comunidade quilombola manoel ciriaco dos santos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DANDARA DOS SANTOS DAMAS RIBEIRO COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS: IDENTIDADE E FAMÍLIAS NEGRAS EM MOVIMENTO CURITIBA 2015

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Page 1: COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute

DANDARA DOS SANTOS DAMAS RIBEIRO

COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS IDENTIDADE E

FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTO

CURITIBA

2015

DANDARA DOS SANTOS DAMAS RIBEIRO

COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS IDENTIDADE E

FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTO

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Social Setor de Ciecircncias Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Antropologia Social

Orientadora Prof Dra Liliana de Mendonccedila Porto

CURITIBA

2015

uNivgRSiCAoe feoeR A t d o Pa r a n a

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIEcircNCIAS HUMANASPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ANTROPOLOGIA RUA GENERAL CARNEIRO 460 6o ANDAR CEP 80060-150 - CURITIBA-PR Telefone (41) 3360-5272

PARECER DA BANCA EXAMINADORA

Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute

(PPGA) para realizar a arguiccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo de Mestrado de Dandara dos Santos

Damas Ribeiro intitulada ldquoCOMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS

SANTOS IDENTIDADE E FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTOrdquo apoacutes terem

inquirido a aluna e realizado a avaliaccedilatildeo do trabalho satildeo de parecer pela

s u a j^ ^ ^Ccedil s f^ completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas

desta Instituiccedilatildeo para a obtenccedilatildeo do Grau de Mestre em Antropologia Social

Consideraccedilotildees adicionais da Banca Examinadora

K CAtilde-~ ikjOu

ampJSraquo V3 51X ^V CUacuteUumlSS^sSi bull

Curitiba 23 de novembro de 2015

Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto Orientadora r

Prof Dr Andreacute Dumaifjs Guedes 1o Examinador

laacuteampgyCjProf Dr Ricardo Cid Fernandes

2a Examinador

Dedico este trabalho ao meu pai Antocircnio e agrave minha matildee Elisabete O apoio a

paciecircncia a generosidade e o amor que recebi de vocecircs foram o oxigecircnio para este

mergulho bem como para o recomeccedilo que se anuncia

AGRADECIMENTOS

Entendo essa pesquisa como uma primeira tentativa de organizaccedilatildeo de um

rico material de campo como a possibilidade de aprofundamento do viacutenculo que jaacute

possuiacutea e que pretendo manter com as famiacutelias quilombolas de GuaiacuteraPR e espero

o iniacutecio de uma longa caminhada de dedicaccedilatildeo agrave Antropologia Agradeccedilo muitiacutessimo

pela receptividade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em todos os lugares que percorri

durante o trabalho de campo GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG e SerroMG Agraves famiacutelias da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos o meu agradecimento pela hospitalidade confianccedila atenccedilatildeo e aprendizados

Sou grata a Deus por nossos caminhos terem confluiacutedo para a oportunidade deste

conviacutevio que foi repleto de experiecircncias incomensuraacuteveis

Agradeccedilo pela possibilidade de mergulho na Antropologia um novo caminho

que comecei a trilhar na minha graduaccedilatildeo no curso de Direito da UFPR Esta

curiosidade se ampliou com a oportunidade de trabalhar no Ministeacuterio Puacuteblico do

Paranaacute que me proporcionou o contato com vaacuterias comunidades quilombolas no

estado oportunidade pela qual agradeccedilo ao procurador de justiccedila e amigo Dr Marcos

Fowler Percebo como finalizo essa pesquisa com a convicccedilatildeo de que o que eu

precisava mesmo era de uma experiecircncia de trabalho de campo que fizesse do

conviacutevio a base para uma proposta de conhecimento que busca a horizontalidade o

diaacutelogo e a sensibilidade ndash o que gera uma transformaccedilatildeo dentro e fora de noacutes Natildeo

poderia ter realizado esta pesquisa sem o apoio da minha famiacutelia que diante das

inseguranccedilas e desafios do caminho confortaram-me com a inestimaacutevel sensaccedilatildeo e

certeza de ser amada incondicionalmente Pela simplicidade e grandiosidade deste

amor sem preacute-condiccedilotildees sou grata eternamente em especial aos meus avoacutes Doca

e Ruy Joatildeo aos meus pais Antocircnio e Elisabete agraves minhas irmatildes Tatiara Naiara e

Janaina ao meu cunhado Marcelo e agrave minha sobrinha Olga Agrave Naiara um

agradecimento todo especial pelas contribuiccedilotildees no processo de revisatildeo deste texto

em sua versatildeo final com seu amparo atenccedilatildeo e amor Aos meus avoacutes Joaquim e

Maria Julia em memoacuteria agradeccedilo e os homenageio lembrando de suas trajetoacuterias

como migrantes os quais assim como meus interlocutores(as) tambeacutem saiacuteram de

Minas Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute em busca de melhores condiccedilotildees de

vida Durante o periacuteodo do trabalho de campo em Santo Antocircnio do Itambeacute e

SerroMG lembrei-me dos dois e no coraccedilatildeo os senti tatildeo proacuteximos

Se de longe recebi o incentivo dos meus familiares de perto agradeccedilo e

honro o conforto da presenccedila de meu companheiro de jornada Jean Luis com seu

apoio cotidiano confianccedila carinho atenccedilatildeo amor e magia Agrave grande famiacutelia que nos

tornamos junto com os amigos Simone e Julio Ceacutesar Angeacutelica e Gustavo com suas

crianccedilas abenccediloadas Brisa Mareacute Otto e Joatildeo eu agradeccedilo por terem preenchido

meu cotidiano de amor alegria e uniatildeo Aos meus colegas de mestrado agradeccedilo

pela convivecircncia proacutespera Em especial agrave Gabi ao ldquoTucanordquo e agrave Karina dos quais

recebi toda a ajuda necessaacuteria para o ingresso no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em

Antropologia da UFPR Agradeccedilo tambeacutem o incentivo ao longo de todo o curso e a

confianccedila que depositaram em mim Com vocecircs compartilho memoacuterias muito

especiais de um periacuteodo uacutenico de minha vida Ao meu querido amigo Leonardo Bora

minha gratidatildeo e alegria por poder contar com sua generosidade na revisatildeo do texto

Agrave minha orientadora Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto agradeccedilo pelo

acompanhamento gentil e consistente pela delicadeza sensibilidade e estiacutemulos

contiacutenuos em nossas conversas por seu exemplo de antropoacuteloga e de pessoa que

seratildeo sempre referecircncias para mim A todos os professores e teacutecnicos do Curso de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute agradeccedilo pela

dedicaccedilatildeo e pelos ensinamentos compartilhados Em especial aos Professores Dr

Ricardo Cid Fernandes e Dr Joatildeo Rickli pelas contribuiccedilotildees e sugestotildees ao trabalho

na banca de qualificaccedilatildeo

Ao pesquisador Cassius Cruz sou muito grata pela oportunidade da parceria

de pesquisa na realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais Tambeacutem ao professor Dr

Matheus de Mendonccedila Gonccedilalves Leite e ao pesquisador Tiago Geisler ambos da

PUCSerro agradeccedilo pelo apoio e solicitude com que nos receberam no municiacutepio do

SerroMG Sem a disponibilidade de vocecircs nossa pesquisa na regiatildeo teria sido muito

difiacutecil ou mesmo inviaacutevel O significado dessa experiecircncia na minha vida e na de meus

interlocutores(as) transcende em muito as reflexotildees desta dissertaccedilatildeo

Preciso me encontrar

ldquoDeixe-me ir

Preciso andar

Vou por aiacute a procurar

Rir pra natildeo chorarrdquo

Cartola

Agraves vezes me chamam de negro

Agraves vezes me chamam de negro

Pensando que vatildeo me humilhar

Mas o que eles natildeo sabem

Eacute que soacute me faz relembrar

Que eu venho daquela raccedila

Que lutou pra se libertar

Que eu venho daquela raccedila

Que lutou pra se libertar

Que criou o maculelecirc

E acredita no candombleacute

E que tem o sorriso no rosto

Oi a ginga no corpo e o samba no peacute

O que eacute que tem

E que tem o sorriso no rosto

Oi a ginga no corpo e o samba no peacute

(Ladainha de Capoeira)

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo baseada na etnografia realizada junto agrave ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em GuaiacuteraPR problematiza a vinculaccedilatildeo direta entre a legitimidade da reivindicaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas e a ideia de territorialidade fixa que tem sido presumida pela poliacutetica de garantia de direitos territoriais quilombolas no Brasil Esta pesquisa indicou como a construccedilatildeo da identidade quilombola eacute perpassada pelos processos de deslocamentos constitutivos da trajetoacuteria das famiacutelias que vivem atualmente em GuaiacuteraPR mas satildeo provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A reivindicaccedilatildeo da identidade quilombola eacute elaborada pelos meus interlocutores(as) com base na origem e na ancestralidade comuns com antepassados negros que foram escravizados nesta regiatildeo de Minas Gerais a partir da qual ocorre a saiacuteda das famiacutelias em busca de melhores condiccedilotildees de vida passando pelo estado de Satildeo Paulo ateacute a mudanccedila para GuaiacuteraPR onde adquirem aacuterea proacutepria Nas narrativas dos membros da comunidade percebe-se como o movimento natildeo dissolve mas ao contraacuterio sustenta o pertencimento coletivo Este caso exemplifica como a ideia de territorialidade fixa desconsidera experiecircncias de ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo ndash criteacuterio trazido pelo Decreto Federal 48872003 ao regulamentar o processo de titulaccedilatildeo quilombola ndash constituiacutedas por meio de estrateacutegias de deslocamento e natildeo pela permanecircncia em um mesmo territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional Estas dinacircmicas de movimento foram em um primeiro momento do processo de regularizaccedilatildeo territorial que ainda tramita no Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) entendidas como um elemento de descaracterizaccedilatildeo da legitimidade da reivindicaccedilatildeo do grupo pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido sobre a comunidade Com a natildeo aprovaccedilatildeo deste estudo por parte do INCRA um novo relatoacuterio foi contratado tendo este investido no argumento de que haacute uma continuidade entre as dinacircmicas socioculturais do grupo de GuaiacuteraPR e as comunidades quilombolas de sua regiatildeo origem a partir de pesquisa realizada no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio ItambeacuteMG Esta pesquisa realizada pelo segundo relatoacuterio criou o interesse por parte da comunidade de que eles mesmos pudessem visitar a regiatildeo Tais viagens de retorno foram realizadas no acircmbito desta dissertaccedilatildeo para buscarmos mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica das famiacutelias o que gerou um entrelaccedilamento entre a minha pesquisa e a trajetoacuteria do grupo O (re)encontro entre parentes perdidos e a possibilidade de acesso agraves histoacuterias dos antepassados proporcionados por estas viagens sugerem que a busca pela reconstituiccedilatildeo de histoacuterias e viacutenculos com a regiatildeo de origem por parte dos quilombolas de GuaiacuteraPR natildeo se restringe ao acircmbito instrumental e administrativo mas tem tambeacutem uma importante dimensatildeo afetiva A articulaccedilatildeo destas dimensotildees aponta para o anseio dos quilombolas pelo reconhecimento da legitimidade de sua versatildeo sobre sua histoacuteria do valor de sua origem e trajetoacuteria bem como do direito de se construiacuterem como sujeitos e como coletividade especiacutefica

Palavras-chave comunidade quilombola relatoacuterios antropoloacutegicos movimento memoacuteria

ABSTRACT

The present thesis based on ethnography with the Quilombola Community Manoel Ciriaco dos Santos a black community located in Guaiacutera Paranaacute State (PR) Brazil questions the direct link between the legitimacy of the territorial claims of quilombola communities and the fixed territoriality idea that has been assumed by the quilombola land rights guarantee policy in Brazil This research indicated how the construction of a quilombola identity includes process of movement that are present in the trajectory of displacements of a group of families who although originally from Santo Antocircnio do Itambeacute in Minas Gerais State live nowadays in GuaiacuteraPR Their claim over a quilombola identity is elaborated on the bases of a common origin and ancestrality of black enslaved ancestors from the Center-Northeast region of Minas Gerais which unfolds in a journey for better life conditions leaving the place crossing Satildeo Paulo State and finally arriving at GuaiacuteraPR where they acquired their own land In the narratives of community members it is noticeable that the movement does not dissolve but rather sustains the collective pertaining This case exemplifies how the fixed territoriality idea disregards experiences of resistance to historical oppression- feature brought by the Federal Decree 48872003 that regulates the process of quilombola titling - that are based on shifting strategies and not by staying in one traditionally occupied territory These movement dynamics were regarded in the first instance of the land regularization process which is still pending in the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA) as a distortion element of the legitimacy of the groups identity claim by the first anthropological report on the community With the rejection of this study by the INCRA a new report was hired From research held in the surrounding area of the municipality of Santo Antocircnio do ItambeacuteMG the repory argument that there is a continuity between the socio-cultural dynamics of the Guaira group and the quilombola communities of their region of origin This research by the second anthropological report has created the interest from the community that they themselves could visit the region Such return trips were undertaken in this thesis to seek more information on the historical trajectory of these families which generated an entanglement between my research and the trajectory of the group The re-gathering among long unseen relatives and the possibility of access to the stories of ancestors provided by these trips suggest that the search for the reconstitution of stories and links with the region of origin by the quilombolas of GuaiacuteraPR is not restricted by mere instrumental or administrative aim but also it has an important affective dimension The articulation of these dimensions points to the quilombolarsquos desire for recognition of the legitimacy of the communityrsquos version of their own history of the value of their origin and trajectory of their right to shape themselves as subjects and as an specific collectivity

Key-words quilombola community anthropological reports movement memory

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o estado

Mato Grosso do Sul32

FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel

Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa34

FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute39

FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 143

FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2 44

FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 348

FIGURA 7 ndash Documentos de identidade de Manoel Ciriaco dos Santos nascido em

16031920 e Ana Rodrigues nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)50

FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia53

FIGURA 9 Fluxo migratoacuterio54

FIGURA 10 Divisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos57

FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia65

FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildeem o seu altar79

FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil80

FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria81

FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da

ldquoGirardquo85

FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana92

FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP93

FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado139

FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na

comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo153

FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP175

FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina176

FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira178

FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos

geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova

(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo184

FIGURA 24 Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria

Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo185

FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo

conversando e ao lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona186

FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado

pelo traccedilado vermelho187

FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D

Necila190

FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel194

FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das

Dores197

FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4199

FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda202

FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz203

FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel205

FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano206

FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do Itambeacute213

FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira sua

sobrinha com o marido e os filhos214

FIGURA 37 Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo

Horizonte215

FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos217

FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa

da sobrinha Jovelina218

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

i ndash Estrutura dos Capiacutetulos19

ii ndash Notas sobre a pesquisa26

1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO 31

11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacuteMG E GUAIacuteRAPR DOIS PONTOS DE UMA

LINHA 31

12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA59

13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE74

2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS96

21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS109

22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo116

23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS131

24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO142

3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo159

31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo159

32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS 168

321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos171

322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova180

323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG191

3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda194

3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda203

3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente206

324 Novos movimentos210

3241 O reencontro das irmatildes211

3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda216

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS221

12

INTRODUCcedilAtildeO

As narrativas das famiacutelias negras a respeito do periacuteodo posterior agrave aboliccedilatildeo

formal da escravidatildeo no Brasil em 1888 tecircm vindo agrave tona nas uacuteltimas trecircs deacutecadas

por meio da emergecircncia da reivindicaccedilatildeo identitaacuteria das ldquocomunidades quilombolasrdquo

Este florescimento de narrativas foi estimulado pela inserccedilatildeo do direito agrave propriedade

coletiva dos territoacuterios sociais tradicionalmente ocupados conforme previsto na

Constituiccedilatildeo Federal (CF) de 1988 no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees

Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) que versa ldquoaos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a

propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivosrdquo Com este

ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo1 (OLIVEIRA FILHO 1998) e a consequente

reelaboraccedilatildeo da relaccedilatildeo com o passado como novos sujeitos poliacuteticos tem ocorrido

a ldquorecuperaccedilatildeo e reenquadramento da memoacuteria ateacute entatildeo recalcadardquo (ARRUTI 2006

p 28)

O ldquoprocesso de nominaccedilatildeordquo dos ldquoremanescentes das comunidades dos

quilombosrdquo na CF instituiu assim uma categoria juriacutedica e administrativa para

identificar sujeitos de direitos coletivos como objeto de accedilatildeo do Estado (ARRUTI

2006 p 45) No entanto o artigo constitucional permaneceu sem aplicaccedilatildeo ateacute 1995

(tricentenaacuterio da morte de Zumbi) sendo que soacute foi complementado por uma

regulamentaccedilatildeo que previa a criaccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica com condiccedilotildees miacutenimas

para realizar a titulaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas em 2003 Trata-se

do Decreto Federal 4887 que revogou o Decreto Federal anterior 3912 de 2001 Para

esta regularizaccedilatildeo territorial eacute exigida a elaboraccedilatildeo de um relatoacuterio antropoloacutegico ndash

que figura como a primeira peccedila teacutecnica produzida no acircmbito do processo de titulaccedilatildeo

quilombola ndash responsabilidade do Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio por meio

1 Segundo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo consiste no

processo por meio do qual os grupos sociais (no caso da discussatildeo especiacutefica do autor o foco satildeo povos indiacutegenas mas este mesmo raciociacutenio pode ser estendido para as comunidades quilombolas) tornam-se coletividades organizadas enquanto objeto poliacutetico-administrativo de modo que formulam uma identidade proacutepria estabelecem mecanismos de decisatildeo e de representaccedilatildeo e reestruturam as suas formas culturais Assim ldquoas afinidades culturais ou linguiacutesticas bem como os viacutenculos afetivos e histoacutericos porventura existentes entre os membros dessa unidade poliacutetico-administrativa (arbitraacuteria e circunstancial) seratildeo retrabalhados pelos proacuteprios sujeitos em um contexto histoacuterico determinado e contrastados com caracteriacutesticas atribuiacutedas aos membros de outras unidades deflagrando um processo de reorganizaccedilatildeo sociocultural de amplas proporccedilotildeesrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 56)

