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Território quilombola Uma conquista cidadã Material de apoio para oficina de formação com jovens lideranças quilombolas 2012

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Cartilha para jovens quilombolas. Ação Afirmativas. Demandas sociais e reconhecimento histórico

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Page 1: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola Uma conquista cidadã

Material de apoio para oficina de formação com jovens lideranças quilombolas

2012

Page 2: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

2

Novembro de 2012

Apresentação

O presente material foi desenvolvido

1 para servir de instrumento de apoio para a

realização de oficinas de formação com jovens lideranças quilombolas durante a semana de

consciência negra em novembro de 2012. Este material sistematiza algumas das principais

informações relacionadas com a luta pela titulação dos territórios quilombolas no Brasil.

Na primeira parte o material de apoio traz alguns importantes elementos históricos sobre

a o longo caminho quilombola na luta pela garantia e efetivação do direito à titulação do

território. A segunda parte do material apresenta um resumo das mudanças normativas

relacionadas com a titulação dos territórios quilombolas após à promulgação da Constituição

Federal de 1988. Na terceira e última parte apresentam-se elementos sobre os procedimentos

para realização da titulação dos territórios quilombolas, Analisando-se também alguns dos

entraves jurídicos e políticos relacionados com a titulação.

Canto das três raças (Mauro Duarte e Paulo Cezar pinheiro)

Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil

um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro

foi pro cativeiro e de lá cantou

Negro entoou um canto de revolta pelos ares

no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes pela quebra das correntes

nada adiantou

e de guerra em paz, de paz em guerra

todo o povo desta terra quando pode cantar

canta de dor

Ôh ôh ôh ôh ôh ôh ôh oh

E ecoa noite e dia, é ensurdecedor

ai, mas que agonia o canto do trabalhador

esse canto que devia ser um canto de alegria

soa apenas como um soluçar de dor.

1 Elaborado por Fernando Prioste e André Barreto, integrantes da organização de direitos humanos Terra de Direitos.

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

Sumário

Parte 1 - Quilombos e direito a terra na história brasileira. 1.1-Colonização do Brasil, trabalho escravo, quilombos e terra.

1.2-Abolição formal e inconclusa da escravidão e as comunidades

quilombolas.

1.3-A Constituição de 1988: um marco jurídico importante para as

comunidades quilombolas.

Parte 2 – As comunidades quilombolas e a luta pela realização do direito

constitucional.

2- luta pela titulação dos territórios quilombolas depois do art. 68 do

ADCT da Constituição Federal.

2.1- De 1988 a 2003 – Poucos avanços

2.2- De 2003 a 2012 – Alguns avanços

Parte 3 – Noções legais básicas para a titulação dos territórios

quilombolas.

3- Marcos da titulação do território Quilombola

3.1- A certidão da Fundação Cultural Palmares

3.2- O passo a passo da titulação – A regra da Instrução Normativa n 57 do

INCRA

3.3- Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho

3.4- Políticas públicas para efetivação dos direitos previstos na lei –

Programa Brasil Quilombola

3.5-Ameaças aos direitos das comunidades quilombolas

3.5.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239 – Supremo Tribunal

Federal

3.5.2 Projetos de lei e ameaça a direitos

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

Parte 1 - Quilombos e direito a terra na história brasileira

1.1- Colonização do Brasil, trabalho escravo, quilombos e terra.

uitos aprenderam nas escolas

que o Brasil foi “descoberto”

pelos portugueses em 22 de

abril do ano de 1500. Essa “descoberta” se

refere à chegada de uma frota de navios

portugueses chefiada por Pedro Álvares Cabral2

onde hoje se localiza a cidade de Porto Seguro,

na Bahia. Mas sabemos que nas terras que hoje

conhecemos como Brasil já viviam muitos

índios. Se nas terras hoje conhecidas como

Brasil já viviam os indígenas porque se fala em

“descobrimento” do Brasil? Esse termo

“descobrimento” é utilizado a

partir de uma perspectiva

europeia que desconsidera os

povos nativos do Brasil no

processo de ocupação das

terras. Ou seja, para os

europeus nada havia de

importante aqui em termos de civilização e

ninguém era dono dessas terras. Assim, a

construção histórica do “descobrimento” do

Brasil teve, e ainda tem, um sentido muito

importante de viabilizar a colonização da

América Latina pelos europeus.

Os portugueses, na época da colonização

do Brasil, tinham um objetivo muito claro:

extrair o máximo de riqueza no menor tempo

possível. O grande tamanho das terras que

Portugal pretendia se apropriar indicava a

2 Dizem alguns historiados que mesmo antes da chegada de

Pedro Álvares Cabral, Duarte Pacheco Pereira, em 1948, e

Vicente Yàñes Pinzón, em janeiro de 1500, já haviam chegado

da Europa ao Brasil.

necessidade de traçar uma estratégia de

apropriação, evitando que pessoas não ligadas à

coroa portuguesa explorassem o que havia de

riqueza no Brasil. Assim, a partir do ano de 1534

o governo português, através do sistema de

capitanias hereditárias, dividiu o território hoje

conhecido como Brasil em doze grandes lotes de

terras. Esses lotes de terras, conhecidos como

capitanias hereditárias, tinha uma extensão

limitada no sentido quanto à latitude (norte-sul)

variando entre trinta e cem léguas, sem limitação

quanto à longitude (de leste a oeste). Essas

capitanias hereditárias eram

distribuídas pelo governo

português à pequena

burguesia portuguesa, que

tinha como uma de suas

obrigações ocupar e explorar

economicamente o território.

Frise-se que esse sistema de loteamento do

Brasil não levava em conta que aqui existiam

muitos indígenas vivendo.

Os donatários, aqueles que recebiam do

governo português o direito de explorar as

capitanias hereditárias, conduziram a exploração

das terras principalmente através da extração de

recursos naturais (na sua maioria madeira, ouro e

prata) e do sistema de plantation. O sistema de

plantation se baseava da monocultura

(principalmente de cana de açúcar) em grandes

extensões de terra e na utilização de mão de obra

escrava de índios e, principalmente, de negros e

negras trazidos à força do continente africano

M

Se nas terras hoje conhecidas

como Brasil já viviam os

indígenas porque se fala em

“descobrimento” do Brasil?

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

para o Brasil. Pode-se dizer que de toda América

Latina o Brasil foi um dos primeiros a

organizar o sistema escravagista de produção

e o último a abandoná-lo. Assim, é impossível

compreender a história brasileira e a

realidade que vivemos hoje dissociada do

sistema escravocrata e de suas consequências.

Durante mais de três séculos a construção

da nação brasileira se deu com base no trabalho

escravo do negro e da negra. Historiadores

apontam que a chega dos primeiros navios

negreiros ao Brasil se deu por volta de 1530,

trazidos à capitania de São Vicente. Não há

consenso entre os historiadores quanto à

quantidade de negros trazidos da África ao

Brasil durante o período escravocrata, assim

como não há um consenso quanto à população

de negros escravizados no Brasil durante esse

período. Roberto Simonsene e Sérgio Buarque

de Holanda estimam que foram trazidos ao

Brasil cerca de três milhões de negros, já Caio

Prado Júnior estima cerca de seis milhões e

Pandiá Calógeras aponta para um número

superior a treze milhões de negros e negras

trazidos à força para o Brasil. Ainda que não se

saiba ao certo a quantidade de negros e negras

trazidos ao Brasil as várias estimativas nos

mostram que o tráfico foi intenso e que o

números de negros e negras escravizados era

relevante, podendo ser maior que o número de

não negros vivendo no Brasil em determinadas

épocas.

A escravidão no Brasil não se deu sem

grande resistência, sendo que esta se dava de

diversas formas destacando-se a fuga, o

justiçamento (assassinato de proprietários de

escravos), o suicídio, a formação de quilombos,

o aborto, a resistência à execução do trabalho

forçado, a apropriação da produção, sabotagem

da produção entre outras formas. Sem dúvidas a

origem dos direitos que hoje as comunidades

quilombolas tem está intimamente ligada com a

luta dos antigos negros e negras escravizados.

A formação

dos

quilombos

surge com a

chegada

dos

primeiros

negros no

Brasil e se

perpetua

até hoje na

realidade

brasileira,

passando por

várias

transformações ao longo do tempo. Nas leis

brasileiras uma das primeiras referências aos

quilombos é do Conselho Ultramarino, datada de

1740, quando definiu os quilombos como: “toda

habitação de negros fugidos, que passem de

cinco, em parte despovoada, ainda que não

tenham ranchos levantados e nem se achem

pilões nele.” Essa referência da lei aos

quilombos foi feita para que os órgãos de

repressão do Estado pudessem ter um marco

jurídico que definisse o que seria quilombo.

Assim, uma das primeiras definições legais de

quilombo no Brasil está relacionada com a

repressão ao movimento de libertação de negros

e negras.

Figure 1 - Mapa das capitanias hereditárias

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

É importante destacar que a análise da

história oficial dos quilombos no Brasil

baseia-se quase que exclusivamente em

documentos que não foram produzidos pelos

quilombolas. As fontes mais usadas pelos

historiadores são relatos de forças policiais,

militares e não militares, que atentavam contra

os quilombos, assim como outros documentos

administrativos do Estado brasileiro. Dessa

forma, a análise histórica dos antigos quilombos

tem que ser feita levando em conta que a grande

parte dos documentos que ainda hoje existem

foram elaborados pelos que se opunham aos

quilombolas e, nesse sentido, contam a história a

partir do ponto de vista do escravocrata, e não

dos negros e negras em busca da liberdade.

De forma geral se pode dizer que os

quilombos se formaram em quase todo o Brasil.

Onde houve escravidão existiu quilombo. Os

quilombos não eram comunidades formadas

apenas por negros e negras fugidos da

escravidão. Ali viviam também negros e negras

já libertos, índios, não negros que não tinham

espaço na sociedade branca e patriarcal, ou seja,

os quilombos eram espaços em que se

encontravam pessoas que por vários motivos não

tinham espaço na sociedade branca. O quilombo

era um espaço de busca pela liberdade, um

lugar em que as pessoas oprimidas pelo

sistema da época podiam tentar viver em

condições melhores. Importante destacar que

não havia uma uniformidade nos antigos

quilombos, sendo que cada um deles tinha uma

formação específica.

Também é importante destacar que nem

todos os antigos quilombos se localizavam em

lugares distantes e de difícil acesso, sem contato

com a sociedade dominante. Há muitos relatos

históricos que indicam que havia muitos

quilombos nas proximidades de fazendas e

mesmo dos centros urbanos. São muitos os

relatos de quilombos que comercializavam e

trocavam produtos com segmentos da sociedade

escravagista. Os quilombolas realizavam trocas

de mercadorias agrícolas por eles produzidas por

outras, por ferramentas e, inclusive, por

informações que ajudassem os quilombolas a se

proteger de ataques. É certo, contudo, que os

antigos quilombos não tinham nenhum respaldo

jurídico que lhes assegurasse a posse da terra ou

dos bens por eles produzidos. Naquela época a

sobrevivência dos quilombolas se baseava na

capacidade de se desenvolver em um ambiente

totalmente hostil, em que o ordenamento jurídico

os tratava como criminosos e o Estado e os

donos de engenhos os perseguiam brutalmente.

Entrada de africanos escravizados no Brasil.(IBGE)

Período 1500-1700 1701-1760 1761-1829 1830-1855

Quantidade 510.000 958.000 1.720.000 718.000

Antes mesmo da abolição formal e

inconclusa da escravidão em 1888 o Estado

brasileiro já se preparava evitar que os

quilombolas tivessem acesso a direitos no

processo de luta pela abolição da escravidão.

Pouco antes da abolição foi editada a Lei de

Terras de 1850, com o objetivo de regular a

forma pela qual as pessoas poderiam ter a

propriedade das terras no Brasil. Antes dessa lei

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

vigorava no Brasil um regime jurídico de relação

com a terra ainda muito ligado ao sistema de

capitanias hereditárias, onde a posse da terra era

cedida pelo governo a quem tivesse interesse e

possibilidade de nela trabalhar. Claro que só

conseguia terra quem tivesse afinidade com o

poder instituído, o que por certo não era o caso

dos quilombolas.

A Lei de Terra de 1850 institui o regime

jurídico da propriedade privada da terra no

Brasil, condicionando a obtenção da propriedade

da terra exclusivamente à compra e venda.

Assim, todo aquele que quisesse ser proprietário

de terras no Brasil deveria comprá-la do Estado.

