revista geminis | ano 3 | n. 2 • jun./dez. 2012

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Nesta edição visamos mapear o campo do audiovisual na contemporaneidade a partir das transformações provocadas pelos processos da globalização econômica, da mundialização cultural e das tecnologias digitais. Além do dossiê temático, mas bastante ligado a ele, a Revista Geminis apresenta uma separata em homenagem ao cineasta argentino Octavio Getino. Nome importante da reflexão sobre os impactos das novas tecnologias no mercado audiovisual e do estudo das cinematografias latino-americanas, Octavio Getino faleceu em Buenos Aires a primeiro de outubro passado.

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Política Editorial

Revista GEMInIS é uma publicação online voltada para a divulgação de artigos, resenhas de obras e trabalhos sobre o contexto da convergência midiática e da produção audiovi-sual em múltiplas plataformas transmidiaticas, realizados por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação e do Curso em Imagem e Som da UFSCAR. A revista é aberta aos interessados de outras instituições e pesquisadores que queiram submeter seus trabalhos ao Conselho Editorial.Nesta linha editorial, são tratados e incentivados temas ge-minados às linhas de pesquisa do nosso Programa de Pós--Graduação, tais como; o fenômeno da convergência midiá-tica e cultural; contribuições sobre a narrativa audiovisual e a cultura participativa; análises sobre franquias de mídias, questões sobre a ficção seriada, web marketing e, principal-mente, os novos formatos de narrativa transmidiática; estu-dos sobre a web e os novos espaços de circulação da produ-ção audiovisual, o mercado e a economia digital; produção cinematográfica, televisiva e videogames.Dedica-se ainda, entre outros tantos assuntos, aos temas re-lacionados às mídias locativas e dispositivos móveis, desen-volvimento de aplicativos, Alternate Reality Games (ARGs) e as mídias colaborativas que fazem parte do ecossistema de comunicação audiovisual. A revista aceita contribuições em três categorias: artigos científicos, produção artística e resenha de obras. Cada edição contempla um dossiê especialmente preparado a partir de uma temática específica e duas seções. A primei-ra seção é para artigos de abordagens multiplataformas, en-quanto a segunda seção, denominada espaço convergente, é voltada para ensaios, entrevista e resenhas.

MissãoDivulgar artigos científicos e produção artística que bus-quem compreender, analítica e/ou teoricamente, o fenô-meno próprio da convergência midiática como objeto de estudo.

HistóricoA Revista GEMInIS foi criada em 2010, quando o Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Imagem & Som - PPGIS/UFSCar, completava seu terceiro ano de criação. A revis-ta online e semestral, tem como objetivo reunir trabalhos científicos e artísticos que tratem de fenômenos próprios da convergência midiática. Para tanto, a revista GEMInIS se constituiu em três seções: seção Estudos, seção Comunica-ções, a seção Resenhas e Notícias dedicada a obras de inte-resse das diferentes áreas que refletem sobre o processo de cultura da convergência. A revista recebe também originais em espanhol e inglês.

Submissão OnlineGEMInIS recebe artigos, produções artísticas e resenhas que serão, após pré-avaliados pelos editores da revista, re-vistos e aprovados por Assessores ad hoc. As normas para publicação devem ser estritamente seguidas. Por ser um periódico semestral, apresentamos dois prazos limites de submissão (envio eletrônico): 31 de março e 31 de agosto. Informação importante para os autores: a) Os autores pos-suem os respectivos direitos autorais (copyright), b) Os au-tores são os responsáveis pelo conteúdo dos artigos.

ExPEdiEntE

Revista GEMInIS | ano 3 | n. 2 • jul./dez. 2012Universidade Federal de São CarlosISSN: 2179-1465www.revistageminis.ufscar.brrevista.geminisufscar@gmail.com

ReitorProf. Dr. Targino de Araújo Filho

Vice-ReitorProf. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior

Diretora do Centro de Educação e Ciências HumanasProfa. Dra. Wanda Aparecida Machado Hoffmann

Vice-diretor do Centro de Educação e Ciências HumanasProf. Dr. José Eduardo Marques Baioni

Coordenador da Pós-Graduação em Imagem e SomProf. Dr. Samuel José Holanda de Paiva

Comitê Editorial:Antônio Carlos Amâncio

Universidade Federal Fluminense – UFFArthur Autran

Universidade Federal de São Carlos - UFSCarCarlos A. Scolari

Universitat Pompeu Fabra – EspanhaDerek Johnson

University of North Texas – Estados UnidosGilberto Alexandre Sobrinho

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMPHéctor Navarro Güere

Universidade de Vic – EspanhaHermes Renato Hildebrand

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMPMaria Immacolata Vassalo Lopes

Universidade de São Paulo - USPPedro Varoni de Carvalho

EPTV Central - São CarlosRuth S. Contreras Espinosa

Universidade de Vic – EspanhaSheron Neves

ESPM-RSVicente Gosciola

Universidade Anhembi Morumbi - UAM

Pareceristas desta edição:Alessandro GamoArthur AutranDébora BuriniFlávia Cesarino CostaGilberto Alexandre SobrinhoGlauco Madeira de ToledoJoão Carlos MassaroloMaira GregolinPedro VaroniRogério TavaresWilliam Pianco

Editor ResponsávelJoão Carlos Massarolo

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

Co-editor TemáticoArthur Autran

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

Editora ExecutivaMaira Gregolin

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

Editor AssistenteDario Mesquita

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

Administrador do websiteGabriel Correia

RevisãoPatrícia Costa Vaz

Capa OriginalPier Valencise

Diagramação Dario Mesquita

Identidade visual Gilberto Pereira

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Su m á rio

Apresentação.................................................................................................................................................. 4

SEPa rata - HomEnagEm a octavio gEtino

Reflexiones sobre la Situacion Actual de las Industrias Culturales en el Mercosur

Octavio Getino .............................................................................................................................. 6

Octavio Getino, un referente en la investigación latinoamericana de cine y medios audiovisuales

Roque González ......................................................................................................................... 40

Octavio Getino - Cineasta da integração cinematográfica latino-americanaArthur Autran ............................................................................................................................. 59

doSSiê - oS arranjoS contEmPorânEoS da Economia do audioviSual E da Economia criativa

O Mercado Cinematográfico Brasileiro e a Aliança entre o Global e o LocalMarcelo Ikeda .............................................................................................................................. 69

Tela global e oceano azul: cinema 3D, o caso BrasilAndre Gatti................................................................................................................................... 83

Alternativas De Comercialização Cinematográfica: novas janelas e o caso 3 efesMaria Cristina Couto Melo ................................................................................................... 97

Estado Transímia: políticas públicas para a era digitalMarina Rossato Fernandes .................................................................................................. 108

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Uma análise crítica do edital JogosBR 2004 para a compreensão do mercado brasileiro de jogos eletrônicos

Jônatas Kerr de Oliveira ........................................................................................................ 121

Alternate Reality Games e Mercado: O Caso Why So Serious?Gabriel Correia ......................................................................................................................... 154

A economia do audiovisual no contexto contemporâneo das Cidades CriativasPaulo Celso da Silva • Míriam Cristina Carlos Silva • Tarcyanie Cajueiro dos Santos ........................................................................................... 165

abord agEnS multiPlataformaS

Redes Sociais Móveis e Ação Coletiva: apontamentos sobre as dinâmicas sociais na paisagem midiática contemporânea

Jandré Batista • Sandra Henriques .................................................................................. 181

O Twitter como Ferramenta Estratégica para a Comunicação Audiovisual: Estudos de Casos

Raul Parreira Maciel • João Carlos Massarolo ............................................................. 197

Roteiro e design da narrativa (de Games)João Winck • Dorival Rossi ................................................................................................ 209

Na Trilha dos Sujeitos: audiovisual, memória e o evento de empoderamento para as mulheres

Fernanda Capibaribe Leite .................................................................................................. 218

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aP rESEnta çã o

A equipe editorial da Revista GEMInIS, uma publicação do Grupo de Estudos

sobre Mídias Interativas em Imagem e Som – PPGIS/UFSCar, tem a satis-

fação de apresentar à comunidade acadêmica e ao público em geral, a sua

‘quinta edição’ - que tem por tema Os Arranjos Contemporâneos da Economia do

Audiovisual e da Economia Criativa. Nesta edição visamos mapear o campo do audio-

visual na contemporaneidade a partir das transformações provocadas pelos processos

da globalização econômica, da mundialização cultural e das tecnologias digitais.

Além do dossiê temático, mas bastante ligado a ele, a Revista Geminis apre-

senta uma separata em homenagem ao cineasta argentino Octavio Getino. Nome im-

portante da reflexão sobre os impactos das novas tecnologias no mercado audiovisual

e do estudo das cinematografias latino-americanas, Octavio Getino faleceu em Buenos

Aires a primeiro de outubro passado. A separata é um tributo a este grande intelectual

e é composta pelo texto de uma das últimas conferências de Getino pronunciada na

cidade de Mendoza, por um artigo que apresenta a sua trajetória artística e intelectual

escrito pelo seu colaborador Roque González e por um ensaio, escrito por Arthur Au-

tran, que propõe discutir as relações das idéias de Getino com o cinema brasileiro. Para

a composição da separata agradecemos à colaboração de Susana Velleggia, de Roque

González, de Ádrian Muoyo e de Ana Laura Lusnich.

Os artigos reunidos para o dossiê sobre os Arranjos Contemporâneos da Eco-

nomia do Audiovisual e da economia criativa, evidenciam, por um lado, que o quadro

atual é caracterizado pelo aumento exponencial da produção e dos produtores, bem

como das formas de exibição dos produtos, diversificando assim as expressões audio-

visuais dos mais diversos grupos étnicos, nacionais e sociais; por outro lado, assistimos

um processo de extrema concentração do poder econômico por parte de algumas pou-

cas empresas transnacionais que reúnem enorme capacidade de produção e, principal-

mente, de comercialização, a ponto de organizarem o mercado mundial de maneira a

sufocar a viabilidade econômica de tudo o que não seja ligado ao seu império.

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Marcelo Ikeda apresenta as ambigüidades da política cinematográfica brasi-

leira na sua busca de conciliação entre a produção nacional e a ação das distribuido-

ras majors; André Gatti aponta para as principais transformações no mercado exibidor

brasileiro a partir do advento do 3D e a sua importância em termos econômicos; Maria

Cristina Couto Melo aborda as novas janelas de exibição como formas para uma difu-

são diferenciada do produto nacional analisando o caso do filme 3 Efes (Carlos Gerbase,

2007), lançado simultaneamente em diversas mídias; Marina Rossato Fernandes com-

para as políticas da França, do Canadá e do Brasil em relação à questão da difusão da

produção para multiplataformas; Jonatas Kerr descreve e faz uma crítica acurada das

primeiras ações do governo brasileiro em prol de uma política para o desenvolvimento

de jogos eletrônicos; Gabriel Correia e Dario Mesquita fazem um estudo de caso do

ARG Why so serious? e abordam o processo de simplificação narrativa deste tipo de

produto audiovisual; Paulo Celso da Silva, Míriam Cristina Carlos Silva e Tarcyanie

Cajueiro dos Santos tratam da economia do audiovisual em cidades “criativas”.

Finalmente, a seção “Abordagens Multiplataformas” possui três artigos com

assuntos diversos. Jandré Batista e Sandra Henriques analisam como as redes sociais

móveis estruturam novas formas de sociabilidade; o texto da autoria de João Carlos

Massarolo e Raul Maciel discute as potencialidades do Twitter na rede social a par-

tir da análise de alguns exemplos específicos; o artigo de João Winck e Dorival Rossi

propõe uma metodologia para a elaboração de roteiros de jogos eletrônicos; Fernando

Capibaribe Leite discute a representação da experiência feminina em quatro produções

audiovisuais do Pathways of Women s Empowerment.

Desejamos a todos uma boa leitura!

João Massarolo – Editor ResponsávelArthur Autran – Co-editor Temático

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Octavio GetinoHomenagem a

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Octavio GetinoHomenagem a

Reflexiones sobre la Situacion Actual de las Industrias Culturales en el Mercosur

Octavio Getino - 8 -

Octavio Getino, un referente en la investigación latinoamericana de cine y

medios audiovisuales

Roque González - 40 -

Octavio Getino - Cineasta da integração cinematográfica latino-americana

Arthur Autran - 59 -

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Reflexiones sobre la Situacion Actual de las

Industrias Culturales en el Mercosur

Octavio Getino

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I

Referirse actualmente, año 2012, al tema de las industrias culturales en el Mercosur, implica abordar, antes que nada, dos subtemas en los que aquel puede tener algún grado de comprensión y tratamiento. Uno de ellos es el del Mercosur y otro el de las industrias culturales. Complementarios, sin duda, pero a la vez marcados por situaciones que han ido variando en los primeros años de este nuevo siglo.

En relación al primero de ellos, cabe recordar que el primer tratado suscripto en Asunción del Paraguay para la creación del llamado Mercado Común del Sur, o MERCOSUR, data de 1991, es decir, algo más de veinte años atrás. Un tratado entonces muy loable, el único con valor legal entre los posteriores convenios y acuerdos que surgieron en América del Sur y en el conjunto de la región, que en su artículo primero sostenía que la función del organismo regional proyectado sería “la libre circulación de bienes, servicios y factores productivos” entre los países constituyentes. Los que en aquel entonces eran Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay, a los cuales se sumaría, en trámite de admisión, Venezuela, y como estados asociados, Bolivia, Chile, Colombia, Ecuador y Perú.

Numerosos protocolos fueron sucediéndose en estas dos décadas, protocolos de distinto tipo, un listado que se inició en 1994 con el de Ouro Preto, donde se definió formalmente la estructura institucional del proyecto, o los que tuvieron lugar en Ushuaia en 1998, referido al llamado “compromiso democrático con el Mercosur y Bolivia y Chile”, hasta el que tuvo lugar en 2011, en Montevideo, para tratar nuevamente el “compromiso con la democracia”

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De ninguna manera se ponen en dudas las buenas intenciones y los compromisos formales asumidos en favor de un mercado común por parte de quienes suscribieron los referidos protocolos, pero lo que debería plantearse como interrogante de este tiempo es el nivel de funcionalidad ejecutiva que tuvo el proyecto en sus veinte años de vigencia, y si el mismo no debiera ser replanteado o actualizado a la luz de los cambios políticos, económicos e institucionales de estas dos últimas décadas.

Nos referimos a lo sucedido tras el fracaso de la política neoliberal, durante la cual se gestó precisamente el Mercosur, y a las nuevas políticas e instituciones que surgieron en la región a lo largo de este nuevo siglo. Por ejemplo, los gobiernos electos en diversos países, marcados por políticas muy distintas las que se habían llevado a cabo a finales del siglo XX, como fueron, entre otros, Argentina, Brasil, Venezuela, Ecuador, Bolivia, Paraguay y Uruguay, y los nuevos proyectos de integración regional y subregional, cuyo énfasis mayor está puesto en lo político, como son, entre otros, la Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América (ALBA), donde confluyen países de Centro y Sudamérica y el Caribe, como son Venezuela, Cuba, Ecuador, Bolivia, Nicaragua, San Vicente y Las Granadinas, Antigua y Barbuda y Dominica, que representan cerca de 80 millones de habitantes. O también la Unión de Naciones Sudamericanas (UNASUR), del que participan Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Colombia, Ecuador, Guyana, Paraguay, Perú Surinam, Uruguay y Venezuela. Un total de doce países que acordaron en su Tratado Constitutivo, en mayo de 2008, una serie de finalidades que no sólo contemplan las que se acordaron en el nacimiento del Mercosur, pese a que no tengan el carácter formal y legal de éste,

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sino que incluyen otras más ambiciosas y que van más allá del llamado libre comercio entre las naciones.

Habría que incluir además en esta reseña el reciente acuerdo de los países latinoamericanos lindantes con el Pacífico (Chile, Perú, Colombia, México y otros de América Central, con una representación de más del 31% del PBI regional) a los que seguramente se sumarán pronto los estados del oeste norteamericano. Un proyecto de libre comercio orientado hacia la parte del mundo (China, Japón, Corea, etc.) en la que los intercambios comerciales podrían presentar un mejor futuro.

Entretanto ¿qué papel está representando el Mercosur a la luz de los cambios referidos? ¿No está sucediendo que el proyecto de integración comercial regional sigue pensándose como sucedía a fines del siglo pasado cuando se hace imperioso repensarlo a la luz de los acontecimientos del nuevo siglo?

Este es un subtema que puede llevar a reflexiones o debates, ajenos a los propósitos de estas breves notas. Una reflexión parece tener un valor casi irrefutable: la gestión concreta de los estados de la región mercosureña –sea por inestabilidad política, limitaciones de las dirigencias públicas, privadas y sociales u otras razones- es visiblemente más lenta y por lo tanto, lindante con la ineptitud, que la de los cambios históricos que se han producido en el conjunto de la región, así como en otras partes del mundo.

Por ello, referirnos hoy a las naciones que integran el Mercosur obliga a delimitar su territorialidad y, al mismo tiempo, vincular su quehacer, con el de aquellas que aún formando parte de dicho proyecto, también lo hace de algunos otros, para precisar sus compromisos reales –más allá de la firma reiterada de acuerdos, tratados y protocolos.

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A esto se suma el segundo subtema, que es el de las industrias culturales. ¿A qué nos referimos concretamente cuando queremos indagar un campo como este, cuya tratamiento nació, al menos en América Latina, casi paralelamente al Tratado de Asunción, cuando se puso en marcha el Mercosur?

Fue precisamente en 1991 y 1992 cuando se llevó a cabo en nuestro país el primer estudio propiciado por el entonces INAP, que llevó como título “Industrias culturales: dimensión económica y políticas públicas”. En lo que nos consta como información, este fue el primer abordamiento del tema que tuvo lugar en América Latina y el Caribe.

Pero pocos años después, a mediados y finales de dicha década, otros países comenzaron a tratar, tal vez con criterios y fines diferenciados, la situación de las IC y la incidencia de la cultura en la economía, el empleo, el PBI y la balanza comercial de cada nación. Es el caso de los emprendimientos que tuvieron lugar a instancias del Convenio Andrés Bello (CAB), inicialmente en Colombia, luego en Chile, con la apoyatura de los organismos responsables de cultura, y después, con nuevas fuentes de financiamiento, en Bolivia, Venezuela, México y otros países.

El concepto de IC fue adoptado también en el Mercosur, cuando a finales de1999, la Reunión del Parlamento Cultural del MERCOSUR (PARCUM) aprobó en Montevideo el auspicio y la promoción de un estudio sobre la incidencia económica y social de las IC para la integración regional. También en algunas ciudades, como La Paz, Bolivia se hicieron trabajos semejantes, en este caso a cargo del Programa de Investigación Estratégica de dicho país, coincidiendo todos ellos en que las IC aparecían como un

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instrumento idóneo para fortalecer los procesos de integración económica, política y social, así como los de carácter cultural, basamento estratégico de aquellos.

Aún no había llegado a nuestros oídos el nuevo concepto, el referido a “industrias creativas”, que había comenzado a pergeñarse en Australia y Gran Bretaña, y que modificaba sustancialmente el campo de estudio de lo que en nuestros países seguíamos definiendo como industrias culturales. Además, si con este concepto pueden existir visiones no siempre coincidentes, con el nacido a mediados de los años 90 en países anglosajones, las visiones tampoco eran similares, con lo que comenzó a complicarse todavía más el espacio y las características del sujeto de estudio, no tardando mucho tiempo para que especialistas y académicos de otras regiones comenzaran a expandir la idea de industrias creativas como noción superadora de la que había nacido como industrias culturales.

Si esta situación la ubicamos en el marco de los cambios institucionales a los que antes no referimos, no es difícil percibir que la misma contribuyó a instalar nuevos debates, generalmente académicos, pero también ubicables en distintas gestiones culturales, para las cuales no resultaba del todo fácil definir cuales industrias se correspondían con lo “cultural” y cuales otras con lo “creativo” (un término procedente de teóricos de otras regiones que habían comenzado a descubrir el valor y la importancia de lo que denominaban “economía creativa”.

Precisamente en 2008, la Conferencia de las Naciones Unidas sobre Comercio y Desarrollo (UNCTAD) emite un informe con aportes de distintos órganos de Naciones Unidas, como la propia

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UNCTAD, UNESCO, OMP y otros, en el que fija y propone su posición como nuevo paradigma para el desarrollo mundial: “En el mundo contemporáneo, un nuevo paradigma está emergiendo interrelacionando la economía y la cultura. Este paradigma abarca aspectos económicos, culturales, tecnológicos y sociales del desarrollo, a niveles tanto macro como micro. Su concepto central es que la creatividad, el conocimiento y el acceso a la información son cada vez más reconocidos como potentes motores del crecimiento económico y de la promoción del desarrollo en un mundo que se globaliza. La “creatividad” en este contexto se refiere a la formulación de nuevas ideas, y a la implementación de estas ideas en la producción de obras de arte y de productos culturales originales, creaciones funcionales, invenciones científicas e innovaciones tecnológicas. En consecuencia, existe un aspecto económico de la creatividad, observable en la manera en la que contribuye a la iniciativa empresarial, alimenta la innovación, mejora la productividad y promueve el crecimiento económico.”

Como vemos, también es de fecha reciente la vigencia de un debate sobre este subtema, el que ha llevado a que distintos organismos públicos del sector cultural sigan denominándose como responsables de “industrias culturales”, delimitando dicho campo de estudio y gestión a determinados rubro y otros hayan iniciado su actividad en nombre de las “industrias creativas”, que además de las incluidas en el anterior se explayan sobre sectores no necesariamente industriales, sino de clara competencia con lo que podríamos definir como “actividades” o “servicios” culturales.

Son temas que merecen una reflexión y análisis tanto en el campo académico como en el social y en el político, pero de cuya

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definición en uno o en otro sentido, podría abordarse con mayor precisión el tema que ahora nos convoca y que es el de “La industria culturales en el Mercosur”.

II

Alguien definió a la cultura como el “alma” de un individuo o de un pueblo. Cabría agregar que las llamadas IC de nuestro tiempo son efectivamente el “motor” que dinamiza aquella según los intereses públicos o sectorizados de quienes lo manejen.

Entendida como proceso social de producción simbólica, la cultura comenzó a materializarse en mercancías con el desarrollo industrial, deviniendo a lo largo del siglo XX en producción mercantil simbólica. El producto cultural resultante fue así legitimándose en una doble dimensión valorativa: mercancía, como dimensión económica, material y tangible, y simbólica, como dimensión ideológica, inmaterial e intangible, o lo que es igual: libro y obra literaria; disco y obra musical; película y obra cinematográfica; etc.

El impacto económico y social de estas industrias –a veces definidas como del “entretenimiento”, de la “creatividad” o del “copyright”- está hoy fuera de toda duda. Según datos de la UNESCO, ellas constituyen uno de los sectores de mayor crecimiento en el mundo, estimándose que generan más de 1,5 billones de dólares con un crecimiento anual estimado de entre el 7 y el 8%. Aunque debe destacarse que entre el 80 y el 90% de dicha facturación corresponde a los EE.UU. y a la Unión Europea, reservándose el porcentaje restante a las otras regiones del mundo, entre las cuales se ubica la nuestra.

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Por otra parte, la facturación de las “Nuevas Tecnologías de la Información y la Comunicación” (NTICs), donde se incluyen el audiovisual, la informática y las telecomunicaciones -recursos cada vez más interrelacionados con la educación, la cultura y el entretenimiento- representaría actualmente cerca de 3 billones de dólares. Una facturación que, a su vez, está concentrada en las naciones de mayor desarrollo si se tiene en cuenta que un 65% de la población del mundo –según estudios de pocos años atrás- no ha hecho nunca una sola llamada de teléfono y que existen más líneas telefónicas en Manhattan que en toda el África subsahariana.

En cuanto a su incidencia en la vida cultural de nuestros pueblos tampoco parecen existir demasiadas dudas. Las IC se instalaron y crecieron básicamente a lo largo del siglo XX a partir de la iniciativa y las inversiones de empresarios nacionales, a las cuales se integró la originalidad de sus artistas y creadores, y la probada eficiencia de profesionales y técnicos, junto con una ciudadanía deseosa de sentirse autorepresentada y expresada en los bienes producidos. También, contribuyó a su consolidación la existencia de políticas de Estado, con más claridad y eficiencia en unos momentos que en otros, sin las cuales ellas no hubiesen alcanzado el reconocimiento internacional que en algún momento tuvieron.

Sin embargo, en las últimas décadas, particularmente desde los años 90, las IC han experimentado en casi todos los países de la región fuertes procesos de concentración y transnacionalización, simultáneos a los que se llevaron a cabo en la economía y las finanzas mundiales como parte del proyecto globalizador. “Hoy en día, muchas empresas culturales de Europa y Latinoamérica- destaca

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un informe del Banco Interamericano de Desarrollo (BID)- ven amenazadas su independencia y la capacidad de reforzar su posición, debido al proceso de concentración y a la imposición de un modelo vehiculado por la mundialización de intercambios. Estas regiones corren el riesgo de ver la cultura sometida a las leyes del mercado, y sus productos convertidos en simples mercancías”. O como observa un estudio realizado en la Facultad de Periodismo y Comunicación de La Plata: “Estos grupos multimedios se han convertido en megaempresas con una enorme capacidad de presión. Discuten políticas, apoyan o desgastan gobiernos, instalan buena parte de los temas sobre lo que se habla, silencian o multiplican. Y están presentes en lo cotidiano, demasiado tiempo, en demasiados temas, con demasiadas caras”.

Convengamos que la teoría económica no incluyó en el pasado ningún interés especial por la cultura y en consecuencia por medir o valorar su dimensión en las economías nacionales o locales. Los prohombres de la economía no hicieron sino proseguir la visión de los padres fundadores –Adam Smith y David Ricardo, sin ir más lejos- que, si bien advirtieron los efectos externos de la inversión en las artes, no consideraban que éstas tuvieran capacidad de contribuir a la riqueza de la nación, ya que, pensaban, pertenecían al ámbito del ocio. Para ellos la cultura no era un sector productivo.

El primer estudio oficial que se realizó en Europa sobre este tema, recién se llevó a cabo en 1984, para establecer la relevancia económica de las instituciones culturales de Zúrich, y fue encomendado por el Parlamento de dicha ciudad con el propósito de “justificar las subvenciones de la Opera, el Teatro Municipal, la Filarmónica y el Museo, desde un punto de vista económico”. El análisis se centró en dos temas principales: el porcentaje de la subvención

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que volvía a las arcas del Estado, de manera directa o indirecta, y las influencias que tenían estas subvenciones sobre la economía y el sector privado. La primera conclusión de dicho estudio fue que la investigación había demostrados que las cuatro instituciones tienen, más allá de su relevancia cultural, una considerable importancia económica. Si bien dependen de la subvención estatal para llevar a cabo sus funciones, también es cierto que parte del dinero invertido en ellas vuelve al Estado y significa un notable impulso para la economía en general.

Más adelante, otros estudios realizados en otras partes del mundo, fueron aún más allá, probando que la cultura no sólo era rentable para el sector privado, sino que el conjunto de sus actividades, producciones y servicios, representaba una importante fuente de recursos para las propias finanzas del Estado.

En términos generales, los trabajos de investigación realizados en esa época pretendían, como lo lo siguen haciendo de alguna manera, cumplir con una finalidad instrumentalista, como es la de legitimar la existencia o el incremento de los presupuestos públicos y privados para sostener las actividades culturales. O bien, como observa el catalán Lluís Bonet, medir el efecto económico que se desprende del gasto interior en consumo e inversión, así como el gasto exterior en bienes y servicios del sector Cultura, y su impacto directo, indirecto e inducido sobre la producción, el valor agregado, el empleo, la demanda de importaciones o cualquier otra magnitud económica relevante para el propio sector y el resto de ramas de actividad de una economía”.

O también como señala el colombiano Germán Rey: “Con esto se intenta conocer las influencias que la cultura genera en la economía

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en una sociedad determinada, pare revisar el pensamiento económico con vistas a mejorar su capacidad de aprehender la realidad que estudia. Por su parte, los análisis desde la Economía de la Cultura se han abocado a entregar información sobre la esfera cultural a partir del saber económico. En este sentido se comporta con un nivel más práctico para el conocimiento de la incidencia de la cultura en la economía, que el que es propio de la Economía Cultural. En definitiva, mientras que en ésta son los significados culturales los que tratan de ampliar el lenguaje económico, en la otra perspectiva, la de la Economía de la Cultura es el lenguaje económico el que se aplica a los productos culturales”.

Es este marco de referencia donde aparecieron las primeras iniciativas de los gobiernos locales para comenzar a estudiar la dimensión económica de las IC en los países del Mercosur, así como las posibilidades entonces existentes de llevar a cabo políticas de integración que contribuyen al desarrollo regional. Fue en diciembre de 1999, durante el VI Encuentro del Parlamento Cultural del Mercosur (PARCUM) que se resolvió aprobar en Montevideo un primer proyecto de investigación que pocos meses después se conoció como “Las industrias culturales en el Mercosur: Incidencia económica y sociocultural, Intercambios y Políticas de Integración Regional”.

Este proyecto que tuvo como organismo coordinador a la Secretaría de Cultura y Medios de Comunicación de nuestro país, contemplaba una Etapa Preparatoria de tres mes de duración, de la que participamos investigadores de Argentina, Brasil y Uruguay, que contó con el apoyo de la Agencia Interamericana para la Cooperación y el Desarrollo (AICD) de la OEA. Paraguay quedó excluido debido a que la OEA argumentó que dio país debía alguna

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cuota a dicho organismo, aunque tiempo después participaría con el apoyo de otro organismo internacional.

En diciembre de 2000, la XI Reunión de Ministros de Cultura del Mercosur y Países asociados, confirmó el proyecto en Río de Janeiro destacando con “beneplácito” la importancia del mismo, un gesto que ratificaría en junio del año siguiente con el fin de promover de manera conjunta al sector de las IC de la región.

Fue así que entre septiembre y diciembre de 2001, con tres investigadores nacionales a cargo pusimos en marcha la Etapa Preparatoria de lo que fue la primera y única experiencia de ese tipo que se desarrolló en el espacio mercosureño y de la cual participaron como observadores expertos del sector cultura de Chile, Bolivia y el Convenio Andrés Bello (CAB). Incidieron además en favor del proyecto las recomendaciones de un Seminario Internacional que tuvo lugar en ese mismo año en Santiago de Chile sobre la “Importancia y proyección cultural del Mercosur, Bolivia y Chile en miras a la integración”, donde, entre otros puntos, se acordó proponer a los organismos de cultura un incremento del intercambio de información sobre el desarrollo de las IC en la región y contar con adecuada información estadísticas sobre los distintos sectores involucrados en el tema del sector.

Los resultados de este trabajo fueron publicados en Buenos Aires en 2002, con el sello del “Mercosur Cultural” y el financiamiento de la OEA. Nunca más se avanzó en estudios de ese carácter, aunque no tardaron en aparecer iniciativas en algunos países, provincias o grandes ciudades, en los que comenzó a desarrollarse una preocupación por parte de diversos organismos de cultura para poner en marcha oficinas, direcciones

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o subsecretarías a cargo del acopio y procesamiento de información sobre las IC. O del nuevo concepto de Industrias Creativas que en esa misma época comenzó a crecer en algunos países a instancias de las ideas propuestas desde Gran Bretaña en particular y también de algunos organismos internacionales.

Los resultados de esa “Etapa Preparatoria” del estudio referido –no hubo después ninguna otra etapa institucionalizada- tenían sin duda las limitaciones y la provisoriedad de un primer trabajo, en el que debíamos contar con fuentes relativamente confiables. Y que no existían en realidad. En la Dirección de Cuentas Nacionales del INDEC se nos dijo, por ejemplo, que nunca se les había ocurrido implementar una Cuenta Satélite de Cultura porque nadie había ido hasta ese momento a darles una precisión sobre lo que involucraba el término “cultura”. Además en el llamado Clasificador Nacional de Actividades Económicas (CLANEA), donde figuran en detalle los rubros contemplados en cada actividad, los servicios de radio y televisión, por ejemplo, eran simplemente los que se limitaban “a la producción de programas de radio y televisión”, o los de edición abarcaban “las actividades de edición, estén o no vinculadas o no a las de impresión”, mientras que, finalmente, en el clasificador de publicidad, no existía ninguna otra descripción que la de “Servicios de Publicidad”. En cambio, otros sectores de la economía nacional que al parecer habían incidido en la definición de sus actividades con el fin de contar con referencias estadísticas sobre las mismas, se hacían presentes en los distintos clasificadores de manera contundente. Por ejemplo, en el correspondiente a “Menudencias” en los productos cárnicos, insistimos, sólo menudencias, ellas abarcarían “los siguientes órganos relacionados con los mamíferos: corazón, timo o molleja, hígado, bazo o

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pajarilla, mondongo o rumen, librillo o redecilla, cuajar de los rumiantes, intestino delgado o chinchulines, recto o tripa gorda, riñones, pulmones o bofe, sesos o encéfalo, médula espinal o filet, criadillas, páncreas, ubre y extremidades o patitas”.

Sólo para proporcionar algunos datos cuantitativos de la importancia de las IC en el Mercosur a finales de los años 90 podríamos sostener que las mismas representaban un movimiento económico de aproximadamente 8 mil millones de dólares anuales, cifra que duplicaría al monto global de los recursos destinados en ese entonces para el conjunto de los servicios sociales nacionales: Salud (770 millones de pesos), Promoción y Asistencia Social (1.229 millones), Educación y Cultura (1.904,4 millones), Ciencia y Técnica (533,3 millones), Trabajo (64,5 millones), Vivienda y Urbanismo (1.016,7 millones) y Agua Potable (107,4 millones).

El número de receptores de radio era de 62,5 millones en Brasil (348 por mil habitantes); 23 millones en Argentina (676 por mil habitantes); 2 millones en Uruguay (676 por mil habitantes); cerca de 800 mil en Paraguay (180 por mil habitantes). En este sentido, la posesión de aparatos de radio por cada mil habitantes en ese entonces era casi similar en Bolivia (670) que en Argentina (673) y en Uruguay (606).

En el rubro televisivo, la penetración en los hogares estaba condicionada por el nivel de urbanización de cada país, alcanzando por ejemplo en 1995, un nivel parecido en Argentina (219 aparatos por cada mil habitantes), Uruguay (232), Chile (215) y Brasil (209), descendiendo abruptamente en países de mayor población rural como Bolivia (115) y Paraguay (93). La facturación publicitaria, que es la que sostiene la mayor parte de los presupuestos de la

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TV abierta, se eleva en Brasil a más de 2.600 millones de dólares anuales, mientras que es de unos 1.500 millones en la Argentina y ascendió en 1996 a 450 millones en Chile.

En cuanto a penetración en los hogares, la televisión de pago (cable y satelital) presenta un panorama de algún modo semejante a la TV abierta, con un porcentaje de hogares abonados que superaba en 1997 el 53% en Argentina, el 42% en Uruguay y el 30% en Chile (previéndose para este país una penetración en el 50% de los hogares para el 2000), y con tasas menores en los restantes países. Este sector tendía a desplazar al de la TV abierta en cuanto a facturación anual –lo que explica la creciente articulación o integración empresarial de ambos sectores- representando alrededor de 1.600 millones de dólares en la Argentina, 1.200 millones en Brasil y aproximadamente 250 millones en Chile. Por otra parte, desarrollo satelital tanto internacional como regional facilita el rápido crecimiento de estos nuevos sistemas de comunicación televisiva, permitiendo a las emisoras de algunos países, como Argentina, Brasil y Chile, proyectarse con sus imágenes sobre la región.

En el rubro editorial, dedicado a la producción de libros y publicaciones periódicas, los niveles de educación y alfabetización incidían también en el mayor o menor desarrollo industrial. Las empresas brasileñas producían más 50 mil títulos al año, con un tiraje de 340 millones de ejemplares –cifra que equivalía a una media de 2,4 libros por habitante y un volumen de ventas- cercano a los mil millones de dólares en el mercado local.

En el rubro fonográfico –donde el conjunto de América Latina ocupaba el 12,6 del mercado mundial- Brasil poseía el mayor volumen de producción y comercialización en el sur del

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Continente, superando los 108 millones de unidades vendidas en 1997, frente a los 27,4 millones de la Argentina, o los 11 millones de fonogramas vendidos conjuntamente entre Uruguay y Paraguay.

La producción cinematográfica que desde los años 60 tenía a Brasil como el país más desarrollado de la región (más de 50 largometrajes en 1965, frente a un promedio de 30 por año en Argentina), se centraliza entonces, como sucede en la actualidad en la Argentina, aunque la industria brasileña, debido a los cambios recientes de su legislación, está retomando en parte la dimensión que tuvo años atrás. Ambos países, a los cuales se había sumado Chile en los últimos años, cuentan con un fuerte prestigio internacional en lo referente a la calidad estética y técnica de sus producciones.

En el caso de la publicidad ella constituye un poderoso factor de incidencia cultural, al apropiarse de signos y valores simbólicos de cada espacio para resignificarlos en la forma de nuevos productos con el fin de incentivar determinados consumos o de inducir a determinadas actitudes o conductas individuales y sociales. Su papel no puede ser soslayado cuando nos referimos a la cultura y a la situación de las industrias del sector. Principalmente en los rubros donde el financiamiento publicitario constituye la base principal de medios tales como las publicaciones periódicas, la radio, la televisión, y en menor medida el cine y el video. En lo referente a la incidencia económica, cabe recordar que los gastos publicitarios de los países del Mercosur representaban entre 8 y 9 mil millones de dólares anuales, de los cuales, algo más de un 50% se destinaba al medio televisivo.

En materia de “industrias de soporte”, dedicadas a producir

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tecnologías e insumos para las IC, ellas estaban concentrada casi totalmente en los EE.UU., Europa y países asiáticos. Apenas Brasil y Argentina producen o ensamblan algunos equipos (televisores, videograbadoras, reproductores de sonido) mientras que el grueso de la maquinaria, el instrumental, los equipos y la tecnología básica es importado, con la consiguiente erogación de divisas. Ello implica a todas las industrias, afectando principalmente a las que necesitan de recursos tecnológicos modernos (electrónica, informática, etc.) pero también a las que demandan equipamientos electromecánicos o de suministro de insumos elementales (celulosa, papel, película, cinta magnética). etc.). Brasil es el país que, en este punto ha preservado más que cualquier otro en la región su capacidad en cuanto a diseño y fabricación de tecnología propia.

A esto puede agregarse la importancia de las “industrias conexas”, por su creciente interrelación con la producción y el consumo de bienes culturales y de información. Ellas son básicamente la informática y las telecomunicaciones, con su incidencia en el acceso, vía teléfono y ordenador (Wed) a la producción discográfica, cinematográfica, videográfica, libros, diarios y revistas e, inclusive, la publicidad.

Esta era, al menos, la situación en las mediciones estadísticas del INDEC y otras fuentes en los inicios de la presente década, tanto aquí como en otros países de la región, y de la cual hubimos de partir para gestionar nuevas y diversas fuentes que nos proporcionaran los datos cuantitativos requeridos en el proyecto. Sospecho que desde entonces hasta ahora, no habrán existido cambios significativos, en las estadísticas oficiales ocupadas del sector Cultura, por lo menos en organismos especializados

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en ese tema, con las Cuentas Nacionales del INDEC, lo cual fue compensado tiempo después con iniciativas más meritorias a cargo de organismos locales. El más importante de ellos, es la creación del SINCA, un Sistema de Información Cultural dependiente de la Secretaría de Cultura de la Nación, cuyos estudios e informes periódicos cubren de manera valiosa algunas de las necesidades que diez años atrás aparecían a ojos vista.

A escala más local, la creación años atrás del Observatorio de Industrias Culturales de la Ciudad de Buenos Aires (OIC), convertido luego por el gobierno de Macri en Observatorio de Industrias Creativas, también con la misma sigla OIC, cubre parte de las necesidades de información y análisis que son propias de este sector de la cultura, formando parte de la Subsecretaría de Industrias Culturales del Ministerio de Producción del GCBA.

Finalmente, en otras provincias o ciudades importantes, han comenzado a trabajar de acuerdo con las posibilidades de cada lugar, oficinas o direcciones encargadas de asumir ese tipo de funciones.

Pese a esto, y a los compromisos del SINCA con un proyecto de información cultural resuelto en los países iberoamericanos, no tenemos conocimiento alguno de gestiones semejantes en lo que concierne al Mercosur. Nada nuevo apareció, según la información que disponemos, desde aquel estudio que nos tocó coordinar hace algo más de diez años, aunque no debería omitirse la gestión acordada entre organismos públicos de Cultura de la región para iniciar gestiones con el fin de incorporar la dimensión mensurable de la cultura como Cuenta Satélite dentro de los Sistemas de Cuentas Nacionales que funcionan en el sector de Economía.

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III

En este contexto, la única industria cultural que ha merecido por parte del Mercosur un tratamiento más particular y específico, fue y sigue siendo la del cine y en menor medida, alguna de las relaciones que asocian cada vez más al mismo con las nuevas industrias audiovisuales, en particular con las NTICs. Cabe recordar que las políticas públicas de proteccionismo, directo o indirecto, a las industrias del cine sigue siendo una constante en la mayor parte del mundo. Allí donde no existen legislaciones o medidas orientadas al fomento del sector, no existen actividades productivas en materia de películas destinadas al mercado. En nuestro país, esto ha ocurrido desde hace más de medio siglo, con gobiernos democráticos o dictatoriales, disponiendo unos y otros del sentido y los contenidos admisibles en la producción.

Inclusive en los EE.UU., nación que no necesita siquiera de la existencia de un ministerio o una secretaría nacional ocupada de la cultura, la producción fílmica y audiovisual es el sector más protegido entre cualquier otro medio de comunicación y en su defensa participan activamente desde los mismos orígenes de esta industria, tanto Wall Street, como el Departamento de Estado y el Pentágono. Defensa que no sólo atiende la proliferación de ideología, valores y significados que son propios del establishment económico, político o religioso norteamericano –recuérdese que el primer y mayor éxito comercial del cine de ese país fue “El nacimiento de una nación”, un canto explícito al racismo imperante a principios del siglo XX- continuado luego por la saga de películas a favor de los aliados durante la II Guerra, o en pro de la guerra fría, o de

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las contiendas libradas en Corea y Vietnam y más recientemente contra los pueblos del mundo árabe, bajo la consigna del llamado antiterrorismo. Pero además de estas funciones paramilitares del cine hollywoodense, estuvieron y siguen estando aquellas otras que rinden pleitesía a los valores y a la seudomoralidad de los sectores hegemónicos de dicha nación, sea cual fuere el género o el tipo de productos comercializados dentro de aquella o en el resto del mundo. Y por último, tampoco habría que omitir el impacto que el medio audiovisual ejerce sobre la economía, en la medida que a través de la oferta de imágenes en movimiento, no importa en qué tipo de película realizada, está presente la oferta y promoción de infinidad de productos industriales de distinto carácter, como modas, diseños de muy diverso tipo, automóviles, cigarrillos, alimentación, entretenimiento, armas bélicas, y todo lo que puede hacerse presente de manera explícita o implícita, en una imagen en movimiento.

Podríamos afirmar entonces que la industria y la economía norteamericanas y no sólo sus valores hegemónicos en el campo de la ideología, no hubiesen alcanzado el nivel actual que hoy tienen de no haber contado con la presencia persuasiva de sus productos culturales, en primer término, los de carácter audiovisual, en la mayor parte del mundo. “Las imágenes de Estados Unidos son tan abundantes en la aldea global –señalaba tiempo atrás Kim Campbell, quien fuera Primer ministro de Canadá- que es como si, en vez de emigrar la gente a Norteamérica, ésta hubiese emigrado al mundo, permitiendo que la gente aspire a ser estadounidense incluso en los países más remotos”

Por tal razón, la confrontación existente entre los EE.UU.

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y la mayor parte de los países de la Unión Europea -expresada claramente a partir de 1992 en las negociaciones de la Ronda Uruguay del GATT, y continuada hasta nuestros días en torno a la propuesta de libre circulación de productos audiovisuales reclamada por la nación norteamericana, tropieza con la decidida defensa de diversos gobiernos de las identidades culturales europeas, además de sus poderosos intereses económicos y políticos. (La industria del audiovisual norteamericano recaudó en 1997 alrededor de 30 mil millones de dólares, correspondiendo la mitad de esta cifra a mercados extranjeros, particularmente el europeo).

En nuestros países, la asimetría existente en materia de competitividad en los mercados –más del 80% de los mismos está dominado por el cine de las majors- obligó a la mayor parte de los gobiernos a elaborar políticas proteccionistas y de fomento, sean del carácter que fueren, de lo cual dan prueba las nuevas legislaciones sancionadas en países como Ecuador y Uruguay, que carecían de las mismas. Sólo el Paraguay aparece como el único país carente de ley de fomento en América del Sur, lo cual explica las dificultades de dicho país para producir imágenes que hablen de su identidad y de su historia.

La primer tentativa de acuerdos de producción cinematográfica a escala binacional o multinacional datan del año 1930, pero recién a finales de 1989, los países de la región suscribieron oficialmente en la ciudad de Carcas tres acuerdos y convenios de suma importancia. Ellos fueron el Convenio de Integración Cinematográfica Iberoamericana, el Acuerdo Latinoamericano de Coproducción Cinematográfica y el Acuerdo

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para la Creación de un Mercado Común Cinematográfico Latinoamericano junto a los cuales se creó también la Conferencia Iberoamericana de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales de Iberoamérica (CACI). Ocho años después, en 1997, fue acordado en Isla Margarita, Venezuela, el Programa Ibermedia durante la VII Cumbre Iberoamericana de Presidentes y Jefes de Gobierno. Si a ello se suman otros proyectos regionales como el de DocTV Iberoamérica – destinado a la promoción del documental iberoamericano- resulta claro el interés que han demostrado y siguen demostrando la mayor parte de los gobiernos de la región por el desarrollo de la actividad fílmica.

En lo que corresponde al Mercosur, en 2004 tuvo lugar en Mar del Plata la I Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales de esta región (RECAM) durante la cual se aprobaron distintas acciones conjunta para el fomento y la integración del sector. Entre ellas, “la adopción de medidas concretas para la integración y complementación de las industrias cinematográficas y audiovisuales; la reducción de las asimetrías que afectan al sector; la armonización de las políticas y legislación; el impulso a la libre circulación de bienes y servicios; el trabajo orientado a favor de una redistribución del mercado que garantice condiciones de equilibrio para los productos nacionales y su acceso al mercado, y la implementación de políticas para la defensa de la diversidad y la identidad cultural de los pueblos de la región”.

Asimismo, en marzo de 2005 –tras haber sido ratificado el proyecto en la IV Reunión de la RECAM- se llevó a cabo la primera reunión de responsables nacionales que estarían a cargo de dar vida a lo que se denominó Observatorio del Mercosur Audiovisual (OMA) que nos tocó coordinar durante algunos años tuvo su base

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operativa en Buenos Aires, y más adelante se desplazó a Brasil. En esto incidió un acuerdo de cooperación suscrito por el Mercosur con la Unión Europea mediante el cual aquella aportaría un fondo de 1,5 millones de euros para la puesta en marcha de algunos proyectos de desarrollo, como eran la creación de unas 30 salas digitales destinadas sólo a exhibición del cine mercosureño, un estudio de legislación comparada, una línea de capacitación profesional y la continuidad del OMA como sistema de información y estudios de las cinematografías y el audiovisual de la región. Un tema éste que, según algunas referencias, correría peligro de continuar, pese a la importancia que tiene la obtención, el procesamiento y la difusión de información y estudios, sin los cuales resultaría muy poco seria cualquier política para el desarrollo del sector.

Puede apreciarse en los datos referidos al Mercosur Audiovisual una serie de valiosos y necesarios objetivos, únicos si se los compara con los restantes medios de comunicación o de expresión cultural de nuestros países, aunque también debe señalarse que, como sucede en los viejos y nuevos proyectos de intercambio e integración regional, aparecen importantes asimetrías entre lo que los organismos acuerdan y se proponen llevar a cabo y los resultados concretos de dicha labor. Un tema digno de análisis pero que escapa ahora a la finalidad de estas primeras reflexiones.

En esta situación se inscribe, por último la labor que viene llevando a cabo desde hace varias décadas la Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano (FNCL) en La Habana, primera institución regional que se ocupó de estudiar, allá por los años 80, las relaciones crecientes del video con la producción y difusión fílmica

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y que en los últimos años se ha ocupado de producir distintas investigaciones sobre el cine regional, por ejemplo, las referidas a la producción y mercados de esta industria tanto dentro de cada país, como en la región y en cada mercado de la Unión Europea, así como en Estados Unidos y Canadá. O también, el impacto de las nuevas tecnologías audiovisuales en la industria del cine y algunas de las más importantes experiencias habidas en materia de formación crítica de las nuevas audiencias audiovisuales para desarrollar su libertad de elección en el momento del consumo. Más recientemente aún, se ha ocupado de reunir y analizar las experiencias del llamado cine comunitario, es decir, de aquel que no aspira a insertarse necesariamente en la distribución y exhibición de carácter comercial. Al respecto, sería recomendable acceder al sitio del llamado Observatorio Cinematográfico y Audiovisual de América Latina (OCAL), dependiente de dicha Fundación (www.cinelatinoamericano.org/ocal)

En nuestro país, los avances de esta última década, pese a eventuales limitaciones o posibles juicios críticos, es sin duda el más importante del primer siglo de existencia de nuestro cine. Dan cuenta de ello la Ley 24.377 de Fomento y Regulación de la Actividad Cinematográfica, aprobada en 2004, sustituyendo a la Ley 17.741 de 1968, y la Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual, que reemplazó al Decreto 22.285 promulgado en 1980 por la dictadura militar –con diversas trabas judiciales aún para implementarse efectivamente- y las acciones cada vez más integradas y crecientes entre la producción de películas y de productos destinados a la TV –por ejemplo la labor de INCAA-TV- así como las tentativas de impulsar el crecimiento de salas, como son los llamados Espacios

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INCAA, y de potenciar, con un sentido federal, la labor de las nuevas generaciones de realizadores.

Otros países del Mercosur, con la excepción de Paraguay, cuentan también con sus propias legislaciones para el cine y el audiovisual, las que han sido sancionadas, como en el caso Uruguay en 2008, o bien modificadas y actualizadas a lo largo de la última década, como ha sucedido en Brasil.

Podría agregarse a este panorama la aparición de nuevos sistemas de producción y comercialización en la industria audiovisual, como son las salas digitales –entre el 8% y el 14% son de ese carácter en el conjunto de América Latina; la existencia de nuevos formatos en el video de películas, como es el DVD; la TV digital; los videojuegos; Internet (Argentina, con el 65% de hogares conectados, es el país de mayor penetración de este sistema en América Latina, seguido de Uruguay, con el 53%); la telefonía móvil y otros medios aparecidos con el crecimiento de las denominadas NTICs.

Pese a todo este desarrollo del audiovisual, debe destacarse la carencia de adecuados sistemas de intercambio, distribución y exhibición de los países latinoamericano, incluidos los del Mercosur, así como las dificultades de nuestras cinematografías para competir con cierto éxito en los mercados de otras regiones. En ese sentido, el mercado español representa aproximadamente el 50% de las exportaciones del cine latinoamericano en el conjunto de países que conforman la Unión Europea, donde las películas de toda la región no llegaron a ocupar más del 2% de las recaudaciones de las salas europeas en la primera década del presente siglo.

Resulta obvio señalar que si se ha explayado la información

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sobre la industria del cine y el audiovisual, es, entre otras cosas, porque dicha industria cultural es la principal, sino la única, que ha logrado un cierto nivel de desarrollo en cuanto a políticas, legislaciones, producción e intercambios entre los países del Mercosur.

IV

A manera de esbozar algunas conclusiones que surgen del panorama referido, podrían señalarse entre otras, que la transnacionalización y concentración son los dos rasgos distintivos de la nueva situación planteada en las industrias culturales. Esto amenaza también a la diversidad cultural en materia de producción de contenidos. El mayor control de la industria y de los mercados locales, implica a la vez, un poder de igual magnitud sobre la “agenda” de programación y los títulos a producirse, sean ellos películas, programas de TV, discos, libros o material discográfico.

El sector más perjudicado con estos procesos son las pequeñas y medianas industrias culturales (Pymes). Mientras que los grandes conglomerados desarrollan líneas de producción de éxito seguro, sostenidas habitualmente en fuertes inversiones de publicidad y marketing, los emprendimientos de menor capacidad están obligados a trabajar en los espacios intersticiales que logran sobrevivir: nuevos y desconocidos creadores, experiencias artísticas innovadoras, públicos altamente selectivos, mercados territoriales limitados, etc., con los consiguientes riesgos que ello representa para cualquier tipo de inversión productiva.

Los pequeños editores de libros o de fonogramas se ocupan

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así de producir obras de nuevos creadores y de tiraje muy reducido; las publicaciones periódicas se orientan a franjas minúsculas de lectores, principal fuente de financiamiento de las mismas, en tanto ellas no cuentan con avales publicitarios; los nuevos cineastas y videastas, sin productores interesados en arriesgar financiamiento alguno, se abocan a tramitar subsidios gubernamentales, en el marco de presupuestos seriamente afectados por la volatibilidad de muchas políticas vigentes. Tales situaciones afectan conjuntamente a la fabricación y comercialización de manufacturas culturales y a los procesos de diseño y creación artística, cultural y comunicacional.

La concentración de la producción y de los mercados, tiende a estandarizar y a serializar no sólo los procesos de fabricación y producción de libros, revistas, discos y películas, sino también los contenidos simbólicos y las narrativas inherentes a dicha producción, además de sus obvias implicancias en la demanda y el consumo. Ello permite pronosticar una seria amenaza a la diversidad comunicacional y cultural, es decir, a la democracia, que debe ser inherente a la cultura para que ella sea tal.