13

do Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) atraveacutes de suas

superintendecircncias estaduais2

Esta dissertaccedilatildeo busca analisar o processo de reconstituiccedilatildeo das memoacuterias e

da histoacuteria coletiva fruto da emergecircncia identitaacuteria da comunidade negra

autodenominada ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em

Guaiacutera no estado do Paranaacute (PR) Esta comunidade desde 2008 haacute sete anos

iniciou o processo de titulaccedilatildeo de seu territoacuterio junto agrave Superintendecircncia do INCRA no

Paranaacute Este procedimento administrativo que tramita com o nordm 542000010752008-

46 foi marcado pelo desencadeamento de conflitos e incompreensotildees resultando na

produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos em decorrecircncia da anulaccedilatildeo do primeiro

A trajetoacuteria de reconhecimento desta comunidade apresentou desafios especiacuteficos

tendo em vista que sua histoacuteria destoa do imaginaacuterio redutivo e preacute-concebido

comumente atribuiacutedo agraves comunidades quilombolas3 que parte de uma ideia de

fixaccedilatildeo territorial e de uma relaccedilatildeo ancestral e contiacutenua com um mesmo territoacuterio

tradicionalmente ocupado Este grupo quilombola no Paranaacute constroacutei sua identidade

coletiva como iremos analisar ao longo deste trabalho a partir de processos de

deslocamentos geograacuteficos no qual GuaiacuteraPR eacute o ponto de chegada para algumas

famiacutelias e ponto de passagem para outras

O municiacutepio de Guaiacutera estaacute na regiatildeo de fronteira internacional entre o Brasil

e o Paraguai definida pelos contornos do Rio Paranaacute no extremo oeste do estado

Nesta regiatildeo tais famiacutelias chegaram como gostam de narrar no comeccedilo da deacutecada

de 60 a partir de um movimento iniciado no estado de Minas Gerais (MG) passando

2 Esta atribuiccedilatildeo de titulaccedilatildeo dos territoacuterios quilombolas nas Superintendecircncias Regionais do INCRA

eacute executada pelo ldquoServiccedilo de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolasrdquo que integra a ldquoDivisatildeo de Ordenamento da Estrutura Fundiaacuteriardquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrincra-nos-estados Acesso em 291015 3 Um exemplo da forte presenccedila desta loacutegica reducionista no campo juriacutedico eacute o voto do entatildeo Ministro

do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso que foi o relator em 18 de abril de 2012 da Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade 3239 proposta pelo Partido Democratas questionando a constitucionalidade do Decreto Federal 4887 de 2003 O voto do Ministro Relator que abriu o julgamento baseou-se na acepccedilatildeo histoacuterica de quilombo para interpretar o sentido e a abrangecircncia da aplicaccedilatildeo do artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias Caso o julgamento venha a confirmar este mesmo entendimento do Ministro Peluso haveraacute um enorme retrocesso na poliacutetica quilombola com a retirada do Decreto 4887 de 2003 do ordenamento juriacutedico e com a necessidade de que tal direito seja regulamentado por lei a ser aprovada pelo Congresso Nacional no qual a bancada ruralista eacute muito expressiva Endereccedilo eletrocircnico do viacutedeo da sessatildeo de julgamento httpwwwyoutubecomwatchv=ZV94XhbFV6s Acesso em 08012015 Para uma anaacutelise do voto do ministro ver artigo que desenvolvi neste sentido (RIBEIRO 2015)

14

pela regiatildeo oeste do estado de Satildeo Paulo (SP) no municiacutepio de Caiabu4 ndash distante

quarenta quilocircmetros de Presidente Prudente5 que eacute o municiacutepio polo da regiatildeo ndash

onde chegaram em 1956 As narrativas quilombolas destacam que Manoel trabalhou

com a famiacutelia em CaiabuSP na colheita de algodatildeo e amendoim ateacute que ele e mais

alguns parentes resolvem se mudar com o objetivo de comprar terras no extremo

oeste do Paranaacute na regiatildeo dos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa

Em Minas6 viviam no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute considerado o

local de origem do grupo localizado proacuteximo ao iniacutecio da regiatildeo conhecida como ldquoVale

do Jequitinhonhardquo Satildeo as memoacuterias dos mais velhos sobre esta regiatildeo de origem que

constituem a base da histoacuteria deste grupo conforme eacute mobilizada pelas famiacutelias que

vivem atualmente em Guaiacutera e cujos membros importante destacar jaacute nasceram no

estado de Satildeo Paulo ou no Paranaacute ou seja depois do iniacutecio do processo de

descolamento das famiacutelias

Nas narrativas sobre o passado mineiro da comunidade haacute referecircncias a

ancestrais que foram escravizados no garimpo e em fazendas da regiatildeo cujo

povoamento ainda no seacuteculo XVIII surgiu com a exploraccedilatildeo de ouro vinculada agrave

expansatildeo bandeirante paulista com forte presenccedila da escravidatildeo africana (PORTO

2007 p 66) No entanto as memoacuterias da escravidatildeo deste grupo natildeo estatildeo

circunscritas em suas narrativas ao tempo da escravidatildeo jaacute que haacute uma extensatildeo

temporal que expressa uma percepccedilatildeo de continuidade desta experiecircncia por meio

da situaccedilatildeo de viver como escravo (MELLO 2012 p 214)

4 O municiacutepio de CaiabuSP antes distrito de Regente Feijoacute foi criado pela Lei Estadual nordm 2456 de

1953 Nesta localidade desde 1935 com o iniacutecio do povoamento havia plantaccedilotildees de algodatildeo e outras culturas na qual a famiacutelia de Manoel se inseriu a partir de 1956 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio tem uma populaccedilatildeo de 4072 habitantes Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350890ampsearch=||infogrE1ficos-informaE7F5es-completas Acesso em 041115 5 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio de Presidente PrudenteSP tem uma

populaccedilatildeo de 207610 habitantes Seu povoamento foi iniciado ainda no seacuteculo XIX a partir dos deslocamentos de mineiros para a regiatildeo que com o esgotamento das minas de ouro estavam ldquoem busca de terras boas para a lavourardquo Foi elevado agrave categoria de municiacutepio pela Lei nordm 1798 de 1921 desmembrado do municiacutepio de Campos Novos e Conceiccedilatildeo de Monte Alegre Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=354140ampsearch=sao-paulo|presidente-prudente|infograficos-historico Acesso em 041115 Presidente PrudenteSP exerce assim influecircncia sobre os municiacutepios menores do entorno Iremos destacar ao longo do trabalho a passagem das famiacutelias provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pelo estado de Satildeo Paulo por meio da referecircncia agrave ldquoregiatildeo de Presidente Prudenterdquo pois natildeo tive acesso a muitas referecircncias especiacuteficas em relaccedilatildeo agrave forma e ao histoacuterico de ocupaccedilatildeo das famiacutelias nesta regiatildeo embora se indique que Manoel viveu em CaiabuSP 6 Uso a grafia em itaacutelico para a sinalizaccedilatildeo de expressotildees nativas e aspas duplas para as falas dos meus interlocutores e citaccedilotildees bibliograacuteficas

15

Nestes deslocamentos de Minas Gerais ao Paranaacute o movimento destas

famiacutelias negras foi traccedilado em direccedilatildeo primeiro agrave regiatildeo de Presidente PrudenteSP

onde se estabeleceram por alguns anos trabalhando na aacuterea rural em terras

arrendadas No comeccedilo da deacutecada de 60 vislumbraram entatildeo a possibilidade de

adquirirem aacutereas proacuteprias nos loteamentos rurais na regiatildeo de GuaiacuteraPR em contato

com pessoas que trabalhavam como ldquocorretoresrdquo e buscavam pessoas interessadas

no estado de Satildeo Paulo Novamente resolvem se deslocar agora em direccedilatildeo ao

extremo oeste paranaense onde adquirirem aacuterea no loteamento rural de iniciativa da

Sociedade Agropecuaacuteria Industrial e Comercial Maracaju LTDA que tinha sede em

Caxias do Sul Este loteamento eacute atualmente denominado como bairro rural ldquoMaracaju

dos Gauacutechosrdquo distante vinte quilocircmetros do centro comercial do municiacutepio de

GuaiacuteraPR

Estes deslocamentos constitutivos da experiecircncia do grupo satildeo articulados

por meio da atribuiccedilatildeo de uma dimensatildeo moral em relaccedilatildeo ao desrespeito coletivo ao

qual percebem terem sido submetidos e que constitui um aspecto central da

elaboraccedilatildeo de sua identidade coletiva A identificaccedilatildeo deste desrespeito7 ndash percebido

na situaccedilatildeo de precariedade de condiccedilotildees de vida e no preconceito racial sofrido por

estas famiacutelias negras enquanto fator determinante para tais movimentos com o alto

custo emocional gerado pela separaccedilatildeo entre parentes ndash veio agrave tona com o processo

de reconhecimento do grupo como quilombolas Como procuraremos apontar eacute a

trajetoacuteria coletiva de movimento e a relaccedilatildeo com esta origem mineira que constitui a

fonte de pertencimento identitaacuterio que estrutura o processo de etnogecircnese no caso do

quilombo de GuaiacuteraPR8

No entanto esta trajetoacuteria natildeo foi tida como legiacutetima em muitas situaccedilotildees de

contato do grupo com agentes externos inclusive no acircmbito do procedimento de

regularizaccedilatildeo territorial que tramita no INCRA Em contraste com este modo de

elaboraccedilatildeo da identidade que eacute reivindicada a partir da trajetoacuteria de movimento a

interpretaccedilatildeo corrente com base na previsatildeo normativa tem tomado a territorialidade

7 Ao que Arruti denomina ldquoprocesso de identificaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 46) 8 A relaccedilatildeo entre trajetoacuteria e origem segundo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho pode ser compreendida

como dinacircmica constitutiva da etnicidade pois esta supotildee necessariamente uma trajetoacuteria histoacuterica ldquodeterminada por muacuteltiplos fatoresrdquo e uma origem enquanto experiecircncia primaacuteria ldquotraduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplarrdquo Deste modo ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedila Eacute da resoluccedilatildeo simboacutelica e coletiva dessa contradiccedilatildeo que decorre a forccedila poliacutetica e emocional da etnicidaderdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)

16

como epicentro da identidade bem como da mobilizaccedilatildeo por direitos no processo de

reconhecimento puacuteblico dos grupos quilombolas no Brasil Tendo como referecircncia a

previsatildeo constitucional do artigo 68 do ADCT referida acima tem sido pressuposta

uma equivalecircncia entre a ancestralidadecontinuidade da ocupaccedilatildeo do territoacuterio

tradicional e a legitimidade da emergecircncia eacutetnica

A relaccedilatildeo entre ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo tambeacutem tem sido enfocada no debate

atual mais amplo sobre as comunidades tradicionais o que se daacute por meio da

construccedilatildeo de ldquouma articulaccedilatildeo especiacutefica entre certas dimensotildees lsquoespaciaisrsquo e outras

lsquoculturaisrsquordquo Poreacutem eacute necessaacuterio pensar as praacuteticas espaciais desses grupos sociais

sem pressupor ndash como parece mais palataacutevel e administraacutevel pela loacutegica estatal ndash que

eles estejam ldquoa priori (ou a posteriori) destinados ou lsquocondenadosrsquo a se enraizar num

pedaccedilo de solo qualquerrdquo (GUEDES 2013b p 53-56) Portanto

Faz-se necessaacuterio entatildeo contextualizar historicamente as ideias de ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo bem como destacar a contingecircncia da associaccedilatildeo existente entre elas em razatildeo da crescente popularidade de certas narrativas que certamente imbuiacutedas de propoacutesitos criacuteticos e poliacuteticos simpaacuteticos agrave causa das comunidades tradicionais inadvertidamente naturalizam o ldquoenraizamentordquo de tais grupos (GUEDES 2013b p 54)

A naturalizaccedilatildeo do enraizamento dos grupos quilombolas consiste em uma

ldquoidealizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ldquopreacute-desterritorializaccedilatildeordquo esta uacuteltima implicitamente

sugerindo uma estabilidade ldquoterritorializadardquo destes grupos na terra que no contexto

brasileiro eacute antes a exceccedilatildeo do que a regrardquo (GUEDES 2013b p 55) Tal

interpretaccedilatildeo desconsidera no caso da formaccedilatildeo de grupos quilombolas o histoacuterico

de intensa movimentaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra nas deacutecadas poacutes-aboliccedilatildeo em busca

de terras para sua reproduccedilatildeo como campesinato autocircnomo Deste modo o

deslocamento de famiacutelias negras para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente ndash como

GuaiacuteraPR ndash aparece como estrateacutegia de garantia de liberdade sempre ameaccediladas

pelo padratildeo de relaccedilotildees entre brancos e negros em regiotildees com um histoacuterico antigo

e consolidado de escravidatildeo (LIMA 2000) ndash caso de Minas Gerais Sem essa

consideraccedilatildeo mais ampla e complexa restringe-se a possibilidade de abarcar a

pluralidade de formas e contextos nos quais ocorreram a constituiccedilatildeo de territoacuterios

negros e as articulaccedilotildees identitaacuterias quilombolas no Brasil

A ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo por exemplo leva o

nome do patriarca da famiacutelia que liderou o processo de saiacuteda de Minas Gerais

17

chegada e consolidaccedilatildeo do grupo no Paranaacute Esta histoacuteria de deslocamentos implicou

em dificuldades natildeo soacute para a manutenccedilatildeo do contato entre parentes que se

dispersaram como tambeacutem para a reproduccedilatildeo intergeracional da memoacuteria coletiva

Um dos principais desafios dos membros da comunidade passava pela necessidade

de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria coletiva que precisava ser reinterpretada agrave luz da

autoidentificaccedilatildeo como quilombolas O aumento do ciacuterculo de interaccedilatildeo do grupo com

agentes externos e a consequente influecircncia que este processo passou a ter em sua

autoimagem tornava necessaacuteria a construccedilatildeo de um novo lugar de legitimidade para

a sua histoacuteria na medida em que esta se transformava em ldquoprinciacutepio de justificaccedilatildeo

das demandas do presenterdquo (MELLO 2012 p 20) A construccedilatildeo de uma imagem de

si como quilombolas fez surgir entatildeo a necessidade de organizar ldquouma memoacuteria

linear e coerente sobre suas lsquoorigensrsquordquo (ARRUTI 2001 p 243) o que antes natildeo

aparecia como uma questatildeo a ser elaborada de forma sistemaacutetica por essas famiacutelias

No entanto a resposta a esta demanda esbarrou na ausecircncia dos parentes mais

velhos que viveram em Minas pois jaacute haviam falecido ou saiacutedo de GuaiacuteraPR

Esta necessidade de acessar a memoacuteria atraveacutes dos mais velhos e assim

subsidiar as suas narrativas em acircmbito oficial reconhecida pelos(as) proacuteprios(as)

quilombolas intensificou-se diante do questionamento levantado pelo primeiro

relatoacuterio antropoloacutegico9 publicado em 2010 e produzido no acircmbito do procedimento

do INCRA A trajetoacuteria de movimento do grupo foi em um primeiro momento lida

como obstaacuteculo para o reconhecimento puacuteblico de sua autoidentificaccedilatildeo Com o

transcorrer do processo de reconhecimento cada vez mais a busca pela nossa

histoacuteria e o desejo de retomar o contato com os parentes que permaneceram em MG

passam a ser um objetivo principalmente da lideranccedila do grupo Adir e tambeacutem uma

demanda de legitimaccedilatildeo identitaacuteria no contexto mais amplo Isso porque as memoacuterias

do grupo sobre a regiatildeo de origem e os processos de deslocamento que constituiacuteram

sua trajetoacuteria no seacuteculo XX mesmo que acessadas de modo indireto pelos que vivem

9 Como mencionado acima foram realizados dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do Procedimento

Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos que tramita na Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro relatoacuterio realizado levantou questionamentos ao negar a legitimidade da autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombola e de sua trajetoacuteria histoacuterica especiacutefica tendo em vista a natildeo ancestralidade de ocupaccedilatildeo do territoacuterio e a inexistecircncia de registros de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR Este primeiro relatoacuterio foi anulado pelo INCRA bem como foi rejeitado pelos quilombolas Estas questotildees referentes agrave produccedilatildeo dos relatoacuterios seratildeo aprofundadas no capiacutetulo 2

18

hoje na comunidade em Guaiacutera constituiacuteam o eixo da reivindicaccedilatildeo de uma

identidade quilombola

Tendo em vista a natildeo aprovaccedilatildeo do primeiro relatoacuterio eacute soacute a partir do

segundo estudo publicado em 2012 que a identidade quilombola do grupo seraacute

reconhecida e sustentada teoacuterica e etnograficamente Com este estudo a anaacutelise natildeo

seraacute mais baseada em interpretaccedilotildees substancializadas por meio de estereoacutetipos e

substratos culturais Neste debate travado dentro do procedimento administrativo do

INCRA a especificidade da experiecircncia histoacuterica da trajetoacuteria de movimento destas

famiacutelias negras foi uma questatildeo central para ambos os relatoacuterios antropoloacutegicos No

entanto as anaacutelises foram opostas o primeiro entendeu que a identidade do grupo

quilombola natildeo era legiacutetima e estava sendo forjada enquanto o segundo afirmou que

o processo de migraccedilatildeo consistia em mecanismo de resistecircncia agrave experiecircncia de

opressatildeo histoacuterica sofrida

A reivindicaccedilatildeo territorial do grupo no acircmbito deste procedimento

administrativo eacute a ampliaccedilatildeo do que restou da aacuterea que adquiriram em GuaiacuteraPR

por meio de anos de trabalho 85 alqueires onde vivem atualmente em meacutedia vinte

e cinco pessoas (sete famiacutelias)10 A conquista desta aacuterea possibilitou a manutenccedilatildeo

da coesatildeo e da identidade dos grupos familiares que haviam se deslocado de Minas

