universidade federal do rio grande do norte … · das terras e a reconstrução de uma identidade...

28
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ CAMPUS DE CAICÓ DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO- BRASILEIRA ANA PAULA BEZERRA A REINVENÇÃO DO QUILOMBO NA MACAMBIRA: IDENTIDADE, CONFLITO E TERRITÓRIO EM LAGOA NOVA/RN CAICÓ 2016

Upload: vanminh

Post on 24-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ

CAMPUS DE CAICÓ – DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES

ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-

BRASILEIRA

ANA PAULA BEZERRA

A REINVENÇÃO DO QUILOMBO NA MACAMBIRA:

IDENTIDADE, CONFLITO E TERRITÓRIO EM LAGOA NOVA/RN

CAICÓ

2016

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

ANA PAULA BEZERRA

A REINVENÇÃO DO QUILOMBO NA MACAMBIRA:

IDENTIDADE, CONFLITO E TERRITÓRIO EM LAGOA NOVA/RN

Trabalho de Conclusão de Curso, na

modalidade Artigo, apresentado ao

Curso de Especialização em História e

Cultura Africana e Afro-Brasileira, da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Centro de Ensino Superior do

Seridó, Campus de Caicó, Departamento

de História, como requisito parcial para

obtenção do grau de Especialista, sob

orientação do Profª. Drª. Joelma Tito da

Silva.

CAICÓ

2016

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 3

2 Quilombolas em luta e a emergência de um novo sujeito jurídico:............................... 8

2.1 Tradição oral, mito de origem e disputa pela terra na macambira ........................... 14

2.2 Os filhos de lázaro e a empresa de ventos ................................................................ 19

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 22

FONTES ......................................................................................................................... 24

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 25

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

3

A REINVENÇÃO DO QUILOMBO NA MACAMBIRA: IDENTIDADE,

CONFLITO E TERRITÓRIO EM LAGOA NOVA/RN

Ana Paula Bezerra

1

Joelma Tito da Silva – Orientadora2

RESUMO:

O presente artigo tem como objetivo estudar o processo de formação histórico e

identitário da comunidade Quilombola Negros da Macambira – Lagoa Nova- RN,

analisando a importância da expressão de uma memória secular de origem sobre a posse

das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de

reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores. Para isso, partimos da compreensão

da formação histórica da comunidade, de modo a perceber os conflitos, a importância

política e histórica de afirmação da memória. Metodologicamente este trabalho se

desenvolve a partir da construção da fonte oral e tem como pressupostos teóricos a

discussão sobre memória e história presente em Jacques Le Goff e Pierre Nora e as

análises sobre identidade desenvolvidas por Stuart Hall e Tomaz Tadeu da Silva.

PALAVRAS-CHAVE

História. Memória. Identidade.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo trata do processo de formação histórica e identitária da

comunidade quilombola Macambira – Lagoa Nova, RN, através da memória individual

e coletiva dos sujeitos envolvidos, procurando analisar as mudanças ao longo da

trajetória de lutas e conquistas pelo o espaço geográfico que residem e a reconstrução de

uma identidade quilombola após seu reconhecimento. Para isso, analisaremos as

relações entre presente e passado na luta secular pela conquista do território que torna

1Graduada em História Licenciatura pela UFRN, CERES, Caicó. Discente do Curso de Especialização em

História e Cultura Africana e Afro-Brasileira – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),

Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó, Departamento de História (DHC). E-

mail: [email protected] 2 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected].

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

4

politicamente importante a afirmação histórica da memória e da trajetória do grupo

familiar nas terras que conhecemos como Macambira.

Partimos, assim, de uma perspectiva que prioriza a memória e os aspectos

ligados à afirmação étnica e a territorialidade. Por isso, utilizamos como fontes de

pesquisa os relatos dos sujeitos, a partir das técnicas e regras estabelecidas pela história

oral, assim como realizamos um breve levantamento bibliográfico de pesquisas

anteriores já existente no acervo do município.

Os dados analisados foram organizados a partir de pontos norteadores, como:

Origem histórica da comunidade; as lutas em torno das conquistas territoriais e a

política de afirmação no processo de reconhecimento como quilombolas; as disputas

recentes pelas terras envolvendo os moradores da Macambira e os empresários

responsáveis pelo o novo empreendimento eólico na Serra de Santana e as

manifestações culturais que os identificam como integrantes de uma comunidade

legalmente constituída e reconhecida como quilombolas .

Localizada na microrregião da Serra de Santana, município de Lagoa Novam, a

cerca de 156 km de Natal, a Macambira tem sua origem no início do século XIX e

atualmente abarca territorialmente parte dos municípios de Lagoa Nova, Bodó e Santana

dos Matos, fronteira entre o sertões do Seridó e do Vale do Açu, Rio Grande do Norte3.

Reconhecida como remanescente dos quilombos no ano de 2005 por parte da Fundação

Cultural Palmares e pela Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro –Brasileiro, a

Macambira deu um passo à frente nas suas lutas, porque isso os possibilitou ter acesso

ao processo de “identificação, reconhecimento, demarcação e delimitação das terras

ocupadas”4.

A história dessa comunidade é marcada por muitos embates envolvendo a

afirmação da propriedade da terra, ameaçada pela ação de latifundiários locais. A

afirmação da comunidade como sujeito coletivo de direitos avançou na última década

com as políticas afirmativas voltadas para minorias, tais como o reconhecimento dos

chamados remanescentes de quilombos. Nessa nova configuração, os negros da

Macambira, como são chamados, vem conquistando seu espaço de fala e construindo

sua história. Para entender como estas lutas, conquistas e as mudanças históricas se

PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Comunidade Macambira: de “Negros da Macambira” à

Associação Quilombola. Pág: 05. Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260.

jan./jun. 2011. 4 Ibidem.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

5

processam neste amplo grupo familiar, recorremos à memória dos sujeitos, através de

narrativas que indicam haver muitas questões a explorar e situações a registrar acerca da

Macambira. Diante da importância da memória e da oralidade, utilizou-se recursos da

História Oral para acessar, através dos relatos, elementos históricos presentes das

lembranças dos quilombolas.

A História Oral atua em um campo específico da História e busca lidar com a

pluralidade de versões acerca das experiências humanas no tempo. Debruçada

especialmente no problema da oralidade, ela lida com a particularidade das experiências

no tempo através dos relatos/depoimentos de indivíduos. Na construção da fonte oral as

narrativas sobre o vivido são transformadas em fontes, servindo de base para uma

reelaboração historiográfica. Nesse sentido, oralidade, tradição e identidade se

entrecruzam na complexa relação entre história e memória. De acordo com Thompson

(1992) na história oral em sentido mais geral, a experiência de vida das pessoas de todo

tipo passa a ser utilizado como matéria prima e sua história ganha nova dimensão, pode

ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de

investigação.

Para analisar a história da comunidade Macambira antes, durante e pós processo

de reconhecimento como “Remanescentes de Quilombo”, utilizamos as discussões

sobre a memória como principal aparato teórico-metodológico. Nesse sentido, seguimos

a linha de raciocínio de Fernando Catroga (2001), quando este afirma que: “a memória é

a nossa ‘arma’ contra o esquecimento, é essa maneira tão humanamente estranha de

‘inventar’ o passado, de selecioná-lo, de alardeá-lo através de diferentes ferramentas”.