Esse novo regime jurídico da terra no Brasil

inviabilizou que as muitas pessoas com pouco ou

nenhum recurso financeiro pudesse adquirir uma

terra ou regularizar a posse que exercia. Num

cenário em que se percebia a possibilidade de

abolição da escravidão essa foi uma forma de

evitar que negros e negras, entre outros tantos

grupos sociais marginalizados, tivessem acesso

seguro à terra. A referida lei também cumpriu

com o objetivo de evitar que os imigrantes livres

que chegavam ao Brasil para o trabalho nas

lavouras, especialmente em São Paulo para

trabalhar com o café, não pudessem adquirir

terras e tivessem que trabalhar como empregados

nas fazendas.

A abolição formal e inconclusa da

escravidão em 1888 foi um marco importante da

luta pela liberdade do povo negro, ai incluindo

os quilombolas. Conduto, não é possível afirmar

que com a abolição da escravidão acabaram-se

os problemas dos negros no Brasil, ou mesmo

que os quilombos deixaram de existir. A

abolição da escravidão, que é uma conquista do

povo negro, fruto da luta de André Rebouças,

José do Patrocínio, Luiz Gama e Tobias Barreto,

entre outros, e se deu em um contexto de grande

diminuição da utilização da mão de obra escrava

no Brasil. Necessário também lembrar que o

Brasil era o único país da América Latina a

manter a escravidão em 1888.

O processo oficial de escravidão no Brasil

durou mais de três séculos. A abominável

situação de escravidão do povo negro e suas

nefastas consequências não se encerraram

com a abolição da escravidão. Um grande

esforço deveria ter sido empregado pelo Estado

se realmente quisesse superar de forma eficaz as

consequências de séculos de escravidão.

Contudo, como veremos adiante, a ação do

Estado após a abolição da escravidão contribuiu

muito mais para aprofundar o racismo no Brasil

do que para superá-lo.

Questões para debate:

Se o estado brasileiro é um dos responsáveis pela escravidão, tem hoje responsabilidade em resolver os problemas derivados dessa situação?

Hoje ainda há escravidão no Brasil?

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

1.2- Abolição formal e inconclusa da escravidão e as comunidades

quilombolas

omo visto, a abolição formal e

inconclusa da escravidão em

1888 pôs fim ao cativeiro no

plano formal e inaugurou uma nova era de

opressão ao povo negro no Brasil.

A lei Áurea, aprovada em 13 de maio de 1888,

tem um texto muito singelo, com apenas dois

artigos: Art. 1.º: É declarada extinta desde a

data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2.º:

Revogam-se as disposições em contrário. A

abolição formal e inconclusa da escravidão se

deu sem que o Estado brasileiro garantisse

aos negros e negras recém libertos quaisquer

direitos, sem que fosse garantida qualquer

política pública que possibilitasse um meio

adequado de vida a quem sofreu com a

escravidão e viria a sofrer com o preconceito de

uma sociedade escravocrata. Também não foi

adotada qualquer

política

institucional de

superação do

racismo. Como

poderia a

população negra

brasileira

desenvolver-se

sem apoio do

Estado num país

com mais de

trezentos anos de

escravidão?

Assim, os negros e negras libertos com a

abolição da escravidão ficaram relegados à

própria sorte, sem nenhum apoio do Estado na

busca pela sobrevivência. Em um contexto de

grande opressão racial de uma sociedade

escravocrata, como iriam sobreviver os negros e

negras? Esse debate foi feito antes e depois da

abolição da escravidão. Joaquim Nabuco, um

branco defensor da causa da abolição da

escravidão, proferiu em 5 de novembro de 1884

um discurso que relacionava a questão da terra

com a liberdade de negros e negras:

“A propriedade da terra não tem somente direitos,

tem também deveres, e o estado de pobreza entre

nós, a diferença com que todos olham para a

condição do povo, não faz honra à propriedade, não

faz honra ao Estado. Eu, pois, se eleito, não

separarei mais as duas questões – a da emancipação

dos escravos e a da democratização do solo. Uma é

o complemento da outra. Acabar com a escravidão

no Brasil não nos basta, é preciso destruir a obra da

escravidão.”

Apesar de haver um debate sobre a

necessidade de conferir direitos específicos ao

povo negro liberto em 1888, de fato não foi

garantido nenhum direito. Pelo contrário, após a

abolição da escravidão houve um grande

movimento que pretendia “embranquecer” a

população brasileira, como se assim fossem

“melhorar” a situação da nação. Essa visão

racista tinha várias estratégias para o

“embranquecimento” do povo brasileiro. Alguns

defendiam, por exemplo, o absurdo de que com

o passar do tempo a miscigenação iria

embranquecer a população Brasileira e assim a

C

Figure 2 - texto da Lei Áurea

Page 9: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

Será que o quilombo como espaço em

que negros e negras buscavam uma vida

livre a partir de sua própria cultura

deixou de existir em 1888?

nação iria prosperar. Raimundo Nina Rodrigues,

médico, professor antropólogo brando que viveu

no início do século XX e fim o século XIX, via

no povo negro a causa e a origem dos problemas

do povo brasileiro. O trecho abaixo ilustra muito

bem a situação que os negros e negras viveram

no período pós abolição da escravidão:

“o que importa ao Brasil determinar é o quanto de

inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-

se por parte da população negra que possui e se de

todo fica essa inferioridade compensada pelo

mestiçamento, processo natural por que os negros se

estão se integrando no povo brasileiro, para a

grande massa da sua população de cor” (Rodrigues,

s/d: 264).

A compreensão

dessa situação de extrema

opressão ao povo negro

brasileiro no início do

século XX é indispensável

para que se possa ter

clareza quanto aos

desafios enfrentados para superar a situação de

racismo que vivemos no Brasil. Naquela época

se de um lado havia uma pequena parcela de

pessoas influentes com alguma preocupação com

o destino do povo negro após à abolição da

escravidão, grande parte dos poderosos se

preocupava com a necessidade de o Estado

indenizar os escravocratas no processo de

abolição da escravidão, com a necessidade de

“importar” mão de obra que substituísse os

negros libertos, enquanto outros ainda se

preocupavam com a necessidade de

embranquecer a população brasileira.

Por esses e outros motivos se diz que com

a Lei Áurea ocorreu a abolição formal e

inconclusa da escravidão, já que a lei apenas

proibiu do ponto de vista formal a escravidão e

mais nada foi feito. De fato a Lei Áurea em

quase nada contribuiu para superar a cultura

escravocrata Brasileira. Para além disso, o

Estado ainda se preocupava em “substituir” a

mão de obra no campo descartando os negros e

negras da política oficial de trabalho “livre” no

Brasil. Assim, mesmo antes do fim da

escravidão, mas com mais intensidade após

1888, o Estado Brasileiro adotou uma política de

importação de mão de obra.

Dessa forma, o

Estado brasileiro

deliberadamente adotou

políticas favoráveis à

migração de europeus para

o Brasil. Era uma política

que ao mesmo tempo visava

resolver o “problema” de falta de pessoas para

trabalhar no campo e contribuía para o

“embranquecimento” da população brasileira. Ai

estava uma dupla violência para com o povo

negro brasileiro: Não servia para o trabalho livre

e era considerado um entrave ao

desenvolvimento da nação.

Nesse contexto é impossível afirmar que

os quilombos acabaram em 1888 com a Lei

Áurea. Será que o quilombo como espaço em

que negros e negras buscavam uma vida livre a

partir de sua própria cultura deixou de existir em

1888? Como visto, apesar do processo de

abolição formal da escravidão o quilombo

continuou a ter papel muito importante na vida

Page 10: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

10

Novembro de 2012

do povo negro e da nação brasileira, tudo na

medida em que se constituiu em um espaço de

busca pela liberdade em que era possível tentar

viver de forma digna.

Contudo, sem qualquer apoio do Estado e

num ambiente racista os quilombolas

enfrentavam, como ainda enfrentam, muitos

processos de expulsão de suas terras.

Praticamente todas as comunidades

quilombolas estabelecidas no processo e

abolição da escravidão e após 1888 viveram e

ainda vivem com ações que visam retira-los

de suas terras. Esse processo de expulsão das

terras está relacionado com uma pressão

econômica liga à expansão do que se

convencionou chamar de agronegócio, assim

como está impregnada de racismo.

Desde o início da colonização o Brasil

ocupou no cenário internacional o papel de

grande produtor e exportador de commodities

agrícolas. Através de um sistema que não se

diferencia muito da plantation da época da

escravidão o Estado brasileiro incentivava a

produção de alguns tipos de produtos agrícolas

em larga escala. Esse incentivo à formação de

latifúndios pressionava e ainda pressiona as

comunidades quilombolas. Como é necessário

expandir a área de monoculturas os territórios

quilombolas, assim como as terras indígenas e as

fazendas dos pequenos produtores não

quilombolas eram, e ainda são, alvo dessa

procura por terras. Assim, as comunidades

quilombolas sofriam todo o tipo de pressão

fundiária, que variava da compra e venda

forçada à expulsão à bala.

Essa pressão fundiária está também

intimamente ligada à racista percepção de que os

quilombolas não têm nada a acrescentar no

processo de desenvolvimento do país, assim

como nada teriam a acrescentar as populações

indígenas. Da mesma forma a agricultura

familiar é tratada como atrasada, como uma

forma de agricultura superada no tempo e que

tem que se integrar à lógica de produção do

agronegócio.

Diante desse cenário é indispensável

reconhecer que as comunidades quilombolas de

hoje ainda são verdadeiros espaços de luta contra

a opressão, como eram também os antigos

quilombos. Diante de um quadro de grande

opressão sobreviveram no tempo e

desenvolveram suas formas tradicionais de viver

e de produzir. Enfrentaram todo o tipo de

opressão e continuam a existir e a reproduzir sua

cultura de resistência e de luta. As vitórias

históricas do povo quilombola vão além da

própria existência das comunidades e se

materializou hoje em leis e políticas públicas que

buscam enfrentar o racismo e assegurar direitos,

como o direito de acesso à terra.

Questões para debate: Quais os significados e as consequências da lei Áurea? Como ficou a situação do negro e da negra após a lei Áurea? Os quilombos deixaram de existir após 1888? Após 1888 surgiram novos quilombos?

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Território quilombola: uma conquista cidadã

11

Novembro de 2012

1.3- A Constituição de 1988: um marco jurídico importante para as

comunidades quilombolas.

penas com a promulgação da

Constituição Federal de 1988,

cem anos após à abolição

formal e inconclusa da escravidão, as

comunidades quilombolas brasileiras tiveram o

direito ao território reconhecido em lei. Esse

reconhecimento jurídico se deu na mais

importante lei do Brasil, no artigo 68 do Ato

das Disposições Constitucionais Transitórias da

Constituição Federal de 1998.

O reconhecimento

de um direito na

Constituição é carregado

de significados jurídicos,

políticos, históricos, raciais

e sociais, já que os direitos

humanos estabelecidos na

Constituição não podem

ser retirados de lá por uma

lei, nem mesmo por uma

mudança no texto da

própria Constituição. Assim, o reconhecimento

desse direito na mais importante lei brasileira

deve ser respeitado por todos, sejam cidadãos

ou órgãos de Estado como o Poder Judiciário, o

Legislativo e o Executivo.

Contudo, como sabemos todos nós,

apesar de ser muito importante o

reconhecimento de um direito na Constituição

isso não é garantia de que esse direito será

efetivamente respeitado e implementado pelo

Estado. Essa situação não acontece apenas com

os direitos das comunidades quilombolas, já que

após vinte e quatro anos da promulgação da

Constituição Federal muitos outros direitos

reconhecidos na lei ainda não são respeitados.

Entre outros direitos fundamentais que não são

respeitados podemos citar o direito à saúde,

educação, emprego digno, entre outros tantos.

Entretanto, podemos observar que alguns

direitos previstos na Constituição são mais

respeitados que outros.

Se fizermos uma comparação entre a

garantia de direito à titulação

do território para comunidades

quilombolas e a garantia do

direito de propriedade para

grandes fazendeiros qual desses

direitos hoje é mais respeitado

pelo Poder Público? Se alguns

direitos previstos na

Constituição são mais

respeitados que outros é

importante fazer um

questionamento para descobrir

a origem desse problema e superar a situação de

desigualdade. No caso do direito das

comunidades quilombolas terem acesso ao

território quais seriam os obstáculos que

impedem a realização plena há mais de vinte

e quatro anos? Os motivos dessa dificuldade

são vários e abaixo vamos elencar alguns deles.