Gerais Importante ressaltar neste sentido que o acesso agrave terra eacute um instrumento

fundamental para a reproduccedilatildeo fiacutesica econocircmica social e cultural do grupo de modo

que seja viaacutevel a manutenccedilatildeo de uma forma de vida especiacutefica Apesar de poucos

moradores efetivos atualmente na aacuterea a reinvindicaccedilatildeo pela ampliaccedilatildeo territorial eacute

estimada a partir da amplitude de moradores potenciais pois contempla

principalmente a expectativa de retorno de familiares que moraram em GuaiacuteraPR

mas que em algum momento tiveram que se deslocar novamente

Tomando o tema do movimento como eixo desta dissertaccedilatildeo a histoacuteria do

grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos seraacute pensada atraveacutes de uma linha que

desenha o caminhar constitutivo da identidade do grupo (INGOLD 2007) Esta linha

os conecta segundo suas narrativas apontam desde Minas Gerais no tempo da

escravidatildeo ateacute Guaiacutera no presente e segue se ramificando no movimento das

famiacutelias que continuaram se deslocando A opccedilatildeo deste recorte temaacutetico eacute fruto de

10 Este nuacutemero variou durante o periacuteodo de trabalho de campo apontando para a continuidade das dinacircmicas de movimento

19

uma sistematizaccedilatildeo que se demonstrou coerente com base na etnografia realizada e

que retrata uma escolha de anaacutelise como autora mas que principalmente emerge

no processo dialoacutegico com os sujeitos de pesquisa

i ndash Estrutura dos capiacutetulos

No primeiro capiacutetulo ldquoIdentidade em movimentordquo busco analisar como os

processos de deslocamento vivenciados por essas famiacutelias no sentido MG↦SP↦PR

satildeo por elas articulados em termos de dinacircmicas constitutivas da resistecircncia

quilombola uma vez que as experiecircncias de fixaccedilatildeo remetem sobretudo agrave exclusatildeo

social e a relaccedilotildees de preconceito racial Busco refletir sobre como os membros do

grupo de Guaiacutera sentem-se fortemente vinculados e unidos por meio das memoacuterias

construiacutedas sobre a origem mineira e sobre a trajetoacuteria de deslocamentos O sentido

de unidade criado por estas famiacutelias eacute tambeacutem consequecircncia de sua inserccedilatildeo em

Guaiacutera em um contexto considerado por eles como adverso tendo em vista que o

municiacutepio foi colonizado por descendentes de europeus a partir de um vieacutes

modernizador sendo atualmente marcado pelos interesses do agronegoacutecio

Situaccedilotildees de discriminaccedilatildeo racial satildeo constantemente relatadas pelos quilombolas na

interaccedilatildeo com os italianos e alematildees proprietaacuterios vizinhos no bairro rural onde se

localiza a comunidade

O acionamento da identidade quilombola os faz reforccedilar a importacircncia das

narrativas de memoacuteria sobre a regiatildeo de origem do grupo em Minas Gerais o

municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute bem como sobre a chegada das famiacutelias em

GuaiacuteraPR Satildeo memoacuterias elaboradas a partir de um sentimento de continuidade

expresso na ecircnfase atribuiacuteda agraves dificuldades de sobrevivecircncia e agrave busca pela

superaccedilatildeo do sofrimento Esta experiecircncia de estigmatizaccedilatildeo social e racial passa a

ser positivada internamente atraveacutes do autorreconhecimento como quilombolas o

qual cria uma ruptura com a experiecircncia de silenciamento anterior A inserccedilatildeo no

movimento quilombola fez com que o grupo se colocasse em uma nova rede de

relaccedilotildees com agentes externos Adir na posiccedilatildeo de presidente da Associaccedilatildeo

Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) passou a realizar

viagens para encontros e debates sobre a temaacutetica quilombola o que o construiu

como lideranccedila e abriu espaccedilo para o pronunciamento puacuteblico sobre a proacutepria histoacuteria

20

e identidade A possibilidade destas viagens como a que foi realizada por Adir para

Brasiacutelia no Distrito Federal em novembro de 2014 na qual o acompanhei coloca-os

novamente em movimento agora de circulaccedilatildeo em acircmbito poliacutetico

A religiosidade do grupo tambeacutem seraacute abordada no primeiro capiacutetulo na

medida em que eacute permeada por dinacircmicas de movimento (a) deslocamentos

concretos como as viagens religiosas de pagamentos de promessas a saiacuteda de

Manoel Ciriaco de Minas Gerais depois de ter sido viacutetima de agressatildeo maacutegica e a

saiacuteda do filho de Manoel Ciriaco Antocircnio do siacutetio em GuaiacuteraPR para ir morar na

cidade por conta do preconceito religioso que sofriam no bairro rural ldquoMaracaju dos

Gauacutechosrdquo e (b) movimentos natildeo concretos como praacuteticas de devoccedilatildeo cotidianas que

os colocam em relaccedilatildeo com santos Orixaacutes entidades espiacuteritos almas abrindo

assim a possibilidade de se deslocarem entre mundos conectando tempos espaccedilos

linguagens possibilitando curas e orientaccedilotildees etc Aleacutem disso a religiosidade aponta

para dinacircmicas de continuidade marcadas pelas imbricaccedilotildees entre um catolicismo

negro e experiecircncias proacuteprias do universo da umbanda Nas narrativas sobre este

tema tambeacutem eacute possiacutevel perceber a convergecircncia entre as dimensotildees religiosa racial

e social considerando que as praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras satildeo natildeo soacute

desvalorizadas mas socialmente condenadas Esta dimensatildeo cultural religiosa ndash que

os conecta com sua origem mineira ndash tende a natildeo ser enfatizada publicamente pelos

membros da comunidade como um sinal diacriacutetico opccedilatildeo que parece permeada pelo

receio de que isso possa ser usado para reforccedilar um lugar de marginalidade e

estigmatizaccedilatildeo para o grupo

No segundo capiacutetulo ldquoIdentidade quilombola e relatoacuterios antropoloacutegicosrdquo

analiso o novo voacutertice de movimento presente na trajetoacuteria coletiva do grupo que se

consolidou a partir de sua inserccedilatildeo no acircmbito poliacutetico como sujeito de direitos coletivo

o autorreconhecimento como quilombolas A inserccedilatildeo no campo de reivindicaccedilatildeo

como quilombolas colocou-os novamente nos termos de Adir diante de uma longa

caminhada Muitos percalccedilos foram enfrentados no processo de regularizaccedilatildeo

quilombola pelo INCRA ainda em tracircmite tendo em vista os questionamentos

levantados pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido em 2010 Eacute muito faacutecil

iniciar uma conversa de horas com Adir e Joaquim presidente e vice da ACONEMA

a respeito de suas criacuteticas e decepccedilotildees em relaccedilatildeo aos conflitos gerados a partir do

iniacutecio das atividades do INCRA junto agrave comunidade Apesar dos descontentamentos

21

e frustraccedilotildees continuam a alimentar a esperanccedila de uma resoluccedilatildeo futura que lhes

garanta a regularizaccedilatildeo territorial

A pesquisa para elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico ainda em

2009 havia sido liderada pelo professor da Universidade Estadual do Oeste do

Paranaacute (UNIOSTE) Antocircnio Pimentel Pontes Filho o qual questionou a legitimidade

das narrativas quilombolas tomando-as como oportunistas11 O fato de o grupo natildeo

ter uma relaccedilatildeo ancestral com o territoacuterio atual natildeo apresentar informaccedilotildees

consideradas consistentes sobre a existecircncia de ancestrais escravizados e natildeo se

adequar ao modelo de quilombo tiacutepico foi considerado como criteacuterio para negar a

legitimidade da identidade quilombola de modo que foram entendidos ldquoapenasrdquo como

um grupo de trabalhadores rurais negros O primeiro relatoacuterio ndash apoacutes pedidos de

alteraccedilotildees solicitados pelo INCRA mas desconsiderados pelo antropoacutelogo

responsaacutevel ndash foi rejeitado tanto pelos quilombolas quanto pelo INCRA O

desencadeamento de conflitos com os gauacutechos proprietaacuterios vizinhos agrave comunidade

quilombola a situaccedilatildeo de isolamento e a perda de relaccedilotildees de trabalho que

mantinham nas propriedades do entorno foram algumas das consequecircncias geradas

pelo iniacutecio do trabalho do INCRA com o grupo a partir da atuaccedilatildeo da primeira equipe

de pesquisadores

Um segundo relatoacuterio foi entatildeo realizado por uma nova equipe em 2012 a

partir da contrataccedilatildeo pelo INCRA via sistema de licitaccedilatildeo puacuteblica (pregatildeo eletrocircnico)

da empresa Terra Ambiental Com a possibilidade de reelaboraccedilatildeo da pesquisa

antropoloacutegica o historiador da segunda equipe de pesquisadores Cassius Cruz

deslocou-se ateacute Minas Gerais a fim de pesquisar sobre as comunidades quilombolas

da regiatildeo de origem do grupo A partir da memoacuteria coletiva indicada pelo grupo em

Guaiacutera12 muitos pontos em comum com as narrativas dos quilombolas da regiatildeo

mineira foram identificados as referecircncias a personagens histoacutericos comuns a

memoacuteria da estrateacutegia de habitaccedilatildeo em lapas de pedra (tipo de moradia construiacuteda

dentro de cavernascasa de pedra) a mobilidade espacial como processo de

formaccedilatildeo de algumas das comunidades quilombolas mineiras a tendecircncia

11 Este mesmo antropoacutelogo em 2014 foi contratado pelos produtores rurais da regiatildeo para fazer um contralaudo em contestaccedilatildeo ao relatoacuterio antropoloacutegico da FUNAI para a demarcaccedilatildeo de uma terra indiacutegena Avaacute-Guarani em GuaiacuteraPR 12 Conforme me esclareceu Cassius Cruz nenhum quilombola pocircde acompanha-lo nesta oportunidade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em Minas Gerais em decorrecircncia de falta de recursos previstos no contrato com o INCRA

22

endogacircmica dos casamentos bem como possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e a Comunidade Quilombola Vila

Nova localizada no municiacutepio de SerroMG O segundo relatoacuterio fundamentou-se

entatildeo na capacidade de manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social do grupo em continuidade

com sua regiatildeo de origem que entre outros fatores geram o sentimento de

pertencimento comum e identificaccedilatildeo como quilombolas Com a aprovaccedilatildeo do 2ordm

relatoacuterio o reconhecimento da legitimidade da identidade do grupo finalmente ganhou

mais forccedila

Por fim esta possibilidade de buscar mais conhecimento sobre a histoacuteria dos

antepassados articulada por meio da pesquisa produzida pelo segundo relatoacuterio

antropoloacutegico impulsionou aos quilombolas de Guaiacutera e a mim junto com Cassius

Cruz ndash que foi por noacutes convidado para essa empreitada ndash a ir ateacute Minas Gerais com

o objetivo de seguir o caminho de volta da trajetoacuteria de deslocamentos dos

antepassados do grupo A pesquisa por noacutes realizada em Minas Gerais eacute o tema

central do terceiro capiacutetulo denominado ldquoEacute como se noacutes voltasse a paacutegina da nossa

vida do comeccedilordquo Foram duas viagens ateacute a regiatildeo mineira realizadas em marccedilo e

em junho de 2015 A pesquisa acabou entatildeo tornando-se uma etnografia nocircmade e

entrelaccedilando-se com a histoacuteria do grupo A linha de movimento deste grupo ateacute

Guaiacutera somada a sua inserccedilatildeo no movimento quilombola gerou assim um impulso

de reaproximaccedilatildeo no qual tambeacutem nos inserimos que pode ser interpretado na chave

tripla de (a) saiacuteda (b) afirmaccedilatildeo identitaacuteria e (c) retorno Esta linha no entanto natildeo

deve ser entendida como se fechando em um movimento circular mas se constituindo

como uma espiral jaacute que natildeo eacute possiacutevel retornar mais ao mesmo lugar de onde se

saiu tendo em vista que este lugar para o qual se quer voltar jaacute se transformou bem

como os sujeitos envolvidos

Assim o esforccedilo de pesquisa natildeo esteve focado na anaacutelise do grupo

quilombola como totalidade autocontida pois buscou compreender os fluxos e

relaccedilotildees que perpassam esta trajetoacuteria de movimento conectando pessoas e

experiecircncias espalhadas por diferentes locais (ARRUTI 2006 p 35) O trabalho de

campo ritual central na antropologia e parte constitutiva do arqueacutetipo do etnoacutegrafo

ganhou dessa forma contornos especiais Permitiu uma abordagem realizada com

23

os sujeitos de pesquisa a partir de sua historicidade13 de modo que a continuidade

dos movimentos empreendidos pelos quilombolas parece demonstrar a presenccedila de

dinacircmicas de distanciamentos e aproximaccedilotildees com a potencialidade de atualizaccedilatildeo

dos viacutenculos e relaccedilotildees mesmo apoacutes muito tempo de interrupccedilatildeo

Para que a viagem ateacute Minas Gerais pudesse atender os propoacutesitos dos

quilombolas de GuaiacuteraPR inclusive de fortalecimento identitaacuterio os irmatildeos Adir (46)

e Geralda (53) filhos de Manoel Ciriaco e tambeacutem lideranccedilas locais sugeriram que

antes de irmos ateacute Santo Antocircnio do ItambeacuteMG deveriacuteamos passar por Presidente

PrudenteSP Este municiacutepio faz parte da regiatildeo para onde desde a deacutecada de 1980

retornaram os seus irmatildeos mais velhos que jaacute haviam morado com seus pais no

municiacutepio proacuteximo em CaiabuSP Com a inclusatildeo de Presidente PrudenteSP em

nosso roteiro de viagem ateacute Minas Gerais iriam assim retraccedilar o caminho de seus

ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) atraveacutes de seu trajeto de deslocamento

realizado nas deacutecadas de 19501960 agora no sentido inverso de GuaiacuteraPR ateacute

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Em Presidente PrudenteSP moram atualmente os quatro irmatildeos mais

velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) que nasceram

em Minas Gerais e acompanharam seu pai na trajetoacuteria de deslocamento ateacute

GuaiacuteraPR e depois nas deacutecadas de 19801990 estabeleceram-se no estado de Satildeo

Paulo regiatildeo na qual jaacute haviam morado entre a deacutecada de 19501960 antes

chegarem no estado do Paranaacute Dentre os irmatildeos Joatildeo Loriano seria a pessoa mais

indicada para nos acompanhar ateacute Minas Gerais conforme me explicaram Adir e

Geralda

Joatildeo Loriano nascido em 1944 foi o uacutenico filho que Manoel Ciriaco havia

deixado em Minas Gerais quando de laacute saiu em 1956 histoacuteria que conheceremos

mais a fundo no terceiro capiacutetulo O menino ficou aos cuidados de sua avoacute Izidora

(matildee de Manoel) que foi quem o criou desde quando tinha um mecircs e sete dias de

vida pois a matildee da crianccedila Maria Olinda primeira esposa de Manoel havia falecido

na sequecircncia de seu nascimento Manoel segundo relatam natildeo teria tido coragem

de levar o menino junto com ele para natildeo o separar de sua avoacute Izidora Em 1981

quando Joatildeo Loriano jaacute tinha 37 anos seu irmatildeo Antocircnio foi ateacute Santo Antocircnio do

13 ldquoAssim a etnografia histoacuterica converge com a chamada microhistoacuteria justamente ao adotar como

procedimento acompanhar o fio de um destino particular e com ele a multiplicidade de espaccedilos de tempos e de relaccedilotildees em que se inscreverdquo (ARRUTI 2006 p 36)

24

ItambeacuteMG e conseguiu lhe achar convidando-o para ir com ele embora para o

Paranaacute Antocircnio entatildeo levou Joatildeo e sua famiacutelia esposa e filhos para GuaiacuteraPR

regiatildeo em que viveram ateacute 1992 quando decidem residir em Presidente PrudenteSP

Sendo Joatildeo o filho de Manoel que mais tempo viveu em MG ele seria afinal de

contas a pessoa que poderia ter mais facilidade para caccedilar os parentes que

permaneceram na regiatildeo mineira e com os quais perderam contato nas uacuteltimas

deacutecadas Seu Joatildeo quando por noacutes interpelado aceitou o convite para nos

acompanhar na viagem com muito entusiasmo depois de trinta e quatro anos que de

laacute havia saiacutedo sem nunca mais ter conseguido retornar

A intensidade das emoccedilotildees despertadas pelos encontros entre parentes que

jaacute natildeo se sabiam mais vivos ou que ainda natildeo se conheciam contagiou a todos

durante nossa estadia em Santo Antocircnio do Itambeacute e no municiacutepio vizinho SerroMG

