revista geminis | ano 3 | n. 1 • jan./jun. 2012

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Esta edição é dedicada à discussão de um tema contemporâneo e que é relativamente inédito nas publicações acadêmicas e muito pouco debatido pelos estudiosos nas universidades, mas que é de extrema relevância para o futuro das sociedades conectadas pelas redes sociais: O Ativismo Digital. Nesta edição, os ativistas são vistos como os novos consumidores de mídia que não possuem ligações com lideranças políticas conhecidas ou estabelecidas, nem sequer vínculos partidários e ideológicos pré-definidos e, ao contrário dos antigos consumidores pertencentes à maioria silenciosa, são mais conectados socialmente e utilizam o boca-a-boca para fazer barulho e chamar a atenção para movimentos que não possuem necessariamente uma identidade uniforme. Usuários/telespectadores/jogadores são agora produtores de suas próprias imagens, de suas próprias mensagens, de seus próprios textos e utilizam, de preferência, dispositivos móveis e redes sociais para defender uma ‘causa’.

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  • Poltica Editorial

    Revista GEMInIS uma publicao online voltada para a divulgao de artigos, resenhas de obras e trabalhos sobre o contexto da convergncia miditica e da produo audiovi-sual em mltiplas plataformas transmidiaticas, realizados por pesquisadores do Programa de Ps-Graduao e do Curso em Imagem e Som da UFSCAR. A revista aberta aos interessados de outras instituies e pesquisadores que queiram submeter seus trabalhos ao Conselho Editorial.Nesta linha editorial, so tratados e incentivados temas ge-minados s linhas de pesquisa do nosso Programa de Ps--Graduao, tais como; o fenmeno da convergncia midi-tica e cultural; contribuies sobre a narrativa audiovisual e a cultura participativa; anlises sobre franquias de mdias, questes sobre a fico seriada, web marketing e, principal-mente, os novos formatos de narrativa transmiditica; estu-dos sobre a web e os novos espaos de circulao da produ-o audiovisual, o mercado e a economia digital; produo cinematogrfica, televisiva e videogames.Dedica-se ainda, entre outros tantos assuntos, aos temas re-lacionados s mdias locativas e dispositivos mveis, desen-volvimento de aplicativos, Alternate Reality Games (ARGs) e as mdias colaborativas que fazem parte do ecossistema de comunicao audiovisual. A revista aceita contribuies em trs categorias: artigos cientficos, produo artstica e resenha de obras. Cada edio contempla um dossi especialmente preparado a partir de uma temtica especfica e duas sees. A primei-ra seo para artigos de abordagens multiplataformas, en-quanto a segunda seo, denominada espao convergente, voltada para ensaios, entrevista e resenhas.

    MissoDivulgar artigos cientficos e produo artstica que bus-quem compreender, analtica e/ou teoricamente, o fen-meno prprio da convergncia miditica como objeto de estudo.

    HistricoA Revista GEMInIS foi criada em 2010, quando o Grupo de Estudos sobre Mdias Interativas em Imagem e Som, ligada ao Programa de Ps-Graduao em Imagem & Som - PPGIS/UFSCar, completava seu terceiro ano de criao. A revis-ta online e semestral, tem como objetivo reunir trabalhos cientficos e artsticos que tratem de fenmenos prprios da convergncia miditica. Para tanto, a revista GEMInIS se constituiu em trs sees: seo Estudos, seo Comunica-es, a seo Resenhas e Notcias dedicada a obras de inte-resse das diferentes reas que refletem sobre o processo de cultura da convergncia. A revista recebe tambm originais em espanhol e ingls.

    Submisso OnlineGEMInIS recebe artigos, produes artsticas e resenhas que sero, aps pr-avaliados pelos editores da revista, re-vistos e aprovados por Assessores ad hoc. As normas para publicao devem ser estritamente seguidas. Por ser um peridico semestral, apresentamos dois prazos limites de submisso (envio eletrnico): 31 de maro e 31 de agosto. Informao importante para os autores: a) Os autores pos-suem os respectivos direitos autorais (copyright), b) Os au-tores so os responsveis pelo contedo dos artigos.

    ExPEdiEntE

    Revista GEMInIS | ano 3 | n. 1 jan./jun. 2012Universidade Federal de So CarlosISSN: 2179-1465www.revistageminis.ufscar.brrevista.geminisufscar@gmail.com

    ReitorProf. Dr. Targino de Arajo Filho

    Vice-ReitorProf. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior

    Diretora do Centro de Educao e Cincias HumanasProfa. Dra. Wanda Aparecida Machado Hoffmann

    Vice-diretor do Centro de Educao e Cincias HumanasProf. Dr. Jos Eduardo Marques Baioni

    Coordenador da Ps-Graduao em Imagem e SomProf. Dr. Samuel Jos Holanda de Paiva

    Comit Editorial:Ana Silvia Couto de Abreu

    Universidade Federal de So Carlos - UFSCarArthur Autran

    Universidade Federal de So Carlos - UFSCarAntnio Amncio

    Universidade Federal Fluminense UFFCarlos A. Scolari

    Universidade Pompeu Fabra EspanhaDerek Johnson

    University of North Texas Estados UnidosDaniel Bittencourt

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos UnisinosGilberto Alexandre Sobrinho

    Universidade Estadual de Campinas - UNICAMPHctor Navarro Gere

    Universidade de Vic EspanhaHermes Renato Hildebrand

    Universidade Estadual de Campinas - UNICAMPJos Soares Gatti Jnior

    Universidade Tuiuti do ParanJosette Monzani

    Universidade Federal de So Carlos - UFSCarMaria Dora Mouro

    Universidade de So Paulo - USPPedro Varoni de Carvalho

    Universidade de So Paulo - USPSheron Neves

    ESPM-RSVicente Gosciola

    Universidade Anhembi Morumbi - UAM

    Editor ResponsvelJoo Carlos Massarolo

    Universidade Federal de So Carlos - UFSCar

    Editora ExecutivaMaira Gregolin

    Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

    Editor AssistenteDario Mesquita

    Universidade Federal de So Carlos - UFSCar

    Administrador do websiteGabriel Correia

    RevisoAndr SanchesFrancisco TrentoGlauco Madeira de ToledoPaula GomesLetcia Ferreira

    Diagramao Dario Mesquita

    Identidade visual Gilberto Pereira

    Capa OriginalPier Valencise

  • Su m rio

    Apresentao.................................................................................................................................................. 4

    doSSi - ativiSmo dig ita l

    Vozes nmades: ativismo transmdia e mobilizaes sociaisMara Valencise Gregolin ........................................................................................................ 6

    Kony 2012: estratgias narrativas de um fenmeno do ativismo digitalFlvia Brites Tarcisio Torres Silva .................................................................................. 25

    Pessoas Conectadas podem Mudar o Mundo? - Uma abordagem sistmica baseada na Teoria das Redes para a modelagem de aes coletivas

    Mrcio Carneiro dos Santos .................................................................................................. 51

    Tipos de Ativismo Digital e Ativismo Preguioso no Mapa CulturalGabriela Bezerra Lima ............................................................................................................. 71

    Promovendo a Incluso no Ativismo Digital atravs do CinemaSlvia Forato de Camargo Fabio Nauras Akhras .................................................... 97

    Ciberativismo e a influncia da opinio pblica sobre a esfera privada: os protestos contra o uso de peles na indstria da moda

    Priscila Muniz de Medeiros Tenaflae da Silva Lrdelo .................................... 110

    Social Media: a way of activism in digital marketing communicationIrene Garca Medina Pedro Alvaro Pereira Correia ............................................. 125

  • abord agEnS multiPlataformaS

    Primeira experincia interativa no esporte das emissoras brasileiras no SBTVD-T

    Tatiana Zuardi Ushinohama ............................................................................................... 134

    Romance: procedimentos metalingusticos e a relao entre linguagens na fico de Guel Arraes

    Luiz Antonio Mousinho ....................................................................................................... 151

    Produo de contedos virtuais participativos: entre a informao, o espetculo e a manipulao

    Ieda M. M. Tourinho Mauro Luciano de Arajo Josette Monzani ........... 161

    ESPa o convErgEntE

    rESEnha M-Todos, Tendencias Y Oportunudades De La Movilidad Digital

    David Roman Coy ................................................................................................................... 173

    EntrEviSta A Internet como uma forma alternativa de distribuio: uma entrevista com a realizadora portuguesa Cludia Tomaz

    Ana Catarina Pereira .............................................................................................................. 178

    EnSaio Travelogue: viagem sensitiva pelo road-movie de Cludia Tomaz

    Ana Catarina Pereira .............................................................................................................. 187

  • aP rESEnta o

    A equipe editorial da Revista GEMInIS, uma publicao do Grupo de Estudos sobre Mdias Interativas em Imagem e Som PPGIS/UFSCar, tem a satisfao de apresentar comunidade acadmica e ao pblico em geral, a sua quarta edio - dedicada discusso de um tema contemporneo e que relativamente in-dito nas publicaes acadmicas e muito pouco debatido pelos estudiosos nas universi-dades, mas que de extrema relevncia para o futuro das sociedades conectadas pelas redes sociais: O Ativismo Digital. Nesta edio, os ativistas so vistos como os novos consumidores de mdia que no possuem ligaes com lideranas polticas conhecidas ou estabelecidas, nem sequer vnculos partidrios e ideolgicos pr-definidos e, ao con-trrio dos antigos consumidores pertencentes maioria silenciosa, so mais conectados socialmente e utilizam o boca-a-boca para fazer barulho e chamar a ateno para mo-vimentos que no possuem necessariamente uma identidade uniforme. Usurios/teles-pectadores/jogadores so agora produtores de suas prprias imagens, de suas prprias mensagens, de seus prprios textos e utilizam, de preferncia, dispositivos mveis e redes sociais para defender uma causa.

    Os artigos reunidos para o dossi sobre o ativismo so textos da contracultura digital, utopias piratas esperando pela revoluo no limiar da zona autnoma tempo-rria (Hakim Bey). Mara V. Gregolin alinha as estratgias de mobilizao transmidi-tica, tomando-as como vozes nmades de movimentos sociais que desenham linhas de fuga de uma vida para consumo (Zygmunt Bauman) e Flvia Brites & Tarcisio T.