Esta situación tenderá a agravarse aún más en los próximos años, si es que no se implementan políticas públicas de regulación y fomento, cuya finalidad principal sea la de garantizar relaciones equitativas y justas, en suma, democráticas, entre los intereses nacionales y los de otras regiones. Políticas destinadas a incidir de manera integral y simultánea sobre los campos de la economía del sector, del desarrollo social y de la cultura nacional. Ellas deben incluir, necesariamente, la regulación antimonopólica del sector, y también medidas de fomento a las pequeñas y medianas empresas, en las distintas regiones de cada país, requisito básico

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para la descentralización y la diversidad que requiere el desarrollo cultural nacional y regional.

El proceso de integración del Mercosur requiere de políticas públicas consensuadas que faciliten y promuevan la existencia de procesos dialogales e interactivos, de “doble vía”, antes que de “mano única”, los cuales demandan de un desarrollo productivo en cada país para democratizar los intercambios culturales.

En este sentido, la reflexión y la adopción de políticas en el sector suelen aparecer muy rezagadas con respecto a las transformaciones efectivas que él experimenta. Sin embargo, la globalización de las economías y su consecuente tentativa de proyección sobre las culturas del mundo, incentiva más que restringe, la necesidad de fortalecer o revitalizar las identidades de cada comunidad.

Falta, sin embargo en nuestro caso, una acción conjunta de los agentes principales de las IC del Mercosur (organismos públicos, organizaciones empresariales y sociales, autores y creadores, campo académico), para dinamizar el intercambio de información y de bienes y productos, junto con el establecimiento de políticas y legislación para beneficio del conjunto, antes que de alguna de las partes. Dicha acción conjunta puede ser planteada a escala regional, nacional o local, según la importancia que se le otorgue a la misma por el sector público y privado. Nada impide a una ciudad importante como a una provincia, crear sus propios sistemas de información cuantitativa (estadística, datos confiables, etc.) sobre la dimensión económica y social del sector, sea titulándose como información de las “industrias culturales”, como de las “industrias creativas”, según las características y la situación de cada lugar. Tampoco nada impide a los países del Mercosur

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poner en marcha ese mismo tipo de sistemas, base referencial e ineludible para contribuir al mejoramiento de las políticas públicas y de las actividades y emprendimientos de empresarios, creadores, técnicos y trabajadores.

Base también, sin duda para avanzar luego o simultáneamente –más allá de estadísticas y datos fríos- en los estudios e investigaciones de carácter cualitativo, que permitan una profundización mayor para conocer la incidencia de las IC, según la oferta y demanda que se experimente con las mismas, en la formación educativa, cultural de la población y en el desarrollo de una comunidad más democrática, justa y solidaria.

Todo indica que las urgencias impuestas por la globalización a las naciones subalternas como las nuestras, obliga a saltar etapas y que cualquier pretensión puramente nacional resultará insuficiente o tardía, si ella no se enmarca en acuerdos y decisiones de conjunto entre los países de la región, aunque más no sea, para poder negociar en mejores condiciones con los principales exponentes del poder transnacional la situación de nuestras IC y de nuestras culturas.

Finalmente, entre las sugerencias o recomendaciones que podríamos plantear sobre este tema, cabría recuperar algunas de las que se propusieron hace dos décadas o en períodos posteriores y que aparecen como contribución de diversos sectores relacionados con las IC. Recuerdo, por ejemplo, las que se expusieron diez años atrás, en la Secretaría de Cultura de la Nación y en lo que entonces era la Dirección de Industrias Culturales. Entre otros puntos destacados figuraban los de:

Crear un Programa para la Promoción de las IC del Mercosur,

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que contribuya a la integración regional y del que participen los organismos públicos involucrados y los principales agentes privados y sociales del sector.

Promover la creación de Consejos Nacionales Honorarios –también provinciales o municipales- para la Promoción de las IC con la participación activa y democrática de todos los sectores comprometidos.

Crear un Observatorio Mercosur Cultural que reúna y sistematice datos estadísticos y estudios cualitativos sobre la situación de los distintos sectores culturales de la región.

Realizar Acuerdos Nacionales entre Cultura, Economía, Industria, Trabajo y Educación para incorporar la información existente en cada lugar, sea de carácter económico, social o cultural, en los Sistemas de Estadística y Censos, tendiendo a la incorporación del sector como Cuentas Satélites de Cultura en los Sistemas de Cuentas Nacionales.

Promover la construcción de redes regionales sectoriales de las IC en las que se realicen acciones conjuntas para el beneficio mutuo, tal como se ha iniciado en el sector del cine y el audiovisual.

Realizar convenios entre los países del Mercosur, que puedan convertirse en leyes nacionales, para la creación de Programas de Coproducción y Codistribución de Bienes y Servicios Culturales y de Mercado Común Cultural.

Promover en las instituciones académicas la realización de estudios sobre lis diversos campos de la cultura, algunos de ellos de creciente vinculación con las IC, como el turismo cultural, artes escénicas y musicales, juegos y deportes, diseño industrial, informática e internet, artesanías, y sobre la incidencia cualitativa de las IC en la educación, la cultura y la vida social de cada pueblo.

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En suma, propuestas no demasiado novedosas ni originales, pero de cuya implementación efectiva puede dependen en buena medida el desarrollo de las IC y de la cultura y la economía mercosureñas.

Mendoza, junio de 2012.octaviogetinocine.blogspot.com

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Octavio Getino, un referente en la investigación

latinoamericana de cine y medios audiovisuales

Roque González

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Resumen

Este artículo hace una semblanza sobre la vida del investigador Octavio Getino, poniendo énfasis en sus antecedentes artísticos, profesionales y políticos –en una vida que estuvo signada por los avatares de una turbulenta etapa de la historia argentina-, hasta llegar a ser el reconocido investigador de medios latinoamericanos reconocido en todo el mundo

Palabras clave: Getino – cine – audiovisual – Argentina - política – historia

Sobre Roque González

Investigador de cine y audiovisual latinoamericano. Fue becario en la Universidad de Texas y en la Universidad de Calgary (Canadá). Autor del

libro “Cine latinoamericano y nuevas tecnologías audiovisuales” (Fundación Nuevo Cine Latinoamericano, La Habana, 2011) y de libros y artículos sobre mercado de cine, nuevas tecnologías audiovisuales e industrias culturales publicados en varios países. Trabajó con Octavio Getino en investigaciones regionales de cine y audiovisual. Fue parte constitutiva, junto a Getino, en la creación del Observatorio del Mercosur Audiovisual (OMA-RECAM) y

del Observatorio del Cine y el Audiovisual Latinoamericano (OCAL-FNCL). Referente latinoamericano del Observatorio Europeo del Audiovisual.

E-mail: [email protected]

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El 1º de octubre de 2012 falleció Octavio Getino, investigador, escritor, sindicalista, periodista, guionista, director, docente, funcionario público. Contribuyó al campo cinematográfico con un clásico como “La hora de los hornos” y fue en América Latina un pionero en los estudios de cine, audiovisual y comunicación -en abordajes relativos a políticas públicas, mercados, legislación-, convirtiéndose, en palabras del especialista mexicano Enrique Sánchez Ruiz, en el “Guback latinoamericano” (1).

Este “investigador de medios de comunicación y cultura” –tal como Getino mismo se definía- había nacido en Sopeña de Curueño, León, España, un 6 de agosto de 1935. Aunque durante la mayor parte de su vida él se consideró argentino.

De familia humilde, Getino vivió los primeros años de su vida en plena Guerra Civil Española. En 1952, siendo adolescente, él y su familia llegan a la Argentina.

La familia Getino rápidamente pudo acomodarse, en un país que por esa época –y desde hacía medio siglo- tenía un futuro prometedor, con pleno empleo, movilidad social, muy poca pobreza –características que, desde la década de 1980, prácticamente han desaparecido del país.

En los primeros años en Argentina el joven Octavio militó en asociaciones españolas de exiliados republicanos, comenzó a escribir sus primeros cuentos, fue obrero metalúrgico y sindicalista.

Luego del derrocamiento de Perón, en 1955, la efervescencia militante obrera en Argentina alcanzaría un clímax hacia 1959, pero sería aplastada por el gobierno de Arturo Frondizi -el primero surgido de elecciones luego del golpe militar contra Perón (aunque dichas elecciones fueron realizadas con la proscripción

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del peronismo)-. En este contexto, Getino sería despedido y puesto en listas negras.

De esta manera, con serias dificultades para encontrar trabajo, el joven español se vuelca de lleno a la escritura –ya hacia mediados de los cincuenta Octavio había escrito y publicado algunos cuentos en medios de la colectividad española-: con sus relatos de ficción “Chulleca/Los del Río y otros relatos” ganó en 1964 el premio Casa de las Américas (“Chulleca” sería luego publicada por la editorial La Rosa Blindada).

Para esa misma época Getino comenzó a estudiar en la única escuela de cine que existía en Buenos Aires: la Asociación de Cine Experimental. A partir de allí, dejaría la literatura y el séptimo arte pasaría a formar parte fundamental en su vida.

En esos años, Getino conocería al publicista Fernando “Pino” Solanas, junto a quien darían a luz “La hora de los hornos”, el documental político latinoamericano ícono en todo el mundo.

Pergeñado a partir de diversas charlas y proyectos para utilizar el cine como herramienta para incidir en la realidad política y social, “La hora de los hornos” comenzó a gestarse en 1965 y a rodarse en 1966 sin ningún apoyo del fomento estatal al cine y en la clandestinidad, ya que ese año tuvo lugar un nuevo golpe militar que dio comienzo a una nueva dictadura militar en la Argentina: la comandada por la “Revolución Libertadora” de Juan Carlos Onganía.

A lo largo de dos años, Getino y Solanas recorrieron gran parte de la vasta extensión argentina, munidos de una cámara de 16 milímetros -sin sonido sincrónico-, con el mismo Solanas oficiando de operador. Luego el material llegaría clandestinamente

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a Italia, en donde sería montado y sonorizado, para posteriormente ser estrenado en el Festival de Pesaro, en junio de 1968, en plena época del Mayo Francés, y a meses del asesinato del Che Guevara: precisamente, “La hora de los hornos” termina con un primer plano del rostro de Guevara asesinado que dura tres minutos... El filme ganó el Gran Premio de la Crítica el 3 de junio, generando una auténtica conmoción: tuvo que ser exhibido más de una vez, inclusive, en la vía pública, a pedido de la gente. “La hora…” también obtuvo premios en el Festival Internacional de Mannheim, en el Festival de Mérida y una mención del British Film Institute como una de las mejores películas de 1974 (año en que se exhibió en Inglaterra).

“La hora de los hornos” sería exhibida de manera clandestina por toda la Argentina y en varios países de América Latina –especialmente en fábricas, sedes de agrupaciones políticas y ámbitos estudiantiles-. Muchas de esas exhibiciones iban siempre acompañadas de acalorados debates políticos posteriores y era común que fueran levantadas repentinamente ante las redadas policiales -con los proyectoristas acostumbrados a tomar los recaudos necesarios para que las latas de la película no se perdieran ni dañaran en el tumulto.

A la par de la realización de “La hora…” se conforma el Grupo Cine Liberación, que buscaba utilizar el cine como arma de concientización, involucrar y movilizar al espectador, dar batalla a las dictaduras y al imperialismo político y cultural desde las películas.

A su vez, se fue desarrollando en el Grupo un proceso de elaboración teórica que generó el conocido manifiesto “Hacia un

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tercer cine”, un texto que analizaba críticamente las relaciones entre el cine y la política, proponiendo lineamientos para superar el “primer cine” -el comercial, ya sea hollywoodense, nacional o de otros países (cine que se consideraba funcional a la construcción de un poder contrario a los intereses “populares”)- y el “segundo cine” -el estético-intelectual, aunque también “burgués” y no comprometido con la “revolución”, al igual que el anterior-. De esta manera, el “tercer cine” se presentaba como un instrumento para refundar el orden existente, en contra del “neo-colonialismo” “imperialista” y a favor de la “liberación nacional” –en épocas de emancipaciones de antiguas colonias imperiales en todo el Tercer Mundo, siendo la principal la Guerra de Vietnam, que se estaba produciendo en esos años-. Algunos autores relacionan el “Tercer cine” con el Grupo Cine Liberación, el Grupo Cine de la Base (también argentino), el Cinema Novo brasileño y el Cine Revolucionario cubano.

El Grupo Cine Liberación adoptó principalmente al documental como su principal medio de realización y difusión, aunque de manera sumamente crítica, interpelando conscientemente al espectador y dejando de lado toda pretensión de objetividad. Buscando un lenguaje propio, estos documentales se alejaban del concepto y la estética convencionales del género, buscando su renovación expresiva a través de la utilización de imágenes de toda clase y procedencia, realizando collages de fotografías y fotogramas fijos o en movimiento y placas con frases, sumado a un montaje que buscaba subvertir el sentido original de esas imágenes a través de su yuxtaposición y unión –recordando de algún modo al “efecto Kuleshov” (2).

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“Hacia un tercer cine” tuvo una importante repercusión no sólo en cineastas, audiovisualistas y estudiosos del cine y el audiovisual de América Latina sino del mundo entero.

A comienzos de la década de 1970 el Grupo Cine Liberación fue acercándose progresivamente al peronismo, llegando inclusive a recibir la invitación del propio Perón para ser visitados por los jóvenes realizadores en Puerta de Hierro, la residencia del caudillo argentino en la España franquista –país que hacía una década habitaba, luego de haber recalado (tras el golpe de Estado que lo expulsó del gobierno) en el Paraguay del dictador general Alfredo Stroessner, en la Venezuela del dictador general Marcos Pérez Jiménez y en la República Dominicana gobernada por el amigo personal de Perón: el “Generalísimo” Rafael Leónidas Trujillo (3).

En 1971 Pino Solanas, Octavio Getino y Gerardo Vallejo filman a Perón en Madrid –con la producción del Movimiento Peronista-, dando como resultado los filmes “Actualización política y doctrinaria para la toma del poder” y “La revolución justicialista”.

En 1972 se filma “El familiar”, el único largometraje dirigido por Getino en solitario.

“El familiar” se basaba en leyendas populares del Noroeste argentino, que giraban en torno a un pacto entre los terratenientes y el diablo, por el cual el patrón vendía el alma de sus obreros; leyenda que se encontraba muy arraigada en vastos sectores del campesinado, y que operaba como mecanismo disciplinador para disipar cualquier cuestionamiento contra el statu quo, so pena de que el rebelde fuera llevado por Lucifer, relacionándose con la temática de los “desaparecidos”: la culpa por la desaparición de los campesinos díscolos se la atribuían al “Familiar” (el diablo)… “El

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familiar” se estrenaría comercialmente recién en octubre de 1975.Entre agosto y noviembre de 1973 –con el retorno de un

gobierno peronista al poder- Octavio Getino será designado interventor del Ente de Calificación Cinematográfica por parte del gobierno peronista. En efecto, el decreto número 358/73 firmado por el ministro de Cultura y Educación, Jorge Taiana, nombraba a Octavio Getino interventor del Ente de Calificación Cinematografía por el término de 90 días –en épocas en que el Instituto Nacional de Cinematografía (INC) era presidido por Hugo del Carril y Mario Soffici.

Este Ente había sido creado durante la dictadura de Onganía, a finales de los sesenta, pensado como un espacio para ejercer la censura, promovido por los sectores católicos y de derecha más conservadores del país (4).

En su gestión como interventor del Ente, Getino autorizó una gran cantidad de películas que habían estado prohibidas hasta ese momento –una de ellas, “Último tango en París” le costaría un proceso judicial que duraría años.

Varias prohibiciones que pesaban sobre distintos filmes fueron levantadas por Getino. Entre ellas, las que pesaban sobre distintas películas argentinas como la propia “La hora de los hornos” (5) además de otros filmes que serían clásicos de la filmografía argentina como “Los traidores” (del militante izquierdista y clasista Raymundo Gleyzer, en un filme muy crítico de la burocracia sindical peronista), “Operación masacre” (Cedrón, 1973), “El camino hacia la muerte del viejo Reales” (Vallejo, 1971), “La Patagonia rebelde” (Olivera, 1974) y “Los hijos de Fierro” (Solanas, 1975), entre otros.

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Por su parte, fueron liberadas películas extranjeras que habían estado prohibidas como “La naranja mecánica” (Kubrick, 1971), “Decameron” (Pasolini, 1971) y “La chinoise” (Godard, 1967), y otras cuyo estreno había estado demorado, como “Estado de sitio” (Costa Gavras, 1972) y “El valle de las abejas” (Vlácil, 1968). Por otro lado, se re-estrenaron filmes que anteriormente habían sufrido cortes, como “Lejos de Vietnam” (Marker y otros, 1967). En esta línea, se fueron estrenando filmes recientes que eran mal vistos por los sectores conservadores, como “Jesucristo superstar” (Jewinson, 1973), “Gritos y susurros” (Bergman, 1972), “Bodas sangrientas” (Chabrol, 1973), “La gran comilona” (Ferreri, 1973) y “Ultimo tango en París” (Bertolucci, 1972).

Muchas de estas películas tuvieron sala llena durante varias semanas, como “Estado de sitio” o “Ultimo tango en París”.

Precisamente, “Ultimo tango…” le generó a Getino un proceso judicial en su contra: el sector conservador consiguió una medida judicial para retirar a la película de las salas, persiguiendo en Tribunales al interventor y a todos los funcionarios del Ente por haberla autorizado. Los acusadores pidieron la expropiación de bienes de Getino. El proceso duró varios años.

La breve gestión de Getino al frente del Ente de Calificación Cinematográfica –tan sólo de dos meses- es recordada no sólo por la liberación de filmes y proyectos, sino también por la creación de una comisión asesora que fomentó el diálogo y la creación de proyectos de programas de calidad en la televisión pública. También se trabajó para sancionar una nueva ley de cine –se realizó un ambicioso proyecto que fue posteriormente detenido en julio de 1974, tras la muerte de Perón.

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Luego de su alejamiento del Ente, Getino –como tantos artistas e intelectuales (peronistas o no)- comenzaron a ser hostigados con creciente virulencia por parte del gobierno peronista (6).

El golpe militar de 1976 refuerza la persecución ideológica y política, nacionalizándose el genocidio que venía perpetrándose con el gobierno peronista (7).

En los comienzos de la dictadura una bomba explota en la casa de Getino, por lo que debe exiliarse inmediatamente, casi sin medios económicos (el reconocido director Leopoldo Torres Nilsson tuvo que comprarle el pasaje). Recala en el Perú, acogido por el gobierno militar populista de ese país.

Getino permaneció con su familia en el Perú hasta 1982. Primeramente, se dedicó a impartir talleres de desarrollo y comunicación social en el norte del país, en las sierras (algunos de sus alumnos tendrían luego distintos cargos de relevancia en el movimiento guerrillero Sendero Luminoso). Esta estancia lejos de la capital fue fundamental para Getino: un compañero suyo, Carlos Maguid -otro argentino exiliado en el Perú-, fue secuestrado en la Pontificia Universidad Católica de Lima y llevado a la Argentina, convirtiéndose en uno más de los desaparecidos argentinos.

A su vez, la Justicia argentina (totalmente manipulada por la dictadura militar) pidió la extradición de Getino a partir de la causa que se le iniciara por permitir el estreno de “Ultimo tango en París”; el gobierno peruano rechazó el pedido.

Posteriormente a esta actividad docente, Getino comenzó a trabajar para el Programa de Naciones Unidas para el Medio Ambiente (Pnuma) –llegó a dirigir la filial peruana-, a la par que comenzaba a editar artículos y algunas revistas referidas a

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la investigación sobre comunicación, para concluir un libro que sería pionero en su tipo: “Turismo, entre el ocio y el negocio” –investigación que trata las dimensiones tanto culturales como económicas del turismo en América Latina.

En 1982, Getino se traslada con parte de su familia a México –realizando también allí labores como funcionario de organismos multilaterales en el ámbito de la cultura y el desarrollo-. Residiría en tierras aztecas hasta 1988, cuando retorna a la Argentina.

Paralelamente a su trabajo como funcionario internacional, Getino seguía militando en pos del cine latinoamericano, promoviendo distintas conferencias y conformando espacios de cineastas, audiovisualistas y estudiosos sobre el cine, el audiovisual y la comunicación en América Latina, especialmente, a través del impulso de investigaciones que abordaran las políticas públicas, los mercados y los estudios comparados de legislaciones a nivel regional –inexistentes hasta ese momento, inclusive a nivel de cada país-, ya que como Getino mismo decía, “(s)i la información es poder, democratizar y socializar esa información es hacerlo también con el poder. Y en el caso del cine, pese a los avances realizados, nuestro conocimiento en el tema resulta todavía insuficiente. Abundan los estudios sobre la historia, la crítica, la labor de nuestros cineastas, pero no así la referida al carácter industrial de este medio”, agregando “no existían entonces datos ni información sobre la economía (que forma parte de la cultura) en el cine nacional y latinoamericano. Y sin información confiable resulta aventurado pensar en políticas de desarrollo, sea en el campo que fuere” (8).

Un hito en el camino de la investigación sobre cine,

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audiovisual y medios a nivel regional lo conforma la constitución en 1985 de la Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano (FNCL) en La Habana, bajo el auspicio del gobierno cubano, y con el firme apoyo de Gabriel García Márquez (es su director honorario hasta la actualidad) y de distintos cineastas políticos de toda América Latina, como Octavio Getino, que conformaron sus consejos directivos, consultivos y académicos.

La FNCL nació con el objetivo principal de investigar y analizar el cine latinoamericano desde múltiples aristas, pero especialmente, desde la perspectiva industrial, de desarrollo y transformación política (bajo la égida de la FNCL nacería en 1986 la Escuela Internacional de Cine de San Antonio de los Baños, que al poco tiempo se convertiría en una de las escuelas latinoamericanas de cine más prestigiosas).

Con el apoyo de Alquimia Peña -presidente de la FNCL desde los primeros años hasta la actualidad- Getino impulsaría incansablemente la realización de estudios e investigaciones sobre la realidad latinoamericana del cine y el audiovisual. El primer estudio de la FNCL se realizó de 1986 y se enfocó sobre el impacto del video en las cinematografías locales: bajo la coordinación de Getino distintos especialistas estudiaron la situación del sector en siete países (“Incidencia del video en las cinematografías de siete países latinoamericanos”). A su vez, la FNCL promovió la publicación de la primera investigación de Getino sobre la economía del cine latinoamericano -que había realizado en México- a través de la Universidad de los Andes, en Venezuela (“Cine latinoamericano: economía y nuevas tecnologías”) -años más tarde, se publicaría una versión actualizada en Costa Rica y en la Argentina (“Cine

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iberoamericano. Los desafíos del nuevo siglo”). En 1988 Getino retorna a la Argentina. Conforma el “Primer

Foro del Espacio Audiovisual Nacional” –haciendo foco en la convergencia que ya comenzaba a vislumbrarse entre el cine, la televisión y el video- junto con profesionales provenientes del cine y la comunicación como Nemesio Juárez, Gerardo Vallejo, Martín García y Carlos Galettini.

En 1989 asume en Argentina un nuevo gobierno peronista al mando de Carlos Saúl Menem -sucediendo a Raúl Alfonsín, de la Unión Cívica Radical (partido social-demócrata centenario), en un marco de hiperinflación descontrolada y caos social, político y económico-. El director del Instituto Nacional de Cine designado por el gobierno, el reconocido director René Mugica, renunció a los tres meses de asumido, por divergencias por el giro neoliberal que ya comenzaba a vislumbrar la administración Menem –cuya campaña electoral se había basado en el regreso a las fuentes populistas del peronismo, con “salariazo” incluido; a los pocos meses de asumido, el nuevo gobierno fue girando progresivamente hacia la derecha.

Octavio Getino sucedió a Mugica y duraría un año en el cargo (de octubre de 1989 a noviembre de 1990), alejándose también en desacuerdo por el giro neoliberal del gobierno.

Durante su gestión frente al Instituto Nacional de Cine (INC), Getino pondría énfasis en la prédica que venía llevando a cabo desde el exilio en distintos festivales y encuentros regionales de cine: pensar los cines nacionales en el marco del cine latinoamericano. En este sentido, Getino fue uno de los titulares de agencias nacionales latinoamericanas que más firmemente

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buscó crear herramientas concretas para construir la integración latinoamericana en torno al cine y el audiovisual. Así, se firmaron en noviembre 1989 tres acuerdos trascendentes en este sentido: de integración iberoamericana, de coproducción y de mercado común.

El Convenio de Integración Iberoamericana fue el marco de estos trascendentes acuerdos. En él se establecieron los lineamientos básicos de este camino de integración, creándose la Conferencia de Autoridades Cinematográficas de Iberoamérica (Caci) y la Secretaría Ejecutiva de la Cinematografía Iberoamericana (Seci); se estableció que la Seci tendría sede en Caracas –ciudad en donde sigue funcionando (9).

A partir de la década neoliberal de 1990, Octavio Getino se dedicó de lleno a la realización de estudios, investigaciones, creación de observatorios, cátedras, espacios de reflexión y divulgación constante sobre la economía del cine, el audiovisual, los medios y la comunicación social (en 1992 estuvo a cargo del primer estudio realizado en América Latina sobre “Dimensión económica y políticas públicas de las industrias culturales” en Argentina y sobre “Las industrias culturales en la integración del Mercosur” aprobada por los Ministros de Cultura de la región en 2000).

Luego publicaría trabajos fundamentales como Cine argentino: entre lo posible y lo deseable, Cine y televisión en América Latina. Producción y mercados y su último trabajo, la coordinación de la compilación Producción y mercados del cine latinoamericano en la primera década del siglo XXI.

Octavio Getino buscó estudiar el espacio audiovisual en conjunto, analizando las nuevas interrelaciones que fueron

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surgiendo a lo largo de todos estos años entre el cine, la televisión, el video y las distintas industrias culturales, encarando a su vez el estudio del cine latinoamericano como un todo, más allá de sus especificidades nacionales.

Publicó una veintena de libros y decenas de artículos en compilaciones, revistas especializadas y publicaciones varias (en formato impreso o electrónico). En la bibliografía se ofrece una selección de sus publicaciones más salientes.

Participó en innumerables festivales, conferencias, mesas redondas y encuentros, tanto nacionales como internacionales. Fue un referente ineludible consultado por todas las agencias nacionales de cine latinoamericanas, por organismos multilaterales y por universidades de todo el subcontinente y del mundo –aunque él prefería siempre acudir a un encuentro de jóvenes documentalistas indígenas en una región de menor desarrollo relativo en lugar de aceptar la invitación de alguna aristocrática universidad primermundista.

Creó el Observatorio de Industrias Culturales de la ciudad de Buenos Aires, el Observatorio del Mercosur Audiovisual -en el marco de la fallida Recam (10)- y el Observatorio del Cine y el Audiovisual Latinoamericano (en el seno de la FNCL).

Se convirtió en un faro en toda América Latina y España sobre los estudios culturales, del audiovisual, los medios y la comunicación. Fue generoso con decenas de jóvenes investigadores a quienes cobijó en variados equipos de investigación que conformó y diseminó durante más de 20 años en distintos países, en especial, en Argentina, el país que adoptó como su patria desde joven.

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Notas

(1) Thomas Guback es un investigador norteamericano de cine, proveniente de la Economía Política de la Comunicación, que en la década de 1960 realizó una investigación pionera sobre la industria cinematográfica a nivel internacional, enfocándose en las estructuras de poder dentro de este sector, buscando que los estudios sobre el séptimo arte trasciendan la mera crítica del texto fílmico y la divulgación de los chismes de las estrellas de cine.

(2) Doble articulación del lenguaje cinematográfico creado por el ruso Lev Ku-leshov: intercalando un mismo plano con otras imágenes, en donde cada imagen por sí sola tiene un significado propio: al mezclarlas en el montaje, producen un efecto distinto.

(3) Trujillo –hombre fuerte de República Dominicana durante tres décadas, pro-fundamente anticomunista y racista- construyó una de las tiranías más sangrien-tas del siglo XX a nivel mundial, asesinando a unas 50 mil personas -incluyendo los entre 20 y 30 mil haitianos asesinados a lo largo de sólo una semana en 1937, en la llamada Masacre del Perejil (Haití ocupa el 37% del sector occidental de la misma isla en donde se asienta Dominicana).

(4) El Ente de Calificación Cinematográfica sería disuelto a comienzos de 1984, apenas asumido el gobierno de Raúl Alfonsín –el primero surgido de elecciones abiertas luego de la sangrienta dictadura militar de 1976.

(5) Este estreno comercial de “La hora de los hornos” (realizado el 1 de noviem-bre de 1973) vio otra versión de la película realizada por Solanas y Getino en su explícito acercamiento al gobierno peronista. El más notable tiene que ver con que el final ya no tenía la versión de tres minutos de la toma fija sobre la cara del cadáver del Che Guevara: esta toma se acortó sensiblemente, para ser mezclada con otras de discursos de Perón y Evita, e inclusive, de Perón con su nueva es-posa, Isabel Martínez –que luego sería vicepresidente del caudillo, y presidente, tras la muerte de Perón, con un gobierno que comenzó a realizar desapariciones en masa, recortes salariales e incrementó la persecución ideológica y política-. También aparecían en ese final imágenes de la asunción del gobierno peronista de Cámpora, del Cordobazo, de la masacre de Trelew (asesinato de militantes peronistas y de izquierda por parte de la dictadura militar de Lanusse, en 1972), movilizaciones, represiones, y referentes latinoamericanos como Fidel Castro, Camilo Torres, Salvador Allende y Omar Torrijos.

(6) Cual paradoja histórica, en 1975 Getino finalmente logró estrenar su película “El familiar” (culminada en 1973). La película comenzaba con un cartel en el que el autor se disculpaba, de alguna manera, por utilizar metáforas y lenguaje sim-bólico, puesto que “(a)hora que esas condiciones han cambiado ya no sería nece-sario ese lenguaje” (en 1973 había asumido, luego de 18 años, un gobierno pero-

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nista). Pero en 1975 las condiciones eran muy distintas: el gobierno peronista de Isabel Perón (viuda del caudillo, muerto el año anterior) llegaba a un clímax de represión, tanto por parte de los militares –con la anuencia del gobierno- como de bandas parapoliciales, lideradas por el maestro personal de esoterismo de la viuda de Perón, José López Rega, un ex policía de bajo rango que fungía como Ministro de Desarrollo Social.

(7) En febrero de 1975, el gobierno peronista firmó un decreto mandando a los militares a “aniquilar a la subversión”, dando comienzo a la política de represión institucional contra todo aquella persona que cuestione el statu quo: se instalaron en la provincia de Tucumán los primeros campos de concentración y exterminio –que con la dictadura militar de 1976 se expandirían a todo el país.

(8) “La vida del hombre transcurre entre lo deseable y lo posible”, entrevista a Octavio Getino en Página 12, 17 de octubre de 2011.

(9) El Convenio de Integración Iberoamericana fue firmado el 11 de noviembre de 1989 por Argentina, México, Brasil, España, México, Colombia, Perú, Vene-zuela, Cuba, Bolivia, Ecuador, Nicaragua, Panamá y República Dominicana. Fue clave para la recuperación, e inclusive, para la creación, de varias cinematogra-fías latinoamericanas, especialmente, a través de la creación del Programa Iber-media en 1997 –dado a conocer durante la VII Cumbre Iberoamericana de Jefes de Estado y Gobierno en la isla Margarita, en Venezuela.

(10) Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur

Bibliografía

Selección de libros de Octavio Getino (primeras ediciones, en orden cronológico):(1963) Chulleca/Los del Río y otros relatos, La Habana: Casa de las Américas.

(1982) A diez años de “Hacia un tercer cine”, México D.F.: Filmoteca UNAM.

(1984) Notas sobre cine argentino y latinoamericano, México D.F.: Edimedios.

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(1985) Perú, Cecodesa. Una experiencia de comunicación rural, México D.F.: CIMCA.

(1987) Cine latinoamericano: economía y nuevas tecnologías, Mérida: Universidad de los Andes.

(1990) Cine y dependencia. El cine en la Argentina, Buenos Aires: Punto Sur.

(1994) Turismo y desarrollo en América Latina, México D.F.: Limusa.

(1995) Las industrias culturales en la Argentina, Buenos Aires: Colihue.

(1996) La tercera mirada, Buenos Aires: Paidós.

(1998) Cine argentino: entre lo posible y lo deseable, Buenos Aires: Ciccus.

(1998) Cine y televisión en América Latina. Producción y mercados, Buenos Aires: LOM-Ciccus.

(2002) El cine de las historias de la revolución, Buenos Aires: Grupo Editor Altamira (en co-autoría con Susana Velleggia).

(2002) Industrias culturales. Mercosur cultural, Buenos Aires: Secretaría de Cultura de la Nación.

(2002) Turismo entre el ocio y el neg-ocio, Buenos Aires: Ediciones Ciccus-La Crujía.

(2005) Cine iberoamericano: los desafíos del nuevo siglo, San José de Costa Rica: Editorial Veritas.

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(2011) Producción y mercados del cine latinoamericano en la primera década del siglo XXI, La Habana: Consejo Nacional Autónomo de Cinematografía-Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano.

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Octavio Getino - Cineasta da integração cinematográfica

latino-americanaArthur Autran

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Sobre Arthur Autran

Professor da Universidade Federal de São Carlos, Doutor.E-mail: [email protected]

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O falecimento em Buenos Aires do cineasta Octavio Getino no dia primeiro de outubro, aos 77 anos, foi uma triste notícia para nós que, do Brasil, acompanhamos o seu trabalho intelectual incansável de reflexão sobre o campo audiovisual latino-americano. Este artigo não é uma síntese biográfica da agitada e rica vida de Getino (1), o que se pretende é apontar para alguns dos eixos importantes do seu pensamento e estabelecer vínculos com o cinema brasileiro.

O foco do interesse de Octavio Getino nos últimos anos girou em torno da questão da viabilidade econômica da produção em um quadro de ocupação do mercado cinematográfico tomado pela cinematografia hegemônica norte-americana. Ou seja, algo que nós toca a todos ao sul do Rio Grande, nesse vasto território denominado América Latina com inúmeros pontos comuns e também diferenças em termos históricos, culturais, políticos e sociais. No Brasil, país cujos artistas e intelectuais habitualmente buscaram dialogar mais com a Europa e/ou com os Estados Unidos, as posições de Getino podem mesmo chegar a causar espécie.

A sua atividade cinematográfica começou nos anos 1960, momento de eclosão de movimentos de renovação do cinema por todo o mundo e com muita força na América Latina, especialmente no Brasil e em Cuba, como também na Argentina, na Bolívia, no Chile e no México. Após dirigir seu primeiro filme, o documentário de curta-metragem Trasmallos (1964), Getino travou conhecimento com Fernando Solanas e realizaram La hora de los hornos (1968), dirigido por este último e co-roteirizado por ambos os cineastas. Junto com o filme nasceu também o Grupo Cine Liberación, integrado por ambos e mais Gerardo Vallejo. A proposta do grupo tinha por base histórica o trabalho de cineastas como Joris Ivens, Fernando Birri

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ou Leon Hirszman; mas pretendia aprofundar tais experiências, pois, propunha que, para além de “testemunhar” as lutas sociais, o cinema deveria mesmo possuir “uma atitude, ao menos como tentativa, militante” (GETINO, 1998, p. 58). Em conjunto, Solanas e Getino divulgaram ainda o manifesto “Hacia un tercer cine” (1969) e publicaram o livro Cine, cultura y descolonización (1973), documentos ideológicos que exaram o ideário do grupo Cine Liberación. Para além da militância política que se vinculou ao peronismo de esquerda, parece-me importante salientar dois pontos centrais na prática e na teoria do grupo: o afastamento radical em relação à idéia de indústria cultural em prol da defesa mesmo de um cinema produzido clandestinamente; a busca de formas alternativas de exibição junto a sindicatos, movimentos políticos, agrupamentos estudantis, etc.

Em relação ao cinema brasileiro, é possível afirmar que estas idéias não tiveram praticamente nenhuma repercussão mais profunda. Os cineastas oriundos do Cinema Novo, conforme já demonstrei em outro trabalho (AUTRAN, 2004, p. 102-109), a partir de meados dos anos 1960 buscaram conciliar suas propostas estéticas e políticas com formas de produção que pudessem – pelo menos idealmente – levar à industrialização do cinema brasileiro; ademais, a exibição comercial tradicional em salas de cinema sempre foi o vetor principal visado por eles como meio de circulação dos filmes na sociedade.

O que poderia ser apontado, nos anos 1960, como traço comum de Octavio Getino e de alguns cineastas brasileiros – tais como Glauber Rocha e Leon Hirszman –, para além da oposição cerrada ao cinema de Hollywood, é a adesão a um projeto internacionalista

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que buscasse reforçar os laços entre as cinematografias e mesmo as culturas em geral dos diferentes povos latino-americanos. O discurso de La hora de los hornos tem nítida implicação em relação a toda América Latina, e não apenas no que tange à Argentina. A locução do filme afirma, sobre planos gerais mostrando o esplendor da cidade de Buenos Aires: “O que caracteriza os países latino-americanos é a sua dependência. [...] A história de nossos países é a história de um interminável saque colonial. Sem independência econômica não há independência política”.

Glauber Rocha, dentre os brasileiros, talvez tenha sido o diretor naquele momento que mais buscou pensar a partir de um viés latino-americano. Seu filme Terra em transe (1967) faz alegorias com nítidas referências à história e à cultura do subcontinente, vídeo o personagem interpretado por Paulo Autran chamar-se Porfírio Díaz ou os trechos do poema Martín Fierro (2) que são lidos por Paulo Martins – personagem de Jardel Filho. Em texto datado de 1967, intitulado “Teoria e prática do cinema latino-americano”, Glauber afirma que:

A noção de América Latina supera a noção de nacionalismos. Existe um problema comum: a miséria. Existe um objetivo comum: a libertação econômica, política e cultural de fazer um cinema latino. Um cinema empenhado, didático, épico, revolucionário. Um cinema sem fronteiras, de língua e problemas comuns. (ROCHA, 1981, p. 50)

Mas a seguir, o autor faz uma análise das cinematografias de México, Argentina, Cuba e Brasil, defendendo o viés seguido pelo Cinema Novo brasileiro ao criar a Difilm, empresa distribuidora dos filmes do movimento nos mercados interno e externo, a qual

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“não está apenas criando um mercado, mas está criando um público para seu produto” (1981, p. 52). Note-se, no entanto, que este mercado e este público eram baseados no circuito tradicional de salas de cinema.

Ou seja, no caso da proposta da Difilm e do Cinema Novo buscava-se alguma integração à economia cinematográfica tal como ela estava estruturada, já a proposta do grupo Cine Liberación era de ruptura com o sistema.

***

Devido ao golpe militar de 1976 na Argentina, Octavio Getino foi obrigado a se exilar, primeiramente no Peru e posteriormente no México, só retornando à sua pátria em 1988. Nesse período fora da Argentina, Getino aprofundou suas pesquisas sobre a economia do audiovisual latino-americano e a partir daí produziu uma reflexão da maior importância teórica e política.

Em 1987, no contexto do Festival de Havana, ele participou ativamente da preparação do documento intitulado “A veinte años de Viña del Mar”. O título remete ao I Festival do Novo Cinema Latino-Americano, ocorrido na cidade chilena em 1967 e que serviu de importante momento de articulação entre os cineastas de esquerda do subcontinente. O documento de Havana destaca a importância de se pensar o conjunto das manifestações audiovisuais, ou seja, o cinema, a televisão broadcasting e o vídeo independente, os quais conformam o “espaço audiovisual latino-americano”.

Com a eleição do peronista Carlos Menem à presidência

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da Argentina, Getino ocupou entre de 1989 a 1990 a direção do INC (Instituto Nacional de Cine). Nesse curto espaço de tempo a frente do órgão, além de tentar defender o cinema nacional da sanha neo-liberal que acabou por tomar conta do governo Menem, assim como de outros governos latino-americanos, ele apoiou importantes medidas que ampliaram as relações cinematográficas no âmbito da América Latina, com destaque para o acordo que gerou a CACI (Conferência de Autoridades Cinematográficas de Iberoamérica) – o Brasil participa deste organismo desde a sua criação. Dentre os importantes resultados da CACI, deve-se destacar o Programa Ibermedia, o qual fomenta a co-produção entre países iberoamericanos, a qualificação de pessoal para o campo audiovisual e o desenvolvimento de projetos.

Ainda em 1987, Octavio Getino publicou Cine latinoamericano: economía y nuevas tecnologías audiovisuales. O livro empreende o primeiro panorama solidamente embasado do ponto de vista teórico associado a um amplo levantamento de dados em torno da configuração dos mercados cinematográficos na América Latina em relação à produção, à distribuição e à exibição. A produção intelectual de Octavio Getino, a partir desse momento, se voltou para a descrição e a análise dos mercados audiovisuais, buscando ainda propor soluções para os impasses gerados pela presença maciça do produto hegemônico hollywoodiano. Entre outros títulos do autor, destacam-se os seguintes livros: Cine argentino – Entre lo posible y lo deseable (1998), Industrias culturales – Mercosur cultural (2002) e Cine iberoamericano: los desafíos del nuevo siglo (2007).

É marcante nos livros publicados e em diversos artigos a forte referência à história política e cinematográfica da América

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Latina. Cine argentino – Entre lo posible y lo deseable possui uma de suas cinco partes integralmente dedicada a uma elaborada narração da história do cinema produzido no país vizinho, tudo de forma a que o leitor possa compreender as formas pelas quais a produção argentina buscou se viabilizar ao longo do tempo, as principais linhas de força daquela cinematografia, bem como os filmes mais importantes segundo a perspectiva do autor, além das relações com o Estado.

Afigura-se como perspectiva central da obra de Octavio Getino, desde os anos 1980, a proposta de construção de políticas cinematográficas coordenadas entre os diferentes países da América Latina, com o objetivo de se obter maior integração cultural e econômica. Busca-se, destarte, produzir expressões cinematográficas nacionais e regionais, além de resistir e se opor à Hollywood. Em Cine iberoamericano: los desafíos del nuevo siglo, o autor lamenta o isolamento das políticas dos diferentes países do contexto iberoamericano da região, muito pouco voltadas para a integração.

Nesse ponto cabe reiterar a necessidade de uma visão nacional de alcance regional – uma “regionalidade situada” – sem a qual, como demonstra a história da cinematografia mundial, resultará sumamente difícil enfrentar com êxito os problemas atuais do cinema iberoamericano que, previsivelmente, haverão de agravar-se à medida que avance o projeto autoritário da “globalização econômica” e os processos aparentemente incontroláveis da “mundialização cultural”: situações simultâneas e parecidas, mas com características e efeitos altamente diferenciados. (GETINO, 2007, p. 63) [tradução minha]

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Outrossim, atento ao quadro de aumento de produção audiovisual na América Latina sem nenhuma relação com o crescimento da relação como público, Getino assinala ser “mais decisivo” do que a quantidade de filmes realizados o “impacto real (comercial - cultural) dessa indústria [a cinematográfica] no mercado” (2007, p. 82). Não deixa de chamar atenção, que Gustavo Dahl também insistia na centralidade da relação de uma cinematografia com seu público, entendendo que ela é econômica mas também cultural (2012, p. 272). Aliás, é de se salientar as diversas semelhanças entre estes dois cineastas, ambos oriundos da geração dos Cinemas Novos, dirigentes culturais, diretores de filmes e autores de textos fundamentais sobre o cinema.

A obra teórica de Getino converteu-se em importante referência para os trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado que têm como objeto o mercado audiovisual da América Latina, bem como pesquisadores de outras esferas para além da acadêmica, tais como o de profissionais das políticas culturais. No Brasil, essa problemática começou a ser mais freqüentada nos últimos anos e os seus livros são fontes sempre mencionadas, inclusive em trabalhos que se debruçam exclusivamente sobre o nosso país. O que ainda falta entre nós, brasileiros, é uma consciência mais aguda acerca da importância da integração cultural e econômica do audiovisual latino-americano, como observei, um dos cernes das reflexões de Octavio Getino.

Notas

(1) Este número da Revista Geminis contém o artigo “Octavio Getino, um refe-rente em la investigación latinoamericana de cine y médios audiovisuales”, de

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autoria de Roque González. O texto faz um ótimo resumo biográfico da vida do cineasta e contextualiza o seu trabalho em relação à política argentina.

(2) El gaucho Martín Fierro é um poema épico da autoria de José Hernández, pu-blicado em 1872 na Argentina. É considerado uma das obras chave da literatura latino-americana.

Referências bibliográficas

AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. 2004. 283f. Tese (Doutorado em Multimeios) – Programa de Pós-Graduação em Multimeios, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

DAHL, Gustavo. Gustavo Dahl: ideário de uma trajetória no cinema brasileiro. Entrevista a Arthur Autran. Rebeca, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 264-280, jan. jun. 2012.

GETINO, Octavio. Cine argentino – Entre lo posible y lo deseable. Buenos Aires: Ciccus, 1998.

__________. Cine iberoamericano: los desafíos del nuevo siglo. Buenos Aires: Ciccus / INCAA, 2007.

ROCHA, Glauber. Teoria e prática do cinema latino-americano. In: Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra / Embrafilme, 1981. p. 49-53.

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o mErcado cinEmatográfico braSilEiro E a aliança EntrE o global E o local

marcElo ikEdaMestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected]

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rESumo

A indústria cinematográfica vem passando por processos de transformação, associados às transforma-ções nos modos de produção e consumo do capitalismo contemporâneo, com a formação de grandes conglomerados globais. O trabalho proposto pretende investigar o impacto desses processos na produ-ção cinematográfica brasileira do novo século, mostrando exemplos em que a ação local existe não como afirmação da identidade local, mas apenas como estratégia de consolidação do global no local. Para tan-to, examinaremos como, no caso brasileiro, a partir de meados dos anos noventa, a crescente presença dos conglomerados globais na produção e distribuição de conteúdos cinematográficos brasileiros está calcada tanto no apoio de uma política estatal (o Art. 3º da Lei do Audiovisual) quanto na aliança com o maior grupo de mídia local (a criação da Globo Filmes).

Palavras-Chave: Indústria Cinematográfica; Política cinematográfica; Lei do Audiovisual; Globo Filmes

abStract

The film industry is undergoing transformation processes associated with changes in the modes of production and consumption of contemporary capitalism, with the formation of large global conglome-rates. This paper investigates the impact of these processes in Brazilian filmmaking of the new century, showing examples where local action exists not as an affirmation of local identity, but just as the global consolidation strategy in place. Therefore, we will examine how, in Brazil, from the mid-nineties, the growing presence of global conglomerates in the production and distribution of film content is groun-ded in both the Brazilian support state policy (Article 3 of the Audiovisual Law ) and in alliance with the largest group of local media (the creation of Globo Filmes).

Keywords: Film Industry, Film Policy; Audiovisual Law; Globe Movies

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1 – Transformações no modo de acumulação das indústrias cinematográficas: a formação dos conglomerados globais

O desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação tem provoca-do mudanças significativas nos modos de produção e consumo no capitalis-mo contemporâneo. Vivemos numa era de aprofundamento das tendências à

unicidade dos modos de viver, fazer e pensar, com impactos não somente no campo das técnicas, mas essencialmente, econômicos e sociais.

A extrapolação dos fluxos financeiros operados por um pequeno número de grandes conglomerados empresariais transborda os limites do território, derruba mu-ros e fronteiras antes intransponíveis, sangra florestas e riachos na procura por maté-rias-primas e infraestrutura para a distribuição dos nódulos de suas redes, em busca de um único objetivo: a consolidação da lógica do capital. Essa lógica de operação trans-forma a relação do homem com seu tempo e o espaço, utiliza objetos e ações como ins-trumentos cada vez mais mediados por normas rígidas e programadas, que conferem padronização e controle ao regular o fluxo de informação necessário ao ininterrupto girar das moendas do nosso tempo.

Milton Santos (2002) utilizou o termo meio técnico-científico-informacional para designar os atuais tempos, especialmente a partir dos anos setenta, em que a téc-nica não possui mais uma existência autônoma, mas transforma-se por meio de uma profunda interação entre ciência e técnica, e em que “os objetos técnicos passam a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais” (SANTOS, 2002, p.159). A velocidade da criação de novas mercadorias tecnológicas e sua fugacidade, que cria repentinas ob-solescências, reforça a interdependência dos locais e das técnicas, que passam a ser subordinados a grandes centros de decisão, que espalham suas redes a nível mundial.

O campo da cultura sente as influências desses movimentos de transformação de maneira íntima, transformando modos de ser em produtos de uma indústria cul-tural cada vez mais materializada, guiada por uma lógica essencialmente mercantil. Como afirma Otávio Ianni (1995), a unicidade dos fazeres dessa “aldeia global” inevita-

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72velmente afeta ideias, padrões e valores socioculturais, impulsionando a adesão a uma cultura de massa, que produz mercadorias midiáticas em escala mundial.

Os meios de comunicação de massa - impulsionados pelo advento de novas tecnologias oriundas da eletrônica e da informática - transformam radicalmente o ima-ginário de todo o mundo, por meio da circulação de livros, filmes, músicas, transfor-mados em mercadorias, cujo valor é não somente econômico, mas carrega consigo uma padronização crescente nos modos de percepção do mundo e das coisas, subordinando a particularidade das sensibilidades a mero instrumento de reprodução do capital.

Essa nova ordem econômica mundial, portanto, atinge não somente os ramos mais tradicionais do capitalismo monopolista. Ela avança dos setores industriais para os serviços, entrecruzando produtos intensivos, seja em trabalho, seja em capital, numa lógica de interdependência entre ramos produtivos distintos, numa espiral crescente de concentração em grandes conglomerados mundiais. Muitos deles passam a possuir, como um dos segmentos de sua organização, empresas de mídia, no sentido de conso-lidar sua posição estratégica, tanto na geração quanto na circulação de produtos, que reforçam suas marcas e contribuem com ações cada vez mais sofisticadas de promoção de seus produtos.

No interior da indústria cultural, a indústria cinematográfica é particularmen-te sensível a essas transformações, já que o produto cinematográfico possui a particu-laridade de ser intensivo, tanto em tecnologia de ponta quanto em trabalho altamente qualificado, um produto ao mesmo tempo mediado por grandes aportes de capital e por altas doses de criatividade. De um lado, o cinema possui um inevitável apelo sim-bólico como grande entretenimento de massa. De outro, de forma mais intensa que a música ou o romance, o alto custo de uma obra cinematográfica torna sua produção uma elaborada produção logística.

Por um processo histórico, a concentração na indústria cinematográfica remon-ta ao período entre guerras, em que o cinema hollywoodiano conquistou os mercados mundiais com uma distribuição massiva. No entanto, o aprofundamento desse proces-so de concentração visto nas últimas décadas é visível. Um oligopólio de seis empresas domina a indústria cinematográfica a nível mundial – Warner, Sony, Disney, Paramount, Universal, FOX –, também conhecidas como “the Big Six” (WATERMAN, 2005). São companhias que funcionam numa integração vertical, em que o domínio de suas ati-vidades está na distribuição, e não propriamente na produção ou na exibição, embora elas também tenham braços significativos nesses segmentos. Dos vinte filmes de maior bilheteria mundial lançados em 2008, apenas um não possui participação de uma des-sas empresas. (FOCUS, 2009)

No entanto, essas empresas não se constituem isoladamente, mas fazem parte

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de um imbricado conjunto de empresas, por meio de joint ventures, filiais ou sucursais, operações conjuntas viabilizadas por acordos comerciais com outras, ou mesmo como “meros departamentos” de grandes conglomerados empresariais. Inicialmente sua ex-pansão seguia a tradicional estratégia de consolidação dos oligopólios, por meio de uma integração horizontal (compra de estúdios independentes) ou de uma integração verti-cal (aquisição de salas de cinema ou cadeias de vídeo doméstico). Porém, a extrapolação dessa lógica tornou os estúdios cinematográficos parte de grandes conglomerados mi-diáticos. O exemplo mais significativo foi a fusão entre AOL, Time e Warner, englobando, num mesmo oligopólio, líderes globais de produção de conteúdo cinematográfico e de mídia impressa, além de um grande player na indústria de tecnologias de comunicação. O passo seguinte a esse processo foi a incorporação desses conglomerados midiáticos em outros conglomerados ainda mais robustos, de modo que a indústria midiática é apenas parte de um conglomerado que produz os mais diversos produtos, numa lógica de consolidação de marcas e de pulverização dos investimentos como forma de redução dos riscos. (COMPAINE; GOMERY, 2000). Um exemplo é a SONY, empresa de capital majoritariamente japonês, que produz equipamentos eletrônicos diversos (televisores, aparelhos de celular, DVDs, câmeras fotográficas, etc.) e, ao mesmo tempo, a proprie-dade do estúdio cinematográfico Columbia Pictures. Outro exemplo é o da compra do estúdio Universal Pictures pela General Electric (GE), empresa que fabrica produtos tão diversos quanto turbinas para aviões ou equipamentos médico-hospitalares de intensi-va tecnologia. Por sua vez, a empresa de origem francesa Vivendi também possui uma participação da NBC Universal, imbricando as relações de propriedade da empresa, ao mesmo tempo em que atua em outros segmentos, como telefonia fixa e móvel, internet, games e música, entre outros (ver figuras 1 e 2).