Através desse contato com as “memórias” de forma coletiva, percebemos que além do

discurso formado em volta das lutas territoriais, existe inúmeros elementos

significativos que os identificam, desde as manifestações culturais imateriais (danças,

músicas, orações, terços tradicionais, louvores, cantigas entre outros, a comunidade

conservam de modo especial, objetos e monumentos, “lugares de memórias” assim

denominado por Pierre Nora5. Para ele, “os lugares de memórias são antes de tudo, os

restos”. Restos que tem de ser arquivados, materializados a serviço de uma história que

marca o luto da memória viva (...)”.

5 Véran, Jean- François. Rio das Rãs: Memória de uma “Comunidade Remanescente de Quilombo.

Disponível

<http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n23_p297.pdf > Acesso em 08-04-2016).

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

6

Como forma de preservar seus lugares de memórias, alguns moradores da

Macambira, recusam-se a derrubar suas antigas casas (de taipa) apesar da recomendação

de órgãos de vigilância sanitária. As chamadas “antigas taperas” constituem uma

espécie de monumento histórico, ora individual, ora coletivo, que guardam a memória

de muitas famílias, embora esteja associada a uma fase de muitas privações econômicas.

Se a manutenção desses espaços parecia não ter qualquer sentido para

instituições de controle, para os moradores da Macambira guardam memórias

familiares, tornaram-se monumentos para a lembrança, enfim, marcam trajetórias dos

“troncos velhos”. Segundo Vilmário, 46 anos e presidente da associação quilombola, “a

questão da memória pelas casas de taipas, até por uma questão da própria FUNASA6

(...) quando se constrói uma casa nova, nos orientam a derrubar as velhas por questões

de combate às doenças causadas pelo o bicudo, muriçoca (...) pra não juntar muito

inseto. Em questão da saúde eles exige que tem que botar no chão. Então teve que botar

muito dessas casas velhas, as taperas no chão, mas ainda tem algumas”.

Mesmo diante da pressão do discurso sanitário, a conservação desses lugares

de memória está presente na realidade do senhor Neco, 72 anos e morador da

Macambira III, que afirma somente sair de sua “casinha para o cemitério”, pois foi lá

onde viveu a vida toda. Para Vilmário, convencer seu Neco a viver em outra residência

é um trabalho que vem sendo feito há muito tempo, mas ele não se desfaz do seu lugar

de origem.

Assim como as taperas mencionadas, há outros lugares considerados pela

comunidade como referência de recordação das suas histórias. Os marcos antigos

fincados nas terras e um mirante, localizado ao norte da comunidade. Sobre esse lugar

Vilmário afirma: “Mas lá, esse mirante que tem também, traz muita a memória deles por

que ali era onde eles buscavam água em baixo de uns olhos d’água que tinha e aonde

eles saíam para caçar mocó, tatu, peba e tirar mel pra se alimentar”. Para Le Goff

(1996): Estes materiais da memória (...) os monumentos, são herança do passado (...) o

monumento é um legado à memória coletiva.

Todos os elementos apresentados acima, nos faz refletir sobre a formação

dessa nova identidade quilombola e como os moradores reagem ou reagiram diante

6 Ver site da Fundação Nacional de Saúde. Disponível em:

< http://www.funasa.gov.br/site/> Acesso em: (08-04-2016)

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

7

dela. Para Hall (1999, p. 48) “as identidades (...) não são coisas com as quais nós

nascemos, mas são formadas, transformadas no interior da representação” isso

caracteriza bem como essa nova identidade quilombola vem sendo vivenciada na

Macambira, uma vez que, sendo ela construída, passa a ser uma comunidade simbólica

e gera sentimentos de identidade e de pertença. A estudar o tema, SILVA (2012)

observa que uma nova identidade tem nascido (...) e tem passado por uma crise; Hall

(2006) levanta um amplo questionamento sobre a identidade cultural da época atual e

observa uma fragmentação da identidade oriunda das mudanças que estão ocorrendo na

atual conjuntura. Segundo o autor:

(...) as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo

social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e

fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito

unificado. Assim, a chamada “crise de identidade” é vista como parte de

um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas

e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros

referenciais que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no

mundo social (HALL, 2006, p.7).

Apesar dessa crise de identidade discutida por Silva (2012) e Hall (2006),

Tomaz Tadeu7 destaca que “afirmar a identidade significa demarcar fronteira, significa

fazer distinções (...)”. A identidade é simplesmente aquilo que se é: (...). A identidade

assim concebida parece ser uma positividade ("aquilo que sou"), uma característica

independente, um "fato" autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como

referência a si própria: ela é autocontida e auto-suficiente8.

Nesse sentido, pretende-se então, explorar alguns conceitos que ajudam a definir

a ideia de Quilombo e seu processo de formação na Macambira, as principais

características que os define como “remanescentes de quilombo essa “nova identidade”.

Sabemos que as definições são amplas e variáveis, e que alternam-se de acordo com a

perspectiva de quem as elabora e com qual finalidade o faz. Nessa perspectiva,

buscamos analisar as relações entre as mudanças e permanências no contexto histórico

cultural da Comunidade, no que diz respeito ao antes e depois do processo de

7 SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença . . Disponível em:

<http://www.diversidadeducainfantil.org.br/PDF/A%20produ%C3%A7%C3%A3o%20social%20da%20i

dentidade%20e%20da%20diferen%C3%A7a%20-%20Tomaz%20Tadeu%20da%20Silva.pdf > Acesso

em: 08-04016-2

8 Ibidem

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

8

reconhecimento como “Remanescente de Quilombos”, enfocando as novas formas de

apropriação do passado e da identidade coletiva em face das situações geradas a partir

do momento em que os chamados negros da Macambira tornam-se sujeitos político de

direito jurídico através da identificação como quilombola.

Para discutirmos estas questões, começamos situando a discussão em torno do

reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil e da inserção

dessa nova identidade política, jurídica e histórica na Macambira, em seguida

trataremos da relação entre a memória, a herança e a posse da terra e, por fim,

analisaremos os embates contemporâneos envolvendo os moradores da comunidade

que, diante da chegada de empresa eólica, se viram ameaçados no direito de

permanecerem em seu território.

2 QUILOMBOLAS EM LUTA E A EMERGÊNCIA DE UM NOVO SUJEITO

JURÍDICO:

A partir dos anos de 1990, descendentes de africanos em todo território nacional,

organizados em associações quilombolas ou não, reivindicam o direito de permanência

e reconhecimento legal à posse de terras ocupadas para moradia e sustento. Além disso,

buscam o livre exercício de suas práticas culturais, crenças, costumes, valores e modos

de viver considerados em sua especificidade. Falar dos quilombos e dos quilombolas no

atualmente é, portanto, falar de uma luta política e, consequentemente, de uma reflexão

científica em processo de construção9. É, portanto, perceber a existência de inúmeras

questões voltadas para a história afro-brasileira que necessitam ser construídas ou

reconstruídas através de um novo olhar.

O surgimento dos primeiros grupos denominados de “Quilombos” tem uma

origem remota, abrange as mais variadas situações de ocupação territorial ensejadas por

esses grupos. Para a tradição oral e os registros bibliográficos, podemos encontrar

inúmeros espaços campesinos habitados por afro-brasileiros, os quais são referidos

tradicionalmente como comunidades negras rurais ou popularmente reconhecida como

“terras dos pretos” formadas por escravos ou ex- escravos, frutos de doações de terras

9 Leite, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. Etnográfica, Vol.

IV (2), 2000. 333- 354. Disponível em: <http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_333-

354.pdf >

Acesso em: 08-04-2016

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

9

por senhores a ex- escravos, outras compradas por escravos libertos, doações de terras a

escravos que haviam servido ao exército em tempo de guerra, ou ainda doações a

escravos por ordem religiosas. Embora apresentem características de formação,

organização e ação diferentes, as comunidades remanescentes de quilombos atuais são

frutos desta diversidade, de outras tantas experiências de lutas e conquistas10

.