Como sabemos, para que o direito

previsto no art. 68 do ADCT da Constituição

aconteça nas comunidades é preciso que o

Estado faça o seu trabalho. Ou seja, é preciso

que o Estado empregue dinheiro, recursos

A

Apesar de ser muito

importante o

reconhecimento de um

direito na Constituição

isso não é garantia de que

esse direito será

efetivamente respeitado e

implementado pelo Estado

Page 12: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

12

Novembro de 2012

materiais, pessoas e esforço político para que

esse direito se realize. No caso do direito à

titulação esses esforços do Estado precisam ser

muito grandes, pois a realização do direito das

comunidades interfere diretamente no interesse,

muitas vezes econômico, de pessoas e grupos

com muito poder e dinheiro. Nesse mesmo

contexto a titulação dos territórios quilombolas

também tem que se sobrepor ao

racismo que ainda impregna a

sociedade brasileira. Como a lei

sozinha não é suficiente para

superar todos os obstáculos postos

à efetivação do direito, as

comunidades quilombolas devem ser os

principais protagonistas dessa luta pela

titulação.

Infelizmente ainda persiste no

senso comum a ideia de que os quilombos

estão ligados ao passado, isolados da

sociedade brasileira e que os quilombolas

estão apenas associados à escravidão e à

fuga. Parte da luta das comunidades

quilombolas está ligada a transformar essa

concepção de quilombo do pensamento

escravocrata. Sabemos que os quilombos era

um lugar de homens e mulheres que buscavam

sair da situação de opressão e construir uma

vida livre. Sabemos também que foi através de

diferentes processos como as ocupações das

terras livres, as heranças, as doações de terras,

as trocas da terra por serviços prestados ao

Estado, assim como as fugas e a compra que os

territórios quilombolas foram se constituindo.

Em alguns lugares os quilombos também são

conhecidos também como “terras de preto”,

“terras de santo” ou “território negro”, entre

outros nomes. Essa formação se deu ao longo

dos tempos, mesmo após à abolição formal da

escravidão.

Na disputa sobre a interpretação

do texto constitucional é importante destacar

que pertencer a um grupo e a um território é

uma maneira de evidenciar a identidade e a

territorialidade. A lógica

da coletividade, presente

nos quilombos, se opõe à

lógica da individualidade

inerente à propriedade

privada, por isso o art.

68 do ADCT da

Constituição não pode ser interpretado na lógica

individual da propriedade. Esse é um fator

importante na interpretação do direito previsto

no art. 68 do ADCT da Constituição, pois é um

elemento definidor da identidade quilombola.

Identidade, é importante destacar, refere-se

àquilo que uma pessoa ou comunidade define

de si. Logo está relacionada ao que se é (tanto

individual quanto coletivamente), onde se está

(comunidade/território) e o que se quer (projeto

de futuro).

É na convivência com o uso e a

posse coletiva das terras que grande parte das

comunidades quilombolas tem estabelecido suas

práticas, não somente no uso para subsistência e

comercialização, mas vivenciando sua religião,

seus costumes, tradições e sentimentos de

pertencimento a um lugar. Neste sentido, as

comunidades quilombolas, na interpretação

da constituição, devem ser compreendidas

como aquelas que se autodefinem como

quilombolas pela sua ancestralidade

africana, pela luta contra a opressão racial e

A realização do direito das

comunidades interfere diretamente no

interesse, muitas vezes econômico, de

pessoas e grupos com muito poder e

dinheiro.

Page 13: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

13

Novembro de 2012

pela identidade coletiva mantida através dos

tempos.

Além disso, é importante frisar

que se concebe como território o espaço

ocupado por uma comunidade e necessário para

a sua reprodução física, social, econômica e

cultural, incluindo não só a área destinada à

moradia, mas também aquela reservada ao

plantio, à caça, à pesca e ao manejo

agroflorestal entre outras práticas tradicionais.

Essa interpretação do que é o

direito quilombola na Constituição Federal

encontra respaldo em muitas partes do texto da

Constituição. Abaixo elencamos alguns trechos

da Constituição que respaldam a interpretação

acima exposta:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura

nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de

outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos

étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento

cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II produção, promoção e difusão de bens culturais;

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV democratização do acesso aos bens de cultura;

V valorização da diversidade étnica e regional.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-

culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,

ecológico e científico.

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural

brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas

de acautelamento e preservação.

§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as

providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos

antigos quilombos.

Page 14: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

14

Novembro de 2012

Quando a constituição garante às

comunidades de quilombos o título das terras

que ocupam, garantiu o direito ao trabalho, à

preservação da cultura, dos costumes e

tradições. Não há significância jurídica de

garantir o direito de acesso a terra sem que esse

direito se transporte para a função que a terra

desempenha para esse povo. A Constituição

Federal também é clara ao atribuir à

propriedade, mais precisamente ao uso que dela

se faz, a necessária observância do

cumprimento da função

social. A titulação de terras

para as comunidades de

quilombo, nesse sentido,

cumpre sua função social

apenas quando atende a

necessidade de trabalho,

preservação da cultura, das

relações econômicas e sociais

das comunidades

remanescentes de quilombo.

De nada adiantaria

titular uma área ínfima, que

não se preste à manutenção

de uma comunidade rural

que sobrevive através do trabalho com a

terra, que não garanta minimamente o

desenvolvimento das relações culturais e

sociais de cada grupo. O único sentido prático

viável de ser aplicado ao art. 68 do ADCT,

quanto à sua extensão, diz respeito às

necessidades dos remanescentes das

comunidades de quilombos, nem mais, nem

menos.

A interpretação sistêmica e finalística da

Constituição não podem ser afastadas da

interpretação dos direitos das comunidades de

quilombos. A interpretação do que está sendo

garantido pelo art. 68 do ADCT não é uma

invenção. A interpretação se dá a partir do que

se pode extrair da interpretação do conjunto da

própria constituição. A interpretação do art. 68

do ADCT deve levar em conta os arts. 215 e

216 da Constituição Federal, entre outros tantos

dispositivos.

Quando o art. 215 da

Constituição garante a todos o

pleno exercício dos direitos

culturais não está a garantir

apenas a liberdade de

manifestação cultural, de

mera liberdade de realização

de atos. Garante que devem

ser postos pelo poder público,

quando necessário, meios para

que os grupos sociais possam

viabilizar a manutenção da

sua cultura. A titulação das

terras dos quilombolas, nesse

contexto, é imprescindível

para a manutenção da cultura. E não é titulação

de área ínfima, imprestável para manutenção

das relações sociais, que garantira a perpetuação

da cultura quilombola.

A ação do Estado titulando áreas

ínfimas, imprestáveis para manutenção das

comunidades de quilombo, estaria em

desacordo com os princípios constitucionais da

dignidade da pessoa humana, frustrando a

garantia de exercício de direitos culturais,

A ação do Estado

titulando áreas ínfimas,

imprestáveis para manutenção

das comunidades de quilombo,

estaria em desacordo com os

princípios constitucionais da

dignidade da pessoa humana,

frustrando a garantia de

exercício de direitos culturais,

depreciando a preservação do

patrimônio cultural imaterial

brasileiro.

Page 15: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

15

Novembro de 2012

depreciando a preservação do patrimônio

cultural imaterial brasileiro.

É explícito o dispositivo do art. 215, § 1º

ao incumbir ao Estado a tarefa de garantir as

manifestações culturais dos afro-descendentes,

ai incluindo, por óbvio, o povo quilombola. Se

há constatação de que a preservação da

cultura afro-brasileira passa pela

preservação das comunidades quilombolas a

única forma de titulação válida é aquela que

atinja a finalidade de garantir a

sobrevivência da comunidade.

É ainda importante destacar que não se

fala de garantia de sobrevivência por meios

estranhos à cultura negra quilombola que se

constrói e reconstrói ao longo do tempo.

Garantir às comunidades outras formas de

sobrevivência sem dar a oportunidade de

desenvolvimento do modo tradicional é o

mesmo que deixar de garantir os direitos

culturais imateriais.

Quando o art. 216 da Constituição, em

seus incisos I e II, diz que constitui patrimônio

cultural brasileiro as formas de expressão, os

modos de criar, fazer e viver, tutela direito de

manutenção do modo de vida, criar e fazer dos

povos tradicionais, ai incluídas as comunidades

quilombolas. Considerando que é pressuposto

básico para a sobrevivência das comunidades

quilombolas o acesso à terra, a interpretação do

art. 68 do ADCT da Constituição Federal deve

ser amparada na natureza de norma de direito

fundamental que tutela as condições necessárias

para perpetuação cultural dos remanescentes.

É inafastável a consideração de que o

povo das comunidades de quilombos tem

histórica significância na formação da

identidade do povo brasileiro. E é nesse sentido

que a titulação das terras deve ser observada e

interpretada. A titulação das terras não

representa apenas o reconhecimento de que

os quilombolas tiveram importante papel na

formação da sociedade brasileira, mas que

hoje a existência de remanescentes de

comunidades de quilombo ainda tem papel

importante nos destinos e identidade cultural

da nação.

O art. 68 do ADCT da Constituição tem,

assim, conteúdo de direito fundamental,

essencial para preservação da cultura do Brasil,

uma vez que garante possibilidade de

sobrevivência digna das comunidades de

quilombo. Nessa ótica não pode ser feita outra

interpretação do direito de acesso a terra pelas

comunidades quilombola que não seja o acesso

que garanta a plena sobrevivência.

Questões para debate: 1) A Constituição Federal assumiu o compromisso de garantir a sobrevivência das comunidades quilombolas através do acesso à terra/território? O que é quilombo na Constituição? 2) Qual a diferença entre direito à terra e território? 3)O direito quilombolas de acesso à terra/território está sendo respeitado? Porque?

Page 16: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

16

Novembro de 2012

Parte 2 – As comunidades quilombolas e a luta pela realização do direito

constitucional.

2 - A luta pela titulação dos territórios quilombolas depois do art. 68 do

ADCT da Constituição Federal.

penas cem anos após a abolição

formal e inconclusa da

escravidão da população negra

a legislação brasileira reconheceu formalmente

direitos das comunidades quilombolas,

especialmente o direito ao território. Esse

reconhecimento na lei foi fruto de muito

trabalho, luta e mobilização social. Assim, até

1988 não havia nenhuma previsão na lei que

obrigasse o Estado a fazer políticas públicas

de acesso a terras para quilombolas.

Na década de 1980 a mobilização dos

quilombolas e do movimento

negro se uniu a outros

movimentos sociais populares e

exerceu uma forte pressão para

garantir espaço no processo

constituinte, influenciando com

propostas a Constituição de

1988. Um dos principais

resultados deste processo é o

Artigo 68 do Ato das

Disposições Transitórias

Constitucionais que trata de

terra de quilombo.

Importante dizer que a

Constituição Federal é a mais

importante lei do país. Ela diz

como o Estado Brasileiro deve se organizar,

define as regras do governo e diz como são feitas

as demais leis e a justiça. Nela também se

afirmou importantes direitos sociais, econômicos

e culturais essenciais para a garantia de um

padrão de vida digna a todas as pessoas, bem

como definiu como obrigação do Estado para

com todos os cidadãos e cidadãs a promoção de

políticas públicas de saúde, educação, trabalho,

cultura, segurança alimentar, acesso à terra,

dentre outras.

A afirmação pela Constituição

Federal do direito ao território coletivamente

ocupado para as comunidades quilombolas,

muito mais do que uma reparação histórica

pelo sofrimento e

opressão do sistema de

escravidão, tem como

objetivo a promoção da

dignidade humana dos

quilombolas aqui e

agora. A efetivação do

direito ao território para

as comunidades

quilombolas também o

reconhecimento de que as

comunidades tem muito a

contribuir para o

desenvolvimento do país.

O acesso ao território é o

direito mais básico das

comunidades

quilombolas, pois é um direito que gera e

permite acesso a outros direitos.

A

A afirmação pela

Constituição Federal

do direito ao território

coletivamente ocupado

para as comunidades

quilombolas, muito

mais do que uma

reparação histórica

pelo sofrimento e

opressão do sistema de

escravidão, tem como

objetivo a promoção

da dignidade humana

dos quilombolas aqui e

agora

Page 17: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

17

Novembro de 2012

O reconhecimento, pelo Estado

brasileiro, do direito ao território

tradicionalmente ocupado pelas comunidades

obriga-o também à promoção de inúmeros outros

direitos que são dependentes da titulação desse

território, por exemplo: os direitos econômicos à

alimentação e à produção, o direito ao meio

ambiente sustentável e o direito à cultura.

Por outro lado, sem a garantia dos

territórios, todos os outros direitos ficam

também ameaçados. E a pior consequência para

as comunidades de não terem suas terras

reconhecidas é a perda de sua liberdade, de

diversas maneiras.