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74Figura 1 – Organograma da General Electric (GE)

Fonte: GE. Disponível em: http://www.ge.com/company/index.html

Figura 2 – Organograma da General Electric (GE)

Fonte: Vivendi. Disponível em: http://www.vivendi.com/investment-analysts/key-figures-and-simplified-organization-chart/

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Apesar de falados em língua inglesa, os produtos fílmicos dessas grandes cor-porações não são propriamente norte-americanos, mas essencialmente produtos glo-bais. Ao invés de representarem o domínio de Hollywood, são na verdade representantes de uma “Hollyworld”, já que atualmente a minoria dessas empresas ainda permane-ce sediada na cidade norte-americana. Além disso, o mercado externo já representa a maior parte das receitas dessas empresas: em 2006, 65% da receita das majors foram ob-tidas fora do território norte-americano. Elas operam em escala mundial num processo crescente, que se intensifica pelo influxo de capitais e pela flexibilização dos fluxos financeiros entre países, beneficiadas pelas políticas de desregulamentação por parte dos Estados Nacionais. O resultado é um aumento considerável no orçamento dos fil-mes, especialmente dos gastos em publicidade. Em 1984, o custo médio de um filme produzido pelas majors era de US$ 21,1 milhões, destes, US$ 39 milhões foram gastos de publicidade (apenas nos EUA, já que a publicidade fora do país não é considerada nas estatísticas). Já em 2003, o custo médio saltou para de US$ 102,9 milhões, sendo US$ 39 milhões relativos a despesas de publicidade (KUNZ, 2005)

Com uma rede de produção e distribuição que opera em escala mundial, esti-mulada pela concentração em grandes conglomerados midiáticos, pela velocidade dos fluxos financeiros e pelos efeitos multiplicadores das ações de marketing com a difusão da informação através das tecnologias de comunicação sociais massivas - as majors do-minam o mercado cinematográfico não apenas dos Estados Unidos, mas da maior par-te de países do mundo, inclusive das grandes potências econômicas europeias, como Itália, Alemanha e Reino Unido, com a exceção particular de alguns países como Índia, Irã, ou China. Mesmo na União Europeia, a participação dos filmes norte-americanos é de 70%, sendo que os filmes europeus representam apenas 28,4% (FOCUS, 2009). Nos países latino-americanos a participação de mercado dos filmes nacionais raramente atinge 10%, mesmo em países, como Argentina (8,9%), Chile (8,4%) e México (8,0%).

2 – O caso brasileiro: a aliança entre o local e o global

Como seria de se esperar, o Brasil não se trata de exceção à regra mundial. De fato, a invasão de filmes de “Hollyworld” é esmagadora num mercado de grandes desigualdades, onde 92% dos municípios não possuem uma única sala de cinema em funcionamento regular, e 58% da renda de bilheteria está concentrada nas dez princi-pais capitais (FILMEB, 2011). Possuindo pouco mais de 2.000 salas (2.345 salas em 2011), o mercado de exibição cinematográfica brasileiro é pequeno, em se tratando seja do número de ingressos vendidos per capita, seja de habitantes por salas. Em termos de

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76ingressos per capita, o Brasil fica atrás de países como África do Sul e Filipinas, além dos vizinhos Peru e Uruguai. O Brasil possui cerca de 85 mil habitantes por sala, fração muito superior a de países, como a Alemanha (17 mil), Polônia (36 mil), Rússia (67 mil), Argentina (45 mil) ou mesmo o México (24mil), outro país latino-americano de grande extensão territorial e de forte tradição televisiva, mas que possui o dobro de salas de cinema que o Brasil. Os filmes distribuídos pelas “Big Six” são exibidos comercialmen-te no mercado brasileiro por meio de grandes lançamentos, numa estratégia integrada mundialmente. Apenas em 2011, 17 títulos ocuparam mais de 500 salas simultaneamen-te (ver Figura 3), configurando uma invasão maciça de um único produto na fatia mais privilegiada do mercado de salas de exibição, em geral os multiplexes dos grandes cen-tros urbanos, com filmes que estimulam a fantasia e o escapismo, repetidos e reiterados através de sucessivas continuações, como Homem Aranha, Harry Potter, Missão Impossível, entre outros. Em 2011, as “Big Six” apresentaram uma participação de cerca de 75% no mercado de distribuição cinematográfica no Brasil (FILMEB, 2011).

Figura 3 - Filmes Lançados no Mercado de Salas Brasileiro em mais de 500 salas - 2011

Se por um lado as majors asseguram sua presença no mercado cinematográfico de todo o mundo com o lançamento comercial de seus produtos distribuídos em escala global, por outro lado, essas mesmas empresas muitas vezes possuem participação nos próprios filmes produzidos em outros territórios. É crescente a tendência de as majors realizarem acordos comerciais que viabilizem parcerias para o estímulo de certa pro-dução local. O interesse dos grandes conglomerados globais na produção local aponta para as interseções entre o global e o local.

No entanto, a ação local existe não como afirmação da identidade local, mas apenas como estratégia de consolidação do global no local. Dessa forma, o local passa a ser “o estado nacional da economia internacional”, na expressão de Milton Santos. Ou

# Título em português Distribuidora Data estréia Renda total Público total Cópias Salas1 AMANHECER - PARTE 1 * PARIS 18/11/2011 64.094.300,00 6.889.882 1.104 1.1042 RIO FOX 08/04/2011 68.834.186,00 6.370.218 643 1.0243 HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE - PARTE 2 WARNER 15/07/2011 57.015.254,00 5.568.692 586 9154 HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE - PARTE 1 WARNER 19/11/2010 37.230.204,00 4.360.718 724 8615 CARROS 2 DISNEY 24/06/2011 33.654.905,00 3.408.802 388 7476 GATO DE BOTAS * PARAMOUNT 09/12/2011 35.933.429,00 3.352.428 393 7387 PIRATAS DO CARIBE - NAVEGANDO EM ÁGUAS MISTERIOSAS DISNEY 20/05/2011 49.104.282,00 4.445.733 433 7348 KUNG FU PANDA 2 PARAMOUNT 10/06/2011 31.176.508,00 3.038.160 362 7149 MISSÃO IMPOSSÍVEL 4 * PARAMOUNT 21/12/2011 10.611.732,00 1.138.998 521 59810 TRANSFORMERS 3 PARAMOUNT 01/07/2011 35.702.341,00 3.139.189 319 59011 OS SMURFS SONY 05/08/2011 52.086.283,00 5.076.597 319 58512 THOR PARAMOUNT 29/04/2011 28.758.410,00 2.576.812 278 56713 AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: A VIAGEM DO PEREGRINO... FOX 10/12/2010 25.484.163,00 2.736.926 353 55614 PLANETA DOS MACACOS: A ORIGEM FOX 26/08/2011 24.170.625,00 2.540.245 521 53815 CAPITÃO AMÉRICA: O PRIMEIRO VINGADOR PARAMOUNT 29/07/2011 33.054.045,00 2.837.801 224 53516 X-MEN: PRIMEIRA CLASSE FOX 03/06/2011 24.259.032,00 2.693.860 503 53417 VELOZES E FURIOSOS 5 UNIVERSAL 06/05/2011 33.341.446,00 3.620.205 517 517

Fonte: Database FilmeB 2011. *: Dados Preliminares

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seja, a ação local passa a ser governada por uma lógica externa à sua constituição, uma lógica integrada à economia transnacional, subordinada à atuação dos grandes oligo-pólios; e não num sentido de resistência, como uma força contra-hegemônica, a fim de preservar as identidades locais e a pluralidade de expressões, e modos de pensar.

Nesse sentido, os Estados Nacionais possuem uma participação importante no processo. De um lado, podem contribuir para impedir ou refrear o ímpeto da velocida-de de entrada do capital estrangeiro nos Estados, através de políticas que protejam os mercados nacionais. É o caso da França, que possui uma política agressiva de estímulo à indústria cinematográfica nacional, com uma legislação que garante a presença de con-teúdo francês e europeu não só no mercado de salas de exibição, mas também nos de-mais segmentos de mercado, em especial as televisões. De outro, podem contribuir para uma aceleração do processo de internacionalização da economia, estimulando a entrada do capital internacional e ação das empresas transnacionais, seja por meio de incentivos fiscais, seja por meio da desregulamentação, abrindo barreiras comerciais, reduzindo taxas alfandegárias, revogando leis que impõem limites sobre a origem do capital.

Se a política dos Estados Nacionais pode atenuar a invasão da produção cine-matográfica global, por outro lado as empresas transnacionais podem enfrentar outro tipo de resistência na conquista dos mercados locais: as oligarquias locais, que histori-camente dominam esses mercados, possuindo raízes profundas no imaginário local ou mesmo no poder político local. A ação das empresas transnacionais dependerá decerto de uma relação de força, representada pelo grau de poder arraigado pelas oligarquias locais na sociedade e nos núcleos de poder e de representação política. Nesse caso, em especial em relação aos tradicionais grupos locais de mídia, a tendência das empresas transnacionais é a realização de alianças com os grupos locais. Aparentemente antagô-nicas, as forças motrizes do global e do local se aliam em torno de seu único interesse comum: o domínio do poder e o interesse desmedido pelo lucro.

No caso brasileiro, a partir de meados dos anos noventa, a crescente presença das “Big Six” na produção e distribuição de conteúdos cinematográficos brasileiros está espelhada tanto no apoio estatal quanto na aliança com o maior grupo de mídia local. O apoio do Estado ocorre por meio de um incentivo fiscal concedido às majors: o Art. 3º da Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/93). Por meio desse incentivo, as distribuidoras estrangeiras possuem um abatimento de 70% no imposto de renda referente ao crédito ou à remessa de lucros para o exterior, obtidos em decorrência da exploração de obras audiovisuais no país. Dessa forma, as majors se aliam a empresas produtoras de capital nacional na realização de obras cinematográficas brasileiras que serão distribuídas por essas empresas. Ainda, o mecanismo prevê que o valor investido nesses projetos – de

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78livre escolha do investidor, dado que o valor investido, a execução do projeto e o or-çamento sejam acompanhados pela ANCINE, órgão do Estado brasileiro – garanta à empresa investidora uma participação como coprodutora da obra, detendo parte dos direitos patrimoniais que inicialmente seriam de propriedade da empresa produtora nacional. Naturalmente, as majors escolherão os projetos que melhor se encaixam na sua estratégia de comercialização desses produtos midiáticos, com maior expectativa de geração de lucros, e que por isso muito se assemelham – ainda que evidentemen-te em menor escala – aos próprios filmes produzidos por essas empresas que, como vimos, dominam o mercado nacional. Dessa forma, o Estado estimula a produção de filmes que meramente reproduzem a lógica global em escala nacional, aprofundando as relações de dependência do produto local às estruturas hegemônicas, seja cultural-mente, seja economicamente.

Os principais sucessos de bilheteria do cinema brasileiro a partir dos anos no-venta foram realizados com a utilização desse mecanismo de incentivo fiscal. A Figura 4 mostra que dos 20 filmes brasileiros com maior número de espectadores no mercado de salas de exibição entre 1995 e 2010, 19 se beneficiaram desse mecanismo. A única exce-ção é o atípico lançamento de Tropa de Elite 2, um caso singular de distribuição própria.

Figura 4 – Filmes Brasileiros de Maior Bilheteria e o Art. 3º da Lei do Audiovisual – 1995-2010

Por outro lado, as majors se beneficiaram de uma aliança com o principal grupo de mídia local: a TV Globo. Em 1998, a TV Globo montou um departamento especia-

Fonte: Elaboração Própria do Autor a partir de dados do FilmeB e ANCINE

#Título Distrib. Ano Maior nº de

salas Renda total Público total ART. 3º

1 TROPA DE ELITE 2 ZAZEN/RIOF 2010 703 103.812.200,00 11.204.815 NÃO2 SE EU FOSSE VOCÊ 2 FOX 2009 309 50.543.885,00 6.137.345 SIM3 DOIS FILHOS DE FRANCISCO SONY 2005 329 36.728.278,00 5.319.677 SIM4 CARANDIRU SONY 2003 298 29.623.481,00 4.693.853 SIM5 NOSSO LAR FOX 2010 443 36.126.000,00 4.060.000 SIM6 SE EU FOSSE VOCÊ FOX 2006 197 28.916.137,00 3.644.956 SIM7 CHICO XAVIER DTF/SONY 2010 388 30.300.000,00 3.414.900 SIM8 CIDADE DE DEUS LUMIÈRE 2002 176 19.066.087,00 3.370.871 SIM9 LISBELA E O PRISIONEIRO FOX 2003 245 19.915.933,00 3.174.643 SIM10 CAZUZA: O TEMPO NÃO PÁRA SONY 2004 292 21.230.606,00 3.082.522 SIM11 OLGA LUMIÈRE 2004 339 20.375.397,00 3.078.030 SIM12 OS NORMAIS LUMIÈRE 2003 249 19.874.866,00 2.996.467 SIM13 XUXA E OS DUENDES WARNER 2001 311 11.691.200,00 2.657.091 SIM14 TROPA DE ELITE UNIVERSAL 2007 321 20.422.567,00 2.421.295 SIM15 XUXA POPSTAR WARNER 2000 304 9.625.191,00 2.394.326 SIM16 A MULHER INVISÍVEL WARNER 2009 221 20.498.576,00 2.353.136 SIM17 MARIA: A MÃE DO FILHO... SONY 2003 303 12.842.085,00 2.332.873 SIM18 XUXA E OS DUENDES 2 WARNER 2002 303 11.485.979,00 2.301.152 SIM19 SEXO, AMOR E TRAIÇÃO FOX 2004 157 15.775.132,00 2.219.423 SIM20 XUXA ABRACADABRA WARNER 2003 307 11.677.129,00 2.214.481 SIM

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lizado na produção de obras cinematográficas: a Globo Filmes (BUTCHER, 2006). A partir de 2000, a Globo iniciou sua parceria estratégica com as majors. Para as empresas transnacionais, a Globo se tornava uma aliada estratégica, pois oferecia apoio de mídia, cobrindo todo o território nacional, sendo importante instrumento de financiamento das crescentes despesas de publicidade com a divulgação dos filmes brasileiros.

Além dos intervalos comerciais regulares, a Globo, dependendo de sua parti-cipação financeira no filme, também oferece o cobiçado cross media: ações de publici-dade inseridas no próprio conteúdo da programação, e não nos intervalos comerciais, tendo um retorno comercial bastante mais incisivo. Dessa forma, um ator do filme era convidado a participar de uma das atrações televisivas da emissora, ou mesmo o filme chegava a ser recomendado por um dos personagens de uma das telenovelas da emis-sora, cuja audiência supera os 60% de televisores ligados no horário. Além das ações de mídia, a participação da Globo Filmes também ocorre através da cessão de seu “star system”, já que seus principais atores possuem contratos de exclusividade, além de uma eventual consultoria criativa, ou mesmo a cessão de seus estúdios para as filmagens. Devido à vasta experiência na produção de dramaturgia, a emissora pode acrescentar o “tempero brasileiro”, pois conhece melhor as especificidades do gosto local do que as majors. Essas produções, no entanto, tornaram-se meras extensões da programação da emissora, inclusive com a adaptação de minisséries (como O Auto da Compadecida) ou mesmo de programas semanais (A Grande Família, Casseta e Planeta, Os Normais).

Dessa forma, o mercado cinematográfico brasileiro é dominado pela presença dos grandes conglomerados transnacionais, representados pelas “Big Six”. Essa domi-nação ocorre não apenas pela invasão maciça dos produtos de “Hollyworld” – filmes em língua inglesa de grandes orçamentos e uma mídia em escala mundial – exibidos nos cinemas brasileiros com mais de 500 cópias, mas também pela participação ativa na coprodução de filmes brasileiros de grande potencial de bilheteria. Esses filmes, por sua vez, são produzidos seja por um apoio indireto do Estado, através de um mecanis-mo de renúncia fiscal que reduz a taxação sobre a remessa de lucros das distribuidoras estrangeiras (o Art. 3º da Lei do Audiovisual); seja por uma aliança com as oligarquias locais, através de acordos comerciais com a TV Globo, através da Globo Filmes, promo-vendo apoio de mídia, cedendo seu “star system” e acrescentando um “tempero nacio-nal” às produções.

Desse modo, a produção local passa a estar a serviço da produção global, re-forçando a lógica de dominação, e não como uma força de resistência à esmagadora presença de conteúdos veiculados em escala global. O exemplo da indústria cinemato-gráfica brasileira comprova as estratégias de aliança entre o global e o local, para a con-solidação de um modelo de produção e circulação de mercadorias típico do capitalismo

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80contemporâneo, tipicamente oligopolista. O caso brasileiro é curioso, pois conta com um terceiro agente, que estimula a aproximação entre os agentes privados: o Estado, através de um incentivo fiscal, concedido pelo Art. 3º da Lei do Audiovisual.

Referências Bibliográficas

BUTCHER, Pedro. A dona da História: origens da Globo Filmes e seu impacto no audiovisual brasileiro. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Comunicação Social – ECO/UFRJ, 2006.

COMPAINE, Benjamin M., GOMERY, Douglas. Who owns the media?: competition and concentration in the mass media industry. Londres: Routledge, 2000.

FILMEB. Boletins diversos. Disponíveis em: WWW.filmeb.com.br

FOCUS. FOCUS 2009: Tendances du marché mondial du film. Strassburg: Observatoire européen de l’audiovisuel, 2009. Disponível em: http://www.obs.coe.int/online_publication/reports/focus2009.pdf

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 1995.

KUNZ, William M. Culture conglomerates: consolidation in the motion picture and television industries. Nova Iorque: Rowman & Littlefield, 2007

SANTOS, Milton. A Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2002.

WATERMAN, David. Hollywood’s road to riches. Harvard University Press, 2005.

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rEviSta gEminiS ano 3 - n. 2 | P. 83 - 96

tEla global E ocEano azul: cinEma 3d, o caSo braSil

andrE gattiDoutorado pelo Instituto de Artes (IA), no departamento de Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor titular de História do Cinema Brasileiro da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).E-mail: [email protected]

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rESumo

A exibição de filmes de longa-metragem em 3D é a nova onda da indústria cinematográfica global. O que está acontecendo no Brasil? Quais problemas da implantação do 3D no país? Tudo ainda é muito recente, mas os resultados desta onda já podem ser percebidos.

Palavras-Chave: Brasil, 3D, globalização, digitalização , exibição digital.

abStract

The exhibition of feature films 3D its the new cinematic wave at the global industry. What s happening in Brazil? What are the new problems? Everything is new , but we can feel the results of this new cine-matic wave.

Keywords: Brazil, 3D, globalization,digitalization, digital screening.

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Uma vez que parece irreversível a proliferação dos equipamentos mul-tiplex em suas diferentes versões, resta a possibilidade de adotar me-didas no sentido de limitar seus riscos e efeitos negativos . Nessa pers-pectiva , estudos de caso mostram que existem soluções: a criação de um multiplex pode ser posta a serviço de uma política de organização espacial da periferia urbana; uma municipalidade pode incentivar a instalação de um tipo de multiplex que respeite a arquitetura e o urba-nismo da cidade.(CRETON: 2004)

Nos últimos 15 anos, o mercado theatrical brasileiro vem passando por profun-das e agudas transformações, e a principal característica deste período é o da internacionalização da atividade de exibição comercial cinematográfica1. Por

outro lado, no campo acadêmico brasileiro muito pouco tem sido escrito e publicado sobre o assunto. Isto na medida em que se avoluma o próprio negócio no solo nacional. As mudanças inseridas pela adoção do modelo multiplex de exibição e a sua , posterior , digitalização apresentam em conjunto um volume de problemas e questões que se-quer estavam no horizonte há algum tempo atrás. Como estamos encarando a realidade posta pela exploração destes filmes globais no mercado nacional?

O cinema é sabidamente um aparato da modernidade, criado no auge do capi-tal monopolista do final do século XIX. Por isso mesmo, o seu produto, o filme, abarca algumas características de ordem estética, industrial e comercial que o tornaram uma mercadoria bastante complexa e contraditória. A nova invenção nasceu na órbita de uma economia já mundializada, momento em que a humanidade vivia um grande pro-cesso de transformação, somente comparável aos dias de hoje. A tecnologia do cine-ma e os filmes se espalharam de uma maneira, até então, nunca vista na história da Re-volução Industrial e de suas invenções. Mercados foram construídos além-fronteira dos países onde originalmente se desenvolveram os primeiros aparatos cinematográficos e filmes. Equipamentos das mais variadas patentes e nacionalidades logo se desenvolve-

1 Este mercado sempre foi ocupado por empresas brasileiras, mas, desde 1997, os grandes grupos internacionais da exibição passaram a se interessar de maneira direta pela atividade aqui. A primeira grande empresa a se instalar foi a Cinemark, líder do mercado, depois vieram outras como a UCI, MovieBox, Cinépolis etc.

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86ram, num movimento de uma celeridade única, o cinema rapidamente se tornou uma grande e próspera indústria. Isto aconteceu, principalmente, em alguns países centrais do capitalismo (França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos etc.) e nos países perifé-ricos, também, ainda que com características bastante diferentes. Os países centrais do capitalismo que produziam, praticamente, tudo, o hardware e o software cinematográ-fico, enquanto que os países periféricos se tornaram dutos de escoamento e financia-mento da produção dos grandes estúdios europeus e norte-americanos. Esta foi uma característica que se tornou um importante pilar de financiamento e lucro das poucas empresas gigantes que passaram a operar e controlar o mercado de imagens em mo-vimento em escala mundial. O curioso é que, desde então, tem existido regularmente uma cinematografia central e hegemônica que toma as rédeas do desenvolvimento da atividade em escala global. Porém, quando surgiu o cinema, os seus empresários en-contraram um verdadeiro oceano azul (KIM: 2005) para desenvolver as suas atividades. O desenvolvimento da indústria dos sonhos aconteceu de maneira bastante agressiva, sob a lógica dos grandes monopólios e trustes. Isto tanto é verdade que rapidamente o cinema se tornou um importante instrumento para o desenvolvimento econômico do capitalismo nos últimos 117 anos.

Contudo, nos últimos quinze anos, o mercado de exibição cinematográfica bra-sileiro encontra-se em fase de ampla transformação, a qual está inserida em um pro-cesso de reorganização do mercado que ocorreu de maneira avassaladora em todos os continentes: um dos sintomas da globalização. A mencionada reorganização do mer-cado foi marcada pela transformação do modelo de exploração do negócio através do sistema multiplex de exibição de filmes. Esta transformação se deu no início da década de 1980, em países como o Canadá e os EUA, e, depois, se espalhou e continua se espa-lhando sistematicamente em todos os cantos do planeta, literalmente. A indústria do audiovisual não quer desperdiçar nenhum possível consumidor.

Notas para uma breve história do 3D

Os EUA viveram um era dourada do sistema 3D na década de 1950, pois foi quando eles anexaram a cor e o som estereofônico ao formato, criando assim um espe-táculo cinematográfica único. Até então, os filmes 3D, normalmente, só podiam durar uma hora, pois eles eram exibidos com dois projetores e filmes trabalhando de maneira síncrona. Naquele momento, poucos eram os cinemas que poderiam possuir quatro projetores 35 mm nas cabines, para que pudessem exibir um filme de maior metragem. Daí,o fato de o 3D ter se tornado mais uma atração de parques de diversão do que um espetáculo cinematográfico.

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A questão tecnológica de exibição só viria a mudar com o lançamento do filme Bwana terra do demônio (Arch Oboler,1952). Este foi o primeiro filme longa-metragem colorido exibido sem interrupção, pois agora se trabalhava com apenas um projetor por vez, a questão da estereoscopia se resolvia na própria película. Num primeiro mo-mento, a exibição de filmes de longa-metragem veio a popularizar o cinema 3D. Este que depois iria entrar em descenso, para, recentemente, reviver o sucesso, desta vez, de maneira muito mais pujante.

Aqui no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1953, o Cine República passava a exibir filmes produzidos em 3.a Dimensão, como era chamado na época .Destaca-se aqui o pioneirismo do exibidor Paulo Sá Pinto2 que não deixaria passar desapercebi-do tal novo oceano azul que representava o 3D. O exibidor paulistano equipou o seu Cine República para receber a nova tecnologia, no caso foram utilizados projetores da marca Simplex, que inclusive tinham destaque no material promocional, como pode ser visto abaixo.

2 Paulo Sá Pinto foi um dos principais exibidores em atividade na cidade de São Paulo durante mais de quatro décadas. Ele se caracterizou por ser um inovador do mercado, agregando, sempre que possível, as novas tecnolo-gias de exibição que tiveram palco no século XX, tais como o: Vistavision, Cinemascope , 70 mm, Dolby etc. Além disso, os cinemas de shopping são tributários da uma novidade sua que foi a instalação da sala de cinema fora da calçada, no ambiente então considerado chic, que eram as galerias do centro da capital paulista.

Figura 1 - Anúncio do Jornal Folha da Manhã

Fonte: http://salasdecinemadesp2.blogspot.com.br/

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88Pelo material de divulgação, constata-se que o filme exibido na abertura da novidade cinematográfica foi Veio do espaço (Jack Arnold, 1953), trata-se de obra adap-tada de texto do escritor de ficção científica Ray Bradbury . A história narra a chegada de seres do espaço que vão se infiltrando em cidade isolada dos EUA, plot utilizado ad nauseum deste então em filmes do gênero. O programa se completava com a exibição de um curta com o Nat King Cole Trio. O filme era originalmente distribuído pela ma-jor United Artists, tinha censura livre e as sessões se iniciavam às 10 horas da manhã. O que demonstra o interesse que o 3D teve junto ao público de cinema da época31. O República era gigante para os padrões de uma sala dos dias de hoje, pois continha 2.226 assentos e , depois, ainda viria a comportar a maior tela do mundo, em 1955. Além de também, neste meio tempo, ter estreado o sistema Cinemascope, em 1954. Tratava-se de uma verdadeira sala de vanguarda tecnológica , fato não muito comum entre os exibidores brasileiros que, via de regra, reinvestiam seus lucros em atividades extra-cinematográficas.

A transição tecnológica fora do lugar e outras questões

Atualmente, coloca-se como questão central do mercado cinematográfico a di-gitalização do circuito de exibição comercial. Este foi um assunto relativamente polê-mico nos últimos vinte anos. Isto porque as tecnologias digitais começaram a se tornar mais rotineiras, primeiro, nas várias fases da produção: captação, finalização, pós -pro-dução etc. Estas característica seriam um fator que dava um certo ar democratizante ao digital, pois, o mesmo, tanto poderia servir aos desígnios de um cinema autoral ou massivo (FELINTO: 2006). Isto era totalmente novo! Todavia, na globalizada era do acesso (RIFIKIN: 2012), questões de transição tecnológica não são de tão simples solu-ção como podem parecer num olhar mais apressado. Neste caso, a complexidade iria para além dos problemas derivados deste ou daquele suporte tecnológico. Isto porque hoje o filme é uma mercadoria que envolve mais que apenas conteúdo, ele agrega uma série de propriedades intelectuais (PI). Um fator que alimentava a insegurança do setor no que diz respeito à digitalização eram as questões ligadas à pirataria. Esta foi uma es-pécie de espantalho que inibiu que a digitalização do cinema percorresse todas as suas fases: produção , distribuição e exibição. Porém, recentemente, a MPAA aceitou tal fato e padronizou a digitalização da distribuição e exibição dos seus filmes através do sis-

3 Um dado que a indústria já sabe de longa data reside no fato de que existe uma grande aderência do público das salas de cinema, de um modo geral, no que diz respeito às novas conquistas tecnológicas que por ventura venham a ser disponibilizadas pelo mercado. Assim foi com o nascimento do próprio cinema, o advento do som, da cor etc.

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tema DCI. No Brasil, a digitalização das salas aconteceu de maneira avassaladora. Hoje todos os multiplexes possuem salas digitais 2D e/ou 3D. Os complexos de cinemas das empresas Cinemark e Cinépolis, por exemplo, todos têm salas 3D. Hollywood preparou um novo bote ao disponibilizar filmes digitais no formato 3D, criando dessa maneira um novo oceano azul no, aparentemente, saturado mercado de exibição cinematográfi-ca. Aliás, esta é uma velha e conhecida prática de Hollywood, agregar mais tecnologia e valor aos seus filmes. Por outro lado, existe uma clara tendência a fazer com que isto venha a repercutir na exibição, de alguma maneira, através de várias técnicas mercado-lógicas. Isto para que haja o consequente aumento no valor médio do ingresso cobrado por parte das salas que possam aderir aos novos desígnios mercadológicos e tecnológi-cos disponibilizados.

O mercado brasileiro do 3D (2007 – 2010)

O circuito de salas de exibição cinematográfica 3D se expandiu de uma manei-ra furiosa e adquiriu contornos bem diversificados em curto período histórico. Mas, o que não pode ser esquecido é que há um claro direcionamento para uma implemen-tação horizontal do regime tecnológico do 3D. Isto pode ser visto pelo fato de que a indústria do audiovisual tem investido de maneira decisiva em aparatos que exibam imagens em 3D (smartevês, televisores, celulares, computadores pessoais, tablets, ga-mes etc.). Portanto, o cinema não poderia estar fora desta nova onda tecnológica. Além do fato de que os filmes que passarem nas telonas vão retroalimentar todos os gadgets disponíveis. Isto tudo turbinando pela otimização via cross mídia e pelas possibilidades da transnarrativização que hoje delineiam os caminhos que esta indústria global deve tomar. A ideia é que não somente a tela seja global como também o seu conteúdo e suas PI’s.

A evolução do número das salas 3D no Brasil se deu de uma maneira arrebata-dora. A primeira sala 3D foi instalada pela empresa Cinemark no final de 2006. Este era um período em que o mercado ainda enxergava o 3D com relativa desconfiança, afinal, não era a primeira vez que a indústria testava o formato. Além disto, havia os proble-mas de custos de adequação tecnológica das salas e a pobreza no que diz respeito à oferta de títulos. Pode-se dizer que, num primeiro momento, ou seja, até 2008, o ritmo foi razoavelmente lento.

Através do Anexo I pode-se ver a clara evolução do mercado do 3D no período de sua organização. Facilmente é perceptível a alta rentabilidade média dos filmes, o que otimizou a opção pelo 3D. Em 2012, segundos dados da Filme B, 441 salas já ope-

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90ravam neste formato no Brasil. O que representava cerca de 20% do circuito. Por outro lado, as principais distribuidoras passaram paulatinamente a trabalhar com filmes 3D no período, são elas: Disney, Warner, Universal ,Sony, Paris, Playarte, Imagem, Imax, Fox e Paramout. Elas começaram a disponibilizar os filmes em 3D com grande regula-ridade, pois os blockbusters têm sido lançados nos sistemas analógico (35 mm), 2D e 3D, isto de maneira simultânea. Abaixo uma síntese do desempenho da cinematografia 3D no mercado brasileiro:

Tabela 1 - Evolução e desempenho do mercado dos filmes 3D (2007 - 2010)

Ano Filme Distribuidora(*) Público Renda

2007 02 - 108.896 1.297.607

2008 05 02 505.719 6.578.972

2009` 12 07 9.674.406 128.460.589

2010 22 10 14.345.927 195.344.128

Total: 41 10 24.634.948 331.681.296

Fonte: Data Base Filme B Brasil, 2011, ano base 2010. Elaboração: Autor(*) Por CNPJ

Como se pode notar, o 3D vai ocupando significativo espaço na receita da bilheteria no Brasil. Esta situação também encontra reflexos na carreira de determina-dos filmes lançados no mercado, pois, agora, eles têm novos mercados onde não há, praticamente, concorrência. Por sua vez, o 3D representou menos de 10% do total de lançamentos nas salas locais. O que chama a atenção ainda é o fato de que o 3D tem ingressos bem mais caros que as já tradicionais salas 2D. Os exibidores logo percebe-ram o potencial destes filmes, ainda que pesem os custos de adequação tecnológica e de manutenção, mas, mesmo assim, não perderam a oportunidade, tanto que em curto es-paço de tempo o Brasil se tornou um dos principais países exibidores de filmes em 3D. Este sistema de exibição têm sido uma das alavancas do mercado brasileiro nos últimos anos, pois ao lado dos mercados como os da China e da Rússia, é o que mais cresce no mundo em termos percentuais. No Brasil, as receitas das salas de cinema entre 2008 e 2011 praticamente dobraram. Olhando detalhadamente a tabela acima, fica fácil perce-ber que em 2010, apesar de o circuito ser menor que o atual, os números já mostravam o poder irresistível destes filmes sobre o público freqüentador das salas. Neste ano, a arrecadação das salas 3D representou quase 20% da receita total. Isto com apenas 20 fil-

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mes, num universo de lançamentos que girou em torno de 350 filmes/ano. E, ainda, no caso brasileiro, contando com a presença do fenômeno Tropa de Elite 2 (José Padilha).

Para o exibidor, o 3D gerou novas oportunidades de negócios, tanto que algu-mas salas passaram a ofertar outros tipos de conteúdo para o seu público freqüentador, tais como shows, óperas, jogos de futebol, debates, cursos de treinamento, campeonatos de videogame, machinima, living cinema, etc. Mas, via de regra, são grandes eventos internacionais que pautam este circuito e cujos ingressos não estão computados nas nossas tabelas. Por exemplo, ainda em 2010, jogos da Copa do Mundo foram exibidos em salas 3D no Brasil e os ingressos custavam em torno de R$ 60. O que demonstra o poder de fogo que estas salas adquiriram em tão pouco tempo.

O resumo deste cenário é o fato de que o mercado brasileiro de exibição ci-nematográfica se encontra totalmente pautado pela indústria internacional do audio-visual e do entretenimento. A partir de 2009, com o lançamento, do filme Avatar, de James Cameron, o formato 3D realmente tomou um grande impulso no mercado, tanto nacional quanto internacional.

Apesar de que as fontes consultadas não tenham disponibilizado os dados de 2012, pela tabela abaixo é possível constatar a evolução das salas 3D. Esta situação ca-racteriza o Brasil como um dos principais países que passaram a adotar o 3D de ma-neira sistêmica.

Tabela 2 - Evolução Salas 3D Brasil

Ano Salas2006 012007 s/d2008 282009 109 2010 267 2011 411

Fonte: Boletim Filme B. Elaboração: Autor

Observando-se de maneira mais detalhada o ano de 2009, fica perceptível que este foi o momento do grande impulso das salas 3D, pois, em março deste ano, o núme-ro de salas saltou de 34 para 109 unidades. Em 2010, número de telas 3D aumentou em mais de 150%, ainda que apenas dos 135 complexos em atividade, somente cinco deles contavam com duas salas 3D. A evolução do número de salas pode ser visto pela tabela abaixo, agora com números que expressam o que aconteceu estado por estado:

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92Tabela 3 - Salas 3D por Estado (2011)

Estado SalasSão Paulo 160Rio de Janeiro 61Paraná 29Minas Gerais 24Rio Grande do Sul 20Santa Catarina 17DF 13Ceará 11Bahia 10Pernambuco 08Amazonas 07Espirito Santo 06Goiás 06Pará 06Mato Grosso 04Alagoas 04Paraíba 04Sergipe 03Maranhão 03Mato Grosso do Sul 03Rio Grande do Norte 03Rondônia 02Roraima 02Tocantins 02Piauí 01Total 411

Fonte: Boletim Filme B n.o 717, 15/08/2011, acessado em 14/10/2012.Elaboração: Autor

Percebe-se que o movimento de ocupação das salas que exibem filmes 3D se

deu de maneira bastante concentrada nesta sua primeira etapa. As zonas Sul e Sudes-te do Brasil sozinhas concentram 75% das salas capazes de exibir obras do gênero. Apenas São Paulo detinha quase 40% do total dos empreendimentos em atividade. Mas, por outro lado, o 3D se espalhou de norte a sul e de leste a oeste, isto pratica-mente em apenas três anos4.

4 A Cinemark foi outro circuito estrangeiro que aqui investiu pesadamente no negócio, pois, em 2011, já contava com mais de 174 salas 3D de um total de 411.

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Algumas práticas do mercado

Um problema é que alguns grandes distribuidores pedem a exclusividade da sala, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Argentina e na Europa, onde uma sala exibe mais de um filme no mesmo dia. Identificou-se ainda que existe um pa-radoxo que é a pronta retirada dos filmes em cartaz, mesmo quando o produto está rendendo. Isto ocorre justamente porque muitos distribuidores pedem exclusividade. Mas, esta situação tenderá a mudar na medida em que o mercado perceber as vanta-gens deste tipo de programação, pois, muito recentemente, descobriu-se que o filme 3D tem uma vida útil mais longa do que o filme 2D, o 3D tem mais potencial para ficar em cartaz .O 3D está formando um público fiel que prefere esperar para ver o filme em lançamento no formato. Atualmente, o faturamento médio de uma sala 3D pode ser até três vezes maior do que o de uma sala 2D no mesmo complexo.

Hoje, muitas destas salas estão inseridas em outros conceitos de exibição, tais como as salas prime, por exemplo, salas de luxo, com serviços de alimentação e de con-forto diferenciados, onde os ingressos custam em torno de US$30. E, mais recentemen-te, houve o caso da inauguração em São Paulo de duas salas 4D que utilizam exibição 3D e outros aparatos tecnológicos que possam mobilizar o sentidos dos espectadores. Apenas, estas duas salas quando abriram suas portas fizeram com que o filme Os vingadores (Joss Whedon, 2012) ficasse entre as 10 maiores bilheterias daquele fim de semana quando voltou em cartaz.

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Anexo ITabela. Filmes 3D lançados no Brasil (2007 - 2010)

Ano/Filme Distribuidora Nº Salas Público Renda(R$)

2007

A lenda de Beowulf Warner 5 65.828 784.927

A família do futuro Disney 2 43.068 512.680

2008

Viagem ao cen-tro da Terra PlayArte 9 327.046 3.653.028

Os Mosconautas.... PlayArte 24 105.055 1.033.163

Hannah Montana Disney 5 82.732 840.943

U2 ** PlayArte 28 57.929 748.096

Scar, a mar-ca do mal PlayArte 24 32.957 303.742

2009

Avatar Fox 95 4.244.113 61.298.069

A era do gelo 3 Fox 67 2.191.393 28.548.247

Up - altas aventuras Disney 75 687.812 9.414.592

Tá chovendo hambúrguer Sony 73 624.417 7.830.800

Monstros x Alienígenas Paris 46 476.758 6.459.000

Os fantasmas de … Disney 77 312.127 3.993.185

Força G Disney 68 272.208 3.398.669

Bolt – supercão Disney 25 255.372 2.857.558

Coraline Universal 30 125.379 1.538.000

Dia dos namorados... PlayArte 34 118.136 1.472.177

Jonas Brothers Disney 51 106.246 1.338.147

Estação Espacial Imax 2 22.595 411.155

2010

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96Ano/Filme Distribuidora Nº Salas Público Renda(R$)

Shreck para sempre Paramount 90 2.203.583 29.874.737

Alice no país das.... Disney 129 1.933.223 27.269.891

Toy Story 3 Disney 142 1.481.677 20.093.141

Fúria de Titãs Warner 131 1.144.765 16.920.966

Como treinar seu dragão Paris 122 986.606 13.548.935

Resident evil 4 Sony 138 836.086 11.519.549

O último mes-tre do.... Paris 123 722.422 9.892.458

Meu malva-do favorito Universal 140 708.518 9.634.424

A lenda dos guardiões Warner 28 699.191 9.414.592

As crônicas de Nárnia Fox 186 686.966 8.624.313

Megamente Paris 195 655.388 8.541.012

Tron...o legado* Disney ` 200 507.040 6.621.547

Jogos mortais Imagem 157 419.898 5.877.944

Como cães e gatos2 Warner 157 363.709 4.478.627

Premonição 4 PlayArte 96 304.586 4.195.228

Garfield 3D PlayArte 15 235.008 3.237.602

Toy Story 2 3D** Disney 107 162.635 2.232.918

Piranha 3D Imagem 106 99.562 1.221.147

Toy Sory 1 3D** Disney 101 96.675 1.310.839

Jackass 3D** Paris 94 67.106 921.690

Um mar de aventuras** Imax 2 18.102 245.605

Batalha por T.E.R.R.A** PlayArte 62 13.081 127.778

Fonte: Filme B, Data Base Brasil 2011, ano base 2010, acessado em 20 de setembro de 2012 ( www.filmeb.com.br )Elaboração: AutorObs.: Os filmes estão colocados pelo ano de lançamento, pois muitos destes entram ao final do ano, e, depois, permanecem em cartaz algum tempo , depois do lançamento, como, por exemplo, Avatar que entrou em dezembro de 2009 e obteve excelente carreira em 2010.(** )Exibição exclusiva(*)Em exibição por ocasião da publicação do Data Base Filme B.

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altErnativaS dE comErcialização cinEmatográfica: novaS janElaS E o caSo 3 EfES

maria criStina couto mElo Graduada em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (PPGIS – UFSCar).E-mail: [email protected]

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rESumo

O modelo industrial de produção cinematográfica estrutura-se a partir da divisão da realização de um filme entre os setores de produção, distribuição e exibição, e da oferta gradual e sequencial de conteú-dos nas janelas de exibição. Em contrapartida, o desenvolvimento das novas mídias e da convergência dos meios comunicacionais resultou em um modelo que propõe a exibição de conteúdos em múltiplas janelas e produção por demanda de nichos. O presente artigo propõe a discussão e compreensão do pa-pel das novas janelas de exibição, potencializadas pela convergência dos veículos midiáticos, enquanto alternativas de difusão de conteúdo audiovisual.

Palavras-Chave: Novas janelas; convergência; distribuição cinematográfica; exibição cinematográfica; “3 Efes”.

abStract

The industrial model of the film production is structured from the division of to make a film between the sectors of production, distribution and exhibition, and the offer of the gradual and sequential con-tent in the viewports. In contrast, the development of new media and convergence of media communi-cations resulted in a model that proposes the display of content in multiple windows on production on demand in each niche. This paper presents a discussion and understanding of the role of new display windows, powered by the convergence of media vehicles, while alternative distribution of audiovisual content.

Keywords: Viewports; convergence; film distribution; film exhibition “3 Efes”.

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Introdução

O surgimento do homevideo na década de 80 e o desenvolvimento da grade de programação da televisão aberta possibilitaram a exibição dos filmes em ou-tro veículo de comunicação que não apenas as salas de cinema. Assim, o

consumo de audiovisual passou a ocorrer de forma gradual de acordo com a disponibi-lização em cada veículo ou janela de exibição.

No entanto, os meios tradicionais de circulação de conteúdo convivem hoje com outras formas de veiculação, as mídias digitais. O desenvolvimento da internet, e a cria-ção de novas janelas para a transmissão de conteúdo aliadas a essas mídias confluem para a uma convergência dos suportes, resultando em uma reflexão a respeito de como e para que público esse conteúdo audiovisual é produzido, difundido e comercializado.

Nesse processo, a convergência dos sistemas midiáticos torna-se fundamental, haja vista depender “fortemente da participação dos consumidores” (JENKIS, 2009, p. 29), para quem o conteúdo é produzido. Além disso, representa uma profunda altera-ção nas características da indústria audiovisual e cinematográfica, “uma vez que um mesmo conteúdo pode ser exibido no cinema, na TV, no homevideo, e na internet, em diferentes intervalos temporais, ou mesmo simultaneamente.” (NUDELIMAN e PFEIF-FER, 2010, p.104), relativizando a necessidade de oferta gradual nas janelas de exibição.

Nesse contexto de transformação do modelo tradicional de produção e comer-cialização cinematográfica, foi produzido no ano de 2007 o filme “3 Efes”, de Carlos Gerbase que, utilizando as diferentes plataformas de mídia e o lançamento simultâneo do conteúdo audiovisual nas mesmas, procurou desenvolver uma alternativa de inser-ção do filme no mercado cinematográfico, que tradicionalmente não possuiria espaço para exibição de produções independentes.

O presente artigo pretende discutir esse atual panorama da comercialização cinematográfica, abordando o desenvolvimento das novas janelas e da convergência das plataformas de mídia, potencializadas pela internet, como alternativas para a dis-tribuição e exibição da produção independente. Para tanto, num primeiro momento

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100será apresentada uma breve reflexão a respeito das transformações que estão ocorrendo no modelo tradicional de comercialização cinematográfica. Em seguida, propõe-se um estudo da estratégia de distribuição e exibição do longa-metragem “3 Efes” sob o viés dessas alterações mercadológicas na área da produção cinematográfica.

1.Transformações no modelo industrial tradicional da produção cinematográfica

A partir da década de 90 ocorre um intenso processo de internacionali-zação da economia cinematográfica, e as empresas majors da indústria cinematográfica norte-americana se consolidam não apenas pela comercialização de filmes, mas passam a ser conhecidas como distribuidoras de conteúdo, formando grandes conglomerados de mídia, independente do conteúdo ou formato da produção.

Porém a forma de articulação da cadeia produtiva desses conteúdos é or-ganizada da mesma forma desde o início da sistematização da produção cinematográ-fica, e envolve três agentes que se organizam no mercado de forma cíclica e integrada em torno do mesmo produto audiovisual.

O primeiro agente é a empresa produtora, que é responsável pelo momento da criação e organização das diferentes demandas para a concepção do conteúdo audio-visual ou cinematográfico. Na fase da distribuição ocorre a sistematização dos meios necessários para a divulgação e comercialização do filme nas diferentes janelas de exi-bição, de forma que o distribuidor se caracteriza por ser o intermediador entre o pro-dutor e o exibidor, objetivando o consumo da produção pelo maior número de pessoas possível. O terceiro elemento que atua no processo da cadeia produtiva é a exibição, representada principalmente na indústria tradicional cinematográfica, pela figura do exibidor e pela sala de cinema, e posteriormente pela televisão e homevideo. O setor de exibição é responsável pela última fase da mediação entre o público e o filme, o que possibilitará o retorno do capital investido na produção, através da venda de ingressos.

Como mencionado, pode-se observar a estruturação cíclica de organização da atividade cinematográfica, haja vista o retorno financeiro obtido no setor de exibição proporcionar o pagamento do capital investido na produção e por isso, possibilitar a realização de novas produções que, posteriormente, serão exibidas.

A fim de maximizar a exploração de um filme nas diversas janelas de exibição (salas de cinema, TV e homevideo), criou-se um mecanismo de controle da competiti-vidade entre os veículos de comunicação, no qual os filmes passam a ser ofertados de forma gradual e sequencial para cada veículo ou meio, a partir de intervalos temporais pré-estabelecidos. Assim, a primeira janela de exibição do filme seria a sala de cinema,

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seguida do homevideo, televisão por assinatura (inicialmente por demanda – pay-per--view, e depois transmitida – pay-tv) e por último a televisão aberta. Essa mecânica de comercialização verticalizada do conteúdo fundamenta a ideia de que a sala de cinema seria a vitrine principal dos filmes, determinando o sucesso comercial ou o fracasso das produções cinematográficas.

A partir desse modelo de comercialização, baseado no sistema de produção industrial do cinema, apenas as produções que obtém sucesso comercial nas salas de cinema possuem recursos para exibição em outras janelas. A dominação das telas pelas produções dos grandes estúdios norte-americanos está ligada diretamente aos concei-tos intrínsecos da comercialização nesse modelo. Como todo produto industrial, o valor de comercialização é sobreposto ao valor artístico ou relevância cultural, de forma que muitas produções menores ou independentes não alcançam todos os públicos, por não serem disponibilizadas em todas as janelas.

O alto preço do ingresso nas salas de cinema, a concorrência com o produto norte-americano e as limitações impostas pelas grandes redes de TV aberta, são exemplos de fatores que acabam limitando a circula-ção da produção independente e, consequentemente, prejudicando seu acesso. (NUDELIMAM e PFEIFFER, 2010, p. 105.)

Além disso, a disponibilização gradual dos filmes, principalmente nos casos

das produções independentes, representa um retorno financeiro do capital investido a longo prazo, haja vista o mesmo depender do fim da exploração comercial em todas as janelas (quando a mesma ocorre) para finalizar suas receitas de realização. Para médias e independentes isso representa um atraso na continuidade de produção, seguindo a lógica da indústria tradicional de produção cinematográfica.

No entanto, as mudanças tecnológicas resultaram em uma transformação sig-nificativa dos hábitos de consumo, o que coincidiu com as mudanças ocorridas no ce-nário da comunicação e, portanto, da produção e difusão de conteúdos audiovisuais.

Para Luchetti (2008, p. 67), citado por Nudelimam e Pfeiffer (2010, p. 105), a chegada e popularização da internet permitiu uma oferta maior de conteúdo, resultan-do em consumidores cercados por opções “como downloads, streams (transmissões em tempo real) e gravações digitais – o que significa que a nova audiência de massa é, na realidade, uma série de nichos”. Nesse sentido, a teoria da cauda longa, desenvolvida por Anderson (2009), se relaciona com um novo paradigma de produção, difusão e comercialização de produtos audiovisuais, que permite que as produções médias e in-dependentes também possuam potencial de comercialização e, portanto, aproximação com o público.

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102Segundo Anderson, antes do desenvolvimento das tecnologias digitais e da in-ternet 2.0, os custos de armazenagem e distribuição de produtos eram altos, haja vista dependerem de espaços físicos para confecção, estocagem e transporte, fazendo com que somente determinados produtos com alto potencial de comercialização pudessem ser ofertados, massificando o perfil de produção. O barateamento dos meios de produ-ção e armazenamento, e a utilização do meio digital como alternativa de distribuição, possibilitaram uma maior variedade de produtos para o usuário, resultando na opção pela seleção segmentada de conteúdo. O mercado passou a ofertar um catálogo maior e mais diversificado, que inclui tanto conteúdos de expressiva demanda, quanto os de demanda específica, os chamados produtos de nicho.

Nesse cenário de modificação dos panoramas da produção audiovisual, além da oferta segmentada de produções e da possibilidade de utilização da internet como alternativa de distribuição, a convergência das mídias também possui papel funda-mental. O desenvolvimento do mercado de nicho atua em paralelo com a circulação de conteúdos por intermédio de diferentes plataformas, haja vista depender da participa-ção ativa dos consumidores: “a convergência representa uma transformação cultural, à medida que os consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos” (JENKINS, 2009, p. 29.)

Assim, um mesmo conteúdo pode ser ofertado em diferentes plataformas de mídia, de forma completa ou disperso (conteúdos complementares, extras, etc.), em diferentes intervalos temporais ou mesmo simultaneamente, sendo que a escolha do modo como o produto será consumido parte do espectador, e não mais é condicionado pelos intervalos pré-estabelecidos de exibição gradual em janelas. A mudança está na possibilidade de circular as produções em espaços diferentes, em múltiplas janelas, au-mentando a variedade dos filmes exibidos e não restringindo seu sucesso comercial às salas de exibição.

Da mesma forma, a divisão da produção cinematográfica a partir dos setores de produção, distribuição e exibição, é relativizada, haja vista o fato de o mesmo agente poder realizar as diferentes funções, até mesmo simultaneamente (no caso do live cine-ma, por exemplo).

Além disso, a possibilidade da distribuição e exibição dos filmes de forma ho-rizontal, a partir das múltiplas janelas, pode significar o retorno financeiro do capital investido nas produções a curto e médio prazos, potencializando a dinâmica da pro-dução e comercialização audiovisuais. No Brasil, assim como em outros mercados cine-matográficos, o mercado de filmes desenvolveu-se a partir do modelo industrial aqui descrito e esse mercado foi dominado pela supremacia de exibição dos filmes norte-

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-americanos. A maioria das produções realizadas no país dependeu, para ser exibida, da legislação em vigor definida pelo Estado, o produtor nacional em geral não era au-tossuficiente economicamente em um mercado ocupado pelo produto estrangeiro.

A partir das mudanças no modelo industrial de produção cinematográfica ad-vindas do surgimento das novas tecnologias e da popularização e barateamento dos mecanismos de produção, houve a possibilidade de realização de filmes independentes, sem o benefício das leis ou acordos com empresas norte-americanas, em virtude prin-cipalmente da redução dos custos orçamentários, e de inserção no mercado de exibição nacional, proporcionada pela utilização das novas janelas de exibição e pela demanda de produções de nicho.

2. O caso “3 Efes”

Nesse contexto de modificação das estruturas de produção industrial cinema-tográfica, foi produzido no Brasil, em 2007, o longa-metragem “3 Efes”, dirigido, produ-zido e roteirizado por Carlos Gerbase.

A produção foi realizada em parceria com a Casa de Cinema de Porto Alegre, captada em formato digital (DV), no período de 20 dias, entre dezembro de 2006 e ja-neiro de 2007, em Porto Alegre, com um orçamento (produção, comercialização e lan-çamento) de 121 mil reais, sendo que aproximadamente R$25.000 foram utilizados para custear a comercialização, divulgação e distribuição do filme. Os recursos financeiros para a realização foram provenientes de patrocínio realizado pela empresa Vortex, par-ceria com a Casa de Cinema de Porto Alegre, venda antecipada do filme para o Portal Terra, Canal Brasil e TV-COM.

O projeto foi desenvolvido desde o início com o propósito de relativizar a lógica da disponibilização dos filmes de forma gradual nas janelas de exibição, considerando que os novos veículos digitais devem ser utilizados em um patamar de igualdade com o circuito tradicional de exibição, as salas de cinema. As ações de planejamento para o lançamento e distribuição/exibição do filme ocorreram logo após a sua finalização, e sua divulgação foi realizada utilizando principalmente a internet e por ações alterna-tivas relacionadas ao conteúdo da produção, procurando despertar interesse em um segmento específico de mercado.

Assim, o filme foi lançado em dezembro de 2007 simultaneamente em múlti-plas janelas, sendo que durante uma semana permaneceu em exibição em quatro salas de cinema digitais com projetores do sistema RAIN e duas salas de cinema digital com aparelhos de DVD e projetores; no mesmo dia de lançamento do filme no circuito co-

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104mercial de salas, 07 de dezembro, foi exibido na TV por assinatura (Canal Brasil), e TV aberta (sinal UHF no Rio Grande do Sul, TV-COM); e a partir da mesma data, o filme foi também disponibilizado via streaming gratuito no portal Terra, e em cópias de DVD, para aluguel ou compra, na loja virtual da Casa de Cinema de Porto Alegre, Livraria Cultura e Vídeo 2000.

No momento do lançamento, o filme não possuía dívidas com fornecedores, de forma que sua receita seria utilizada apenas para amortizar os investimentos rea-lizados na produção e gerar lucros correspondentes às participações patrimoniais de-finidas em contratos. Até 2009, 44% do investimento realizado no filme, incluindo sua comercialização, já havia sido recuperado, sendo que apenas 3,4% desse valor foi obtido com a exibição do filme nas salas de cinema. A maior parcela da receita foi obtida com a venda do filme para o portal Terra, que representou 20,6% de seu orçamento total, se-guida pela venda para a TV. Ainda utilizando como base os dados obtidos até o ano de 2009, “3 Efes” obteve nas salas de cinema o número de 1.358 espectadores, na sua única semana de exibição. A partir da exibição nas TV e na internet via streaming, foram contabilizadas 759.102 exibições, e 198 DVDs vendidos, não sendo possível contabilizar o número de espectadores envolvidos em cada uma delas.