Mas, o que são Quilombos e que papel ocupa na sociedade? E “Remanescentes

de Quilombos”, o que seria? Muitos são os conceitos atribuídos a Quilombo, essas

denominações vão ganhando novos significados de acordo com cada período da história

do Brasil. O primeiro conceito oficial está relacionado com a interpretação do Conselho

Ultramarino11

em 1740, referente ao período colonial, definido pelo rei de Portugal

como "[...] toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco em parte despovoada;

ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele" (REIS, p.347).

Durante o Império, era considerado quilombo, aquele agrupamento formado por até três

negros fugitivos, mesmo que esses não possuíssem ranchos permanentes, já no Brasil

República, o conceito de Quilombo ganha um discurso mais político, deixa de ser

aquele grupo formado através de fuga e passa a ser agrupamentos em torno da

resistência, não dos seus senhores, mas uma resistência que luta por políticas de

afirmação no processo de construção de uma cultura negra no Brasil. O Quilombo

agora, passa a servir como base para se pensar nos feitos, frente à ordem dominante,

significa para esta parcela da sociedade brasileira, sobretudo, um direito a ser

reconhecido e não propriamente apenas um passado a ser rememorado.12

Para Munanga & Gomes (2006), o quilombo não significou apenas um lugar de

refúgio de escravos fugidos, mas a organização de uma sociedade livre formada de

homens e mulheres que se recusavam viver sob o regime de escravidão e desenvolviam

ações de rebeldia e de luta contra esse sistema. Munanga ainda acrescenta que o

10

Yabeta, Daniela; Gomes, Flávio. Memória, cidadania e Direitos de Comunidades Remanescentes (Em

torno de um documento da História dos Quilombolas da Marambaia). Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0002-05912013000100003> Acesso em: 08-

04-2016

11

Padilha, Lúcia Maria de Lima; Nascimento, Maria Isabel Moura. Comunidades quilombolas brasileiras

na perspectiva da história da educação: estado da arte. Disponível em:

<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada11/artigos/4/artigo_simposio_4_541_lu

[email protected] > Acesso em: 08-04-2016

12

Ver : Leite, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. Etnográfica,

Vol. IV (2), 2000. 333- 354. Disponível em:

http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_333-354.pdf

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

10

Quilombo brasileiro “é, sem duvida, uma cópia do quilombo africano reconstituído

pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata (...)”.

A legislação vigente, considera remanescente de Quilombos, de acordo com o

Decreto nº 4887/ 03.2, Art. 68 da Constituição Federal, os grupos étnico-raciais,

segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de

relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com

a resistência à opressão histórica sofrida13

. Esse conceito é relativamente recente,

formado a partir da constituição brasileira de 1988, e baseia-se na autodefinição

identitária de uma ancestralidade negra, com sentido coletivo e implica na

ressignificação de valores sociais, culturais, religioso, econômico e ambientais. Assim,

a denominação “remanescentes de quilombo” deve compreender todos os grupos que

desenvolveram práticas de resistência para a manutenção e para a reprodução de seus

modos de vida característicos de um determinado lugar, cuja identidade se define por

uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e de valores

partilhados.14

A inserção do mencionado artigo na Constituição Federal, simboliza um

grande salto no que se refere ao reconhecimento das comunidades quilombolas, pois é o

início de uma nova história de valorização aos direitos humanos, uma vez que, durante

séculos, esses grupos foram abstraídos da cultura nacional e essa invisibilidade

ocasionou toda ausência de conhecimento sobre os modos de ser e viver das

comunidades remanescentes de Quilombos.

Em diferentes partes do Brasil, sobretudo após a Abolição (1888), os negros tem

sido desqualificados e os lugares em que residem são ignorados pelo o poder público ou

questionados por outros grupos recém-chegados15

, e até mesmo pela comunidade local.

No Rio Grande do Norte, de acordo com estudos realizados pela Fundação Cultural de

Palmares (Vinculados ao Ministério da Cultura) existem cerca de 60 comunidades

Quilombolas16

, mas mesmo assim, (ASSUNÇÃO, 2006) afirma que a historiografia não

tem dado a devida atenção ao tema do negro, e os registros bibliográficos apontam um

pequeno número no que diz respeito à presença de escravos na sociedade potiguar.

Apesar da invisibilidade que se tem dado a essa temática, no Rio Grande do Norte os

13

Ver Decreto nº 4887/03- Art. 68 da Constituição Brasileira. 14

Assunção: Luiz. “Quilombos: comunidades remanescentes- RN. Depto. De Antropologia, UFRN. Nº

17- volume- 03- novembro de 2006. 15

Ilka Boaventura. Obra citada. 16

MACÊDO, Rayana Garcia de. Quilombolas e desenvolvimento sustentável: análise a partir da

comunidade capoeira dos Negros (Macaíba/Brasil). Disponível em:

<http://www.natal.rn.gov.br/bvn/publicacoes/RayanaGM_DISSERT.pdf > Acesso em: 08-04-2016

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

11

descendentes de escravos estão espalhados por todas as regiões, compondo um conjunto

de dezenas de comunidades negras rurais. Assim podemos afirmar que:

[...] sabemos da existência de várias outras comunidades afro-

descendentes cuja história ainda fica para ser escrita: encontram-se

espalhadas em todo o estado e, em particular, na região do Seridó, em

Currais Novos, Acari e na Paraíba vizinha (CAVIGNAC, 2011, p.43).

No caso da Macambira, localizada na região do Seridó, assim como outras

comunidades Quilombolas Potiguar, reconhecidas ou em fase de tramitação pelo

INCRA, enfrentam além de dificuldades materiais, situações de discriminação e

preconceitos, assim como, procedimentos históricos de usurpação das suas terras.

O processo de reconhecimento identitário da comunidade Macambira ocorreu

em meio a muitos conflitos internos e externos, tendo como motivo principal a “Terra”.

Historicamente, a comunidade preenche todos os requisitos defendidos pela

Constituição Federal, art.68, sobre que povos podem ser considerados Remanescentes

de Quilombos. O interesse de conhecer sobre a sua origem negra, partiu de um pequeno

grupo da comunidade, já no fim dos anos 90, em resposta as humilhações, conflitos

verbais e físicos que vinham ocorrendo entre o povo da Macambira e latifundiários que

se apossaram de suas terras. O objetivo da comunidade junto ao seu reconhecimento

estava voltado “a regularização de sua situação fundiária e a ampliação de seu território

atual, recuperando áreas anteriormente perdidas, ou por venda, ou por processos de

conflito com grandes proprietários locais, em particular entre as décadas de 1930-1940,

quando se cercaram as grandes propriedades na região17

. Sobre essa questão SILVA,

(2012, p. 157) afirma:

Maria do Socorro Santos Silva (sindicalista) sabedora da situação da

Macambira refletiu sobre uma nova possibilidade de ter acesso as

terras. Segundo ela, a negritude da população (materializada

historicamente de comentários pejorativos) e o contato com a mídia

que apresentam algumas situações de sucesso no acesso a terra a partir

de comunidades remanescentes de Quilombos, despertou para se

tentar o acesso a terra através da transformação da Macambira, em

uma comunidade Quilombola. (...) Nos anos 2000, reuniu os

agricultores da Macambira (...) e explicou para eles que haveria a

possibilidade deles terem acesso aquelas terras pelo fato de suas

origem Quilombolas.