    Silva discutem o fenmeno Kony 2012, enquanto Mrcio C. dos Santos analisa como as pessoas conectadas podem mudar o mundo. Por outro lado, Gabriela B. Lima faz um

    inventrio dos tipos de ativismo e Slvia F. de Camargo & Fabio N. Akhras pensam o Cinema como veiculo do ativismo. Priscila M. Medeiros & Tenaflae Lrdelo debatem a influncia da opinio publica sobre a vida privada e para fechar o dossi, a pesquisado-res espanhis da Universidade de Vic, Irene G. Medina & Pedro A. P. Correia, tratam do tema social media: a way of activism in digital marketing communication.

    Na seo abordagens multiplaformas, a estudiosa Tatiana Z. Ushinohama dis-cute as primeiras experincias interativas na TV brasileira e o pesquisador Luiz A. Mou-sinho analisa os procedimentos lingusticos da fico de Guel Arraes. Outro tema que

  • aparece com destaque nesta seo o estudo realizado por Ieda M. M. Tourinho, Mauro L. de Arajo e Josette Monzani sobre a produo de contedos virtuais participativos.

    No espao convergente, David Roman Coy faz uma resenha de: M-Todos, Tendencias Y Oportunudades De La Movilidad Digital, evento realizado na UNICAMP, em 2010. Nesta seo encontra-se uma entrevista com realizadora portuguesa Cludia Tomaz, na qual ela fala da Internet como uma forma alternativa de distribuio e, alm disso, acrescenta um novo olhar sobre o road-movie num ensaio de sua autoria - Travelogue: viagem sensitiva pelo road-movie de Cludia Tomaz.

    Assim, a quarta edio da revista GEMInIS j est no ar e na sua plataforma online (www.revistageminis.ufscar.br/), graas ao trabalho generoso e rduo realizado pela Equipe de Editores, especialmente os pesquisadores do grupo GEMInIS: Dario Mesquita, Maira Gregolin, Gabriel Correa, Francisco Trento, Andr Sanches e Pier Va-lencise. Os agradecimentos so extensivos tambm aos pareceristas e colaboradores pela leitura atenta e minuciosa, ajudando-nos na seleo dos artigos a serem publicados.

    Por fim, gostaramos de convidar o leitor/espectador/jogador e usurio das re-des sociais, smartphones e tablets, entre outros dispositivos, para o debate sobre as formas de ativismo contemporneo nas plataformas transmiditicas.

    Joo Massarolo Editor Responsvel

  • mara valEnciSE grEgolinDoutoranda do Departamento de Multimeios, Instituto de Artes/Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). E-mail: [email protected]

    rEviSta gEminiS ano 3 - n. 1 | P. 06 - 24

    vozES nmadES: ativiSmo tranSmdia E mobilizaES SociaiS

  • rESumo

    O presente artigo tem o objetivo de refletir sobre as mudanas nas disposies entre corpo e espao no contexto da mobilidade - onde os indivduos podem atuar em diversos locais atravs de dispositivos mveis, sem permanecerem estanques a um lugar ou tempo em particular - investigando um fenmeno da atualidade que estudiosos das relaes entre mdias e sociedade denominam ativismo transmdia. Tal expresso, cunhada pela pesquisadora Lina Srivastava (2009), refere-se s possibilidades que a nar-rativa transmiditica oferece para movimentos que propem iniciativas de mudana social. Trata-se de pensar o ativismo no sistema miditico atual com estrutura multiplataforma em que a produo/compartilhamento do contedo acontece em uma sociedade com pessoas conectadas por uma causa, abrindo caminhos para o dilogo e instigando o engajamento no compromisso para a ao. Para discu-tirmos o impacto da telefonia mvel nesse fenmeno do ativismo transmdia, tomaremos como objeto de estudos as interaes sociais que se estabeleceram por meio de plataformas online baseadas no uso dos telefones celulares em recentes manifestaes sociais ocorridas na Sria.

    Palavras-Chave: ativismo, mobilidade, ativismo transmdia, mobilizao social.

    abStract

    The present paper aims to make a reflexion about changes in the way body and space are disposed in mobility context in which individuals can act in various places using mobile devices, excluding the necessity of being tight to a particular space or time. This article explores a media phenomenon transmedia activism, as entitled by communication researchers. This expression, coined by Lina Srivastava (2009) refers to the transmediatic narrative possibilities of changing the society status quo. It is a way to imagine activism in the current multiplatform mediatic system; in which content production/sharing are made by a connected-by-a cause individuals. These type of acts open dialogs and create an engaged envinronment. In order to discuss the impacts of mobile telephony in the transmedia activism phenomena, well take as a case study the use of online mobile platforms (cellphones) in the recent social manifestations at the Syrias uprising.

    Keywords: activism, mobility, transmedia activism, social mobilization.

  • Your cell (phone) + you = yourcellf.

    Dime con quin andas y te dir quin eres. As reza el aforismo; desde mucho antes de que se ideara el primer sistema de comunicaciones mviles. Nuestro mvil se ha convertido en nuestro mejor amigo: con l nos comunicamos, vamos de compras; se ha convertido en nuestro banquero y en un comprador particular muy competente; conoce a nuestros amigos y nuestros hbitos sociales; puesto que siempre lo llevamos encima, podra recopilar incluso informacin que sirva de ayuda a nuestro mdico para realizar un diagnstico ms fiable. No es ciencia ficcin, es la realidad de una incorporacin social mucho ms rpida de lo que podra haber imaginado cualquier gur; eso s, menos glamorosa.

    Antonio Miguel Fumero Reveron. La Rede en el Movil, 2010.

    1 Mobilidade e ativismo transmdia

    Marc Aug, em seu livro Por una antropologa de la movilidad (2007), nos mostra que na sociedade grega antiga havia uma profunda diviso entre o espao privado, que era regido por Hestia - deusa do lugar, daquilo que localizado - e o espao pblico, protegido por Hermes, deus dos limites e fronteiras. Atualmente, afirma o autor, o pblico se introduz no privado, no h mais limites cla-ros entre o que territorializado e aquilo que disperso: essa invaso, em que Hermes ocupou o lugar de Hestia, marcada pela mobilidade, pode ser simbolizada tanto pela televiso, quanto pelo computador mas, principalmente, pelo telefone celular.

    A produo cultural contempornea, seja no espao pblico ou no mbito pri-vado, passou por profundas transformaes derivadas do desenvolvimento das tecno-logias digitais. Distribudos em suportes cada vez mais rpidos, os produtos culturais chegam completa desmaterializao digital atual como resultado do desenvolvimento de um amplo conjunto de tecnologias portteis que permitem novas formas de consu-mo em mobilidade (VACAS AGUILLAR, 2010). Ao favorecer um ambiente de comparti-lhamento de informaes, as redes de comunicao sem fio criaram um espao simbli-co propcio existncia de novas experincias sociais. Entre as grandes transformaes

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    9decorrentes das novas formas de comunicao centradas na mobilidade esto as noes de espao (pblico e privado), lugar e tempo, que ganharam novas configuraes. A mobilidade , portanto, um fator disruptivo que introduz cenrios inditos no consumo cultural (MCGUIRRE, 2007).

    Este artigo, fruto de pesquisa em andamento, tem por objetivo iniciar uma re-flexo sobre mudanas nas disposies entre corpo e espao no contexto da mobilidade, investigando um fenmeno da atualidade que estudiosos das relaes entre mdias e sociedade denominam ativismo transmdia. Tal expresso, cunhada pela pesquisado-ra Lina Srivastava (2009), refere-se s possibilidades que a narrativa transmiditica ofe-rece para movimentos que propem iniciativas de mudana social. Trata-se, portanto, de pensar o ativismo no sistema miditico atual com estrutura multiplataforma em que a produo/compartilhamento do contedo acontece em uma sociedade com pessoas conectadas por uma causa, abrindo caminhos para o dilogo e instigando o engajamen-to no compromisso para a ao. Assim, o ativismo transmdia um fenmeno contem-porneo, propiciado pelo uso crescente de aparelhos portteis, com seus recursos de geolocalizao e de conectividade, que permitem s pessoas entrarem em contato umas com as outras e criarem grupos virtuais em torno de temas de interesse comum, seja para trocar experincias, resolver problemas ou aliar-se luta por uma causa social.

    As aes do ativismo no meio digital alcanaram tamanha amplitude a ponto de exigirem a ateno de estudiosos clssicos das mdias, como, por exemplo, Jsus

    Martn Barbero que chega a afirmar que as redes passaram a um lugar de encontro

    de mltiplas minorias e comunidades marginalizadas ou de coletividades de pesquisa e de trabalho educativo e artstico. Segundo Barbero (2009), nas grandes cidades, o uso

    de redes eletrnicas est permitindo construir grupos que, virtuais em seu nascimento, acabam se territorializando, passando da conexo ao encontro, e do encontro ao. Outra caracterstica muito importante das aes do ativismo transmdia o fato de elas no se circunscreverem em um espao delimitado, alcanarem dimenso plane-tria e, por isso, suas redes com mltiplos pontos de entrada permitem que ativistas e o pblico tenham uma experincia narrativa abrangente e coordenada. Nesse espao de escala global, os ativistas podem agenciar ferramentas de co-criao que ampliam o envolvimento dos usurios com a causa, aprimorando as chances de transformao social. Essa decisiva transformao das formas convencionais de comunicao e a cons-tituio de novos usurios objeto da ateno de Vacas Aguillar (2010), ao afirmar que

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    A la previsibilidad contextual tpica de los medios convencionales, acostumbrados a dirigirse a sus pasivas audiencias a travs de redes y puertos fijos, le suceden ahora unos nuevos medios cuya caracterstica definitoria es la libertad de eleccin del punto de acceso por parte de unos nuevos usuarios necesariamente ms activos.

