teve um referencial objetivo para comporuma proposta. Os dados demonstrados com acui-dade no trabalho original indicam que não se tra-tava somente de um trabalho original, mas de umapesquisa que foi traduzida em política pública. Nãoé à toa que a proposta do governo que tramita noCongresso Nacional teve como inspiração aquelaadotada pela UFBA, que, por sua vez, amparou-se em dados coletados e analisados por DelceleQueiroz.

Infelizmente, a editora optou por publicarsomente dois capítulos da referida tese, pois notrabalho original vemos o desempenho dos es-tudantes oriundos das escolas públicas e priva-das em cursos como Medicina, ao longo de qua-tro anos. E, nesse momento, em que mais dedez universidades públicas adotaram o sistemade cotas, a análise de desempenho dos estu-dantes “cotistas” é fundamental para uma ava-liação crítica das políticas recentemente adota-das. De todo modo, o mérito de transformarem livro uma publicação anteriormente restritaa especialistas traduz-se como o reconhecimen-to do ineditismo deste trabalho.

Recebido em 05.07.05Aprovado em 01.05.06

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INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

A Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade é uma publicação semestral eaceita trabalhos originais que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:- resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;- entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.

Os trabalhos devem ser apresentados em disquete ou enviados via Internet para JacquesJules Sonneville – e-mail: [email protected] - segundo as normas definidas a seguir:

1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereçosresidencial e profissional, telefone, e-mail; c) titulação; d) instituição a que pertence(m) e cargoque ocupa(m).

2. Resumo e Abstract, cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resul-tado, conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de,no mínimo, três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo. Atenção: cabe aosautores entregar traduções de boa qualidade.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (cor cinza, dpi 300), quando apresentados em sepa-rado, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referên-cias de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecidapelo Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.

4. Sob o título Referências deve vir, após parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dosautores e das publicações conforme a NBR 6023 de setembro de 2003, da ABNT (AssociaçãoBrasileira de Normas Técnicas). Vide os seguintes exemplos:

a) Livro de um só autor:BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.

b) Livro até três autores:NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução deGeraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.

c) Livro de mais de três autores:CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: artes medicas, 1996.

d) Capítulo de livro:BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.).Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.

e) Artigo de periódico:MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Umabreve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun.2002.

f) Artigo de jornais:SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. OGlobo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.

g) Artigo de periódico (formato eletrônico):TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileirade História, São Paulo, SP, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago.2000.

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h) Livro em formato eletrônico:SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.

i) Decreto, Leis:BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos paradespacho de aeronave em serviço internacional. Lex: Coletânea de legislação e Jurisprudência, SãoPaulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar., 1. trim. 1984. Legislação Federal e marginalia.

j) Dissertações e teses:SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) –Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.

k) Trabalho publicado em Congresso:LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridadesbrasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE:HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 13., 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.

IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego dapontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme.

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR10520 de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entreaspas ou em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte dotexto, este deve aparecer em letra cursiva, observando e respeitando a língua portuguesa. Exem-plo: De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deveaparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir:A pedagogia das minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídasde sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data deacesso. Para qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo,no rodapé das páginas do texto, devem constar apenas as notas explicativas estritamente ne-cessárias, que devem obedecer à NBR 10520, de 2003.

6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como osagradecimentos, apêndices e informes complementares.

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos deteses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, e conter título, número de folhas, autor (eseus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e data da defesa pública.Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:

• letra: Times New Roman 12;• tamanho da folha: A4;• margens: 2,5 cm;• espaçamento entre as linhas: 1,5;• parágrafo justificado.

8. As colaborações encaminhadas à revista são submetidas à análise do Conselho Editorial, aten-dendo a critérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificação daautoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação. A aceitação da matéria para publica-ção implica na transferência de direitos autorais para a revista.

A Comissão de Editoração