Tais fatos denotam que a estratégia de distribuição e exibição planejada para o filme foi adequada às suas características particulares, haja vista ter obtido receita e exibições substanciais nos principais meio alternativos de exibição. A sala de cinema continua a ser uma grande vitrine para as produções cinematográficas, porém perde, cada vez mais, a importância quantificada em relação ao seu poder de faturamento.

Os custos de produção e comercialização de “3 Efes” correspondessem a apro-ximadamente 7% dos custos de produção e comercialização de um filme médio bra-sileiro produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre, “Antes que o Mundo Acabe” (Ana Luiza Azevedo, 2010), que foi lançado no circuito tradicional de salas de exibição. Dessa forma, conclui-se que a exploração simultânea pode representar uma diminuição nos custos orçamentários de comercialização, resultando num retorno financeiro maior para a amortização dos investimentos e produção de lucros, e conseqüente continuida-de de produção. Além disso, a disponibilização do filme via internet reduz a lógica de circulação informal via compartilhamento P2P (peer-to-peer), o que assegura o retorno financeiro das exibições online.

Segundo Gerbase, a opção por um lançamento simultâneo e a exploração das novas janelas de exibição não está relacionada à inabilidade de absorção das produções nacionais pelo mercado exibidor. Trata-se da possibilidade de escolha do espectador, e de contato com públicos específicos, segmentados, que já consomem os produtos audio-

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visuais nessas janelas. “O público decide, onde e como ver. Se a distribuição tradicional não mudar, a circulação informal continuará a crescer”, afirmou o cineasta.

Conclusão

A atividade cinematográfica desenvolveu-se em torno de um modelo indus-trial, no qual o ciclo de um filme era segmentado em três fases: produção, distribuição e exibição. Esse modelo foi desenvolvido a partir da criação dos estúdios norte-america-nos que o exportaram para os outros mercados de cinema do mundo, juntamente com suas produções.

Até o surgimento da televisão, a única forma de se consumir uma produção cinematográfica era a sala de cinema. Porém, o surgimento de novas janelas de exibição de conteúdos resultou em um consumo de audiovisual feito de forma sequencial a gra-dual de acordo com a disponibilização em cada veículo ou janela de exibição.

Atualmente, os meios tradicionais de circulação de conteúdo convivem com outras formas de veiculação, as mídias digitais. O desenvolvimento da internet, e a cria-ção de novas janelas para a transmissão de conteúdo aliadas a essas mídias confluem para a uma convergência dos suportes, de forma que a lógica de comercialização tradi-cional por meio do processo cíclico de produção e disponibilização gradual em janelas de exibição passa a ser relativizada.

A produção audiovisual brasileira, da mesma forma que absorveu o modelo industrial de produção norte-americano, tem equivalente nas transformações que estão ocorrendo nesse modelo. Tais transformações conduzem à expansão de uma rede de veículos de comunicação convergidos, no qual há a possibilidade de uma oferta maior de conteúdos aos diferentes segmentos.

Uma vez que o modelo estabelecido é extremamente favorável à pro-dução, mas não á circulação do conteúdo audiovisual nacional, faz-se necessário considerar a internet e as novas mídias como janelas possí-veis de distribuição, podendo solucionar em parte a questão do acesso às produções nacionais. (NUDELIMAN e PFEIFFER, 2010, p. 114)

Da mesma forma, as modificações do modelo tradicional de comercialização, ao permitir a inserção de produções nacionais independentes no mercado de exibição, cria condição efetiva de competição com produtos estrangeiros em todos os setores da produção audiovisual.

Ao horizontalizar a distribuição dos conteúdos a partir do fim do intervalo entre as janelas de exibição, cria-se a possibilidade de maior agilidade na circulação

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106das produções. O mercado exibidor nacional atual, devido principalmente ao domínio estrangeiro das salas de cinema, não tem espaço para produções nacionais indepen-dentes, de forma que muitos filmes são produzidos, mas ficam estagnados no setor de distribuição. A utilização das novas janelas auxilia na exibição dessas produções, além de produzir retorno financeiro em médio e curto prazos.

A experiência de distribuição e exibição realizada por Gerbase em “3 Efes” permite-nos refletir sobre o modelo de negócio do cinema em um âmbito geral, não apenas nacional.

Os conglomerados de mídia vêm se atualizando e descobrindo alternativas de comercialização dos seus produtos, utilizando o desenvolvimento das novas mídias, como as ações cross-media, conteúdos exclusivos para aparelhos portáteis e internet, etc.

Porém, há uma parcela da produção cinematográfica que não está ligada a es-ses conglomerados, mas que não quer depender de exibições em festivais, que quer ser inserida no mercado de cinema, no comércio cinematográfico, para garantir a continui-dade da sua produção. Há uma demanda por esses filmes, que acaba sendo suprida de maneira informal, via o compartilhamento P2P, por exemplo, e que resulta em receitas negativas de produção, haja vista o filme ser assistido, mas em uma exibição sem lu-cros. A realização de “3 Efes” e sua estratégia de distribuição e exibição procuraram o sentido contrário a esse panorama, viabilizando o consumo de uma produção audiovi-sual independente, com retorno financeiro.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do Mercado de massa para o

Mercado de nicho. 5ª edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

DE LUCA, Luiz Gonzaga Assis. A hora do cinema digital: democratização e globalização

do audiovisual. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 2ª Ed. São Paulo: Aleph, 2009.

MASSAROLO, João Carlos e ALVARENGA, Marcus Vinícius Tavares de. A

indústria audiovisual e os novos arranjos da economia digital. In: MELEIRO,

Alessandra (org.). Cinema e Mercado: indústria cinematográfica e audiovisual

brasileira. Coleção Cinema e Mercado, vol. III. São Paulo: Escrituras Editora, 2010.

NUDELIMAN, Sabrina e PFEIFFER, Daniela. Novas janelas. In: MELEIRO,

Alessandra (org.). Cinema e Mercado: indústria cinematográfica e audiovisual

brasileira. Coleção Cinema e Mercado, vol. III. São Paulo: Escrituras Editora, 2010.

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SILVA, Hadija Chalupe da. O filme nas telas: a distribuição

do cinema nacional. São Paulo: Ecofalante, 2010.

ZANIN, Luiz. Os 3 Efes. O Estado de S. Paulo. 07 dez. 2007. Disponível em <http://

blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/gerbase-e-os-3-efes/>.Acesso em: 16 jul. 2012.

Entrevista

Carlos Gerbase – Diretor e roteirista de “3 Efes” (2007). Realizada via e-mail em 15 jul. 2012.

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rEviSta gEminiS ano 3 - n. 2 | P. 108 - 120

EStado tranSímia: PolíticaS PúblicaS Para a Era digital

marina roSSato fErnandESBolsista de mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected]

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rESumo

Este artigo pretende analisar como os países França, Canadá e Brasil relacionam suas políticas cultu-rais com o novo contexto de possibilidades criado pela internet. Pretende-se destacar a importância das novas formas de produção, distribuição e exibição de conteúdos audiovisuais, os novos modelos de negócios que serão gerados e o reconhecimento que os Estados devem dar a essa nova conjuntura.

Palavras-Chave: Transmídia, Estado, Políticas Públicas.

abStract

This article intends to analyze how countries like France, Canada and Brazil relate their cultural poli-cies with the new context of possibilities created by the internet. It intends to highlight the importance of new forms of production, distribution and exhibition of audiovisual contents, the new model of business that are being generated and the recognition the States should give to this new conjuncture.

Keywords: Transmedia, State, Public Policies.

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1 Mercado Transmídia

O desenvolvimento das tecnologias de informação, a popularização da inter-net, o aumento do número de aparelhos móveis que vivenciamos atualmente são responsáveis por uma mudança não só tecnológica como também social

e cultural. No campo do entretenimento instaura-se uma nova forma de fruição, que possibilita ao consumidor abandonar sua posição passiva e tornar-se um consumidor participativo. Sua participação pode-se dar por meio de suas opiniões sobre o produto, capaz de influenciar outros consumidores, ou pela criação de novos conteúdos a partir do produto dado. As possibilidades de interação são múltiplas, assim como suas possi-bilidades econômicas.

Essas novas perspectivas de consumo são possíveis devido à convergência mi-diática, que segundo Henry Jenkins é definida como:

Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comuni-cação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. (JENKINKS,2009, P. 27)

Neste contexto destaca-se a narrativa transmídia como nova oportunidade de negócio. Por narrativa transmídia, entende-se de forma simplificada, a criação de um novo mundo por meio de múltiplos canais de distribuição, onde cada canal contribui com novos elementos da ficção, proporcionando um mundo ficcional que excede a nar-rativa. Por se tratar de uma narrativa que envolve diversos meios de distribuição seu potencial econômico é muito grande.

A narrativa transmídia se fortalece devido à demanda do próprio consumidor, que passa a preferenciar narrativas complexas e fragmentadas. Exemplo de sucesso de público e de mercado são as obras Matrix (Andy Wachowski e Larry Wachowski, 1999) e Star Wars (George Lucas, 1977).” Essas obras transmidiáticas mostram possíveis ca-minhos para o audiovisual, envolvendo conteúdos que transladam do entretenimento

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111à educação, de forma a atrair consumidores para seus universos narrativos.’’ (MASSA-ROLO e ALVARENGA, 2010, p.130)

A fragmentação do mundo narrativo gera conteúdos específicos para públicos específicos, formando mercados de nichos. Chris Anderson em seu livro A cauda longa aponta o potencial dos mercados de nicho. Pois o mercado é encabeça por hits, com poucos sucessos que vendem muito, representados pela ‘cabeça da cauda’, conforme a cauda vai caindo aparecem os produtos menos vendidos, que são a maioria. A redução do custo da distribuição e a possibilidade de não mais armazenar fisicamente o produ-to faz com que essa cauda fique longa, aumentando o número de produtos disponíveis, formando o mercado de nicho. Muitos mercados de nicho juntos são maiores que os poucos hits. Isso se deve ao barateamento da produção e distribuição, onde passamos do mercado de átomos para o de bits, com a internet podemos disponibilizar todos os produtos com o mesmo custo e aumentar a oferta, assim como a demanda e a capaci-dade de lucro.

O novo contexto em que as atividades de produção, distribuição e exibição de conteúdos audiovisuais se desenvolverá vai originar diferentes modelos de negócios, que poderão impulsionar a indústria audiovisual, que não ficará mais dependente dos meios tradicionais de exibição e distribuição controlados por grandes empresas, como as salas de cinema e a televisão. A partir destes novos modelos o conteúdo chegará mais fácil ao consumidor, permitindo o consumo simultâneo em múltiplas janelas, fragmen-tando a renda gerada para cada meio de exibição, não mais concentrando os esforços em uma só possibilidade.

O universo digital possibilita também novos canais de distribuição e novas formas de interação do consumidor com o produto. A mobilidade proporciona o uso de aplicativos, que vem se popularizando em diversas funções, tanto de entreteni-mento, como jogos, de comunicação, como redes sociais e jornais, até de produção de conteúdo, como editores facilitados de fotos e vídeos que permitem que o conteúdo criado seja disponibilizado na rede imediatamente, podendo ser visto e avaliado por milhões de usuários.

Por meio das narrativas, dos jogos, dos aplicativos, da popularização da in-ternet e dos aparelhos móveis as relações de consumo modificaram-se em diversos campos, como o da música, cinema, informação, etc. Porém este trabalho vai se ater ao entretenimento, mais especificamente ao campo do audiovisual.

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2 Audiovisual e Estado A atividade cinematográfica brasileira tem uma relação histórica com o Estado

que começou em 1932 com a legislação protecionista de Getúlio Vargas, que pratica-mente se limitou por muitos anos à chamada “cota de tela”, passando pela criação do INC (Instituto Nacional de Cinema), atingindo o auge com a criação da Embrafilme e Concine, que através de leis e fomento se encarregavam da produção e distribuição dos filmes nacionais, sendo responsáveis pelo aumento da produção, renda e público do cinema nacional.

Durante o governo de Fernando Collor, em 1990, a Embrafilme é extinta, assim como outros órgãos afins e o cinema é reduzido a uma atividade periférica no âmbito da política cultural do governo federal. Sem o apoio estatal a produção entra em crise e só é retomada em 1993 com a criação da Lei do Audiovisual, implantando o mecanismo de renúncia fiscal e em 2001 é criada a Ancine, um órgão para regulamentar a atividade e fiscalizar as leis, além de fomentar a produção e promover a auto sustentabilidade da indústria nacional.

Atualmente o cinema já não se paga mais nas salas de exibição, que costuma-vam ser sua principal fonte de renda e de visibilidade. Para gerar lucros é preciso con-siderar as outras formas de distribuição, como o mercado de vídeo e a televisão, porém a entrada nesses mercados consolidados é dificultada pelo interesse das distribuidoras, no caso dos vídeos, e das emissoras de televisão, que tem uma relação histórica de não interação com o cinema. Assim o cinema brasileiro continua dependente da interven-ção do Estado para produzir, por meio de leis de incentivo ou editais, poucos filmes se tornam autossustentáveis no mercado. Nesta conjuntura a narrativa transmídia aparece com uma boa oportunidade de modificar as antigas relações, nas quais o cinema nacio-nal vem sendo lesado, e tornar a atividade rentável.

As possibilidades de mercado que o transmídia traz são inúmeras e estão co-meçando a ser exploradas e estudadas. Considerando que o cinema nacional encontra--se em uma situação dependente da política governamental para a área, é fundamental que o governo englobe as potencialidades do digital como parte estratégica para o in-centivo e a auto sustentabilidade do meio audiovisual.

3 Canadá e França

No Canadá a política governamental para o audiovisual se da pela agência federal The National Film Board of Canada (NFB) cujos objetivos são produzir e distribuir

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113trabalhos audiovisuais baseados nos pontos de vista e valores canadenses. Propõe-se a atingir todas as regiões do país e dar visibilidade a toda produção, com propostas inclusive destinadas aos aborígenes. O conteúdo das produções é disponibilizado para escolas e bibliotecas.

A agência que foi criada em 1939 passou por diferentes períodos de adminis-tração, com diferentes propostas em cada uma. Em 2008 é elaborado um plano estraté-gico para os anos de 2008 a 2013 tendo como referencial a era digital, partindo da com-preensão de que as formas de produção e distribuição de conteúdos audiovisuais estão mudando devido às novas tecnologias digitais. O plano aborda diversos pontos para o apoio á indústria audiovisual, porém destacarei aqueles que se referem ao contexto das novas mídias.

Com a revolução digital a proposta não é a preservação do espaço públi-co, e sim o estímulo a ele. A NFB incentiva a criatividade e a experimentação, assumin-do riscos que nem o setor privado nem a televisão pública podem assumir e entende a era digital como o território propício para empreender esses tipos de risco. Assumindo esses riscos e incentivando usos criativos das novas tecnologias cria novas oportuni-dades para a indústria audiovisual. Reconhece as características da era digital como a interatividade, mobilidade, controle do tempo e democratização da mídia, e a partir disso visa experimentar novos modelos de produção, distribuição e de negócio.

Propõe-se a apoiar a produção de novos conteúdos e possibilitar o acesso de todos os cidadãos a esse conteúdo. Além dos tradicionais projetos de ficção, documen-tário e animação, agora também são incentivados projetos de filmagens coletivas, cross--mídia e animação estereoscópica. Essa produção incentivada é disponibilizada online para todos os cidadãos nas duas línguas oficiais, inglês e francês, em todas as regiões.

Conteúdo para novas mídias está entre os objetivos lançados nesta proposta, estimando que em breve 75% dos canadenses serão usuários de Internet, a demanda por conteúdo digital tende a aumentar e a NFB considera um direito dos canadenses ter conteúdo de seu país nessas novas plataformas. Assim visa promover um espaço de experimentação onde o público tenha participação. Com base nos mesmos valores que a NFB defende para outros projetos audiovisuais, como relevância social, artísti-ca, integridade, inovação e riscos assumidos, trará o foco para as múltiplas platafor-mas, pensando criativamente quais são os meios apropriados para um projeto se tornar multimídia.

A NFB também produz aplicativos próprios que são gratuitos e estão disponi-bilizados no site da NFB e no da Apple Store. São dez aplicativos, entre eles os que dis-ponibilizam o conteúdo de centenas de documentários e animações para Ipad, Iphone

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e Android, um com papéis de paredes disponíveis para download para Iphone, outro que facilita a postagem de vídeos online. Destaco o ‘ Test Tube with David Suzuki’, uma história interativa com David Suzuki, um famoso cientista ambientalista no Canadá e o PixStop, que facilita a criação de animação em stop-motion, tirando fotos, adicionando música, inserindo desenhos. O PixStop é o único aplicativo que é gratuito somente no Canadá, sendo comercializado em outros países.

Outro objetivo é garantir a acessibilidade dos trabalhos produzidos pela NFB em todas as plataformas, visando também à distribuição em escolas e na televisão. Usar as novas tecnologias digitais para distribuir e interagir com os canadenses e pensar no-vas estratégias de marketing para o lançamento dos conteúdos. Em 2008 foi realizada uma experiência de e-cinema, e agora pretende-se criar um e-cinema nacional com o conteúdo da NFB e outros conteúdos culturais para atingir as comunidades pelo país.

Outra proposta para a era digital é a digitalização do acervo da NFB. Muitos conteúdos já estão disponíveis no site, porém são gratuitos somente para canadenses, outros espectadores deverão pagar para assistir a obra. O site também conta com uma loja on-line onde são vendidos os filmes produzidos pela NFB, diferenciando canaden-ses, americanos e outros países e se a compra será para uso pessoal ou para uso coletivo em escolas e bibliotecas.

Devido ao entendimento da era digital como um terreno de oportunidades para se repensar a indústria audiovisual, o Canadá se destaca por sua política de in-centivo ás novas mídias. Visa proporcionar um terreno de experimentação, porém sem ignorar o mercado, já que comercializa online o conteúdo que produz e pensa em novas plataformas, como o desenvolvimento de aplicativos originais. Além de estimular a produção, a vincula com novas formas de distribuição e faz com que a cultura cana-dense seja divulgada.

As novas mídias são compreendidas não só como uma nova linguagem, e sim como uma nova conjuntura, modificando as relações de produção, distribuição, exi-bição, marketing e rentabilidade. Ao incentivar os experimentos nesta área o governo estimula a indústria como um todo, não somente experimentações artísticas, mas tam-bém a descoberta de novos caminhos que servirão de referencia internacional.

Na França o órgão responsável por cuidar da área audiovisual é o Centre natio-nal du cinéma et de l’image animée (CNC), criado em 1946 é um estabelecimento público ligado ao Ministério da Cultura com autonomia financeira. Ele é responsável pelo fo-mento à criação, produção, distribuição, difusão de obras audiovisuais e multimídias, assim como o incentivo a diferentes formas de expressão e distribuição.

O CNC desde 1985 adotou uma política de integração com a televisão, amplian-

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115do as relações com o passar dos anos, agora taxa o seu faturamento, reserva espaço para exibição de longas-metragens franceses, estipula um percentual que cada emissora deve investir na produção de filmes, estes percentuais variam de acordo com o tipo da emissora, e tem um fundo de apoio ao desenvolvimento de projetos de inovação para a televisão. Esta postura adotada em relação à televisão demonstra o reconhecimento de que o cinema precisa estar integrado com outras áreas de difusão de conteúdo, não ficando dependente das salas de exibição.

Atualmente esta questão é renovada com a popularização da internet e das plataformas móveis, então mais uma vez o CNC repensa sua política de fomento a indústria audiovisual e passa a incorporar as novas mídias em seu programa de incen-tivo, entre elas a produção de conteúdo para internet e para as plataformas móveis, e também os jogos eletrônicos.

Desde 2007 já existe uma ajuda específica destinada aos projetos de novas mí-dias, considerando obras inovadoras que interagem com a internet e/ou plataformas móveis, incentivando tanto a criação como a distribuição. Os projetos podem ser con-templados tanto na fase de desenvolvimento como na de produção. Também existe o fo-mento a criação artística multimídia, ao desenvolvimento, a produção e a manifestação. Esta modalidade de fomento envolve não só criações audiovisuais, podendo englobar imagens fixas ou em movimento, sons, textos, artes plásticas, arquitetura, espetáculo ao vivo, desde que estejam presentes as características multimídias e digitais.

Em 2011 é modificado o Cosip, responsável por financiar projetos audiovisuais, sendo transformado em WebCosip, visando complementar os dispositivos já existen-tes de apoio ás produções audiovisuais, agora englobando a internet. São incentivados projetos de vocação patrimonial, que proporcionem uma exploração durável, visando acompanhar o desenvolvimento e a produção dessas obras na internet, como web do-cumentários e web ficção, estendendo o apoio às produções financiadas por um site ou difusor na internet. Os produtores já incentivados pelo Cosip podem reinvestir nas obras audiovisuais pré-compradas por uma ou mais plataformas de internet, conforme as modalidades próximas daquelas já financiadas pelo Cosip.

Há um setor de apoio à indústria técnica e de inovação, visando à moderniza-ção da indústria audiovisual. São realizados programas de incentivo aos produtores de obras que utilizam novas tecnologias digitais, como efeitos especiais e imagens es-tereoscópicas, acompanhando o risco desses investimentos. As empresas que atuam na área do audiovisual também são apoiadas a desenvolver projetos de inovação, de serviços e produtos que sejam relevantes para a área. As empresas que fornecem equi-pamentos e serviços técnicos também são ajudadas financeiramente por meio de inves-

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timentos e financiamento de estudos. Este apoio a diferentes elos da cadeia da indústria audiovisual referente às novas tecnologias demonstra uma preocupação governamen-tal em atualizar sua produção, reconhecendo o potencial desta área.

Em 2010 o CNC encomendou uma pesquisa detalhada sobre o mercado de jo-gos eletrônicos na França, tanto físicos de videogame quanto de computadores, os nú-meros de venda, o gênero do jogo, a nacionalidade, entre outros pontos, constituindo um material fundamental para a elaboração de uma política governamental de apoio a esse mercado. Em parceria com o Ministério da Economia, da Indústria e do Traba-lho foi criado o Fundo de Ajuda ao Jogo Eletrônico que é incentivado através de três dispositivos. O primeiro é referente à subvenção da criação de propriedade intelectual nos jogos, favorecendo as novas criações, incitando as empresas a criar um valor patri-monial para os jogos produzidos conservando os direitos da propriedade intelectual. O segundo é ajuda a pré-produção do jogo gerando um protótipo de jogo não comerciali-zável. O terceiro é uma ajuda a operações de caráter coletivo, como colóquios, jornadas de estudos, festivais, que promovam a profissão.

Existe também um fundo destinado ao videoclipe, que contém dois tipos de incentivo. Um prêmio de investimento a produção destinado a novos talentos e um prêmio de qualidade, contemplando videoclipes já veiculados na televisão.

O CNC entende o audiovisual como uma área ampla e integrada e busca por meio da elaboração de sua política incentivar todos os elos desta cadeia. Fomenta dife-rentes tipos de projetos, dos tradicionais filmes de longa-metragem a jogos eletrônicos, passando por conteúdo para internet e plataformas móveis. Com isso o setor se fortale-ce e consolida uma indústria audiovisual integrada.

4 Brasil

No Brasil a política cultural voltada para o meio digital avançou durante a ges-tão de Gilberto Gil como ministro da Cultura. Como aponta Eliane Costa:

o Ministério da Cultura, na referida gestão, foi além da concepção de inclusão digital como mero acesso ao computador, incorporando uma reflexão sobre os usos da tecnologia no campo cultural, bem como a perspectiva da autonomia do usuário e do fortalecimento de uma cul-tura de redes. (COSTA, 2001, p. 16)

A concepção de cultura muda de um viés mercadológico para o ‘antropológico’, alargando o seu conceito, apostando na diversidade e em seu potencial de justiça social. Passa-se a valorizar os direitos culturais, não apenas relacionados ao acesso e consumo,

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117mas também pensando a criação e produção. Assim a ideia de levar cultura às classes baixas é substituída por dar voz a essas classes, garantir os meios de produção e difu-são para que elas se exprimam.

Baseado nessa nova concepção de cultura que são lançados em 2004 os pontos de Cultura, ação central do Programa Cultura Viva. São escolhidos através de edital público projetos já desenvolvidos há pelo menos dois anos por iniciativa da socieda-de civil em localidades de baixa renda e sem acesso a serviços públicos e culturais. Os selecionados recebem ajuda financeira e um estúdio digital multimídia, composto por computadores com acesso à internet, utilizando software livre, equipamentos para captação de imagem e som e recursos para edição. Assim, são fornecidos mecanismos para que cada comunidade possa produzir seu próprio conteúdo e difundi-lo através da internet. Segundo Eliane Costa ‘’A proposta dos Pontos de Cultura inverte a lógica de atuação do Estado: em vez de levar ações culturais prontas para as comunidades, são estas que definem as práticas que desejam fortalecer, com reconhecimento e apoio do governo’’. ( COSTA, 2011, p. 61)

Nesta gestão a cultura digital é entendida como um elemento essencial para a transformação, promovendo diversidade e desenvolvimento. Também são realizados muitos eventos em que a questão da internet, software livre e direitos autorais na rede são discutidos, tanto no Brasil como no exterior, posicionando o Brasil como referencia internacional neste tema.

Foi compreendido que as novas tecnologias e a internet causam uma mudança estrutural nas relações humanas, e o acesso a rede se torna requisito básico para reali-zação de atividades sociais, econômicas, políticas e culturais. O uso do software livre passou a ser defendido, e o site do MinC migrou para o Wordpress, que tem código aberto, é dada atenção às licenças Creative Commons e criado dentro do MinC um setor dedicado a cultura digital.

Outra ação relevante foi a atenção dada aos jogos eletrônicos, englobados agora no campo da cultura. O primeiro edital de games foi lançado em 2005, contemplando demos de jogos. Em 2008 é lançado o Programa de Fomento à Produção e Exportação do Jogo Eletrônico Brasileiro, apoiando o desenvolvimento de jogos, oferecendo ofici-nas e visando as coproduções internacionais.

A partir de 2005 a questão do digital passou a ser incorporada pelo Ministério da Cultura refletindo em seus editais como a Rede Olhar, DOC-TV, estimulo à criação de sites para disponibilização de acervos, a cineclubes com exibição digital e a produ-ção de filmes de animação para TV.

Acompanhamos um avanço sobre o tema digital durante a gestão de Gilberto

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Gil, que pensava tanto a produção como a difusão dos conteúdos. Porém, com o fim de sua gestão e o início de outra, muitas propostas e debates se perderam, e ques-tões fundamentais para lidar com esta nova conjuntura tecnológica ainda não foram concretizadas.

Uma delas é referente ao Marco Civil da Internet, que estabelece normas para tornar a internet brasileira um ambiente mais seguro, com base em direitos dos usuá-rios, obrigações dos provedores de serviço e responsabilidades do poder público. Con-dição básica para que a internet possa ser explorada em todas suas possibilidades, tanto de difusão cultural como de mercado.

Outro ponto essencial para ‘’pensar o desenvolvimento da economia digital em solo brasileiro, a capacidade de dar acesso gratuito à internet de banda larga para toda a população brasileira, por meio de projetos de infraestrutura que terão como órgão orientador o próprio Estado’’. (MASSAROLO e ALVARENGA, 2010, p. 14) Espera-se que o Estado forneça a infraestrutura básica para o desenvolvimento das novas potenciali-dades do mercado digital assim como fez com os serviços de radiodifusão na década de 1960. Garantindo o acesso da audiência e por consequência os investimentos publicitá-rios que poderão financiar as produções nesta área.

Massarolo e Alvarenga apontam que

(...) dar acesso à internet para a população como estímulo para que esta possa praticar melhor suas ferramentas de cidadania, em que ações in-tegradas de educação, saúde, cultura e comunicação possam servir de estruturação para o desenvolvimento de novos serviços para a comu-nidade, em que a produção audiovisual funciona como um vetor que aglomera estes ferramentais e permite o aumento potencial da criação de narrativas audiovisuais. (MASSARLO, 2010, p. 14-15)

O que estava em sintonia com o projeto do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, e é pré-requisito para o desenvolvimento tanto do audiovisual como social da população.

Outra diz respeito aos direitos autorais, que precisam ser encarados de outra forma no ambiente digital, pois as legislações atuais estão ultrapassadas e não podem ser aplicadas nesta nova realidade. O uso da internet pressupõe compartilhamento, tro-cas de informações, interferências nas obras e posterior divulgação, estas ações básicas que todos os usuários executam seriam ilegais de acordo com a atual legislação, porém como a fiscalização é praticamente impossível e não desejada, ficamos sem norma ne-nhuma, sendo ignorada a antiga, tanto pelos usuários como pelas autoridades como aponta Lemos “[...] a ausência de transformação do direito certamente representa uma composição desses mesmos interesses: é ilusório crer que, se a realidade se transforma e o direito se mantém o mesmo, o direito também continua o mesmo [...]”. (LEMOS,

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1192005, p. 9). Assim, se o Estado pretende incentivar esta produção digital e sua difusão por meio da rede, é necessário antes de tudo rever e atualizar a questão dos direitos autorais na nova era.

O Brasil ainda caminha no estímulo da cultura digital, necessitando criar um ambiente propício para isto, a gestão de Gilberto Gil pode ser destacada como uma compreensão do governo sobre a importância deste novo meio e as possibilidades daí existentes, porém houve interrupção da proposta devido a troca de ministros. Compa-rado ao Canadá e França, o Brasil está atrasado e ainda não tem ações efetivas por parte do Estado no estímulo a narrativas transmídia, conteúdos para plataformas móveis, disponibilização de acervo de filmes, e nem na compreensão do potencial de mercado que estes novos canais de distribuição proporcionam.

Neste ambiente destacam-se algumas propostas apoiadas pelo governo, mas não partindo de sua iniciativa. Um projeto de destaque é a Casa de Cultura Digital, espaço que reúne pessoas, ONGs, INGs e empresas em colaboração para se pensar a questão da cultura digital. Ela é responsável por organizar o Festival CulturaDigital.Br que tem patrocínio da Petrobras e da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, através da Lei de Incentivo à Cultura daquele Estado. Do Festival surgiram a rede social CulturaDigital.Br, onde ressoam as discussões levantadas no evento, o livro Cultura-Digital.BR, vídeos, o site do Fórum, entre outros. O Festival encontra-se em sua quarta edição e é um importante espaço de debate e criação de novas possibilidades que o digital oferece.

Outra iniciativa nesta área é o LUM, uma plataforma para desenvolvimento e criação de projetos transmídia. Ela funciona como um grande banco de dados aberto para inscrição de projetos de qualquer natureza transmídia, em qualquer etapa de desenvolvimento, e interessados podem colaborar em projetos como coautores, pro-dutores ou investidores. Os projetos inscritos nesta plataforma poderão participar dos concursos de Pitching da TV Cultura, e caso sejam aprovados as obras serão exibidas na emissora. A Plataforma LUM é uma realização da Fundação Padre Anchieta, com gerência executiva da Coordenação de Co-produção e Políticas Públicas da Gerência de Aquisição e Produção Independente da TV Cultura e visa incentivar a criação de projetos transmídia no Brasil, oferecendo tutoriais sobre como montar um projeto, aju-dando a encontrar colaboradores e oferecendo espaço de exibição por meio de chama-da pública.

Essas iniciativas ilustram a preocupação da própria sociedade civil e do merca-do em promover estudos, discussões e projetos que estejam em sintonia com os novos meios de produção e distribuição de conteúdos audiovisuais. O Estado já reconheceu a

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importância desta nova conjuntura, porém ainda falta o planejamento de ações efetivas que possam contribuir para a exploração de todas as possibilidades que ela oferece.

Referências Bibliográficas

ANDERSON, Chis. A cauda longa. Rio de Janeiro: Campus, 2006

COSTA, Eliane. Com quantos gigabytes se faz uma jangada, um barco que veleje : o Ministério da Cultura, na gestão Gilberto Gil, diante do cenário das redes e tecnologias digitais. 2011. Dissertação (Mestrado profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais) – Programa de Pós-graduação em História, Poítica e Bens Culturais , Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2011.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

LEMOS, Ronaldo. Direito, tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

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uma análiSE crítica do Edital jogoSbr 2004 Para a comPrEEnSão do mErcado braSilEiro dE jogoS ElEtrônicoS

jõnataS kErr dE olivEiraFoi professor substituto do Depto. de Artes e Comunicação (DAC) da UFSCar. Mestre em Imagem e Som pelo PPGIS - UFSCar. E-mail: [email protected]

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rESumo

O edital JogosBr de 2004 é um marco histórico na indústria do videogame no Brasil, e reflete diversos problemas mercadológicos, econômicos e sociais que remontam à reserva de mercado dos anos 80. Este artigo parte de uma análise crítica do edital JogosBR de 2004, um mecanismo de incentivo à produção de jogos em território nacional por parte do governo federal, para realizar uma reflexão sobre o setor de jogos no Brasil e no mundo. Para contextualizar o edital e reforçar sua importância, este artigo aborda a formação da indústria de jogos eletrônicos no país, e sua trajetória até o lançamento do edital, momento em que a indústria brasileira estava fortemente debilitada. A partir desta análise histórica e contextu-al, o edital é analisado em seu regulamento, nos projetos aprovados e nos resultados obtidos por ele, concluindo com um levantamento de problemas e falhas ocorridos na concepção e execução deste e sugestões para futuros concursos.

Palavras-Chave: Jogos eletrônicos; Videogames; Edital; Jogosbr.

abStract

JogosBr, a 2004 games edict, is an historical mark in Brazilian videogame industry. It reflects various mercadological, economic and social issues dating back to the market reserve ‘80s. This paper makes a critical analysis if the JogosBR 2004 edict, a game production stimulus mechanism in Brazilian territory developed by the Federal Govern, proposing to make a reflection about the games industry in Brazil and another countries. To contextualize the announcement and reinforce its importance, this paper addresses the formation of the videogame industry in the country, and its history until the release of the edict, a time when the Brazilian industry was greatly weakened. Using this historical and contextu-al analysis, the edict is analysed in its regulation, approved projects, and results obtained, concluding with a table of problems and failures that occurred in its conception and implementation. We will make also and suggestions for future edicts.

Keywords: electronic games, videogames, edict, Jogosbr.

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1. Introdução

Em todo o mundo, os jogos eletrônicos1 têm se destacado como mídia, como mer-cado e como forma de arte, ocupando cada vez mais espaço na sociedade. No Brasil, o mercado de jogos eletrônicos também tem crescido e chamado a aten-

ção das entidades governamentais. Nodia 20 de agosto de 2004 ocorreu o lançamento do primeiro edital de incentivo à indústria de jogos do Governo Federal, na forma de um concurso cultural de jogos eletrônicos- de iniciativa do Ministério da Cultura, em parceria com o ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação da Casa Civil) e com a FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), através da Educine (Associação Cul-tural Educação e Cinema) - com o objetivo de estimular o desenvolvimento de jogos eletrônicos (ou games) no mercado nacional. Este edital surge num contexto em que a indústria nacional de jogos eletrônicos encontra-sedebilitada, com uma produção inex-pressiva e tecnologicamente atrasada, assim como o mercado nacional.

Este edital tem grande importância por ser a primeira movimentação do go-verno brasileiro para ajudar o setor de jogos e por esta primeira intervenção estatal, em favor do setor, ocorrer apenas no ano de 2004, mais de 30 anos após os primeiros relatos sobre a atividade no país. O edital vem suprir algumas das muitas necessidades do se-tor e demonstra uma demanda reprimida de incentivo para a produção, pois segundo relatórios do governo: “No primeiro ano do projeto, 2004, participaram mais de 5 mil pessoas” (SAV, 2008, p.17).

Sendo assim, o edital JogosBr de 2004 representa muito sobre o mercado de jogos eletrônicos no Brasil, não apenas por ser a primeira intervenção estatal em favor do setor, mas principalmente pelo contexto mercadológico em que o edital JogosBR de 2004 foi proposto, tanto em terras brasileiras como no exterior. Portanto, faz-se neces-sário aqui analisar o panorama do mercado de jogos eletrônicos como um todo para perceber a relevância do mecanismo de incentivo.

1 Para melhor entendimento deste texto, os videogames e os jogos eletrônicos podem ser entendidos como qual-quer forma de software de entretenimento que utilize um sistema digital, usando quaisquer plataformas, fixas ou móveis, envolvendo qualquer número de jogadores, em qualquer ambiente.

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1241.1. Um panorama do mercado de jogos eletrônicos em 2004

1.1.1. Os jogos eletrônicos no mundo

Os jogos eletrônicos são o ápice tecnológico do entretenimento digital, refle-tindo o esforço de pesquisas científicas e altos montantes de investimento financeiro. Desde seu surgimento, os jogos eletrônicos mudaram substancialmente e evoluíram não apenas tecnologicamente, mas também artística e culturalmente.

No início da década de 80, os videogames não eram sofisticados. Um projeto criativo e habilidades de programação eram suficientes para qualquer um entrar no mercado. Um jogo em preto e branco básico de Ping-Pong era o suficiente para se tornar um sucesso. Esse não é mais o caso. Crianças e adultos anseiam por qualidade, realidade e dimen-sionalidade. E estas características demandam dinheiro e recursos. (LUGO, 2002)

Quando surgiram os primeiros jogos, o desenvolvimento era simples e barato, possibilitando a um programador sozinho criar um grande sucesso comercial, mas no contexto mercadológico do surgimento do edital JogosBr de 2004, um grande sucesso comercial, como o jogo “Grand Theft Auto 4”2 envolvia mais de mil profissionais durante mais de três anos, com um orçamento estimado em US$ 100 milhões (SAMPAIO, 2008), números discrepantes quando comparados com os primeiros jogos, que sequer tinham um orçamento definido.

Vale ressaltar, que ao contrário dos primórdios dos jogos eletrônicos, quando estes eram encarados com amadorismo e sem grandes perspectivas, atualmente eles se tornaram um dos setores do entretenimento mais lucrativo, com números altamente relevantes como, por exemplo, os do jogo GTA4 anteriormente citado, que foi por alguns anos o maior lançamento da história de todo o entretenimento. Esse jogo rendeu em apenas um dia aproximados US$ 310 milhões, totalizando a surpreendente arrecada-ção de US$ 500 milhões (UOLJOGOS, 2008A) somente na primeira semana de vendas, números expressivos, mesmo quando comparados com o cinema. De acordo com os números finais de 2007 da NPD Group, nos EUA, a bilheteria de cinema arrecadou U$9,6 bilhões, enquanto que a indústria de jogos arrecadou U$18.85 bilhões durante o mesmo ano, o que resulta em aproximadamente o dobro de dinheiro movimentado no país (SINCLAIR, 2008).

2 Embora o jogo "Grand Theft Auto 4" seja do ano de 2008, é um bom representante do tipo de produto que estava em destaque em 2004, e da lógica de mercado, com jogos de altíssimos orçamentos ainda sendo distribuídos em mídias físicas.

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Estaperspectiva sobre o mercado de games reflete o contexto em que o primei-ro edital do governo brasileiro para o setor de jogos eletrônicos foi lançado, ou seja, a perspectiva de mercado de 2004, e que na data da redação deste artigo ( final de 2012), já é possível observar uma mudança considerável na lógica de todo o mercado, desde o sistema de produção até a distribuição e consumo, mas este será tema para outro artigo.

1.1.2. Os jogos eletrônicos no Brasil.

Na época do lançamento do edital JogosBr de 2004, o mercado brasileiro de produção de jogos estava em franca expansão, com taxa de crescimento de 40% do ano de 2003 para 2004 (ABRAGAMES, 2005, p.10). Embora os números de crescimento indi-cassem um futuro promissor para o setor, eles não refletiam a realidade do mercado no dado momento no tempo, uma vez que os jogos no Brasil movimentavam “cerca de 50 milhões de dólares, menos de 10% do seu verdadeiro potencial” (ABRAGAMES, 2004, p.3). Segundo Orlando Senna, secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura à épo-ca, o setor de jogos eletrônicos no Brasil “pode faturar pelo menos dez vezes mais se lhe forem destinados investimentos inteligentes do Estado e do capital privado”(SENNA, 2006). Existiam vários motivos para que o Brasil se encontrasse extremamente abaixo de seu potencial, dentre eles os principais: a política de reserva de mercado nos anos 80, os altos impostos e a pirataria e/ou mercado informal.

Durante a década de 80, o Brasil adotou uma política que ficou conhecida como política de reserva de mercado para a fabricação de computadores, na qual era proibi-do importar equipamentos eletrônicos, em especial os da área de informática (não só hardware, mas também software), incluindo os consoles de videogame e jogos. O con-junto de atos normativos, leis e dispositivos legais criados para esta reserva de mercado culminaram com a Lei 7.232 de 29 de outubro de 19843. Esta lei estabelecia a criação da SEI (Secretaria Especial de Informática) que era responsável pela gerência da área de informática no Brasil, e a quem os fabricantes deveriam submeter seus projetos. A SEI estipularia uma “nacionalização” desses projetos, determinando quantas e quais peças seriam fabricadas em território nacional ou substituídas por peças que já fossem fabri-cadas no Brasil.

Essa política de nacionalização implicou em uma defasagem tecnológica do Brasil, uma vez que as pesquisas de ponta se voltaram para o entendimento e reprodu-ção de peças já existentes no exterior, o que muitas vezes resultou na conclusão de um projeto com vários anos de defasagem em relação ao seu lançamento no exterior. Um

3 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7232.htm>. Acesso em 23 jul. 2008.

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126breve levantamento histórico mostra que estudos da época apontavam para a política de reserva de mercado como uma estratégia bem-sucedida até o final da década de 80, considerando a defasagem tecnológica como algo que viria a ser superado em momen-tos futuros se corretamente abordada:

Os países europeus, apesar de terem capacidade técnica e industrial superiores à brasileira, não têm logrado o mesmo êxito na ocupação de seus respectivos mercados, devido à inexistência de mecanismos ade-quados de proteção. No entanto, o sucesso industrial na informática é um alvo móvel, sujeito a alterações substanciais a curto e médio prazos em função do intenso dinamismo competitivo e tecnológico do setor. Assim, o futuro da indústria nacional não está assegurado pela sim-ples inércia dos resultados obtidos até agora. (TIGRE, 1987, p.6)

Esta política de reserva de mercado auxiliou na criação e desenvolvimento de uma indústria nacional de computadores e videogames com um objetivo de ser, acima de tudo, tecnologicamente independente, porém os resultados eram cópias dos compu-tadores e videogames dos EUA4, algumas vezes de forma fraudulenta5, com qualidade inferior, mais caros e obsoletos na data do lançamento, repercutindo por décadas em veículos populares de imprensa como uma espécie de descaminho estúpido, como en-fatiza a reportagem da revista VEJA:

“Em outra aposta patética, criou-se no Brasil na mesma época a reserva de mercado de informática, que proibia a importação de PCs. A estu-pidez resultou no enriquecimento de uns poucos empresários locais e num tremendo incentivo ao contrabando – além, é claro, da privação de uma geração inteira de jovens dos benefícios da era digital. Enquan-to os países que hoje disputam mercados de alta tecnologia com os Estados Unidos apostavam no software – ou seja, no cérebro –, o Brasil se perdia em políticas de compadrio fabricando PCs que já saíam obso-letos da fábrica.” (FERNANDES, 2000).

Em um mercado em que um produto torna-se extremamente defasado num pra-zo de dois anos, isso significa que o produto já nasce morto ou com poucas chances de vida. Porém, a defasagem tecnológica gerou um fenômeno totalmente inesperado: em terras brasileiras, os jogos costumavam ter um ciclo de vida muito mais longo do que nos países conhecidos como os principais mercados de jogos. Na América Latina e em espe-

4 No artigo “Joystick antinostalgia”, de Saulo Frauches, publicado em 11/01/2007, disponível em <http://www.over-mundo.com.br/overblog/joystick-antinostalgia>, o autor comenta sobre jogos “clonados” e adaptados em território nacional.5 Roberto Campos comenta no artigo "Desperdício Ameaça Estabilidade Monetária" da Folha de 16/03/1986 sobre o furto de tecnologia do Macintosh efetuado pela Unitro. Appud (MATTOS, 1988)

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cial no Brasil, os usuários continuavam jogando jogos antigos por muito mais tempo6.Como parte da política de reserva de mercado, foram determinados altíssi-

mos impostos de importação para produtos da área de informática, incluindo os jo-gos eletrônicos. Estes impostos tinham como objetivo forçar o comprador a optar por produtos nacionais, incentivando e consolidando a indústria nacional. Porém, como foi anteriormente citado, os produtos nacionais não passavam de cópias defasadas dos produtos vendidos no exterior. Tal situação incentivou o mercado de produtos importados ilegalmente, chamados muitas vezes de produtos “pirata”. Sob pressão do mercado internacional e buscando estancar a pirataria crescente, ocorreu a aprovação da Lei 8.248/91, em outubro de 1991, cuja vigência efetiva inicia-se apenas com a regu-lamentação em 1993.

A aprovação da nova “Lei de informática” se deu no contexto do término da vigência da “Antiga Lei de Informática” de 1984, que garantia reserva de mercado para empresas de capital nacional nos oito anos seguintes com fim efetivo de vigência em outubro de 1992 e que deixou o conjunto de atividades do complexo eletrônico sem um arcabouço institucional mínimo em relação à fabricação, desenvolvimento e comerciali-zação de bens e serviços até a regulamentação da nova lei de informática em 1993. Esta legislação eliminou as restrições anteriores ao capital estrangeiro e definiu uma nova política de estímulo centrada na obrigatoriedade de esforços mínimos em P&D, além de reduzir os impostos de importação para produtos da área de informática, só que desta vez, excetuando os jogos eletrônicos e videogames. Em 1997, a Lei de informática foi reestruturada e mais uma vez os jogos eletrônicos não foram incluídos nos produtos que recebem incentivos fiscais.

Como resultado da nova política de tributação para produtos importados, tem--se o aumento expressivo do valor de um console de videogame em terras brasileiras, que na época do edital de 2004, obrigava o brasileiro a pagar 300% mais caro que o consumidor norte-americano. A carga tributária de um console de videogame repre-sentava 262% do custo FoB7, sem contar custos com transporte, distribuição, margem de lucro da revenda e outros custos comuns à revenda de quaisquer produtos. Essa tarifação tornava mais caro importar um console de videogame do que uma máquina de videopôquer8, por exemplo, demonstrando total incoerência nos valores atuais de importação.

6 Em (LUGO, 2002) a questão é abordada, porém não são levantadas as causas nem suas consequências, merecendo este assunto um estudo mais detalhado.7 "Free on Board" é otermo utilizado para designar o preço original da mercadoria, livre de qualquer despesa rela-tiva à exportação.8 Na época as máquinas de vídeo-pôquer ainda eram legalizadas no país e eram comumente encontradas em bares e bingos.

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A elevada cobrança tributária praticada no país inviabilizava o custo de jogos e consoles importados, fato que teoricamente favoreceria a indústria brasileira de jogos eletrônicos, porém esta se enfraqueceu a tal ponto - devido à defasagem tecnológica - que em 2004 seus números eram muito baixos em relação a seu potencial de mercado, como citado anteriormente.

Para exemplificar como a defasagem tecnológica persiste na indústria brasi-leira de consoles de videogame, ainda no ano de 2012, a Tectoy comercializa os conso-les Master System e Mega Drive (AZEVEDO, 2012), similares aos lançados no Japão em 1985 e 1987, respectivamente, uma tecnologia defasada em mais de 25 anos. Além do

Descrição ImpostoImposto de Importação (II): De intenção protecionista, é um imposto fe-deral que incide sobre a entrada de produtos estrangeiros em território nacional, evitando uma concorrência desleal com produtos fabricados no Brasil.

28%

ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços): Imposto so-bre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação. Também é aplicado sobre a entrada de produto importado, seja por pes-soa física ou jurídica, mesmo quando se trata de um bem para consumo ativo ou permanente do comprador.

25%

IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados): A principal incidência é sobre mercadorias nacionais e estrangeiras que consistam na reunião de produtos, peças ou partes e da qual resulte um novo produto ou unidade autônoma.

50%

PIS (Programa de Integração Social): Pago pelas pessoas jurídicas, grosso modo incide sobre bens adquiridos para revenda.

1,65%

COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social): Tributo cobrado pela União para atender a programas sociais do governo federal.

7,6%

Total: Como os impostos incidem um sobre o outro em cascata, a conta a ser realizada deve ser 1,28*1,25*1,5*1,0165*1,076 = 2,6250096.

262%

Tabela 1 - Quanto um videogame pagava para entrar no Brasil

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Master System, o Mega Drive, existem no mercado inúmeros videogames com aparência e nomes clonados dos videogames da geração atual, porém com conteúdo totalmen-te diferente – são cópias do Nintendo, videogame lançado em 1983 no Japão, também conhecido como Nintendinho. Dentre os mais famosos clones nacionais estão o Dyna-vision, lançado em 1989 no Brasil e vendido por décadas, sendo um produto que mais recentemente foi relançado como “Wi Vision” (ambos fabricados e comercializados pela Dynacom), que é exatamente o mesmo console que o Dynavision com um visual reesti-lizado e novo nome para copiar o Wii9, seguindo a política de aparelhos chineses que imitam o nome do videogame do momento para vender seu hardware defasado (Mi Wi e Vii para copiar o Nintendo Wii; Polystation para copiar o Playstation; Play Zation 2000 para copiar o Play Station 2, dentre muitos outros). Em um setor tão competitivo quanto o dos videogames, onde um console de 5 anos já é considerado obsoleto, o mercado oficial brasileiro sobreviveu por décadas somente de clones obsoletos que muitas vezes só eram vendidos por falta de informação do consumidor ou ainda quando o usuário acabava comprando o dispositivo por engano, supondo tratar-se de tecnologia de ponta com nome e aparência similares.

Por apresentar uma indústria defasada, que não supria as necessidades de seu mercado interno e não apresentava possibilidade de importar produtos de forma ofi-cial, - estabeleceu-se no Brasil o contrabando como principal forma de comércio de jogos eletrônicos, comumente chamado de “pirataria”. Ao contrário da tendência mun-dial, no Brasil os games não tinham tanto espaço no mercado oficial, e apresentavam números surpreendentes de 94% de pirataria para consoles de jogo e de 80% para os jogos utilizados nestes consoles (UOLJOGOS, 2006B).

Dez anos antes do primeiro edital JogosBr, o Brasil era o líder isolado no merca-do de jogos eletrônicos dentro da América Latina, posto que no ano de 2004 foi ocupado pelo México, país que ainda na década de 90 isentou o setor de games, tal fato permitiu a um país com características semelhantes as do Brasil se estabelecer como um territó-rio relevante para a indústria do entretenimento eletrônico no mundo. Mesmo perden-do o posto na América Latina, na época deste primeiro edital, o Brasil possuía potencial para se tornar não apenas o maior mercado de games da América Latina, mas um dos maiores mercados do mundo, com características atraentes para os negócios, como: po-pulação acima dos cem milhões de habitantes, área geográfica extensa, PIB superior a US$ 500 milhões e uma venda anual de consoles de aproximadamente 600 mil unida-des, muitas vezes sem sequer existir uma distribuição oficial (UOLJOGOS, 2006A).

Historicamente foram poucas as reivindicações do setor de jogos junto às au-

9 Videogame de última geração da Nintendo, lançado em 2006, sendo o console mais vendido no mundo por vários anos.

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130toridades buscando uma redução das taxas de imposto. Ao contrário do que aconteceu com o cinema no Brasil, que desde seu início já realizava reivindicações “na forma de memoriais, projetos de lei, artigos, discursos, etc., dirigiam-se diretamente ao chefe da nação” e “a corporação cinematográfica teve algumas de suas demandas atendidas pelo governo por meio da tímida legislação protecionista implantada a partir de 1932” (AUTRAN, 2004). Embora não exista nenhum registro histórico de reivindicações do setor de jogos junto ao governo antes de 2004 houve nesse mesmo ano, um primeiro pleito de questões de interesse da indústria nacional de jogos junto ao governo, por par-te da recém-formada Abragames (Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos, fundada em 06 de abril de 2004). A associação surge assumindo influência sobre o edital JogosBR, em carta aberta datada de 26 de agosto de 2004, afirmando que “Na elaboração do regulamento, a ABRAGAMES auxiliou em certas questões técnicas e forneceu algumas estimativas sobre o mercado de jogos.”, embora da parte do governo não exista qualquer ligação oficial da Abragames com o edital.

Além dos fatores levantados anteriormente, a alta sazonalidade das vendas de jogos eletrônicos é um fator que dificulta a permanência de pequenas empresas no setor, visto que na média, 70% das vendas se concentram no segundo semestre, o que obriga as empresas a diversificarem sua produção, como fez a Tec-Toy, Dynacom, e outras, que investiram na área de karaokês, DVDs, MP3 players e Televisão Digital, em busca de reduzir os efeitos sazonais da área de jogos eletrônicos por meio do de-senvolvimento de produtos de maior valor agregado e menos sensíveis à sazonalidade (TECTOY, 2007).

Mesmo com preços proibitivos e uma indústria enfraquecida, o mercado de jogos no Brasil apresentava importantes mudanças, e um crescimento acima da média nacional, como citado anteriormente.

1.2. A indústria brasileira de jogos.

Fonte: Bovespa/Tec-Toy

1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

1º trimestre 10,8 % 11,6% 15,5% 15,5% 15,6% 12,2% 17,0% 20,7% 15,19%

2º trimestre 12,2 % 11,9% 10,3% 14,2% 13,9% 17,8% 19,8% 20,1% 17,43%

3º trimestre 36,6 % 33,6% 32,0% 33,7% 29,9% 29,7% 24,7% 32,9% 23,48%

4º trimestre 40,4 % 42,9% 41,3% 38,3% 36,8% 40,1% 33,5% 34,5% 43,90%

TOTAL 100,0 % 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Tabela 2 - Sazonalidade das vendas na área de jogos eletrônicos no Brasil

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Sem grande estrutura industrial na área de jogos, a produção nacional à épo-ca do edital estava focada basicamente em jogos para internet e jogos para celular10, ambos fortemente casuais e de mecânica simples, muito similares aos primeiros jogos de videogame da década de 80. Este tipo de produção tornou-se a principal produção brasileira devido ao fato de ser um produto que pode ser inteiramente desenvolvido por uma única pessoa ou por um pequeno grupo, sem carecer de uma grande estrutura já formada. Além deste fator, a rápida curva de aprendizado e o curto tempo de desenvol-vimento fortaleceram os jogos pequenos praticamente como únicos produtos desenvol-vidos no setor. Obviamente existem exceções, como os jogos Outlive (2001, Continuum Entertainment) e Erinia (2004, Ignis Games), que foram grandes projetos nacionais que tiveram extensa repercussão tanto dentro quanto fora do Brasil, porém trata-se de casos pontuais e de pouca relevância no cenário internacional.