    Criam-se, assim, novos sujeitos e espaos para o ativismo na medida em que a proliferao das mdias sociais e interativas e sua convivncia com as mdias tradicio-nais propiciam a fuso entre experincias realizadas em casa, pelo computador e pelo uso de telefones celulares. Essas plataformas fazem parte do cotidiano das pessoas e levam a transformaes em todos os sentidos da interatividade que hoje experiencia-mos (DINEHART, 2006). Uma das consequncias dessa teia multiplataforma a produ-o e o consumo de contedos de acordo com interesses em comum, em um processo que Castells (1999, p.566) define como sociedade em rede, considerando que as [...] redes so estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos ns desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos cdigos de comunicao (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho).

    Em seu livro Cultura da Convergncia (2008), Henry Jenkins destaca a multiplici-dade dessas mudanas no mbito da comunicao. Por meio do conceito de convergn-cia, Jenkins chama a ateno para trs propriedades da cultura comunicacional contem-pornea: a multiplicidade, a inteligncia coletiva e a sociedade participativa.

    Segundo o autor, a convergncia no apenas um processo tecnolgico que une mltiplas funes dentro dos mesmos aparelhos, mas tambm um processo de transformao cultural no qual possvel identificar novos nveis de participao dos usurios, novos laos com os contedos, novas orientaes para o marketing contem-porneo, novas leis de direitos autorais, novos meios de aferir audincia. Ou seja, dada a multiplicidade de plataformas, os consumidores so estimulados a procurar informa-es, a fazer conexes em meio a contedos de mdia dispersos. Alm disso, h na convergncia um acirramento do conceito de inteligncia coletiva : trata-se, agora, de uma experincia muito mais radical daquilo que Pierre Lvy (2004) outrora descreveu como um processo coletivo de construo de conhecimentos, pois os dispositivos mveis per-mitem o engajamento de um nmero ilimitado de co-participantes. E finalmente, na cultura participativa, o fluxo crescente de informaes exige que os consumidores, cada vez mais, problematizem as mdias que consomem. O consumo se tornou um processo coletivo, uma vez que a convergncia das mdias permite modos de audincia comu-nitrios, em vez de individualistas. Por isso, assim se expressa Jenkins ao afirmar a

    convergncia como caracterstica fundante da sociedade contempornea: Convergncia uma palavra que consegue definir transformaes tecnolgicas, mer-

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    11cadolgicas, culturais e sociais, dependendo de quem est falando e do que esto falando. [...] A convergncia no ocorre por meio de aparelhos, mas dentro do crebro de consumidores

    individuais e em suas interaes sociais com outros. (JENKINS, 2008, p. 29- 30).

    Segundo Scherer-Warren (1999, p. 14-15), as aes coletivas produzidas pelo ativismo digital so formas de resistncia aos contextos histrico-sociais nos quais es-to inseridos. Elas se materializam em aes de trs naturezas: a) contestatria: as aes tomam a forma da denncia, do protesto, da explicitao de conflitos, das oposies organizadas; b) solidria: as aes objetivam a cooperao, as parcerias para resoluo de problemas sociais, as aes de solidariedade; c) propositiva: as aes organizam pro-jetos alternativos e propostas de mudanas. Um mesmo movimento pode desenvolver simultaneamente essas trs dimenses, de acordo com seu projeto civilizatrio que inclui oposies ao statu quo e orienta-se para a construo de identidades sociais rumo a uma sociedade aprimorada.

    Com a possibilidade de acesso internet via celular, os indivduos ingressaram no ciberespao, e podem organizar manifestaes de alcance global, com atuao em diversos locais determinados, sem permanecerem estanques a um lugar ou tempo em particular. Por isso, suas aes virtuais formam redes de organismos independentes li-gados por aparatos tecnolgicos, com o objetivo de repartirem competncias, recursos, custos e espaos. Para discutirmos o impacto da telefonia mvel no ativismo transm-dia, tomaremos como objeto de estudos as interaes sociais que se estabeleceram por meio de plataformas online baseadas no uso dos telefones celulares em recentes mani-festaes sociais ocorridas na Sria.

    2 Ativismo transmdia via celular: vozes nmades

    A Guerra do Vietn, nos anos 1960, causou comoo mundial pelo efeito mi-ditico provocado pela publicizao de imagens (tanto as fixas das fotografias distri-budas por agncias internacionais, quanto as imagens em movimento na televiso), que levaram a opinio pblica norte-americana a retirar seu apoio ao armada. Era a primeira vez que a televiso veiculava imagens de guerra e, a partir de ento, tais cenas de violncia puderam ser vistas por um pblico telespectador, atravs do olho mgico da TV. A palavra telespectador significa aquele que v distncia, por isso, a presena indita da televiso transformou completamente as relaes entre os indivduos e o es-pao. Pela primeira vez, atrocidades como crianas vietnamitas queimadas por bombas e rebeldes fuzilados seriam exibidas em horrio nobre das televises. Essas imagens impactantes mudaram radicalmente a opinio pblica que apoiava a Guerra no at ento distante - Vietn.

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    Naquele momento dos anos 1960, as condies para que se conseguisse regis-trar imagens e compartilh-las com os espectadores eram completamente diferentes das atuais, com a internet e a presena dos celulares. Os equipamentos no possuam o avano tecnolgico de hoje e eram muito caros. Apenas os grandes canais de comuni-cao possuam os equipamentos adequados e conseguiam viabilizar o transporte at os locais dos confrontos. Com isso, durante muitos anos, limitava-se aos profissionais de comunicao a responsabilidade de testemunhar os conflitos e exibir as imagens registradas. A aparelhagem era pesada, precisando de at trs pessoas para mov-los, o que dificultava a mobilidade. poca, o jornalismo impresso dispunha da mobilidade que os recursos telegrficos como o telex e os teletipos propiciavam, tornando sua pro-duo relativamente mais rpida. As condies adversas como o mal tempo poderiam danificar as enormes cmeras, aumentando sua vulnerabilidade. Por fim, o processo como um todo era lento: desde o registro das informaes at a exibio por um canal de televiso ou pela imprensa poderia levar cerca de dois dias.

    Na atualidade, os dispositivos tecnolgicos das mdias permitem a circula-o instantnea da informao e a divulgao de imagens em tempo quase real. Foi o que ocorreu na ofensiva americana no Iraque, em 2003, quando as cmeras televisivas transmitiram ao vivo, para o mundo todo, o bombardeio de Bagd. Essa presena da

    mdia determinou que esse incidente iniciasse aquela que foi denominada como a pri-meira guerra ps-moderna, referindo-se ao fato de ter sido amplamente exibida como um espetculo miditico proporcionado pelos avanos tecnolgicos dos dispositivos de comunicao.

    Diferentemente dos anos 60, quando a circulao da informao era monoplio das grandes organizaes, atualmente, o avano das tecnologias tem possibilitado o envolvimento dos indivduos na produo e compartilhamento de contedo miditico alterando os padres de consumo e permitindo que se configure a noo de cultura participativa. A convergncia de diferentes mdias tem servido a estratgias de um n-mero crescente de movimentos sociais, uma vez que os usurios aprenderam novas for-mas de interagir com o contedo que encontram. Essa cultura participativa acompanha o desenvolvimento tecnolgico que sustenta a convergncia miditica e cria demandas que as mdias de massa ainda no esto aptas a satisfazer.

    Em visita ao Brasil, em 2007, Katrin Verclas, fundadora da ONG MobileActive.

    org, fez um alerta sobre o impacto da proliferao do uso de celulares. (MACHADO, 2007) poca, Verclas mencionou que o aumento na quantia de aparelhos vinha alte-rando a maneira como os indivduos se relacionavam entre si. Ao ressaltar os potenciais do celular, ela finalizava o discurso afirmando que havia chegado ento o momento em

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    13que os aparelhos deveriam ser usados para estabelecer mudanas sociais. Desde ento, o uso de celulares veio dinamizar esforos de interveno dos movimentos sociais na cena pblica e, deste modo, tornou-se aliado de aes que promovem mudanas, como ferramenta potencializadora em diferentes campos do ativismo digital. Nesse sentido, o celular , cada vez mais, um dispositivo que coopera para a formao de redes de en-tidades e movimentos sociais numa nova forma de cidadania tpica da era globalizada.

    Enquanto ferramentas de apoio a diferentes formas de aes sociais, os celula-res extrapolam suas funes clssicas enquanto telefones, o que significa que eles ultra-passaram a tecnologia de voz voltada para comunicao a distncia e desempenham, hoje, funes que envolvem a tecnologia de acesso a dados e, portanto, de mediatizao. Assim, os recursos locativos que permitem o rastreamento, as cmeras de udio e vdeo e o registro de situaes extremas, a possibilidade de acesso internet para compartilha-mento de contedo tem sido importantes potencializadores em mobilizaes sociais que vem ocorrendo desde o incio de 2011, em que distintos movimentos sociais resistem a governos ditatoriais, como o caso das manifestaes contra Bashar Al-Assad na Sria.

    Em conflitos anteriores, os ativistas compartilhavam seus contedos por meio de acessos rede em computadores coletivos. A partir do momento em que o ativista passa a utilizar seu aparelho celular como mdia de mass self communication1 (Castells, 2006), ele promove movimentos de desterritorializao nesse novo espao construdo. O telefone celular nesse contexto destaca-se pela sua funo de publicador (broadcast) de contedos e de coordenador, ao interligar os ativistas dispersos na multido dos protes-tos. A miniaturizao do aparelho, seu fcil manuseio e sua mobilidade permitem que seja uma ferramenta democratizante.

    3 Mandem celulares para a Sria!

    Os confrontos entre a populao sria e o governo ditatorial j resultaram em mais de

    10 mil mortes em um ano. O uso da tecnologia mvel pelos ativistas, particularmente a que en-

    1 Castells define o celular como mdia de mass self communication, ou intercomunicao individual, uma nova forma de comunicao em massa produzida, recebida e experienciada individualmente.

    Menino srio participa de protesto com lousa e os dizeres Stop the Killing

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    volve o aparelho celular, tem sido o nico meio de compartilhamento de informao, uma vez

    que as mdias tradicionais como a imprensa e a televiso esto sob forte censura e os jornalistas

    estrangeiros impedidos de entrarem naquele pas. pelos celulares que os contedos conse-

    guem chegar s redes burlando a rigorosa vigilncia do sistema governamental srio.