Isso permitiu conversas e entrevistas que soacute poderiam ter sido geradas neste

entrelaccedilamento de lugares tempos e pessoas instaurando um regime de

temporalidade especial no qual o presente o passado e o futuro destas famiacutelias

ganhavam novos sentidos ndash concomitantemente As circunstacircncias nas quais estes

depoimentos foram produzidos e colhidos permitiam que a cacircmera de viacutedeo ligada a

maior parte do tempo ou mesmo o gravador de voz natildeo causassem estranhamento

agraves pessoas ndash quando tudo o que se passava estava contido em um momento uacutenico

que deveria ser registrado ndash nestes encontros que marcaram a histoacuteria de vida dessas

pessoas bem como a minha e a de Cassius

De alguma forma o futuro da comunidade quilombola em GuaiacuteraPR era o

retorno a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG a esse passado depois de deacutecadas de

interrupccedilatildeo do contato efetivo Este anseio pelo retorno agrave origem que remete a uma

certa busca pela ldquocomprovaccedilatildeordquo do viacutenculo da comunidade com sua ancestralidade

mineira partiu da proacutepria comunidade no bojo de um processo controverso de

regularizaccedilatildeo territorial mas natildeo de uma demanda ou de uma opccedilatildeo teoacuterica da minha

pesquisa Deve-se levar em conta que a autoidentificaccedilatildeo de grupos como

quilombolas natildeo demanda a demonstraccedilatildeo de viacutenculos genealoacutegicos com ancestrais

escravizados como veremos com calma no segundo capiacutetulo Este modo de

25

compreensatildeo construiria um sentido de origem histoacuterica muito limitado que natildeo estaacute

refletido na regulamentaccedilatildeo do Decreto Federal 48872003 em vigor14

A primeira viagem de quinze dias em marccedilo de 2015 oportunizou que os

quilombolas se tornassem pesquisadores e agentes da construccedilatildeo da sua proacutepria

narrativa histoacuterica Enfim o passado pocircde ocupar o importante papel que jaacute lhe era

conferido como quando os quilombolas de Guaiacutera reforccedilam a continuidade e natildeo a

ruptura em suas construccedilotildees discursivas mesmo que tal continuidade fosse

constituiacuteda por meio de dinacircmicas de movimento e mudanccedila Haacute linearidade portanto

mas natildeo aquela da linha reta

Com as oportunidades promovidas pelas viagens novos caminhos se

abriram A irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda que encontramos morando no

municiacutepio de SerroMG aos cuidados de vizinhos decidiu que queria morar perto da

famiacutelia a convite de sua sobrinha filha de Manoel Ciriaco Jovelina que mora

atualmente em Presidente PrudenteSP Esta decisatildeo de Dona Ana Raimunda

mesmo aos oitenta e sete anos eacute significativa para apontar que o movimento das

famiacutelias natildeo implicou em rompimentos definitivos dos viacutenculos como eacute comum na

regiatildeo mineira do ldquoAlto Vale do Jequitinhonhardquo (GALIZONI 2002)15 mesmo cinquenta

e nove anos depois que Manoel saiu de Minas com parte de sua famiacutelia

Eu e Cassius fomos entatildeo em junho trecircs meses depois da primeira viagem

a Minas Gerais em uma raacutepida aventura de quatro dias Nosso objetivo foi

acompanhar D Jovelina (73) para que buscasse sua tia Ana Raimunda no SerroMG

e D Maria das Dores (70) ndash esposa de Seu Joatildeo Loriano que saiu de Santo Antocircnio

do ItambeacuteMG para acompanha-lo em 1982 ndash para rever suas duas irmatildes ndash D

Zulmira (73) e D Regina (77) ndash que tambeacutem encontramos e fizemos contato na

primeira viagem em marccedilo de 2015 A elas eu e Cassius haviacuteamos prometido que

ajudariacuteamos a organizar estes reencontros Por fim realizei mais uma uacuteltima viagem

de campo para Presidente PrudenteSP em agosto de 2015 para entrevistar D Ana

Raimunda depois de dois meses que jaacute estava morando com sua sobrinha D

Jovelina

14 Segundo seu artigo 2o ldquoconsideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos para os

fins deste Decreto os grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo 15 Regiatildeo muito proacutexima a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

26

ii ndash Notas sobre a pesquisa

Importante neste momento finalizada a siacutentese dos temas principais dos

capiacutetulos desta dissertaccedilatildeo refletir sobre como foi a minha entrada em campo as

condiccedilotildees e as escolhas da pesquisa O meu contato com o grupo se iniciou pelo

nuacutecleo de famiacutelias em Guaiacutera trecircs anos antes da presente pesquisa realizada entre

2014 e 2015 Nos anos de 2011 e 2012 atuei como assessora juriacutedica em um setor

especializado em direitos humanos do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute

(MPPR) em decorrecircncia da minha formaccedilatildeo como bacharel em direito Tal setor tinha

como parte de suas atividades a articulaccedilatildeo com as comunidades quilombolas do

estado visando mediar as suas demandas por acesso a direitos junto aos oacutergatildeos

puacuteblicos Tornando-me uma referecircncia enquanto pessoa que trabalha dentro do

Estado junto ao grupo busquei com a pesquisa de mestrado um reposicionamento

em campo saindo da figura de agente estatal que traz a resposta para construir

relaccedilotildees de horizontalidade no conviacutevio cotidiano

Para mim o reposicionamento tambeacutem tinha uma dimensatildeo pessoal jaacute que

eu ainda vivo essa experiecircncia de transiccedilatildeo profissional entre o direito e a

antropologia Um novo caminho que em muito tem enriquecido e desafiado a minha

formaccedilatildeo inicial a qual tambeacutem influenciou na direccedilatildeo dos meus interesses de

pesquisa Tal interesse aparece por exemplo na anaacutelise do processo de

regularizaccedilatildeo territorial quilombola em suas relaccedilotildees com o universo juriacutedico

problematizado especialmente no capiacutetulo 2 Interessante observar neste sentido

que se a identidade do grupo natildeo eacute produzida a partir do Estado por outro lado ela

teraacute que ser modulada com o Estado no processo de reconhecimento enquanto

sujeito poliacutetico e cultural especiacutefico (MARCUS 1991)

Sobre o tema do processo no INCRA as entrevistas selecionadas foram na

maioria realizadas com os homens mais envolvidos com a poliacutetica e a representaccedilatildeo

puacuteblica do grupo A predominacircncia da voz masculina no segundo capiacutetulo natildeo reflete

no entanto a caracteriacutestica da pesquisa em geral Em todos os lugares que a pesquisa

percorreu seja em GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP e Santo Antocircnio do Itambeacute ou

SerroMG enquanto pesquisadora mulher minha inserccedilatildeo se deu pelo universo

feminino o que me possibilitou uma reflexividade muacutetua com essas mulheres

27

quilombolas Por elas fui recebida de modo muito hospitaleiro e natildeo demorei a criar

viacutenculos

Ao fazer da subjetividade um meio de conhecimento a antropologia evidencia

como os ldquodadosrdquo estatildeo prenhes de representaccedilotildees e satildeo a proacutepria anaacutelise

construiacutedos no corte possiacutevel do etnoacutegrafo A reflexatildeo etnograacutefica constroacutei portanto

aquilo que descreve bem como constroacutei o modo de relacionamento que produz o

conhecimento pois natildeo haacute um real que jaacute estaacute laacute no campo O tema e os recortes do

trabalho se delinearam como resultado da construccedilatildeo da proacutepria etnografia por isso

soacute puderam ser definidos no final da pesquisa o que prova que sair a campo vale a

pena (CALAVIA SAEZ 2001 597-599) Essas experiecircncias etnograacuteficas satildeo antes

de tudo experiecircncias de vida perpassadas por relaccedilotildees de afetividade e mediadas

pela compreensatildeo de que a expressatildeo da identidade ganha contornos especiacuteficos

conforme os contextos com os quais o grupo interage (MELLO 2012 p 117)

Em Guaiacutera realizei trabalho de campo por periacuteodos equivalentes em dois locais

(siacutetio e Vila Eletrosul) somando quarenta dias No periacuteodo em que estive no ldquosiacutetiordquo

(como eles mesmos denominam o local onde fica a ldquocomunidaderdquo16) foi importante eu

ter sido hospedada na casa de Joaquim e Eva e natildeo na casa de Adir presidente da

associaccedilatildeo pois isso me possibilitou expandir e aprofundar o contato com outras

pessoas aleacutem da lideranccedila com quem jaacute tinha mais proximidade desde a eacutepoca da

minha atuaccedilatildeo no Ministeacuterio Puacuteblico Eva minha anfitriatilde e suas duas filhas moccedilas

Jaqueline (20) e Janaina (14) foram as minhas principais referecircncias de conviacutevio

Quando natildeo estive no siacutetio fiquei hospedada na casa do casal Geralda e

Guaraacute (apelido de Antocircnio) em uma vila localizada na periferia de Guaiacutera

denominada Vila Eletrosul A casa de Geralda tem um importante papel para seus

irmatildeos que moram no siacutetio quando eles precisam resolver questotildees na cidade Deste

modo minha estadia na Vila Eletrosul me permitiu visualizar as dinacircmicas de

interaccedilatildeo entre urbano e rural o contexto perifeacuterico do municiacutepio de Guaiacutera aleacutem de

me aprofundar na religiosidade umbandista jaacute que Geralda e Guaraacute satildeo os dois

membros do grupo que efetivamente participam de um terreiro de Umbanda

localizado no municiacutepio vizinho Terra Roxa Ademais Geralda eacute benzedeira e

16 Deve-se levar em conta a criacutetica em relaccedilatildeo ao fato de que o termo aciona ldquoum estereoacutetipo de comunidade relativamente igualitaacuteria harmocircnica coesa solidaacuteria com projetos poliacuteticos comuns (em siacutentese uma visatildeo romacircntica ndash e pode-se dizer cristatilde ndash de comunidade)rdquo (PORTO 2012 41) Atualmente este termo se tornou um conceito ecircmico

28

mobiliza uma forte rede de reciprocidade com seus vizinhos sendo um referencial

local de sabedoria conselhos e cura

Joaquim (55) Geralda (52) Adir (45) e Joatildeo Aparecido (42) satildeo irmatildeos filhos

de Manoel Ciriaco dos Santos e sua segunda esposa Ana Rodrigues dos Santos o

casal fundador da comunidade em Guaiacutera hoje jaacute falecidos Estes quatro irmatildeos tecircm

um importante papel na manutenccedilatildeo do grupo quilombola atualmente satildeo os dentre

os herdeiros do ldquoVelho Maneacuterdquo os que permaneceram na propriedade que foi

comprada por ele (e no caso de Geralda moradora da periferia do mesmo municiacutepio

que permanece com viacutenculos cotidianos com a famiacutelia) Destes quatro irmatildeos os trecircs

homens moram no siacutetio e tocam a produccedilatildeo da horta e outros plantios aleacutem da criaccedilatildeo

de pequenos animais estando diretamente engajados no projeto de manutenccedilatildeo da

comunidade quilombola com a geraccedilatildeo de renda no proacuteprio territoacuterio e com o

processo de titulaccedilatildeo no INCRA Outro nuacutecleo familiar que permanece na comunidade

satildeo os trecircs filhos (com seus cocircnjuges e filhos) e a viuacuteva de Joseacute Maria (irmatildeo mais

velho de Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido) que faleceu em 2009 durante os

conflitos da comunidade com os vizinhos gauacutechos Mais duas famiacutelias durante o

periacuteodo que estive fazendo trabalho de campo na comunidade eram de agregados

ao nuacutecleo familiar por meio do casamento entre Adir e Solange Jaqueline ndash enteada

de Adir que mora com seus trecircs filhos pequenos ndash e D Luzia sogra de Adir com o

marido e um de seus netos

Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula por exemplo preferiu se separar da esposa

que se mudou para Presidente PrudenteSP Kelly com os dois filhos do casal em

busca de trabalho do que ir com ela e deixar a comunidade Sobre esta possibilidade

Joatildeo Aparecido comentou o seguinte

Esta luta aqui natildeo daacute pra deixar o Adir e o Joaquim Essa luta que noacutes viemos hoje abandonar assim tambeacutem natildeo daacute neacute Dandara Falei ldquodeixar eles Natildeo natildeo vira natildeo noacutes comeccedilamos noacutes temos que ir ateacute o final e meu pai sofreu muito pra comprar esse pedacinho de chatildeo aquirdquo Aiacute eu falei assim ldquocomeccedila a sair um sair o outro daqui uns dias aiacute acabou a comunidaderdquo

Estes quatro irmatildeos filhos de Manoel Ciriaco ndash que continuaram morando na

comunidade em GuaiacuteraPR ndash mantecircm contato por telefone celular aleacutem de algumas

visitas esparsas com seus quatro irmatildeos mais velhos que moram em Presidente

PrudenteSP como citado acima Laacute eles tecircm mais uma irmatilde tambeacutem filha de Manoel

e Ana Eurides (64) e aleacutem dos trecircs irmatildeos que satildeo filhos do primeiro casamento de

29

Manoel Ciriaco dos Santos com Maria Olinda Olegaacuterio (79) Jovelina (74) e Joatildeo

Loriano (71) Os quatro irmatildeos que moram no municiacutepio paulista satildeo nascidos em

Minas Gerais Santo Antocircnio do Itambeacute antes de seu pai decidir sair de sua terra natal

e iniciar uma trajetoacuteria de deslocamentos

Para aleacutem do trabalho de campo em Guaiacutera o processo de mapeamento

desta rede de parentesco realizado por meio de duas viagens a Minas Gerais foi fruto

da minha parceria de pesquisa com Cassius Cruz Ele doutorando em ciecircncias sociais

na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ndash aleacutem de ter participado da

produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico publicado em 2012 ndash neste momento

pesquisa em sua tese o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco

quilombola Com a confluecircncia dos temas de pesquisa e o seu compromisso pessoal

de se aprofundar no estudo por ele realizado anteriormente em Minas Gerais sobre a

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Cassius se interessou em somar

esforccedilos para viabilizar que os proacuteprios quilombolas pudessem ir em busca de seus

parentes e assim realizar o objetivo do grupo de compreender melhor a trajetoacuteria de

seus antepassados

O fato no entanto das viagens para Minas Gerais soacute terem se concretizado

em marccedilo e junho de 2015 apoacutes a minha banca de qualificaccedilatildeo fez com que natildeo

fosse possiacutevel o aprofundamento necessaacuterio diante da riqueza do material de

pesquisa coletado e da intensidade das experiecircncias que este trabalho de campo me

proporcionou o que tambeacutem demanda uma maturaccedilatildeo para a posterior reflexatildeo

atraveacutes da escrita Assim de um uacuteltimo capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo acredito que este

material possa vir a se transformar no iniacutecio de uma nova pesquisa que poderaacute ser

desdobrada posteriormente e que me permitiraacute a atenccedilatildeo e o cuidado que esta

experiecircncia de trabalho de campo merece

Enfim a escrita desta dissertaccedilatildeo colocou-me diante do desafio de lidar com

o intervalo entre a pesquisa etnograacutefica e o texto antropoloacutegico o que confirma a

dimensatildeo parcial da anaacutelise e o caraacuteter inesgotaacutevel da experiecircncia Importante

ressaltar neste sentido a desconstruccedilatildeo de um lugar de objetividade na teoria

antropoloacutegica para reconhecer o texto como uma anaacutelise perspectiva relacional e

contextual17 A partir da experiecircncia deste grupo quilombola busco analisar nas

17 A criacutetica de Geertz por exemplo direciona-se a certas estrateacutegias de escrita em que o antropoacutelogo

natildeo se coloca no texto ndash ao construiacute-lo como se sua experiecircncia pudesse ser transposta em uma ldquojanela de cristalrdquo revelando supostamente o mundo laacute fora como ele ldquorealmente eacuterdquo Tal estrateacutegia buscaria

30

paacuteginas que seguem como a construccedilatildeo de um ldquonoacutes quilombolasrdquo neste caso

especiacutefico aponta para dinacircmicas de movimento que natildeo dissolvem mas ao

contraacuterio sustentam o pertencimento coletivo

credibilidade em relaccedilatildeo a questionamentos fundados em paracircmetros objetivistas pautados em criteacuterios das ciecircncias exatas mas para Geertz a antropologia estaria muito mais proacutexima dos ldquodiscursos literaacuteriosrdquo do que dos ldquocientiacuteficosrdquo (GEERTZ 2009)

31

1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO

11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacute E GUAIacuteRA DOIS PONTOS DE UMA LINHA

O percurso de deslocamento das famiacutelias negras em questatildeo pode ser

pensado como uma linha que conecta Santo Antocircnio do ItambeacuteMG agrave GuaiacuteraPR

distantes aproximadamente mil e seiscentos quilocircmetros O conceito de ldquolinhardquo aqui

trazido tem inspiraccedilatildeo nas contribuiccedilotildees do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold como

seraacute melhor abordado no item 12 O que eacute importante retermos por enquanto eacute que

a ideia de linha aqui natildeo remete a uma reta mas a uma trajetoacuteria de movimento que

tem uma dinacircmica e um traccedilado especiacuteficos

Em seu livro Lines a brief history o autor se propotildee a realizar uma

ldquoantropologia comparativa da linhardquo e delinear um campo de reflexatildeo que aglutina

aspectos das atividades humanas cotidianas como falar gesticular e caminhar ndash

subsumidos pela caracteriacutestica comum de geraccedilatildeo de linhas (INGOLD 2007) A partir

do caminhar o deslocamento constitui uma linha que pode ser tanto aquela que

descobre o seu percurso enquanto o caminho eacute percorrido ndash ou seja uma jornada que

natildeo tem um comeccedilo ou um fim oacutebvios ndash em contraste com um outro tipo de linha a

linha reta ndash que faz a conexatildeo entre pontos e que estaacute fragmentada em destinaccedilotildees

sucessivas preacute-determinadas como uma sequecircncia de compromissos

assemelhando-se a um mapa de rota onde se vecirc tudo de uma vez (2007 p 72-103)

No caso do grupo em questatildeo a trajetoacuteria de deslocamento estaacute muito mais proacutexima

da primeira caracterizaccedilatildeo de linha como jornada na qual o movimento se desenvolve

como processo de descoberta e de interaccedilatildeo como no caminho de Minas Gerais ateacute

o Paranaacute passando antes pelo estado de Satildeo Paulo

Eacute em GuaiacuteraPR que parte de um grupo maior de parentes ndash composto por

unidades familiares que estatildeo espalhadas por todo canto ndash passou a se reconhecer

como quilombola e a refletir sobre sua proacutepria trajetoacuteria histoacuterica Alguns dados

estatiacutesticos nos ajudam a compreender o perfil atual de GuaiacuteraPR e a histoacuteria da

inserccedilatildeo do grupo quilombola neste municiacutepio De acordo com o uacuteltimo censo de 2010

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Guaiacutera tem uma populaccedilatildeo

32

de 30704 pessoas18 Do total 28206 habitantes estatildeo na aacuterea urbana ou seja 92

da populaccedilatildeo e apenas 2498 8 na aacuterea rural (IPARDES 2013 p10) Em termos

raciais19 apenas 269 (828 pessoas) da populaccedilatildeo se declarou como ldquopretardquo

3658 (11233 pessoas) como ldquopardardquo 166 (512 pessoas) como ldquoindiacutegenardquo e

217 (669 pessoas) como ldquoamarelardquo A predominacircncia da populaccedilatildeo que se declarou

ldquobrancardquo que representa quase 57 do total (17462 pessoas) aponta para a poliacutetica

de colonizaccedilatildeo e povoamento ocorrido no iniacutecio do seacuteculo XX marcado pelo estiacutemulo

agrave vinda de colonos da regiatildeo sul principalmente descendentes de italianos e alematildees

FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o Mato Grosso do Sul FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 718 [p 25]

A expansatildeo dos colonos e das colonizadoras gauacutechas em direccedilatildeo agrave Guaiacutera

ocorreu a partir da deacutecada de 1930 ndash viabilizada como poliacutetica de Estado ndash sob o

slogan de ldquoMarcha para o Oesterdquo Este estiacutemulo estatal veio com o entatildeo Presidente

da Repuacuteblica Getuacutelio Vargas que tomou como base a ideia de ldquovazio demograacuteficordquo e

a referecircncia ao ldquoespiacuterito do bandeiranterdquo Tal poliacutetica tinha como um de seus objetivos

a nacionalizaccedilatildeo da chamada ldquofronteira guaranirdquo (regiatildeo fronteiriccedila entre Brasil

Paraguai e Argentina) que estava ainda dominada pelos interesses estrangeiros por

18 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 140115 19 Dados sobre Populaccedilatildeo Censitaacuteria - Cor Raccedila disponiacuteveis em httpwwwipardesprgovbrimpindexphp Acesso em 140115 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=410880ampidtema=91ampsearch=parana|guaira|censo-demografico-2010-resultados-da-amostra-religiao- Acesso em 20022015

33

meio do sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate desenvolvido na regiatildeo entre o final do

seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX20

Esta poliacutetica de colonizaccedilatildeo significou o avanccedilo sobre o territoacuterio da

populaccedilatildeo nativa da etnia Guarani que jaacute tinha sido submetida desde o seacuteculo XVI

agraves reduccedilotildees jesuiacuteticas21 ao processo de miscigenaccedilatildeo e ao trabalho escravo nas

obrages O povoamento da regiatildeo no seacuteculo XX reforccedilou assim o processo de

desterritorializaccedilatildeo desta populaccedilatildeo cujos desdobramentos se refletem nos conflitos

entre os proprietaacuterios do municiacutepio e o povo indiacutegena autodenominado ldquoAvaacute-guaranirdquo22

que vieram agrave tona no iniacutecio do seacuteculo XXI Nos uacuteltimos anos houve um processo de

forte mobilizaccedilatildeo e retorno desta populaccedilatildeo agrave Guaiacutera e ao municiacutepio vizinho Terra

Roxa com o objetivo de reivindicar a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio guarani na regiatildeo

Como eacute possiacutevel observar no censo de 2010 ao qual fizemos referecircncia

acima 166 da populaccedilatildeo guairense (512 pessoas) se declarou ldquoindiacutegenardquo o que

aponta para este processo de reorganizaccedilatildeo das famiacutelias ldquoavaacute-guaranirdquo Desde o final

dos anos 1980 tais famiacutelias passam a ldquose reagrupar e organizar novamente em

aldeamentos os tekoha em busca de reconstituir o espaccedilo onde eacute possiacutevel viver

segundo o modo de ser guaranirdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)23

20 As obrages foram um sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate e madeira tiacutepico da regiatildeo entatildeo

dominada por interesses hispano-platinos que utilizou o trabalho escravo da populaccedilatildeo nativa guarani Tais empreendimentos se beneficiavam do isolamento estrateacutegico da regiatildeo o que evitava a possibilidade de questionamento da violecircncia na qual se dava o modo de exploraccedilatildeo do trabalho Neste contexto a Companhia Mate Laranjeira exercia importante papel econocircmico e eacute considerada como a fundadora do distrito de Guaiacutera em 1902 que se torna sua sede Neste distrito a empresa construiu um porto por meio do qual escoava os sacos de erva-mate e as toras de madeira extraiacutedas (WACHOWICZ 1987 p 52 141) 21 O histoacuterico de colonizaccedilatildeo do municiacutepio de Guaiacutera remonta ao seacuteculo XVI quando a regiatildeo do antigo

ldquoGuairaacuterdquo jaacute era alvo do interesse dos colonizadores Entre 1608 e 1767 foram fundadas na regiatildeo mais de uma dezena de reduccedilotildees jesuiacuteticas sendo uma das mais importantes a ldquoCiudad Real del Guayraacuterdquo criada em 1554 Em 1600 ldquoas autoridades administrativas espanholas sediadas em Assunccedilatildeo acham por bem transformar a Ciudad Real em sede da Proviacutencia de Guairaacute () Eacute atraveacutes da Proviacutencia del Guairaacute e pela atividade missioneira dos jesuiacutetas que a Coroa espanhola amplia a sua presenccedila e o seu campo de atuaccedilatildeo no atual Oeste paranaenserdquo (COLODEL 2008 p 38) Nesta localidade atualmente estaacute localizado o municiacutepio de Terra Roxa vizinho ao municiacutepio de Guaiacutera 22 A estimativa atual da lideranccedila Guarani cacique Ilson Soares conforme me relatou eacute que em torno

de mil guaranis residem na regiatildeo de Guaiacutera e Terra Roxa 23 ldquoDesta forma no final dos anos 1990 intensifica-se o processo de judicializaccedilatildeo das ocupaccedilotildees

indiacutegenas inicialmente com accedilotildees movidas pela Itaipu seguida de inuacutemeros pleitos movidos por particulares que passam a reivindicar a posse das aacutereas indiacutegenas as quais possuem tiacutetulos registrados nos cartoacuterios municipais A intervenccedilatildeo intensa do Ministeacuterio Puacuteblico Federal para a promoccedilatildeo dos direitos coletivos dos iacutendios acaba por repercutir em decisotildees judiciais favoraacuteveis agrave permanecircncia dos aldeamentos indiacutegenas em algumas aacutereas Aleacutem disso as sentenccedilas determinaram agrave Uniatildeo e agrave FUNAI que promovessem os estudos necessaacuterios para identificaccedilatildeo e delimitaccedilatildeo das terras de ocupaccedilatildeo tradicional Avaacute-Guarani na regiatildeo deflagrando processos que ainda se encontram em tracircmite no acircmbito da Fundaccedilatildeordquo rdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)

34

FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa FONTE Projeto de pesquisa ldquoA questatildeo indiacutegena no oeste do Paranaacute e a reconstruccedilatildeo do territoacuterio Avaacute-Guaranirdquo24 (2014) (Grifos meus)

24 O Projeto eacute apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPQ) e desenvolvido no curso de Direito da PUC-PR O mapa foi elaborado com base nos dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Violaccedilotildees dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paranaacute (1946-1988) Subsiacutedios para a Comissatildeo Nacional da Verdade Ver httpbdtrabalhoindigenistaorgbrdocumentoviolaC3A7C3B5es-dos-direitos-humanos-e-territoriais-dos-guarani-no-oeste-do-paranC3A1-1946-1988-sub Acesso em 07 de janeiro de 2015

35

No mapa apresentado estatildeo identificadas as localizaccedilotildees das tekoha

existentes nos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa bem como a presenccedila da

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos destacada no canto esquerdo

inferior do mapa No atual contexto de reivindicaccedilatildeo territorial tanto por indiacutegenas

como por quilombolas em Guaiacutera os proprietaacuterios rurais da regiatildeo tecircm se articulado

e promovido fortes reaccedilotildees em forma de protestos e de articulaccedilotildees poliacuteticas para se

oporem a essas reivindicaccedilotildees Deve-se ter em conta para compreender esta

mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais25 que ldquoa demarcaccedilatildeo de territoacuterios e o

reconhecimento de identidades tradicionais satildeo uma forma de resistecircncia mais eficaz

e imediata agraves lsquoagroestrateacutegiasrsquo do que outras modalidades de luta e reivindicaccedilatildeo

fundiaacuteriasrdquo (GUEDES 2013b p 43)

A forccedila destes atores organizados localmente tambeacutem por meio do Sindicato

Rural patronal deve-se ao perfil econocircmico do municiacutepio estruturado na produccedilatildeo de

ldquocommoditiesrdquo para exportaccedilatildeo A topografia plana e a boas condiccedilotildees de fertilidade

do solo possibilitaram o forte desenvolvimento do agronegoacutecio na regiatildeo com o

processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura26 Deste modo a regiatildeo oeste do Paranaacute

apresenta atualmente intensa atividade do agronegoacutecio o que fez com que o preccedilo

da terra aumentasse muito nos uacuteltimos anos um alqueire na regiatildeo jaacute estaacute valendo

em meacutedia cem mil reais Esta valorizaccedilatildeo do preccedilo da terra eacute percebida de forma

expressiva pelos membros da comunidade quilombola Em 2003 depois de dez anos

que os trecircs irmatildeos mais velhos Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano saiacuteram da

comunidade para morar em Presidente PrudenteSP quando resolveram vender 15

alqueires da aacuterea adquirida por seu pai conseguiram o valor equivalente a dezoito mil

reais por alqueire Conforme relato do filho caccedilula do segundo casamento de Manoel

Joatildeo Aparecido em seis meses o preccedilo do alqueire jaacute tinha subido para o equivalente

a cinquenta mil reais de modo que seus irmatildeos demonstram arrependimento por

terem vendido a aacuterea que lhes cabia da heranccedila por um valor tatildeo baixo

Segundo dados do IBGE referentes agrave produccedilatildeo agriacutecola municipal de Guaiacutera

em 2013 as trecircs principais culturas foram o milho (182470 toneladas) depois a soja

25 Esta articulaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais tem ocorrido em Guaiacutera e no estado do Mato Grosso do

Sul por exemplo por meio da ldquoOrganizaccedilatildeo Nacional de Garantia do Direito de Propriedaderdquo 26 Conforme informaccedilotildees trazidas pelo antropoacutelogo da FUNAI Diogo Oliveira no I Congresso ldquoA questatildeo indiacutegena no Oeste do Paranaacute e a Reconstruccedilatildeo do Territoacuterio Guaranirdquo realizado em novembro de 2014 em Foz do Iguaccedilu 80 das terras de Guaiacutera em extensatildeo (natildeo em nuacutemero) pertencem a grandes proprietaacuterios rurais e em 90 das terras agricultaacuteveis planta-se milho e soja

36

(110425 toneladas) e por uacuteltimo o trigo (990 toneladas)27 Por outro lado diante deste

cenaacuterio adverso agrave efetivaccedilatildeo de direitos territoriais Avaacutes-Guarani e quilombolas tecircm

se fortalecido de modo articulado por meio do contato gerado entre as lideranccedilas no

acircmbito do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA) 28 com visitas frequentes dos

quilombolas nas aldeias indiacutegenas para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos Neste

cenaacuterio tais grupos sociais tentam colocar na agenda puacuteblica dominada pelos

interesses hegemocircnicos do agronegoacutecio importantes debates e disputas a partir de

outras loacutegicas de uso e de relaccedilatildeo com a terra29

O contexto de Guaiacutera eacute visto como adverso pelos quilombolas ao reforccedilar um

discurso regional predominante que vecirc o agronegoacutecio como expressatildeo do

desenvolvimentordquo e da ldquoevoluccedilatildeordquo e que desloca por conseguinte indiacutegenas e

quilombolas para o passado por meio do que pode ser qualificado como um

ldquorebaixamento diacrocircnico do outrordquo estabelecendo uma sinoniacutemia entre diferenccedila e

distacircncia temporal (FABIAN 2013) Vaacuterias vezes comentaram que na regiatildeo Sul do

Brasil existe muito mais discriminaccedilatildeo contra negros do que na regiatildeo de onde satildeo

provenientes jaacute que laacute a expressividade da populaccedilatildeo negra eacute muito maior Esta

perspectiva por eles articulada pode ser entendida em relaccedilatildeo ao processo de

consolidaccedilatildeo da imagem de um Paranaacute eminentemente europeu pelas diversas

esferas do poder e da sociedade paranaense que tende a negar o reconhecimento

27 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 20022015 Outra comunidade quilombola que enfrenta um contexto de grande impacto do agronegoacutecio no Paranaacute (centro-sul) eacute a Comunidade Paiol de Telha (HARTUNG 2004) 28 O PAA consiste em um programa do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social (MDS) criado em 2003 a partir do Programa Fome Zero Por meio desta poliacutetica puacuteblica oacutergatildeos estatais puderam adquirir com dispensa de licitaccedilatildeo produtos da agricultura familiar e doaacute-los para grupos em situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar No caso de Guaiacutera os quilombolas por meio de contrato com a Secretaria de Trabalho e Economia Solidaacuteria (SETS) atuam como produtores dos alimentos e entregam essas doaccedilotildees diretamente agraves aldeias indiacutegenas de Guaiacutera e Terra Roxa 29 Este estreito contato parece ser decorrente do ldquoefeito provaacutevel de certos mecanismos histoacutericos

comuns de repressatildeo controle e territorializaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 32) Ademais tanto no caso dos indiacutegenas da etnia Guarani como no caso dos quilombolas de Guaiacutera a presenccedila do histoacuterico de deslocamentos na trajetoacuteria destes grupos aparece como argumento mobilizado pelos articuladores do movimento contraacuterio agrave demarcaccedilatildeo territorial enquanto elemento deslegitimador das reivindicaccedilotildees destas comunidades No caso dos Guaranis a partir da deacutecada de 70 com a mecanizaccedilatildeo da agricultura sua matildeo-de-obra passou a ser desprezada e aquelas famiacutelias que resistiram ao processo de colonizaccedilatildeo foram se estabelecendo apenas nas margens do Rio Paranaacute pela pressatildeo e esbulho territorial que sofreram A maior parte foram afugentadas para o leste paraguaio sob grande violecircncia dos oacutergatildeos do Estado processo no qual o Estado ditatorial brasileiro participou ativamente Trata-se portanto de um processo de migraccedilatildeo forccedilada que ocorreu nas uacuteltimas deacutecadas e que contrasta com a dinacircmica de deslocamentos proacuteprios da etnia ligados a perspectivas e significados cosmoloacutegicos (CARVALHO 2013)

37

agraves demais alteridades e grupos eacutetnicos no estado Neste sentido afirma a antropoacuteloga

Mirian Hartung

A invisibilidade tornou-se um dos aspectos mais relevantes da identidade social dos afrodescendentes no sul do Brasil O projeto de colonizaccedilatildeo com europeus implantado entre meados do seacuteculo XIX e o XX foi a sua contraface Em um seacuteculo foram concedidos aos colonos europeus todas as primazias sobre as terras os capitais as oportunidades de trabalho e o crescimento econocircmico Este modelo seletivo e excludente orientou as poliacuteticas puacuteblicas as accedilotildees particulares e a voz dos cientistas (2004 p 7)

Em relaccedilatildeo aos desdobramentos deste modelo de colonizaccedilatildeo regional por

descentes de europeus implantado em Guaiacutera a partir da deacutecada de 1930 Joaquim

(55 anos) tambeacutem filho de Manoel Ciriaco do segundo casamento eacute pessimista no

tocante agraves mudanccedilas em curso no mundo rural O que seus vizinhos enxergam como

progresso segundo ele me relatou eacute a produccedilatildeo de transgecircnicos na base de

veneno30 o uso de sementes esteacutereis fabricadas em laboratoacuterio que implicam no

pagamento de lsquordquoroyaltiesrdquo para as empresas multinacionais Muitas plantas agriacutecolas

satildeo resistentes ao veneno que acaba por sua vez com o mato natildeo havendo

necessidade capinar Assim natildeo tem mais emprego nas plantaccedilotildees Eacute a maacutequina que

planta a semente uma por uma Denunciou entatildeo o fato de que quando os vizinhos

passam o veneno (e eles acompanham estes ciclos praticamente todos juntos) soacute

com o cheiro do veneno as folhas das plantas que estatildeo na aacuterea do grupo quilombola

tambeacutem se enrolam em consequecircncia

Estes satildeo exemplos entre outros que Joaquim citou como modificaccedilotildees

alarmantes de modo que os mais jovens ressente-se natildeo chegam sequer a

conhecer como era antes quando a regiatildeo de Guaiacutera era tomada pela mata fechada

e a produccedilatildeo era manual familiar pautada em uma loacutegica de valorizaccedilatildeo do trabalho

na terra do alimento da solidariedade Ao olhar para o passado Joaquim apontou

que na eacutepoca que Seu Manoel comprou aquela terra no iniacutecio da deacutecada de 1960 o

preccedilo era muito barato e aleacutem disso pagava-se como podia ao longo dos anos Na

eacutepoca Manoel natildeo teria comprado uma aacuterea maior porque natildeo teriam como tocar

aquele tanto de terra o que indica que a loacutegica do grupo era de ocupaccedilatildeo efetiva da

30 A imagem de Guaiacutera estaacute muito associada ao contrabando de produtos do Paraguai Um dos

produtos que satildeo contrabandeados e afetam diretamente a comunidade quilombola satildeo os defensivos agriacutecolas comercializados no Paraguai e proibidos no Brasil para uso em plantaccedilotildees como no caso do MPK 40 que foi a mim denunciado pelos quilombolas e por mais dois servidores puacuteblicos que trabalham no municiacutepio

38

aacuterea para produccedilatildeo familiar Em relaccedilatildeo ao futuro Joaquim afirmou que soacute Deus para

colocar um limite nesta ambiccedilatildeo nas alteraccedilotildees feitas na Sua criaccedilatildeo

No contexto das dificuldades que enfrentam no municiacutepio ainda mais

significativa eacute a relevacircncia atribuiacuteda pelos quilombolas agrave memoacuteria coletiva e aos laccedilos

sociais e histoacutericos principalmente no que se refere aos mais velhos que tentam

direcionar os mais novos neste mesmo sentido Este sentimento de um pertencimento

comum embasa a autoidentificaccedilatildeo e a mobilizaccedilatildeo do grupo pelo reconhecimento

como quilombolas A emergecircncia desta identidade estaacute inserida em um contexto de

relaccedilotildees de tensatildeo antes velada e que aponta para dinacircmicas de fronteira entre

brancos e negros no bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo onde residem31