Assim, com base no reconhecimento e na

delimitação das terras quilombolas em todo

Brasil, o Estado poderá também planejar e

executar melhor a realização de políticas

públicas de educação, saúde, infraestrutura e

saneamento básico nos territórios, sendo este o

caminho mais viável e seguro para o

desenvolvimento. As políticas públicas podem e

devem atender a comunidades ainda não

tituladas, mas ficam melhor se forem feitas em

territórios titulados.

O uso coletivo do território quilombola é

o que garante que a produção seja voltada para o

atendimento das necessidades concretas dos

membros daquela comunidade e não para o

aumento ilimitado do lucro de uma única pessoa,

que ocasiona a exploração predatória dos

recursos naturais e põe em risco soberania

alimentar dos povos. Por ser a própria titular do

direito de propriedade sobre o território titulado,

a coletividade dos quilombolas tem a

responsabilidade usar racionalmente e zelar

pelos bens naturais comuns ali presentes.

Quando se fala que o título sobre o

território quilombola é definitivo significa que

ele vem para resguardar o interesse da

comunidade quilombola de permanência na terra

de seus antepassados, ou seja, as comunidades

não desejam e nem podem vender ou arrendar a

área dos quilombos, mas sim viver, produzir e

preservar, contribuindo, além de tudo, para a

construção de um espaço urbano e rural mais

justo, saudável e equilibrado.

Dessa forma, o uso coletivo do território

pela comunidade quilombola é importantíssimo

para a construção de um modelo justo e soberano

de desenvolvimento da nação brasileira, pois o

modo de vida e uso da terra e dos recursos

naturais das comunidades remanescentes de

quilombo representa um dos caminhos para a

emancipação social, com acesso à terra e à

cultura, economia solidária e sustentabilidade

ambiental.

Page 18: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

18

Novembro de 2012

2.1- De 1988 a 2003 – Poucos avanços

Apesar do avanço que foi a Constituição

de 1988 no que se refere ao reconhecimento dos

direitos dos quilombolas do acesso à terra, ao

longo da década de 90 pouco se conquistou na

regularização dos territórios de quilombos.

Infelizmente, a previsão do direito na

Constituição não significou a realização desse

direito na prática. Vemos hoje que poucos

territórios quilombolas foram titulados passados

vinte e quatro anos de vigência da Constituição.

A garantia do direito

na Constituição é importante,

mas a sua realização prática

depende de vontade política

das autoridades estatais e da

mobilização popular para que

se transformem em políticas

públicas. Somente no ano de

1995, no mês de dezembro,

foi titulada a primeira terra

quilombola do país, no Estado

do Pará, a comunidade de Boa

Vista.

Durante os governos dos presidentes

José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e

Fernando Henrique Cardoso, a questão das

titulações dos territórios quilombolas não teve

significativos avanços. Pelo contrário, pode-se

dizer que durante esse período viu-se um grande

retrocesso no reconhecimento do direito à

titulação. Essa paralisia, somada com a luta

histórica dos quilombos, fez surgir movimentos

sociais quilombolas organizados para lutar por

direitos.

Para além do art. 68 do ADCT da

Constituição era necessário que o Estado

brasileiro criasse regras para que o processo de

titulação pudesse ter começo, meio e fim. Ou

seja, era preciso dizer qual órgão do Estado faria

as titulações e como faria para cumprir o direito

previsto na Constituição. Foram 14 anos de

edição de portarias e decretos que não

contribuíram para o avanço das titulações dos

territórios tradicionais e, pior, no final do

Governo FHC teve-se uma

regulamentação que deu

prevalência de um conceito

reducionista da própria condição

quilombola, como foi o caso do

Decreto 3.912/20013.

Tal decreto, ao

regulamentar detalhes relativos

ao processo administrativo de

identificação dos remanescentes

das comunidades de quilombos

atribuiu apenas à Fundação

Cultural Palmares a competência

da realização desse processo

administrativo. Além disso, o então decreto não

abordava situações em que a área titulada do

território quilombola estivesse sobre áreas de

3 O Decreto 3.912 de 10 de setembro de 2001 foi editado com

base nas conclusões do parecer da subchefia para Assuntos

Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República (Parecer

SAJ Nº 1.490/2001), que considerou o Ministério do

Desenvolvimento Agrário e o INCRA incompetentes e sem

legitimidade para promover desapropriações e reconhecer as

terras em favor das comunidades quilombolas. À época,

prevalecia o entendimento de que o Estado deveria reconhecer

as terras que já às comunidades quilombolas já possuiam, mas

às quais lhe faltava um título, desconsiderando os conflitos

fundiários incidentes nos territórios.

O Decreto 3912/2001 era de

caráter restritivo porque

somente seriam

reconhecidas as

propriedades sobre terras

que eram ocupadas por

quilombos em 1888, à época

da Lei Áurea, e que

estivessem ocupadas por

“remanescentes das

comunidades dos

quilombos” em 5 de outubro

de 1988

Page 19: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

19

Novembro de 2012

propriedade de particulares, já que o texto do

Decreto se limitava apenas a disciplinar áreas

que estivessem sobre terras da União.

O Decreto era de caráter restritivo

porque somente seriam reconhecidas as

propriedades sobre terras que eram ocupadas por

quilombos em 1888, à época da Lei Áurea, e que

estivessem ocupadas por “remanescentes das

comunidades dos quilombos” em 5 de outubro

de 1988.

À época, muito se discutiu que tal

previsão limitativa era inconstitucional, ou seja,

feria o direito ao território quilombola como

estava escrito e afirmado no

art. 68 ADCT da Constituição

Federal, pois se colocava uma

restrição não prevista nem

autorizada pelo texto da

Constituição. Não há razão

histórica ou constitucional

para que se relacione a

existência de quilombos ao

ano de 1888 e se confira apenas aos quilombos

estabelecidos nesta data o direito previsto no

artigo constitucional.

Como então previsto no decreto as

comunidades quilombolas estariam presas e

cristalizadas, estáticas, no exato lugar onde se

constituíram inicialmente até o momento

estabelecido na Constituição de 5 de outubro de

1988. Assim, o espaço de liberdade dos

quilombos para a regulação ritual da vida seria

obtido às custas do confinamento e preso ao

passado.

Ao contrário disso, cabe-nos falar que o

artigo 68 está voltado para uma perspectiva do

tempo presente, assegurando a esses grupos

étnicos o direito à autodeterminação e à

identidade. Pelo fato de o território estar

muito ligado à identidade, o que a

Constituição prevê é a proteção ao território,

da forma que ele se apresenta atualmente, não

importando o espaço imemorialmente

ocupado pelos ancestrais se isso não configura

mais relevante para o grupo no presente.

Ao prever que aos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras é reconhecida a

propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-

lhes os títulos respectivos,

o artigo 68 não dispõe

acerca da

temporalidade,

antiguidade da

ocupação territorial,

tampouco da

coincidência entre a

ocupação originária e a

atual. É suficiente que se trate de comunidades

quilombolas e que estejam ocupando um

território de acordo com suas necessidades

materiais e imateriais no tempo presente e

memoriável.

A análise desse decreto da época de

FHC, apesar de ter sido revogado e substituído

pelo Decreto 4.887/2003 é bastante importante,

pois foi ajuizada uma Ação Direta de

Inconstitucionalidade (ADIn) pelo partido

Democratas, à época PFL, contra o Decreto

4.887/2003, de forma que, se for julgada

procedente o antigo e inapropriado decreto

poderá voltar a vigorar e os títulos de

propriedade emitidos na vigência do atual

Não há razão histórica ou

constitucional para que se

relacione a existência de

quilombos ao ano de 1888 e se

confira apenas aos quilombos

estabelecidos nesta data o direito

previsto no artigo constitucional.

Page 20: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

20

Novembro de 2012

decreto podem ser considerados nulos. Sobre a

ADIn, será falado posteriormente.

O balanço geral do reconhecimento dos

territórios quilombolas nesse período é que ao

final da década de 90 - por muita pressão do

movimento quilombola - haviam sido

formalmente identificadas, através do trabalho

da Fundação Cultural Palmares, pouco mais de

700 comunidades em todo o Brasil. É nesta

década que a Coordenação Nacional de

Comunidades Negras Rurais Quilombolas

(CONAQ) adquire maior capacidade de diálogo

com o Poder Público Federal. Vale destacar que

neste período cabia à Fundação Cultural

Palmares - FCP, emitir os títulos e tomar

providências acerca da regularização fundiária.

Os títulos emitidos pela FCP, porém, se deram

sem que houvesse desapropriação ou

reassentamento dos posseiros não quilombolas

presentes sobre o território tradicional.

2.2- De 2003 a 2012 – Alguns avanços

Logo no ano de 2003, no primeiro ano de

mandato do então presidente

Lula, após forte pressão e

reivindicação do movimento

quilombola, foi instituído um

Grupo de Trabalho

Interministerial (GTI) para

revisar e propor modificações

aos instrumentos legais vigentes

que regulamentam o artigo 68

do ADCT. Assim, em 20 de

novembro de 2003 foi editado o

Decreto 4887/03, tornando sem

efeitos e afastando a aplicação

do então problemático decreto

instituído no governo FHC.

Naquela época a

demanda do movimento

quilombola por titulação apontavam para a

existência de 1527 comunidades quilombolas no

Brasil. Entretanto, desde 1995 até aquele ano,

apenas 53 títulos haviam sido emitidos,

contabilizando 110 comunidades tituladas em

todo território brasileiro.

Deve se destacar que a

maioria desses títulos

não serviam, pois não

podiam ser registrados

em cartório por não

terem sido feitas as

desapropriações. Com

certeza o número real

era muito maior do que

os números oficiais.

O Decreto

4887/03, alinhado com a

Convenção 169 da

Organização

Internacional do

Trabalho, primou, dentre

outros aspectos, pela autodeterminação da

quilombola na afirmação de sua identidade

política e cultural e, portanto, mais condizente

com o pleito do movimento. Neste momento se

Como inovações mais

importantes do Decreto federal

4887/03 foram adotadas a

“autodefinição” 1, para fins de

declarar a condição de

remanescentes de quilombos, o

conceito de território,

abrangendo a terra utilizada para

a reprodução física, social,

econômica e cultural da

comunidade (ambos conforme já

presente no texto da Convenção

169 da OIT), e a titulação

coletiva da terra.

Page 21: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

21

Novembro de 2012

transferiu do Ministério da Cultura para o

Ministério do Desenvolvimento Agrário, através

do INCRA, a competência para titulação das

terras das comunidades de quilombos,

estabelecendo também um novo procedimento

para a titulação acontecer.

Como inovações mais importantes deste

decreto foram adotadas a “autodefinição”4, para

fins de declarar a condição de remanescentes de

quilombos, o conceito de território, abrangendo

a terra utilizada para a reprodução física, social,

econômica e cultural da comunidade (ambos

conforme já presente no texto da Convenção 169

da OIT), e a titulação coletiva da terra.

Apesar dos visíveis

avanços promovidos pelo

Decreto 4.887/03, ainda

permanecem algumas

dificuldades no procedimento

de titulação por ele

regulamentado,

principalmente no que se

refere à solução de conflitos fundiários

decorrentes da titulação, à simplificação de

procedimentos e documentação necessários. De

acordo com o decreto, o processo de titulação é

ainda bastante longo e burocratizado, contando

com 14 etapas, administrativas e judiciais, até

que se finalize a titulação.

Naturalmente, o avanço perpetrado pelo

decreto desagradou as elites ruralistas.

4 Os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de

Antropologia –ABA-, fundada em 1955, tiveram papel decisivo

na modificação das noções de identificação baseados em

critérios arbitrários, ao indicar a necessidade de perceber outra

dimensão dos fatos, que venha a incorporar o ponto de vista dos

grupos sociais que aspiram ao direito previsto na constituição.

Primeiramente, contra o Decreto 4.887/2003 foi

apresentado o projeto de decreto legislativo nº 44

de 2007, de autoria do Deputado Federal Valdir

Colatto, do PMDB-SC, propondo a suspensão da

aplicação daquele decreto, sob a argumentação

de que o decreto ultrapassa o seu poder

regulamentar do artigo 68 do ADCT. Segundo,

deve-se citar também como investida contra o

decreto a Ação Direta de Inconstitucionalidade

interposta em 25 de Junho de 2004 no Supremo

Tribunal Federal, proposta pelo Partido da

Frente Liberal – PFL (agora denominado DEM)

que tramita sob o nº 3.239 e aguarda julgamento

até hoje, conforme mais à frente abordaremos

em detalhes.

Além dessas afrontas

devemos pontuar também

como as pressões do setor do

agronegócio e ruralista sobre

o Governo, pois fizeram do

processo de titulação algo

cada vez mais lento, custoso e

difícil de ser concluído.