17

PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Obra citada.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

12

Após essa decisão tomada pela sindicalista, foi dado início ao processo de

reconhecimento junto a Fundação Palmares, o que culminou no relatório antropológico

produzido pelo Antropólogo Edmundo Pereira (PPGAS/ UFRN) e teve como parecer

conclusivo a recomendação para o reconhecimento como área “Quilombola”. Em julho de 2005

a comunidade Macambira obteve sua certidão de auto- reconhecimento como remanescentes de

quilombos. A partir desse reconhecimento, passa a ser denominada por “Comunidade

Quilombola da Macambira” e sua população ganha uma nova identidade. (...) seus membros

apresentavam-se como sendo um mesmo grupo étnico(...) Este fato materializa-se na

expressão corrente ouvida ao longo do trabalho nos quatro cantos de seu território,

dentre todos os troncos visitados: “aqui é tudo uma família só”18

.

Nasce um novo sujeito jurídico, uma nova forma de se reconhecer, uma nova

identidade. Entretanto, para boa parte dos moradores permanece o discurso sobre o

parentesco em comum a unir, por herança, aquelas pessoas em um território. Refletindo

sobre esse novo sujeito podemos afirmar com Hall (1990) que as identidades são

definidas historicamente, e não biologicamente e, assim, os sujeitos assumem

identidades diferentes em diferentes momentos. Tais identidades não são unificadas ao

redor de um “eu” coerente, existindo, dentro de nós, identificações contraditórias19

. Esse

pensamento diz muito dessa nova fase da história da Macambira, apesar de se

considerarem biologicamente todos de uma mesma família, atualmente a nova

identidade que estão assumindo está sendo definida com base na trajetória histórica do

grupo.

De acordo com Vilmário, 46 anos e presidente da Associação Quilombola da

Macambira, apesar desse discurso que lá todos fazem parte da mesma família,

atualmente o território que compreende a Macambira é composto por aproximadamente,

300 famílias, há quem diga que não existe Remanescente de Quilombos lá. Porém, esse

discurso foi construído por moradores que defendem, de certa forma, outros interesses

políticos e estão à frente de outros movimentos fundiários. O senhor Francisco Lopes

mais conhecido como (Bitico) é um exemplo desses moradores que não se reconhecem

como remanescentes de quilombolas e, portanto, não se veem como integrante da

18

PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Obra Citada. 19

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade, DP&A Editora, 1ª edição em 1992, Rio de

Janeiro, 11ª edição em 2006, 102 páginas, tradução: tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro):

Disponível em: <http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/hall1.html > Acesso em: 08-04-2016

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

13

comunidade. Ele se vê como assentado e exerce a liderança local vinculado ao MST

(Movimento dos Sem Terras).

De modo geral, ao interrogá-los sobre como os moradores da comunidade se

identificavam\ identificam antes e depois do processo de reconhecimento, afirmam que,

devido a pobreza, a dificuldade financeira, a falta de participação ativa na sociedade e o

preconceito racial, era comum negarem a identidade negra como uma forma de defesa,

pois, na maioria das vezes, se envergonhavam da pobreza na qual viviam e do

preconceito que sofriam devido a cor da pele, legada pela grande maioria da

comunidade. Os relatos sobre o presente são diferentes das narrativas sobre esse

passado. Considera-se então que, enquanto no pretérito reinava a pobreza a

envergonhar, no presente “nós somos tudo rico”, expressão comum usada por todo

aquele que se reconhece como integrante da Comunidade quilombola da Macambira.

Porém, percebe-se que o orgulho dessa identidade está relacionada mais a

questão da mudança de condição social da comunidade, e não exatamente por ser

descendentes de escravos e terem sido reconhecidos como tal. Certamente, a escravidão

não deixa marcas positivas na memória e, por isso, esteve associada ao esquecimento e

aos silêncio. Entre os mais velhos que vivenciaram uma trajetória histórica de luta pela

terra, percebemos a relação positiva com a nova identidade quilombola, associada à

resistência e à busca da liberdade nas terras herdadas de um parente comum: Lázaro. No

entanto, os mais jovens preocupam-se mais com os benefícios oriundos da condição de

“integrantes legalmente de uma comunidade remanescente de escravos.

Entrevistado sobre as mudanças que ocorreram no antes e depois do processo de

reconhecimento, Vilmário afirma:

Tudo de ruim que acontecia, botava culpa na gente. Uma briga, uma

morte, uma bagunça, qualquer que acontecia, as pessoas dizia é lá da

Macambira, é lá dos negros da Macambira (...) Naquela época em que o

povo era pobre mesmo (...) o povo vivia dizendo: Ali só tem flagelado

(...) Hoje todos se reconhecem e hoje também, graças a Deus, a gente

não anda mais rasgado, não anda mais maltrapilho hoje todo mundo

tem, quando não tem um carrinho, tem uma motinha, tem uma casinha

boa pra morar, então a questão hoje é totalmente diferente. Na verdade,

hoje as pessoas nem falam mais naquele sofrimento.

Vilmário também relatou a existência de outras famílias residentes na

Macambira não pertencentes ao grupo quilombola, mas que compraram terras a

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

14

terceiros e construíram suas casas, porém, não tem descendência negra, muito delas tem

a pele branca. Dessa forma, compreendemos que não há uma unanimidade no processo

de identificação quilombola entre os moradores da Macambira. Este, portanto, não é

grupo fechado no espaço e parado no tempo. As muitas identificações mostram ser o

amplo terreno compreendido pela Macambira um lugar cheio de histórias, que serviu

como espaço de circulação de diferentes sujeitos nascidos ali, ou não, enfim, posseiros

ou herdeiros da terra desde o tempo de D. Pedro II.

2.1 TRADIÇÃO ORAL, MITO DE ORIGEM E DISPUTA PELA TERRA NA

MACAMBIRA

Antes e depois da abolição da escravatura o território brasileiro esteve marcado

pela presença de comunidades negras. Esses grupos, até os dias atuais, resistem às

pressões de latifundiários, empresas nacionais ou não, e até mesmo pressão impostas

pelo poder público para manutenção ou reconquista de seus territórios. Assim, o

processo de territorialização quilombola constitui-se muitas vezes, na luta para

continuar a existir, na reinvenção de uma identidade política portadora de direitos que é

informada por uma memória ancestral. A memória nesse sentido, ocupa um espaço de

muita importância, porque é através da tradição oral que esses povos encontram na

reinvenção de suas identidades uma oportunidade de recriação de suas histórias.

A Comunidade de Macambira, está situada na chã20

da Serra de Santana na Zona

Rural, município de Lagoa Nova, interior do Rio Grande do Norte. Retratada pela

tradição oral como uma das comunidades mais carentes economicamente do município,

a Macambira carrega na sua memória momentos de muitas dificuldades, mas também

registros de muitas conquistas e riqueza cultural. A população sobrevive hoje da

agricultura familiar, da criação de animais, trabalhos em casas de farinha e dos

benefícios do governo federal. Constantemente ouvimos dos moradores expressões que

afirmam que grandes mudanças ocorrerem ao longo do tempo, em todos os aspectos,

mas principalmente na situação financeira, quando pronunciam com muito orgulho que

atualmente estão todos ricos.