    O apelo Mandem celulares para a Sria! proferido pela blogueira Leila Nachawati no

    incio de sua palestra no Campus Party, em 2012, institui o celular como arma fundamental na

    resistncia contra a violenta represso do ditador Bashir Al-Assad.

    Durante os eventos violentos que acompanharam os protestos contra o governo srio,

    o celular foi o principal dispositivo a testemunhar situaes extremas como na imagem ao lado,

    de crianas aos prantos, de corpos mutilados e espalhando seu contedo pela web.

    Ao compartilhar pelo celular a realidade cotidiana dos massacres, a todo momento

    e em qualquer lugar, os usurios contribuem para um processo de modificao da percepo

    contempornea de espao e tempo, fortalecendo a perspectiva de um fenmeno da mobilidade.

    O telefone celular conecta diferentes pontos do espao fsico independentemente da

    mobilidade dos manifestantes e espectadores ou da distncia que os separa. Dessa maneira, o

    espao pblico transformado radicalmente pelo ciberespao em funo de acessos nmades

    internet pelos telefones celulares aliados a estratgias de uso das redes sociais e plataformas

    opensource. Nos protestos contra o governo srio, os ativistas organizaram-se em redes sociais

    como Facebook pela internet a partir do acesso por telefones celulares. A comunicao entre os

    ativistas se estabeleceu por meio de mensagens de texto enviadas de um aparelho para outro. O

    microblog Twitter assumiu a funo de compartilhar direcionamentos e alertas para situaes

    extremas. Os vdeos gravados pelos celulares registraram aes do governo e eram distribudos

    pelo Bambuser.com2 ou pelo Youtube. Um grupo de entusiastas coordenava uma central de m-

    dia para que se conseguisse disseminar aqueles contedos.

    2 Bambuser.com um website sueco que permite o compartilhamento de vdeo diretamente do celular. Em feve-reiro de 2012, o acesso ao site foi bloqueado pelo governo srio, que o considerou uma sria ameaa. Em resposta ao bloqueio, o site trouxe em seu cabealho os dizeres dictators dont like Bambuser.

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    Como peas chave, hacktivistas3 como o grupo Telecomix envolveram-se na dis-seminao de informaes e de alertas.

    A impressionante dimenso e amplitude do fenmeno da transmidialidade faz com que ele seja um poderoso aliado dos ativistas no compartilhamento de conte-dos multimiditicos. A transmdia tem origem nos avanos tecnolgicos que propicia-ram o surgimento de plataformas colaborativas que permitem a criao de comuni-dades, transformando as formas de interatividade e, consequentemente, instaurando novas concepes de copyright, de narrativa, de autoria e de leitor/espectador/jogador/consumidor.

    3 Essa expresso uma unio dos conceitos de hacker e ativista e denomina os ativistas que criam ou decifram cdigos de programao com o intuito de promover mudanas e resistncias a problemas sociais.

    Imagem da central de mdia a partir de onde os ativistas disseminam as informaes

    Exemplo de um alerta feito pelo grupo Telecomix via microblog Twitter

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    Para o ativismo transmdia, a Internet oferece novas ferramentas de interven-o que complementam a mobilizao, como campanhas virtuais, correio eletrnico, grupos de discusso, fruns, salas de conversao, boletins, manifestos online, murais e plataformas colaborativas que permitem o fortalecimento da cultura participativa. Os eventos ocorridos na Sria mostraram a constncia do uso das redes sociais como poderosos lugares de fala e de disseminao de informaes. Outra ferramenta extre-mamente importante foi a plataforma colaborativa Syria Tracker, um espao onde os usurios daquele pas podem reportar crimes sofridos por meio de denncias indivi-duais, tanto em textos escritos quanto em udio e vdeo. Syria Tracker foi construda sob a plataforma USHAHIDI, uma ferramenta opensource criada para democratizar o acesso informao e diminuir barreiras para compartilhar histrias pelo Crowdmap. Nesse modelo, renem-se informaes de um determinado local na plataforma e os dados so visualizados em um timeline ou mapa.

    Para se compreender a facilidade e abrangncia do uso da plataforma USHAHIDI,

    necessrio salientar que ela j foi utilizada em vrios outros contextos de resistncia e denn-

    cias: no Egito, para relatar ataque contra a populao civil da Faixa de Gaza por tropas israelen-

    ses, para apoiar a Cruz Vermelha em aes humanitrias no Haiti, para monitorar as eleies

    da ndia, no mapeamento da Gripe Suna, e a cada ano tem sido descoberta para novos usos

    testemunhais4. Os usurios reportam seus testemunhos abrangendo vrios temas: informaes

    sobre desaparecidos, localizao de regies com falta dgua ou com algum outro problema de

    infraestrutura, situaes de abuso sexual, etc.

    4 Ushahidi significa testemunho em dialeto queniano, onde foi utilizada pela primeira vez. Segundo seus idealiza-dores, seu uso se efetiva em uma proporo em que 10% a tecnologia e 90% so as pessoas que fazem uso dela.

    Screenshot tirado da plataforma Syria Tracker, utilizada para reportar os abusos cometidos pelo governo srio.

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    O compartilhamento das informaes feito geralmente das ruas pelo celular, por sms ou twitters geolocalizados, no entanto, a plataforma permite que a denncia tambm seja feita a partir de um computador pessoal.

    As mdias mveis atuam, assim, como canais para o fluxo de informaes. Elas possibilitam que os ativistas influenciem a ao e despertem conscincias por meio de narrativas transmiditicas distribudas em multiplataformas. Para Jenkins (2008),

    as narrativas transmditicas funcionam como ativadores textuais que movimentam a produo, a recepo e o armazenamento de conhecimentos. O ativismo transmdia configura uma nova estrutura em que a produo do conhecimento acontece em uma sociedade em rede e na qual os participantes agem de forma colaborativa para que suas vozes sejam ouvidas e possam solucionar problemas.

    4 proibido proibir

    O uso das mdias para a propagao de ideias no inveno recente. J nas

    dcadas de 1920-30, Hitler usava o rdio, o cinema e a imprensa para promover os feitos do nazismo. No desembarque dos soldados aliados na costa francesa da Normandia, no dia D, e na tomada americana das ilhas do Pacfico, o governo norte-americano en-viou fotgrafos e cineastas para dirigir os cenrios, personagens e histrias da guerra, a fim de garantir o controle sobre as imagens que percorreriam o mundo. Em todos esses acontecimentos histricos, esse filtro das informaes a serem veiculadas se constitui em uma modalidade de manipulao que se d pela colaborao entre Estado e grandes

    Tela da plataforma Ushahidi usada no Haiti

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    corporaes de comunicao. A partir da presena do celular nos confrontos e a nova configurao miditica, h uma ruptura nesse pacto. O Estado passa a desempenhar outro papel diante das imagens que circulam sem suas aprovaes e filtros.

    No caso da Sria, ao perceberem o poder dessas ferramentas interligando as pessoas e organizando as mobilizaes, o governo, em meio aos protestos, agiu em retaliao diminuindo o sinal de Internet e os servios de celular. o que percebemos em comentrio de um ativista do site Mobilemedia.com, que afirma: Nos dias em que muitas pessoas so mortas, o governo simplesmente derruba a internet. Essas estra-tgias de controle adotadas pelo governo procuram impedir que as vozes se multipli-quem e que a circulao da informao se torne incontrolvel.

    Tem se tornado comum esses tipos de tticas de controle da informao, que j haviam sido colocadas em prtica, por exemplo, em protestos no Egito. No incio de 2011 a populao egpcia j havia presenciado o apago tecnolgico com fechamen-to da internet e servios de celulares por ordem do ditador Mubarak. Sem dvida, a presena dos celulares teve papel relevante na crise daquele regime ditatorial. Pela pri-meira vez, o aparelho celular tambm era visto pelo governo ditatorial como perigoso potencializador das vozes nmades que ecoavam pela rede mvel de comunicao.

    Entretanto, a experincia egpcia de bloqueio da internet por longos perodos trouxe efeitos negativos para a economia do pas. Tendo isso em mente, o governo srio optou por tticas de bloqueio diferentes: diminuiu a velocidade de conexo, impedindo o compartilhamento de fotos e vdeos; proibiu o uso de dispositivos de geolocalizao,

    Cena de protesto na praa Tahrir/Egito em que percebemos o uso de celulares pelos ativistas.

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    19etc. Alm disso, com os constantes cortes de energia, o simples ato de recarregar a bate-ria de um celular passou a ser dificultada nas regies de confronto.

    Como consequncia, os ativistas tiveram que buscar formas alternativas para continuarem se comunicando com o mundo e compartilhando os acontecimentos. Diante do blackout digital, buscaram nas fronteiras da Turquia e do Iraque sinais de torres de celulares para conexes.

    Essas tticas tanto aquelas da vigilncia e controle governamental quanto as resistncias dos ativistas mostram que os coletes prova de balas no so suficientes nessas novas formas de ativismo transmdia, em que as micro narrativas precisam ser compartilhadas com o mundo afora. Aos ativistas, so necessrias outras aes e pre-caues para proteger sua privacidade na rede. A perseguio e vigilncia por parte do governo, que consegue acessar as localizaes e informaes compartilhadas pelos ativistas de seus celulares e pela web, fazem com que seja necessrio adotar outras es-tratgias. Para isso, pode-se contar com uma espcie de kit de sobrevivncia digital, difundido por entusiastas e hacktivistas, que auxiliam as tticas de resistncia: por exemplo a produo de contra-informao por meio de encriptao de mensagens en-viadas por celular, o acesso annimo web, etc, so formas contemporneas de burlar a censura e conseguir ter voz na rede.

    Vdeos recentes registrados na cidade de Homs evidenciaram as barbaridades dos crimes cometidos contra a humanidade naquela regio. Em dezembro de 2011, Basil

    Al-Sayed, um ativista que presenciava um dos massacres, foi morto enquanto filmava outras cenas de horror.

    Aps inmeros vdeos de bombardeios e represses do governo compartilhados em

    sites como a plataforma Bambuser.com, Bashar Al-Assad chegou ao extremo de banir a comer-

    cializao e uso do aparelho iPhone em territrio srio.