Ao ser determinado no texto do Decreto

que cabe ao INCRA detalhar o procedimento

administrativo de titulação dos territórios

quilombolas, sendo de sua responsabilidade o

início e o controle da maior parte do

procedimento de titulação, a regularização

fundiária a ser iniciada pelo instituto, consiste

em um conjunto de medidas: i) jurídicas,

referentes aos levantamentos da cadeia dominial

do título de propriedade e outros documentos

inseridos no perímetro do território e às medidas

judiciais de desapropriação, ii) físicas, que

dizem respeito a estudos de delimitação do

território em vias de titulação, bem como

As pressões do setor do

agronegócio e ruralista sobre o

Governo fizeram do processo de

titulação algo cada vez mais

lento, custoso e difícil de ser

concluído

Page 22: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

22

Novembro de 2012

medidas para viabilizar o saneamento ambiental

da área, dotando-as de serviços como água

tratada, energia elétrica, esgotamento sanitário

etc e iii) sociais a serem adotadas pelo poder

público, em acordo com a comunidade, para

expedir os títulos de propriedade.

Com base no disposto no Decreto

4.887/2003, quatro meses após sua publicação,

em 24 de março de 2004, foi instituída a

primeira Instrução Normativa de regulamentação

do procedimento de titulação das terras de

quilombo (Instrução Normativa do INCRA Nº

16/2004), detalhando o procedimento de

regularização e titulação dos territórios das

comunidades de quilombos, sendo esta a

primeira das quatro Instruções Normativas

publicadas até o momento. Essa instrução previa

um sucinto relatório de identificação do território

no qual constava levantamento geral de

informações cartográficas, geográficas,

agronômicas, socioeconômicas, históricas e afins

junto a instituições públicas e privadas; planta e

memorial descritivo do perímetro do território;

cadastramento das famílias quilombolas e não

quilombolas; além de um levantamento da

cadeia dominial e de outros documentos

inseridos no perímetro do território quilombola.

Sob o argumento de que a norma não

possuía os requisitos suficientes para definição

do território e que ensejariam em um momento

posterior invariavelmente ações judiciais de

contestação contra o procedimento, o INCRA

elaborou e publicou no ano seguinte a Instrução

Normativa nº 20/2005. A principal inovação

trazida por esta instrução foi a exigência,

somado ao relatório de identificação do território

já previsto antes, de um relatório antropológico

de caracterização histórica, econômica e

sociocultural.

Essa exigência trouxe ao INCRA uma

nova demanda, pois seria necessário, a partir de

agora, contratar antropólogos ou fazer convênios

com universidades a fim de se elaborarem os

relatórios antropológicos. Apesar de ser um fator

a mais de morosidade do processo de titulação, a

realização de relatórios antropológicos ainda era

factível e viável de ser efetuada. Evidência disso

é o número de Relatórios Técnicos de

Identificação e Delimitação (RTID) entre 19 de

setembro de 2005 e 30 de setembro de 2008,

período em que a IN 20 esteve em vigor: foram

publicados no Diário Oficial 50 RTID’s.

Se a finalização do processo de titulação

tornava-se por vezes excessivamente lenta após a

nova previsão da Instrução Normativa nº

20/2005, que trouxe um estudo a mais a integrar

o RTID, a situação agravou-se sobremaneira

com a publicação da Instrução Normativa nº

49, de 29 de setembro de 2008, que é a

normativa na prática em vigor hoje sobre o

procedimento de titulação, pois houve uma

piora significativa da lentidão dos

procedimentos, devido aos novos empecilhos e

burocratização à elaboração dos relatórios.

A primeira das modificações diz respeito

a novas exigências para elaboração do relatório

antropológico. Passou-se a se exigir estudos

detalhados sobre 35 itens, em geral pouco

relevantes para a identificação do território.

Segundo tal norma, o relatório deve conter

dentre outras coisas, uma introdução contendo o

referencial teórico e metodologia utilizados e

uma lista de itens obrigatórios, como um

Page 23: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

23

Novembro de 2012

levantamento de dados sobre as taxas de

natalidade e mortalidade do grupo; uma

identificação e caracterização dos sinais

diacríticos da identidade étnica da comunidade;

um mapeamento das redes de reciprocidade intra

e extra-territoriais, além da descrição das formas

de representação política da comunidade; só para

citar alguns poucos exemplos.

A despeito de esses dados configurarem

aspectos interessantes para uma pesquisa a ser

realizada a longo prazo, não são, de fato,

relevantes para medidas urgentes de grupos que

pleiteiam há um bom tempo seus títulos

territoriais. Além disso, para não se falar do

excessivo dispêndio de dinheiro público, as

excessivas e desnecessárias exigências

conduzem a uma demora incalculável dos

processos e, em última instância, levam à

paralisação dos poucos procedimentos que já

tiveram seu RTID iniciado. Configura, também,

claro preceito atentatório à Convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho, que

estabelece a autoidentificação e determinação

dos povos e comunidades tradicionais como um

direito.

É importante também se falar, para que

se veja claramente que tais exigências

burocráticas tem o objetivo final de criar

empecilhos às titulações, que se tem ai um

caráter dúplice e repetido de medidas

administrativas, uma vez que se realiza

procedimentos semelhantes para a certificação

por parte da Fundação Cultural Palmares e para a

identificação do INCRA. Isso acontece sob o

argumento do governo de se evitarem que

comunidades que supostamente não são

quilombolas se passem por tais (assim na

realidade tornando sem efeito o critério da

autoidentificação quilombola).

Por essas e outras características a

Instrução Normativa 49 é alvo de críticas do

movimento quilombola e das organizações

parceiras, pois afronta o Decreto 4.887/03 e o

direito ao território afirmado no art. 68

ADCT da Constituição, tanto pela imposição

da apresentação da certidão da Fundação

Cultura Palmares como condição prévia para

iniciação do procedimento de titulação,

quanto pelo excesso de etapas e exigências

agora demandadas para a elaboração do

RTID.

Diante dessa problemática apresentada,

foi proposta pelo INCRA outra instrução

normativa, em 07 de outubro de 2009,

(Instrução Normativa nº 56), cujas exigências

de estudos e relatórios, mais diretas e objetivas,

não repetem da antiga instrução as excessivas e

desnecessárias previsões para a elaboração do

RTID. Porém, a represália e pressão por parte

dos setores ruralistas sobre o Governo foi quase

que imediata e, 13 dias após a publicação, a

Instrução Normativa nº 56 foi revogada, de

forma que a norma de 2008 (a IN 49) foi

republicada como IN nº 57 de 20 de outubro de

2009.

Assim, pode-se dizer que o resultado

desses embates político-econômicos, refletidos

na legislação e nas pressões sobre o Governo,

culminou com um número baixíssimo de

territórios quilombolas titulados, desde que fora

promulgada a Constituição Federal, totalizando

120 títulos para 101 territórios, sendo 23

titulações fornecidas pelo governo federal, 74

Page 24: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

24

Novembro de 2012

por governos estaduais e quatro terras

regularizadas por meio de títulos concedidos

pelo governo federal e governos estaduais (cada

um para uma porção do território) – frente à

estimativa total de 3 mil comunidades

quilombolas que existem hoje no país. Nos oito

anos do Governo Lula (de 2003 a 2010), foram

titulados apenas 17 territórios quilombolas

diretamente pelo Governo Federal.

Para ter uma ideia da demora no

processo de titulação, segundo a Comissão Pro-

índio em seu Balanço Terras Quilombolas de

2011, dos 21 processos que tiveram o RTID

publicado em 2011, o tempo entre a instauração

do processo e a publicação variou de 1 a 7 anos.

Considerando todos os 145 processos que

tiveram o RTID publicado entre 2003 e 2011, o

tempo médio entre a abertura do processo a

publicação do estudo foi de 5 anos.

Isso porque as terras onde se localizam

os quilombos também são alvo de interesse,

principalmente econômico, de outros grupos

sociais, sendo esta a origem dos conflitos e

entraves à titulação. Embora a Constituição e as

leis do país determinem a existência de políticas

públicas e direitos específicos para cada grupo

social, de modo que todos pareçam ser

contemplados, na prática estas políticas e

direitos podem entrar em conflito e se excluírem

uns aos outros a depender da força social e de

mobilização e pressão de cada grupo.

Questões para debate:

O que difere o decreto de 3912/2001 do decreto de 4887/2003?

Quais os principais obstáculos legais para a titulação dos territórios quilombolas?

Quem são os principais opositores da titulação dos territórios quilombolas? Porque se

opõe à titulação?

Page 25: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

25

Novembro de 2012

Parte 3 – Noções legais básicas para a titulação dos territórios quilombolas

3- Marcos da titulação do território Quilombola

3.1- A certidão da Fundação Cultural Palmares

autorreconhecimento de uma

identidade é um direito humano.

As comunidades quilombolas

têm direito à autoidentificação de sua identidade.

O Estado brasileiro não tem o direito de negar a

identidade quilombola assumida por uma

comunidade, segundo a Convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho. Assim, a

consciência da identidade quilombola é o critério

fundamental para

identificar se uma

comunidade é quilombola.

Através da Portaria

nº 98 da Fundação Cultural

Palmares (FCP) criou-se o

Cadastro Geral de

Remanescentes das Comunidades dos

Quilombos. Esse cadastro é um mecanismo do

Estado brasileiro em que se listam as

comunidades que se autorreconhecem como

quilombolas perante o poder público. A

Fundação Cultural Palmares faz apenas o

cadastro do autorreconhecimento, não pode

negar a uma comunidade com consciência de sua

identidade quilombola a inclusão no Cadastro

Geral das Comunidades dos Quilombos. Assim,

certidão de autorreconhecimento da Fundação

Cultural Palmares é o documento que atesta que

determinada comunidade autorreconheceu sua

identidade quilombola perante o Estado.

Inscrever o autorreconhecimento da

comunidade quilombola no cadastro da

Fundação Cultural Palmares é importante para

que a comunidade tenha, com a certidão, um

documento que facilite o acesso a políticas

públicas destinadas ao povo quilombola.

Contudo, o fato de uma comunidade ter ou não a

certidão da Fundação Cultural Palmares não a

torna quilombola, já que é a

consciência dessa

identidade o elemento

fundamental para

caracterizar a existência

dessa identidade. Contudo,

o que se vê na prática é que

o direito do

autorreconhecimento é muitas vezes

desrespeitando.

Por muitas vezes a certidão da fundação

Cultural Palmares é exigida por órgãos públicos

como prova de que uma comunidade é

quilombola. Assim, por exemplo, é que a

Instrução Normativa nº 57 do INCRA só

autoriza a abertura do processo de titulação do

território quilombola para a comunidade que

possuir a certidão da Fundação Cultural

Palmares. O próprio processo de expedição da

certidão da Fundação Cultural Palmares, previsto

na portaria 98, parece violar o direito ao

autorreconhecimento, já que o parágrafo

O

A consciência da identidade

quilombola é o critério

fundamental para identificar se

uma comunidade é quilombola.

Page 26: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

26

Novembro de 2012

segundo do artigo terceiro da portaria diz que a

Fundação Cultural Palmares poderá, dependendo

do caso concreto, realizar visita técnica à

comunidade no intuito de obter informações e

esclarecer possíveis dúvidas. Se o

autoreconhecimento é um direito previsto em lei

e não pode ser negado pelo estado a Fundação

Cultural Palmares pode negar a inclusão de uma

comunidade no Cadastro Geral de

Remanescentes das Comunidades dos

Quilombos ou mesmo retirar do cadastro uma

comunidade já inscrita?

Nos últimos anos, principalmente após o

ano de 2007, viu-se uma significativa

diminuição de emissão de certidões de

autorreconhecimento pela Fundação Cultural

Palmares. De 2004 até hoje foram inscritas no

cadastro da FCP 1824 comunidade quilombolas.

Foram 252 comunidades com certidão em 2004,

339 em 2005, 416 em 2006, 160 em 2007, 127

em 2008, 98 em 2009, 226 em 2010, 200 em

2011 e apenas 6 comunidades foram certificadas

pela Fundação Cultural Palmares neste ano de

2012. Diante desses números e tendo como

referência o fato de que existem mais de três mil

comunidades quilombolas no Brasil valer

perguntar por que o número de expedição de

certidões diminuiu tanto depois do ano de 2007?

Se uma comunidade quilombola fez o pedido de

certidão e ainda não recebeu o documento, o que

pode ser feito?

Nesse contexto vale considerar que uma

importante luta para as comunidades

quilombolas é garantir o efetivo respeito ao

direito de autorreconhecimento como elemento

suficiente para viabilizar acesso a políticas

públicas. A certidão da Fundação cultural

Palmares deve ser um instrumento para facilitar

o acesso a políticas públicas específicas para as

comunidades quilombolas, não pode ser um

instrumento que sirva para determinar se uma

comunidade é ou não quilombola.