Fundada em meados do século XIX, a história da Macambira está

intrinsicamente ligada ao processo de requerimento das terras que hoje corresponde a

20

Expressão local que se refere à localização geográfica da Macambira na planície da Serra de Santana.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

15

cidade de Lagoa Nova por Adriana de Holanda Vasconcelos. De acordo com a

documentação e a memória local, as terras que hoje pertencem a Macambira, foram

vendidas pela família de Dona Adriana a um ex-escravo denominado de Lázaro Pereira

de Araújo que constituiu uma numerosa família, que historicamente são considerados os

responsáveis pela povoação de quase todo território do que hoje se conhece

politicamente por Macambira. Nesse sentido, a maioria da comunidade, reconhece

Lázaro, como o ancestralidade negra que deu origem a Macambira. No laudo

antropológico da comunidade vemos a seguinte narrativa sobre a formação histórica

daquele espaço:

No caso de Macambira, sua formação advém do encontro de famílias

negras ao redor das datas compradas por um ex-escravo, Lázaro, depois

de forro, Lázaro Pereira de Araújo, possuidor de vasta área na qual um

conjunto de famílias estabeleceria laços de casamento e compadrio, e

que na chã da Serra foram aos poucos abrindo seus primeiros roçados

próprios e constituindo descendência (PEREIRA,2011, p.5).

Toda documentação que comprova ter sido Lázaro Araújo o primeiro

proprietário dessas terras encontra-se guardada no arquivo da Associação da

Comunidade e data o século XIX. São os chamados de “Documentos do tempo de Dom

Pedro21

”. Os registros apontam que, desde o início do século XX, seus membros de

descendência negra são conhecidos por “negros da Macambira”. Essa denominação no

qual são reconhecidos pelos seus vizinhos e a população branca de Lagoa Nova

constituiu-se historicamente uma expressão pejorativa a qual se agregam acepções como

sujos, bravos, feiticeiros22

.

A “Macambira”, segundo a versão dos moradores, recebeu esse nome há cerca

de seis a sete gerações23

atrás, devido à região norte da Comunidade ter sido encontrada

muito “Macambira24

. De acordo com Pedro Daniel Pereira- 72 anos, “Botaram o nome

de Sítio Macambira porque tinha muito pé de Macambira, naquele tempo (se referindo

passado)”.

21

Expressão usada pelos moradores da Macambira se referindo a documentação do século XIX. 22

PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Comunidade Macambira: de “Negros da Macambira” à

Associação Quilombola. Pág: 05. Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260.

jan./jun. 2011. 23

Dados presente na dissertação de mestrado de Danilo Duarte costa e Silva. Ver nas referências

bibliográficas. 24

Macambira foi o nome dado a comunidade em referência ao vegetal denominado cientificamente de

BromeliaLaciniosa.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

16

As histórias da comunidade são marcadas por narrativas de exclusão social e de

intensa luta pela conquista e reconhecimento dos seus direitos, entre eles, o direito à

terra. Sucessivas secas, fome, invasões à feiras livre25

do município como forma de

reivindicação política, perseguições clientelistas entre outros, são dificuldades relatadas

pelos moradores no decorrer da sua história. Para eles, a situação passou a melhorar da

década de 1980 após a demarcação territorial da Macambira em três partes: (Macambira

I, II, III), essa foi uma forma encontrada pelos moradores para atrair mais recurso para a

comunidade. Observa-se que o maior problema elevado pelo grupo são as questões

voltada a posse das “Terras” em espacial ao longo do século XX, porque perderam parte

do seu território original para um dos grandes proprietários da região e atualmente, buscam

reconquistá-la.

Uma das dificuldades citadas pelos moradores, está relacionada às prováveis

alterações no território com as relações clientelistas que a população de Macambira

mantinha com a família Galvão26

, que culminou em uma perda de parte do território nos

anos de 1940, na área atualmente conhecida como Cabeça de Macambira. Para eles,

Elísio Galvão, grande proprietário de terras, é um dos personagens principais, pois

como era considerado um homem de muitas posses, mantinha sempre o contato de

“favorecimento” com a população pobre da Macambira, afim de conseguir o domínio

das terras que ora pertencia a comunidade, através da compra consensual ou

pressionada. Assim nos relata Dona Agripina de 83 anos:

Essas terras que tá em questão aí era tudo nossa. Aí depois foi vendida

a seu Elisu, né? aí seu Elisu disse, chegou e disse: Maria eu vim pá ver

se você quer me vender essa terra. Ela disse: não, eu não vou vender

que João não tá em casa, joão tá nos roçado e só vendo essa terra se

joão combinar. Aí papai chegou, ele falou. Aí papai sentou-se assim e

disse: (...) aí ele disse: não seu elisu, a terra é dela, ela pode vender.

Claro que papai disse, era pra ter dito não, ninguém vende a terra.

Muita terra, Muita terra que ia até o cabeço da grota. Aí seu Elisu

comprou, me lembro, que nesse tempo dinheiro nem era cruzeiro e

nem os de agora, era minrréis”.

Ainda de acordo com Dona Agripina, após Elísio Galvão conseguir as terras

almejadas, ele procurava impedir o acesso da população de várias formas, cercando ou

soltando animais bravos, para que estranhos não se aproximassem do território. Assim,

25

Refere-se aos saques que ocorreram a feira livre de Lagoa Nova pelos Negros da Macambira, na década

de 1980. 26

Refere-se a Elísio Galvão, proprietário de terras na Serra de Santana.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

17

nos relatou: “Depois que ele conseguia a terra, logo passava uma cerca e botava boio

brabo dentro. A cerca passava bem ali (...) aí quando nós ia minha fia, quando era de

noite era lote de gado, tinha boio brabo, que a gente só ouvia o ronco dos bichos,parecia

(...) Era cada Torão passando (...) Tomou essa terra daqui, com a do Bonfim, tudo

passou a ser de Seu Elisu (...)”.

Observa-se, a partir do discurso das falas dos próprios moradores, que o maior

problema enfrentado pela comunidade envolve a posse de suas terras. Assim observou

Edmundo Pereira, (2011, p 128- 129): “O processo socio-histórico de formação da

Comunidade (e da ocupação da Serra de Santana em termos gerais) dá conta de que o problema

da terra é historicamente umas das questões centrais para o grupo – em especial ao longo do

século XX (...)”. A recriação das histórias narradas através das bibliografias disponíveis,

e as que buscamos construir em campo, nos remete não só as relações identitárias

que a comunidade tem com o território, mas também a profunda tristeza de perceber-se

marginalizados pela própria história de luta política e social por esse território. Muitas

lembranças frustrantes fazem parte da memória desse povo, é o que nos relatou Dona

Agripina, que viveu momentos de tensão desde os primeiros momentos nos quais sua

família foi convencida a vender parte de suas terras para Elísio Galvão em meados dos

anos trinta, e como foi o processo de luta da comunidade em busca de reconquistar seus

territórios perdidos.

Insatisfeitos com perda de parte dos territórios pertencentes, por lei, à

comunidade, nos anos de 1990, mais precisamente em 1997, os moradores de

Macambira organizaram uma mobilização política (embaixo de um cajueiro) com o

intuito de organizar uma tomada de terras localizada ao norte da Macambira, que

encontrava-se em posses da família Galvão. Após esse episódio, várias ameaças e

intimações ocorreram por parte da família Galvão ao povo de Macambira. Esses

acontecimentos são relatados com muita angústia pelos moradores, pois foram dias

tensos de muita agressão física e verbal, entre os moradores e os representantes do

latifundiário local. De acordo com Vilmário, foi ameaçado pelo próprio Elísio Galvão

no ano de 1997, dois anos antes dele falecer, no qual o ameaçou dizendo que se

continuasse a invasão ele cortaria sua cabeça fora e colocaria lá na porteira, para servir

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

18

de exemplo para os que tentarem invadir de novo27

. “Teve dia da polícia chegar aqui e

a gente se armar contra os ataques deles com foice, espingarda(...)”