A reproduccedilatildeo da coesatildeo do grupo estaacute presente na leitura que fazem dos

processos de deslocamento que natildeo passa pela ideia de ruptura como mencionamos

na introduccedilatildeo Pelo contraacuterio desenha-se a partir da continuidade do movimento

como mecanismo de reproduccedilatildeo do grupo o que reforccedila os viacutenculos com o local de

proveniecircncia (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) A regiatildeo do municiacutepio de Santo Antocircnio

do Itambeacute sobre a qual traremos abaixo uma breve apresentaccedilatildeo eacute o lugar de

sustentaccedilatildeo do ldquomito de origemrdquo do grupo e remonta agrave vivecircncia dos mais velhos que

laacute residiram

Apesar de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG estar abrangido pela divisatildeo

institucional da ldquomesorregiatildeo metropolitana de Belo Horizonterdquo o municiacutepio estaacute muito

mais proacuteximo em termos sociais e culturais da ldquomesorregiatildeo do Vale do

Jequitinhonhardquo situada no nordeste do estado No que tange agraves bacias hidrograacuteficas

o municiacutepio localiza-se entre a bacia do Alto Jequitinhonha e a bacia do Rio Doce e

como sugerem os moradores da regiatildeo ldquoeacute o comeccedilo do Valerdquo

31 Segundo Barth ldquoos elementos da cultura presente em um grupo eacutetnico natildeo surgem por conseguinte

do conjunto particular que constituiu a cultura do grupo em um periacuteodo anterior embora o grupo tenha uma existecircncia organizacional contiacutenua com fronteiras (criteacuterios de pertenccedila) que apesar das modificaccedilotildees nunca deixaram de delimitar uma unidade contiacutenuardquo (BARTH 2011 p 227) Tais reflexotildees deste autor continuam sendo segundo Joseacute Mauriacutecio Arruti ldquoas melhores orientaccedilotildees para a anaacutelise de grupos autodefinidos com base na origem ou em atributos de formaccedilatildeordquo e embasam a noccedilatildeo de etnicidade na reflexatildeo antropoloacutegica contemporacircnea (ARRUTI 2006 p 39)

39

FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute FONTE Autora (2015)

Atualmente o municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG possui 4121

habitantes conforme estimativa do IBGE para 201432 Segundo o Censo de 2010

1230 pessoas moravam na zona urbana o equivalente a 2984 e mais de 70 da

populaccedilatildeo continua habitando a zona rural um total de 2905 pessoas Em termos

raciais em Santo Antocircnio do Itambeacute apenas 863 da populaccedilatildeo (357 pessoas) se

declarou como ldquobrancardquo Jaacute a autoidentificaccedilatildeo como sendo da cor ldquopretardquo somou

1947 (805 pessoas) e ldquopardardquo 6972 (2883 pessoas) A diferenccedila no que tange

ao percentual de brancos e negros com relaccedilatildeo agrave GuaiacuteraPR33 eacute significativa jaacute que laacute

a populaccedilatildeo que se declarou branca eacute a maioria 57 em contraste com os apenas

863 de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Dito isto voltemos agraves narrativas quilombolas que destacam principalmente a

capacidade de resistecircncia dos antepassados em condiccedilotildees adversas de muito

sofrimento vivenciadas na regiatildeo mineira Em Guaiacutera me contaram sobre os relatos

32 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316020 Acesso em 22062015 33 Praticamente todos os dados que seratildeo apresentados para a comparaccedilatildeo entre as duas regiotildees satildeo

fortemente contrastantes

40

que ouviram dos pais avoacutes tios irmatildeos mais velhos sobre experiecircncias de fome

trabalho aacuterduo e precariedade das moradias que tinham que ser feitas dentro de lapas

ou locas de pedra (cavernas) Por outro lado Minas eacute valorizada por sua cultura local

narrada pelas histoacuterias sobre os antepassados

Importante levar em conta que na narrativa sobre o passado certos traccedilos se

esvanecem e outros satildeo reforccedilados conforme o momento presente daqueles que

compotildeem uma mesma ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo (HALBWACHS 2003 p 94) O

relato de Jovelina filha mulher mais velha de Manoel Ciriaco atualmente com 73

anos que morou em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ateacute seus quinze anos e atualmente

reside em Presidente PrudenteSP34 destaca a fome como uma memoacuteria central nos

tempos de sua infacircncia

Dandara Dona Jo a senhora repete entatildeo pra gente o que comentou laacute das memoacuterias do pessoal mais antigo de Minas

D Jovelina Laacute no siacutetio do meu pai tinha tinha natildeo que deve ter ateacute hoje que aquilo ali natildeo foi tampado aquele valo Aliacute era cerca pros bois natildeo passar pra roccedila pra comer a roccedila Ali tinha aqueles buracatildeo os boi chegava laacute e olhava assim via aquele buraco laacute e saiacutea E se ele quebrasse a perna ali dentro aiacute entatildeo o dono dele dava pra aquelas pessoas repartir Aiacute a gente pegava e ia laacute buscar e eles repartiam tudo pra aquelas pessoas e a nossa turma ia alegre pra casa porque tava tudo morrendo de fome Ai entatildeo ia naquele lugar onde aquele boi tentou cair ali aiacute escavava mais pra baixo ainda E tinha uns ainda que tinham minha voacute sempre falava que tinha ateacute corrente no peacute que aquele ali que natildeo trabalhasse era preguiccediloso ia ser amarrado laacute no tronco da aacutervore laacute E laacute ficava

Eacute possiacutevel observar que quando Dona Jovelina fala de sua infacircncia relembra

as histoacuterias contadas pela avoacute Izidora sobre o tempo da escravidatildeo35 Interessante

refletir que na forma como a narradora conta esta lembranccedila natildeo aparece um corte

temporal entre o periacuteodo em que a famiacutelia se alimentava da carne do boi que caiacutea no

valo utilizado como cerca entre as propriedades e a eacutepoca em que as pessoas

trabalhavam acorrentadas e eram castigadas no tronco da aacutervore como a avoacute sempre

falava Haacute deste modo uma continuidade sugestiva na narrativa que faz um

34 Esta entrevista ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de 2015

quando passamos por Presidente PrudenteSP justamente para conversar com os irmatildeos mais velhos Jovelina Olegaacuterio e Joatildeo Loriano sobre suas lembranccedilas da vida em Santo Antocircnio do Itambeacute 35 Com os pais provavelmente ocupados em atividades laborais os avoacutes conforme problematizado por

Connerton ocupam uma posiccedilatildeo central no processo de transmissatildeo de conhecimentos sobre o passado diretamente agrave geraccedilatildeo mais nova (CONNERTON 1999 p 43-44) No caso de Jovelina ela ficou sem a matildee que faleceu quando ela tinha dois anos de idade tendo sido cuidada por sua avoacute Izidora e sua tia Ana Raimunda junto com seu pai Manoel Ciriaco

41

entrecruzamento de temporalidades em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da escravidatildeo

apontando para uma forte conexatildeo entre periacuteodos cronoloacutegicos experiecircncias e

vivecircncias ateacute o momento de sua infacircncia na deacutecada de 1940 (MELLO 2012 p 170)

D Jovelina lembrou-se tambeacutem de que quando crianccedila ela e seu irmatildeo Joatildeo ainda

muito pequenos recorriam agrave alternativa de encontrar no rio utilizando uma bateia

algum ouro que entregavam para a tia Ana Raimunda para fazer um pouco de dinheiro

e comprar algo para a famiacutelia36

D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo (filho de Manoel Ciriaco do primeiro

casamento) que atualmente tambeacutem mora em Presidente PrudenteSP37 comentou

sobre seu sofrimento em Minas Gerais38

Cassius A sra falou que comeccedilou a trabalhar desde pequena laacute em Santo Antocircnio

D Maria Desde pequenininha lavando mandioca no rio de manhatilde cedo com frio eacute eu sofri muito Depois cresci trabalhando pras casas dos outros Eu nunca tive vida forgada Eu criei meus filhos tudo sofrendo O menino que natildeo foi sofrido foi esse aiacute que nasceu no Paranaacute mas os outros laacute de Minas tudo () Nem roupa pra vestir a gente natildeo tinha chinelo pra pocircr no peacute era uma vida cruel A gente natildeo comia nem um arroz nem nada Nem oacuteleo pra pocircr na comida natildeo tinha

Dandara A terra era fraca neacute

D Maria Terra natildeo ia nada soacute o que eu plantava laacute era soacute cafeacute cana e mandioca soacute a fartura que vocecirc via laacute era isso eacute natildeo tinha nada natildeo

A baixa qualidade da terra e a escassez de aacutereas para plantio podem ter

impulsionado a estrateacutegia de Manoel Ciriaco de sair rumo a regiatildeo de Satildeo Paulo e

depois norte do Paranaacute acompanhado de demais parentes o que era uma praacutetica

recorrente nesta regiatildeo mineira De acordo com Flaacutevia Galizoni a regiatildeo nordeste de

Minas Gerais tem uma caracteriacutestica proacutepria em relaccedilatildeo ao modo de aquisiccedilatildeo do

direito agrave terra que se daacute principalmente por heranccedila Este eacute o caso da famiacutelia de

36 Esta forma de garimpo eacute muito comum entre mulheres e crianccedilas (GUEDES 2013a p 126) Em sua

etnografia no norte de Goiaacutes Guedes destaca como o garimpo eacute visto como uma alternativa precisamente a situaccedilotildees entendidas como cativeiro eou escravidatildeo Segundo o autor ldquotratamos aqui da continuidade ndash ou para ser mais preciso da eterna expectativa pelo retorno ou volta ndash de uma escravidatildeo cuja aboliccedilatildeo lsquoformalrsquo por vezes eacute tratada como objeto de escaacuternio natildeo passando de uma iniciativa hipoacutecrita dos ricosrdquo Garimpeiros e quilombolas ldquocompartilham assim interstiacutecios e margens e sempre estiveram a se fundir e confundir uns com os outrosrdquo (GUEDES 2013a p 118-119) 37 Esta entrevista tambeacutem realizada durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo

de 2015 38 Esta entrevista tambeacutem ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de

2015

42

Manoel cuja herdeira era sua matildee Izidora pois o siacutetio havia sido comprado pelo pai

dela como me relata Jovelina

As pessoas foram morrendo e deixando pros filhos agora aqueles filhos que morriam ficava pros outros netos deles e era assim ia ficando () Era tudo negro que tinha por aiacute Quando um tava meio apurado de serviccedilo ia laacute ah fulano vocecirc vai trabalhar pra mim que eu te pagordquo () Entatildeo chamava ia aquela turma de gente ali ajudava quando era o outro dia ia laacute na casa do outro trabalhar pro outro pagar aquele dia Que eles trabalhavam natildeo era pra receber dinheiro porque natildeo tinha Entatildeo trabalhava o dia trocado Hoje vocecirc vinha aqui e ajudava eu a fazer aquele serviccedilo aiacute amanhatilde eu ia e te ajudava tambeacutem era trocado

A terra eacute um patrimocircnio familiar transmitida pela heranccedila no acircmbito de uma

ordem moral camponesa que natildeo a restringe ao valor de mercadoria mas que a

concebe a partir de valoraccedilotildees eacuteticas Aquele que se torna dono o faz mediante o

trabalho que eacute ademais um trabalho familiar no qual as relaccedilotildees de reciprocidade

satildeo centrais (WOORTMANN 1990) em um modelo relacional que fica niacutetido na fala

de Dona Jovelina Nesta dinacircmica a migraccedilatildeo39 eacute um dos elementos importantes para

manter a terra em um tamanho necessaacuterio para as futuras geraccedilotildees jaacute que seu

fracionamento extremo pode ldquoinviabilizar a continuidade da famiacutelia como grupo de

agricultores independentesrdquo

A terra eacute o principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos agricultores mas em decorrecircncia da pressatildeo demograacutefica e da exaustatildeo do ambiente torna-se ao longo do tempo um limite para a sua reproduccedilatildeo social Quando o nuacutemero de membros excede a capacidade de suporte da terra surge o imperativo de se decidir no interior da famiacutelia como seraacute resolvida essa questatildeo e nesse contexto a heranccedila constitui um ponto nodal para compreender as estrateacutegias de permanecircncia dos agricultores familiares na terra (GALIZONI2007 p 564)

Para que parte da famiacutelia fique na terra como herdeiros torna-se imperativo

que outra saia enquanto excedente familiar no que tange o uso da terra A migraccedilatildeo

ocorre como processo familiar pois acontece em grupo a partir de estrateacutegias de

contatos nos locais de destino com o objetivo de reconstruir as unidades familiares

No caso em questatildeo Manoel antes de sair definitivamente praticava a migraccedilatildeo

39 Importante ressaltar a criacutetica ao conceito de migraccedilatildeo jaacute que esta concepccedilatildeo esta permeada

frequentemente por uma visatildeo de que o ldquomovimento natildeo teria um valor em si mesmo constituindo-se basicamente como a passagem entre dois pontosrdquo Assim o deslocamento eacute visto como acontecimento excepcional e a sedentariedade como regra Deste modo o movimento e natildeo a permanecircncia eacute o que tem que ser explicado (GUEDES 2013a p 31-36)

43

sazonal movimento recorrente nesta regiatildeo no periacuteodo da seca quando saiacutea para

trabalhar como peatildeo mundo afora Um dos seus destinos de trabalho era a regiatildeo de

Londrina norte do Paranaacute para onde se deslocava de trem Foi atraveacutes desta

experiecircncia preacutevia que traccedilou a estrateacutegia de saiacuteda definitiva com demais parentes

para a regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde morou no municiacutepio de CaiabuSP Eacute

importante salientar que nesta regiatildeo paulista Manoel Ciriaco e demais parentes

puderam contar com o suporte da famiacutelia de seu primo de primeiro grau Raimundo

Constantino ndash filho de sua tia materna Joana ndash que laacute jaacute se encontrava Raimundo

que havia saiacutedo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG com esposa e filhos em 1949 jaacute

havia falecido quando Manoel chegou em CaiabuSP

Na eacutepoca em que Manoel deixou sua regiatildeo de origem ele jaacute havia ficado

viuacutevo de Maria Olinda sua primeira esposa com quem teve quatro filhos Luiza ndash que

faleceu aos 8 anos de idade ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano

FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 1

Como afirmei anteriormente quando Maria Olinda faleceu Joatildeo Loriano tinha

apenas um mecircs de vida tendo sido criado pela avoacute Izidora e pela irmatilde de seu pai

Ana Raimunda Depois Manoel casou-se com Ana Rodrigues com quem teve mais

quatro filhos ainda em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Eurides Sebastiana (falecida)

Antocircnio (falecido) e Joseacute Maria (falecido) Os outros filhos deste casal jaacute nasceram

no processo de deslocamentos da famiacutelia ndash dos quais apenas Paulo faleceu quando

tinha 15 anos ndash e os quatro irmatildeos mais novos satildeo os que atualmente continuam

morando em GuaiacuteraPR e atuam de forma direta no projeto de estruturaccedilatildeo da

comunidade quilombola Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido

44

FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2

45

Para compreender o contexto da saiacuteda dessas famiacutelias em 1956 deve-se ter

em conta que a deacutecada de 1950 eacute o periacuteodo de decliacutenio da produccedilatildeo camponesa na

regiatildeo mineira em decorrecircncia da abertura de estradas bem como do

desenvolvimento e da urbanizaccedilatildeo do entorno De 1950 a 1970 a regiatildeo do ldquoVale do

Jequitinhonhardquo40 vivenciou um importante marco histoacuterico de integraccedilatildeo na economia

nacional por meio da possibilidade de acesso a produtos industrializados o que como

consequecircncia provocou a desvalorizaccedilatildeo dos produtos regionais Este periacuteodo eacute

marcado pela expansatildeo do capitalismo e pela expropriaccedilatildeo do campesinato com o

aumento significativo do deslocamento da populaccedilatildeo local (PORTO 2007 p 79)

A produccedilatildeo e o comeacutercio de alimentos e artigos artesanais eram justamente

o trabalho realizado pelas famiacutelias negras em questatildeo principalmente na lavoura de

cana-de-accediluacutecar com a qual se fazia a cachaccedila o melado e a rapadura e no

transporte destes produtos em lombo de burro para sua comercializaccedilatildeo aleacutem da

lavoura de cafeacute do trabalho no garimpo de ouro e da agricultura de subsistecircncia

Deste modo a saiacuteda dos camponeses decorre da pressatildeo das ldquoformas empresariais

e capitalistasrdquo em direccedilatildeo agrave regiatildeo ldquoos primeiros continuamente deslocados pela

marcha dos segundosrdquo (GUEDES 2013b p 53) Dentre tais empreendimentos

destaca-se a produccedilatildeo em moldes capitalistas de eucalipto de gado e de cafeacute Deste

modo eacute possiacutevel perceber como a memoacuteria e a experiecircncia do grupo quilombola vai

tomar como um marco os efeitos do histoacuterico de modernizaccedilatildeo regional e do decliacutenio

da produccedilatildeo camponesa no acircmbito de um processo mais amplo de pressatildeo

migratoacuteria (PORTO 2007 p 60) Olegaacuterio (77 anos) filho de Manoel Ciriaco que saiu

de MG com o pai contou que ele e seus parentes foram de Santo Antocircnio do Itambeacute

ateacute Diamantina no pau de arara caminhatildeo coberto de lona e de Diamantina ao estado

de Satildeo Paulo de ocircnibus

Recuando um pouco mais na histoacuteria no que tange ao comeccedilo do seacuteculo XX

os estudos historiograacuteficos demonstram como a migraccedilatildeo jaacute aparecia como uma

estrateacutegia importante para a populaccedilatildeo negra que vivia em regiotildees de colonizaccedilatildeo

antiga como eacute o caso de Minas Gerais Estes estudos tecircm analisado como os negros

40 Esta divisatildeo regional que a partir da deacutecada de 1960 cria de uma forma unificada o ldquoVale do

Jequitinhonhardquo eacute fruto de uma articulaccedilatildeo da esfera poliacutetica que tomou como criteacuterio a carecircncia e a pobreza enquanto argumentos dos poliacuteticos regionais para acessar recursos para uma aacuterea definida como ldquobolsatildeo da pobrezardquo O ldquoprogressordquo por meio desenvolvimento capitalista seraacute entatildeo apresentado como o caminho de redenccedilatildeo para a populaccedilatildeo localrdquo (PORTO 2007 p 61)