Com um mercado totalmente tomado pelos produtos importados, uma das poucas formas que os desenvolvedores nacionais encontraram de atender ao mercado interno foi focar em outros nichos, em detrimento do mercado de consoles e de PCs: jogos para celular, para internet, advergames11 e de treinamento corporativo. De for-ma geral, o mercado nacional de jogos sobreviveu neste período com pequenos jogos promocionais como parte de campanhas publicitárias ou jogos para celular – em sua maioria ligados a produtos e marcas tradicionais, também funcionando como campa-nha publicitária, se aproveitando de um produto ou marca para vender dentro desta nova mídia; e por fim, os jogos sérios, com fins educacionais, de treinamento e de cons-cientização social. Com a concorrência direta do produto internacional de altíssima qualidade no setor de consoles e PCs, esses nichos foram umas das poucas opções que sobraram para o brasileiro dentro de seu próprio mercado, sendo que em alguns destes nichos já existia a concorrência externa, como no caso dos jogos para celular, em que alguns jogos eram importados pelas operadoras.

Com uma história de mais de 20 anos, o mercado de jogos eletrônicos no Brasil sempre foi marcado pela falta de organização e mobilização dos desenvolvedores para lutarem por seus direitos, fato que pode ser associado à situação frágil da indústria e do mercado nacional. Logo, quando as leis anteriormente citadas foram propostas, não havia quem lutasse com força suficiente para que estas beneficiassem o setor, além do fato de normalmente os negócios envolvendo jogos eletrônicos serem criados e geridos

10 Na época, os celulares eram mais limitados, anteriores à explosão dos SmartPhones, que se assemelham em muito aos computadores pessoais, com sistema operacional, personalização, instalação de aplicativos, etc, catego-ria que se popularizou com o lançamento do iPhone em 2007. Em 2004, os jogos para celular eram muito simples, tanto por funcionarem em um hardware extremamente limitado, se comparado aos PCs da época, quanto pelo fato de serem jogados utilizando as teclas de discagem do telefone.11 Advergames: games com fins publicitários ou que sejam financiados pela propaganda dentro do jogo.

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132por programadores de computador, com foco muito mais na solução de problemas téc-nicos do que na articulação política.

Desde a década de 80, os poucos veículos que expressavam as opiniões e an-seios do setor de jogos eletrônicos eram as revistas especializadas, zines12 e publicações similares que, devido à sua natureza, focavam muito mais nas questões técnicas do setor e não abordavam um público muito diferenciado a não ser os próprios imersos na área. Portanto, mesmo que surgissem reivindicações políticas nestas publicações, elas não chegavam aos políticos que faziam as leis ou às grandes massas. Como citado anteriormente, somente no dia 6 de abril de 2004 a longa jornada sem representação oficial diante do governo e das massas começa a mudar, com a fundação da Abragames, a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos, uma associação na-cional com o objetivo de promover a indústria brasileira de desenvolvimento de jogos eletrônicos.

Como o jogador brasileiro consumia praticamente só produtos piratas, a in-dústria brasileira de jogos eletrônicos tinha dificuldade de produzir conteúdo para o mercado interno. Portanto, algumas empresas buscaram o caminho contrário e come-çaram a produzir conteúdo para o mercado externo, como a Preloud, que possuía gran-de mercado na Alemanha; ou a Continuum que vendeu bem o jogo Outlive na Europa. Embora os jogos para exportação e parcerias com empresas internacionais em esquema offshore outsourcing13 sejam bons para fortalecer comercialmente a indústria, raramente eles abordam temáticas nacionais e normalmente são voltados para a cultura do país que importará o jogo.

No contexto de uma indústria fraca tentando se organizar com o surgimento da Abragames, o Governo Federal, por meio do MinC, lança seu primeiro edital na área de jogos, o JogosBR.

2. O edital JogosBR de 2004

2.1. A proposta do edital

O JogosBR 2004 foi um concurso cultural de Jogos Eletrônicos, de iniciativa do Ministério da Cultura, em parceria com o ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação da Casa Civil) e com a FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), através

12 Abreviatura de Fanzine – uma espécie de revista de produção amadora e normalmente encarada como um hobby pelos publicadores, mas que pela sua independência costuma apresentar alguns conteúdos diferenciados das grandes publicações.13 Offshoring é o modelo de realocação de processos de negócio de um país para outro. Ele inclui qualquer processo de negócio como produção, manufatura e serviços.

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da Educine (Associação Cultural Educação e Cinema) com o objetivo de estimular o de-senvolvimento de jogos eletrônicos (ou games) no mercado nacional. Em sua primeira edição, foram investidos 240 mil reais para incentivar a criação de jogos de computa-dores, consoles, celulares e outras plataformas, dinheiro distribuído entre oito projetos, sendo um total de R$30 mil para o desenvolvimento de cada demo.

Este primeiro edital foi dividido em duas etapas: uma primeira para a “Criação de Idéias Originais”, visando promover a criação de histórias para jogos atra-vés de descrição sintética do seu roteiro, concepção visual, temas, cenários, situações e personagens, aberta para qualquer pessoa ou grupo de pessoas físicas residente no Bra-sil, sem limite de idade ou qualquer outro requisito. A segunda etapa para a “Proposta de Projeto para a Produção de Jogos e Desenvolvimento de Demo Jogável” buscava fomentar a elaboração de projetos para a produção de jogos e demos jogáveis a partir de uma das Idéias Originais selecionadas na Primeira Etapa, podendo participar qualquer pessoa física acima de 18 anos residente no Brasil ou pessoa jurídica registrada no País, desde que demonstrasse capacidade técnica para a elaboração da proposta de projeto e do demo. A divisão em duas etapas causou algumas discussões e mal-estar entre os participantes, uma vez que, de início, não ficou clara a participação dos proponentes da primeira etapa no projeto da segunda etapa14.

2.2. A avaliação dos projetos.

No regulamento15 do edital JogosBR de 2004, é definido que:

A Comissão Especializada de Julgamento será composta por especia-listas e profissionais na atividade de jogos eletrônicos, designados pelo Ministério da Cultura, em conjunto com o Instituto de Tecnologia da Informação – ITI – e com a Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP.(MINC, 2004)

Na época do concurso, uma lista de nomes foi liberada na página principal do site do concurso16, com um total de 82 pessoas indicadas para compor o corpo de jura-dos. Segundo o site, estas pessoas foram escolhidas pela participação na comunidade

14 Este clima de mal-estar pode ser observado no fórum do edital JogosBr, no endereço <http://www.jogosbr.org.br/forum.php?topico=114>, onde o proponente Fred Marinho demonstra-se insatisfeito com o cumprimento do que foi acordado com a equipe desenvolvedora do projeto "Raízes do Mal", proposto por ele na primeira etapa.15 Regulamento do JogosBR 2004 disponível em: <http://www.cultura.gov.br/jogosbr/regulamento.php>, Acesso em 23 jul. 2008.16 O site www.cultura.gov.br/jogosbr/ foi severamente mudado desde 2004 e atualmente encontra-se offline. Boa parte das citações são oriundas de sites de arquivamento como o WebArchive.com e de arquivo pessoal do conte-údo on-line no ano de 2004. A lista citada pode ser conferida na seção 3.2 deste artigo.

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134de entretenimento digital no Brasil, critério vago, pois não existe um consenso geral so-bre o que é “a comunidade de entretenimento digital” e o que significa participar dela. Dentre os nomes contidos na lista, vários eram de renomados pesquisadores da área de jogos no Brasil; alguns de líderes de empresas na área de jogos; e outros nomes eram totalmente desconhecidos, uma vez que não foi divulgada a atividade profissional de cada jurado. A este corpo de jurados, foram distribuídas aleatoriamente algumas das 1066 ideias inscritas17, de forma que cada ideia fosse avaliada por três jurados diferentes e a nota final da proposta igual à média aritmética destes julgamentos. A informação de qual proposta foi julgada por quem não foi divulgada tornou-se exclusiva da “Co-missão Organizadora”.

Para o julgamento dos projetos da primeira fase, o MinC criou um site de aces-so restrito por login com um formulário, onde os jurados davam notas de 0 a 100 para os seguintes critérios:

17 Segundo o site <http://www.jogosbr.org.br/textos.php?cod=1>, acessado em 11 de nov. de 2012, houveram 1.537 ideias publicadas, das quais 1.317 eram públicas, e destas, 1.066 foram marcadas para o Concurso.

Item (a) – Jogabilidade - Peso 3

Itens que aumentam a pontuação: Itens que diminuem a pontuação:

• Capacidade do jogo em gerar, manter e estimular o interesse do usuário;

• Meios de gerar novas possibilidades de escolha ao jogador.

• Jogos que limitem demais as opções dos jogadores

• Jogos que não despertem interesse

Item (b) - Criatividade - Peso 3

Itens que aumentam a pontuação: Itens que diminuem a pontuação:

• Diversidade de recursos imaginados para o game (concepção visual, temas, cenários,

situações e entidades);• Inovação na concepção desses recursos;

• Ideias já exploradas à exaustão em jogos comerciais ou experimentais

Item (c) - Originalidade - Peso 2

Itens que aumentam a pontuação: Itens que diminuem a pontuação:

• Singularidade e/ou ineditismo da ideia no que toca a história/entidades

• Singularidade e/ou ineditismo da ideia no que toca à interface

• Singularidade e/ou ineditismo da ideia no que toca à jogabilidade

• Ideia já exploradas à exaustão em jogos comerciais ou experimentais.

Item (d) - Potencial de jogo - Peso 2

Itens que aumentam a pontuação: Itens que diminuem a pontuação:

• Utilização inovadora de modelos de interação com a interface do jogo

• Potencial comercial e mercadológico da ideia, se transformada em jogo

• Modelos de visualização e interação de alto custo e complexidade para implementação

Tabela 3 - Critérios de Avaliação dos Projetos

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Os critérios estipulados são em parte coerentes com a proposta do edital e o peso dá preferência para uma ideia original em detrimento de um projeto bem escrito, o que favoreceria o surgimento de novas ideias, conforme a proposta original do con-curso. Porém as “novas ideias” surgiram basicamente nas histórias, que muitas vezes só eram novas dentro do contexto dos jogos eletrônicos, sendo meras adaptações de livros, contos e lendas populares. Na maioria dos casos, as propostas selecionadas se-quer apresentavam inovação no gameplay, resumindo-se apenas a um remake18 de jogos populares com nova temática, conforme análise na seção 2.5.

Outro fato marcante é a avaliação de diversos elementos como “Capacidade do jogo em gerar, manter e estimular o interesse do usuário”, ou “Utilização inovado-ra de modelos de interação com a interface do jogo”, dentre outros, que só podem ser avaliados corretamente com um protótipo funcional. São critérios que se tornam muito difíceis de aplicar a uma ideia, já que vários elementos podem variar de acordo com a forma que a ideia é implementada no software. Além disso, boa parte dos projetos sequer apresenta um estudo de design de interface, muitos deles se resumem a narrar a história do que aconteceria no jogo.

2.3. O financiamento de projetos.

Além da falta de novos estilos de jogo, uma das questões mais polêmicas foi a quantidade de dinheiro destinada para a produção de “demos”. Tecnicamente, o jogo demo é produzido como uma demonstração de um produto e normalmente ele só é lançado junto com o lançamento comercial do jogo, ou seja, após a conclusão do jogo, libera-se o demo como plataforma publicitária de um produto, cuja produção está con-sumada, e está pronto para ser vendido. Um jogo demo normalmente é produzido a partir do jogo completo, reduzindo o número de funcionalidades e liberando apenas parte do jogo para que os usuários possam avaliar se é válido comprá-lo ou não.

No campo dos jogos eletrônicos existe também outra categoria de jogos, os cha-

18 Remake: Reconstrução de um jogo, sem acrescentar nada ou acrescentando poucos elementos novos ao gameplay.

Item (e) - Apresentação e integralidade do projeto de idéia - Peso 1

Itens que aumentam a pontuação: Itens que diminuem a pontuação:

• Coesão e concisão do texto da ideia• Consistência da redação

• Nível de pesquisa• Integralidade da ideia (início,

desenvolvimento e fim)

• Ideias descritas de maneira redundante• Projeto com tópicos obscuros ou muito

vagos

Fonte: MinC

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136mados “protótipos”, que são versões experimentais criadas no início da produção, com a finalidade de avaliar a viabilidade do projeto, fazer experimentações com o gameplay, estudos de interface, etc., com o projeto ainda aberto para novas ideias, sujeito às limita-ções e novas opções dos resultados dos testes do protótipo. Obviamente os custos para a produção de um demo e de um protótipo são bem diferentes, uma vez que o demo encontra-se no final do processo de produção de um jogo e o protótipo encontra-se no início do processo.

Atualmente um grande jogo pode chegar a custar U$100 milhões (como o GTA4, citado anteriormente) e mesmo um jogo de pequeno ou médio porte teria um custo muito superior ao oferecido pelo governo. Ao observar que o valor oferecido para o de-senvolvimento de um demo seria de R$30 mil, muitas pessoas acabaram desistindo de participar do concurso19, por se tornar algo inviável em se tratando de um jogo demo. Porém, os resultados do concurso mostram que o mais provável é que houve uma fa-lha de comunicação e o que era esperado para o concurso não eram jogos demo, e sim, protótipos de jogo, que têm como finalidade, muitas vezes, conseguir o financiamento para o início da produção, fim este previsto no edital.

Ao contrário do jogo demo, que tem de funcionar perfeitamente, já livre de defeitos, o protótipo não é uma versão estável do jogo, com diversos elementos inaca-bados e problemas graves de compatibilidade, muitas vezes funcionando apenas em máquinas específicas. O que se pôde observar é que os jogos “demo” entregues ao final do edital, em sua maioria, não apresentavam estabilidade, e nem coerência com a do-cumentação de usuário (quando havia documentação de usuário, pois na maioria esta não existe), continham elementos inacabados dentro do jogo e diversos outras caracte-rísticas que os aproximam muito mais de protótipos do que de jogos demo.20 Aparen-temente os organizadores do concurso não estavam acostumados com a linguagem do meio dos jogos e o termo “jogo demo” foi utilizado de forma equivocada, mesmo este se tratando do principal tema do concurso.

2.4. O modelo de desenvolvimento

Uma questão que deve ser levantada é a coerência da opção de modelo de de-senvolvimento sugerido pelo edital com a estrutura industrial nacional. Para o Brasil e boa parte do mundo, os EUA são uma grande referência no campo de desenvolvimento

19 Segundo o site <http://www.jogosbr.org.br/textos.php?cod=1>, acessado em 11 de nov. de 2012, houveram 3.911 usuários cadastrados e apenas 1.066 idéias submetidas para o concurso, o que reflete um alto grau de desistência de usuários que chegaram a se cadastrar e preencher os formulários, uma vez que foram feitas 4.800 colaborações.20 Todas estas características citadas serão detalhadas em cada projeto na seção 2.5.

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de jogos eletrônicos, uma vez que este país apresenta forte estrutura industrial no setor de games e longa experiência com o desenvolvimento de jogos, sendo o berço desta atividade.

Na estrutura tradicional de indústria de jogos eletrônicos, tendo como referên-cia o mercado norte-americano, existe o papel do Game Designer, que é a pessoa respon-sável pela criação do conceito do jogo, interface, jogabilidade, regras, especificações, dentre outras atividades, sendo basicamente a pessoa que define o que o jogo é e como ele vai funcionar. Por se tratar do responsável por escrever a especificação do jogo, o Game Designer tem de ter conhecimento tecnológico para adequar sua proposta de jogo às possibilidades técnicas. Nem todos os Game Designers possuem formação técnica, porém existe uma relação estreita entre a criação do jogo e a tecnologia empregada nes-te. Muitos Game Designers não possuem sequer a opção de trabalhar com liberdade na proposta do jogo, tendo de elaborar uma proposta de projeto de jogo baseada na tecno-logia disponível na empresa que o contratou. Atualmente, no mercado existem diversos jogos que reutilizam tecnologias preexistentes e poucos lançamentos realmente inovam utilizando uma tecnologia desconhecida e desenvolvida exclusivamente para eles. Este tipo de projeto força o Game Designer a optar por uma tecnologia ou outra para escrever seu projeto, porém podendo sugerir modificações para os engenheiros e cientistas em alguns casos, mas sempre ciente do contexto tecnológico.

Porém diferente da tendência mundial, o edital procurou separar a concepção do jogo de qualquer ideia tecnológica, chegando a circular entre os jurados o seguinte conselho:

Escrevo para colocar que, como já esperávamos, muitos dos autores não têm noção de game design. Mencionar a tecnologia no Game Design, lembro cá, nem é tão importante. A fase I é a concepção da idéia, cer-to? Idéias de tecnologia são diferentes de documentos de game design. (Trecho de um post do fórum dos jurados - arquivo pessoal, autor omi-tido propositalmente).

Certamente o GDD21 não precisa conter informações técnicas, mas é impensá-vel um jogo ser concebido sem noções da tecnologia que dará suporte ao funcionamen-to deste. O modelo de desenvolvimento empregado em todo o mundo exige que o Game Designer faça algo que possa ser implementado, caso contrário, outra pessoa terá de fazer o papel deste: analisar uma proposta e buscar soluções tecnológicas para esta. No edital JogosBr, o participante da segunda etapa teve que ocupar este papel, assumindo a tarefa do detalhamento técnico, muitas vezes tendo de modificar a proposta original,

21 GDD: Game Design Document – Documento que descreve o jogo em cada detalhe.

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138caso esta estivesse fora dos padrões tecnológicos disponíveis.Historicamente, no Brasil, até a data do edital, a situação do Game Designer cos-

tumava ser ainda mais distante do contexto do concurso. Este posto normalmente era ocupado por alguém de formação exclusivamente tecnológica, na maioria das vezes um programador. Pela falta de formação artística do programador, poucos foram os casos em que os resultados brasileiros foram satisfatórios. Por outro lado, as profis-sões que trabalham com ênfase artística acabam não possuindo profissionais com base tecnológica, deixando uma brecha no mercado. Como na época não existiam cursos que formassem profissionais para a área, o que acontecia com grande frequência era o programador tentar se tornar um Game Designer, já que possuía uma formação técnica. Raramente outros profissionais sem formação técnica se aventuravam neste campo. No Brasil, alguns anos depois do edital é que foram surgir as primeiras universidades com cursos voltados para a área de jogos, formando game designers, programadores, artistas e diversos outros profissionais que até então não possuíam formação oficial, e que atua-vam no campo mais por hobby do que por profissionalismo.

Em se tratando de um concurso de ideias originais, este edital conseguiu atin-gir um nível muito raso de inovação, principalmente pela falta de originalidade no gameplay, área em que somente um profissional com experiência artística e tecnológi-ca consegue atuar. Em vários casos, os jogos apresentados – e aprovados – poderiam ser plenamente implementados com simples modificações em jogos já existentes – um MOD de jogo, muito mais barato de se executar, já que toda a mecânica de jogo era pra-ticamente a mesma.

Dentro da realidade do mercado brasileiro, seria muito mais importante que o concurso buscasse premiar projetos que tivessem apelo comercial, ao invés de temáticas originais, uma vez que um jogo idêntico a um preexistente, porém com temática nacio-nal, tem pouco ou quase nenhum apelo comercial. Após o concurso, houve discussões indicando que uma proposta mais coerente para este tipo de edital seria a de criação de protótipos que pudessem servir de propaganda para que a ideia do jogo fosse vendida para desenvolvedores estruturados e com capital disponível para investir na produção (inclusive empresas estrangeiras). Assim, o governo faria o papel de incubadora de em-presas de criação, uma vez que na época o mercado nacional não apresentava estrutura para desenvolver projetos de qualidade e tamanho similares aos internacionais sem que houvesse mudanças nas estruturas de investimento financeiro.

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2.5. Uma análise dos jogos selecionados

Nesta seção serão analisados os jogos selecionados pela comissão julgadora. Busca-se realizar uma análise imparcial dos projetos entregues, tendo como único ma-terial para análise os próprios jogos disponibilizados no site da Abragames22.

2.5.1. Ayri - Uma Lenda Amazônica

Descrição: A estória de Ayri se passa em uma tribo fictícia da Amazô-nia, mas baseada nos costumes e rituais de tribos reais. Nosso jovem guerreiro vive grandes aventuras para salvar o seu povo e vai se depa-rar com outras tribos fictícias e com a lendária tribo das Icamiabas, as mulheres guerreiras, também conhecidas como Amazonas (ABRAGA-MES, 2008-A)

O Projeto foi coordenado por Sylker Teles da Silva, da Outline Interactive e uti-lizou um motor de jogo pronto para começar seu projeto. O motor de jogo comprado foi o Torque Game Engine23, um motor gráfico 3D bastante poderoso para a época, com ferramentas diversas inclusas, desde geradores algorítmicos de terrenos, sistemas de iluminação, suporte a vários formatos de animação, incluindo suporte a ossos e até linguagem de script pronta. Com um motor pronto, os programadores precisam progra-mar muito menos, sendo a maior parte do trabalho o da equipe de arte, com a criação de personagens, objetos, cenários e animações.

O jogo apresenta um visual cartoon com modelos 3D utilizando cell shading, obtendo resultados gráficos compatíveis com o padrão de mercado da época, porém

22 Os jogos ficavam disponíveis no endereço: <http://www.abragames.org/JogosBR.html>, porém foram retirados do ar. Eles foram baixados na época e guardados em arquivo pessoal, o que permitiu este trabalho.23 Na época Torque era um motor pago, porém se tornou gratuito e open-source em 2012 – disponível em: <http://www.garagegames.com/products/torque/tge/>. Acesso em 23 jul. 2008.

Figura 1 - Ayri – Início do jogo.

Figura 2 - Ayri – Problemas ao trocar a resolução do vídeo.

Figura 3 - Ayri – Uma Oca, onde o jogo travava constantemente.

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140o sistema não se mostrou muito estável, com problemas ao escolher resoluções de tela mais altas ou o congelamento do aplicativo, principalmente dentro das ocas.

A jogabilidade é fortemente prejudicada pela fraca resposta da personagem aos controles, que muitas vezes não obedece às teclas pressionadas. O jogo torna-se cansati-vo quando o usuário tem de andar de um lado da floresta para o outro, sem opções do que fazer pelo caminho. Resta ao jogador apenas esperar a personagem andar, enquan-to segura a tecla que a mantém andando.

Quanto à ideia, o tema foi bem abordado e conseguiu quebrar o clima pesado do tema de espíritos e mortes com um visual cartunesco e músicas suaves, - embora os elementos visuais não sejam totalmente inovadores - o uso das músicas dá uma sen-sação diferente ao jogador. O gameplay não apresenta novidades, sendo o estilo básico de andar, matar monstrinhos e cumprir tarefas. A abordagem da temática indígena aparenta ter embasamento de pesquisa, com várias referências a nomes e histórias da cultura dos índios brasileiros.

O jogo poderia apresentar algum potencial mercadológico se a implementação fosse melhor executada, uma vez que a temática do índio por si só poderia atrair algum público pela curiosidade.

2.5.2. Capoeira Experience

Descrição: Capoeira Experience é uma simulação da jornada por auto--conhecimento de um capoeirista. Evidentemente o jogador viaja por cenas populares interagindo com costumes e estereótipos brasileiros, mas a jornada consiste principalmente de enfrentar o próprio corpo. Apesar da ação constante e ritmada, Capoeira Experience não é sobre repetições e rotinas - cada movimento leva a luta para uma nova situa-ção. Muito mais amplo que no xadrez, o universo de Capoeira Expe-rience é sobre o sentido e elo entre movimentos. Aprenda os rudimen-tos e parta pra arte. Use a criatividade para dominar o adversário e a platéia.(ABRAGAMES, 2008-C)

Figura 4 - Capoeira – Tela de abertura do jogo.

Figura 5 - Capoeira – Capoeira na academia de capoeira.

Figura 6 - Capoeira – Capoeira na Ilha de Açores.

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O projeto foi coordenado por Andre Ivankio Hauer Ploszaj, e também utilizou um motor pronto, o Quest3D24, voltado para a criação de aplicações 3D em tempo real, não apenas para jogos, mas para visualização de produtos, demonstrações de arquite-tura, treinamentos, produção de filmes e programas de televisão.

Os primeiros gráficos de Capoeira Experience impressionam com belíssimas iluminações de ambientes, porém ao entrar no jogo, os personagens se encontram ina-cabados, sem textura, com iluminação deficiente e com movimentos não satisfatórios. O demo apresenta apenas a possibilidade de jogar na opção “Roda Livre”, com possi-bilidade de jogar apenas com dois jogadores, embora um jogador sozinho não consiga testar o jogo.

O jogo apresenta pouquíssimas opções e não consegue manter o jogador esti-mulado por muito tempo, e torna-se maçante logo na primeira jogada. O único fator fa-vorável do jogo é a criatividade ao adaptar o esporte para um jogo, porém a jogabilidade é muito fraca e o jogo não possui nenhum outro atrativo além do nome e do visual dos cenários. Uma pesquisa melhor poderia levantar mais opções de passos e pesquisar melhor os elementos presentes na capoeira, uma vez que esta foi muito mal representa-da no jogo, prejudicando qualquer possibilidade de comercializá-lo.

2.5.3. Cim-itério

Descrição: Simulação muito bem humorada, ao estilo “Sim City”, onde o jogador deve administrar um... cemitério! (ABRAGAMES, 2008-C)

O projeto foi coordenado por Wagner Gomes Carvalho e como a própria descri-ção oficial já diz, não passa de um clone dos jogos de simulação já existentes. Este jogo apresenta apenas algumas poucas opções de construção, dois tipos de plantas e a opção

24 Quest3D. Disponível em: <www.quest3d.com>. Acesso em 22 jul. 2008.

Figura 7 - Cim-itério - Visão superior

Figura 8 - Cim-itério – Personagem cochilando

Figura 9 - Cim-itério – Cemitério em sua normalidade

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142de adicionar três tipos de funcionários. Embora o visual remeta à série “The Sims”, as funcionalidades de “Cim-itério” estão muito aquém das da série e não consegue manter alguém que conheça qualquer outro jogo de simulação entretido, principalmente pela quantidade reduzida de opções, e pela –não menos importante –instabilidade do jogo, que costuma congelar com frequência.

Quanto à criatividade e bom humor destacados na descrição original, em pou-cos momentos o bom humor aparece e não é o suficiente para entreter um usuário, pois o jogo não oferece muitas opções do que fazer. Ele realmente não atingiu um nível mí-nimo de jogabilidade e segundo o site da própria produtora25, eles preferem chamá-lo de um “conceito” ou um “estudo” do que, de um jogo.

Com praticamente nenhuma inovação, este jogo poderia ser produzido como uma extensão para o “The Sims” e ficaria muito melhor.

Não aborda nenhum tema nacional e não apresenta qualquer potencial de comercialização.

2.5.4. Incorporated

Descrição: Incorporated é um simulador empresarial onde o jogador cria um personagem que começa como estagiário numa grande empre-sa. O personagem do jogador progride em sua carreira de acordo com seu desempenho profissional – medido pelos relacionamentos com os colegas e pelo rápido cumprimento dos trabalhos. Vive desde momen-tos de pressão a situações cômicas do dia-a-dia empresarial. O objetivo é se aposentar na Presidência da empresa. Bons relacionamentos me-lhoram sua reputação no escritório e ajuda na competição pelas pro-moções. Já os trabalhos são de vários tipos, e variam conforme o setor da empresa onde o personagem trabalha. Elas são realizadas em maior

25 No site da Produtora Greenland, no endereço <http://www.greenlandstudios.com>, dentro da seção produtos existe um link chamado "Lab", que tem como cabeçalho o texto "Aqui apresentamos alguns jogos os quais pode-mos chamar de 'conceito' ou 'estudo'.", e nesta categoria se encontra o jogo "CIM-ITÉRIO". Acesso em 15 nov. 2012.

Figura 10 - Incorporated – Conversando

Figura 11 - Incorporated – Preparando um trabalho

Figura 12 - Incorporated – Entregando um trabalho

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ou menor tempo de acordo com os atributos dos personagens. Na In-formática, por exemplo, os trabalhos de manutenção de computadores são realizados rapidamente por personagens com alto atributo Técnica. (ABRAGAMES, 2008-C)

Projeto coordenado por Tiago Pinheiro Teixeira, da Interama, que utilizou o motor de jogo Truevision3D26. O motor proporcionou ótimos gráficos ao jogo, bem pró-ximos do jogo “The Sims 2”. Incorporated copia o estilo da série “The Sims”, porém se passa em uma grande empresa. Mais uma vez, algo que poderia ser produzido como uma expansão ou um MOD de um jogo já existente, porém Incorporated consegue man-ter e estimular o interesse do usuário oferecendo várias possibilidades de escolha. Em-bora o estilo já tenha sido exaustivamente explorado no mercado (somente para o jogo “The Sims 2” já existem mais de 10 expansões com temas diversos) e não apresente te-mática nacional, Incorporated consegue manter um bom nível técnico e boa jogabilidade. A saturação do mercado e a falta de originalidade no gameplay pode ser um problema para a comercialização de um produto como este.

2.5.5. Iracema Aventura

Descrição: Iracema Aventura é uma adaptação livre da obra Iracema de José de Alencar para o formato de jogo eletrônico onde jogador irá vi-venciar os fatos que marcaram a colonização do Ceará. (ABRAGAMES, 2008-C)

O projeto foi coordenado por Odair Gaspar e também utilizou a “Torque Game Engine” (mesmo motor de jogo utilizado no projeto Ayri). A liberdade de mobilidade e o tamanho do mapa surpreendem e conseguem manter o jogador entretido em um primeiro momento, porém após muito tempo andando em busca do objetivo o jogador

26 Truevision3D: Disponível em < http://www.truevision3d.com >. Acesso em 23 jul. 2008.

Figura 13 - Iracema – Sobre um monte.

Figura 14 - Iracema – Correndo no rio.

Figura 15 - Iracema – Andando na tribo.

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144pode se desestimular e perder o interesse.As missões não chegam a ser muito criativas, porém a mecânica do jogo con-

segue entreter o jogador nessa versão demo. Em uma versão completa, uma pesquisa mais abrangente da cultura indígena poderia dar mais profundidade ao jogo e conferir maior potencial comercial, uma vez que o jogo já apresenta alguma condição de ser comercializado se for finalizado.

2.5.6. Nevrose

Descrição: Em meio a uma serra na caatinga, a seu centro existe uma imensa pedra furada com inscrições de mais de 10 mil anos que des-crevem um ritual perdido sobre a utilização das forças das águas. Um homem, solitário, conseguiu decifrar o segredo das águas e passa en-tão a buscar por seguidores para construir uma cidade preparada para a execução do ritual. Milhares são as pessoas que seguem tal homem. Para as autoridades locais a cidade surge como uma ameaça a ser elimi-nada. Começa então uma guerra sem precedentes. Nosso protagonista é um dos guerreiros de elite incumbidos da defesa da cidade e do pre-paro das condições para realização da profecia; O sertão vai virar mar... (ABRAGAMES, 2008-C)

O projeto foi coordenado por Rodrigo Queiróz de Oliveira, da Gamion, e foi o único projeto a utilizar um motor de jogo Open-source, o Blender Game Engine27, um motor de jogo 3D programável em python que além de ser gratuito possui código-fonte disponível para modificações. O jogo mantém a mesma estrutura dos jogos de tiro em primeira pessoa e não tem cenários muito grandes. Como um jogo FPS (First-Person Shooter), a única inovação é a troca de roupa dos personagens por roupas características do cangaço, já que nem mesmo o cenário é típico do agreste nordestino, e se caracteriza basicamente por um conglomerado de casas que formam corredores no mesmo estilo

27 Blender Game Engine: Disponível em <http://www.blender.org>. Acesso em 23 jul. 2008.

Figura 16 - Nevrose – Praça central

Figura 17 - Nevrose – Soldado

Figura 18 - Nevrose - Bug

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dos primeiros FPS s. Uma pesquisa da temática cultural poderia dar mais consistência e extensão ao jogo, com o acréscimo de civis e animais, além da mudança do cenário. Por se tratar de mais um jogo de primeira pessoa sem nenhum diferencial a não ser a roupagem, o potencial comercial do jogo é praticamente nulo.

2.5.7. Raízes do Mal

Descrição: Uma tradução mal feita... Uma civilização antiga, que deu origem aos nossos índios... E um mal tão antigo quanto o tempo está livre. Experimente o primeiro RPG com aventura interativa, passada nas florestas brasileiras. (ABRAGAMES, 2008-C)

O projeto foi coordenado por Marcos Cruz Alves, da Ignis Entretenimento e apresenta bons gráficos e boa jogabilidade, mantendo o jogador interessado e estimu-lado, porém tornando-se cansativo quando é necessário atravessar grandes áreas do mapa, algo normal em jogos de RPG. Em alguns lugares é possível encontrar pequenos defeitos e objetos inacabados, como na Figura 20, onde existem estátuas sem textura, porém no geral a arte do jogo é muito bem feita.

Em alguns lugares surgem mensagens que limitam a atuação do jogador de forma primária, como na figura 20, onde está escrito “Uma força além do seu controle bloqueia o caminho...Talvez um poderoso amuleto possa ajudá-lo a atravessar”. Além disso, pequenos defeitos estão presentes, como na figura 21, onde o personagem fica pa-rado sobre a fogueira sem tomar qualquer dano, ou nas conversas com os personagens controlados pelo computador, que ocorrem várias vezes da mesma forma, independen-te das ações realizadas pelo jogador - defeitos que com certeza seriam corrigidos para o lançamento de uma versão completa. Embora o estilo de jogo não apresente nenhuma novidade no gameplay, a temática foi muito bem adaptada e “Raízes do mal” tem bom potencial comercial, além de possuir boa quantidade de elementos da cultura indígena, o que pode chamar atenção.

Figura 19 - Raízes do Mal - Personagem na floresta

Figura 20 - Raízes do Mal - Objetos inacabados e mensagem

Figura 21 - Raízes do Mal - Personagem sobre a fogueira

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1462.5.8. Sandboard Brasil

Descrição: Sandboard Brasil é o jogo eletrônico do esporte radical de descer dunas com uma prancha semelhante a um skate. O objetivo principal é descer dunas e colinas de areia, competindo com outros ‘atletas’ em diversas categorias de manobras diferentes, baseadas no esporte oficial. (ABRAGAMES, 2008-C)

O projeto Sandboard Brasil foi coordenado por Jorge Manuel Vitória Caetano Jr., da Okio Entretenimento, e também utiliza o motor pronto Quest3D (Utilizado no Capoeira Experience). O jogo busca retratar o esporte praticado nas dunas nordestinas conhecido como Sandboard, num estilo de jogo igual aos jogos de snowboard, sem ne-nhum elemento de gameplay novo, mudando a roupagem das terras frias para as praias nordestinas. O jogo é estimulante e consegue manter o interesse dos usuários, com bons gráficos, músicas cheias de energia e animações de personagens muito bem feitas. O jogo dá duas opções de estilo de jogo, além de várias opções de manobra, garantindo diversão para o usuário por um bom tempo. Embora tenha como forte concorrente os jogos internacionais, como Tony Hawk Pro Skater, o game extrapola nos visuais e poderia encontrar seu espaço no mercado pela competência e visual diferente.

3. Análise dos resultados

3.1. Os prazos

Pelo regulamento do edital, cada um dos vencedores deveria desenvolver o projeto completo de produção de jogo eletrônico e do demo jogável, com no mínimo duas fases, no prazo máximo e improrrogável de 8 (oito) meses. Desde que foram di-vulgados os projetos vencedores não houve muitas notícias, sendo que o prazo de oito

Figura 22 - Raízes do Mal - Personagem na floresta

Figura 23 - Raízes do Mal - Objetos inacabados e mensagem

Figura 24 - Raízes do Mal - Personagem sobre a fogueira

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meses acabou e após mais de quatro anos os projetos ainda não haviam sido disponi-bilizados. Somente no dia 25/06/2008 a Abragames disponibilizou para download em seu site os jogos premiados nas primeiras edições do concurso JogosBR. Muitos foram os questionamentos feitos ao MinC, Abragames e à Educine a respeito do resultado do edital, a sua maioria por e-mail, havendo também relatos de pessoas que ligaram ou conversaram pessoalmente buscando respostas, porém estes nunca se pronunciaram sobre o assunto. A única notícia relacionada, durante estes mais de quatro anos sem resposta, foi publicada no site do concurso JogosBR, em 26/04/2006, afirmava que os projetos já estavam sendo avaliados, porém o acesso do público aos jogos só se deu em 25 de junho de 2008.

Pela 10ª cláusula do contrato firmado entre os vencedores e a Educine:

A não entrega dos demos, no prazo previsto (8 meses), obrigará o res-ponsável legal do projeto perante à EDUCINE, a devolver o valor inte-gral de R$ 30 000,00 (trinta mil reais), à EDUCINE, e ela transferir este valor aos selecionados em seqüência dos lugares 9 a 12 pela ordem da classificação. (WEBARCHIVE, 2004C)

Sendo assim, ou os contratos foram renegociados sem que a população ficas-se sabendo, ou os contratos não foram honrados. Obviamente o desenvolvimento de um game está sujeito a problemas técnicos e seria justo haver um tempo adicional caso ocorresse algum problema, porém caso isto acontecesse, a população que está pagando para que estes jogos sejam desenvolvidos tem o direito de saber o que está acontecendo e acompanhar o procedimento adotado pelos organizadores do edital com total trans-parência. Como o edital previa o acesso da população aos jogos gerados por meio deste edital, faltaram no regulamento outros prazos, como o prazo para a liberação dos jogos para o público, posto que existia apenas uma data de entrega para o MinC.

3.2. A participação dos jurados

Uma questão delicada e que deve ser sempre abordada com sensatez é a seleção dos projetos em um concurso como este. Como é de se esperar em um edital públi-co, as etapas devem ser realizadas com toda transparência possível, divulgando quem fará parte das comissões de avaliação e quais critérios serão utilizados para selecionar os projetos. No caso deste edital, uma lista da comissão julgadora da primeira etapa foi divulgada no site do concurso, porém foi retirada após a segunda etapa e só pôde ser utilizada como referência nesta pesquisa graças ao arquivamento do site, tanto de forma pessoal (salvando o site no computador na época) como por meio de sites de ar-

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148quivamento, como o WebArchive28. A lista se encontrava no site do edital no dia 09 de dezembro de 2004 como se segue:

A Comissão Julgadora foi formada e concluiu os trabalhos de avalia-ção. Abaixo segue a lista dos membros da Comissão Julgadora (em or-dem alfabética):Alexandre Cabral; Alexandre Carvalho; Alexandre Fernandes; Ale-xandre Machado; André Araújo; André Battaiola; André Faure; An-dré Gontijo Penha; Andréa Midori Simão; Angelo Moscozo Silveira; Araken Leão; Ariel Gomide Foina; Augusto Bulow; Bertrand Caudron; César Augusto Barbado; Caio Mariano; Camila Ohara Tanabe; Caro-lina Agabiti; Cauê Ueda; Christopher Kastensmidt; Claudio Campelo Batistuzzo; Daniel Pádua; Danilo BecharaDenis Zucherato; Eduardo Benaim; Eduardo Trivella; Elton Mattos; Emiliano de Castro; Esteban Clua Gonzalez; Esther Hambúrguer; Fabio Bernardes; Fábio Binder; Fa-bio Santana; Fernanda Cianciarullo Dias; Fernanda Cristiane Oliveira; Fernando Steler; Gabriella Campedelli; Geber Ramalho; Gilson Sch-wartz; Giuliano Schiavon; Jacques Brancher; Jeferson Valadares; João Carlos Massarolo; Jocelyn Auricchio; Leandro Jardim; Lilian Starobi-nas; Luciano César Dantas; Marcelo Marcatti; Marcelo Matas; Marce-lo Walter; Márcio Carvalho; Márcio Corso; Marcos Augusto Takeda; Marcos Cardoso; Marcos Cuzziol; Maria Cândida de Almeida Castro; Mauricio Martins; Murilo Junior; Odair Gaspar; Pablo Miyazawa; Pau-lo Henrique Ferreira; Paulo Mattos; Paulo Morelli; Rafael Dolzan; Ra-quel Ravanini; Reinaldo Normand; Renata Gomes; Renato Degiovani; Rodrigo Dal’Asta; Rodrigo Daniel Souza; Romero Tori; Ronny Marino-to; Roseli Lopes; Samara D’Sá Benevides Werner; Scilla Costa; Sérgio Mindlin; Sunami Chun; Tarquinio Teles; Thelma Guedes; Théo Azeve-do; Vicente Gosciola; Wagner Carvalho; Itamar Alves do Santos. (WE-BARCHIVE, 2004A)

A comissão julgadora da primeira etapa esteve envolvida na avaliação dos projetos de “ideias originais”, utilizando os critérios expostos na tabela 3, na seção 2.2. Já na segunda etapa do edital, a lista dos jurados foi divulgada na internet, sendo encontrada no site do edital no dia 09 de dezembro de 2004 como se segue:

Abaixo segue a lista dos membros da Comissão Julgadora. Emiliano de Castro (Abragames - SP), Newton Cannito (Educine - SP), Alexandre Cabral (FINEP - RJ), Sunami Chun (Monkey - SP), Gustavo Goedert (Southlogic Studios - RS), Christian Lykawka (Southlogic Studios - RS), Romero Tori (USP / Senac - SP) e Simone de Lima (Coordenação - SP). (WEBARCHIVE, 2004B)

Sendo assim, a comissão julgadora que efetivamente avaliou os projetos da se-gunda etapa é diferente da que avaliou a primeira etapa, embora alguns dos nomes

28 WebArchive: <http://web.archive.org>. Visitado em 23 jul. 2008.

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presentes na segunda também se encontrem na equipe da primeira etapa. Um fato curioso é que vários dos jurados da primeira etapa participaram como inscritos no edital e infelizmente o regulamento do edital não indeferia a participação dos próprios jurados ou dos organizadores, como é de costume em qualquer concurso público. O indeferimento de organizadores e participantes da organização do próprio concurso é uma ferramenta para evitar que pela proximidade de relacionamento, os resultados sejam afetados e não sejam parciais.

Na edição de 2004 do edital JogosBR houve a participação dos membros da “comissão julgadora da primeira etapa” como inscritos no concurso. Estes jurados da primeira etapa foram selecionados para receber o prêmio em dinheiro da segunda eta-pa, sendo eles: Odair Gaspar da Perceptum, Wagner Gomes Carvalho da Greenland Studios, e a Ignis Entretenimento, cujo presidente é César Augusto Barbado29. Todos os três nomes citados acima foram jurados na primeira etapa do edital, totalizando ao menos 3/8 dos projetos selecionados, ou 37,5%.

Até onde se sabe ninguém entrou com um recurso contra os resultados finais e os projetos foram concluídos conforme os relatos anteriores. Fatos como estes podem levantar suspeitas a respeito da postura ética dos organizadores de um concurso públi-co e devem ser evitados.

4. Considerações finais

Os jogos eletrônicos têm se tornado uma mídia de extrema importância no ce-nário mundial e iniciativas de incentivo à produção de jogos eletrônicos no Brasil por parte do Governo Federal são extremamente importantes para que nossa indústria se consolide e tenha capacidade de competir no mercado globalizado.

Sendo o edital JogosBr de 2004 a primeira movimentação do governo brasileiro para intervir no setor de jogos na tentativa de ajudá-lo a crescer, precisamos refletir muito mais sobre este marco e suas implicações, sobre o contexto histórico, social e econômico, sobre o reconhecimento da indústria de jogos perante a sociedade. Como apresentado, este edital representa muito sobre o mercado de jogos eletrônicos no Bra-sil, pois não apenas indica a necessidade de investimento no setor, mas principalmente expõe os diversos dilemas econômicos do mercado brasileiro, que remontam à época da reserva de mercado e que ecoam até hoje nas estruturas da sociedade. Por meio da lente do contexto histórico e social podemos compreender eventos relevantes para a economia, observando-os com muito mais clareza, facilitando a compreensão dos

29 Informação encontrada no site <http://www.lavca.org/lavca/allpress.nsf/pages/1063>. Acesso em 23 jul. 2008

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150rumos que este setor tem tomado nos últimos anos e que poderá tomar em tempos vindouros. Sendo assim, esta pesquisa será continuada em outros artigos, em que serão analisados os editais posteriores ao JogosBr de 2004 e o panorama geral do mercado de jogos eletrônicos no Brasil e no mundo.

A partir desta perspectiva, o fato de apontar problemas e falhas no edital não deve ser encarado como uma tentativa de desacreditar as entidades organizadoras, ou apenas como um ato de protesto vazio, mas principalmente como uma chamada de atenção para estes problemas, para que eles não se repitam, para que possamos apren-der com a história e possamos olhar para um futuro com os olhos de quem aprendeu e cresceu com os erros. Sendo assim, as entidades organizadoras destes editais devem buscar a total transparência, evitando situações questionáveis, para que todos tenham iguais chances de competir por um incentivo que seja coerente com o cenário econômi-co e social.

O fato de ter ocorrido este primeiro edital já pode ser considerado um primeiro passo para o crescimento do setor, visto que o governo começa a dar importância para os games, como pode ser observado no discurso do então secretário do Audiovisual do MinC:

Os games são a síntese revolucionária das novas tecnologias com a imaginação, que é o bem maior do ser humano. É um passo além do cinema e da televisão. Estamos falando de uma arte lúdica, eletrônica, interativa; uma avançada expressão humana no que se refere ao lazer, à educação, ao desenvolvimento do raciocínio e da percepção sensorial (SENNA, 2006)

Com as atenções voltadas para o setor dos jogos, a sociedade deve então lutar para que as leis sejam mudadas, para que existam mecanismos de incentivo duradou-ros, como incentivos fiscais para o setor, e não apenas um concurso cultural esporádico de tempos em tempos, pois isso não será o suficiente para que o setor de estruture e volte a ocupar o cargo que chegou a ocupar, quando era o líder isolado no mercado de jogos eletrônicos dentro da América Latina, ou ainda muito mais.

5. Bibliografia

AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Campinas: tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Artes da UNICAMP, 2004. p. 81 e 83.

FURTADO, Celso. Economic development of Latin America. Cambridge. Cambridge University Press. 1970.

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TIGRE, Paulo Bastos. Indústria brasileira de computadores; perspectivas até os anos 90. Rio de Janeiro: Campus: IMPES / IPEA, 1987.

TIGRE, Paulo Bastos. Liberalização e Capacitação Tecnológica: O Caso da Informática Pós-Reserva de Mercado no Brasil. IEI-UFRJ, 1993.

5.1. Sitegrafia

ABRAGAMES, Pesquisa - A Indústria de Desenvolvimento de Jogos

Eletrônicos no Brasil. 2005. Disponível em: <http://www.old.pernambuco.

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rEviSta gEminiS ano 3 - n. 2 | P. 154 - 164

altErnatE rEality gamES E mErcado: o caSo WHy So SEriouS?

gabriEl coSta corrEiaMestrando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Membro do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS).E-mail: [email protected]

dario mESquitaMestre em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Membro do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS).Professor do Centro Universitário Barão de Mauá, em Ribeirão Preto-SP. E-mail: [email protected]

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rESumo

A indústria cinematográfica vem passando por processos de transformação, associados às transforma-ções nos modos de produção e consumo do capitalismo contemporâneo, com a formação de grandes conglomerados globais. O trabalho proposto pretende investigar o impacto desses processos na produ-ção cinematográfica brasileira do novo século, mostrando exemplos em que a ação local existe não como afirmação da identidade local, mas apenas como estratégia de consolidação do global no local. Para tan-to, examinaremos como, no caso brasileiro, a partir de meados dos anos noventa, a crescente presença dos conglomerados globais na produção e distribuição de conteúdos cinematográficos brasileiros está calcada tanto no apoio de uma política estatal (o Art. 3º da Lei do Audiovisual) quanto na aliança com o maior grupo de mídia local (a criação da Globo Filmes).

Palavras-Chave: Indústria Cinematográfica; Política cinematográfica; Lei do Audiovisual; Globo Filmes

abStract

This article aims to analyze the close relationship between alternate reality games (ARGs) and the glo-bal marker. This new type of expression was born from marketing campaigns for media conglomerate products; and has been always associated with these multinationals economic power. This paper will take as a study the case “Why so Serious” – an ARG made to be part of the “Dark Knight (Christopher Nolan, 2008)” movie promotional campaign and will try to testify the an idea made by the North--American researcher Angela Ndalianis (2004). Angela argues that media franchises and serialized signs became allegorical emblems of the corporations that produce them. In addition, we’ll launch an hypothesis that the ARGs structural complexity has been decreasing, as results of adequations by its market incorporation.

Keywords: Alternate Reality Game, Global Market, Transmedia, Batman.

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Introdução

Desde seu surgimento em meados de 2001, os Alternate Reality Games (ou Jogos de Realidade Alternada, ou simplesmente ARGs) sempre estiveram atrelados a grandes projetos audiovisuais, blockbusters como Inteligência Artificial (informações - CADÊ?), programas de TV como Lost (ABC, 2004-2010), jogos de videogame como Halo 2 (Microsoft, 2004), além de campanhas publicitárias para grandes marcas ao redor do mundo, da BMW ao Guaraná Antarctica.

Como forma de expressão, os ARGs também foram utilizados para outros propósitos

que não o comercial. Foram realizados jogos de realidade alternada com finalidades educativas,

e independentes com a simples finalidade de entreter um grupo de pessoas interessadas - sem

que se almeje obter lucro ou a promoção de algum produto ou marca. Embora eles constituam

importantes objetos para análise de aspectos estéticos e narrativos, tais experiências não serão

aqui levadas em conta, uma vez que para a presente análise só interessa ver o objeto de estudo

enquanto forma de expressão intrínseca ao contexto atual de convergência cultural e midiática.

Contexto no qual o mercado assume papel central em qualquer discussão que envolva

tão complexas formas de expressões. Visto que, os ARGs possuem um intricado sistema narra-

tivo, valendo-se de todo o de informações e do vasto campo de atuação que tais conglomerados

possuem. Assim sendo, nada mais natural que um dos objetos escolhidos é o caso Why So Se-

rious?, jogos de realidade alternada realizado pela empresa americana 42Entertainment como

campanha publicitária para o filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008).

Personagem pertencente ao conglomerado de mídia Time-Warner Inc, atual dona da editora DC Comics,o Batman reuniu ao longo das décadas um grande gru-po de fãs apaixonados dispostos a consumir qualquer produto relacionado a ele. , mas desde que o personagem atenda a premissas básicas de coerência textual e estética. As-sim, não é de se espantar o sucesso recente que a franquia tem alcançado nos cinemas, principalmente a partir da entrada do diretor Christopher Nolan (não por acaso, um fã confesso do personagem).

Sucesso consolidado comercialmente através do faturamento superior a US$ 1

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157bilhão1. Parte desse êxito nas bilheterias pode ser associado a uma agressiva campanha publicitária, iniciada um ano e dois meses antes do lançamento oficial do filme nos ci-nemas e cuja principal iniciativa foi a realização de um longo e elaborado ARG.

Batman, dos quadrinhos ao ARG: aquisições, fusões e o conglomerado de mídia.

Um dos personagens mais notórios criados pela indústria do entretenimento no

século XX, o detetive mascarado Batman alcançou um patamar de popularidade que o coloca

entre os ícones da cultura popular ocidental do século passado. Tão associado ao universo pop

quanto os Beatles ou a Coca-Cola, o personagem oriundo das histórias em quadrinhos foi re-

inventado, reproduzido, simplificado e reinterpretado tantas vezes e em tantas mídias ao longo

de sua existência, que sua importância enquanto entidade narrativa há muito foi superada pela

sua relevância enquanto signo. Símbolo de um contexto cultural e econômico que se reflete nas

estreitas ligações entre cultura e mercado, cuja mais representativa síntese talvez seja os conglo-

merados de mídia que, assim como o Batman, floresceram durante o século XX .

Personagem criado pelo desenhista Bob Kane e pelo escritor Bill Finger para a

editora norte-americana National Allied Publications, Batman surgiu nas páginas da revista da

edição 27 da Detective Comics em maio de 1937. A editora cresceu a partir do sucesso obtido

com a publicação de revistas que inauguraram um novo segmento de histórias em quadrinhos

de super-heróis. Entretanto, no caminho que começa com a primeira publicação de Batman,

e passa pela realização do ARG Why So Serious? e o lançamento do filme em 2008, o perso-

nagem criado por Kane e Finger teve seus direitos transitando de uma editora que publicava

histórias em quadrinhos a um dos maiores conglomerado de mídia da atualidade.

No caminho até a aquisição por parte da companhia que viria a ser a origem

do futuro conglomerado, a editora DC passou por algumas transformações, como a mudança

de nome e fusões entre editoras. Criada como National Allied Publications em 1935, a editora

passou a se chamar National Comics após a fusão entre National Allied Publications e Detective

Comics Inc., no início dos anos 40.

Em seguida, adquiriu a All-American Publications e se uniu à distribuidora de revistas

Independent News na criação da corporação National Periodical Publications. Foi com a Natio-

nal Periodical Publications que a DC Comics (nomenclatura oficialmente adotada em 1977 ) foi

comprada pelo grupo Kinney National Services, Inc. em 1967, que também adquiriu a agência

de talentos Ashley-Famous e a Panavision. Na origem do grupo Kinney National, estão duas

empresas, Kinney Parking Company e National Cleaning Company, que juntas atuavam em

áreas tão diversas quanto serviços de estacionamentos, limpeza de escritórios, construção civil,

locação de carros e cujos proprietários possuíam notórias ligações com o crime organizado.