    Documento assinado por Bashar Al-Assad que probe o uso do iPhone

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    Podemos entender que banir um aparelho como o iPhone da Apple um ato simblico de negar a convergncia digital e as possibilidades que oferece como o regis-tro por vdeos, o acesso e compartilhamento da informao. Ainda assim, ironicamen-te, um representante da rede de televiso Al Jazeera conseguiu entrar no pas anoni-mamente e testemunhar as tragdias vividas pelos ativistas durante os conflitos, tendo resultado em um documentrio intitulado Siria: songs of defiance, filmado completamen-te atravs de um iPhone. O filme curta-metragem traz cenas de horror das tragdias complementadas por entrevistas com civis e militares opositores ao regime.

    Aliado censura ao Iphone, o governo srio adotou a ttica de criar um campo de de-

    sinformao. Como parte da contra-informao digital criada por ele, inmeras contas do mi-

    croblog Twitter foram inventadas para apoiar as falas oficiais do governo. O hashtag #Syria foi

    usado massivamente com contedos de entretenimento que desviavam a ateno dos protestos

    com mensagens sobre resultados e placares esportivos ou programaes televisivas. O grande

    volume desses contedos de entretenimento fez com que eles ficassem bem posicionados em

    sites de busca e, assim, o usurio era desviado dos textos de constestao e denncias contra

    o governo. Outra estratgia de contra-informao foi a criao de perfis fictcios, como, por

    exemplo, @thelovelysyria, que faz uso de um servio de mdia que prolifera 2 spams a cada

    5 minutos. A inteno era distorcer as estatsticas e desviar a ateno dos usurios da rede da

    causa defendida pelos ativistas. Alm do twitter, inmeras pginas foram criadas pela internet

    para espalhar mensagens pr-governo.

    Cena do filme Syria: Songs of Defiance (Rede Al Jazeera, 2012)

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    Notadamente, a Internet tem o poder de reforar os campos de resistncia, per-mitindo que narrativas sejam construdas em um permetro do espao poltico desterri-torializado. Nesse contexto de desinformao, o perigo ao governo se situa na narrativa complexa criada colaborativamente pelos ativistas, por meio do compartilhamento de seus contedos diretamente de seus celulares.

    No ativismo transmdia h o engajamento, o compromisso para a ao pela criao, doao, compartilhamento, inspirando aes sucessivas. O resultado disso a formao de uma comunidade de conhecimento que se desenvolver por meio de espa-os de afinidades. Segundo Geoffrey Long (2009), constitui-se um conjunto de estrat-gias que provocam no usurio o desejo de envolver-se com outras mdias e entender o processo das indstrias que do forma a esses meios de comunicao. Neste contexto, usurios geradores de contedo, ativistas, tm feito chegar suas mensagens por meio desse conceito, de modo a sensibilizarem as pessoas para as causas que defendem.

    5 Do nomadismo transformao social

    O uso dos celulares no ativismo transmdia aponta para o surgimento de novas formas de monitoramento, instalando-se uma espcie de sistema de contra-vigilncia: uma mistura de libertao e vigilncia. Um resultado do fenmeno da mobilidade apli-

    Perfil @thelovelysyria, criado para proliferar spams com mensagens pr-governo

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    cado ao contexto do ativismo digital o fato de agora o acontecimento no ser mais monitorado exclusivamente por aqueles que esto no poder mas por inmeros indiv-duos situados dispersamente em vrios lugares sociais. Alguns estudiosos desse fen-meno tem denominado essa inverso de lugares de poder como uma passagem da so-ciedade da surveillance (em francs, vigilncia) para a da sousveillance5 (MANN; NOLAN; WELLMAN, ), j que os centros de poder e suas margens so deslocados pelas aes de contra-vigilncia. Os recentes protestos de ativistas transmdia analisados neste artigo mostram o papel decisivo dos dispositivos moveis e da web nas aes de sousveillance.

    Ao mesmo tempo, no se pode afirmar que as tecnologias mveis so liberta-doras e democrticas e que, por isso, colocaro fim barbrie e todas as suas formas de terror. A experincia de pases emergentes como o Brasil tem, cada vez mais, indicado

    que o projeto da democracia digital ainda est longe de concretizar-se e que, quando ins-talado, ser disperso e profundamente contraditrio.

    No entanto, torna-se inevitvel pensar que a presena do aparelho celular nos movimentos de resistncias sociais provoca transformaes na relao dos ativistas com o espao, principalmente a partir da imediaticidade da comunicao e pela intera-tividade que permitir a todos os envolvidos o compartilhamento de contedos por voz, mensagens de texto, fotos e vdeo. Assim, na medida em que se apropria do telefone celular como um dispositivo de apoio aos protestos, ocorre uma reordenao na relao dos indivduos com o ciberespao e, nesse contexto, no apenas dados esto em fluxo, mas tambm as pessoas e os objetos.

    Kellner, entre outros pesquisadores, nos ajuda a pensar sobre as distintas for-mas de opresso simblica exercida pelas mdias, mas, ao mesmo tempo, evidencia o fato de que projetos crticos da cultura da mdia podem incentivar aes voltadas para a transformao sociopoltica:

    Quando as pessoas aprenderem a perceber o modo como a cultura da mdia transmite representaes opressivas (...), sero capazes de manter uma distncia crtica em relao s obras da mdia e assim adquirir po-der sobre a cultura em que vivem. Tal aquisio de poder pode ajudar a promover um questionamento mais geral da organizao da sociedade e ajudar a induzir os indivduos a participarem de movimentos polti-cos radicais que lutem pela transformao social. (Kellner, 2001, p.83).

    A arena virtual pode, como mostram os exemplos de ativismo transmdia aqui analisados, constituir-se em espao frtil para que contrapoderes possam germinar.

    5 Em Francs, o radical sous, significa embaixo. A expresso sousveillance refere-se s possibilidades de registro que as tecnologias portteis pessoais oferecem ao usurio, dando a ele oportunidade de vigiar de baixo, isto , agir em resistncia ao poder.

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    www.mobileactive.org/tagging/mobile-medita-toolkit Acesso em: 18/05/2012.

  • flvia britESMestranda em Sociologia (USP), bacharel em Cincias Sociais pela mesma universidade.E-mail: [email protected]

    rEviSta gEminiS ano 3 - n. 1 | P. 25 - 70

    Kony 2012: EStratgiaS narrativaS dE um fEnmEno do ativiSmo digital

    tarciSio torrES SilvaDoutorando em Artes Visuais (Unicamp), com estgio de pesquisa em Goldsmiths College, University of London no programa de Estudos Culturais; mestre em Artes (Unicamp), bacharel em Publicidade e Propaganda (ESPM) e bacharel em Cincias Sociais (USP). professor da PUC de Campinas. E-mail: [email protected]

  • rESumo

    Em maro de 2012 foi lanada a campanha Kony 2012, cujo instrumento principal foi um filme com 29 minutos de durao realizado pela ONG Invisible Children. Ele trata de uma campanha de mobilizao cujo propsito localizar e prender Joseph Kony, lder do LRA (Lords Army Resistance), grupo militante atuante no centro da frica acusado de uma srie de crimes contra a humanidade. A tamanha popula-ridade que um filme ativista alcanou na internet nos instigou a pensar sobre quais estratgias foram usadas por seus produtores e os efeitos da campanha. Para tanto, partimos neste trabalho de conside-raes sobre a significao de diversos fragmentos de vdeos tirados do Youtube e usados como peas bsicas da construo do filme Kony 2012. Em seqncia, com base na sua decupagem*1, persegue-se a forma como o filme revela sentidos polticos latentes naqueles micro-vdeos. Partindo da ideia do filme como um momento dentro de um processo complexo de construo, disputa e negociao de uma comu-nidade digital imaginada, veremos que o filme e as prticas em torno dele propem uma poltica global, construda a partir de mitos e utopias, que se coloca ao mesmo tempo jovem, ps-moderna e digital. Ele suscita respostas vindas da prtica j existente nessa nova gora, que demonstrou ser altamente mani-pulvel e, no sem paradoxos, altamente crtica.

    Palavras-Chave: ativismo digital, Kony 2012, utopia, meme, mito, narratividade, ciborgue.

    abStract

    In March 2012, the Kony 2012 campaign was launched by the NGO Invisible Chindren, having as its main tool a 29 minute movie, whose main goal is to mobilize people in order to find and arrest Joseph Kony, the leader of LRA (Lords Army Resistance), an active militant group in central Africa accused of practicing a series of crimes against humanity. The popularity reached by this activist movie has led us to focus our analysis on some strategies used by its producers and on some of the main effects of the campaign so far. We depart from considerations over the meaning of a variety of video footages taken from Youtube that were used as basic building blocks in the making of Kony 2012. The analysis, then, follows the sequence in which images and sounds are woven into the Kony 2012 narrative, and its unfolding of the potential political meanings in the micro videos. Finally, taking the movie as a moment immersed in a complex process of construction, dispute and negotiation of an imagined digital community, we discuss the ways in which the movie and the practices that surround it are proposed as a global politics, built from myths and utopias, which places itself as young, post-modern and digital all at once. The movie provokes answers from other digital actors in this new agora, which proved itself highly manipulable and also, not without paradoxes, highly critical.

    Keywords: digital activism, Kony 2012, utopia, meme, myth, narrativity, cyborg.

    * Um mtodo tradicional de anlise flmica, a decupagem capaz de revelar os detalhes da construo de um filme como este. Estes detalhes expem o artifcio, tanto no sentido da construo como da arte, capaz de recolher todos es-ses elementos soltos e dar a eles uma direo e sentido. Sobre a elaborao sobre decupagem como mtodo interpre-tativo ver Sorlin (1985). A anlise se baseia na decupagem dos primeiros 12 minutos do filme. A decupagem completa foi feita, mas aqui utilizados apenas recortes dos trechos que nos pareceram mais pertinentes presente anlise.