Buscando valer seus direitos, e a reconquista de suas terras subtraídas ao longo

do tempo, no início dos anos 2000 os moradores movimentaram-se em torno do

reconhecimento como remanescentes de quilombos e formalizaram o pedido junto a

Fundação de Palmares, com o intuito de iniciar o processo de legalização, no que

culminou em um relatório antropológico, que a partir dele, observou-se que todo

território pertence a comunidade Macambira e isso está previsto na documentação dos

“tempos de Dom Pedro”. Essa nova conjuntura leva a comunidade a reconstrução de

uma nova identidade, a partir das suas características históricas.

Segundo Edmundo Pereira (2011), dois meses antes da certificação, membros da

Comunidade se organizaram e fundaram a Associação dos Quilombolas da

Macambira do Município de Lagoa Nova. Essa é uma forma de pré-requisito

administrativo e jurídico para o pleito pela “autodeterminação”. Todo esse processo

visava o reconhecimento identitário e assim, recuperar áreas territoriais anteriormente

perdidas, por venda, ou por processos de conflito com os proprietários locais,

especialmente, entre as décadas de 1930-1940, quando se cercaram as grandes

propriedades na região. Nesse sentido em 29 de julho de 2005, a Fundação Cultural

Palmares certificou a comunidade como remanescente de quilombos por auto-

reconhecimento. Em março de 2016 foram publicadas 4 Portarias de Reconhecimento e

1 RTID, no diário oficial da União, no qual a presidenta Dilma Rousseff assinou 4

decretos de desapropriação em benefício à quatro comunidades quilombolas brasileiras,

dentre elas a Macambira (RN).28

Apesar da comunidade ter sido reconhecida em 2005 pela Fundação Cultural de

Palmares como remanescentes de Quilombos, nos últimos anos (2013 e 2014) foram

vítima de desapropriação de seus territórios à pedido da justiça e por intermédio de

latifundiários locais (descendentes de Elísio Galvão) que alegam ser proprietário das

terras. Vilmário descreve que foram momentos de tensão, por que perderam tudo, a terra

27

SILVA, Danilo Duarte Costa e. “ A ROÇA É NOSSA...” Analisando as mudanças a partir de uma

perspectiva antropológica da relação do homem com o meio- ambiente. Dissertação de mestrado

defendida junto ao programa de pós-graduação em Antropologia Social (UFRN – PPGAS), Natal, 2012. 28

Terras Quilombolas: Disponível em:

http://comissaoproindio.blogspot.com.br/2016/04/terras-quilombolas-publicados-decretos.html (Acesso

em: 08-04-16)

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

19

e toda colheita que haviam plantado “nós tava nas nossas 400 hectares de roça plantada,

milho, feijão, aí tudo isso foi tirado da gente, passamos uma dificuldade muito grande”.

Uma nova problemática que envolve as terras da Macambira tem surgido

recentemente. De acordo com Vilmário (46 anos, agricultor e presidente da associação

que representa a Comunidade Quilombola, fundada em 2005), um novo sindicato foi

organizado na comunidade e com ele, uma nova associação “clandestina” expressão

usada por Vilmário e pelo Jovem Anderson Palmeira, 22 anos, também morador da

Macambira. Segundo eles, a formação desse novo sindicato e associação clandestina

(pois não é reconhecida pelo ministério do trabalho, não tem um espaço de

funcionamento) sob a organização da sindicalista Maria do Socorro não tem trazido

benefício para a comunidade nem para o município de Lagoa Nova. Uma das ações já

realizada pelo novo sindicato, foi conseguir novas casas para a comunidade de forma

ilegal, no qual os moradores que aderiram ao projeto de certa forma estão pagando

quantias para cobrir gastos que o sindicato tem, no processo de construção das

residências. É o que nos relata Vilmário: “Essa associação que foi criada não é

reconhecida pela Fundação Palmares, não foi feito nenhum trabalho de nada dentro

dessa associação, então ela é uma associação clandestina que não existe. Ela não tem

prédio, ela funciona dentro da casa da própria presidente”.

Desta forma, podemos classificar estes conflitos como sendo primordialmente

territoriais, envolvendo grupos externos e interno que apresentam visões e interesses

diversos e que vai sempre resultar em concepções também diferentes, afinal, a

comunidade busca a permanência da conservação de um território jurídico e delimitado

politicamente para fins de vivência coletiva, já os empresários, latifundiários locais e

sindicalistas buscam uma frente de expansão aos seus negócios e interesses particulares.

2.2 OS FILHOS DE LÁZARO E A EMPRESA DE VENTOS

Atualmente, a energia eólica vem sendo apontada como a fonte de energia

renovável mais promissora para a produção de eletricidade, levando em consideração os

aspectos de segurança energética, os custo socioambiental e a viabilidade econômica.

No Brasil, mais precisamente na região nordeste, existe grandes investimentos no

campo de energia eólica (isto é, a energia gerada a partir da força dos ventos), pois esta

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

20

“pode ser explicada, em termos físicos, como a energia cinética formada nas massas de

ar em movimento”.29

O Estado do Rio Grande do Norte, localizado na região Nordeste do Brasil, vem

se destacando na implantação de parques eólicos. Dentre as suas microrregiões, a Serra

de Santana recebeu os maquinários do mais novo empreendimento de energia

renovável, que tem alterado a paisagem natural, econômica e social, especialmente nos

municípios de Bodó, Santana do Matos e Lagoa Nova. Neste último, a Macambira

figura entre as muitas comunidades rurais escolhidas para abrigar, em seus território, o

maquinário responsável pela produção de energia eólica. A Macambira é composta por

263 famílias e ocupa uma área total de aproximadamente 2.589.1695 hectares30

, espaço

tido como necessário ao desenvolvimento da comunidade. A maioria da população é

composta por descendentes de Lázaro Pereira de Araújo que teria adquirido a terra em

meados do século XIX. Segundo o discurso dos moradores e das bibliografias recentes,

desde os anos de 1940, a comunidade passa a perder parte do seu território em relações

clientelistas, para o grande proprietário de terra denominado de Elísio Galvão e isso irá

gerar muitas disputas, ameaças e estratégias para se requerer novamente o direito à

terra.

A inserção das atividades geradas pela energia eólica na Macambira trouxe

novos problemas e acentuou a questão da disputa pela manutenção da posse da terra,

fomentando, ainda mais, o embate entre os “descendentes de quilombos e

latifundiários”. A princípio, gestores de empresas espanholas, responsáveis pelo

investimento, tinham como projeto, construir um parque eólico em parte do território

que compreende a Macambira. Não levou muito tempo, e os descendentes de Elísio

Galvão (latifundiários da região) apresentaram-se como proprietários da área, dizendo-

se legalmente amparados e negociaram a instalação de um parque eólico na localidade.

Amparados pela justiça, os empresários dos ventos e latifundiários locais, recebem a

reintegração de posse das terras e, repentinamente, as mais de 260 famílias da

29

ALVES, Jose Jakson Amancio. Estimativa da Potência, Perspectiva e Sustentabilidade da Energia

Eólica no Estado do Ceará. Campina Grande. Universidade Federal de Campina Grande. Centro de

Tecnologia e Recursos Naturais. Disponível em: http://rbgdr.net/012010/artigo8.pdf (Acesso em: 08-

04-2016)

30 Ver site do INCRA: Disponível em:

http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra-andamentoprocessos-quilombolas_quadrogeral.pdf

(Acesso em: 08-04-16)

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

21

comunidade quilombola da Macambira, foram despejadas de suas casas e terras por

ordem judicial, sem compreenderem o motivo de tal situação31

. Esse evento que ocorreu

em março de 2013, marca dias de lamentações a angústias para seus moradores.