Como fazer o pedido de expedição da Certidão de autorreconhecimento da Fundação Cultural

Palmares?

Para que uma comunidade faça sua inscrição no Cadastro Geral de Remanescentes das

Comunidades dos Quilombos é necessário fazer esse pedido à Fundação Cultural Palmares. Esse

pedido se faz enviando uma carta à FCP pedindo a expedição da certidão. Segundo a portaria 98 do

da Fundação Cultural Palmares a carta a ser enviada deve conter:

Um pedido expresso de expedição da certidão, ou seja uma carta da comunidade dizendo que

autorreconhece a identidade quilombola e pedindo a expedição da certidão;

A comunidade que não possui associação legalmente constituída tem que apresentar ata de

reunião convocada para debater a questão da autodefinição. Essa reunião tem que ser descrita

em uma ata que também deve ser aprovada pela maioria dos moradores da comunidade. Essa

ata tem que estar acompanhada de lista de presença assinada pelos membros da comunidade.

Page 27: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

27

Novembro de 2012

Já a comunidade que possui associação legalmente constituída deverá apresentar ata da

assembléia convocada para específica finalidade de deliberação a respeito da autodefinição,

aprovada pela maioria absoluta de seus membros, acompanhada de lista de presença

devidamente assinada. As assinaturas das atas podem ser feitas por escrito ou com a impressão

digital do dedo das pessoas que não puderem escrever;

Um relato simples da história da comunidade;

Caso a comunidade possua também pode enviar junto com a carta dados, documentos ou

informações, tais como fotos, reportagens, estudos realizados, entre outros, sobre a história

comum do grupo ou suas manifestações culturais. Vale destacar que esse ponto é facultativo,

ou seja, não é obrigatório.

3.2- O passo a passo da titulação – A regra da Instrução Normativa n 57 do

INCRA

Como visto o Estado brasileiro tem

normas que regulam o processo que o Estado

tem que realizar para que as comunidades

quilombolas sejam tituladas conforme determina

o art. 68 do ADCT da Constituição Federal. Hoje

as principais normas que regulamentam esse

procedimento de titulação são o Decreto Federal

4887/03 e a Instrução Normativa nº 57 do

INCRA (IN 57).

Estudando essas duas normas, em especial a IN

57, é possível entender o passo a passo do

processo de titulação e, assim, monitorar o

trabalho do INCRA na titulação dos territórios

quilombolas. As fases abaixo descritas são um

resumo didático do complexo processo de

titulação descrito na Instrução Normativa nº 57

do INCRA.

Primeiro passo – abertura de processo no INCRA

Para dar início ao processo de titulação do

território cada comunidade deve fazer um pedido

de abertura de processo no INCRA. Esse pedido

feito ao INCRA deve conter informações sobre a

localização da comunidade e pode ser feito por

qualquer interessado, das entidades ou

associações representativas de quilombolas. O

INCRA também pode abrir o processo sem que a

comunidade faça o pedido formalmente. O

Pedido de abertura do processo pode ser feito

inclusive de forma oral.

Vale destacar que o processo de titulação

no INCRA só pode ter início com a apresentação

da certidão da Fundação Cultural Palmares.

Assim, se a comunidade não tiver a certidão o

processo irá ficar totalmente parado, situação

que contraria o direito ao autorreconhecimento

descrito na Convenção 169 da OIT.

Page 28: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

28

Novembro de 2012

Segundo passo – Elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID

O Relatório Técnico de Identificação e

Delimitação (RTID)m é um conjunto de

documentos que a Instrução Normativa nº 57

exige que sejam feitos pelo INCRA para que a

titulação dos territórios quilombolas seja

realizada. Hoje essa é uma das fases do processo

de titulação mais difíceis de ser superadas pelas

comunidades. A falta de recursos financeiros e

falta de funcionário no INCRA para realizar esse

trabalho é um dos principais motivos que faz

com que a maioria dos processos de titulação no

INCRA não tenham superado essa fase.

O RTID é composto dos seguintes

documentos:

Relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e

sociocultural: Esse relatório é um documento que destaca aspectos da história da comunidade

e de seu modo de vida atual. É o principal documento de referência para delimitar a área a ser

titulada em favor da comunidade. O relatório antropológico não é um documento que vai dizer

se a comunidade é ou não quilombola;

Levantamento fundiário: Esse documento irá descrever a situação das terras que serão

tituladas em favor da comunidade. Ou seja, esse documento contém informações sobre a quem

pertence as terras que estão dentro da área a ser titulada. Esse levantamento é fundamental

para saber quem será desapropriado para que se garanta a titulação de todo o território

quilombola;

Planta e memorial descritivo do perímetro da área reivindicada pelas comunidades

remanescentes de quilombo: Este é o documento que contém o mapa da área a ser titulada.

Cadastramento das famílias quilombolas: Esse documento é o levantamento das

famílias que pertencem à comunidade quilombola, inclusive aquelas que não morem dentro do

território;

Parecer relacionado com a sobreposição de áreas: Muitas vezes o território das

comunidades quilombolas foi transformado em parques ou outros tipos unidades de

conservação. Uma parte do trabalho do INCRA é fazer esse levantamento de situações que

indiquem haver esse tipo de sobreposição. Esse levantamento é fundamental para que no

futuro possa ser feita a titulação, pois vai identificar possíveis obstáculos ao registro do título

no cartório.

Parecer conclusivo da área técnica e jurídica do INCRA: Após à elaboração de

todos os documentos acima descritos será realizada uma avaliação pelos INCRA. Essa

avaliação tem por objetivo verificar possíveis falhas na elaboração dos documentos do RTID.

Havendo falhas esses documentos deverão ser refeitos, não havendo falhas encerra-se a fase

do RTID.

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Território quilombola: uma conquista cidadã

29

Novembro de 2012

Terceiro passo – Avaliação do Comitê Regional do INCRA, Publicação do RTID e notificação a

interessados

Após à elaboração do RTID o grupo de

funcionários do INCRA que compõe o Comitê

de Decisão Regional fará uma avaliação do

RTID. Se não forem encontradas falhas no RTID

o processo segue para a fase seguinte. Havendo

falhas não percebidas antes o processo deve

voltar para a fase de elaboração do RTID.

Sendo positiva a avaliação do Comitê de

Decisão Regional do INCRA um resumo do

RTDI será publicado Diário Oficial da União e

no Diário Oficial do estado em que o INCRA

estiver. O resumo do RTID também será fixado

na prefeitura da cidade onde estiver a

comunidade. Além disso, aquelas pessoas que

tiverem propriedade dentro da área a ser titulada,

assim como os vizinhos da comunidade, serão

notificados pessoalmente da elaboração do

RTID. O INCRA também deverá providenciar

uma notificação a diversos órgão federais, como

o IBAMA e a FUNAI.

Todas essas notificações e publicações

são necessárias para dar publicidade ao trabalho

feito no RTID. Essa publicidade é necessária

para que aqueles que tiverem interesse e

quiserem contestem o que está no RTID.

Quarto passo – fase das contestações ao RTID

Como o nosso sistema jurídico dá a todos

a possibilidade de exercer o direito fundamental

de defesa e do contraditório, o INCRA é

obrigado a receber contestações de pessoas com

interesse no processo de titulação. Essas

contestações são contra o RTID e na grande

maioria dos casos é feita por pessoas que terão

suas terras desapropriadas no processo de

titulação.

Na contestação aqueles que se opõe à

titulação vão tentar apontar falhas no RTID que

dificulte ou impeça a titulação. Vale lembrar que

a própria comunidade pode apresentar

contestação, por exemplo, se não estiver de

acordo com a área do território a ser titulado.

Essas contestações serão julgadas pelo

Comitê de Decisão Regional do INCRA. Se o

comitê acatar alguma argumentação exposta na

contestação, o processo volta para a fase do

RTID para ser refeito. Se o comitê não acatar a

contestação os interessados poderão apresentar

recurso para o Conselho Diretor do INCRA, em

Brasília. Se o conselho julgar acatar alguma

argumentação exposta na contestação, o

processo volta para a fase do RTID para ser

refeito. Caso o conselho não acate os argumentos

da contestação o processo volta para o INCRA

do estado e o processo segue para a próxima

fase.

Page 30: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

Quinto passo – portaria de reconhecimento do território quilombola

Após o julgamento das contestações o

INCRA dos estados devem elaborar resumo do

processo contendo informações básicas. Esse

documento será enviado para o INCRA de

Brasília e o Presidente do INCRA publicará no

Diário Oficial da União e no Diário Oficial do

estado em que se localiza a comunidade uma

portaria reconhecendo e declarando os limites da

terra quilombola. Teoricamente o presidente do

INCRA tem o prazo de trinta dias para fazer essa

publicação, o que quase nunca é respeitado.

A portaria de reconhecimento do

território quilombola é muito importante, já que

é o documento oficial que encerra a parte de

estudos e de julgamento do processo de

titulação. Com a portaria o território quilombola

passa a ser oficialmente reconhecido pelo

Estado. Após esse reconhecimento pela portaria

do INCRA passa-se para a fase de

desapropriação, quando necessário.

Sexto passo – As desapropriações

Após a publicação da portaria de

reconhecimento do território quilombola inicia a

fase de desapropriação. Nesta fase o INCRA irá

tomar providências para obter as propriedades

que estejam registradas em nomes de pessoas

que não sejam da comunidade. Para cada

propriedade privada existente dentro do território

quilombola o INCRA abrirá um processo. Nesse

processo o INCRA irá realizar uma avaliação do

imóvel e, juntando outros documentos, enviará o

processo para que seja feito o decreto de

desapropriação.

Esse decreto de desapropriação será

assinado pela Presidenta da República após

avaliação da Casa Civil. Muitos dos processos de

titulação de comunidades quilombolas demoram

muito tempo para ter seus decretos assinados.

Sem a assinatura dos decretos é impossível fazer

a desapropriação.

Assinado o decreto de desapropriação o

INCRA deve ajuizar uma ação de

desapropriação para cada propriedade particular

que estiver dentro do território quilombola.

Nessa ação de desapropriação o juiz deve, num

prazo de 48 horas, dar a posse da área para o

INCRA. Contudo, na prática existem muitos

obstáculos jurídicos que podem ser criados

atrasando a desapropriação do imóvel pelo

INCRA. Quando o INCRA tiver a posse do

imóvel garantida pelo juiz, já poderá repassar a

área comunidade essa posse. Contudo, o título

definitivo só poderá ser repassado para a

comunidade após esgotarem-se todas as fases do

processo judicial de desapropriação, o que de

regra não é rápido.

Caso a o proprietário da área a ser

desapropriada não se oponha à titulação do

território quilombola poderá fazer um acordo

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Território quilombola: uma conquista cidadã

31

Novembro de 2012

com o INCRA, evitando que seja necessário

ajuizar a ação de desapropriação.

Além da desapropriação de terras

particulares o INCRA também deverá resolver

problemas relacionados com a sobreposição, por

exemplo, de unidades de conservação que

estejam dentro do território quilombola. Sendo a

titulação do território quilombola um direito

previsto na Constituição, o INCRA, assim como

outros órgão, precisam buscar uma saída para

superar a situação de sobreposição de áreas,

quando isso acontecer. Ocorre, contudo, que é

muito difícil de resolver essas situações, haja

vista que existem muito interesses em jogo

quando se trata de sobreposição se áreas.

Sétimo passo – Titulação do território

A última fase do processo de titulação dos

territórios quilombolas é o registro do território

em nome da associação. O INCRA deverá ir no

cartório de registro de imóveis onde se localiza o

território quilombola e lá irá passar todo o

território para o nome da associação quilombola.

Feito o registro no cartório a comunidade

receberá o título de propriedade definitiva do

território.

Em alguns casos, quando a comunidade

ou parte dela estiver em áreas públicas como

ilhas ou beira de rios a comunidade receberá um

documento que equivale ao título de

propriedade, mas não será propriamente

proprietária dessas áreas. Isso pois determinadas

áreas, como as ilhas, por definição da própria

Constituição são de propriedade do Estado e não

podem ser repassadas à associação. Nesses casos

o documento fornecido pelo estado, que em geral

se chama Concessão Real de Direito de Uso,

equivale ao título de propriedade da área.

Algumas considerações importantes sobre o processo de titulação.

As fases do processo de titulação que

acima estão expostas são um esquema

simplificado do processo de titulação. Esse

esquema simplificado é uma forma de explicar

de forma didática o processo de titulação. Na

prática, contudo, o processo é mais complexo.