1 Reuters. Disponível em <http://www.reuters.com/article/2008/09/11/us-batman-idUSN1044022120080911>

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Em 1969, três anos após a fundação do grupo Kinney National, foi feita a aqui-sição do grupo Warner Bros.-Seven Arts (nome dado à Warner Bros. após sua venda para a Seven Arts Productions em 1966), logo rebatizado como Warner Bros., Inc.. Finalmente, em 1971, após um escândalo financeiro envolvendo o setor de estacionamentos, o grupo Kinney National desmembrou os negócios que não envolviam entretenimento, criando a National Kinney Corporation, e mudou seu próprio nome para Warner Communications Inc.

Nos anos seguintes, o grupo continuou expandindo os negócios, comprando e vendendo empresas e realizando negócios conjuntos com outros grupos. Com negócios em diversos ramos do entretenimento, desde a aquisição e posterior venda da empresa de videogames Atari até a aquisição de quase metade da franquia de baseball Pittsburg Pirates. Em 1989, houve a fusão da Warner Communications Inc. com o grupo Time Inc., gigante da mídia impressa, criando o atual grupo Time-Warner Inc.

Analisando a origem da editora DC Comics e sua história de aquisições e fusões, até sua incorporação por um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, é impos-sível imaginar um dos principais ícones da editora desvencilhado da noção de mercado. O universo ficcional da DC Comics, com todos os seus personagens e mundos, constitui o maior patrimônio da editora. Tal patrimônio foi desenvolvido e incrementado contan-do muitas vezes com a aquisição de editoras concorrentes e suas respectivas proprie-dades intelectuais, personagens, mundos, conceitos, etc., e, após o estabelecimento do grupo Warner como um emergente conglomerado de mídia, a partir dos anos 70, com a sinergia proporcionada pela possibilidade de atuação simultânea em várias frentes.

Com a editora se alimentando do sucesso das incursões de seus personagens no cinema (e vice-versa), posteriormente com a facilidade de promoção em meios im-pressos consagrados, e, mais recentemente, com a possibilidade de se utilizar múlti-plas mídias simultaneamente em uma narrativa unificada, personagens como o Batman tornaram-se contundentes exemplos do que pode ser realizado por essas corporações.

Why So Serious?

Iniciado em Maio de 2007, mais de um ano antes da estreia do filme, a campa-nha publicitária de Batman: O Cavaleiro das Trevas tevee um complexo e gigantesco ARG, seu grande diferencial. Embora as formas tradicionais de publicidade não tenham sido abandonadas, parte da campanha estava integrada com a narrativa desenvolvida no ARG, a exemplo de pôsteres e trailers que guiavam as acções dos participantes do Jogo de Realidade Alternada.

Um ARG deve proporcionar ao participante um drama interativo em ambiente online e com pontuais tarefas presenciais (McGONIGAL, 2003), e oferecer uma expe-

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159riência lúdica e narrativa onde o mundo cotidiano e o ficcional se misturam e se alter-nam (MONTOLA, 2009). Estruturalmente, um ARG caracteriza-se por sua natureza transmídia, sendo narrativamente disperso em múltiplos canais de mídia, predomi-nantemente aquelas que possam ser veiculadas através da internet.

Why So Serious? começou como a maioria dos ARGs, ,na internete prosseguiu com vídeos, mensagens telefônicas, enigmas em material impresso publicitário. Além de diversos eventos presenciais nos quais os participantes foram estimulados e saíram às ruas realizando tarefas específicas, como fazer passeatas, tirar fotos de si mesmos fantasiados e procurar artefatos que continham informações sobre o universo do filme. A história do ARG antecipava elementos que seriam desenvolvidos no filme e servia como um prelúdio para a trajetória do personagem Harvey Dent, situando-se crono-logicamente no momento em que ocorria sua campanha para promotor público de Gotham City.

A complexidade operacional encontrada em uma obra de grande porte como Why So Serious? é explicada em parte, por características inerentes aos ARGs enquanto forma de expressão. E em parte por especificidades das relações entre o tema abordado e escolhas feitas pelos produtores do filme e do ARG. Jogos de Realidade Alternada são uma forma de expressão relativamente recente - remonta a 2001, com The Beast (Microsoft, 2001)2 - baseada em práticas transmídia que pressupõem uma nova lógica de mercado, que leva em conta mercados de nicho e cultura participativa, com usuários e consumidores com um papel mais ativo na promoção de ideias, marcas e produtos.

Assim, fazem-se necessários produtores especializados e integrados ao contex-to, como é o caso da 42 Entertainment, empresa especializada em entretenimento e mar-keting digital. Ela foi criada por desenvolvedores de jogos que participaram da criação da primeira campanha considerada um ARG, o The Beas.

Além da necessidade de agentes especializados, o desenvolvimento do Why So Serious? contou com o desafio extra de lidar com anseios de fãs e do grupo Time-Warner ao trabalhar com um personagem tão poderoso como Batman.

A popularidade da franquia abordada, com a imensa popularidade do perso-nagem-chave e do universo ficcional que habita, explica a escolha dos desenvolvedores do ARG de investirem mais em ações coletivas, além da usual elaboração de intrinca-dos códigos a serem decifrados por grupos de participantes em ambiente online.

Os participantes, por exemplo, promoveram passeatas pela candidatura do personagem Harvey Dent para promotor público de Gotham City. Eles também encon-traram 22 pacotes com celulares supostamente plantados pelo personagem Coringaem

2 Campanha realizada para o filme Inteligência Artificial de Steven Spielberg

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cidades através dos Estados Unidos. Da mesma forma enviaram fotos de si mesmos fan-tasiados de palhaços em diversas regiões do globo, mobilizando milhares de pessoas extremamente entusiasmadas por aquele tipo de experiência coletiva, demonstrando a escala massiva que o ARG alcançou.

Tal escala de realização obviamente demanda um maior investimento da War-ner Bros. em publicidade, visto que a operação nas dimensões de Why So Serious? tem um acréscimo significativo em sua complexidade em relação a Jogos de Realidade Al-ternada mais modestos. Cada ação deve ser preparada com a maior atenção possível. Equipes de apoio devem estar operantes e aptas a intervir ao menor sinal de problemas. Além disso, tem-se todo o custo extra com material e serviços que, no caso específico de Why So Serious?, envolveu confecção de materiais dos mais variados: aluguel de ser-viços de envio de mensagens telefônicas, projeção em grandes edifícios em Chicago e Nova Iorque, além do aluguel de um avião preparado para emitir sinais de fumaça no céu da cidade de San Diego.

Por outro lado, o sucesso do ARG enquanto extensão alternativa para a cam-panha publicitária do filme aparentemente não pode ser contestado. O filme obteve grande êxito de bilheteria e de crítica, assim como o ARG - premiado em Cannes com o Cyber Lions Grand Prix3, demonstrando a grande aceitação também por parte de pro-fissionais do ramo publicitário. Diluição da complexidade operacional e estrutural dos ARGs

Tomando como premissa o fato de que usualmente a publicidade de um filme dura em torno de três meses, paralelamente à preparação da distribuição, e que 60% de sua verba é utilizada durante a estreia (AUGROS, 2000), uma campanha como Why So Serious? só pode ser enquadrada dentro de um novo paradigma nas relações entre audiovisual e mercado. Tal quebra de paradigma está diretamente ligada à noção con-temporânea de convergência cultural (JENKINS, 2008) que dá ênfase ao mercado de nicho dos fãs e à cultura participativa, cuja popularização se deu após uma série de im-plementações que permitiram criação de conteúdo pelos próprios usuários na internet, comumente chamada web 2.0.

Em Why So Serious? tanto a comunidade de fãs quanto a cultura participativa fo-ram estimuladas de modo a causar a sinergia necessária para que a campanha saísse do habitual nicho de usuários especializados. Um caminho para que um público massivo fosse diretamente atingido e os resultados da campanha se refletissem nas bilheterias.

3 <http://www.boardsmag.com/articles/online/20090624/cyberlions.html>

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161Com os resultados positivos obtidos nas bilheterias do filme, e os dados divul-gados pela 42 Entertainment a respeito dos números do ARG, seria natural imaginar que a utilização de Jogos de Realidade Alternada tornar-se-ia lugar comum em Hollywood. Entretanto, na prática, isso não se confirmou. Um ARG do tamanho e complexidade de Why So Serious? não voltou a ser realizado. Práticas transmídiasão incorporadas, po-rém, de maneira menos intensa: os jogos de realidade alternada têm sua complexidade diluída em ações mais pontuais e modestas, ou seja, os métodos mais tradicionais de publicidade continuam sendo a regra.

Quando foi confirmada a continuação da franquia com a produção de mais um filme, fãs e observadores em geral ficaram atentos para alguma movimentação que indicasse a realização de outro ARG como parte da campanha publicitária para o novo filme.

Com o lançamento programado para Julho de 2012, tudo levava a crer que a campanha publicitária que estava sendo desenvolvida para Dark Knight Rises (2012) se-guiria os passos daquela desenvolvida para o filme anterior. Em maio de 2011, a primei-ra imagem oficial do filme foi divulgada utilizando uma estratégia de marketing viral, o que sugeria que outro ARG poderia estar começando. Entretanto, as expectativas não se confirmaram, e, a despeito de uma modesta campanha “viral” iniciada em dezem-bro de 2011, o esperado Jogo de Realidade Alternada nos moldes de Why So Serious? não foi realizado.

A campanha para o próximo filme do Batman pode ser um indício dos possíveis rumos que experiências do tipo irão seguir. Iniciativas envolvendo marketing cruzado, práticas transmídia e mobilização de fãs já fazem parte do cotidiano de conglomerados de mídia como a Time-Warner. Porém, o que se observa após o sucesso de Why So Se-rious?, é que o mercado está se adaptando novamente a um contexto mais simplificado que abarque um público mais amplo. Reduzindo, assim, os risco econômicos em foca-lizar apenas uma fatia dos espectadores.

Considerações Finais

Duas questões estão em pauta no presente artigo. Primeiramente, a noção de franquias de mídias e signos serializados como emblemas alegóricos de corporações que os produzem. E em seguida, a questão de uma tendência atual de simplificar a estrutura dos ARGs, resultado de sua incorporação e consequente adequação ao merca-do. Em análises sobre o entretenimento contemporâneo e a tendência à serialização da narrativa, a pesquisadora Angela Ndalianis (2004 p. 55), após analisar a lógica alegórica

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por trás da imponência arquitetônica e das esculturas encontradas em Versailles, formu-la a seguinte hipótese:

Impulsionadas por demandas de globalização e corporativismo multinacio-nal, indústrias de entretenimento têm lógica econômica, audiência, e uma forma de alegoria do poder extremamente diferentes daquelas encontradas em monarcas como Luís XIV. No entanto, a serialização que se tornou parte integrante da indústria também funciona veículo alegórico: O signo serializa-do (seja ele Batman, Lara Croft, ou Star Trek) também se torna um emblema alegórico do poder da corporação que deu origem a ele (Time-Warner, Eidos Interactive, e Paramount/Viacom, respectivamente, nos exemplos dados).

Tal hipótese se confirma quando se observa como a máquina corporativa de

um grupo como o Time-Warner é colocada a serviço de um personagem como Batman. Ao mesmo tempo em que tal personagem, tal signo serializado, alimenta essa mesma máquina criando um ciclo que se encerra e impulsiona o grupo a continuar reinvestin-do e lucrando com um mesmo personagem. Nesse contexto, a realização de uma expe-riência como Why So Serious? tem sua função dentro da lógica de mercado enquanto uma tentativa de adequação a uma demanda de consumo por uma forma diferente de conteúdo - que envolve as práticas transmídia. E, paralelamente, dada a possibilidade de realização do mesmo dentro das dimensões e complexidade destacadas, aponta que a utilização de um Jogo de Realidade Alternada possui também seu papel dentro da construção de um emblema alegórico, composto numa dimensão mais ampla pelo pró-prio signo serializado que é o Batman.

A segunda questão defende a ideia de uma diluição da complexidade dos Jogos de Realidade Alternada como resultado de uma melhor adequação de tais experiências ao mercado. É fato que nas experiências similares que se seguiram a complexidade e tamanho do Why So Serious? não foram repetidos. Mas, o que poderia explicar esse mo-vimento, dado o aparente incontestável sucesso do ARG?

Em primeiro lugar, os números apresentados pela 42 Entertainment como ar-gumento para explicar o sucesso do case não se sustentam a uma análise mais apro-fundada. Em seus números oficiais, a empresa contabiliza mais de 10 milhões de par-ticipantes em mais de 75 países4. Em números absolutos é provável que estejam certos, porém, a forma de contabilização desses números revela claras inconsistências, visto que o simples acesso a qualquer um dos mais de cem websites que foram utilizados durante o ARG entra também na conta como participação - não importando o nível de envolvimento desse participante, tampouco a frequência com que acompanhou os

4 Retirado de vídeo promocional realizado pela empresa 42 Entertainment, disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=1pd74It-yVo>

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163acontecimentos. Em Jogos de Realidade Alternada existe um grande númerp de espec-tadores ocasionais, muitas vezes de usuários que sequer voltarão a acessar aqueles sites. Os participantes que realmente fazem a diferença em campanhas do tipo são aqueles mais dedicados, participantes ativos na construção da experiência e futuros agentes na geração de publicidade gratuita para o filme. Assim, torna-se difícil a tarefa de traduzir em números que não sejam distorcidos uma experiência como o Why So Serious?.

Então, pode-se supor que os resultados alcançados em bilheteria justifiquem a realização de um ARG como Why So Serious?, porém, mesmo essa relação direta de causa e consequência não joga totalmente a seu favor. É fato que Batman: O Cavaleiro das Trevas obteve resultados impressionantes em bilheteria, entretanto, só a realização do jogo de realidade aumenttada, obviamente, não dá conta de tal êxito comercial. Do lançamento do filme de Nolan até o presente momento, seis filmes obtiveram melhores resultados em bilheteria5, sendo que nenhum deles realizou Jogos de Realidade Alter-nada complexos e demorados como Why So Serious?.

Tais dados não implicam numa crença de fim dos ARGs ou algo do tipo, apenas sugerem que tal forma de expressão também está sujeita à lógica do mercado. Sobre essa lógica, Octavio Ianni (2008) comenta que o capitalismo tem a força de influenciar diversas formas de organização sociais, trabalhistas e produtivas, estejam elas vincula-das ou ao não a ele. Essa dinâmica se cria e recria continuamente, seja pelo desenvolvi-mento extensivo ou intensivo. A exemplos das novas tecnologias tomam o lugar das tec-nologias correntes, e podem tomar obsoletas outras mobilizações de força de trabalho.

Portanto, não é senão como consequência natural dessa dinâmica capitalista que experiências como Jogos de Realidade Alternada estão sendo reconfiguradas de modo a serem absorvidas pelas formas de produção contemporâneas. Ao elencar os pontos positivos de Why So Serious?, o pesquisador norte-americano Aaron Smith (2008) elencou o que rege os ARGs:

• a capacidade de narrativas transmídia serem ideais para audiências fragmen-tadas - o que aumentaria as chances dos anúncios atingirem seu público-alvo; • o oferecimento de diversos pontos de entrada na história, expandindo o po-tencial do marketing realizado; • o envolvimento do público que, ao perceberem seu papel ativo na experiên-cia que vivenciam, estabeleceriam laços mais fortes com a marca, produto ou personagem central da campanha ou história.

5 Alice in Wonderland (Buena Vista, 2010), Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides (Buena Vista, 2011), Toy Story 3 (Buena Vista, 2010), Transformers: Dark of the Moon (Paramount (Dreamworks), 2011), Harry Potter and the Deathly Hallows Part 2 (Warner Bros., 2011) e Avatar (Fox, 2009). Fonte Box Office Mojo, disponível em <http://www.boxofficemojo.com/alltime/world/>

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O que os conglomerados perceberam foi que poderiam obter os mesmos resul-tados em termos financeiros e de envolvimento do público com a marca sem campa-nhas tão grandes ou complexas como as que envolvem ARGs. Assim, a complexidade da experiência passa a ser diluída quando os conglomerados que detêm os meios de produção percebem que conseguem atingir os mesmos fins ao desenvolverem cam-panhas mais pontuais que ofereçam as mesmas recompensas que um ARG poderia oferecer.

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a Economia do audioviSual no contExto contEmPorânEo daS cidadES criativaS

Paulo cElSo da SilvaProfessor do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba.E-mail: [email protected]

míriam criStina carloS SilvaProfessora do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba.E-mail: [email protected]

tarcyaniE cajuEiro doS SantoSProfessora do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba. E-mail: [email protected]

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rESumo

Este trabalho aborda a economia do audiovisual em cidades com status de criativas. Mais do que um adjetivo, é no bojo das atividades ligadas à comunicação, o audiovisual entre elas, cultura, moda, arqui-tetura, artes manuais ou artesanato local, que tais cidades renovaram a forma de acumulação, reorgani-zando espaços públicos e privados. As cidades de Barcelona, Berlim, New York, Milão e São Paulo, são representativas para atingir o objetivo de analisar as cidades relacionado ao desenvolvimento do setor audiovisual. Ainda que tal hipótese possa parecer indicar, através de dados oficiais que auxiliam em uma compreensão mais realista de cada uma delas.

Palavras-Chave: Cidades Criativas, Economia do audiovisual, Neoliberalismo.

abStract

This paper discusses the economy in cities with audiovisual creative status. More than an adjective, is in the wake of activities related to communication, including audiovisual, culture, fashion, archi-tecture, crafts or local crafts, such as cities renewed their accumulation form, reorganizing public and private spaces. The cities of Barcelona, Berlin, New York, Milan and Sao Paulo, are representative for achieving the objective of analyzing the cities related to the development of the audiovisual sector. Although this hypothesis seems to indicate, using official data that assist in a more realistic understan-ding of each cities.

Keywords: Creative Cities, audiovisual Economics, Neoliberalism.

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Este artigo aproveita parte dos resultados de uma pesquisa de maior envergadura desenvolvida pela FUNDAP – Fundação do Desenvolvimento Administrativo de São Paulo, ‘Caracterização e Potencialidades das Principais Cadeias Produ-

tivas baseadas na Criatividade’, na qual nossa tarefa consistiu, em 2010, em apresentar estudos, a partir de levantamento bibliográfico e de pesquisa em fontes secundárias, so-bre as principais políticas públicas praticadas por municipalidades ou governos locais nos setores econômicos integrantes da Economia Criativa em cidades mundiais, sendo as escolhidas: Barcelona, Berlim, Milão e Nova Iorque York.

No caso de Barcelona, devemos acrescentar que, desde 2001, seguimos estu-dando o Projeto 22@BCN e suas implicações na cidade. Ainda no primeiro semestre de 2012, estivemos na Cidade Condal, buscando novidades no tema da economia criativa, agora em uma economia européia em crise, portanto, nessa cidade, especificamente, as fontes podem ser consideradas também primárias. Também as demais cidades foram atualizadas em relação ao tema proposto aqui.

Uma gama de conceitos – cidade criativa, indústria criativa, economia criativa, indústria cultural – foi introduzida para dar conta dessa forma de acumulação capita-lista do audiovisual e da produção da cidade. Assim, a primeira providencia ao estu-darmos o tema, é buscar conceituar e compreender, dentro de seu contexto, como esses conceitos são entendidos e trabalhados.

Charles Landry afirma em “Lineages of the Creative City”, de 2006, que “a criatividade da cidade criativa recai sobre o pensamento lateral e horizontal, a capaci-dade de ver as partes e o todo simultaneamente, bem como as madeiras e árvores de uma só vez”.

A Economia criativa é aquela que, conforme Ana Carla Fonseca Reis, considera-da uma das maiores autoridades em economia da cultura, economia criativa e cidades criativas, “se move ao redor de ativos intangíveis/simbólicos. De forma mais específica, costuma-se entender que compreende um núcleo cultural, indústrias culturais, as cha-madas “indústrias criativas” (que bebem cultura para devolver funcionalidade, como

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moda, design, arquitetura, propaganda)”1.Já para a indústria criativa podemos considerar uma definição proposta por

Chris Smith, quando foi Ministro no Departamento de Cultura, Mídia e Esportes do Reino Unido (Departament of Culture, Media and Sport) que afirma serem “as ativi-dades que têm a sua origem na criatividade, competências e talento individual, com potencial para a criação de trabalho e riqueza através da geração e exploração da pro-priedade intelectual” 2.

A opção pelo conceito de indústria cultural, feita por economistas e entusiastas da economia criativa, indica o “lado positivo” dessa indústria, diferenciando, assim, suas análises, daquelas efetuadas pela chamada Escola de Frankfurt. Nas palavras de Luísa Arroz Albuquerque:

Se, por um lado, esta nova designação amplia o conceito de indústria cultural, por outro, afasta da sua definição o lado negativo do modo de produção industrial da cultura, permitindo uma nova perspectiva teórica para além da Escola Crítica de Frankfurt de Adorno e Horkheimer [ADORNO, 1979]. Esta nova perspectiva permitirá acentuar o lado criativo de tais indústrias, afastando do seu espectro a tensão latente entre cultura e economia na cultura massificada para consumo rápido. O mesmo é ob-servado por Münch, quando fala da cultura “mcdonaldizada”, na qual a criatividade não desaparece mas é cada vez mais incorporada e rapidamente absorvida por uma indústria cultural crescente [MUNCH: 1999]. Assistimos, portanto, a uma mudança ra-dical na promoção das “indústrias culturais” que, designando agora um espectro mais amplo de atividades, incorporam também a criatividade no seu modo de produção, re-unindo num só conceito os termos chave da cultura mas também aqueles relacionados com a sociedade de informação e do conhecimento. É precisamente sob o signo da criatividade que se construirá a resposta das cidades inglesas no final da década de 80 (ALBUQUERQUE, 2006, p. 5).

Para compreensão do tema das cidades criativas, muitos estudiosos, com base nas pesquisas e propostas de Richard Florida (2004), indicam que as cidades que mais se desenvolvem são aquelas onde três fatores essenciais devem prevalecer, a saber: Talento, Tolerância e Tecnologia ou os 3 T’s. Com relação ao primeiro T - talento, a cidade deve proporcionar oportunidades e espaços de qualificação e educação para os seus cidadãos; o segundo T – tolerância, é a busca de uma sociedade diversifica-da, heterogênea, em que o lema ‘live and let live’ é a atitude esperada; por último, a implantação da infraestrutura tecnológica necessária para o desenvolvimento da ativi-dade empresarial.

1 Disponivel em http://colunistas.ig.com.br/monadorf/2010/03/24/cidades-criativas-perspectivas/. Acesso em 19.06.20102 Disponivel em http://www.culture.gov.uk. Acesso em 15.06.2010.

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No interior desses três fatores podemos ainda incluir a educação como um todo, ou seja, uma formação de qualidade desde os primeiros anos de educação for-mal, o desenvolvimentos das TIC – tecnologias da informação e comunicação, que sem-pre estão em renovação, o relacionamento em rede entre cidades do entorno e extra--entorno (relação local-global), ou o processo de glocalização, no qual uma possível autocomunicação de massa estaria em curso, visto que “é comunicação de massa por-que potencialmente pode chegar a uma audiência global... é autocomunicação porque a própria pessoa gera a mensagem” (CASTELLS, 2009, p.88).

Contudo, como se verá adiante, tais propostas não estão isentas de críticas, porém, antes apresentaremos alguns pontos e aspectos das cidades escolhidas para esta pesquisa.

Barcelona

E bastante aceito que o salto de qualidade da cidade de Barcelona se deu em 1992, quando dos XXV Jogos Olímpicos (25/07 a 09/08). Os Jogos Olímpicos de 1992 são parte de um processo globalizador que inclui, mas supera, a cidade de Barcelona, naqueles anos 1980, vivendo o ápice da crise do modelo industrial tradicional e a des-centralização das naves industriais na cidade . A Olimpíada de Barcelona foi mais uma etapa na desejada internacionalização de Barcelona por setores da sociedade catalã e o poder local e, ainda uma sinalização de novas potencialidades, agora não mais como a Manchester Catalã, modelo de cidade que se desenvolve através da indústria e sim, de cidade turística e centro de eventos audiovisuais da economia criativa. Durante e depois dos jogos, Barcelona será vista por milhares de pessoas em todo o mundo. Para tanto, foram feitas grandes investimentos com capital público e privado, dotando a ci-dade de infraestrutura para atender aos jogos e ao público que acompanhou em todo mundo, seja visitando a cidade ou assistindo as transmissões televisivas.

A transmissão dos jogos veio acompanhada de uma grande campanha de divulgação da cidade, basta lembrar a produção do desenho infantil Cobi, um cachorro Catalan Sheepdog estilizado por Xavier Mariscal e que retratava as aventuras do per-sonagem e seus amigos por Barcelona, hoje exposto na Galeria Olímpica na Anella Olímpica de Montjuic, uma das quatro áreas utilizadas nos jogos de 1992, onde está o Estadi Olímpic de Montjuic. Além dessa área, temos o Port Olímpic, onde acontece-ram as provas de vela e a Vila Olímpica, um novo bairro, criado para alojar os atletas, com arquitetura moderna dos projetistas de Barcelona. Também, por suas ruas, en-contramos muitas esculturas e toda fachada marítima recuperada. Foram quatro as

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áreas olímpicas – Montjuic, Diagonal, Vall d’Hebron e Parc de Mar – abrangendo uma superfície de 140 a 210 ha, estrategicamente distribuída para facilitar o transporte, alo-jamento, segurança e comodidade dos jogadores, equipe técnica e do público.

No bairro ao lado da vila olímpica, encontramos o bairro do Poblenou, anti-go bairro operário conhecido como a Manchester Catalã, que é onde um projeto de renovação e transformação urbanas está em curso desde 2000, o Projeto Poblenou 22@BCN. Na Calle Pellaires, 30, onde Xavier Mariscal montou seu loft no entusiasmo dos Jogos Olímpicos de 1992 em Barcelona, está em um dos extremos do bairro do Poble-nou, próximo à Diagonal Mar, e o prédio foi rebatizado de Palo Alto.

A Calle de Llull, 133, próxima ao centro do Poblenou, na Rambla Poblenou, tem outro conjunto de lofts. A antiga fábrica, o Vapor Llull, foi reabilitado pelos arquitetos Cristian Cirici e Carles Bassó, entre 1996-1997, ganhando os prêmios Ciutat de Barcelona de arquitetura e urbanismo e o Prêmio Bonaplata de reabilitação em 1997. Constituem--se em 18 módulos para oficinas, escritórios, estudos e espaços habitáveis onde estão, por exemplo, Ana Coelho Llobet (arquiteta), Nous Espais Arquitectonics SL (engenharia civil), Zindara Producciones SL (produtora de vídeo, cinema e espetáculos). Juntamente ao bairro do Poblenou, em 2004, foi inaugurado o Forum Mundial de Culturas de Barce-lona, um espaço para eventos, conferencias e grandes congressos construído na ultima área da cidade que ainda não havia sido reabilitada no litoral norte. Dois edifícios são destaques, o Edifício Fórum, de forma triangular e uma cor exterior em azul com um auditório para 3200 lugares, e o Centro de Convenções, com uma capacidade máxima de 15 mil lugares.Além do Poblenou, os bairros de Grácia e Raval são considerados cria-tivos na cidade, conforme explicitam Seixas e Costa em suas pesquisas sobre Barcelona, Lisboa e São Paulo:

Os “bairros criativos” são valorizados pelo seu elevado capital simbólico, peloforte componente cultural e ainda pelas vertentes do tu-rismo e da boemia. Os espaços alternativos/emergentes são ocupados por classes sociais ou grupos que detêm uma elevada diferenciação (artistas, imigrantes), e na maioria das situações existem em espaços intersticiais/expectantes da cidade institucional e urbanística, com ren-das baixas.

Apesar de tudo isso, verificamos que também existem “deficiências” na economia criativa de Barcelona. Ela não é suficientemente diversificada e apenas ago-ra o setor de Audiovisual para TV, cinema, rádio ao vivo e teatro, está conseguindo atingir o impacto e os valores que o design e a arquitetura já dispõem.O destaque fica para o Parc Audiovisual de Catalunya, em Terrassa, cerca de 28 km de Barcelona que, em

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acordo com a Generalitat de Catalunya (o governo central) mantém convênio com a empresa 22@BCN para desenvolvimento e exploração das atividades no Parque3. As universidades em Barcelona oferecem cursos voltados ao audiovisual, como o Instituto Universitario del Audiovisual, um centro da Universitat Pompeu Fabra “dedicado a enten-der los principios de la cognición y el comportamiento humano y a convertir estos en tecnologías útiles y a la vez creativas”.4 Na Universitat de Barcelona a graduaçao em Audiovisual5 visa: “Ofrecer una formación global a los profesionales de la comunica-ción audiovisual, desde el cine hasta los nuevos medios de comunicación, multimedia, Internet y espacios virtuales, con aplicación en los tres ámbitos propios de la profesión: creación, gestión, y análisis y crítica.”

Destaca-se também a tensão que acontece na Cidade Velha (o Casco An-tiguo – bairros que formavam parte da cidade entre muralhas e são históricos) em ter-mos de perda de habitação, gentrification6 crescente, a criminalidade de rua endêmica, superlotação e congestionamento de tráfego. Abaixo uma ilustração da localização dos clusters em Barcelona e suas respectivas áreas de atuação.

Berlim

Considerada pela UNESCO como a “Cidade do Design”, Berlim é também um local de encontro internacional de negócios. Com eventos como The International Film Festival Berlinale, The International Design Festival DMY, The Berlin Fashion Week, The International Art Forum, the Popkomm, e o IFA, a cidade é sede de eventos da grande indústria, conhecidos festivais, exposições e conferências a cada ano.

Com mais de 3,4 milhões de habitantes, a capital da Alemanha é a maior cidade do país e também o centro das indústrias criativas. Apenas em Berlim, há mais de 24 mil empresas com 170 mil empregados que trabalham neste setor ainda em crescimen-to rápido. Berlim foi subdividida em 12 distritos (Bezirke), que foram combinadas a

3 Mais detalhes podem ser vistos em. http://www.parcaudiovisual.cat/files/arc_descargas/CAT-ENG14.pdf . Aces-so em 13.05.2012.4 Detalhes podem ser vistos em. http://www.iua.upf.edu/?q=es . Acesso em 14.05.2012. 5 detalhes podem ser vistos m http://www.ub.edu/web/ub/es/estudis/oferta_formativa/graus/fitxa/C/G1068/index.html . acesso em 14.05.2012.6 O termo Gentrification foi usado pela primeira vez na década de 1960 pela socióloga inglesa Ruth Glass para determinar o processo de expulsão de moradores de baixa renda em bairros centrais de Londres, afirmava:“Um a um, muitos dos bairros da classe trabalhadora de Londres, foram invadidos por pessoas das classes médias superiores e inferiores. Casas degradas, antigos estábulos transformados em moradia e casas modestas com dois quartos encima e dois embaixo, foram assumidas, quando os seus aluguéis venceram, e tornaram-se elegantes e caras residências [...].Uma vez que este processo de "gentrification" começa em um distrito ele segue rapidamente até que todos ou a maior parte dos ocupantes das classes trabalhadoras originais sejam deslocados e o caráter social inteiro do distrito é modificado”.GLASS, Ruth 1964. London: Aspects of change. Centre for Urban Studies and MacGibbon and Kee, London., p.20.

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partir de 23 bairros, com efeito desde janeiro de 2001, no contexto da reforma do corpo administrativo.

Berlim passou por mais transformações do que qualquer outra cidade européia. Após a reunificação, a cidade recuperou o status de capital, mas o déficit financeiro e a incerteza política criaram tanto uma identidade como um vácuo nas políticas de in-vestimentos, assim a cidade ainda está buscando soluções para seu desenvolvimento.

Estima-se que 8% da força de trabalho em Berlim estejam concentradas na Economia Criativa (80 mil pessoas excluindo 20.000 a 30.000 artistas independentes, designers e empresários individuais) e produz 11% do PIB de Berlim, em comparação com 3,6% do PIB alemão. A criatividade tem sido apontada como um fator de grande produção.

A nova mídia e os clusters industriais fixaram-se no interior de Berlim Orien-tal, com empresas multimídia (por exemplo, Chausee-Strasse - Silicon Allee). As em-presas líderes no setor de comunicação e mídia estão mudando juntamente com as empresas privadas e públicas, e Berlim é a localização privilegiada. São empresas de software/multimídia e cinema/vídeo. Berlim pretende tornar-se metrópole da mídia na Alemanha por meio de investimentos estratégicos principais e infra-estruturas como dm Adlershof7 no sudeste da cidade, onde, desde 1991, universidades, empresas de ne-gócios e o setor de mídias ocupam uma área de 4,2km entre laboratórios e instalações audiovisuais. Esta localização pioneira está desempenhando um papel cada vez mais importante no desenvolvimento deste cluster de produção orientada. várias empresas estão localizadas, entre elas : NOKIA Gate5, Rohde & Schwarz SIT GmbH, INNOMI-NATE Security Technologies AG, Siemens, Tom Tom.

Em 2007, em um ufanismo tecnológico, o jornal Der Tagesspiegel (Tagesspiegel, 31.10. 2007) destacou em sua chamada a Megacidade da Criatividade, talvez não seja o caso de um epíteto tão categórico, mas, os territórios da cidade podem ser divididos enquanto sua função e atuação na economia criativa:

1. Passeio turístico. Respectivamente: Áreas de entretenimento e cultura local (inter)nacionais de competitividade da industria cultural.2. Hotelaria de pequeno porte e serviço da indústria cultural. 3. Bairros étnicos dominados pela produção em pequena escala – e o serviço da indústria cultural.4. Locais de difusão de arte, música, design, cinema/media e faculdades onde se desenvolvem softwares.

7 Para maiores informações ver. http://www.dwih.com.br/index.php?id=63 . Acesso em 30 abr. 2012

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5. Áreas estabelecidas de produção e empresas de serviços da indústria cultu-ral com um “bom endereço”.6. Sets de produção ou paisagens para TV, mídia e TI.7. Conquista dos espaços das indústrias culturais.

New York

A New York Metropolitan Statistical Area (MSA) inclui, além de 31 municípios, a cidade de New York (NYC). No coração da maior região metropolitana está New York, composta de cinco distritos: Manhattan, Bronx, Queens, Brooklyn e Staten Island.

É sabido que New York esteve à beira da falência na década de 1970 quan-do, praticamente, um acordo nacional para salvar a cidade símbolo dos EUA reativou a economia através da liderança do setor financeiro, além do surgimento de outros serviços profissionais especializados, incluindo marketing, contabilidade, jurídico, telecomunicações, seguros e consultoria de gestão. A cidade-região começou a recupe-rar a força econômica na década de 1980 e a expansão continuou durante a maior parte da década de 1990. No entanto, em 2001, as dificuldades reapareceram motivadas pelos impactos dos ataques de 11 de setembro.

Conforme os estudos do Strategies for Creative Cities Project – New York City Case Study, trabalhadores criativos sofreram perda de 46% da renda em 2002. Além disso, nesse mesmo ano, o índice de desemprego dos trabalhadores criativos nas artes e entre-tenimento chegou a 22%, como resultado direto dos acontecimentos de 11 de setembro.

Encontramos no The New York Economic Development Corporation novos relatos informando que 200 mil empresas estão localizadas em Nova York, entre elas 20.000 são organizações sem fins lucrativos. Os números de ambas as organizações, com e sem fins lucrativos, estão crescendo.

No entanto, Nova York também continua a enfrentar muitos desafios. A cidade tem alta taxa de pobreza, chegando aos 20,3% em 2004, contra 19% em 2003 - o Bronx teve a maior taxa de pobreza, ficando em quarto lugar no país em 2004. As 309.142 pes-soas que trabalham nas indústrias criativas representam 8,1% da força de trabalho da cidade de Nova York e, nos últimos anos, essas indústrias têm acrescentado empregos em um ritmo mais rápido do que a economia da cidade em geral. Entre 1998 e 2002, o emprego em indústrias criativas na cidade cresceu 13% (somando 32 mil postos de trabalho). Existem 11.671 empresas e organizações sem fins lucrativos no núcleo cria-tivo New York (5,7% de todas as empresas nos cinco municípios). Além de 79.761 em-presas individuais, algo em torno de 29% da força de trabalho criativo de Nova York é auto-empregado.

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Artistas e outras pessoas criativas são rotineiramente expulsas das áreas que se tornaram populares devido à atividade criativa que eles ajudaram a gerar. Sendo deslo-cados, sua capacidade de continuar a exercer a atividade criativa em um ambiente que suporta uma estreita interação com os seus pares e aa clientela local está ameaçada. Um exemplo extremo desta situação é a escalada dos aluguéis em Manhattan e os custos de propriedade, que levaram a uma severa escassez de espaço disponível, causando uma mudança no centro de gravidade criativa da cidade para outros bairros. A ilustração abaixo indica a localização dos museus da cidade, visando uma pequena amostra do papel da cultura nos vários lugares de New York.

Milão

Milão, capital da região da Lombardia, província de Milão, com 1.308.735 ha-bitantes. É a maior e mais densa em população das Regiões metropolitanas da Itália. A cidade também tem sido classificada como sendo uma das mais poderosas e influentes do mundo.

Assim como Berlim, Milão também é reconhecida mundialmente como a capi-tal do design e audiovisual e é considerada uma das cidades mais influentes do mundo nesta área, atingindo o comércio global, a indústria, música, desporte, literatura, arte e mídia, tornando-se uma das cidades principais do mundo com seu rico patrimônio histórico, seus importantes museus, universidades, academias, palácios, igrejas e biblio-tecas (tais como a Academia de Brera e o Castello Sforzesco) e dois clubes de Futebol bastante conhecidos: Associazione Calcio Milan e Football Club Internazionale Milano. Isso faz de Milão um dos mais populares destinos turísticos da Europa, com mais de 1.914 milhões de turistas estrangeiros na cidade em 2008. A cidade sediou a Exposição Universal de 1906 e será a sede da Exposição Universal de 2015.

Milão organiza a Fiera Milano, a maior da Europa, e uma dos mais conceituadas em design mobiliário do mundo. Milão acolhe também os mais conceituados eventos relacionados à arquitetura e design, tais como o “Fuori Salone” e o “Salone del Mobile”.

Um estudo intitulado L’Italia nell’Era Creativa desenvolvido pelo Creativity Group Europe, em 2005, analisando o potencial criativo nas localidades de Comune di Roma, Provincia di Milano, Torino Internazionale, Comune di Bari, Provincia au-tonoma di Trento, Biella Promotion e Comune di Capannori, indica alguns números relevantes para a compreensão de Milão como expoente na Economia Criativa, princi-palmente, no Design.

A cidade ocupa a 8a posição com um percentual de 22,87% na classe criativa,

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atrás de Roma 24.62%; Genova 23.99%, Trieste 23.63%, Napoli 23.38%, Bologna 23.26%, Pescara 23. 24% e Firenze 22.87%.

Porém, Milão está em primeiro lugar na Itália em liderança tecnológica devi-do à grande presença de indústrias high tech (semicondutores, computadores, medica-mentos, fibras ópticas, etc. Atividades como desenvolvimento de software ou banco de dados para serviços de consultoria técnica) e seu reconhecido potencial inovador (Fon-te: Elaborazioni Istat (2001), Unioncamere (2001-2003); Osservatorio Banda Larga (2004). No cômputo geral, Milão coloca-se em segundo lugar, abaixo de Roma.

Um dos grandes eventos internacionais de Milão é a Zona Tortona que acon-teceu entre 17 e 22 abril de 2012, onde a propaganda oficial indicava “Milão Zona Tor-tona Design A-Class Party. Be part of the future”, com participação de diversos setores, empresas8, de onde destacamos apenas alguns: de uma lista de 113 expositores: Audi, Samsumg, Smart & Rolf Sachs, China Design Market, Chiocchinidegign, DMY Berlin, LAB_ 23 Spacciamocela, Daniela Maurer, Master Studio Design, Archinfo.

Considerada como uma plataforma baseada no território, Zona Tortona está comprometida com os negócios locais (restaurantes hotéis, cinemas, estúdios de audiovisual e outros setores da economia local que gravitam no evento internacional) e, conforme a divulgação do evento, “estes serviços e atividades locais, em grande medida contribuem a criação de um acontecimento contemporâneo, metropolitano, sustentável e inovador”.

São Paulo

Para apresentar a cidade de São Paulo, utilizamos os levantamentos e mapea-mentos feitos pela FUNDAP e que resultou no estudo Economia Criativa. Economia Criativa na Cidade de São Paulo: Diagnóstico e Potencialidade. Para fins da pesquisa, considera-se atividade audiovisual a atividades das “empresas que atuam nos ramos de fabricação de instrumentos musicais, atividades cinematográficas de produção, pós-produção e exibição (salas de cinema), atividades de rádio e TV e locação de vídeo” (CAIADO, pág. 76).

O número de empregados no setor, em 2009, chegava a 17.463 trabalhadores, sendo 12,4 % dos empregos da economia criativa na cidade, sendo os distritos Man-daqui, Barra Funda, Perdizes e Morumbi, os que concentravam a maior quantidade de pessoas do setor .”Quanto ao número de Unidades locais, o setor de Audiovisual registra um total de 723 unidades em 2009 (8,6% das ULs criativas da cidade) ... estão

8 Mais informações em. http://www.tortonadesignweek.com/?lang=eng . Acesso em 09.05.2012.

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concentradas ao redor dos distritos de Pinheiros, Jardim Paulista, Itaim Bibi e Moema, os mesmos que se destacam no que se refere à Arquitetura e Design” (Idem, idem). Na sequência, o mapa da distribuição do emprego formal em atividades de Audiovisual, municipio de São Paulo, 2009:

Conclusão

A pesquisa buscou apresentar como o tema da economia do audiovisual no con-texto contemporâneo das Cidades Criativas apresenta-se concretamente em algumas localidades conhecidas pelo desenvolvimento cada vez maior desses setores produtivos.

Contudo, quando atentamos menos apressadamente para o tema verificamos que a “simplicidade” com o qual o assunto é tratado, deixa margem a muitas dúvidas. A primeira delas relaciona-se com a teoria ou a tese dos 3 T s, proposta por Florida. Da maneira como é exposta, a solução para as cidades está dada: apenas alcançar os níveis da Tolerância, Talento e Tecnologia. Parece-nos uma receita pronta que serve a todos os lugares e, se não servirem, seguramente não é pelo equivoco da receita, mas, da incompetência dos lugares em atingirem os T s propostos. A receita neoliberal continua a mesma, a saber: cada um responsável pela própria incompetência.

A new wave neoliberal do momento é ser criativo ao extremo e, conforme Chris-topher Dreher, em entrevista com Richard Florida, afirmou: “Seja criativo ou morra”. As cidades devem atrair a ‘nova classe’ de criativos, com bairros de vizinhança, uma cena de artes e um ambiente gay-friendly ...Ou eles irão partir para Detroit “(PECK apud DREHER, 2002, p.1). Não é o momento de uma resenha do livro de Florida, porém, não podemos deixar de registrar essas poucas impressões de sua obra.

Uma busca no website de Richard Florida9 e será possível encontrar e ler o Mani-festo de Memphis10, o primeiro encontro da classe criativa, realizado em Memphis,entre 30 abril a 2 maio de 2003. A Creative 100 foi representada por profissionais de 48 cida-des nos Estados Unidos, Canadá e Porto Rico. Foi patrocinada pelo Memphis Tomor-row, uma organização das maiores corporações de Memphis, e Memphis Mpact,uma organização para jovens profissionais. A proposta de criar o manifesto teve por base encontrar soluções para as próprias comunidades dos assinantes e a todas as comuni-dades que procuram competir na economia contemporânea. Os princípios do manifes-to são (Creative 100: 2003: 2):

9 Memphis Manifesto, Disponivel em http://www.creativeclass.com/creative_class/2007/12/06/the-memphis- ma-nifeto. Acesso em 02.06.2010.10 Também encontrado em http://www.norcrossga.net/user_files/The%20Memphis%20Manifesto.pdf , onde, in-clusive pode-se conhecer a lista com os cem nomes.

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(1) Cultivar e premiar a criatividade. Todo mundo faz parte da cadeia de valor da criatividade. A Criatividade pode acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar, e isso está acontecendo em sua comunidade agora. Preste atenção.(2) Investir no ecossistema criativo. O ecossistema criativo pode incluir as artes e a cultura, vida noturna, a cena musical, restaurantes, artis-tas e designers, inovadores, empreendedores, os espaços disponíveis, vizinhança animada, espiritualidade, educação, densidade, espaços públicos e terceiro lugares (third places).11

(3) Abraçar a diversidade. Ela dá a luz à criatividade, inovação e im-pacto econômico positivo. Pessoas de diferentes origens e experiências podem contribuir com uma diversidade de idéias, expressões, talentos e perspectivas que enriquecem as comunidades. Trata-se de como as idéias florescem e constroem comunidades vigorosas.(4) Alimentar os criativos. Apoiar aos conectores. Colabore para com-petir de uma maneira nova e colocando todos no jogo.(5) Avaliar o risco. Converter um clima de “não” em um clima de “sim”. Investir em oportunidade de decisões, não apenas para resolver pro-blemas. Toque no talento criativo, tecnologia e energia para sua comu-nidade. Desafiar a sabedoria convencional.(6) Ser Autêntico. Identificar o valor que você acrescenta e focar nos bens onde você pode ser único. Ousar ser diferente, não ser simples-mente o clone de outra comunidade. Resista à monocultura e homoge-neidade. Toda a comunidade pode ser única.(7) Investir na construção e na qualidade do lugar. As importantes ca-racterísticas herdadas, como o clima, recursos naturais e da população, e outras características fundamentais, tais como artes e cultura abertas; espaços verdes, centros de cidades vibrantes, onde os centros de apren-dizagem podem ser construídos e fortalecidos. Isso fará as comunida-des mais competitivas do que nunca, porque vai criar mais oportuni-dades do que nunca para que as idéias tenham um impacto.(8) Remover obstáculos à criatividade, como a mediocridade, a intolerância, a desconexão, a expansão suburbana, a pobreza, as esco-las ruins, a exclusividade, e a degradação social e ambiental.(9) Assumir a responsabilidade da mudança em sua comunidade. Im-provisar. Faça as coisas acontecerem. O desenvolvimento é um em-preendimento do “faça você mesmo (do it yourself)”.(10) Assegurar que todas as pessoas, especialmente crianças, tenham o direito à criatividade. Maior qualidade da educação ao longo da vida é fundamental para desenvolver e reter as pessoas criativas como um recurso para as comunidades.

Percebe-se pelo manifesto que a comunidade joga um papel essencial para a implantação e sucesso da economia criativa, contudo, se isso parece ser um ponto posi-tivo, surge outro problema: e as lideranças, como surgirão? Tais lideranaças não seriam pré-requisito para qualquer mudança cultural significativa?

Citando apenas o caso de Barcelona, para refletirmos e encerrarmos, o catalão

11 O terceiro lugar ou Third Place e aquele fora do âmbito do trabalho ou da casa, e um espaço compartilhado socialmente.

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Manuel Delgado, em suas análises do “Modelo Barcelona”, tão decantado internacio-nalmente, nos mostra outro lado do processo de internacionalização que a cidade bus-cou durante o século XX. O autor acrescenta quando trata dos bairros “criativos” de Gràcia e Raval, citados anteriormente, que aos urbanistas, políticos e setor imobiliário “parece inaceitável que, justo no centro da cidade, vivam operários, inquilinos de baixa renda e outros elementos escassamente decorativos que possam assustar aos turistas e aos novos proprietários, que eles querem atrair a todo custo”12. Entra um novo dado para as cidades criativas: “o processo inexorável de ilegalização da pobreza”.

Contudo, conforme o gráfico acima mostra, o crescimento do setor de Audi-visual foi enorme; dados disponíveis no Creative Economy Report de 2010 dão conta de que os negócios internacionais triplicaram entre 2002- 2208. As exportações subiram de US$14.1 bilhões para US$ 27.2 bilhões. Porém, foram as economias mais desenvolvidas que dominaram o mercado internacional do audiovisual, concentrando 90% dos negó-cios, tendo os estadonidenses à frente, em seguida Ingleses, Franceses, canadenses e a Hungria como um emergente no setor(CREATIVE ECONOMY REPORT, p. 153). Do outro lado, Índia, México, República da Coréia, Tailândia e Argentina são os principais exportadores de produtos audiovisuais do sul.

Dessa forma, o contexto contemporâneo da economia criativa mostra-se tão se-letivo quanto outros momentos da economia capitalista. Assim sendo, a divisão territo-rial do trabalho apresenta escalas diferentes, ora para cidades mundiais, como Londres ou New York, ora para bairros e distritos de cidades representativas na América Latina e Mercosul, como São Paulo. O gande crescimento do setor pode apontar tendências para cidades médias e grandes brasileiras na criação de locais específicos para a im-plantação e desenvolvimento de produtos e tecnologias ou apoio para desenvolvimento do setor em consonância com áreas tradicionais da cidade.

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rEdES SociaiS móvEiS E ação colEtiva: aPontamEntoS SobrE aS dinâmicaS SociaiS na PaiSagEm midiática contEmPorânEa

jandré batiStaDoutorando em Comunicação Social – PUCRS. Mestre em Comunicação Social – PUCRS. Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo – UCPel.E-mail: [email protected]

Sandra HEnriquESDoutoranda em Comunicação Social - PUCRS (Bolsista FAPERGS/CAPES). Mestre em Comunicação Social - PUCRS. Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo - UCPel.E-mail: [email protected]

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rESumo

O presente artigo objetiva contribuir para a discussão sobre as especificidades das dinâmicas da ação coletiva no contexto das redes sociais móveis. No ambiente comunicacional contemporâneo, diversos dispositivos, como tablets e telefone celulares, oportunizam outras formas e possibilidades de intera-ção social no tempo e no espaço. O sujeito não necessita mais do protagonismo da interação presencial para se articular politicamente. Assim, considerando a difusão das redes sociais móveis, pretende--se discutir aspectos teóricos da transformação das dinâmicas da ação coletiva na paisagem midiática contemporânea. Autores como Simmel (2006), Gohn (1997; 2007), Ling (2004) e Sádaba (2007) balizam a discussão apresentada.

Palavras-Chave: redes sociais móveis; ação coletiva; mobilidade.

abStract

This paper aims to contribute to the discussion about the specificities of the collective action dynamics in the mobile social network environment context. In the contemporary media environment, individu-als can, by using devices such as tablets and cell phones, create (or reinvent) new forms and possibilities of social interaction. The individual don’t need anymore the face to face interaction for political engage-ment purposes. In this perspective, considering the adoption/diffusion and the usage of mobile social networks, we intend to discuss the transformation of collective action dynamics in the contemporary media environment. We base our discussion in the perspective of scholars such as Simmel (2006); Gohn (1997; 2007), Ling (2005) and Sádaba (2007).

Keywords: mobile social networks; collective action; mobility.

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Introdução

O presente artigo pretende discutir as especificidades das dinâmicas da ação coletiva no contexto das redes sociais móveis. Na paisagem midiática con-temporânea, dispositivos como tablets, telefone celular, redes wi-fi permitem

outras formas de interação social no tempo e no espaço. Dessa forma, o indivíduo con-temporâneo não necessita mais da interação face a face para se articular politicamente e buscar seus interesses.

Pensadas muitas vezes no contexto comunicacional pré-Internet, a teoria da ação coletiva não tem acompanhado as transformações das capacidades comunicativas dos sujeitos, ampliadas pelas tecnologias móveis de comunicação e informação. Muitas vezes, as abordagens teóricas estão restritas, em vários aspectos, ao caráter ideológico dessas articulações (Teoria dos Novos Movimentos Sociais, Teoria da Mobilização Polí-tica) e às limitações estruturais dos movimentos para a emergência de ações coletivas. No âmbito da teoria da Mobilização dos Recursos, Olson (1965), por exemplo, assume que a viabilidade de uma ação coletiva se dá em situações em que os grupos se apre-sentam em dimensões reduzidas. A centralidade do seu pensamento recai nas dificul-dades de comunicação e coordenação dos participantes quando inseridos em grupos de maiores proporções.

Assim, o presente artigo pretende traçar apontamentos que permitam escla-recimento sobre como os processos sociais se contróem quando há a possibilidade da mobilidade comunicacional e informacional. Para tanto, num primeiro momento, apresenta-se uma breve descrição teórica dos paradigmas da teoria da ação coletiva, com base principalmente em Gohn (1997; 2007) e Sádaba (2007). Detalha-se a evolução do pensamento sobre as dinâmicas da atuação coletiva, particularizando a Teoria da Mobilização dos Recursos, em Olson (1965), no contexto das novas tecnologias de co-municação e informação.

Num segundo ponto, serão abordadas as características e os eixos fundamen-tais para a formação de redes sociais móveis na sociedade atual. Para tal abordagem,

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o artigo apoiar-se-á nas observações de Recuero (2009) sobre as redes sociais, traçando um paralelo com os aspectos significativos acerca da mobilidade proporcionada pelas tecnologias móveis de comunicação e informação, a partir de autores como Pellanda (2005), Ling (2004), Licoppe e Inada (2009).

Por fim, o artigo propõe-se a realizar uma abordagem dos aspectos que re-lacionam as percepções acerca do indivíduo diante dos processos sociais (SIMMEL, 2006) para, desta forma, compreender como se dá a relação entre a ação coletiva com as redes sociais móveis no presente contexto, revisitando aspectos teóricos e apontando características que pontuem as potencialidades que as redes sociais móveis possuem na difusão e propagação de ações coletivas no cotidiano da sociedade atual. Dessa forma, o presente trabalho pretende contribuir para a compreensão de como as articulações política podem se manifestar no ambiente das redes sociais móveis. A Ação Coletiva no Contexto das Redes Digitais

Entende-se como ação coletiva a comunhão de esforços entre indivíduos para o alcance de objetivos em comum. A definição sugerida parece simples, mas por trás da articulação de atores que visam o mesmo bem comum está incluída uma série de elementos que, postos em juízo, viabilizam ou não os empreendimentos coletivos. O comprometimento do indivíduo com o grupo em que está inserido, ainda que ele seja beneficiado em cooperar com o grupo, passa por crivos motivacionais, interesses pes-soais, incentivos, capital social, entre tantos fatores subjetivos que guiam a racionalida-de do comportamento humano.