46

libertos e seus descendentes traccedilaram estrateacutegias para buscar caminhos de

autonomia e de subsistecircncia tendo em vista as dinacircmicas de disponibilidade de terra

e trabalho no poacutes-aboliccedilatildeo (1888) Esta populaccedilatildeo tinha que lidar com a permanecircncia

das categorizaccedilotildees sociais como a de ldquoex-senhores libertos e homens nascidos

livresrdquo enquanto uma das principais limitaccedilotildees para sua capacidade de negociaccedilatildeo

nas regiotildees de colonizaccedilatildeo mais antigas (MATTOS RIOS 2004 p 180) Eacute sabido

que o fim do regime escravocrata natildeo concretizou a presunccedilatildeo legal de igualdade e

cidadania para esta populaccedilatildeo que ficou sujeita agrave manutenccedilatildeo das hierarquias locais

jaacute que ser negro ainda era visto em alguma medida como sinoniacutemia de ter sido

escravo Eacute necessaacuterio neste sentido refletir sobre o projeto dos libertos no periacuteodo

do poacutes-aboliccedilatildeo ldquosua lsquovisatildeorsquo do que seria liberdade os significados deste conceito

para a populaccedilatildeo que iria finalmente vivenciaacute-la ()rdquo Uma das expressotildees destes

projetos foi a ldquomobilidade espacialrdquo a partir do direito que passaram a ter sobre os

proacuteprios corpos de ir e vir livremente (MATTOS RIOS 2004 p 171-178)

Muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos negros nas regiotildees onde a

escravidatildeo tinha sido significativa como a localidade de Santo Antocircnio do Itambeacute que

faz parte do ldquoCaminho dos Diamantesrdquo e da ldquoEstrada Realrdquo vinculada agrave colonizaccedilatildeo

mineradora A movimentaccedilatildeo geograacutefica dos ldquonatildeo-brancos livresrdquo para aacutereas de

colonizaccedilatildeo mais recente como eacute o caso de Guaiacutera na regiatildeo noroeste do Paranaacute

onde poderiam se organizar como ldquocampesinato reconstituiacutedordquo foi uma opccedilatildeo muito

utilizada Carlos Lima denominou este processo de ldquopequena diaacutesporardquo apontando

para a ldquoforte tendecircncia emigratoacuteriardquo que partia ldquodas aacutereas centrais onde haviam sido

gerados para localidades onde o acesso agrave terra fosse mais plausiacutevelrdquo (LIMA 2000 p

109)41 Deste modo destaca em suas pesquisas sobre o poacutes-aboliccedilatildeo a inserccedilatildeo de

libertos em processos de povoamento e a tendecircncia ao deslocamento de seus

descendentes de aacutereas de colonizaccedilatildeo antiga para regiotildees mais novas ndash como no

caso em questatildeo da regiatildeo de DiamantinaMG ateacute GuaiacuteraPR O autor observou na

documentaccedilatildeo um alto grau de natildeo brancos livres no estado do Paranaacute no seacuteculo

XIX e em relaccedilatildeo inversa um nuacutemero relativamente baixo de natildeo-brancos livres nas

aacutereas de escravidatildeo mais antiga (LIMA 2000)

41 No entanto nem todos os deslocamentos eram bem-sucedidos e como aponta o estudo das historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Rios tambeacutem implicaram em certos casos em ldquohistoacuterias de privaccedilotildees extremas e desestruturaccedilatildeo da vida familiarrdquo (MATTOS RIOS 2004 p 171)

47

Com esta estrateacutegia de movimento o grupo familiar proveniente de MG

conseguiu adquirir terras em GuaiacuteraPR depois de quase uma deacutecada em que

moraram e trabalharam principalmente na colheita de algodatildeo e de amendoim na

regiatildeo de Presidente PrudenteSP em aacutereas arrendadas no municiacutepio de CaiabuSP

A partir do contato com Seu Olindo que era corretor foram para o Paranaacute porque

tinham interesse de comprar terras principalmente porque lhes falaram que a terra laacute

era muito boa Em Guaiacutera estabeleceram-se no iniacutecio da deacutecada de 1960 e adquiriram

quatro pequenos lotes rurais todos proacuteximos os quais demoraram anos para quitar

atraveacutes de muito trabalho modo de pagamento inaceitaacutevel nos padrotildees atuais Com

o estabelecimento de Manoel e de sua esposa Ana Rodrigues com demais parentes

em Guaiacutera outras famiacutelias tambeacutem foram se deslocando para laacute tanto provenientes

do estado de Satildeo Paulo como da regiatildeo mineira Destacam-se nas narrativas sobre

a chegada em uma aacuterea que estava comeccedilando a ser colonizada as dificuldades que

enfrentaram acampando embaixo de lona no meio do mato de onde passaram a

retirar toda a sua sobrevivecircncia por meio da caccedila e da coleta aleacutem da derrubada da

mata para limpar o terreno e para iniciar o plantio agriacutecola

Os quatro homens chefes de famiacutelia que se tornaram proprietaacuterios no Paranaacute

tinham viacutenculos de parentesco entre si e com o casal ancestral Joseacute e Joana

ascendentes mais antigos sobre o qual o grupo tinha referecircncias (antes da pesquisa

realizada em Minas Gerais) inclusive de terem trabalhado como escravos em Minas

Gerais Assim aleacutem de Manoel Ciriaco e Geraldo Domingos dos Santos os quais

adquiriram respectivamente dez e cinco alqueires contiacuteguos da Sociedade

Agropecuaacuteria Comercial e Industrial Maracaju LTDA (lotes 186 e 186-A 187 e 187-A)

tambeacutem adquiriram lotes o ldquotio Raimundatildeordquo que era tio de Ana Rodrigues e Joatildeo

Ferreira cunhado de Ana Nestes siacutetios moravam mais parentes aleacutem daqueles que

tambeacutem residiam em propriedades da regiatildeo e tocavam arrendado No caso de

Raimundo e Joatildeo Ferreira natildeo tive acesso a informaccedilotildees sobre a histoacuteria de aquisiccedilatildeo

e perda dessas aacutereas Imagino que este silenciamento seja decorrente dos conflitos

territoriais que antecederam esta pesquisa com a grupo conforme abordaremos no

segundo capiacutetulo Apesar disso membros da comunidade comentam saudosos sobre

a relevacircncia da dinacircmica de tracircnsito dos parentes entre estas aacutereas periacuteodo no qual

havia em torno de oitenta pessoas da famiacutelia morando na regiatildeo de Guaiacutera e de Terra

RoxaPR

48

FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 3

49

As aacutereas do ldquotio Raimundatildeordquo e de Joatildeo Ferreira atualmente natildeo constam no

processo de reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio que tramita no INCRA A natildeo

indicaccedilatildeo dessas duas aacutereas parece ter sido uma estrateacutegia da comunidade na

produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Esta estrateacutegia como pude

compreender estaacute relacionada aos conflitos gerados pela produccedilatildeo do primeiro

relatoacuterio sobre a comunidade Assim os quilombolas entenderam que era mais

seguro neste segundo relatoacuterio natildeo indicar as duas aacutereas que natildeo satildeo contiacuteguas ao

territoacuterio atual o que poderia reestabelecer a animosidade entre a comunidade e os

proprietaacuterios vizinhos Atualmente o procedimento do INCRA utiliza como base

territorial as aacutereas indicadas pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foram

adquiridas por Manoel Ciriaco e Geraldo dos Santos as quais somavam 15 alqueires

contiacuteguos dos quais soacute restam atualmente 85 alqueires O relatoacuterio indica tambeacutem a

aquisiccedilatildeo de uma aacuterea complementar para que possa haver meios de reproduccedilatildeo

social cultural e econocircmica das famiacutelias que atualmente permanecem na

comunidade42

Em 1992 Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano ndash filhos de Manoel Ciriaco do

primeiro casamento ndash migram de GuaiacuteraPR com suas famiacutelias As famiacutelias de

Olegaacuterio e Joatildeo Loriano foram para a TarabaiSP proacuteximo a Presidente PrudenteSP

e Jovelina foi com a famiacutelia para ColiacutederMS O ldquoVelho Maneacuterdquo havia falecido em 1989

Em 1993 Geraldo dos Santos primo de Manoel que havia comprado lote limiacutetrofe ao

seu vende seus cinco alqueires e migra com sua famiacutelia para Satildeo Jorge do

PatrociacutenioPR municiacutepio proacuteximo onde adquiriu aacuterea maior mas de menor qualidade

pois a terra mais arenosa Eva me contou o motivo de seu pai Geraldo ter preferido

sair de Guaiacutera em 1993 e vender seus cinco alqueires

Dandara Eu queria perguntar tambeacutem para a Sra sobre a saiacuteda do seu pai daqui ele foi muito pressionado pra sair pra vender

Eva Ele quis sair Dandara ele natildeo quis ficar aqui mais pouca terra muito pouco com raiva tambeacutem quando os vizinhos ia limpar a estrada rancava tudo as coisas que ele plantava na beira da estrada ele ficava muito nervoso Ele pegou e natildeo quis viver aqui mais natildeo foi embora caccedilou um outro lugar pra ele morar que um lugar que era tudo gente pobre natildeo queria morar perto

42 Esta aacuterea natildeo necessita de acordo com o procedimento ser limiacutetrofe agrave comunidade e seraacute adquirida

atraveacutes do instrumento de desapropriaccedilatildeo por interesse social pelo INCRA Aleacutem das famiacutelias que atualmente moram na comunidade haacute a previsatildeo de que vaacuterias dentre as que migraram de GuaiacuteraPR poderatildeo caso haja esta ampliaccedilatildeo do territoacuterio retornar e se juntar ao grupo Esta previsatildeo de retorno eacute utilizada para calcular o tamanho da aacuterea adicional conforme abordo no segundo capiacutetulo

50

de gente rica (risos) Daiacute ele pegou e foi embora e chegou laacute e falou que era tudo pobre tambeacutem Soacute que sofreu muito tambeacutem laacute hein

Foram muitas as dificuldades que superaram conforme narram para

permanecerem em uma regiatildeo na qual se sentem discriminados racial e socialmente

Dentro deste processo histoacuterico de deslocamento e estruturaccedilatildeo das famiacutelias no

Paranaacute o casal Manoel Ciriaco dos Santos e Ana Rodrigues dos Santos ocupa o lugar

de casal fundador e aglutinador das relaccedilotildees de parentesco da comunidade

quilombola organizada a partir de GuaiacuteraPR mas que abrange famiacutelias que estatildeo

fora do territoacuterio Esta estruturaccedilatildeo das famiacutelias na regiatildeo de GuaiacuteraPR tambeacutem

portanto foi passageira para alguns nuacutecleos familiares e mais prolongada para outros

Atualmente as famiacutelias que continuaram no territoacuterio em GuaiacuteraPR lutam para

garantirem o direito de laacute permanecerem e para que seja ampliada a aacuterea da

comunidade a qual foi sendo reduzida ao longo das uacuteltimas deacutecadas com o processo

de mecanizaccedilatildeo da agricultura da perda dos meios de trabalho da valorizaccedilatildeo

comercial da terra na regiatildeo e da saiacuteda dos ldquoparentesrdquo

Manoel e Ana o casal que estrutura o modo de elaboraccedilatildeo da narrativa

histoacuterica e da reivindicaccedilatildeo de direitos pela comunidade atualmente eram primos de

segundo grau jaacute que Joana avoacute de Ana Rodrigues era irmatilde de Izidora matildee de

Manoel

FIGURA 7 Documentos de identidade de Manoel nascido em 16031920 e Ana nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)

51

Sobre as dificuldades vivenciadas quando as famiacutelias se estabeleceram em

GuaiacuteraPR e do aperto que viveram Eva filha de Geraldo Domingos dos Santos

destacou

Eva Nossa Senhora Noacutes passou um aperto aqui Aqui o que noacutes passemo aqui Eu acho mesmo o que noacutes comia era peixinho assado no fogo A muieacute que morava assim vizinha aqui quando ela colhia milho e levava milho na casa dela pra moer fazer fubaacute que noacutes comia polenta com radiche do mato serraia nem a gordura pra comer natildeo tinha Tinha dia que noacutes natildeo tinha um gratildeo de accediluacutecar Quando eles trabalhava assim que colhia as coisa pra vender daiacute jaacute comprava aproveitava que o dinheirinho era pouco mesmo depois o dinheiro natildeo dava entatildeo jaacute aproveitava e comprava de uma vez Comprava meio saco de accediluacutecar aiacute entrava pura abeia dentro de casa pura abeia (risos) Quando acabava daiacute meu pai socava poacute no pilatildeo pra noacutes fazer cafeacute de manhatilde cedo Eu falei assim ldquoeacute minha fia hoje natildeo ensina mais nada disso vocecircs nem conhece o que que eacute issordquo

Nos termos de Geralda filha de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues que saiu

dos siacutetios haacute muitos anos e atualmente mora na periferia de Guaiacutera (Vila Eletrosul)43

eles sempre trabalharam para enriquecer os coroneacuteis mas para os negros natildeo

sobrava nada A histoacuteria de seu marido Antocircnio conhecido por Guaraacute44 segundo ela

eacute um exemplo disso ldquopara mim o meu marido foi igual escravo para sofrer o que ele

sofreu As crianccedilas hoje tecircm liberdade Noacutes natildeo noacutes tinha que trabalhar e ningueacutem

tinha doacute E se fosse negro mais aindardquo A experiecircncia da escravidatildeo natildeo fica restrita

portanto a um passado longiacutenquo pois se perpetuou para aleacutem de sua instituiccedilatildeo

oficial por meio da reproduccedilatildeo de um sistema baseado na exploraccedilatildeo continuada e

na discriminaccedilatildeo racial Haacute uma perspectiva bem proacutexima na comunidade quilombola

Aacutegua Morna no estado do Paranaacute registrada no relatoacuterio antropoloacutegico da

comunidade

() Natildeo vinculam a escravidatildeo somente ao periacuteodo preacute-aboliccedilatildeo mas a percebem em tempo muito mais recente Ela estaacute relacionada ao trabalho para os ldquode forardquo e agrave experiecircncia da negritude que os colocaria constantemente em uma situaccedilatildeo de poder desprivilegiada () Nas falas dos moradores locais a escravidatildeo se confunde com a discriminaccedilatildeo relacionada ao racismo e agrave pobreza Muito mais que uma oposiccedilatildeo entre o tempo da escravidatildeo e o tempo da liberdade com uma delimitaccedilatildeo clara entre ambos

43 Outra importante caracteriacutestica sobre a caracterizaccedilatildeo negativa de Guaiacutera eacute que mesmo sendo um

municiacutepio de porte pequeno apresenta um dos maiores iacutendices de homiciacutedio do paiacutes (WAISELFISZ 2013) A Vila Eletrosul eacute tida como um dos bairros mais perigosos de Guaiacutera com vaacuterios casos de

homiciacutedios e apreensotildees Localizada nas proximidades do Rio Paranaacute eacute por laacute que entra parte da droga e do contrabando jaacute que por meio deste desvio evita-se a entrada principal saindo de Salto del Guairaacute no Paraguai para Guaiacutera onde se concentra a fiscalizaccedilatildeo 44 Irei utilizar o apelido de Guaraacute para o distinguir de ldquofinado Antocircniordquo irmatildeo de Geralda

52

dada pela assinatura da Lei Aacuteurea em Aacutegua Morna encontramos a escravidatildeo simultaneamente percebida como una e como tripartida haacute a experiecircncia dos antepassados trazida principalmente atraveacutes do relato de Benedita e da qual a caminhada ndash e a accedilatildeo da Princesa Isabel ndash os libertou haacute a opressatildeo mais recente dos antigos jaacute no proacuteprio territoacuterio mas sujeitos agrave desigualdade que marca as relaccedilotildees com os ldquobrancosricosrdquo e por fim a vivecircncia da discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo no trabalho que permanece na atualidade em que escravidatildeo se aproxima de racismo (PORTO 2008 p 71-72)

A lembranccedila da ausecircncia de acesso a recursos baacutesicos estaacute sempre presente

nas falas da Geralda

Geralda Noacutes tocava um banhado de um homi laacute e eu de a peacute pra leva comida pro Zeacute Maria e aiacute ele falou que tinha dia que ele olhava ateacute na terra pra comer de tanta fome que natildeo comia nada de manhatilde que natildeo tinha nada pra comer Aiacute eu chegava correndo minha matildee pegava um pedacinho de carne eu pegava na matildeo e iacutea correndo leva a marmita comigo longe Ele falava que natildeo tava aguentando mais de fome Ixi minha filha noacutes cheguemo pra aqui ele amarrava roupa de cipoacute num tinha roupa menina () Aiacute a minha sogra ela falava assim quando ele corria da minha sogra ela falava ldquoparece que ocecirc taacute que nem o capeta correndo da cruzrdquo correndo que natildeo tinha roupa Era tudo amarrado de cipoacute

Uma vez quando Geralda estava esquentando fogo quando era moccedila

ocorreu um acidente

Geralda Ah a gente era pobre meu pai comprava aquele paninho bem fininho que a gente falava ldquocarne secardquo aiacute sobrou o resto que minha matildee fez o colchatildeo pegou e mandou meu irmatildeo fazer uma calccedila pra mim Eles ainda ficaram tirando sarro que a calccedila pantalona aiacute as minhas irmatildes tavam ralando uma mandioca pra fazer farinha pra passar Satildeo Joatildeo e eu fiquei esquentando fogo quando eu vi o fogo pegou na minha perna aiacute a minha irmatilde correu e pegou um balde drsquoaacutegua e jogou