Um estudo aprofundado do Decreto Federal

4887/03 e da Instrução Normativa nº 57 do

INCRA pode ajudar a compreender melhor o

complexo processo de titulação dos territórios

quilombolas.

O estudo da IN 57 também traz

importantes informações sobre o processo de

titulação:

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Território quilombola: uma conquista cidadã

32

Novembro de 2012

Art. 9º - A identificação do território a ser titulado em favor da comunidade quilombola deve

ser feito a partir de indicação da própria comunidade interessada. Ou seja, a delimitação dos

limites do território deve ser feita com participação ativa da comunidade. Contudo, o território a ser

titulado não é necessariamente igual à indicações feitas pela comunidade. Além das indicações o

antropólogo tem que justificar a indicação do território com base no uso tradicional que a

comunidade faz do território;

Art. 10, § 5º - A comunidade quilombola tem o direito de apresentar documentos ao INCRA

durante a fase de elaboração do RTID. Os documentos que a comunidade entender que são

importante para o estudo antropológico ou outro que se fazem para o RTID devem ser levados em

consideração pelo INCRA;

Art. 10, § 6º - A comunidade quilombola tem direito de participar de todas as fases do processo

de elaboração do RTID. Ela pode participar diretamente ou através de pessoas por ela indicadas,

como antropólogos, advogados e engenheiros agrônomos de sua confiança, entre outros;

Art. 10 § 7º - Antes de iniciada a elaboração do RTID a comunidade de tem o direito de ser

informada de todas as fases do processo de titulação. Os funcionários do INCRA são os

responsáveis por prestar todas as informações que forem necessárias à comunidade;

Art. 10 § 7º - A comunidade tem direito de preservar sua intimidade, podendo não prestar

determinadas informações que entender que não devem ser repassadas ao INCRA. Isso é um

direito da comunidade e não pode ser usado para impedir a titulação. Esse direito existe pois durante

a elaboração do RTID, especialmente do relatório antropológico, Serpa feita uma pesquisa sobre o

modo de vida da comunidade e, às vezes, há coisas que a comunidade não quer contar;

Art. 10 § 7º - A comunidade também tem o direito de autorizar ou não a utilização das

informações contidas no RTID em estudos e pesquisas acadêmicas. Como a comunidade é dona

de sua própria história pode proibir que os estudos feitos pelos funcionários do INCRA sejam usados

para finalidades diversas da relacionada com o processo de titulação;

Art. 10 § 7º, Art. 12 § 5º e art. 28 - A comunidade quilombola tem direito de ter acesso a todos os

documentos que constem do processo de titulação, mesmo que esses documentos ainda não

estejam formalmente colocados no processo do INCRA;

Art. 24 – Todo o processo de titulação é gratuito, a comunidade não tem que pagar nada por isso.

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

3.3 - Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho

Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (C 169 OIT) é uma lei

internacional muito importante e com validade no Brasil. Ela se aplica a comunidades

indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Essa lei é importante pois garante

muitos direitos, aqui vamos abordar dois deles: direito à terra e direito à consulta livre, prévia e

informada.

Porque a Convenção 169 da OIT se aplica às comunidades quilombolas?

A Convenção 169 da Organização Internacional do trabalho defini em seu artigo primeiro

quem são os beneficiários dos direitos nela previstos. Assim está na convenção:

Como se vê a convenção se aplica a dois grandes grupos que são denominados pelo texto de

indígenas e tribais. Contudo, como se pode ver acima, não é o nome que a convenção deu a esses

grupos (indígenas e tribais) que define a quem a convenção se aplica. Isto pois não seria possível

colocar numa lei que vale em diversos países do mundo o nome de cada povo. Um exemplo dessa

dificuldade é a própria designação de comunidades rurais afrodescendentes na América latina, pois

no Brasil são chamadas de quilombolas e em outros países da América latina de palenques, cumbes,

maroons e cimarrones. Assim, para observar quem são os beneficiários da convenção é necessário ver

a definição que a própria convenção traz.

É possível observar que a convenção tem dois grandes grupos e que em comuns esses grupos o

fato de serem viverem total ou parcialmente por meio de seus próprios costumes ou tradições ou por

uma legislação ou regulações especiais. A grande diferença entre os grupos está no fato de serem ou

A

1. A presente Convenção aplica-se a;

a) povos tribais em países independentes cujas condições sociais, culturais e econômicas os

distingam de outros segmentos da comunidade nacional e cuja situação seja regida, total ou

parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por uma legislação ou regulações

especiais; b) povos em países independentes considerados indígenas pelo fato de descenderem de

populações que viviam no país ou região geográfica na qual o país estava inserido no momento

da sua conquista ou colonização ou do estabelecimento de suas fronteiras atuais e que,

independente de sua condição jurídica, mantêm algumas de suas próprias instituições sociais,

econômicas, culturais e políticas ou todas elas.

2. A autoidentificação como indígena ou tribal deverá ser considerada um critério fundamental

para a definição dos grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção.

Page 34: Cartilha formação-com-jovens-quilombola

Território quilombola: uma conquista cidadã

34

Novembro de 2012

não a população que habitava o país quando do início do processo de colonização. É por essa

diferença que a convenção diz que se aplica aos indígenas, que é o povo originário, e aos povos

tribais que apesar de não serem originários vivem total ou parcialmente através de seus próprios

costumes e em condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros segmentos da

comunidade nacional.

O Estado brasileiro já informou oficialmente à OIT que a convenção de aplica aos

quilombolas, assim como a própria OIT também já se manifestou dizendo que também entende que a

convenção se aplica aos quilobolas.

Direito à Terra na convenção

Além do art. 68 do ADCT da Constituição a C 169 OIT também garante aos quilombolas o

direito à terra. Entre os artigos 13 e 19 da C 169 da OIT estão os importantes dispositivos que

garantem acesso à terra

Art. 13 – Neste ponto garante-se na aplicação da convenção o Estado deve respeitar a importância

especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possua sua a relação com as

terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma

maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. Ou seja, essa parte do texto determina

que o estado deve levar em consideração, para aplicar a convenção, que os quilombolas tem uma

forma própria de se relacionar com a terra e isso deve ser respeitado. Assim, o Estado tem que

respeitar, por exemplo, os valores espirituais que estão ligados ao território, diferente do que ocorre

com a maior parte dos fazendeiros que só quer usar a terra para ganhar dinheiro.

Art. 14 – Esse artigo determina que o Estado os direitos de posse e propriedade que as comunidades

quilombolas tem sobre e aterra, complementando o que diz o art. 68 do ADCT da Constituição. Nesse

mesmo artigo se vê que o Estado está obrigado a criar meios para efetivar esse direito, inclusive

ajudando a proteger os quilombolas de ameaças ao território, como nos casos em que nau quilombola

tentar se apropriar do território

Art. 15 – essa parte do texto garante que além da terra as comunidades quilombolas tem direito sobre

os recursos naturais que existam na terra e, assim, podem participar da utilização, administração e

conservação dos recursos mencionados. Essa parte do texto da convenção também garante que os

quilombolas devem ser consultados em caso de o estado querer explorar a mineração no território.

Caso a mineração venha a ocorrer no território os quilombolas tem direito à participação nos lucros,

assim como de indenização por prejuízos decorrentes da realização da mineração

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

Art. 16 – Garante que em regra as comunidades quilombolas não podem ser retiradas de seu

território. Nos casos em que a saída dos quilombolas do território for necessária só poderá com o

consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando a

comunidade não consentir com a saída do território, o Estado só poderá fazer a retirada após a

realização do processo de consulta. Esse artigo também garante que as comunidades tem direito de

voltar às suas terras quando isso for possível. Em caso de retirada forçada da comunidade do

território o estado tem a obrigação de encontrar outra terra semelhante para que a comunidade viva.

Art. 19 – garante que as comunidades quilombolas tem direito de acesso à terra que seja suficiente

para a existência da comunidade, ai incluindo também questão relacionada com o aumento de número

de pessoas na comunidade e a necessidade de mais terras.

Direito de consulta livre prévia e informada na convenção

Um dos mais importantes direitos previstos na convenção 169 da OIT está no art. 6º. Esse

artigo garante que as comunidades quilombolas devem ser consultadas sempre que alguma medida

administrativa ou legal for tomada pelo Estado e tenha possibilidade de afetar a vida da comunidade.

Se esse direito for respeitado as comunidades quilombolas terão a oportunidade de participar das

decisões do Estado que forem capazes de afetar a vida da comunidade. Por ser esse direito tão

importante vale a pena transcrever o que está na convenção:

“Artigo 6°

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através

de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou

administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo

menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões

em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas

políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos

casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de

maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o

consentimento acerca das medidas propostas.”

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Território quilombola: uma conquista cidadã

36

Novembro de 2012

Desse artigo se pode entender que;

1) O processo de consulta à comunidade tem que envolver uma instituição representativa, ou seja,

a associação da comunidade. Não se pode, por exemplo, consultar apenas alguns membros da

comunidade;

2) O Direito de consulta não será respeitado realizando-se apenas uma audiência pública. É

necessário que o Estado realize a consulta através de um procedimento que possibilite ampla

participação e tempo para que a comunidade realmente forme uma opinião sobre o tema em

debate;

3) Para a realização do processo de consulta o Estado deve fornecer às comunidades meios para

participação. Se por exemplo a realização da consulta envolver a construção de uma grande

obra como uma barragem, o Estado te que dar à comunidade tempo para estudar o projetos e,

se necessário, dar suporte técnico para que a comunidade consiga entender plenamente os

impactos da obra;

4) Ad consultas devem ser feitas de modo a buscar um acordo com a comunidade. A consulta não

pode ser feita apenas como se fosse um passo inevitável de, por exemplo, uma obra que vai ser

feita com ou sem o consentimento da comunidade.

Ocorre que esse direito de consulta não vem sendo respeitado pelo Estado brasileiro. Por mais

de uma vez a Organização internacional do Trabalho recomendou ao Brasil o respeito ao direito de

consulta.

Por causa de várias pressões que o Brasil tem recebido para respeitar o direito de consulta, está

em curso um processo de regulamentação desse direito de consulta. Como não existe atualmente uma

regra para dizer como esse direito de consulta deve ser exercitado pela comunidade está sendo

preparada uma regra que diga como as consultas devem ser feitas. A princípio essa regra deve ser

definida até o fim do ano de 2013 e a participação das comunidades quilombolas é fundamental para

que esse direito de consulta se efetive na prática.

Questões para debate:

A Convenção 169 da OIT, sendo uma lei, é respeitada e os direitos das comunidades

quilombolas são realizados na prática? Se não há respeito, quem desrespeita?

Diante do desrespeito à lei o que podem as comunidades quilombolas fazer?

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

3.4 - Políticas públicas para efetivação dos direitos previstos na lei –

Programa Brasil Quilombola

Através das políticas públicas que o Estado se organiza para efetivar direitos reconhecidos na

lei. Dessa forma, políticas públicas podem ser consideradas como conjuntos de programas, ações e

atividades desenvolvidas pelo Estado, que direta ou indiretamente, para buscar a realização de um

direito. Assim, para que o direito de acesso ao território das comunidades quilombolas seja efetivado

é imprescindível a existência de uma política pública que trabalhe com esse objetivo. A política

pública que trabalha com o tema quilombola de acesso à terra é o Programa Brasil Quilombola

O Programa Brasil Quilombola5 foi lançado em 12 de março de 2004, com o objetivo de

consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas, constituindo a Agenda Social

Quilombola, que agrupa as ações voltadas às comunidades em várias áreas: acesso a terra, saúde,

educação, saneamento básico, eletrificação, entre outras, conforme segue:

Eixo 1: ACESSO A TERRA – execução e acompanhamento dos trâmites necessários para a

regularização fundiária das áreas de quilombo, que constituem título coletivo de posse das terras

tradicionalmente ocupadas. O processo se inicia com a certificação da comunidades e se encerra na

titulação, que é a base para a implementação de alternativas de desenvolvimento para as

comunidades, além de garantir a sua reprodução física, social e cultural;

Eixo 2: INFRAESTRUTURA E QUALIDADE DE VIDA – consolidação de mecanismos efetivos

para destinação de obras de infraestrutura (habitação, saneamento, eletrificação, comunicação e vias

de acesso) e construção de equipamentos sociais destinados a atender as demandas, notadamente as

de saúde, educação e assistência social;

Eixo 3: INCLUSÃO PRODUTIVA E DESENVOLVIMENTO LOCAL - apoio ao

desenvolvimento produtivo local e autonomia econômica, baseado na identidade cultural e nos

recursos naturais presentes no território, visando a sustentabilidade ambiental, social, cultural,

econômica e política das comunidades;

Eixo 4: DIREITOS E CIDADANIA - fomento de iniciativas de garantia de direitos promovidas por

diferentes órgãos públicos e organizações da sociedade civil, estimulando a participação ativa dos

representantes quilombolas nos espaços coletivos de controle e participação social, como os

conselhos e fóruns locais e nacionais de políticas públicas, de modo a promover o acesso das

comunidades ao conjunto das ações definidas pelo governo e seu envolvimento no monitoramento

daquelas que são implementadas em cada município onde houver comunidades remanescentes de

quilombos.