Sobre esse acontecimento Vilmário relata: “Nós tava todo mundo trabalhando de

repentizinho chega, uns cem (100) policial mandado pelo (suposto) proprietário, pra nos

tirar da terra. A gente tinha (400) hectares de roça plantada, milho, feijão, aí tudo isso

nos foi tirado, passamos uma dificuldade muito grande”.

Para a empresa tão importante quanto garantir a implantação do

empreendimento era assegurar a configuração espacial, anteriormente negociada com o

proprietário representante da família Galvão. Após a mídia, movimentos e discursos dos

moradores as 263 famílias da Comunidade Remanescente de Quilombo de Macambira,

comemorou mais uma etapa do processo de regularização do território onde vivem

desde meados do século XIX. Por meio da Portaria Nº 240, de 1º de junho de 2015, a

justiça reconheceu como terra remanescente de quilombo a área de aproximadamente

1.835 hectares reivindicada pela comunidade32

. A justiça concedeu ganho de causa aos

trabalhadores rurais de Macambira que durante anos, viviam enfrentando disputas e

discórdias com latifundiários representantes da família Galvão, voltaram as suas terras e

passaram a tratar diretamente com a empresa eólica a instalação do parque.

Após o processo de reintegração, os empresários dos ventos, a comunidade, os

latifundiários locais e a justiça, buscaram entrar em um consenso sobre a implantação

do parque eólico nas terras da comunidade que não viesse a prejudicar nenhum dos

lados, porém não foi realmente o que aconteceu. Segundo os moradores da comunidade

da Macambira, eles continuaram sendo os principais prejudicados, pois continuaram

sofrendo ameaças e que deviam calar-se e aceitar as condições estabelecidas pelos

empresários e latifundiários, ao contrário poderia haver mortes. Segundo Vilmário, a

comunidade não teve opção, a não ser aceitar que a empresa eólica permanecesse em

seus territórios “não foi do nosso gosto, mas por que fomos obrigados, por medo, até

houve ameaça de morte. Houve situações de baterem em pessoas lá dentro, por conta

31

Ver: Que bons ventos os trazem? A investida das usinas eólicas e a reconfiguração dos territórios rurais

no Estado do Rio Grande do Norte: desafios e perspectivas. Disponível em:

<https://bay179.mail.live.com/mail/ViewOfficePreview.aspx?messageid=mgQUti7mO45RGOwwAhWth

XMg2&folderid=flinbox&attindex=1&cp=-1&attdepth=1&n=30119439 (acesso: 08-05-2016)

32

Ver Relatório com as principais noticias divulgadas pela mídia relacionada com a agricultura.

Disponível em:

<https://bay179.mail.live.com/mail/ViewOfficePreview.aspx?messageid=mgQUti7mO45RGOwwAhWth

XMg2&folderid=flinbox&attindex=0&cp=-1&attdepth=0&n=93294720> Acesso: 30-04-2016

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

22

dessas terras, eles ficavam pressionando dizendo que nós ía perder tudo e se nós não

fechasse um acordo favorável a eles”.

Interrogados sobre os benefícios e os problemas causados em razão da

implantação da empresa eólica em suas terras, os moradores são unânimes em afirmar

que a chegada do empreendimento na Macambira não foi bem vinda. Ela foi instalada

na Comunidade não por uma decisão coletiva, mas por um empresário local, que juga-se

dono das terras por autorização judicial. A aceitação da eólica nas terras dos “negros

Macambira” não aconteceu em comum acordo e, segundo afirmam, a população

ofereceu resistência por medo das ameaças de morte sofridas para não intervirem.

Assim nos relatou Vilmário: “Então nós se achando acoados com essa situação, nós

fomos obrigados a ceder uma parte da terra pra eólica botar suas torres lá. Não tivemos

opção aqui, que pudéssemos se defender e lutar por nossas terras”.

Após a aceitação da Comunidade Macambira sobre a implantação do parque

eólicos em seus territórios, foi firmado um acordo no qual a empresa dos ventos teria

como contribuição social, a construção de uma casa de farinha com espaço e maquinário

moderno, e dessa forma, contribuir para gerar renda aos moradores locais. Um outro

compromisso da empresa eólica com a comunidade era aproveitar a mão de obra local,

mas de acordo com os depoimentos, isso não aconteceu. Segundo Vilmário: “segundo

eles diz, que ainda vão ajeitar nossa casa de farinha. Apesar de, no primeiro momento,

prometeram que iam beneficiar o pessoal da comunidade com trabalho e isso não

aconteceu, empregaram outras pessoas de fora os da própria comunidade, se botaram

dez pessoas da comunidade pra trabalhar foi muito talvez uns dez trabalhou lá”. Para

Anderson de 22 anos, após o direito de reintegração de posse aos quilombolas a

comunidade foi submetida a um acordo descabido, sem fundamento que só beneficiou a

empresa e aos latifundiários locais. A Comunidade até agora não recebeu nem um

projeto social, enquanto em algumas comunidade vizinhas que também foram

receptoras de torres eólicas em seu território e foram beneficiadas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os quilombos brasileiros foram construídos como uma unidade básica de

resistência do negro contra as condições de vidas impostas pelo sistema escravista,

porém essa denominação tem mudado. Atualmente, quilombos são considerados

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

23

espaços de resistências no qual seus integrantes desenvolvem e reproduzem modos de

vida com suas próprias especificidades culturais construídas ao longo tempo. Na

Constituição Federal de 1988, foi assegurado às comunidades remanescentes de

quilombos o direito às terras por eles ocupadas, devendo o Estado atuar na titularização

destas. De acordo com a Fundação Cultural Palmares existem hoje no país cerca de

1500 comunidades certificadas33

. Dessa forma, muitas comunidades rurais negras

passaram a construir uma nova identidade, baseada no resgate do conceito de

“quilombo”, com o aparecimento de novos atores sociais, ampliando e renovando os

modos de ver e viver a identidade negra. Muitas dessas comunidades, utilizam-se da

memória para o registro de suas histórias.

Buscando compreender o processo identitário da comunidade Macambira, antes

e depois de seu reconhecimento como remanescentes de quilombos através da memória

secular dos sujeitos envolvidos, percebemos que a Macambira carrega na sua história

um grande legado da cultura afro brasileira. A pesar da população afirmar que seus

membros fazem parte de uma mesma família, não é o que se ver na prática. Não há uma

identidade absoluta, existem várias identidades, e isso foi mudando com tempo. A

primeira mudança após o processo de reconhecimento está ligado a financeira, nesse

pontos todos tem muito orgulho de dizer que não são mais os negros que viviam em

extrema pobreza. Um outro perfil da nova identidade está na definição: quem é

quilombola, jamais poderá fazer parte “Dos Sem Terras” grupo da Macambira que se

identifica como integrantes do (MST), também, dentro da comunidade residem pessoas

que compraram terras a terceiros que não tem descendência negra, e sindicalistas que

não se reconhecem como quilombolas, exceto quando se tem algo relativo a terra.

Embora seja um território marcado por uma história de conflitos internos e externos,

cuja motivação principal é a “Terra”, observamos que as múltiplas identidades que

foram construídas ao longo do tempo, unificam-se quando o assunto é a tomada das

terras por povos que não sejam eles próprios.