  • Invisible Children: breve nota sobre a ONG e sua campanha

    A ONG Invisible Children uma instituio Americana com base em San Diego, Califrnia. Foi fundada em 2004 como fruto do trabalho de trs video-ma-kers, Jason Russell, Bobby Bailey e Laren Poole que viajaram para a frica Central em 2003 para registrar conflitos internos que tinham como vtimas milhares de crianas. O produto dessa primeira viagem foi o filme Invisible Children: Rought Cut. Desde ento, a ONG mantm bases tanto na frica como nos Estados Unidos, tendo como bandeira principal dar maior visibilidade aos conflitos que prejudicam milhares de vidas na frica Central. Atividades das mais diversas vm sendo feitas pela ONG, como a apresentao de vdeos em escolas de ensino mdio, flash mobs1 e outras aes. A ao de maior efeito da ONG at agora o vdeo Kony 20122. Ao alcanar uma visibi-lidade inaudita3, o vdeo lanou a ONG no mar da fama.

    Memes e Mythoi: tijolos de uma arquitetura

    Uma das estratgias de sucesso do filme Kony 2012 est no fato de que nele faz--se uso de uma coletnea de imagens que mostram vdeos famosos por terem cativado as emoes das pessoas que os acessaram. Estes vdeos esto disponveis pelo Youtube e outros portais de compartilhamento. Isso inclui imagens de resgate de crianas, vdeos caseiros de pessoas conversando e uma curta lembrana de imagens da primavera ra-be. Em minutos, o vdeo capta a ateno do usurio mdio da internet trabalhando com

    1 Aes pblicas cujo propsito criar uma aglomerao repentina de pessoas para realizar uma determinada tarefa, seja uma guerra de travesseiros, um desfile de toalhas ou um bloqueio de uma avenida. So normalmente organizadas por meios de tecnologias de comunicao digital e tem objetivos diversos, variando do ldico ao poltico. 2 Disponvel em: . Acesso em 02 abr. 2012. 3 O vdeo alcanou o que nenhuma campanha ou vdeo de qualquer tipo jamais alcanou na internet: 112 milhes de exibies em 10 dias. O dado da Visible Measures, uma empresa de medies de audincia e planejamento de campanhas online. A empresa compara a audincia alcanada pelo vdeo "Kony 2012" com a campanha publici-tria de maior sucesso na internet, que em um ano alcanou essa mesma pontuao. Disponvel em . Acesso 29 mar. 2012.

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    28memes4 globais, tais como os exemplos acima. Antes de entrarmos na construo de Kony 2012, pensamos ser necessria a

    reflexo a respeito da origem de alguns dos afetos que o filme toma de emprstimo ao emprestar esses memes. nossa opinio que o grande sucesso de Kony 2012 tem entre suas razes o fato dele tomar emprestado e revelar mythoi5 que antecedem e se agluti-nam elaborao coletiva desse sujeito imerso nas redes digitais de comunicao.

    Essa mirade de vdeos, frutos da contribuio coletiva j h tempos em curso, serve de material bsico sobre o qual Kony 2012 vai sendo esculpido. A proposta de pens-los como verses narrativas de valores compartilhados e por eles reatualizados (aqui experimentalmente denominados de mythoi) visa sugerir que, pelo menos em parte, a atual exploso imagtica na forma da proliferao de imagens em outdoors, propagandas de TV, filmes, seriados, fotos e vdeos na internet, pode ter na base da sua motivao um trabalho conjunto que se realiza sobre valores na atualidade, e que tem entre seus aspectos um sentido poltico captado na arquitetura do filme Kony 2012. Em sua tentativa de mold-los segundo a sua verso de realidade, ele os revela na sua potencialidade poltica.

    Esta anlise pretende indicar a possibilidade de se pensar os afetos causados por esses vdeos retirados do Youtube em uma chave que tenta retomar elaboraes te-ricas que possivelmente nos ajudem a interpelar ligaes entre narratividade e valores. Acreditamos que talvez seja possvel faz-lo tentando retomar estes ltimos sob a chave da clivagem sagrado-profano. Indicamos a possibilidade de interpretar essa mirade de contribuies narrativas espontneas, como a que se deposita como memes em vdeos do Youtube, como uma negociao e reatualizao de valores a partir da narratividade em torno desses mythoi. Estes representam aqui a tentativa de uma noo hipottica intermediria entre valores e narratividade, onde a narrativa iluminada sob o seu as-pecto ritual, ou da revivncia e reatualizao, de valores compartilhados por meio des-sas verses narrativas. Uma das utilidades dessa forma de pensar a possibilidade de

    4 Termo originrio do livro de Dawkins (2006), um meme entendido como um pequeno fragmento de informa-o, que tal qual uma metfora da ideia dos memes de Dawkins, se multiplica e se espalha. uma aproximao que se faz para tratar certos objetos da comunicao como se fossem unidades bsicas de comunicao que se re-produzem nas redes de comunicao. Nas mdias digitais, os memes podem ser representados por notcias, piadas e vdeos virais de alto impacto. 5 Mythoi, plural de mythos, est sendo usado tanto no seu sentido narrativo quanto em sentido antropolgico. No sentido narrativo que parte da anlise formal aristotlica, so considerados enquanto elementos pr-narrativos que pem em movimento uma histria ou um conjunto destas, elementos ou argumentos bsicos que do em-basamento narrativas. No seu sentido antropolgico, so considerados enquanto valores pr-narrativos, ou os valores que motivam a narrativa e que so o fim ao qual elas se destinam. O que procuramos com essa noo ex-perimental tentar uma elaborao que possa amarrar forma e sentido, narrativa como construo formal e como nexo de valores, em uma ideia que fique a meio termo entre esses dois elementos. Talvez pens-los como esquemas pr-narrativos e pr-narrativos traga a possibilidade de uma perspectiva de interesse. Nesse sentido, desejamos mant-la como uma noo experimental.

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    agrupar, analiticamente, sob um mesmo rtulo, vdeos que de outra forma no teriam aparentemente nada em comum, mas que so unidos sob este rtulo no como um es-foro taxonmico, mas analtico. Essa noo de mythoi ajuda aqui a agrupar os memes, ou micro-vdeos retirados do Youtube em torno de valores, como formas narrativas de reatualizao destes.

    Decorrente da herana aristotlica e pr-aristotlica, pode-se pensar os mythoi como a histria ou conjunto destas, que formam um todo coerente6, e que ao lidar com um pathos7 suscitam um efeito emocional especfico. Nesse sentido formal, o filme Kony 2012 uma narrativa clssica, ao passo que as narrativas montadas por vdeos caseiros se apresentariam como fragmentos. O observador incauto pode sofrer da iluso ho-dierna de que esses vdeos retratariam a vida. Mas as cenas que presenciamos pelos memes do Youtube no so a vida das pessoas, so no mnimo recortes destas8. Esses vdeos podem parecer ao observador como uma espcie de brotamento, uma extenso das vidas ali acidentalmente postadas e que no trazem em si nenhum artifcio, cons-truo ou intencionalidade, mas quando questionados enquanto mythoi, eles se revelam com sentido muito marcado e como frutos de uma construo simblica cujo recorte faz sentido por meio dos valores que se expressam neles.

    Tomemos como exemplo um dos vdeos caseiros que aparecem no filme Kony 2012 com o discurso de um garoto que aprendeu a andar de bicicleta9. Trata-se de um vdeo bastante acessado que evidencia um dos mythoi utilizados na narrao montada no filme. Pode-se argumentar, tomando a noo formal aristotlica de mito (ou enre-do), que o discurso do garoto no mximo o final de uma histria. Mas precisamente por isso porque imaginamos o restante da histria como a superao de dificuldades que geram um aprendizado e resultam no discurso do garoto que tanta gente achou adorvel que esse pedao de histria tem muito sentido, e apelo emocional (pathos).

    Pensamos que tanto assim, que apenas um recorte desse vdeo faz parte da montagem de Kony.2012, e este microrrecorte j o suficiente para nos remeter hist-

    6 Levi Strauss (1985) explora esse aspecto dos mitos gregos. Ao analisar o "mito de dipo", ele toma o caminho da bricolagem orientada pela interpretao estruturalista, em outras palavras, ao invs de analisar cada uma dessas histrias como um ente separado, ele as junta em uma s estrutura narrativa. possvel tecer crticas sobre a neces-sidade ou a imanncia dessa estrutura que Strauss busca recompor e ao modo como ela recomposta partindo-se da ideia de que haveria uma estrutura bsica humana que se poderia depurar. Estes autores preferem pensar que h esquemas historicamente compostos e socialmente compartilhados, ao invs de postular estruturas da nature-za mental humana.7 refere-se qualidade de tudo aquilo que nos toca emotivamente.8 Para alm disso, pode-se questionar inclusive se elas ocorreriam daquela maneira como foi captado pela cmera na ausncia desta. Para esta discusso ver Menezes (2003).9 O link abaixo de uma verso traduzida desse micro-vdeo caseiro usado em Kony.2012 que j contm colagens (primeiro quadro e msica). Vrias repostagens, pardias e re-cuts desse vdeo podem ser encontrados. H diver-sas repostagens com o ttulo de Thumbs up for Rock and Roll. Disponvel em: < http://www.youtube.com/watch?v=BtisPdsMEXI&feature=results_main&playnext=1&list=PL82E75D271ED42AF2> Acesso em 5 abr. 2012.

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    30ria de superao e conquista, um mythos cuja estrutura bsica , portanto, socialmente compartilhada, carregando sentido, remetendo aos valores que nos afetam. Esses me-mes so fragmentos de histrias no sentido formal, mas so histrias concentradas, minimalistas, ou que, poder-se-ia dizer, mantm apenas o fundamental, deixando aos cuidados da nossa imaginao a tarefa da sua compleo.10 Nesse vdeo caseiro o que aparece efetivamente s o garoto paramentado de capacete de ciclismo fazendo um discurso encorajador para garotos como ele. Em Kony.2012 aparece o menino falando apenas uma frase: se voc acredita em si mesmo, voc vai aprender a andar de bici-cleta. No entanto, no difcil o espectador completar toda a histria mentalmente: imaginamos que ele teve dificuldades em aprender a andar de bicicleta, no entanto ele insistiu e acabou aprendendo, e que, por fim, no vdeo ele est dizendo para outros garotos que possvel fazer isso se eles acreditarem em si11. Outro dos microvdeos usa-dos mostra uma garota que usa o aparelho auditivo pela primeira vez e chora emocio-nada12: imaginamos que ela perdeu a audio (ou sempre foi surda), lutou muito para recobr-la, e se emocionou ao conseguir finalmente. Esses vdeos podem ser pensados como verses de um mythos de superao concentrados minimalisticamente em um fragmento.