5 O texto abaixo é do site da SEPPIR

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

Para o trabalho junto às comunidades quilombolas são utilizados alguns critérios de

priorização:

1. Comunidades Quilombolas em situação de difícil acesso;

2. Comunidades Quilombolas impactadas por grandes obras;

3. Comunidades em conflitos agrários;

4. Comunidade sem acesso à água;

5. Comunidades sem energia elétrica;

6. Comunidades sem escola.

As ações são executadas pelos 23 ministérios, que compõem o Comitê Gestor do Programa,

sendo a coordenação geral de responsabilidade da SEPPIR em conjunto com a Casa Civil da

Presidência da República, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério da Cultura e o

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. A partir de novembro de 2011, por

reivindicação da CONAQ, um representante quilombola passará a integrar o Comitê.

A Gestão Descentralizada do PBQ ocorre com a articulação dos entes federados, a partir da

estruturação de comitês estaduais. Sua gestão estabelece interlocução com órgãos estaduais e

municipais de promoção da igualdade racial (PIR), associações representativas das comunidades

quilombolas e outros parceiros não governamentais.

A SEPPIR tem acompanhado e estimulado a instituição de Comitês Gestores Estaduais, sendo

que ao longo de 2008 a 2010 foram formalizados 11 Comitês Estaduais: Amapá, Espírito Santo,

Goiás, Maranhão, Pará, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Sergipe

Tocantins.

Questões para debate:

A existência do Programa Brasil Quilombola é importante?

O Programa Brasil quilombola atinge seus objetivos?

O que pode ser feito para aprimorar o Programa Brasil Quilombola?

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

3.5- Ameaças aos direitos das comunidades quilombolas

3.5.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239 – Supremo Tribunal

Federal

No ano de 2004 o então PFL (Partido da

Frente Liberal) hoje conhecido como DEM

(Democratas) ajuizou uma ação no Supremo

Tribunal Federal contra o Decreto Federal

4887/03. Nessa ação o DEM pede que o STF

declare o decreto quilombola inconstitucional.

Ou seja, pede que o STF diga que o decreto não

está de acordo com a Constituição e, assim, não

pode ter validade jurídica. Se o STF acatar o

pedido do DEM e o Decreto Federal 4887/03 for

declarado inconstitucional as comunidades

quilombolas ficarão sem possibilidade de seguir

com os processos de titulação do territórios,

havendo ainda a possibilidade de anulação dos

territórios já titulados.

Nessa ação judicial o DEM alega que: 1)

Para cumprir o art. 68 do ADCT da Constituição

é obrigatória a aprovação de uma outra lei pelo

Congresso Nacional e que o decreto não pode

suprir essa ausência de lei; 2) Que o art. 68 do

ADCT só dá direito à titulação da terra que a

comunidade ocupou de 1888 a 1988, e que,

portanto, a desapropriação prevista no decreto

não pode ser realizada; 3) Alegam que o decreto

não poderia fazer a titulação de um território que

servisse para a reprodução física e cultural das

comunidades quilombolas, pois só teria direito à

terra que efetivamente estivessem ocupando; 4)

Que as comunidades não podem se

autoidentificar como quilombolas para ter acesso

ao direito previsto na Constituição.

Neste ano de 2012 o julgamento da ADI

3239 iniciou-se. O julgamento dessa ação vai

depender do que a maioria dos Ministro que

compõe o STF vão entender. São onze Ministro

que compõe o STF e até agora apenas um deles,

O Ex-Ministro Cesar Peluso, apresentou seu

voto.

Abaixo são apresentados os principais

elementos que constam do voto do Ex-Ministro

Cesar Peluso, já com a contra argumentação ao

voto.

1) Necessidade de lei para aplicar o art. 68 do ADCT da Constituição

Cesar Peluso: Para o Ministro o art. 68 do ADCT não é muito claro sobre quem seriam as

comunidades beneficiárias do direito à titulação, como deve ser feita essa titulação e quais

são as terras que devem ser tituladas. Como o Ministro considera que não existe uma lei

que regulamente o art. 68 do ADCT da Constituição e o decreto não é uma lei, as

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

comunidades quilombolas devem esperar até que o Congresso Nacional aprove uma lei

para que tenham seus territórios titulados.

Contraposição: A Constituição Federal já tem 24 anos de vigência e passado todo esse

tempo não pode ficar sem possibilidade de aplicação. A Constituição que cria direitos de

acesso à terra para quilombolas ficará amortecida, amordaçada e escondida, porque o

Poder Legislativo, sem causa legítima, deixou de praticar um ato de sua competência.

Inconstitucional é deixar a Constituição sem aplicação. Além disso a Convenção 169 da

OIT pode fazer o papel de lei que deixe mais claro o conteúdo do art. 68 do ADCT da

Constituição.

2) Quem são os quilombolas do art. 68 do ADCT da Constituição

Cesar Peluso: 1) Quilombolas: são aqueles que subsistiam nos locais tradicionalmente

conhecidos como quilombos, entendidos estes na acepção histórica, em 05 de outubro de

1988. Noutras palavras: aqueles que, tendo buscado abrigo nesses locais (quilombos),

antes ou logo após a abolição, lá permaneceram até a promulgação da Constituição de

1988. 2) Quilombos: o sentido de quilombo que deve ser utilizado é o sentido de

dicionário, lugar de negros fugidos. Nas palavras de Peluso: “para os propósitos do art. 68

do ADCT, o constituinte optou pela acepção histórica, que é conhecida de toda a gente.

Dos dicionários da língua portuguesa, Aurélio Século XXI”. “remanescente de quilombos

São aqueles que subsistiam nos locais tradicionalmente conhecidos como quilombos,

entendidos estes na acepção histórica, em 05 de outubro de 1988. Noutras palavras:

aqueles que, tendo buscado abrigo nesses locais (quilombos), antes ou logo após a

abolição, lá permaneceram até a promulgação da Constituição de 1988.”

Contraposição: 1) Quilombolas: quilombolas não são apenas os negros e negras fugidos

na época da escravidão, são grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,

com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção

de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida; 2)

Quilombos: A definição não pode ser atrelada a um conceito escravocrata, quem definia

quilombo como lugar de negros fugidos era a lei da escravidão. Quilombo tem que ser

entendido como um lugar de liberdade, onde negros e negras buscavam uma vida fora do

contexto da escravidão. O quilombo não era composto só por negros, mas também por

outros setores marginalizados da sociedade;

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

3) O direito à terra e o art. 68 do ADCT

Cesar Peluso: Para o Ministro a Constituição reconheceu um direito de usucapião de terras

públicas. Só seriam beneficiadas as comunidades que tivessem ocupado, de 1888 a 1988, a

mesma terra e somente essa terra poderia ser titulada em nome da comunidade. Não pode

haver desapropriação.

Contraposição: O direito quilombola à terra precisa ser interpretado perante toda a

Constituição. A Constituição cidadã não permite interpretar a extensão do direito

quilombola à terra fora do contexto do que essa terra significa para os quilombolas. Para as

comunidades a terra tem uma função ligada à manutenção do modo de vida, da cultura do

povo quilombola. Assim, o direito à terra deve ser interpretado conforme a necessidade que

os quilombolas tem para sobreviver. Uma interpretação diferente vai acabar inviabilizando

a sobrevivência dos quilombolas.

4) Outras considerações importantes do voto e da estratégia de defesa das comunidades

Ainda em seu voto o Ministro Cesar Peluso fez as seguintes considerações:

Cesar Peluso: O Decreto Federal 4887/03 Realiza usurpação de direitos dos proprietários não

quilombolas

Contraponto: O decreto não usurpa direito de ninguém pois garante indenização às pessoas

que provarem a propriedade das terras que fazem parte do território quilombola

Cesar Peluso: Justiça social feita com a titulação não tem amparo constitucional que gera

desestabilização social e crescimento dos conflitos agrários. Disse isso com base em notícias

de jornal e no “livro” “Revolução Quilombola” (Princesa Isabel a redentora, Zumbi um

escravocrata).

Contraponto: O direito quilombola está na Constituição e a realização da justiça histórica

para com os quilombolas não é a causa dos conflitos agrários decorrentes da luta pela

titulação. Os conflitos acontecem porque aqueles que se apossaram das terras dos quilombolas

não querem respeitar a Constituição e são contra o direito das comunidades continuarem a

existir através da garantia de acesso ao território que já foi utilizado pelas comunidades. O

Ministro se baseia em matérias de jornais tendenciosas e em um livro escrito com apoio do

auto intitulado descendente do “trono” do Brasil, que descreve Zumbi dos Palmares como um

escravocrata

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

Cesar Peluso: Nem os parceiros estão satisfeitos com o processo de titulação, por isso a

inconstitucionalidade do decreto não é um problema.

Contraponto: O fato de os parceiros das comunidades não estarem satisfeitos com o

andamento dos processos de titulação não quer dizer que não estejam satisfeitos com a política

em si. O problema está relacionado com os obstáculos que aqueles que se opõe à titulação

criaram, especialmente na IN do INCRA, para tentar impedir a titulação.

3.5.2 Projetos de lei e ameaça a direitos

Além dos problemas que as comunidades quilombolas enfrentam com a ADI 3239 alguns

projetos de lei que estão no Congresso nacional também podem acabar com o Decreto Federal

4887/03. Por isso a atenção a esses projetos de lei é fundamental.

1)Projeto de Emenda Constitucional 215

Autor: Almir Sá (PPB-RR)

Efeitos para a titulação dos territórios: inclui dentre as competências exclusivas do Congresso

Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e quilobolas e

a ratificação das demarcações já homologadas; estabelecendo que os critérios e procedimentos de

demarcação serão regulamentados por lei

2) Projeto de Lei 3654/2008 Autor: Valdir Colatto (PMDB-SC)

Efeitos para a titulação dos territórios: Se aprovado, este projeto irá retirar o direito de auto-

identificação da comunidade. Também não prevê a desapropriação para titulação do território e o

quilombola só teria direito à área que estivesse efetivamente ocupando e não a área necessária para a

sobrevivência da comunidade.

Questões para debate:

O que pode ser feito para que a ADI 3239 não acabe com o Decreto Federal

4887/03?

Se o decreto for derrubado, o que deve ser feito?

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

3) Projeto de Decreto Legislativo 326/2007 Autor: Valdir Colatto (PMDB-SC)

Efeitos para a titulação dos territórios: O Ministério da Cultura seria o responsável pela titulação

dos territórios quilombolas, sendo que este órgão não dispõe de estrutura, capacidade técnica e

experiência de trabalho em questões territoriais.

4) Projeto de Decreto Legislativo 44/2007 Autor: Valdir Colatto (PMDB-SC) e outros

Efeitos para a titulação dos territórios: Caso fosse aprovada a proposta, não haveria mais nenhum

marco normativo capaz de orientar o Estado a fazer os processos de titulação dos territórios. Muitos

trabalhos que já estão em andamento perderiam a validade e teriam que ser refeitos. A titulação

ficaria muito difícil, pois não se saberia quem deveria fazer e nem mesmo qual as regras do processo.

5) Projeto de Emenda à Constituição 161/2007 Autor: Celso Maldaner – PMDB/SC

Efeitos para a titulação dos territórios: O projeto, se aprovado, irá tirar do Poder Executivo a

competência para realizar a titulação dos territórios quilombolas.

6) Projeto de Emenda à Constituição 190/2000 Autor: Senado Federal – Lúcio Alcântara (PSDB-CE)

Efeitos para a titulação dos territórios: O projeto prevê uma pequena alteração no texto original.

Mas essa alteração, na prática, impede a aplicação do decreto 4887/03, pois obriga o Congresso

Nacional a ditar as regras sobre o processo de titulação das comunidades quilombolas invalidando o

Decreto 4887/03.

Questões para debate:

O que deve ser feito para que esses projetos de lei não sejam aprovados?

Quais podem ser os parceiros das comunidades quilombolas nessa luta?

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Território quilombola: uma conquista cidadã

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Novembro de 2012

1 Apoio

Secretaria de políticas de Promoção da Igualdade Racial

2 Realização