O entendimento das dinâmicas do comportamento coletivo orientou as noções acadêmicas sobre os movimentos sociais, as concepções de Estado, mercado e socie-dade, entre tantos outros temas contemplados por diversas áreas interessadas nas re-lações comportamentais do indivíduo junto aos grupos sociais. Associados ao início dos estudos sociológicos nos Estados Unidos (cf. GOHN, 1997; 2007), as ações coletivas foram entendidas a partir de diferentes perspectivas. Em um primeiro momento, no que se chama de paradigma clássico, as ações coletivas foram enquadradas por meio da caracterização sociopsicológica. Nessa abordagem, os movimentos eram entendidos como consequências explosivas e espontâneas das tensões sociais. Eram considerados respostas “às frustrações e aos medos” em face ao processo de industrialização. Nessa fase, que se estendeu até a década de 1960, as ações coletivas não-institucionalizadas eram valorizadas negativamente pelos olhares acadêmicos: os movimentos eram vistos como respostas irracionais e como uma afronta à democracia.

Após esse período, surgiu uma nova corrente interpretativa. Abstraiu-se a

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perspectiva psicológica e se passou a considerar os movimentos sociais como grupos de interesses. O contexto sociopolítico dos Estados Unidos das décadas de 1950 e 1960 superou os moldes impostos pela abordagem clássica. A emergência dos movimen-tos feministas, pelos direitos civis, contra a guerra do Vietnã, os da contracultura etc., conquistou um novo olhar e uma nova valorização social: a Teoria da Mobilização dos Recursos (MR), passando a rejeitar a noção de irracionalidade das ações coletivas (cf. SÁDABA, 20007; GOHN, 2007).

Na perspectiva da MR, as ações coletivas passam a ser vistas sob a perspectiva de uma organização formal. Não há distinção, aqui, como havia na teoria clássica, entre as dinâmicas da ação coletivas e a estrutura de uma organização burocrática, como par-tidos políticos e sindicatos. Ambas são consideradas fundamentais para a democracia. A partir de conceitos extraídos da economia, as categorias de estudo dos movimentos sociais tornam-se os recursos humanos, financeiros e de infraestrutura. Um movimen-to surge, nessa perspectiva, quando se registra um conjunto de condições favoráveis à sua emergência (GOHN, 1997).

Para se entender MR, um postulado é fundamento para a análise: a obra do economista Mancur Olson (1965). O autor possibilitou uma transição de uma acepção considerada acrítica sobre o agir coletivo para então se pensar o comportamento huma-no em grupos sociais a partir de suas relações utilitaristas com o coletivo. Pensada em um contexto pré-Internet, a teoria de Olson é considerada um dos grandes insights da teoria social no século XX (cf. LUPIA e SIN, 2003).

A abordagem rompe com paradigmas: até a década de 60, os pressupostos tra-dicionais sobre a atuação coletiva estavam marcados, tanto pelo meio acadêmico quan-to pelo senso comum, pela ideia de que indivíduos (agindo individualmente) e grupos atuam a partir da mesma lógica de comportamento. Essa noção equivocada, argumenta Olson (1965), implícita ou explicitamente, marcou o fundamento de muitas obras da Economia e da Ciência Política, incluindo os postulados de Karl Marx e Adam Smith.

A problematização das condutas dos atores sociais utilitaristas (que visam ma-ximizar o benefício próprio no âmbito coletivo, os chamados free-riders) é central em seu pensamento. O comportamento racional e egoísta do indivíduo nas relações econô-micas (maximizador de lucros/benefícios), não representa o mesmo empenho social de quando se age individualmente em benefício individual. O comprometimento de um ator social no âmbito de grupos sociais, assim, é marcado por diferentes características.

Para explicar essas considerações, Olson (1965) estabelece critérios para a efi-ciência de uma ação coletiva. A preconização, em seu pensamento, recai sobre as di-mensões dos grupos sociais. Para o autor, a lógica da ação individual se distingue ple-

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namente da dinâmica da ação coletiva (caso os grupos sociais não sejam reduzidos; não se constate instrumentos de coerção ou não haja incentivos seletivos aos contribuintes). As considerações orientam-se em crítica à suposição de que os atores sociais atuam no âmbito coletivo em defesa de seus interesses (compartilhados pelo grupo), em um contexto em que todos que o compõem (o grupo) ganhem, caso o objetivo coletivo seja alcançado (situação definida pela literatura como ‘no excludable good’).

A argumentação de Olson (1965) centra-se na dificuldade dos grupos maiores em termos de organização, de estabelecer internamente um consenso entre os mem-bros e de que as ações individuais sejam notadas/percebidas (caráter de noticiabilidade) pelos demais integrantes. Em grupos maiores, para o autor, é impossível para os mem-bros se reconhecerem em sua totalidade, o que não caracterizaria a vinculação entre os integrantes por laços de amizade (laços fortes, segundo definição de GRANOVETTER, 1973). Dessa forma, quando não há o reconhecimento do empenho ou da omissão de um dos integrantes, o indivíduo não recebe sanções sociais por sua não-participação, nem lhe é atribuído mérito pelo esforço manifestado.

As considerações do autor, dentro da perspectiva da MR, foram recuperadas recentemente por uma série de esforços teóricos (como BIMBER et al., 2005, FLANA-GIN et al., 2007 e MARGETTS et al., 2009). Pela existência de novas possibilidades de interação e organização social, principalmente pela emergência da World Wide Web na década 1990, a ideia do privilégio dos grupos pequenos na consecução das ações coleti-vas começou a ser revista. Grandes multidões, as multidões inteligentes (RHEINGOLD, 2002), possuem hoje um novo aparato comunicacional à sua disposição, o que permite uma revisão da noção dos custos de organização social, dos incentivos seletivos e dos critérios de noticiabilidade em face à comunicação em redes digitais.

Nesses esforços, há uma passagem de valorização das dimensões dos grupos sociais, no âmbito da ação coletiva, para as suas capacidades comunicativas. Sobre o pressuposto de que os grupos pequenos são “mais eficientes e viáveis” (OLSON, 1965, p.2) do que os engajamentos coletivos de proporções maiores (quando não há incentivos seletivos e instrumentos de coerção), argumenta-se no sentido de que a dimensão do grupo social perderia a relevância no contexto da comunicação mediada por compu-tador (cf. LUPIA e SIN, 2003). Em razão da facilidade de comunicação entre os atores sociais, as proporções do grupo não são mais determinantes para a viabilidade de uma ação coletiva, mas sim a capacidade comunicativa disposta pelos sujeitos.

O amplo enfoque da MR sobre questões de mobilização de interesse passou por diversas rupturas no pensamento da teoria da ação coletiva. O olhar essencialmen-te econômico sobre o comportamento humano, sem privilegiar aspectos ideológicos e

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culturais, perde espaço na Teoria da Mobilização Política (MP). No contexto europeu, a perspectiva dos “novos movimentos sociais”, inspirada nos grupos alemães de atuação cívica da década de 1970, evidencia-se em oposição à visão restrita da racionalidade dos grupos sociais presente nas abordagens anteriores. A escolha racional, segundo se defende, não é limitada ao interesse individual. Para os teóricos dos novos movimentos sociais, a teoria da mobilização de recursos não considera o caráter ideológico e identi-tário necessário à emergência de movimentos sociais, considerado, ao contrário, como sua característica fundamental (SÁDABA, 2007).

As redes, enquanto potenciais “mobilizadoras”, passam a atrair o olhar acadê-mico, em uma linha convergente, a partir da década de 1970 na perspectivas das Teorias dos Novos Movimentos Sociais e das Teorias da Mobilização dos Recursos (SCHERER--WARREN, 2006). Diversas teorias acerca das ações coletivas ganham espaço em decor-rência da visibilidade que os movimentos sociais adquiriram, na medida em que a so-ciedade civil passou a assumir características (controle social, limitações das fronteiras nacionais) antes exclusivas à atuação do Estado (GOHN, 1997).

Jordan e Taylor (2004) sugerem que a origem das formas contemporâneas de ações coletivas políticas – populares, ou seja, não institucionalizadas – se deu a partir da década de 60 contra o rápido avanço do liberalismo. A mudança na sociedade – das relações comerciais locais ao fluxo global – gerou transformações sociais expressivas. Como consequência, oportunizaram-se novas formas de participação política. Entre es-sas transformações, os autores citam a passagem do Estado-providência (o estado orga-nizador da economia e o protetor do interesse público) ao Estado mínimo e privatista; do imperialismo ao pós-colonialismo; do analógico ao digital (das cartas aos e-mails, por exemplo), das ações de classe aos novos movimentos sociais.

Os novos movimentos sociais, ao contrário das organizações sociais tradicio-nais (sindicatos, partidos políticos etc.), não são caracterizados pelas construções iden-titárias arraigadas à estrutura social (proletariado, camponeses, burguesia). A posição dos atores sociais no sistema não determina a emergência desses movimentos: ao con-trário, o engajamento tende a ser de caráter universal (em defesa dos direitos humanos, por exemplo) e socialmente diversificado (não centrado necessariamente em aspectos socioeconômicos). O conflito social condutor dos movimentos não se refere mais a um paradigma evolucionário do sistema econômico (lutas guiadas pelo socialismo) e, final-mente, a restrição institucional do espaço político tampouco se apresenta centralizada/unificada, mas com a tendência de politização de espaços comuns à vida social (cf. PRUDÊNCIO, 2006).

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Redes Sociais Móveis: novas formas de agrupamento

Por meio das ferramentas de comunicação mediadas pelo computador, a possi-bilidade de expressão e socialização dos indivíduos foi ampliada, tornando a interação um reflexo do cotidiano dos indivíduos em sociedade. O ciberespaço passou a ser um local de interação, de trocas; desde o surgimento da web, na década de 90, fazendo parte do cotidiano social quase que de forma imperceptível. Os grupos expressos na internet constituem uma rede social, que pode ser definida como um conjunto entre os atores (indivíduos, instituições ou grupos: os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais). Nas redes sociais, “se observam os padrões de interação de um grupo social, a partir das conexões estabelecidas entre os diversos atores” (RECUERO, 2009, p. 24).

As redes sociais na internet mostram que esse cotidiano atualmente é vivido também por meio da interação mediada pelo computador, em que o espaço virtual é um dos locais de troca que potencializa o desenvolvimento da socialidade dos indiví-duos, que buscam também a construção de laços sociais com outros sujeitos. No entan-to, novas mudanças no contexto da interação entre os indivíduos são percebidas.

Com o avanço das tecnologias móveis de comunicação e informação (telefone celular, tablets, Wi-fi), as quais são desenvolvidas cada vez mais por meio da mobili-dade tecnológica, o acesso always on vem abrindo caminho para uma nova forma de distribuição e colaboração de informação, fazendo com que os indivíduos de culturas e classes sociais diferentes passem a interagir e distribuir informações em tempo real. Essa possibilidade passa a fazer cada vez mais parte do cotidiano dos indivíduos. Esse novo contexto traz à tona novas apropriações dos espaços urbano e virtual, de forma que eles se tornem híbridos. Tais apropriações se dão por meio das tecnologias móveis. A informação e a interação são trocadas no ambiente virtual e aplicadas no real (PEL-LANDA, 2009).

Ling (2004) salienta que, com as tecnologias móveis de comunicação e informa-ção, principalmente o telefone celular, é talvez a primeira vez na qual seja possível falar em interação pessoal, individualizada, mediada eletronicamente. Segundo ele, esse po-tencial da tecnologia pode significar que existem prováveis alterações na forma como as redes sociais interagem entre si. “A mudança para a telefonia móvel significa que existem novas possibilidades quando se consideram as formas em que a interação é organizada, os grupos são definidos e a ação social tem lugar”1 (LING, 2004, s. p.).

O uso de sistemas de geolocalização, como GPS em dispositivos móveis, é tam-bém um fator que influencia nas relações sociais dos indivíduos. Segundo Licoppe e

1 Tradução dos autores: The shift to mobile telephony means that there are new possibilities when considering the ways that interaction is organized, groups are defined and social action takes place.

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Inada (2009), o sistema representa uma área de atividade acessível por telas móveis, em que as posições dos indivíduos estão diretamente relacionadas com a sua real posição no espaço. A atividade no espaço virtual é articulada com o espaço urbano, via loca-lização geográfica, constituindo um espaço compartilhado, um meio para a atividade coletiva, em que os indivíduos e seu ambiente informacional são visíveis por meio de telefones celulares. Eles podem contribuir para tornar os encontros significativos e in-fluenciar no curso das interações. A localização das pessoas ao redor por meio do sis-tema de GPS nos celulares é um dos fatores determinantes para as novas apropriações dos espaços urbanos, contribuindo para a formação de novas formas de interação: as redes sociais móveis.

Assim, entende-se que as redes sociais móveis são interações sociais propor-cionadas pelas tecnologias móveis de comunicação e informação ocorridas no contexto dos espaços urbanos das cidades (HENRIQUES, 2011). O que diferencia as redes so-ciais móveis dos demais agrupamentos e redes contidos na sociedade é o fato de estas tornarem possível que os indivíduos acessem conteúdos na web enquanto estão em movimento. É o contexto móvel no qual a sociedade atual faz parte que possibilita essa formação diferenciada. Há uma mudança de perspectiva, de ambiente de interação, aliada a uma nova percepção dos espaços. Dessa forma podem-se ressaltar quais as características que possuem as redes sociais móveis e quais os contextos nos quais elas se diferenciam (HENRIQUES, 2011):

- Dinâmicas sociais: As redes sociais estão sempre em transformação e ne-cessitam da formação de laços sociais como fator determinante para a consolidação desses agrupamentos. O laço social depende do grau de investimento dos indivíduos, podendo ser fraco ou forte. As redes sociais móveis mudam sua estrutura de forma muito rápida, dispersando-se nos espaços híbridos conforme seu grau de interesse em determinado assunto. Nesse caso, o laço social se dá pelo sentimento de pertença do in-divíduo a determinado assunto ou ação social; a interação passa a não ser apenas entre os indivíduos e o meio que media sua comunicação.

- A geografia da Rede: Antes do desenvolvimento das tecnologias móveis de comunicação e informação, a interação social entre os indivíduos conectados à web era realizada em locais estáticos, determinados, que possuíam computadores carrega-dos de fios, proporcionando a conexão global entre os indivíduos. Com as tecnologias móveis, os indivíduos passam a ter acesso e a interagir tanto em contexto global como local, devido à mobilidade permitida pela tecnologia. Essa alteração na geografia da Rede enfatiza um aspecto fundamental para a consolidação das redes sociais móveis.

- O Conteúdo: Além do acesso a informações em qualquer local por meio da telefonia celular, os indivíduos possuem a possibilidade de capturar as informações

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dos fatos em tempo real, no momento em que eles estão acontecendo. O uso das tecno-logias móveis de comunicação e informação impulsiona o desenvolvimento de outro modelo de troca de informações, podendo gerar redes sociais móveis e impulsionar ações coletivas.

- Sistema de geolocalização: Com o uso destes sistemas, por meio de conexão sem fio e coordenadas de um GPS, este último usado em telefones celulares, a atividade dos indivíduos no espaço virtual é articulada com o espaço urbano, via sua localização geográfica, compartilhando os espaços. Esses sistemas podem contribuir para tornar os encontros significativos e influenciar no curso das interações nas ações coletivas. Ao informar sua localização, os indivíduos não somente apontam onde estão na cidade, mas também criam um mapa cognitivo do espaço urbano, desenvolvendo espaços iti-nerantes de socialidade, alterando as experiências dos indivíduos nos espaços. As redes sociais móveis utilizam-se destes sistemas para se conectar, para unir os grupos, para identificar onde está a informação que deseja ter acesso.

- Narrativas hiperlocais: As redes sociais móveis possuem a característica de revalorização dos locais, das cidades, das comunidades como forma de trazer à tona as-pectos que até então estavam dispersos diante da globalização mundial. As interações sociais dos indivíduos eram realizadas em grande parte de forma desterritorializada, na qual a comunicação se dava mais com pessoas ao redor do mundo e em menor número com outros que estavam ao redor do indivíduo. Com o desenvolvimento das tecnologias móveis de comunicação e informação, principalmente com o tripé telefone celular, conexão de internet sem fio e sistema de geolocalização via GPS, os locais e as relações sociais entre os indivíduos de uma mesma cidade ou região passaram a ser potencializadas. As redes sociais móveis estão em constante captura dos instantes dos locais, dos fatos e contextos referentes às localidades.

A partir das características apontadas, podemos, então, apontar quais são os eixos principais para que as redes sociais móveis possam existir:

1. Indivíduos: Através de suas práticas sociais cotidianas os indivíduos inte-ragem e formam grupos, como algo inerente ao ser humano e à construção da sociedade. São eles os responsáveis pela existência das redes sociais e, com o uso de tecnologias móveis, estas redes passam a ser potencializadas ganhando mobilidade nos espaços. O cotidiano dos indivíduos é fator fundamental das redes sociais móveis, pois é ele quem estimula a formação dessas redes.2. Tecnologias móveis de comunicação e informação: Proporcionando a mo-bilidade dos sujeitos nos espaços, as tecnologias móveis de comunicação e in-formação, têm papel fundamental no desenvolvimento de redes sociais móveis,

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pois é por meio dessas plataformas que o indivíduo pode se deslocar de um espaço a outro, interagindo com outros que estão nos mesmos espaços físicos e com outros indivíduos que estão conectados aos espaços virtuais ao mesmo tempo. O acesso à informação, bem como a publicação de informações por parte dos indivíduos, dá-se em tempo real em qualquer local onde o indivíduo esteja.3. Espaços Híbridos: Os espaços utilizados pelos indivíduos com as tecnologias móveis de comunicação e informação são espaços híbridos, espaços que mes-clam o urbano, o físico das cidades e os ambientes virtuais. São novas percep-ções dos espaços que se definem com a potencialidade das redes sociais móveis.

Redes Sociais Móveis e Ação Coletiva

Os indivíduos possuem características referentes aos seus próprios sentimen-tos, impulsos e pensamentos contraditórios. De algum modo, deveriam decidir com segurança interna entre suas diversas possibilidades de comportamentos. Enquanto ser social, a determinação de orientações de ação dos grupos sociais seria caracterizada por uma “lei natural” que impulsiona as relações entre os indivíduos (SIMMEL, 2006), que a manifestam através de símbolos. Dessa forma, é possível inferir que cada grupo se forma mediante um contexto que une os sujeitos em função de determinados inte-resses, que são compartilhados pelo grupo, formando assim redes sociais a partir das relações entre os indivíduos e a sociedade.

Quando inseridos em grupos, as vontades são compartilhadas entre todos e dentro de cada um, somando-se e fazendo valer a unidade que irá mobilizar o grupo (SIMMEL, 2006). Assim, constroem-se as redes no contexto social atual, embasadas nas trocas, em que um indivíduo exerce efeito sobre os demais, e também sofre efeitos por parte deles. É o que Simmel (2006) denomina “sociação”, ou seja, tudo o que está pre-sente no indivíduo de modo a engendrar ou mediatizar sobre os outros, ou a receber esses efeitos dos mesmos.

Embora não se referindo diretamente ao termo “redes sociais”, o autor salienta que as “massas” - os grupos - partilham de um mesmo sentimento e motivação que faz com que surja uma espécie de coletivismo que pode ser direcionado para os mais di-versos fins e que, em grupo, o indivíduo vai além das noções de consciência individual, “esse fenômeno se deve provavelmente à influência mútua, ocorrida por intermédio das emanações de sentimentos difíceis de detectar” (SIMMEL, 2006, p. 52). Esses senti-mentos podem demonstrar uma satisfação de estar juntamente socializado.

Os grupos sociais possuem direções para suas ações muito mais definidas do

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que o indivíduo. A busca pelo alcance de um objetivo comum seria a finalidade das ações grupais, a unidade de uma rede é fortalecida pela diversidade de indivíduos que a compõem. As trocas entre os indivíduos são partilhadas almejando algo que lhes é de vontade comum. Segundo Simmel (2006), a própria sociedade, em geral, significa a interação dos indivíduos, e esta surge a partir de determinados impulsos ou da busca de certas finalidades compartilhadas. Esses interesses, sejam sensoriais, ideais, mo-mentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, casuais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana.

As reflexões realizadas por Simmel permitem uma observação, ainda que bre-ve, de como o indivíduo se traduz em sociedade, formando agrupamentos com fins sociais compartilhados. Com essas explanações, torna-se possível compreender como se dá o processo de difusão das ações coletivas em um contexto permeado pela mobi-lidade tecnológica e que propicia a formação de novos grupos, como as redes sociais móveis.

No contexto das redes sociais móveis, as dinâmicas sociais no âmbito da ação coletiva transformam-se potencialmente. Os laços sociais (fracos) são mais facilmente construídos. Não há a necessidade de vinculação por laços mais fortes (em grupos pe-quenos) para a consecução de uma ação coletiva; os engajamentos contemporâneos são capazes de surgir de forma espontânea e em grandes proporções.

As dimensões reduzidas de um grupo e o planejamento de ações, assim, não assumem necessariamente mais o papel de protagonistas, diferentemente do defendi-do por Olson (1965), no âmbito da Teoria da Mobilização dos Recursos. Os indivíduos juntam-se de forma rápida, da mesma forma que se dispersam. Os custos em participar de ação coletivas são ainda mais reduzidos, pois há o estabelecimento de outra lógica de custo/benefício: as capacidades comunicativas entre os sujeitos superam as dificul-dades de operacionalização da movimentos sociais. Dessa forma, atos isolados podem servir como elemento catalisador e mobilizador de ações, como foi o caso da chamada Primavera Árabe, em 2011. Um nacional da Tunísia, cidadão “comum”, incitou protestos capazes de contribuir para a queda de ditadores por todo o continente e o Oriente Mé-dio e de levar ondas de mobilizações pelo mundo (cf. BATISTA, 2012).

Em relação a geografia da rede, as ações coletivas podem ser apontadas como sendo realizadas em espaços híbridos (espaço urbano e espaço virtual), reunindo a amplitude da interação proporcionada pelas tecnologias digitais e a potencialização de mobilidade dos agrupamentos possibilitada pelas redes sociais móveis. EsSas redes ampliam o processo de formação de grupos com interesses comuns que se mobilizam em ações coletivas utilizando o espaço virtual e o espaço físico como lugares de inte-ração e construção do processo social. Como os “nós” estão sempre em movimento e

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conexão, as ações coletivas passam a refletir estas novas formas de participação dos indivíduos na sociedade atual.

O acesso e a geração de conteúdos nas redes sociais móveis proporcionam ao indivíduo a expansão das possibilidades de interação no tempo e no espaço. A pos-sibilidade de comunicação síncrona (em tempo real) fornece elementos potenciais de mobilização. O indivíduo é capaz de alimentar, instantaneamente, toda uma rede de apoio e coordenador as suas ações com demais contribuintes em potencial. A comuni-cação assíncrona em rede, por sua vez, permite eliminar a necessidade de sincronia do elemento tempo nas interações sociais. O indivíduo passa a estar sempre conectado.

Os sistemas de geolocalização (GPS) são importantes na consolidação das ações coletivas potencializadas pelas tecnologias móveis. Estes sistemas podem influenciar os processos de interação e construção de grupos a partir de seu funcionamento básico, que é informar a localização dos indivíduos, pois evidenciam um mapa cognitivo do espaço urbano, apontando lugares de sociabilidade. O GPS proporciona que os indiví-duos pontuem o que está acontecendo em determinados locais, potencializando, dessa forma, a possibilidade de ações coletivas de interesse comum.

Diante das narrativas hiperlocais, característica das redes sociais móveis, é pos-sível compreender que as ações coletivas passam a ser difundidas cada vez mais em contextos locais, lugares territoriais de convívio entre os indivíduos, porém potenciali-zadas pelas tecnologias móveis. Os locais de mobilização passam a ser reapropriados pelos indivíduos que possuem sua interação e possibilidade de ação coletiva ampliados por essas tecnologias. Os espaços comuns de interação, antes distantes da política, pas-sam a ser apropriados para esse fim, conforme pontua a perspectiva dos novos movi-mentos sociais.

Desta forma, é possível perceber que há uma diferenciação no processo de fo-mentação das ações coletivas com o desenvolvimento das tecnologias digitais, com a web a partir da década de 90, e principalmente, com o aperfeiçoamento das tecnologias móveis de comunicação e informação. Essa amplitude na formação dos agrupamentos com fins coletivos se dá por meio do potencial de propagação da interação proporcio-nada por estes dispositivos, construindo, assim, novas possibilidades de ações coletivas na sociedade atual. É possível perceber este novo contexto quando as mobilizações dos indivíduos são muitas vezes organizadas por meio dos dispositivos móveis, que pas-sam a servir não somente como meios de comunicação e interação, mas também como ferramentas que possibilitam a troca de informações e a oportunização de diversas manifestações sociais.

Exemplo disto são as smart mobs, grupos formados que se unem em multidões para realizar um conjunto de ações coletivas com finalidades artísticas, ou até mesmo

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com um cunho ativista. Elas são constituídas por pessoas que são capazes de agir jun-tamente mesmo sem se conhecer. As pessoas que participam dos smart mobs cooperam de maneira inédita porque dispõem de aparatos com capacidade tanto de comunicação como de computação (RHEINGOLD, 2002). O exemplo ilustrativo do autor, utilizado exaustivamente em sua obra, é o caso da mobilização de janeiro 2001, nas Filipinas. O presidente Joseph Estrada renunciou após mais de um milhão de pessoas, mobilizadas por mensagens SMS, exigirem o processo de impeachment. Outra tendência na forma-ção destes grupos é chamada de flash mobs, que, embora sejam caracterizadas da mes-ma forma que as smart mobs, possuem uma peculiaridade: a instantaneidade e a rápida dispersão dos indivíduos.

O que diferencia as smart mobs de outras multidões organizadas é o uso de tecnologias móveis de comunicação e informação como potencializadoras das ações coletivas em espaços públicos. Essas redes marcam lugares físicos de concentração. Re-inghold (2002) denomina esses agrupamentos como redes sociais ad hoc móveis, termo utilizado para denominar os “coletivos inteligentes”. Estes coletivos inteligentes são apontados como propulsores das ações coletivas nos atuais tempos móveis vividos pela sociedade. Esses novos tempos constituem formas de socialidade nas quais o cimento social é fortificado por um anseio de estar-junto, de construção de laço social, valori-zando as interações sociais.

Considerações Finais

O presente trabalho buscou contribuir para a compreensão das implicações so-ciais decorrentes da difusão das redes sociais móveis. Abordou-se o pensamento sobre as dinâmicas da ação coletiva, especialmente na Teoria da Mobilização dos Recursos, objetivando transpor aqueles conceitos – pensados no contexto pré-Internet – para a paisagem midiática contemporânea.

Primeiramente, inicia-se a discussão trazendo um breve relato sobre a evolu-ção do pensamento acerca das dinâmicas da ação coletiva. Com base em Gohn (1997; 2007), apresenta-se os principais paradigmas sobre as abordagens teóricas da ação cole-tiva. Ressaltam-se principalmente os aspectos da Teoria da Mobilização dos Recursos, em Olson (1965), transpostos para o contexto das novas tecnologias de comunicação e informação.

Em um segundo momento, abordam-se as características das redes sociais mó-veis e os eixos básicos para a sua formação no contexto contemporâneo. A discussão está centrada em Recuero (2009), no que tange as características das redes digitais, e à noção de mobilidade das tecnologias de comunicação e informação (cf. PELLANDA,

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2005; LING, 2004; LICOPPE e INADA, 2009).Por fim, faz-se uma observação das redes sociais móveis e sua influência nas

ações coletivas no contexto social atual, apontando aspectos que demonstram que os engajamentos contemporâneos são potencialmente mais efêmeros, mas podem ser constituídos em grandes proporções. Os agrupamentos entre os indivíduos são realiza-dos de forma rápida e, dispersando-se da mesma forma.

As redes sociais móveis ampliam o processo de formação de ações coletivas, utilizando o espaço virtual e o espaço físico como lugares de interação e construção do processo social. A mobilidade proporcionada pelas tecnologias móveis de comunicação e informação influenciam de forma determinante na formação de grupos de interesse comum que possuem um potencial de desenvolvimento de ações coletivas, passando estas a refletir novas formas de participação dos indivíduos na sociedade atual.

O presente trabalho objetivou discutir as implicações sociais acerca das mu-danças que as novas tecnologias introduzem na sociedade atual, apontando para os aspectos que ressaltam a amplitude da interação social entre os indivíduos e para a possibilidade que estes passam a ter quando munidos de tecnologias que impulsionam as redes sociais móveis como fatores fundamentais relacionadas às ações coletivas. Po-de-se perceber o potencial das redes sociais móveis para ações coletivas que resultam em mobilizações sociais. Há, nesses casos, uma interação entre os indivíduos geradora de manifestações em prol de um fato ocorrido em um local em tempo real, o que ape-nas pode ser possível com o desenvolvimento das tecnologias móveis de comunicação e informação.

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o tWittEr como fErramEnta EStratégica Para a comunicação audioviSual: EStudoS dE caSoS

raul ParrEira maciElMestre pelo departamento de Cinema e Audiovisual da Université Sorbonne-Nouvelle - Paris 3, em Paris, França. Bacharel pelo Curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected]

joão carloS maSSaroloCineasta, professor universitário, Doutor em Cinema e Audiovisual pela USP. É professor associado do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, desde 1992 e, atualmente, coordena o Grupo de Estudos em Mídias Interativas em Imagem e Som.Email: [email protected]

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rESumo

No contexto atual das comunicações, e particularmente da internet, em que a visibilidade, a conquista da atenção do consumidor e consequentemente a prescrição social possuem enorme valor comercial, o twitter pode ser considerado mais uma rede social entre tantas outras. Todavia, dadas suas especifi-cidades, ele mostra-se uma poderosa ferramenta estratégica de comunicação e marketing. É assim que ele se impõe, essencialmente por meio das formas como gere as trocas de informações entre os usuá-rios. São essas formas e o próprio twitter como ferramenta que devem ser analisadas aqui do ponto de vista da estratégia de comunicação para o audiovisual. A intenção deste estudo não é defender as capacidades do twitter como ferramenta estratégica, mas analisar casos específicos para demonstrar as possibilidades de ação na rede social.

Palavras-Chave: Marketing. Rede social. T witter.

abStract

In the current context of communications, and particularly the internet, where the visibility, the con-quest of the consumer’s attention and consequently the social prescription have huge commercial value, twitter can be considered more of a social network among many others. However, given its specifics, it shows up a powerful strategic tool for communication and marketing. That’s how it is imposed mainly by the ways it manages the exchange of information between users. Are these forms and even twitter as a tool to be examined here from the perspective of the communication strategy for the audiovisual. The intention of this study is not to advocate the capabilities of twitter as a strategic tool, but analyze specific cases to demonstrate the possibilities for action in the social network.

Keywords: Marketing. Social Network. Twitter.

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I Introdução

No contexto atual das comunicações, e particularmente da internet, em que a visibilidade, a conquista da atenção do consumidor e consequentemente a prescrição social possuem enorme valor comercial, o twitter pode ser considerado mais uma rede social entre tantas outras. Todavia, dadas suas especificidades, ele mostra-se uma po-derosa ferramenta estratégica de comunicação e marketing. É assim que ele se impõe, essencialmente por meio das formas como gere as trocas de informações entre os usuá-rios. São essas formas e o próprio twitter como ferramenta que devem ser analisadas aqui do ponto de vista da estratégia de comunicação para o audiovisual.

Primeiramente, a rede social será apresentada: sua interface, seu meio ambiente e suas ferramentas. Em seguida, alguns modelos de comportamento bem sucedidos de empresas e marcas serão colocados. Finalmente, será feita a análise comparativa de dois casos em que o twitter está no cerne de uma estratégia de Social TV.

A intenção deste estudo não é defender as capacidades do twitter como ferra-menta estratégica, mas analisar casos específicos para demonstrar as possibilidades de ação na rede social.

1 O twitter, sua interface e seus modos de uso

Colocado no ar pela primeira vez em 13 de julho de 2006 , o twitter apresenta uma mistura entre rede social e microblog1 em que o usuário pode atualizar sua página a partir de mensagens limitadas a no máximo 140 caracteres. Essas mensagens chama-das de tweets são, a princípio, públicas, o que permite aos usuários de seguirem uns aos outros sem a necessidade de uma autorização. Cada usuário possui sua página pes-soal onde são dispostas todas as suas postagens. Da mesma forma, a página de entrada do twitter apresenta o conjunto das postagens de todos os usuários que estão sendo seguidos, em tempo real.

A interface da rede social permite ao usuário seguir as pessoas que lhe interes-

1 Em outros termos, um derivado conciso do blog.

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sam, ao passo que cada um é advertido por e-mail quando alguém passa a lhe seguir ou quando é mencionado. O esquema de assinaturas (following) não é necessariamente recíproco e, por sua vez, os laços entre as diferentes contas de usuário nem sempre re-presentam conexões de uma rede social, mas fluxos de interesse que podem ser unila-terais2. Além disso, os tweets podem ser diretos ou indiretos. Estes são diretos quando um usuário quer falar diretamente a outro (@fulano) no twitter. Esse tipo de postagem é caracterizado pela presença da arroba - @ - seguida do pseudônimo do usuário a quem a mensagem se dirige. Contudo, esse tipo de tweet mais orientado trata-se também de uma mensagem pública. Assim, muitas vezes, uma mesma mensagem ou troca de mensagens pode envolver diversos usuários. Em torno de 25% de todos os tweets são diretos, o que demonstra a forma como os usuários referem-se entre si frequentemente.

Da mesma forma que o facebook, o twitter oferece inputs e outputs por meio de plug-ins que podem ser utilizados em páginas externas da internet. Por exemplo, por meio de um simples botão é possível emitir um tweet com um URL, seguir um dado usuário do twitter ou mesmo de postar um tweet direto a um usuário @fulano. Em seguida, nos estudos de caso, será mostrada a integração cada vez mais intensa entre a rede social e a interface das páginas externas. Como pode ser notado, existem maneiras diversificadas a partir das quais se pode aproveitar do potencial de comunicação do twitter.

É a partir dessa rede de citações e de menções mútuas que se pode compreen-der de forma aprofundada os círculos de influência que se estabelecem no twitter

« Many people, including scholars, advertisers and political acti-vists, see online social networks as an opportunity to study the pro-pagation of ideas, the formation of social bonds and viral marketing, among others. This view should be tempered by our findings that a link between any two people does not necessarily imply an interaction between them. As we showed in the case of Twitter, most of the links declared within Twitter were meaningless from an interaction point of view. Thus the need to find the hidden social network; the one that matters when trying to rely on word of mouth to spread an idea, a be-lief, or a trend.»3

É fundamental a compreensão da diferença entre os laços virtuais e as ligações reais que se apresentam no twitter, porque o número de assinaturas de uma dada con-ta não tem qualquer valor se estas assinaturas não forem observadas como interações que ocorram de fato entre os usuários. Por isso é necessário compreender quais são os círculos de influência estabelecidos na rede social, ou mesmo, qual é a verdadeira rede

2 HUBERMAN, B.A., ROMERO, D.M.; FANG,W. 20083 Idem

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social que se estabelece ali. Em razão de sua característica simples, direta e mediata, o twitter tornou-se

um meioambiente altamente favorável à prescrição social. Essa simplicidade tem por consequência a representação, nem sempre fiel, mas em tempo real, dos assuntos e te-mas que estão sendo mais e menos comentados pelo conjunto de usuários da rede. De um lado, a ferramenta de pesquisa baseada nas palavras-chave e hashtag - # - pode ser utilizada para saber o que está sendo dito sobre um dado assunto. Por outro lado, os temas em evidência – trending topics, TT’s – apresentados pelo twitter (geralmente à esquerda da página inicial), serve como termômetro do que está sendo mais comentado no momento. É por isso que até mesmo os jornalistas têm recorrido com frequência aos TT’s como ferramenta de trabalho.

Em síntese, o twitter trata-se de um catalisador de informações e opiniões bas-tante eficaz para a comunicação estratégica de indivíduos e empresas em geral. Na ver-dade, sabe-se que a forma da ação de uma empresa nas redes sociais pode mudar a ima-gem que os consumidores têm de uma dada marca, influenciando sua satisfação e suas compras em um futuro próximo. Tais efeitos de ação e reação estruturam-se nas redes sociais por meio do “boca à boca”, chamado em inglês pela sigla WOM (word of mouth). Em tese, a eficiência do twitter para a comunicação estratégica é hoje incontestável4. To-davia, quais são os meios para se colocar em prática essas noções teóricas? Enfim, quais métodos e estratégias devem ser adotados para se ter os melhores resultados?

2 Estratégias de comunicação no twitter: noções gerais

Desde o usuário de conta pessoal, indivíduo que compartilha -URL’s de sites da internet que lhe interessam e pequenos comentários sobre coisas do cotidiano ou assuntos em evidência - até contas de empresa, cujos objetivos de comunicação são evi-dentemente comerciais, o twitter possibilita formas de uso amplamente diversas. Ainda assim, existem alguns conselhos gerais5 para quem procura ser bem sucedido na rede, independentemente do caso.

Primeiramente, é altamente recomendável que o usuário transpareça genero-sidade, humildade e humanidade, o que pode parecer óbvio demais, mas que, na reali-dade, trata-se de um comportamento comumente apreciado, mas que não é tão fácil de encontrar no dia a dia em nossa sociedade. De fato, esse conselho vale especialmente às empresas e marcas, em que o senso de humanidade e de pessoalidade deve ser um diferencial. Dessa forma, a representação da empresa no twitter – geralmente feita pelo

4 JANSEN, B.J. ; ZHANG, M. et al. 20095 GILBREATH, Bob. 2011

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responsável das mídias sociais ou por uma empresa terceirizada especializada – deve evitar o comportamento frio e distanciado, típico do mundo dos negócios. A ideia ini-cial deve ser aproximar a marca do consumidor. Afinal, no twitter todos os usuários estão, a princípio, em pé de igualdade, com os mesmos poderes e ferramentas ofereci-das pela rede social. Portanto, pode ser feita uma analogia entre a comunicação com o consumidor no twitter e um encontro hipotético casual nas ruas ou em um café, por exemplo6. De certa forma, o contexto comunicacional oferecido pelo twitter não é tão diferente do que acontece em nossa sociedade há milênios por meio da cultura oral, em que os formadores de opinião não formam uma rede de influência vertical, e sim, ho-rizontal, e ocorre no interior de cada grupo de forma essencialmente informal. Assim, no twitter os formadores de opinião atuam em diversos setores, contudo, preservando sempre o aspecto horizontal inerente à cultura oral.

É por esse motivo que, em relação à estratégia de comunicação, torna-se ain-da mais necessária a reflexão sobre aquilo que deve ser o conteúdo apresentado nos tweets. Nesse momento, é essencial que se pense sob a ótica do marketing, mas tam-bém seja priorizado o conteúdo. Nesse sentido é importante ter em vista que os usuá-rios escolhem aqueles que devem ser seguidos principalmente em função de critérios pessoais de gosto e interesse. Portanto, seja por meio de links para páginas que pos-suam uma relação relevante com a marca ou seus produtos, seja por meio de conteúdos criados originalmente para a ação de marketing, é essencial que a maioria dos tweets apresente conteúdos cativantes e interessantes que possam conquistar a atenção do pú-blico consumidor. Além disso, são essas características que, e um primeiro momento, devem conquistar a atenção dos usuários para, em um segundo momento, conduzi-los a retuitar – compartilhar em sua própria linha do tempo, em sua própria página e para aqueles que o seguem – esse conteúdo e, consequentemente, a imagem da marca.

Por todas essas razões, é essencial a busca do público-alvo da marca no twitter. É possível que isso seja feito por meio do mecanismo de pesquisa oferecido pela rede social, mas também por meio das listas públicas organizadas por categorias de inte-resse criadas pelos próprios usuários. Além disso, caso não seja possível encontrar o consumidor antes que ele encontre a conta de twitter empresa, é também importante aproveitar esse momento. Primeiramente, buscar efetivar os laços de comunicação com o usuário, mencionando-o por meio do seu @pseudônimo, mas também analisando cada caso individualmente para se propor uma resposta dentro de fins estratégicos. Situações em que o consumidor critica a marca ou seus produtos, por exemplo, podem se tornar ótimas oportunidades para estabelecer um diálogo positivo e construtivo em

6 JANSEN, B.J. ; ZHANG, M. et al. 2009

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que a boa imagem da empresa ou marca é estabelecida.

II O twitter no audiovisual : análise comparativa

Esses conselhos e etapas apresentadas são apropriadas também para a estraté-gia de comunicação de empresas, marcas e produtos do audiovisual. Contudo, agora, devem ser tratadas as possibilidades de uso estratégico do twitter com o foco no con-texto das produções televisuais.

A busca de visibilidade nas redes sociais pelas emissoras de televisão não ocor-re por acaso. De fato, “segundo o twitter, 80% dos tweets são gerados pela televisão. Desses, 62% são de mulheres e 49% de homens conectados à internet enquanto assistem televisão.”7 Esse é um dos motivos pelo qual o interesse na integração entre a TV e as redes sociais faz parte de uma lógica de comunicação que se apropria da cultura oral, do “boca a boca”, como forma primordial de marketing, o que vem se configurando sob a noção de TV social.

Contudo, a TV social pauta-se por outros critérios, além daqueles apresentados acima como conselhos gerais de comportamento, pois não se trata somente de consti-tuir uma conta de usuário e gerenciar a imagem da marca, empresa ou produto a partir desta. Mas, sobretudo, de criar e incentivar o fluxo de informações, opiniões e trocas diversas entre usuários a respeito de um dado conteúdo televisivo. Independentemente do conteúdo do discurso encontrado nessas trocas, o mais importante é estar em ten-dência e contar com a prescrição social para a difusão do próprio conteúdo televisivo e, assim, alcançar a ampliação e o engajamento do público.

Abaixo serão apresentados estudos de dois casos de redes de TV de países dis-tintos, uma francesa e outra brasileira, em que são propostas estratégias inovadoras do uso do twitter para a social TV.

1 A TF1 francesa e o projeto « Tweet-Replay »

O grupo francês de comunicação TF1 propôs recentemente um projeto que consiste na integração entre twitter e o programa de televisão no momento em que este está sendo difundido, mas com o foco dessa integração na disponibilização de dados para a redifusão posterior na internet. O projeto chama-se “Tweet-replay”8 e faz refe-rência à emissão em replay, quando o público acessa pela internet o conteúdo que já foi difundido pela rede de TV.

7 ROBERTS, I. ; GARRIGOS, R. 20118 URL para o « Tweet – Replay » : http://www.tf1.fr/labs/tweet-replay/

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Desde sua privatização, em abril de 1987, o grupo TF1 tem procurado estraté-gias diferenciadas de comunicação para aumentar sua audiência. Por exemplo, com o projeto de TF1vision o grupo foi um dos primeiros a adotar a lógica do cross-media para difundir seus produtos em diferentes suportes. Esses tipos de projetos fazem par-te do departamento marketing 360º da empresa, que se ocupa da comunicação desde os outdoors, cartazes e anúncios televisivos até aquilo que é feito na internet.

É importante contextualizar que a prática do replay- adotada pela maior parte das companhias de TV brasileiras em seus respectivos portais da internet de forma ainda incipiente - é uma prática corrente e organizada entre as emissoras francesas, constituindo parte da estratégia de entrada no mercado do VOD (vídeo on demand). Uma estrutura nesses mesmos moldes de disponibilização do conteúdo online foi re-centemente adotada, ainda em período de testes (beta), pela Rede Globo no portal glo-botv.globo.com.

O “Tweet-replay” consiste no registro de um dado programa de TV simulta-neamente ao acompanhamento e registro dos tweets que citem quaisquer palavras--chave relacionadas ao programa em questão. Em seguida, esse conjunto formado pelo programa em si e pelos tweets registrados é disponibilizado na internet no site da TF1 sob a forma de uma linha do tempo em que é mostrada a barra de status do avanço do vídeo exibido paralelamente aos tweets que foram postados no decorrer do tempo em que aquela emissão foi feita, originalmente na TV.

Para um primeiro teste, o TF1 propôs o sistema do “tweet-replay” na grande final do programa “Dança com as estrelas”. Em seguida, fez também uma experiência com a final do concurso de “Miss França” e depois com o “Téléfoot”, emissão de opi-nião sobre eventos esportivos. No primeiro caso, foram registrados quase 10 mil tweets, em torno de 60 por minuto. Esse número aumentou para mais de 32 mil, sendo 44 por minuto, durante a emissão do “Miss França”. Entretanto, já em “Téléfoot” não houve mais do que 2 mil tweets ao todo, em torno de 3 por minuto. Essa diminuição pode ser explicada, principalmente, pela mudança temática e de público- alvo. De todo modo, tratam-se de números relevantes levando em conta os padrões franceses de utilização do twitter, que são bem mais modestos que os brasileiros.

Apesar do sucesso obtido, o TF1 ainda não alcançou ganhos de dinheiro com publicidade diretamente na página do “Tweet-Replay”. Na verdade, existe um erro es-tratégico grave na interface proposta, que consiste essencialmente da reprise online, replay, acompanhada dos tweets registrados em tempo real enquanto o programa era exibido na TV. Todavia, o problema é que essa interface tem sido usada em torno de programas ao vivo, em particular, finais de grandes concursos, nesses programas evi-

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dentemente o fator do tempo imediato ligado ao “ao vivo” e à ideia de “tempo real” são cruciais à plena fruição do espectador. A pergunta a ser colocada é se essa interface não seria ainda mais eficaz uma vez que ela não fosse trabalhada para a reprise de um pro-grama ao vivo, por exemplo, mas em um filme, uma série ou telenovela, por exemplo. Outra possibilidade colocada seria a de trabalhar, sim, com emissões ao vivo, mas que essa interface de integração entre o twitter e o programa de TV ocorresse imediatamen-te e não com o foco na reprise, o que é justamente o proposto no próximo caso a ser apresentado.

Por todas essas razões, pode-se dizer que TF1 traz uma experiência ainda em-brionária, mas com um grande potencial para conquistar a atenção do público por meio das redes sociais. Essa estratégia compreende benefícios em diversas frentes. De um lado, há o aumento da prescrição social em torno do programa nas redes sociais, o que aumenta progressivamente a audiência e valoriza os preços de anúncios publicitários na emissão em si. De outro lado, cria-se um novo produto que consiste na própria pági-na do “Tweet-Replay” no portal do TF1, que pode ser também fonte de lucros por meio da publicidade.

2 A Rede Bandeirantes e o caso do « CQC 3.0 »

O programa “CQC” do grupo bandeirantes9, situado em São Paulo, Brasil, é um formato criado pela agência Cuatro Cabezas10, que propôs o projeto do “CQC 3.0”11 com desenvolvimento da agência de marketing web Ithink12 O “CQC” começa às 21 horas, portanto é um programa de horário nobre. Depois que o “CQC” termina, imediatamen-te começa online o “CQC 3.0” na página da internet do programa. Sob um primeiro olhar, não há qualquer inovação nesse tipo de continuação online de um programa de TV, todavia é na forma como se engendra a integração com as redes sociais que torna esse projeto notável.

A interface da página do “CQC 3.0” compreende um vídeo ao centro onde sur-gem os apresentadores do programa ao vivo e em torno deste diversos plug-ins de redes sociais como facebook e twitter. Por meio desses plug-ins o público tem a possibilidade de interagir com os apresentadores e de participar da emissão. Da mesma forma que ocorre em “Tweet-Replay”, a palavra-chave #CQC permite aos usuários direcionarem seus tweets para as caixas plug-ins da página de “CQC 3.0”. Além disso, os próprios apresentadores podem ler o que foi postado pelo público e trabalhar os comentários

9 URL para página do Grupo Bandeirantes : http://www.band.com.br/10 URL para agência Cuatro Cabezas : http://www.cuatrocabezas.com11 URL para o « CQC 3.0 » : http://cqc.band.com.br/cqc30.asp12 URL para agência Ithink : http://www.ithink.com.br

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feitos e o que se está sendo falado. De certa forma “CQC 3.0” pode ser parecido com “Tweet-Replay”, este ocorre

primeiramente na emissão ao vivo da TV para ser reprisado em seguida na internet, enquanto aquele ocorre exclusivamente na internet, e sempre ao vivo e simultanea-mente. Assim, os objetivos de “CQC 3.0” são similares àqueles do “Tweet-Replay”, mas é a estratégia em si que os diferencia. A Band busca incentivar o fluxo de comunicação em torno de seu programa nas redes sociais, mas ela propõe uma dupla participação: a primeira, no decorrer do programa televisivo; e a segunda, após, exclusivamente na internet e centrada na participação do público.

De um lado o TF1 vê o processo de integração entre internet, redes sociais e o programa televisivo como duas etapas um pouco desconectadas, o que torna a expe-riência um tanto incipiente. De outro lado, o “CQC 3.0” propõe uma integração unívoca e simultânea de tal maneira que o público pode assistir à própria participação online. Na verdade, trata-se de um projeto mais bem acabado. É por essa razão que não é de se estranhar que o “CQC 3.0” conte já com diversos promotores de anúncios publicitários em sua página.

3 Desafios e problemas de aplicação

Evidentemente o TF1 trabalha sobre um projeto experimental, enquanto a Band apresenta um produto já acabado, de forma que a comparação entre os dois projetos de comunicação deve ser ponderada. Sem dúvida, os dois casos apresentam soluções pertinentes para a utilização do twitter como meio de comunicação para o marketing no audiovisual. Entretanto, a partir desse estudo deve ser possível também constatar alguns desafios e obstáculos comuns para se culminar em uma estratégia completa de comunicação.

De um lado o “CQC” é um programa bastante conhecido no Brasil e seus apre-sentadores já apresentam uma grande reputação na internet, com contas no twitter que apresentam um número enorme de assinaturas e, na verdade, sua origem midiática situa-se na própria internet por meio, por exemplo, de blogs já conhecidos. Portanto, anteriormente, esses apresentadores possuíam um papel de formadores de opinião na internet que foi transferido de forma eficiente para a TV. Observando dessa maneira, “CQC 3.0” não é mais que um retorno à origem, de onde esses apresentadores surgi-ram. Como consequência, o trabalho de desenvolvimento estratégico nas redes sociais torna-se facilitada.

De outro lado, a fim de preparar terreno e reforçar a presença do grupo TF1 nas redes sociais, o TF1 propôs a experiência embrionária de “Tweet-Replay” que foi

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testada com diferentes formatos e gêneros televisivos, e com públicos alvos distintos. De fato trata-se de um projeto em fase de testes em que o primeiro objetivo é de pre-parar uma intervenção mais contundente no decorrer das eleições presidenciais deste ano. A partir da diversidade de respostas do público em face dessses primeiros testes, a equipe do marketing 360º de TF1 deve pensar soluções mais coerentes para alcançar resultados ainda mais consistentes e, quem sabe, integrar também alguns anunciantes publicitários na página de “Tweet-Replay”.

De todo modo, há um problema central que pode ser diagnosticado a partir do caso de “Tweet-Replay”. A divisão de trabalho que ocorre dentro do grupo de TV TF1 – e que é um padrão que se repete nas principais redes de TV francesas – separa a equipe encarregada do marketing e do pensamento na internet, da equipe de criação e desenvolvimento de programas e formatos. É essa visão fragmentada que impede a formação de um produto de comunicação que seja eficiente e coeso entre os seus diferentes suportes e plataformas de trabalho. É certo que isso não ocorre no caso de “CQC” e “CQC 3.0”, afinal, existe uma empresa criadora do formato, que centraliza todo o processo de criação e desenvolvimento da emissão principal, e prolongamentos em outros suportes e periféricos.

III Conclusão

A fim de estudar as possibilidades estratégicas de comunicação para o audio-visual oferecidas pelo twitter, este artigo fez uma análise comparativa entre dois casos em que a rede social está integrada como ferramenta complementar de um programa de televisão.

Primeiramente foi apresentado o funcionamento básico do twitter, suas ferra-mentas e características principais. Em seguida foram colocados alguns passos básicos para se estabelecer uma boa interação com o público consumidor e, finalmente, foi feita uma análise comparativa entre dois casos, observando seus erros e acertos estratégicos de ação de marketing.

Conclui-se que existem dois princípios estratégicos que se inter-relacionam: A noção de uma relação com o público consumidor por meio de uma representação so-cial, mas sobretudo humanizada, da empresa nas redes sociais. E também a conquista da atenção do público, o incentivo ao diálogo e às trocas de informações sobre o produ-to e as marcas dessa empresa, e ainda, um certo gerenciamento das opiniões e noções que são colocadas nesse debate.

De um lado “Tweet-Replay”, criado pelo TF1 apresenta um projeto embrionário

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de grande potencial, mas que precisa ser repensado para melhor funcionar. De outro lado existe o “CQC 3.0”, da rede de TV bandeirantes, que é um projeto mais consistente e demonstra uma grande capacidade de engajamento do público por meio de plug-ins instalados na página do projeto. A partir do estudo desses casos foi possível aprender com os desvios estratégicos aqui expostos, mas também de compreender os meios mais e menos eficazes de integração entre as redes sociais e a televisão.

Em síntese, não existe qualquer dúvida que o twitter figura-se como uma fer-ramenta eficiente para o marketing estratégico e a comunicação social de um dado produto ou empresa audiovisual. Todavia, é necessário considerar o comportamento adotado de acordo com os objetivos visados e o público-alvo, e principalmente, pensar os passos estratégicos que serão adotados a fim de alcançar uma grande visibilidade nas redes sociais.