Dessa forma, compreendemos que não há uma unanimidade no processo de

identificação quilombola entre os moradores da Macambira. Este, portanto, não é grupo

fechado no espaço e parado no tempo. As muitas identificações mostram ser o amplo

terreno compreendido pela Macambira um lugar cheio de histórias, que serviu como

33

Silva, Simone Rezende da Silva. Quilombos no brasil: a memória como forma de reinvenção da

identidade e territorialidade negra. Disponível em :< http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas/08-S-

Rezende.pdf>

Acesso em: 30-04-2016

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

24

espaço de circulação de diferentes sujeitos nascidos ali, ou não, enfim, posseiros ou

herdeiros da terra desde o tempo de D. Pedro II.

THE QUILOMBO OF THE REINVENTION MACAMBIRA: IDENTITY,

CONFLICT AND TERRITORY IN POND NEW / RN

ABSTRACT

The present article aims, the study on the process of history and identity formation of

community Macambira’s Quilombo Negroes - Lagoa Nova- RN, analyzing, from the

reports of people who live there, the importance of the expression of a secular memory

source on ownership of land and the reconstruction of a quilombo identity after the

recognition process. For this, we start from the understanding of the historical formation

of the community, in order to understand the conflict, the political and historical

importance of memory statement. Methodologically this work develops from the

construction of oral source and its theoretical assumptions discussion about memory and

present history in Jacques Le Goff and Pierre Nora and analysis of identity developed

by Stuart Hall and Tomaz Tadeu da Silva.

KEY WORDS

History. Memory. Identity

FONTES:

SANTOS, Anderson Palmeiras, 22 anos. Entrevistadoras: Ana Paula Bezerra e

Francisca Iselda de Macêdo, Áudio Mp3, duração 90 minutos, 17 de abril de 2016.

Vilmário Cândido da Silva, 46 anos. Entrevistadoras: Ana Paula Bezerra e Francisca

Iselda de Macêdo, Áudio Mp3, duração 1:30 mim, 23 de Abril de 2016.

Pedro Daniel Pereira- 72 anos. Entrevistadoras: Ana Paula Bezerra e Francisca Iselda

de Macêdo, Áudio Mp3, duração 50 mim, 17 de Abril de 2016.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

25

Agripina Daniel Pereira – 83 anos. Entrevistadoras: Ana Paula Bezerra e Francisca

Iselda de Macêdo, Áudio Mp3, duração 1:10 mim, 17 de Abril de 2016.

Manoel Luciano dos Santos (Seu Neco) – 72. Entrevista informal realizada por Ana

Paula Bezerra e Severino dos Ramos, Áudio Mp3, duração 45 mim, 09 de Janeiro de

2016.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Jose Jakson Amancio. Estimativa da Potência, Perspectiva e

Sustentabilidade da Energia Eólica no Estado do Ceará. Campina Grande.

Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Tecnologia e Recursos Naturais.

Pós-Graduação em Recursos Naturais. Tese (Doutorado em Recursos Naturais) 163p,

2006. Disponível em: <http://rbgdr.net/012010/artigo8.pdf > Acesso em: 28 fev. 2016.

BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,

DF: Secretaria especial de Editoração do Senado Federal, 1998.

BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o

procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e

titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

Brasília, DF, 20 nov. 2003. p. 1. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm> Acesso em: 12 abr.

2016.

CATROGA, Fernando. Memória, História e Historigrafia. Coimbra, Quarteto, 2001.

CAVIGNAC, Julie. Essa terra é da gente: patrimônio, religiosidade e direitos na

Boa Vista dos Negros (RN). Natal, RN: EDUFRN, 2011.

CHAGAS, Miriam de Fátima. A politica do Reconhecimento dos “Remanescentes das

Comunidades dos Quilombos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, n.15,

p. 209-235, julho de 2001. Disponível em:

<https://bay179.mail.live.com/mail/ViewOfficePreview.aspx?messageid=mgQUti7mO4

5RGOwwAhWthXMg2&folderid=flinbox&attindex=3&cp=-

1&attdepth=3&n=76563941> Acesso em 25 fev. 2016.

FELZEMBURG, Renata Cedraz Ramos. Comunidades remanescentes de

quilombos: retrato do multiculturalismo nacional. Disponível em: <

http://agu.jusbrasil.com.br/noticias/2019042/comunidades-remanescentes-de-

quilombos-retrato-do-multiculturalismo-nacional> Acesso em 18 abr. 2016.

HALL, S. "Cultural identity and Diaspora". In Rutherford, J. (org.). Identity.

Londres: Lawrence and Wishart, 1990.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

26

_______. A identidade cultural na pós-modernidade, DP&A Editora, 1ª edição em

1992, Rio de Janeiro, 11ª edição em 2006, 102 páginas, tradução: tomaz Tadeu da Silva

e Guacira Lopes Louro).Disponível

em:<https://bay179.mail.live.com/mail/ViewOfficePreview.aspx?messageid=mgQUti7

mO45RGO<wwAhWthXMg2&folderid=flinbox&attindex=2&cp=-

1&attdepth=2&n=1294385> Acesso em 01 abr. 2016.

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁGRIA –

INCRA. Etapa da regularização Quilombola. Disponível em:

<http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra-andamentoprocessos-

quilombolas_quadrogeral.pdf> Acesso: 15 abr 2016.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª edição. Campinhas/SP: Editora Unicamp,

2003.

LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: Questões conceituais e

normativas. Etnográfica, Vol. IV (2), 2000. 333- 354.

MACÊDO, Rayana Garcia de. Quilombolas e desenvolvimento sustentável : análise

a partir da comunidade capoeira dos Negros( Macaíba/Brasil). Dissertação de

mestrado defendida junto ao centro de Biociências. Programa Regional de Pós-

Graduação em desenvolvimento e Meio Ambiente /PRODEMA- UFRN, Natal, 2014.

MUNANGA, Kabengele & GOMES, Nilma Lino. O Negro no Brasil de Hoje. São

Paulo, Editora Global, 2006.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História.

São Paulo, n.10, dez. 1993.

PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Comunidade Macambira: de “Negros da

Macambira” à Associação Quilombola. Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3,

nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010.

REIS, J. J; GOMES, F. S. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São

Paulo: Companhia das letras, 2008.

ROZENDO, Cimone; FERRAZ, Ednaldo; BASTOS, Fernando. Que bons ventos as

trazem? A investida das usinas eólicas e a reconfiguração dos territórios rurais no

Estado do Rio Grande do Norte: Desafios e perspectivas. Disponível em:

<https://bay179.mail.live.com/mail/ViewOfficePreview.aspx?messageid=mgQUti7mO4

5RGOwwAhWthXMg2&folderid=flinbox&attindex=1&cp=-

1&attdepth=1&n=30119439> Acesso 25 abr. 2016.

SCHMITT, Alessandra; TURATTI, Maria Cecília Manzoli; CARVALHO, Maria Celina

Pereira de. Atualização do Conceito de Quilombo: identidade e território nas definições

teóricas. Ambiente e sociedade – Ano V- Nº 10 – 1º semestre de 2002. Disponível em:

https://bay179.mail.live.com/mail/ViewOfficePreview.aspx?messageid=mgQUti7mO45

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · das terras e a reconstrução de uma identidade quilombola após o processo de reconhecimento, a partir dos relatos dos moradores

27

RGO<wwAhWthXMg2&folderid=flinbox&attindex=2&cp=-

1&attdepth=2&n=1294385> Acesso em 01 abr 2016.

SILVA, Danilo Duarte Costa e. “ A ROÇA É NOSSA...” Analisando as mudanças a

partir de uma perspectiva antropológica da relação do homem com o meio-

ambiente. Dissertação de mestrado defendida junto ao programa de pós-graduação em

Antropologia Social (UFRN – PPGAS), Natal, 2012.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1992.