    No sentido antropolgico, podemos pensar os mythoi componentes do vdeo e o prprio mythos montado pelo vdeo Kony 2012 como oriundos e contribuintes de uma srie de discursos que gravitam os entornos desse novo sujeito poltico da esfera digital e dessa nova coletividade idealizada que o filme Kony 2012 agrega e revela. O mesmo vdeo do garoto da bicicleta, por exemplo, aqui visto como representante de um mythos em uma perspectiva sociolgica, s adquire seu sentido quando posto em um contexto valorativo (ou, dito de outro modo, o vdeo no teria sentido se superao de dificul-dades no fosse um valor compartilhado). Parece-nos interessante retomar o sentido de mythos ligado a uma tradio do pensamento acerca do sagrado que remonta aos trabalhos de Eliade (1954).13 Este autor prope que o domnio do sagrado seria o terreno

    10 Nesta poca da postagem de vdeos e de saturao de histrias, talvez j no tenhamos mais necessidade de histrias completas, posto que a nossa imaginao as preenche.11 O argumento que a histria que imaginamos se assemelha a esta. Poucos imaginariam a srio, por exemplo, que o menino tomou caf da manh, foi para a escola, se lambuzou de lama no recreio, foi mal-educado com a professora, ficou de castigo, tomou banho, colocou capacete, e com sua bicicleta foi passear com o pai e fez um discurso (por mais que isso possa ter ocorrido). Uma das regras tanto da narrativa como da forma como pensamos as histrias que tm sentido, parece ser que selecionamos apenas alguns elementos, que extrados do fluxo normal, profano e catico da vida, ou ento ficcionais desde sua origem, podem ocupar esse domnio do sagrado.12 Disponvel em: < http://www.youtube.com/watch?v=WlSOtH9BrRk>. Acesso em 19 abr. 2012. 13 comum se interpretar o pensamento mtico como algo do passado, derrotado pelo progredir da racionalidade enquanto processo. O prprio Eliade o faz, e acaba propondo um retorno ao pensamento mtico. No entanto, ele mesmo percebe que o pensamento mtico no tende a sumir da face deste planeta, mas que ele j no mais abarca a totalidade de nossas vidas. Esse processo percebido por vrios autores, entre os quais Weber, possivelmente participa disso que percebido como fragmentao pelo pensamento ps-moderno.

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    da transformao ritual do caos em cosmos e, portanto, o terreno de ordenamento do mundo. Ao interpretar eventos sob o prisma do sagrado, o ser humano dota de sentido aquilo que sem o mito sem sentido, e nessa chave, profano. Para o pensamento mti-co o que sagrado real, ou seja, o sagrado a prpria medida do real14. Na chave do mythos como algo dotado de sentido e de realidade, a interpretao desses microvdeos depende, em ltima anlise, de valores partilhados. Por mais caseiros que esses vdeos tirados do Youtube sejam, podem ser pensados aqui no seu sentido antropolgico, como ligados ou participantes do domnio do sagrado: no se tratam de imagens quaisquer sem sentido, mas de recortes de atos que talvez s existam em funo da presena da cmera. Adquirem sentido ritual no como parte do puro fluxo catico da vida, mas ao serem isolados desta, recortados e colocados em outro contexto, que o prprio contex-to do Youtube e do compartilhamento. So, por assim dizer, recortes ideados da vida que em si s j so construtos, e cujo sentido depende de valores compartilhados15.

    Kony 2012: (uma) arquitetura do novo sujeito poltico

    O filme Kony.2012 parece trazer consigo o velho e o novo. Em termos de cons-truo, ele uma narrativa clssica: desenvolve personagens, centra-se em torno de um drama (ou pathos) ao qual ele d resoluo e essa constitui um dos principais apoios de sua fora persuasiva. A arquitetura do filme tende a direcionar o ponto de vista, assim como os sentimentos e os posicionamentos valorativos com que o espectador vai sendo confrontado. J o que este vdeo traz de novo aquilo que ele revela: elementos presen-tes na internet (e seus afetos) que ele toma para construir essa narrativa clssica. Essa mirade de imagens, originadas de uma srie de elaboraes coletivas, so elas mes-mas indcio, ou externalizao, de valores que desembocam no nosso mais novo mythos centrado na idealizao de um novo sujeito poltico digital. Kony.2012 retira elementos fundamentais desses mythoi presentes nas imagens compartilhadas pela internet e d a eles o seu direcionamento especfico, entrando, dessa forma, em um debate j em curso. Ao faz-lo, ele ilumina componentes deste mesmo debate.

    O filme Kony 2012 inicia-se pela construo do lugar do espectador como in-

    14 O termo "real" est sendo usado aqui seguindo as indicaes de Eliade, no sentido de que aquilo que partilha do sagrado tambm imaginado como real. Acreditamos que a problematizao dos sentidos postos hoje de re-alidade enquanto uma elaborao, ou talvez um conjunto de elaboraes coletivas, ainda pode ser retomada de forma proveitosa.15 Como o filme, ou neste caso, o vdeo, no pode ser tratado como representao, posto que idealmente a repre-sentao jamais confundida com o real, Menezes (2003) prope discutir a imagem-documentrio como representi-ficao, em outras palavras, como algo que "nos pe em presena de", e que nos impe um posicionamento valorativo (opus cit.). A questo mesma da confuso nos parece altamente pertinente: ao implicar que na mente de quem confunde a imagem a realidade (ou pode ser a realidade) e que esta confuso bastante comum, implica-se que imagens participam das elaboraes coletivas da(s) realidade(s).

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    32ternauta, estabelecendo uma ligao afetiva com este e empoderando-o. Na abertura, uma frase aparece na tela: Nada mais poderoso que uma idia cujo tempo chegou. A imagem noturna do planeta visto do espao mostra grandes centros iluminados: assemelham-se a um s organismo pulsante. Uma voz-over diz Neste exato instante h mais pessoas no Facebook do que havia em todo o planeta h 200 anos atrs.

    As imagens que se seguem fazem uma aproximao entre vida-tecnologia--compartilhamento, apontando para o imaginrio da origem do poder desse novo su-jeito poltico que se desenha. Vrias cenas curtas mostram pessoas a se comunicar com seus familiares por webcams, celulares e vdeos postados. A voz-over diz agora ns nos vemos uns aos outros e escutamos uns aos outros. A estas cenas so intercambia-dos closes de telas de computadores onde o cursor aparece clicando os botes send, share, medida que as imagens vo passando os microvdeos discutidos no tomo anterior, todos emoldurados no nosso cran pela imagem do ambiente do Youtube. Eles delineiam a mensagem (ou mythos) da comunidade em conexo e do pan-ptico (a co-munidade dos que se vem).

    O prximo conjunto a montagem de vdeos que remetem ao mythos da con-quista ligada a esse ambiente de compartilhamento: um menino retirado de escom-bros no Haiti, o guri com capacete de ciclismo grita se voc acredita em si mesmo, voc vai aprender a andar de bicicleta, a garota emocionada no consultrio mdico ao recobrar a audio. A superposio destas mensagens formula o internauta como um ator em uma nova forma de relao e como sujeito que pode, que consegue o que quer sujeito de um poder.

    Nota: Todas figuras que acompanham a anlise da decupagem so montagens de fotogramas do filme seguindo, da esquerda para a direita e de cima para baixo, sua ordem no filme. Elas so descritas no prprio corpo do texto que elas acompanham, por esse motivo elas vo prescindir de legendas.

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    Passa-se ento para elementos que tomam essa idia de compartilhamento construda e a direcionam para as noes que delineiam um novo coletivo e sua ao poltica. O vdeo passa da mensagem conquista, evidenciada nos vdeos acima des-critos, para a de conquista dos povos, do poder ao poder poltico: a voz-over diz Essa conexo est mudando o jeito que o mundo funciona, ao passo que vemos imagens da primavera rabe, as pessoas se manifestando e carregando cartazes (um dos quais traz escrito Facebook). Um manifestante diz agora podemos sentir o gosto da liberdade. O novo coletivo ideado contraposto ideia do velho poder: seguem-se imagens de senhores grisalhos engravatados, membros de parlamentos, palestrantes e ncoras de jornais, dizendo as pessoas esto preocupadas, enquanto a voz-over diz Esta cone-xo est mudando a forma como o mundo funciona, e os governos esto tentando lidar com isso. As geraes mais velhas esto preocupadas: o jogo agora tem novas regras.

    Esta primeira parte do vdeo fundamental no sentido de estabelecer o lugar do espectador como sujeito de um novo poder contra o velho poder que a esteve at os dias de hoje. As imagens selecionadas desses mythoi espalhados em memes pela net so amarradas de forma a levar este novo sujeito de uma perspectiva ntima-familiar a uma

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    34perspectiva de conjunto, ou de uma nova comunidade imaginria16 que ele formaria

    com os demais internautas: esse novo ciborgue17 que pode ver tudo e que compartilha tudo, que est de posse das novas ferramentas de poder e que sai s ruas em protesto, ameaa o status quo. Em momento algum o vdeo perde de vista a conexo emocional estabelecida com o espectador. Enquanto as imagens e vozes ligadas a estas estabele-cem essa conexo afetiva e de sentidos que vai da famlia a esse novo coletivo da esfera digital, a voz-over, tambm no acidentalmente bastante chamada de voz-de-deus, fala como algum neutro e onisciente, que acima destes acontecimentos, capaz de orden-los e a eles d sentido.

    A seqncia seguinte comea a desenvolver o narrador como sujeito de uma sapincia (expressa na voz-de-deus) que fruto de uma experincia vivida. As imagens se apresentam na seguinte seqncia: Enquanto a cena de um vdeo mostra-o presente no nascimento de seu filho Gavin, o narrador em voz-over se apresenta como o pai que vemos no vdeo. A cmera d close no recm-nascido e a voz-over diz cada pessoa veio a este mundo desta forma: ele no escolheu onde nem quando nascer, mas porque ele est aqui, ele tem importncia. Esta parte do vdeo faz a caracterizao de duas ca-tegorias importantes de personagens deste drama18: o aglomerado filmmaker-ativista--internauta (que faz as vezes de heri) e o aglomerado criana-vtima, cujo imaginrio construdo, portanto, como a de vtima das circunstncias deste mundo desde o seu nascimento.