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rotEiro E dESign da narrativa (dE gamES)

joão WinckDoutor em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo. Professor no Departamento de Comunicação Social da UNESP (Universidade Estadual Paulista - campus de Bauru).E-mail: [email protected]

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A tecnologia narrativa audiovisual inaugura um modo de produção coletivo no qual a figura do autor se mescla e se anula na equipe de realizadores, os prossumidores. O projeto lógico estrutural ou design de relações da narrativa é o que emoldura toda a complexidade dos múltiplos projetos narrativos numa organização teleológica, uma espécie de “estrutura ausente”, um esqueleto fluido, invisível e inaudível. O design do audiovisual, é uma geometria plástica, matemática e política capaz de levar à compreensão das “mensagens” do audiovisual pela “maneira” de desenhar e organizar a trama no corpo da tecnolo-gia narrativa; e isso inaugura um novo design: o Design de Relações.

Palavras-Chave: design; narrativa; prossumer.

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The narrative audiovisual technology ushers in a collective mode of production in which the figure of the author merges and vanishes in the team directors, the prosumers. The logical design or structural design is the relationship of narrative that frames the complexity of multiple projects in an organization teleological narrative, a kind of “structure absent,” a skeleton fluid, invisible and inaudible. The visual design is a plastic geometry, mathematics and politics can lead to an understanding of the “messages” of the audiovisual “way” of designing and organizing the plot in narrative body of technology, and it opens a new design: Design Relations .

Keywords: design; storytelling; prossumer

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Não devemos confundir os termos ‘narrativa audiovisual’ e ‘roteiro para au-diovisual’. ‘Narrativa’ refere-se ao fenômeno lógico da representação audio-visual como paradigma sociocultural, isto é, o conjunto de repertórios que

articula as imagens das imagens, os argumentos dos argumentos e emoldura as formas do relato. Já ‘roteiro’ pode ser definido como protocolo de criação e organização téc-nica do objeto audiovisual1. Trata-se de uma metodologia para formatar a narrativa no campo das mídias propriamente ditas, como instrumento básico para a equipe de realizadores.

Nos estudos literários, ‘narrativa’ designa o discurso narrativo de caráter figu-rativo, que comporta personagens que realizam ações. Alguns estudiosos consideram a narrativa como uma sucessão temporal de funções, no sentido de ações.2 No caso do audiovisual, teóricos como Sergei Eisenstein e Yuri Tinianov apontaram a ligação en-tre montagem e narração. Num filme atual, segundo Lotman (1978), nos encontramos simultaneamente em presença de três tipos de narração: figurativa, verbal e musical (sonora), entre os quais podem se estabelecer relações de grande complexidade. Para este autor, o cinema teria o poder de remeter o espectador para o vasto mundo dos fenômenos históricos e culturais, ou a uma narração de nível superior, resultante das diferentes montagens de modelos culturais. A narrativa audiovisual, por conseguinte, pode ser associada à montagem e/ou edição de vários tipos de narração (visual, verbal, sonora) precedida pelos modelos culturais, considerados como padrões narrativos, mol-duras ou matrizes metanarrativas.

Na raiz do processo de construção das narrativas audiovisuais está o roteiro, que é um gênero original, pois é uma forma de escritura que não segue uma regra pre-cisa, universal e objetiva. Um roteiro de audiovisual não é cinema, nem televisão, assim como uma semente ainda não é a árvore.

A narrativa audiovisual pode ser definida como o projeto estratégico, um de-sign que articula uma trama de ações e reações inter-relacionadas entre si, segundo uma cronologia interna ao relato, numa malha de linguagens. É um projeto, ou plano genéri-

1 Os games neste contexto são entendidos como objeto audiovisual.2 Ver GREIMAS, A J. e COURTES, J. Dicionário de Semiótica, p. 294.

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Como projeto, ou design, o roteiro “é uma espécie de utopia. Mas os roteiristas necessitam de utopia. Porque um roteiro é ’o sonho de um filme’” (CARRIÈRE, 1996, p.13). É um arrazoado capaz de realizar um sonho potencial, como também realizar uma “aula” de estética, de lógica e filosofia. Ele promove, conjuntamente, uma utopia (um topos virtual) de uma certa sociedade e aparelha o repertório cultural com um conjunto de sonhos possíveis.

No entanto, convém observar, junto com Baudrillard que “não há nada mais conservador que a utopia, porque jamais redimensiona sua perspectiva” (BAUDRIL-

LARD, 2000, p.64). Assim, desde a perspectiva que analiso, enquanto design do audio-visual, o roteiro promove a mescla da fantasia com uma realidade possível, visando construir um repertório sensível nas plateias. Inaugura, assim, um paradoxo inédito no qual o realismo se torna utópico, e no qual o possível é impossível. Mas esse paradoxo nos diz também que há “uma utopia realista, e que há um impossível possível. O prin-cípio da incerteza da realidade é uma brecha tanto no realismo como no impossível” (MORIN, 1997, p.73).

Interessa-me aqui discutir o roteiro como design de relações de comunicação e de linguagens, sem perder de vista sua natureza de expediente pedagógico complexo da indústria do entretenimento.

No roteiro a linguagem verbal escrita tece uma malha de reflexões filosóficas, políticas, econômicas e sociais mais como uma estratégia pedagógica do que artísti-ca ou partidária propriamente dita. Um roteiro clássico estabelece entre os diferentes agentes internos e externos à trama narrada, um padrão comportamental, um imaginá-rio acerca do modo de vida.

Ele é tecido com os fios culturais e sociais que também promove, fornecendo--lhes as dimensões sensíveis da visualidade e da sonoridade, intimamente associadas à dramaturgia, à retórica e à plástica. Além de instrumento técnico, o roteiro é aparelho

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político-ideológico, formador de opinião e de repertório imaginário “sensível”. Um bom exemplo são nossas imagens acerca do amor romântico. O imaginário social contempo-râneo segue, na maior parte das vezes, os modelos promovidos pela indústria cultural como fonte privilegiada de mimese para o repertório sensível. Quantos de nós já não sonhamos com “aquele” beijo cinematográfico ou com aquele amor de telenovela?

O roteiro administra a influência afetiva do audiovisual numa relação emo-cional com seus públicos. Contudo, como design, serve aos propósitos da indústria do entretenimento, cuja função é “distrair” a atenção dos públicos, visando à padronização de repertórios e comportamentos sociais.

O roteiro de audiovisuais seria um tipo de aparelho tecnológico formulado ver-balmente não para ser lido, mas, simultaneamente, para ser visto como se fosse pintura em movimento, ouvido como rádio, sentido como na dramaturgia, compreendido como literatura e interpretado como se fosse filosofia — ou o pensamento de “massa”.

Enquanto objeto sintético, a tecnologia narrativa audiovisual é o amálgama in-dissociável de um complexo de linguagens e técnicas de naturezas desiguais, porém combinadas. O roteiro é esboço verbal dessa amálgama, com o objetivo de esquema-tizar a substância dramática do audiovisual antes de ele tornar-se um fenômeno de comunicação e uma estratégia de convencimento.

No roteiro a palavra escrita perde a hegemonia simbólica e assume o caráter funcional. A escritura torna-se pragmática, configurando uma ferramenta de traba-lho para a equipe de realizadores dos objetos audiovisuais. Assim, em certa medida, inverte-se a relação simbólica que a palavra escrita estabeleceu na narrativa literária. Na literatura a palavra busca provocar no leitor um conjunto de sons e imagens mentais ao qual se refere. No roteiro de narrativas audiovisuais ocorre o inverso. A linguagem verbal escrita está a serviço do som e da imagem que se derivam das palavras. Num roteiro, ao contrário do que acontece no romance, as palavras não valem por si próprias. O roteiro não é obra em si mesma, é apenas o esqueleto verbal de um filme virtual (CARRIÈRE, 1996).

As palavras escritas no roteiro estimulam uma forma de representação simbó-lica sincrética para além das palavras. O roteiro audiovisual expressa sons, imagens, formas, ritmos, movimentos e contextos de uma forma muito diferente daquela que faz a linguagem verbal.

Mas a escritura do roteiro não pode ser considerada apenas “literatura técnica”. Ao contrário, ela fornece o conjunto de parâmetros da configuração “poética” do com-plexo de linguagens e da ação dramática em audiovisual.

Costuma-se dizer que um roteiro é elaborado e realizado em três grandes mo-

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215mentos paradigmáticos, em que as relações de produção geram situações características no interior da cadeia tecnológica da produção de audiovisuais.

No modo de produção audiovisual o roteiro é escrito diversas vezes. Cada novo tratamento é sempre submetido à apreciação de um grupo de especialistas, produtores executivos e burocratas da indústria do entretenimento (KELSEY, 1952).

Quando pronto e aprovado, o segundo momento ocorre no set3 de filmagens, onde o roteiro é submetido ao talento do coletivo dos executivos, artistas, técnicos, en-genheiros e operários, cada qual exercendo funções simultâneas e coligadas umas em relação às outras. No terceiro momento, o produto da gravação é submetido ao conjunto de técnicos, artistas e especialistas responsáveis pela montagem e finalização da peça audiovisual.

Diferentemente do que ocorre na escritura do livro, na qual a mensagem é sub-metida à decisão individual do autor, antes das decisões em equipe4 para sua reprodu-ção técnica, no audiovisual a mensagem sofre inúmeros reparos e ajustes ao longo do processo coletivo de confecção, da escritura à finalização.

Enquanto a mensagem verbal impressa é produto de artesanato submetido à reprodução industrial, a mensagem audiovisual está assentada no paradigma indus-trial, sem, contudo, seguir as regras clássicas da linha de montagem taylorista. Ela é realizada pelo coletivo em todos os momentos do processo.

Numa linha de montagem clássica, o operário, para executar sua função es-pecífica, não necessita do conhecimento do projeto como um todo. Na montagem de um automóvel, por exemplo, aquele que aperta o primeiro parafuso virtualmente des-conhece o design do automóvel. Nem por isso o desconhecimento do projeto impede a realização coletiva do projeto. Na linha de montagem do audiovisual, para que se alcance o design pretendido, ao contrário, o iluminador, por exemplo, deve conhecer o conjunto do projeto.

Do ponto de vista do modo de produção da tecnologia narrativa audiovisual a mensagem depende, paradigmaticamente, da criação e execução coletivas, desde o iní-cio até o final da construção do objeto audiovisual. Talvez seja essa a questão político--ideológica, em certos aspectos radical, que impede ou pelo menos retarda a adoção do modo de produção audiovisual em escala social.

A tecnologia narrativa audiovisual inaugura um modo de produção coletivo no qual a figura do autor se mescla e se anula na equipe de realizadores. O resgate desta

3 Local onde se organiza a produção do audiovisual. Pode ser um ambiente, uma paisagem, um cenário, um vazio ou uma realidade virtual. Esta locação é chamada, conforme o caso, de externa ou de estúdio.4 Editores, marketeiros, preparadores etc. que ajustam personagens, mudam tramas reambientam situações etc., sobretudo quando se trata de literatura de massa.

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figura é promovido, de maneira artificiosa, pela complexa função econômica5 do dire-tor/autor/proprietário, promovida pela indústria cultural.

Do roteiro ao filme, a transformação é total. O roteiro tem sempre o status de um objeto em transição, cuja “confiabilidade” está sujeita a todo tipo de dúvida, a todos os remanejamentos possíveis. É desse caráter equívoco, ambíguo, incerto que indiscu-tivelmente nasce — com o objetivo de exorcizar tanta indefinição — o mito do profis-sional do roteiro sólido como cimento, da mesma maneira que se reproduz o mito de uma linha de montagem coerente, orquestrada pela batuta autoritária do diretor/autor do filme (CARRIÈRE, 1996).

O roteiro deverá ser atualizado passo a passo nos diferentes processos tecno-lógicos da linha de montagem do audiovisual. Desta instabilidade intrínseca ao roteiro audiovisual, a escritura é forma equívoca de configuração, ordenação e de interação da narrativa com os públicos. Desta forma contingente podem surgir infinitas combina-tórias. Número n de tramas virtuais, que deverá ser atualizado numa única narrativa inscrita naquele audiovisual particular, no qual a confecção cooperativada estabelece unidade na diversidade.

O roteirista é um tipo de profissional da criação cuja habilidade é saber organi-zar a ação dramática da narrativa em escritura, de modo a descrever, com a maior pre-cisão, os contextos espacial, temporal e temático, nos quais transcorrerá o conjunto de ações e atitudes das personagens. Esta maneira complexa de escrever uma narrativa é o que chamamos de design de relações do audiovisual dividido em três atos, como para-digma metanarrativo dos gêneros figurativos da tecnologia narrativa contemporânea.

A linguagem audiovisual não se estrutura tão somente neste esqueleto verbal-mente construído na sintaxe do roteiro dividido em três atos. O projeto lógico-estru-tural da narrativa se apoia em outros quatro projetos estruturais, que, amalgamados, determinam o design da moldura narrativa clássica da linguagem audiovisual: o projeto visual, o projeto sonoro, o projeto linguístico e o projeto dramático da narrativa.

O roteirista deve fornecer os indicadores da contextualização espacial e tem-poral na qual trama se desenrola, elementos verbais que as equipes de arquitetos, de-signers, projetistas, artistas plásticos, engenheiros e outros profissionais traduzirão em cenários, figurinos, programação visual, efeitos especiais, enfim, nos elementos plásti-cos constitutivos do audiovisual. Boa parte da trama será narrada por meio do projeto visual, enquanto o roteirista cria uma configuração simbólica, as equipes realizadoras executam os indícios visuais por meios técnicos, tecnológicos e artísticos.

Por sua vez, a narrativa visual será traduzida (fotografada mecânica ou eletro-

5 No sentido de sistemático de promover expedientes que economizam esforços desnecessários, mas também mímese da expropriação capitalista do trabalho.

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217nicamente) pelo pessoal especializado no circuito tecnológico do audiovisual propria-mente dito: engenharia de imagem eletroeletrônica, tecnólogos e operadores, eletricis-tas, especialistas em efeitos óticos e trucagens mecânicas etc.

O roteirista também fornece indicadores da contextualização temática do au-diovisual, traduzida em narrativa sonora pelo som ambiente, pelas trilhas musicais e efeitos de sonoplastia. Estes elementos são articulados pela equipe de artistas, músicos, engenheiros de som e operadores de áudio, que criam as paisagens sonoras compatíveis com as contextualizações temporais e espaciais propostas na trama.

As paisagens sonoras, por sua vez, são interconectadas ao projeto linguístico, no qual as premissas dramáticas da narrativa, as personagens e o enredo da trama se comportam segundo uma dada ordem cultural intrínseca ao idioma dos realizadores.

No projeto dramático, o roteirista promove os universais da cultura, isto é, aquelas crenças ancestrais que dão unidade linguística e cultural a dada sociedade, por meio da criação de situações dramáticas plausíveis às plateias, visando a promover a catarse no público. O projeto dramático, por sua vez, é consubstanciado no audiovisual por meio da atuação das equipes de atores, figurinistas, maquiadores, cabeleireiros, pesquisadores de época etc., responsáveis pela contextualização e caracterização das personagens no que se refere ao projeto linguístico.

O projeto lógico estrutural ou design de relações da narrativa é o que emoldura toda a complexidade destes múltiplos projetos narrativos numa organização teleológi-ca, numa espécie de “estrutura ausente”, um esqueleto fluido, invisível e inaudível. O design do audiovisual, enfim, é uma geometria plástica, matemática e política capaz de levar à compreensão das “mensagens” do audiovisual pela “maneira” de desenhar e organizar a trama no corpo da tecnologia narrativa, a que chamamos de Design de Relações.

Desde este ponto de vista podemos apontar para uma questão pertinente con-temporânea e dizer que ‘jogo’ seja então todo sistema composto de elementos combiná-veis de acordo com regras. Que a soma dos elementos seja o “repertório do jogo”. Que a soma das regras seja a “estrutura do jogo”. Que a totalidade das combinações possíveis do repertório na estrutura seja a “competência do jogo”. E que a totalidade das combi-nações realizadas seja o“universo do jogo” (FLUSSER, 1967).

Referências

GREIMAS, A J. e COURTES, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

LOTMAN, Yuri. Estética e Semiótica do Cinema. Portugal: Estampa, 1978.

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FIELD, Syd. Quatro Roteiros. Estudo do roteiro americano. São Paulo: Editora Objetiva, 1994.

BRENES, Carmen Sofia. Fundamentos del guión audiovisual. Espanha, Editora Eunsa, 1992.

CARRIÈRE, Jean-Claude e BONITZER, Pascal. Prática do roteiro cinematográfico.São Paulo: JSN, 1996.

BLUESTONE, George. Novels into film. Inglaterra, Johns Hopkins Univer, 2003.

BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos.São Paulo: Perspectiva, 2000.

MORIN, Edgard. Cinema ou o homem imaginário: ensaios

de antropologia. Portugal: Relógio d agua, 1997.

KELSEY, Gerald. Writing for television. Inglaterra, Greenwood, 1952.

FLUSSER, Vilém. Jogos. São Paulo: Suplemento literário OESP, 1967

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na trilHa doS SujEitoS: audioviSual, mEmória E o EvEnto dE EmPodEramEnto Para aS mulHErES

fErnanda caPibaribE lEitEProfessora de Comunicação e Cultura Visual da UFAL, doutoranda bolsista (CAPES) em Mídia e Estética do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE.E-mail: [email protected]

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Como a atualização das memórias individuais representadas nas imagens podem compor discursos sobre autonomia para as mulheres? A partir de quatro filmes produzidos pelo consórcio internacional Pathways of Women’s Empowerment, este artigo propõe a definição de um evento de empoderamento para as mulheres enquanto processo de mudanças em suas vidas, midiatizado através das imagens e que se conecta a dois outros eventos contemporâneos: da fotografia e do endereçamento fílmico. A intenção é investigar como os filmes abordam os espaços de transição para diferentes sujeitos-mulher, a partir das narrativas da memória que contraem passado e futuro no presente e estabelecem linhas de pertenci-mento por via de um “tornar-se”.

Palavras-Chave: Feminismo. Empoderamento. Memória. Audiovisual.

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Since when the update of individual memories represented in the images can compose autonomy dis-courses for women? From four films produced by the international consortium Pathways of Women’s Empowerment, this paper proposes the definition of an event of women’s empowerment as a process of change in their lives, mediatized through the images and connected to two other contemporary events: the photography and film addressing ones. The intention is to investigate how the films approach the transition spaces for different subjects-women, through memory narratives, that constrict past and fu-ture in the present and establish lines of belonging through a “becoming”.

Keywords: Feminism. Empowerment. Memory. Audiovisual.

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1. O empoderamento de mulheres e suas nuances de visibilidade

Na trilha das narrativas associadas às minorias sociais, que ganham força na modernidade e início do que viemos a chamar de contemporâneo, as desigualda-des de gênero tornaram-se ponto de interesse em diversas esferas da sociedade. Esse movimento não se dá simplesmente para fazer emergir as estruturas que legitimam as hierarquizações de poder associadas aos polos masculino-feminino, mas também no sentido de encontrar mecanismos de compreensão e alternativas que deem conta de equacionar o problema. É nesse contexto que, através de processos desencadeados por movimentos feministas, emerge o termo empoderamento de mulheres, imbuído das tarefas de reflexão, produção de narrativas e implementação de políticas eficazes voltadas à conquista de autonomia para as mulheres em seus diversos espaços de atuação.

Mas o que, afinal, legitima o termo empoderamento? Seriam alguns pro-cessos mais cruciais do que outros? Quais os mais relevantes e em que circunstâncias o empoderamento se estabelece como mais durável? Seja como for, a palavra associa-se indubitavelmente à perspectiva de mudança e remete a um presente, a algo aconte-cendo. Paradoxalmente, a inclusão do termo na agenda de gênero tem se restringido à construção de políticas em âmbito macrossocial, geralmente voltando-se às ações go-vernamentais e de instituições internacionais, não adentrando, assim, nesses processos que permeiam a vida cotidiana e deixando de lado os caminhos que levam a lugares menos óbvios e mais subjacentes – porém não menos importantes – de conquista da autonomia para as mulheres (CORNWALL, 2006).

No rastro dessas trilhas não visíveis, a reflexão aqui proposta visa asso-ciar as estratégias de conceituação do empoderamento para as mulheres com a permea-bilidade da cultura audiovisual em nossas vidas diárias, considerando suas nuances de visibilidade, através de um determinado tipo de produção imagética, e sua dissemina-ção a partir dos diversos suportes em convergência. Interessa alinhavar essas vertentes tendo como fio condutor a ideia de “evento”, da fotografia (SUTTON, 2009) e do ende-reçamento fílmico (ELLSWORTH, 2001) quando tratamos da imagem, e do empodera-

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222mento em si, no que toca uma nova mirada das possibilidades de escolha associadas ao gênero feminino: podemos remeter a um evento de empoderamento para as mulheres a partir das imagens, ao abordarmos a perspectiva de um “tornar-se”, de um desloca-mento, que vai estar presente tanto no filme (e na fotografia) quanto nas suas formas de endereçamento ao construir narrativas para o feminino nas quais a mulher é sujeito da ação e do enunciado?

Como corpus para dar conta de tal questão, abordo aqui o conjunto de imagens/filmes produzido pelo consórcio Pathways of Women’s Empowerment, destinado a abordar o empoderamento na perspectiva dos estudos feministas, que o consideram enquanto um processo, envolvendo fluxos de transformações, permanências e retrocessos nas conquistas de autonomia e poder de decisão das mulheres. Integrado por cinco univer-sidades em diferentes países, está aí uma das iniciativas que se destinou- dentre outras esferas de abrangência do termo- a investigar o empoderamento por via do cotidiano e para tanto engloba a produção audiovisual como uma das estratégias de conquista à qual o termo remete.

Apesar de não aludir a um estágio definitivo, mas, ao contrário, conjugar a pa-lavra a partir dos trânsitos constantes, a remissão ao empoderar-se no presente alude à chegada em algum lugar no qual antes não se era permitida, ou não se tinha acesso. Ainda, o vínculo com a autonomia pressupõe que essa chegada não foi destinada pelo outro, e sim, pelo sujeito da experiência em questão, ou seja, pelas próprias mulheres.

Nessa proposta, os filmes destacados para análise do empoderamento envol-vem quatro produtos audiovisuais:

a) Compilação de quatro curtas-metragens na série A Vida Política (Kat Mansoor, 16min, 2008), que trata de formas de ativismo inusitadas para mulheres brasileiras em diferentes cidades;b) O média-metragem Filhas do Tempo (Projeto Tempo, 26min, 2010), que trabalha os fluxos transitórios nas vidas de várias gerações de mulheres unidas por laços familiares e vindas de distintos backgrounds sociais;c) A sequencia de cinco histórias compiladas na série Stories of Change (Kamar Ahmad Simon e Sara Afreen, 61 min, 2007), relatando as mudanças nas vidas de cinco personagens em Bangladesh que passaram a assumir posição de destaque em diferentes perspectivas;d) O filme Thorns and Silk (Paulina Tervo, 13min, 2009), baseado em relatos de quatro mulheres palestinas que conseguiram ocupar posições destinadas exclusivamente a homens em regiões de Israel.

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Em todas essas imagens, as narrativas são construídas na forma de relatos au-torreferenciado, envolvendo histórias de reivindicações e conquistas em benefício das mulheres, nos quais a memória é convocada a entrar em cena enquanto veículo da experiência. Diante de muitas possibilidades, as mulheres-personagens-protagonistas estão ali por sua capacidade de mobilização e transição de um lócus individual e priva-do para uma espera pública e coletiva. Ao narrar suas vidas através das imagens, elas se endereçam a outras mulheres, convocando-as a compartilharem a narrativa e adotarem o empoderamento como prerrogativa em suas próprias vivências.

César Guimarães (2007) postula que a prática da fotografia e cinema docu-mentais pode ser uma atividade predatória quando consideramos sua capacidade de compartimentalizar as esferas sociais. Para ele, em alguns registros, podemos ver o fotógrafo como esse bem-sucedido do capitalismo, que se posta no lugar do “porta-voz” de figuras “marginais” da sociedade, banidas das possibilidades de consumo. De fato, é comum observarmos enunciados fílmicos nos quais ao sujeito da margem é doada determinada representatividade, sob o olhar de outro que detém a chave de entrada e saída para o hall do visível publicamente. Nesses casos (que não são poucos), o filme, ao invés de desarticular os estereótipos associados ao “sujeito invisível”, apenas reforçam--no, na tentativa de fixação de determinados lugares sociais relacionados a “quem mos-tra e quem pode ser mostrado”. A urgência imediatista requerida pela mercantilização das imagens vai, assim, não somente reafirmando estereótipos, mas também decalcan-do estratificações sociais ao dar visibilidade à diversidade como algo vazio. Isso afeta a cena política da qual tratam as imagens, mas também a cena cinematográfica enquanto espaço de fruição e posicionamento diante do mundo.

O que podemos observar das narrativas associadas ao referido consórcio, no entanto, é uma proposta de subjetivar as imagens em termos de pessoalidade e gênero, em primeira pessoa do feminino, no qual parece evidente a vontade de que, no âmbito da recepção, outras mulheres assumam “posição-de-sujeito” (ELLSWORTH, 2001) em relação às narrativas enunciadas pelas imagens. Conforme colocam as autoras Maria Ignácia D’Ávila Neto e Cristiana Baptista:

A recuperação e interpretação de narrativas de vida de mulheres têm sido um dos principais focos de atenção dos estudos feministas. A partir do ponto de vista das próprias mulheres é possível apreender o contexto social de onde as narrativas emergem, permitindo um acesso privilegiado à vivência e experiência do feminino. (2007, p. 02)

As narrativas geradas a partir dos relatos em primeira pessoa recontam como as mulheres negociam as estratégias de construção de suas subjetividades no cotidiano.

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224O ato de “contar-se” vem carregado de significação não somente pelas palavras, mas pelos gestos e movimentos corporais, adquirindo a conformação da narrativa do teste-munho, no qual a passionalidade aparece enquanto um caminho. Abre-se, então, uma via de construção das histórias singulares associada ao patêmico, não “necessariamen-te ligado ao elemento textual, mas, sobretudo, ao factual, que se expressa visualmente” (DÁVILA NETO; BAPTISTA, 2007,, p. 05) e a tensão dramática vem, majoritariamente, pela mise en scène das experiências interpretadas pelas personagens. Nos filmes ana-lisados, esta performance é expressa na própria imagem e em sua utilização técnica, estética e política.

Além de relatar mudanças individuais, esses grupos de mulheres vão tentar caracterizar os “espaços de transição”, que propiciam a passagem da vida doméstica para o coletivo por via das narrativas privadas num âmbito compartilhado, visando transformar suas histórias em estratégias de “enfrentamento e posicionamento social” (ibidem, p. 02). Nesse sentido, estamos lidando também com uma transitoriedade das políticas identitárias, moduladas pela possibilidade de escolha:

A pessoa que passa por um processo de mudança e “torna-se” outra coisa escolhe a identidade, deposita na identidade este tornar-se, ao invés de ser por ela enquadrado, de deixar que a identidade a/o ponha em algum lugar. (SUTTON, 2009, p. 29)

Articuladas dessa maneira, as identidades se associam a “motivos sobre os quais recaem tanto as lutas por reconhecimento quanto os movimentos de contestação frente a padrões identitários dominantes ou hegemônicos” (GUIMARÃES, 2006, p. 38). Ao serem narradas através das imagens, as experiências dessas mulheres tentam esti-mular um potencial sujeito da ação a inventar novas formas de lidar com situações de vida, na perspectiva do ser e do agir.

Os novos sujeitos desse novo passado são esses ‘caçadores furtivos’ que podem fazer da necessidade virtude, que modificam sem espalhafato e com astúcia suas condições de vida, cujas práticas são mais indepen-dentes do que pensaram as teorias da ideologia, da hegemonia e das condições materiais, inspiradas nos distintos marxismos. No campo desses sujeitos há princípios de rebeldia e princípios de conservação da identidade, dois traços que as ‘políticas da identidade’ valorizam como auto-constituintes. (SARLO, 2007, p. 16)

No entanto, não podemos considerar que a construção desse “novo” sujeito--mulher corresponda ao lugar da mulher como o outro, pois, caso assim o seja, se estaria angariando espaços de representação do feminino, mas reafirmando o lugar de uma

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universalidade androcêntrica. O que está em jogo, portanto, é a configuração desse sujeito feminino da transição, que não pode ser constituído simplesmente pela figura do não homem. Devemos, assim, distinguir entre a representação da mulher e a mulher como experiência, o que consiste em abordá-la, respectivamente, como imaginário cul-tural e como agente de mudança (D’ÁVILA NETO; BAPTISTA, 2007).

2. Pelo evento da fotografia no contemporâneo: narrativas do feminino e ambiguidades

No imaginário que se configurou e permanece associado à fotografia e também ao cinema documentais, a ideia de “verdade” passou a pontuar o conhecimento como realização. Baseado nessa “tradição” norteadora da relação entre o senso comum e a imagem, Sutton (2009) escreve sobre os acontecimentos que tensionam seu equilíbrio, ou seja, quando determinado fenômeno ligado aos usos sociais e técnicos da imagem pode efetivamente configurar um evento: trata-se se de uma virada, uma perspectiva de transformação. O autor alude à chegada nesse estágio do “tornar-se” como o que perpassa por uma reidentificação através das imagens e inevitavelmente implica em compressões relacionadas a tempo e espaço.

Nesse sentido, a ideia de evento distingue um “antes” de um “depois”, gerando sujeitos e subjetividades, em sua noção essencial através da qual podemos humanizar o tempo, rompendo com, ou interferindo de maneira significativa numa determinada conjuntura (SUTTON, 2009). O acontecer de uma transição não está necessariamente ligado a uma situação específica, mas:

É resultado de uma inserção do corpóreo no evento – o reconhecimento de um gesto

numa espécie de revolução que, uma vez desencadeada, se constitui enquanto uma consciên-

cia de que as coisas não podem mais ser as mesmas. Não se trata tanto de uma questão de de-

sejar que algo mude, e sim considerar que a mudança compele o sujeito. Podemos afirmar que

o sujeito não evoca o evento, mas o contrário, como numa chamada à luta para uma pessoa ou

grupo de pessoas. (SUTTON, 2009, p. 10) A figura do sujeito-mulher expressa nos re-latos sonoro-corpóreos da imagem em vários suportes representa os grupos sociais deixados “de lado” nas narrativas históricas ao longo da modernidade e carrega na sua performance, explicita e/ou inconsciente, essa “chamada à luta” que vai configurar o desejo de que as coisas não mais permaneçam iguais. No entanto, ao emergir contando sua experiência nas produções audiovisuais do contemporâneo, este sujeito vai ter de lidar com uma prática que estará “[...] sempre equilibrada ‘na ponta da faca’ entre a pro-messa de um pensamento inovador e o risco de colapso pelo clichê ”. (SUTTON, 2009, p. 27, tradução nossa)

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226Em um dos curtas de A Vida Política, por exemplo, a personagem Cristina narra sua trajetória, alguém que já fez um aborto ilegal para sua posição no presente a favor da legalização no Brasil. No filme, o relato se reveza com imagens diretas e de cobertu-ra mostrando sua atuação como artista, militante e feminista na luta por uma abertura maior no que toca aos direitos reprodutivos da mulher. Sem dúvida, há um ponto de vi-rada, no qual a personagem transita do lugar da mulher que fazia algo “errado” e tinha medo, para aquela que milita abertamente a favor da legitimação do aborto enquanto um direito. No entanto, não podemos deixar de observar o equilíbrio tênue entre a ex-periência e a reconstrução de uma história da experiência visando tensionar a virada em uma narrativa, a fim de torná-la mais “eficaz”. Se não podemos reviver uma expe-riência, mas vamos buscar no passado lembranças que nos são pertinentes no presente, então é possível afirmar que o funcionamento do evento que conecta empoderamento, imagem e endereçamento depende da medida desse equilíbrio.

Situação semelhante ocorre com a personagem Bilkish Akhter Sumi, do filme Stories of Change. As várias fotografias de momentos em que ela viveu são utilizadas para articular passado e presente de acordo com os acontecimentos por ela narrados. Trata-se da trajetória de uma menina presa numa família conservadora em Bangla-desh que consegue se tornar a única repórter fotográfica mulher em sua cidade. Nessa figuração, ela busca alguns enfoques específicos que possam caracterizar sua guina-da através de histórias de enfrentamento e tomada de posição, levando a momentos transitórios e manipulando a ação dramática de modo que a mudança seja claramente demarcada.

Russell Kilbourn (2010) se interessa por investigar a representação da memória e a memória como representação no diálogo entre vigilância e espetáculo. Nesse limiar estaria, de um lado, o olho que tudo vê e configura-se como memória coletiva e, do ou-tro, o estranhamento pela percepção daquilo que inconscientemente é deflagrado con-tra a nossa vontade. Para ele, esse modelo narrativo da singularidade, que emergiu com força nas últimas décadas, vem reivindicar a permeabilidade entre história e memória, a favor das subjetividades como consciência coletiva de determinados grupos sociais, o que implica em fluxos contraditórios entre o que se quer mostrar e o que efetivamente é mostrado nas telas.

É possível perceber, hoje, um cruzamento cada vez mais frequente entre as histórias individuais e uma História objetiva nas narrativas de um destino coletivo. A memória pós-moderna, assim, constitui-se na ambivalência entre subjetividade pri-vada e transpessoalidade comunitária, fato que Kilbourn (2010) aponta como bastante significativo nas representações da memória dos filmes contemporâneos. Isso porque

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o cinema parece evocar um “certificado” emocional quando se utiliza dos relatos de memória, em consonância com a ideia de patemização narrativa já descrita.

Na narração enquanto processo de subjetivação, a relação direta en-tre a cognição e a geração de afeto constantemente utilizada nas histórias singulares acaba deixando o narrador “constrangido a produzir uma tensão em certos aconteci-mentos, que, deixando de infringir regras, não sendo mais considerados aventureiros ou perigosos, não seriam mais dignos de serem contados, ou memoráveis” (DÁVILA NETO;BAPTISTA, 2007. p. 4-5).

3. Tempo, memórias individuais e imaginários coletivos da mulher nos filmes

O ato de contar histórias, que se fincam na perspectiva do sujeito, configura--se como um processo dinâmico. A cada vez que formulamos mentalmente uma nova narrativa, as histórias vão se atualizando de acordo com as nossas vivências, e temos de lidar com as tensões e negociações que decorrem daí. A construção do “eu” através de uma narrativa mediada é, assim, uma história escrita no presente e permanentemente reescrita a cada vez que é acionada. Trata-se de um processo constante de “autocriação narrativa”, no qual vamos tecendo nossa autobiografia e passamos a viver dela, ou seja, “[...] somos definidos e constituídos por ela, e através dela inventamos e construímos nosso eu e contamos nossas vidas” (DÁVILA NETO; BAPTISTA, 2007, p. 03).

De fato, vários autores têm trabalhado, nas últimas décadas, a perspectiva da coletivização da memória como “zona de instabilidade oculta” (BHABHA, 1998), que tensiona a narrativa estável da História oficial. Obviamente, aqueles que mais vêm rei-vindicar o relato autorreferenciado são os representantes de grupos sociais deixados à margem de uma hegemonia moderna. Dessas brechas, vemos emergir as “outras” vozes presentes nas dinâmicas culturais – tais como as das mulheres enquanto categoria so-cial – que, na temporalidade efêmera do presente, reconstroem discursos do imaginário compartilhado, nos quais sempre vão existir atualizações entre o “eu ouvi” e o “você ouvirá” (BHABHA, 1998, p. 215). Encarar o presente, assim, coloca em xeque “as teorias ocidentais do tempo horizontal, homogêneo e vazio da narrativa da nação” (p. 216).

Rompendo com a prerrogativa de uma história estável e propondo a suspen-são de estados transitórios representados nas imagens, o evento do empoderamento de mulheres vai conectar-se com o evento da fotografia tentando fazer com que as imagens desarticulem o tempo histórico cronológico e fundam, através da memória, intervalos de contração entre todos os tempos da experiência. Nos filmes, essa ideia conecta-se com o conceito Deleuziano de imagem-cristal (apud SUTTON, 2009), que vai refratar o tempo em duas direções: a do passado e a do futuro, num processo que expõe

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228uma brecha entre a ideia do tempo-puro e do tempo cronológico. Podemos observar o tempo através dos ponteiros que rodam no relógio, mas o

tempo da memória é outro, indistinto e não organizado, diferente do que regula nosso cotidiano social. Temos, assim, o tempo objetivo, ordenador das nossas relações sociais – como a hora do café, do trabalho, ou as horas entre dia e noite – e o outro incomen-surável, correspondente ao da memória e imaginação, o subjetivo – o tempo da expe-riência, mistura de lembranças e sensações. Quando se refere ao filme, Sutton (2009) cita essas duas temporalidades como relacionadas e passíveis de serem trabalhadas enquanto extensões da nossa vivência.

No filme Filhas do Tempo, diferentes gerações de filhas, mães e avós narram suas experiências postas em confronto para avaliação das mudanças nas vidas das mulheres. Está explicitada, aí, a possibilidade de articulação entre uma relação espaço temporal sensório-motora, isto é, cronológica, com a noção de tempo que vem fundir passado, presente e futuro, acionada pela memória. Em uma das tramas que compõe o filme, Dona Nide, 74 anos, conta sobre como foi cerceada pelos pais em relação às pos-sibilidades de educação e trabalho, fator que a motiva a criar com mais abertura a sua filha, Lucinha, de 42 anos, que conseguiu se graduar numa universidade e incentivou a carreira da filha, Larissa, de 15 anos, como lutadora de karatê, chegando esta a tornar-se campeã brasileira em sua categoria.

A transitoriedade no filme aparece a partir da passagem das gerações. É como se a experiência de uma motivasse a mudança na vida da geração seguinte. Parece ha-ver uma urgência, na narrativa do filme, em dar conta daquilo que se transforma, que desaparece e renasce renovado na experiência do outro. Para tanto, é necessário lidar com a duração, apreendida, tanto cronologicamente, quanto através de nossas percep-ções temporais geradas pela memória, expressas nas temáticas que são acionadas pelas personagens para ativar o rumo da mudança.

Para além de acompanhar o tempo frenético e despedaçado do contemporâneo, o documentário também pode servir para explicitar os processos lentos e invisíveis da transformação, na contramão da informação imediata, simultânea, em tempo real das tecnologias digitais. Se por um lado ativa a perspectiva da memória como esse tempo contraído, portanto; por outro, o filme reafirma uma noção convencional do tempo através da passagem das gerações. A vida existe enquanto constante possibilidade de mudança e é através das interações possíveis entre percepções e coisas que podemos definir a duração.

Podemos trabalhar a ideia de tempo a partir da memória como o tempo de uma identidade, que se desdobra em três esferas, de acordo com Deleuze (apud SUTTON,

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2009): a) a duração como mudança constante; b) a memória como tomada de consciência da duração, a partir das coisas que se transformam com o tempo e c) o senso de passa-do, presente e futuro através do qual nossa consciência do tempo é criada. O presente corresponde, assim, ao paradoxo entre passado e futuro.

Ao ser entrevistada no filme Filhas do Tempo, Da. Hércia, 93 anos, enfatiza a necessidade da mulher ser destemida para garantir suas conquistas, afirmando que, se tivesse 20 anos de idade na época de hoje sua vida seria muito diferente. Nesse momen-to, a câmera em closeup congela, deixando bem evidentes as linhas do tempo, quando, ainda nessa imagem, ela regressa à experiência do passado para narrar o episódio do seu casamento, aos 15 anos. Voltando à imagem com som direto, a personagem conta que não tinha conhecimento de como uma mulher podia engravidar, apesar de já man-ter relações sexuais regulares com o marido. Na falta de intimidade entre o casal, ela o indagou constrangida sobre o que fazer e recebeu como resposta: “pergunte à vizinha, ela não está grávida?”

No tempo cronológico que retrocede dos 93 aos 15 anos, Da. Hércia tensiona as suas perspectivas de um futuro hipotético limitado por sua idade avançada com a atualização de um passado vivido limitado pela falta de oportunidades. Quando esse relato tem como suporte um jogo de planos imagéticos abertos e fechados do presente da narração, que são em determinado momento suspensos pela imagem estática do close em seu rosto, mais do que fazer emergir a percepção do tempo cronológico que passou, o filme nos fornece uma percepção cinemática da contração do tempo. A partir da narrativa geracional para expressar a transição, há a relação entre vida e morte ex-pressa na aparente contradição entre duração e fixidez. Essa noção reflete o paradigma essencial da imagem, cujo princípio reside na seleção e enquadramento de tempo e espaço englobando determinadas formas de olhar, não apenas espacialmente, mas em termos de tempo também.

A memória, portanto, corresponde a esse campo de conflitos, entre o que faz necessário lembrar para transgredir, o que se quer esquecer nos recônditos da lembran-ça para seguir adiante e o que se institui, no presente, como algo dado, sempre em cons-tante atualização. Contudo, para além do entendimento da memória enquanto aspecto social/cognitivo é interessante poder identificar, em sua relação com as imagens, qual o lugar que o filme baseado no relato subjetivo e tratando do empoderamento de mulheres vem ocupar frente ao espectador, não apenas na perspectiva do tema que apresenta, mas em torno da experiência que promove. A questão é colocada na perspectiva de como o filme solicita o sujeito: “não apenas diante do filme, mas inscrito nele, captura-do e desdobrado pela sua duração” (GUIMARÃES, 2006, p. 39).

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230Não podemos perder de vista, nessa trilha, que o documentário sempre es-tabelecerá uma relação de incompletude em seu vínculo com a vida real, pois tanto a experiência dos sujeitos filmados quanto o repertório dos espectadores que perturbam a cena são, eles mesmos, marcados por ausências. Há um constante jogo de enunciação entre quem pergunta, quem responde e quem assiste ao filme, de modo que, em algu-mas circunstâncias, o relato parece ser construído conforme aquilo que dele se espera, ou seja, certos acontecimentos do passado são reforçados, ou mesmo reconfigurados, para melhor se adequarem às expectativas do sujeito cujo filme pretende “extrair”.

A prerrogativa para os filmes em questão seria considerar que pudessem lançar mão de recursos para escaparem de uma fórmula previsível no que diz respeito às iden-tidades, à demonstração de certeza entre “quem filma” e “quem é filmado” e à tomada de consciência do “quem se é”. Esse escape, de acordo com César Guimarães (2006), dar-se-ia pela constatação da mudança através de uma espécie de sobressalto, como se a identidade passasse a se constituir ao longo da narrativa, como se esses rostos ordi-nários multifacetados fossem assumindo rigidez gradualmente nas imagens, não sendo pré-definidos já no início da trama. Contudo, este trajeto, talvez na urgência de alcance de potenciais espectadores, pode tornar-se fugidio em algumas de suas construções.

4. Uma questão de endereçamento: o evento como posicionamento e mudança no espectador

Se a discussão em torno da circulação das imagens é expandida considerando--as enquanto lugar de mediação das nossas formas de valoração, é importante destacar os jogos de poder que atuam entre imagem, personagem e espectador. Nos filmes, as personagens tendem a buscar uma determinada fisionomia para si, ao passo em que também almejam mostrar uma “cara” para o mundo. Trata-se, portanto, de diferentes maneiras de construção da subjetividade, que se entrelaçam e se afastam, fazendo coe-xistir uma trama de hábitos do sujeito com outro conjunto de estratégias das quais o sujeito conscientemente lança mão para “colocar-se no mundo”.

Quando o filme vai além do senso comum acerca da produção, análise e in-terpretação, ele engaja a política e a estética em termos de formato e endereçamento. O “sujeito fílmico” como decorrente desse acordo se consolida no entremeio entre pensa-mento e experiência e o filme reflete essa formatação. Quando um evento de endere-çamento se configura, portanto, acontece porque novas formas de posicionamento do espectador e diferentes relações dele com um determinado segmento de filme foram estabelecidas. Nesse momento, há uma ruptura na lógica verbal e de colocação social, e o receptor passa a requerer novas formas de significação. Isto porque os filmes imagi-

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nam, desejam e objetivam determinados públicos.

Se você compreender qual é a relação entre o texto de um filme e a ex-periência do espectador, por exemplo, você poderá ser capaz de mudar ou influenciar, até mesmo controlar, a resposta do espectador; produ-zindo um filme de forma particular. Ou você poderá ser capaz de en-sinar os espectadores como resistir ou subverter quem um filme pensa que eles são ou quem um filme quer que eles sejam. (ELLSWORTH, 2001, p. 12)

Contudo, o simples deslocar de um determinado modo de endereçamento por parte do filme não constitui, por si, um fator de legibilidade. Não devemos supor que há uma transferência imediata. Para que as produções alcancem o público a quem es-tão endereçadas, “a espectadora deve entrar em uma relação particular com a história e o sistema de imagem dos filmes” (ELLSWORTH, 2001, p. 14), operando no interstício entre uma narrativa e a utilização que seu receptor faz dela. A mercantilização e am-pla veiculação de imagens, ao mesmo tempo em que se estabelecem como consumo interpretativo, também vão se especializando e assumindo novas gradações. Podemos, assim, pensar numa leitura política da estética, que se capilariza à medida que o espec-tador vai ficando mais “exigente” (SUTTON, 2009).

O fato é que, nos filmes que se vinculam à narrativa da memória - através da expressividade gestual e sonora dos personagens associados à narrativa fílmica - o espectador é convidado a fazer algo com o que lhe é comunicado. No entanto, a inten-sidade da experiência vivida, incrível para quem não a viveu, é um dos aspectos que o testemunho não pode representar. “Todo testemunho quer ser acreditado, mas nem sempre traz em si mesmo as provas pelas quais se pode comprovar a sua veracidade. Elas devem vir de fora” (SARLO, 2007, p. 37).

Não há dúvida que os filmes do consórcio Pathways têm um endereçamento explícito, isto é, aludem ao empoderamento de mulheres como um evento que, através da narrativa imagética/fílmica possam fazer com que as histórias de mudança das per-sonagens interceptem a experiência de espectadoras como potenciais estratégias para que estas percebam suas próprias histórias e vivências enquanto passíveis de mudança também. Mas como conciliar as distâncias sociais, geográficas, econômicas, ideológicas e de gênero entre as suas realizadoras e estas espectadoras em potencial?

A perspectiva de empoderamento proposta no filme Thorns and Silk, por exem-plo, vai retratar mulheres que adquiriram a capacidade de trabalhar em funções só permitidas a homens no contrato social local, a citar: taxista, policial, mecânica e cine-grafista/fotógrafa. Considerando o contexto no qual vivem as mulheres palestinas, de fato trata-se de uma conquista de autonomia significativa. No entanto, para a realidade

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232de outros países, essas são atividades já corriqueiramente desenvolvidas por mulheres, ou não correspondem a um impedimento formal. Seria fácil supor, assim, que esse tipo de narrativa fílmica funcionaria como um “tornar-se” apenas para um segmento muito específico dentre as mulheres.

Elizabeth Ellsworth (2001) pontua que existe uma posição dos interesses e do jogo de poder que direcionam o prazer visual de um filme, de modo a possibilitar que o espectador assuma uma “posição-de-sujeito”. Esse posicionamento é gerado por suposições e desejos expressos no filme, através de traços conscientes e não intencio-nais, ao longo de sua narrativa. São esses traços que vão efetivando as possibilidades de atingir o público a quem os filmes são endereçados, porque não podemos pensar o termo endereçamento como “um momento visual ou falado, mas uma estruturação – que se desenvolve ao longo do tempo – das relações entre o filme e os seus espectadores” (ELLSWORTH, 2001, p. 17).

É por essa mesma prerrogativa que Guimarães (2007) vai defender que a expe-riência proporcionada pelo documentário não deve transformar o espectador em turis-ta da realidade do outro, e sim, convoca-lo a imergir na narrativa através de graus de pertencimento com ela. A alteridade não se constitui meramente como objeto de gozo, e, nesse sentido, quanto mais um filme consegue transformar os sujeitos da enunciação (na narrativa) em sujeitos da ação (na recepção), mais ele funciona como um evento de endereçamento.

Os filmes do consórcio são endereçados a mulheres, mas isso não basta para o evento de endereçamento. Eles devem fazer alcançar a posição-de-sujeito, tanto de seu público prioritário como também de outros grupos sociais, minoritários ou não, pois assim ampliam os níveis de identificação possíveis entre os filmes e o suas/seus espectadoras/es. E isso não pressupõe que os processos sejam os mesmos para todos, mesmo quando consideramos os segmentos sociais separadamente, como mulheres, homens, negras/os, brancas/os etc. Ao contrário, ocorrem, “de forma simultânea, múl-tiplos modos de endereçamento” (GUIMARÃES, 2007, p. 23). O fato é que, apenas ao assumir essa posição-de-sujeito, “independentemente de quanto ela seja mítica”, é que o filme passa a dialogar com “potentes fantasias de poder, domínio e controle” (GUI-MARÃES, 2007, p. 25).

Nesse contexto, se os filmes partem de um pensamento prévio sobre o público a quem se endereçam – as mulheres – na perspectiva de querer que elas sejam alguma outra coisa a partir de suas narrativas, podem contribuir para a formatação de subje-tividades muito específicas. Há o risco, com isso, de esvaziamento da narrativa e seg-mentação dos lugares de gênero já demarcados, ao invés da afirmação das narrativas de transição. Trata-se de um terreno ardiloso, pois:

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[...] alguns filmes produzidos em nome do contra-cinema e do reforça-mento de poder [empowerment] de seus espectadores são difíceis de ler ou alienadores por causa da forma como eles negam e denegam os pra-zeres do ato de ver filmes em sua forma mais convencional. Pior ainda, alguns dos públicos a que eles pretendem se dirigir não querem neces-sariamente renunciar a seus culposos prazeres. O prazer e a fantasia podem ser políticos, mas isso não é tudo o que eles são. (ELLSWORTH, 2001, p.29)

“A esperança revolucionaria era de que diferentes modos de endereçamento nos filmes pudessem mudar os tipos de posições-de-sujeito que estão disponíveis e que são valorizados na sociedade” (ELLSWORTH, 2001, p. 28). O problema é que quando o olhar do espectador acostuma-se com um determinado sistema, a mudança não ocorre de forma simples, porque os modos de endereçamento são construídos também numa perspectiva temporal e nesse sentido uma mudança social não corresponde a algo tão fácil quanto pode parecer à primeira vista.

5. Na conciliação dos eventos cruzados a partir das imagens-empoderamento

Trazer o empoderamento de mulheres como evento, a partir das imagens, cor-responde a uma tarefa complexa, porque pressupõe um determinado tipo de articu-lação entre política e estética que desbasta as formas tradicionais através das quais estamos acostumados a ver a mulher. Mais do que isso, essa proposta pede um de-terminado tipo de convocação, questionamento e tomada de posição por parte das/os espectadoras/es que só se dá através de efetivos níveis de pertencimento e diálogo na relação entre as personagens que narram suas mudanças, o filme que as articula e as pessoas que o assistem. Não há dúvidas de que “[...]um ato de ver que resiste, de for-ma ativa, a se tornar cúmplice dos filmes convencionais na produção de significados que simplesmente reinscrevem a objetificação dos corpos e das vidas das mulheres[...]” (ELLSWORTH, 2001, p. 36) contribuem para uma possível reinscrição da “normalida-de” no que toca as questões de gênero.

Quando se trata do empoderamento na perspectiva de autonomia para as mu-lheres, há referência a essa necessidade de lidar com a articulação das diferenças e o mapeamento das esferas de poder, em suas possibilidades de mobilidade e desestabi-lização. Há um equilíbrio frágil e tênue entre o prazer da fruição convencionalmente instituído - que reafirma os lugares demarcados, estigmatizados e desiguais- e o risco de esvaziamento com narrativas que, no seu desejo de assumir o lugar de veículo da transitoriedade, podem varrer as possibilidades de reposicionamento na relação entre filme e espectador.

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234Nesse contexto, é certo que o evento de empoderamento relacionado a um even-to da fotografia e do endereçamento fílmico é tanto mais eficaz quanto mais conclama à tomada de posição através do engajamento entre estética e política no audiovisual. Con-tudo, não há como pensar que o deslocamento dos formatos convencionais de produção e endereçamento das imagens signifique a negação a esses formatos, mas antes um diálogo. Não podemos pensar na categorização dos sujeitos para quem os filmes são endereçados simplesmente como isso, ou aquilo. É comum que o discurso recaia num dualismo que restringe as formas de interpretação sobre os eventos de endereçamento, mas essas tendências são, mais do que simplistas, não realizáveis, e mesmo não desejá-veis. O espectro de negociações e contradições é muito mais complexo do que isso.

A mulher se figura de diferentes maneiras, através de muitos fatores de autoi-dentificaçãoe representação a partir eu e do outro. Aqui importam os lugares de fala e as estratégias de corporificação, além das estruturas socioculturais que são demarcadas (ou não) na representação, como classe, preferência sexual, etnia etc. E os diferentes processos de corporificação dessa figura feminina nos filmes inevitavelmente implicam em tensões a partir das variantes através das quais essa figura se expressa. “O corpo, do mesmo modo que a linguagem, também é um lugar de expressão do poder” (DÁVILA NETO; BAPTISTA, 2007. p. 8). Por isso, ao falarmos na forma como pessoas ou grupos se utilizam dos audiovisuais como estratégias de afirmação, nos referimos ao evento enquanto transição, mas não como algo estático. Trata-se de um processo fluido, que tem como intuito caminhar entre os diferentes sujeitos implicados nos interstícios entre empoderamento, imagem e endereçamento, de forma que se alcance um “algo a mais” que extrapola a narrativa em si e perpassa a experiência.

Referências

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

CORNWALL, Andrea. Pathways of Women’s Empowerment-RPC. Disponível em: <http://www.pathways-of-empowerment.org/hub_lamerica.html>. Acesso em: 17 set 2010.

DÁVILA NETO, M. I.; BAPTISTA, C. M. de A. Páthos e o sujeito feminino: considerações sobre o processo de construção narrativa identitária de mulheres de grupos culturalmente minoritários. In: Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei: 2(1), Mar-Ago, 2007.

ELLSWORTH, Elizabeth. Modo de Endereçamento: uma coisa de cinema;

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