    A partir desta seqncia do nascimento, o que percebido pelo espectador como a pessoa de Jason Russel (o narrador, filmmaker e heri do Bildungsroman do filme) se parte em dois: o narrador onisciente sempre presente pela voz-over e o perso-nagem de pai que se apresenta na relao adulto-criana que ser desdobrada tanto na relao mais especfica Russel-Jacob como em uma mais genrica de civilizer-civilizee19 (na qual ele busca nos incluir por identificao com o heri). A partir de ento o filme trabalha com a superposio desses dois Russels: O Russel do passado, que um per-

    16 Anderson (2006) formula a noo de comunidade imaginria para tratar do surgimento do nacionalismo. An-derson a define como imaginada, pois nem mesmo os membros da menor dessas comunidades jamais se conhece-ro pessoalmente. De acordo com o autor, a criao da nao como uma grande comunidade imaginada tornou-se possvel pelo advento do capitalismo editorial, fruto do desenvolvimento da tecnologia de imprensa. O imaginrio dessas grandes comunidades foi cultivado por escritores em romances, por exemplo. As novas tecnologias de in-formao esto a inventar uma nova comunidade imaginada, mas no pautada na inveno de uma tradio, mas da capacidade imaginada de podermos cada um de ns nos comunicarmos com todos os demais. Essa construo tambm parece remeter a uma espao-temporalidade prpria.17 Descoberto desde h muito por Donna Haraway (1991), o ciborgue, esse nosso novo mito de uma nova era, ironicamente no est presente s na fico cientfica, mas se faz presente na nossa vida. Somos ciborgues, pois j no vivemos sem nossos aparelhos. Eles nos so implantados e so uma extenso necessria de ns. O ciborgue a nossa ontologia, diz Haraway, ele nos d a nossa poltica.18 A terceira categoria que completar a trade ser a de Kony, o vilo, que aparece posteriormente.19 Optamos pelos termos em ingls cujo significado designa aquele que civiliza e aquele que sofre a ao civiliza-dora do primeiro, respectivamente.

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    sonagem que nos obriga representificao20 dos dilemas ao colocar-nos em presena de algo que demanda uma tomada de posio a partir dos valores postos em jogo. Essa posio em que o filme tenta colocar o espectador visa identificao das posies des-te com as posies do Russel do filme, ao coloc-lo no que seria o mesmo impasse do Russel que resolvido pelo Russel da voz-over. A srie de dilemas apresentada forma uma espcie de caminho de So Tiago pelo qual temos que ns mesmos passar como espectadores para podermos nos tornar, como o Russel do futuro, da voz-over, algum que conhece e sabe o que fazer. O Russel do futuro capaz de dar ordem a esse caos da experincia, com a autoridade de quem completou uma jornada de cuja experincia ele retira sentido.

    Um outro ponto de vista com que essa mesma seqncia pode ser confrontada diz respeito ao domnio pblico-privado. Este primeiro fio condutor coloca o especta-dor em uma situao criada pelo nivelamento das emoes em uma experincia com-partilhada. Um tipo de experincia que tem seus antecedentes, posto que at pouco tempo atrs a vivamos de forma menos global, quando produtos culturais tais como a publicidade, objetos de consumo e programas de TV preenchiam parte de nossa me-mria afetiva. Dessa primeira estratgia, o filme parte para um segundo nivelamento: a experincia da vida privada. A questo da autoria do filme torna-se importante nesta chave quando o diretor se coloca como um dos personagens do filme e tambm seu prprio filho. Ao faz-lo, ele nivela a sua experincia privado-pblica do internauta. Para isso, faz uso de vdeos caseiros, alguns amadores, outros menos, em que a vida de seu filho mostrada como em uma exposio de slides desde seu nascimento at a atualidade. Dessa srie de fragmentos da vida privada de uma famlia americana, o vdeo faz a ponte da narrao feita por meio da vida de duas crianas em lugares distin-tos. Gavin, o filho de Jason, e Jacob, um garoto ugands vtima do LRA e que teve seu

    irmo assassinado pelo grupo, so unidos pelo fato de serem crianas.As imagens que se seguem no filme dizem respeito construo de um espao-

    -tempo prprio do domnio digital que tanto o lugar e ferramenta de poder, lugar que permite o estabelecimento dessa comunidade digital imaginada e de onde brota

    20 Menezes (op. cit)

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    36um novo ser digital que este domnio habita. As utopias ligadas a esta comunidade da esfera digital j esto em formao e desenvolvimento h tempos. Para contextualizar essa nova formao do imaginrio, reservamos o tomo a seguir.

    Ciborgue, o ativista eletrnico: a ideao de um novo sujeito de poder

    A sequncia que se segue do nascimento e apresentao de Gavin e de Russel como pai, realiza a passagem dessa relao entre Gavin e Russel para a relao en-tre Russel e Jacob. Ao mesmo tempo, as imagens constroem um espao-tempo virtual,

    apoiando-se nas imagens de ambientes como o Youtube, o videolog e o prprio Google que vo aparecendo no cran enquadrando vdeos, textos e links. Elas revelam o uso de uma imagtica previamente engendrada da internet como espao e adensamento do tempo e memria: A srie se inicia com a imagem de um vdeo domstico no qual Gavin est pendurando a foto de um rapaz na parede e respondendo pergunta do pai Quem esse? o Jacob.

    A cena sofre um zoom-out e vemos surgir no cran os contornos da mesma imagem que agora nos surge como um vdeo postado em um ambiente vdeoblog. Nes-te vemos uma srie temporal de postagens que vo sendo clicadas. O ambiente video-blog conecta, no cran, os vrios vdeos, fazendo tambm as vezes de espao, de pas-sagem, ou transio entre cenas. Alm disso, o conjunto de vdeos postados empresta uma dimenso de real21 relao do filmmaker com Jacob em forma de memria fixada nesse conjunto de vdeos postados. O videoblog serve tambm de mquina do tempo, permitindo retornar e espiar momentos dessa relao, nos vdeos que vo sendo clicados, tocados e pausados, a pgina do videoblog vai sendo rolada e os links que re-

    21 No se quer com as aspas botar a realidade desta relao em dvida ou question-la, mas chamar a ateno para o efeito que este adensado de tempo e memria na forma de videolog cria em termos da representao desta relao por meio do videoblog.

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    presentam os anos vo sendo clicados revelando mais vdeos postados. Os vdeos que vo sendo clicados mostram Jacob em momentos felizes. Ao final, a voz-over diz mas

    quando nos encontramos pela primeira vez na Uganda... foi em circunstncias muito diferentes. Ele estava fugindo da morte. A partir de ento, comea-se a contar a hist-ria da vitimizao das crianas na Uganda.

    Se que mesmo possvel pensar os sentidos valorativo-polticos desse novo sujeito como pertencentes esfera do sagrado, seria, talvez, interessante questionar a formao desse espao como o centro de um novo mundo em embrio, como o caos de onde surgiu/surge/surgir a ordem em termos das noes de sagrado e profano. De certa forma, ele parece se configurar como um axis mundi: o local sagrado, descrito por Eliade (1954), de um simbolismo arquitetnico, local de entrecruzamento entre o cu, a terra e o inferno (idem, pg. 12), esse local tambm seria a passagem entre um e outro domnio. Para esse autor, o centro de um espao sagrado representaria a zona de realidade absoluta. Esse um pensamento perturbador para quem se dispe a indagar sobre a composio das noes compartilhadas de realidade. Agora ns nos vemos uns aos outros e escutamos uns aos outros. Nessa chave, a internet parece ser, nessa cons-truo de Kony.2012, o lugar onde a realidade se torna clara, acessvel para todos. Ela tambm marca uma temporalidade mais prxima das temporalidades revolucionrias: marcando um n no tempo em que tudo muda, ou, neste caso, um perodo em que o mundo est mudando: Esta conexo est mudando a forma como o mundo funciona... o jogo agora tem novas regras.

    A profecia/utopia de novo mundo que aparece em Kony.2012 no nova. A campanha toma-a emprestada e reformula, a partir dela, as aes polticas do ativismo desse novo homem, segundo os moldes propostos pela Invisible Children. H diversos manifestos ligados internet. Como a genealogia dessa nova moral extrapola os limites deste trabalho, queremos apenas citar dois deles como fundamentadores da hiptese de que o apelo de Kony 2012 funda-se em afetos que apesar de relativamente recentes, j esto em formulao h pelo menos trs dcadas. Ao aproximar estes modelos, en-contraremos diferenas e semelhanas. As semelhanas so importantes pois podem se constituir em indcios desse novo mythos do qual compartilhamos e que nos afeta.

    Um dos documentos aqui considerados como um exemplar do surgimento des-sa utopia, A Cyborg Manifesto22, publicado pela primeira vez em 1985, onde Haraway (1991) elabora acerca do que esse novo ser humano tecnolgico teria de potencialidades revolucionrias, o que ela denomina ciborgue. Um ciborgue um organismo ciber-ntico, um hbrido de mquina e organismo, uma criatura da realidade social assim

    22 Disponvel em: Acesso em 05 abr. 2012.

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    38como criatura da fico. A realidade se constitui de relaes sociais vividas, nossa mais importante construo poltica, () uma fico capaz de mudar o mundo. Haraway constri por meio do ciborgue uma utopia ps-gnero, mas tambm uma utopia tecno-lgica e poltica.

    O segundo documento para o qual gostaramos de chamar a ateno foi pu-blicado dez anos depois, em resposta criao da lei das telecomunicaes de 1996, por John Perry Barlow23 A Declaration of the Independence of Cyberspace. Um dos trechos mais significativos do manifesto diz:

    Governos do mundo industrial, enfadonhos gigantes de carne e ao, eu venho do ciberespao, o novo lar da mente. Em nome do fut