Haacute tambeacutem uma outra histoacuteria a da fogueira do dia de Satildeo Joatildeo que me foi

contada por Adir logo que nos encontramos na minha primeira ida a campo ainda na

rodoviaacuteria em sua famiacutelia haacute pessoas como seu irmatildeo Zeacute Maria que jaacute eacute falecido e

tambeacutem tios e tias que eram capazes de andar descalccedilos em cima da brasa da

fogueira de Satildeo Joatildeo Para isso acrescentou Adir eacute preciso ter feacute Assim se a

fogueira aparece nas narrativas de uma situaccedilatildeo de extrema falta de recursos ela

tambeacutem retorna nas memoacuterias de uma famiacutelia que tem tanta feacute que permite que

ocorram milagres como caminhar na brasa ardente sem se queimar

Ao mesmo tempo em que destacam as agruras de um passado difiacutecil um

tempo em que o frio entrava pelas frestas das casas feitas de coqueiro tambeacutem

53

aparece em seus relatos no entanto o sentimento de que havia muito mais uniatildeo no

grupo de parentes A comemoraccedilatildeo do dia de Satildeo Joatildeo por exemplo envolvia o

preparo coletivo da farinha de mandioca e do beiju45 Tambeacutem do manuseio da

mandioca se retirava o polvilho que era utilizado para o preparo de biscoitos46 No

siacutetio em Guaiacutera ressaltam que se hoje moram apenas vinte e tantas pessoas

somavam na deacutecada de 1970 mais de 80 parentes

O iniacutecio da fixaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera eacute ressaltado em todas as falas dos

adultos como um tempo de trabalho duro para homens e mulheres Infacircncia difiacutecil

onde produziam quase tudo que consumiam natildeo tinham nem um cobertor nem um

chinelo roupa era produto de luxo Viviam da agricultura de subsistecircncia produccedilatildeo e

criaccedilatildeo de animais para comercializaccedilatildeo arrendamento de terras para derrubada e

plantio atividades que ampliavam o espaccedilo de trabalho para aleacutem das aacutereas

adquiridas Por outro lado destacam a uniatildeo e a solidariedade entre parentes O lote

de Manoel Ciriaco era o ponto de referecircncia para os demais entre os quais havia uma

forte sociabilidade relaccedilotildees de ajuda muacutetua e momentos de diversatildeo do grupo ao

som de vaacuterios instrumentos produzidos por eles mesmos

FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia tirada na cidade em um ldquoestuacutediordquo (da direita para a esquerda) Seu Davi (esposo de Jovelina) sanfoneiro da famiacutelia com um casal de vizinhos e a esposa de seu primo Maria Madalena com seu filho Antocircnio (marido de Geralda)

45 O beiju eacute ldquouma espeacutecie de patildeo de mandiocardquo Para descriccedilatildeo do modo de preparo tradicional ver a

dissertaccedilatildeo de Andreacuteia Cambuy (CAMBUY 2011 103-105) 46 Estes satildeo alimentos que remetem ao jeito de viver do passado e que satildeo feitos agraves vezes Eles me

foram apresentados pelo meu interesse nas preparaccedilotildees tradicionais mas atualmente envolvem a compra dos ingredientes jaacute prontos do mercado As peccedilas da antiga farinheira estatildeo ainda guardadas mas atualmente natildeo possuem um espaccedilo fiacutesico onde possam reativaacute-la como desejam

54

O grupo de parentes em Guaiacutera engajou-se tambeacutem no plantio e

beneficiamento de hortelatilde (oacuteleo) produccedilatildeo de milho mandioca algodatildeo arroz e o

trabalho como diaristas para os vizinhos-empregadores Tais leques de atividades

contribuiacuteram para um certo grau de autonomia para os membros da comunidade

Poreacutem contam como houve uma grande mudanccedila local com o processo de

mecanizaccedilatildeo da agricultura de modo que os proprietaacuterios vizinhos passaram a natildeo

se interessar pelo arrendamento jaacute que toda a aacuterea de suas propriedades poderia ser

explorada A reduccedilatildeo da aacuterea de trabalho disponiacutevel implicou em grande dificuldade

para a manutenccedilatildeo das famiacutelias que passaram a se deslocar novamente a partir da

deacutecada de 1990

FIGURA 9 Fluxo Migratoacuterio47 FONTE A autora (2015)

Em 1989 ocorre tambeacutem o falecimento de Manoel Ciriaco que era uma

lideranccedila na articulaccedilatildeo das famiacutelias provenientes de Minas Gerais na regiatildeo de

GuaiacuteraPR Ele desempenhava ainda a sua autoridade paterna na condiccedilatildeo de

proprietaacuterio legal da aacuterea de sua famiacutelia (SEYFERTH 1985) coordenando o trabalho

47 A representaccedilatildeo cartograacutefica atraveacutes de linhas de migraccedilatildeo tem um objetivo didaacutetico neste momento

do texto Como veremos no proacuteximo subitem as discussotildees do antropoacutelogo Tim Ingold (2007) problematizam este tipo de representaccedilatildeo do deslocamento atraveacutes da linha reta A representaccedilatildeo com base no autor estaria muito mais proacutexima de um emaranhado de linhas representando o processo do movimento por meio do qual se descobre o proacuteprio caminho

55

familiar e centralizando o contato com pessoas externas Com sua morte deixou

diacutevidas para os filhos que ficaram em uma situaccedilatildeo econocircmica difiacutecil aleacutem de terem

perdido este papel de referecircncia exercido pelo pai48

Este processo de saiacuteda dos parentes de Guaiacutera eacute lembrado como um

momento muito difiacutecil e marcante por aqueles que ficaram Segundo Joaquim noacutes

fiquemo aqui abandonado Atualmente soacute restou destes quatro lotes 85 alqueires do

lote de Manoel Ciriaco sendo que os demais foram vendidos Satildeo vaacuterios os destinos

apontados em relaccedilatildeo aos parentes que migraram na deacutecada de 1990 De Guaiacutera

parentes foram para Salto del Guayra (Paraguai) Satildeo Jorge do PatrociacutenioPR

AssisPR para a regiatildeo Presidente PrudenteSP e uma famiacutelia retornou para Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG De volta para regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde jaacute

haviam morado na deacutecada de 1960 foram os irmatildeos mais velhos filhos do primeiro

casamento de Manoel Ciriaco com Maria Olinda ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano

ndash aleacutem de Eurides filha de Manoel com Ana Rodrigues

O siacutetio onde residem atualmente fica distante 20 km da sede do municiacutepio de

Guaiacutera e mais proacuteximo da divisa com o municiacutepio vizinho Terra Roxa Segundo me

contaram a permanecircncia ali soacute foi possiacutevel porque resistiram agraves pressotildees dos

proprietaacuterios vizinhos os quais satildeo na maioria gauacutechos descendentes de imigrantes

italianos e alematildees que queriam comprar suas terras e retiraacute-los do bairro rural O

nuacutemero de moradores variou no periacuteodo que estive em campo e a perspectiva do

grupo eacute que aumente com a possibilidade de retorno dos parentes em decorrecircncia da

possiacutevel ampliaccedilatildeo do territoacuterio prevista no processo de titulaccedilatildeo quilombola pelo

INCRA (Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria)49

Segundo Geralda haacute uma divisatildeo natildeo verbalizada entre um ldquoMaracaju dos

Pretosrdquo e um ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo nome pelo qual eacute conhecido o bairro rural onde

vivem A convivecircncia (ou a falta dela) com os gauacutechos eacute um elemento importante para

compreender a manutenccedilatildeo das fronteiras do grupo a partir de uma perspectiva

48 Desde sua morte e de sua esposa Ana Rodrigues em 1994 o inventaacuterio da propriedade ainda natildeo

foi realizado havendo a observaccedilatildeo por parte dos herdeiros inclusive dos que natildeo moram mais no siacutetio em GuaiacuteraPR de um acordo interno para a organizaccedilatildeo do uso da terra entre eles Importante ressaltar que a natildeo realizaccedilatildeo do inventaacuterio eacute uma estrateacutegia importante na organizaccedilatildeo camponesa para evitar a fragmentaccedilatildeo do lote original (SEYFERTH 1985) 49 A questatildeo de quem pode requerer o direito a morar no territoacuterio a partir de relaccedilotildees de pertencimento comeccedila a ser trabalhada pelas lideranccedilas do grupo jaacute que a fase de cadastramento das famiacutelias pelo INCRA eacute a proacutexima etapa do procedimento apoacutes a publicaccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) prevista para 2015

56

poliacutetica e relacional de grupos eacutetnicos50 As relaccedilotildees com seus vizinhos foram

estabelecidas majoritariamente pela mediaccedilatildeo de relaccedilotildees de trabalho informais

Antes do conflito desencadeado com o processo no INCRA mantinham relaccedilotildees

proacuteximas apesar de os quilombolas sempre terem percebido as manifestaccedilotildees de

preconceito racial

Geralda Eu natildeo gosto do Maracaju natildeo gosto daquelas turma Menina porque o que noacutes viveu ali Vocecirc chega na igreja noacutes natildeo vai na Igreja que eacute pra rezar Natildeo eacute pra pessoa pensar olhar laacute no padre Eles ficava olhando se vocecirc tava bem vestido se vocecirc tava limpo Hum negro Negro pra eles natildeo presta Eles fazia amizade com noacutes assim de frente mas eles nenhum gostava de noacutes a gente via na cara a gente natildeo eacute besta Noacutes convivia desde pequeno junto com eles ali Eu natildeo tenho saudade natildeo () Porque eu gosto de morar no lugar que eacute humilde neacute que a gente sente bem Vocecirc mora no lugar pro resto da vida se vocecirc morrer ali vocecirc se sente bem Aqui eacute assim (Vila Eletrosul) tem gente metido mas aqui tem gente legal E a amizade que eu tenho aqui dentro dessa Eletrosul Aqui tem muita coisa mas tanta amizade que eu tenho aqui com crianccedila com gente velho com gente novo eacute rapaz eacute moccedila eacute tudo Laacute no Maracaju natildeo eu natildeo tinha amizade Noacutes ia no baile vocecirc taacute pensando que os rapaz de laacute danccedilava com noacutes Eu posso conta procecirc que eu natildeo dancei com um rapaz laacute dentro do Maracaju Nenhum Eles natildeo danccedilava com noacutes que era preto Aiacute vocecirc vai viver num lugar desse e vocecirc vai ficar feliz

O mapa abaixo mostra a porccedilatildeo de terra da comunidade cercada pelas

propriedades vizinhas De acordo com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido na

comunidade (TERRA AMBIENTAL 2013) pode-se dividir a aacuterea atual em quatro

setores O setor 1 e o setor 2 na parte superior do mapa em verde claro

correspondem agrave aacuterea onde se concentram as casas dos moradores o accedilude a

criaccedilatildeo de pequenos animais e a plantaccedilatildeo de verduras para consumo e comeacutercio

Os setores 3 e 4 satildeo de plantaccedilotildees dos proacuteprios quilombolas de mandioca milho

aveia soja entre outros Depois do setor 4 haacute um pequeno pedaccedilo de 15 alqueires

que foi vendido para o vizinho Jacomine em 1992 (quando da saiacuteda dos trecircs irmatildeos

mais velhos que foram para Presidente PrudenteSP) e por fim a aacuterea de reserva

legal da propriedade

50 O enfoque nas fronteiras nos mecanismos necessaacuterios para criaacute-las e mantecirc-las e na diferenciaccedilatildeo estrutural dos grupos em interaccedilatildeo tornam-se elementos centrais para as anaacutelises que tomam a autoatribuiccedilatildeo como traccedilo fundamental da etnicidade conforme reflexatildeo proposta por Barth acerca do modo de constituiccedilatildeo dos limites sociais dos grupos eacutetnicos (BARTH 2011)

57

FIGURA 10 ldquoDivisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriacordquo FONTE Terra Ambiental Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos Guaiacutera ndash PR (p88)

58

Se o grupo familiar saiu de Minas Gerais ateacute o Paranaacute visando a reinserccedilatildeo

social em melhores condiccedilotildees de vida e fugindo do racismo e da marginalizaccedilatildeo

percebe-se que as estruturas de opressatildeo se reproduziram novamente Nestas cinco

deacutecadas em que estatildeo vivendo no Paranaacute natildeo houve a criaccedilatildeo de laccedilos de

parentesco com os vizinhos e a tendecircncia endogacircmica deste grupo familiar que jaacute

ocorria em Minas Gerais acentuou-se Geralda por exemplo eacute casada com Antocircnio

cujo pai Joseacute dos Santos eacute seu primo de 2ordm grau O casamento entre parentes

aparece entatildeo como fator constitutivo da manutenccedilatildeo da coesatildeo do grupo e do

territoacuterio tendo em vista o histoacuterico de deslocamentos (MELLO 2012 p 24) No

entanto para aleacutem de caracteriacutestica proacutepria da organizaccedilatildeo social o racismo e a

discriminaccedilatildeo do entorno reforccedilaram a fronteira do casamento entre brancos e negros

A partir de 2005 com a possibilidade de reivindicarem a identidade

quilombola o estigma do racismo que enfrentaram e ainda enfrentam pocircde ser

recolocado como uma afirmaccedilatildeo positiva de ser negro e uma releitura da proacutepria

trajetoacuteria do grupo Neste sentido

O ato de aquilombar-se ou seja de organizar-se contra qualquer atitude ou sistema opressivo passa a ser portanto nos dias atuais a chama reacesa para na condiccedilatildeo contemporacircnea dar sentido estimular fortalecer a luta contra a discriminaccedilatildeo e seus efeitos Vem agora iluminar parte do passado aquele que salta aos olhos pela enfaacutetica referecircncia contida nas estatiacutesticas onde os negros satildeo maioria dos socialmente excluiacutedos Quilombo vem a ser portanto o mote principal para se discutir parte da cidadania negada (LEITE 2000 p 349)

Tal categoria natildeo correspondia a como os proacuteprios grupos se

autodenominavam de modo que essa identidade quilombola passa a ser politicamente

construiacuteda com base na mobilizaccedilatildeo de elementos histoacutericos e culturais preacute-

existentes em cada caso especiacutefico Ao inveacutes de querer estabelecer portanto uma

ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da interpretaccedilatildeo

historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI 2006 p 39-

40)51 deve-se buscar perceber quem satildeo os grupos que se mobilizam a partir desta

51 Tais criteacuterios riacutegidos baseados em estereoacutetipos satildeo defendidos pelos que se opotildeem aos direitos destes grupos sociais e tecircm a despeito do reconhecimento legal do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo uma repercussatildeo significativa no imaginaacuterio geral impactando nas expectativas colocadas em relaccedilatildeo por exemplo ao teor dos relatoacuterios antropoloacutegicos

59

identidade tomando como base o criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo como reconhecido pelo

ordenamento juriacutedico brasileiro52

Com a inserccedilatildeo do artigo 68 no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais

Transitoacuterias no acircmbito da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 a literatura antropoloacutegica

sobre quilombos vem destacando a diversidade de estrateacutegias e saiacutedas produzidas

pelos grupos sociais que passaram a se mobilizar politicamente e a se reconhecerem

a partir da ldquometaacutefora do quilombordquo (OrsquoDWYER 2011 p 120) Esta diversidade de

experiecircncias sociais dos quilombos implica na necessidade de ressemantizar o

conceito histoacuterico e compreender processos especiacuteficos como o caso da Comunidade

Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

Nesta experiecircncia social a identidade quilombola eacute pensada a partir de uma

origem comum que se desdobra por meio do movimento de deslocamento do grupo

em uma trajetoacuteria de resistecircncia Para o reconhecimento de trajetoacuterias histoacutericas

coletivas como esta como aponta o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho eacute

muito importante o processo de amadurecimento teoacuterico que sai da abordagem da

ldquoantropologia das perdasrdquo para anaacutelises dos processos de emergecircncia eacutetnica jaacute que

ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo

anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedilardquo (OLIVEIRA

FILHO 1998 p 64) Assim eacute necessaacuterio olhar para o processo que gerou a

territorialidade reconhecendo a historicidade a dinamicidade bem como a variedade

de estrateacutegias dos grupos quilombolas

12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA

ldquoA histoacuteria de nosso bisavocirc escravo chamado negro Joseacute Joatildeo Paulo

casado com a negra Maria Joana O lugar que eles moravam no

Estado de Minas Gerais era a cidade de Santo Antocircnio Itambeacute do

Serro aonde eles eram escravizados pelo sinhocirc na eacutepoca da

escravidatildeo Eles eram escravizados no garimpo tirano ouro e pedras

preciosas Ele e sua esposa naquela eacutepoca trabalhavam junto no

52 O criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo atualmente estaacute consagrado em acircmbito internacional e nacional por uma seacuterie de dispositivos normativos Neste sentido destaca-se a convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho sobre Povos Indiacutegenas e Tribais que estabelece em seu artigo 1ordm ldquoA consciecircncia de sua identidade indiacutegena ou tribal deveraacute ser considerada como criteacuterio fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposiccedilotildees da presente Convenccedilatildeordquo Esta convenccedilatildeo foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nordm 143 de 2062002 e entrou em vigor em 2003 No que tange agrave questatildeo especificamente quilombola o Decreto Federal 4887 de 2003 em seu artigo 2ordm sect 1ordm estabelece que ldquoPara os fins deste Decreto a caracterizaccedilatildeo dos remanescentes das comunidades dos quilombos seraacute atestada mediante autodefiniccedilatildeo da proacutepria comunidaderdquo

60

garimpo e tiveram filhos e filhas Seus filhos eram negra Maria

Eduarda negra Dolarina Domingos dos Santos negra Jorgina

Domingos dos Santos negro Joaquim Domingos dos Santos negro

Sebastiatildeo Dama Domingos dos Santos e negro Raimundo Domingos

dos Santos Eles criavam seus filhos com restos que seu sinhocirc dava e

agraves vezes ficavam ateacute sem comer para render mais porque a comida

era pouca ateacute aacutegua era retirada da mina eles tinham que beber aacutegua

suja para poder ateacute cozinhar Aiacute se um negro chegasse perto dessa

mina eles era amarrado e chicotiado e ficavam preso numa das parte

da senzala e ficavam muitos dias ateacute sem comer e doentes por causa

das chicotiadas Seu lugar de descanso eram chamados de lapa

chamado de caverna ou casa de pedra Ali se abrigavam em muitos

para poder aquecer do frio porque natildeo tinham roupa nem sapatos

andavam descalccedilos e assim criavam os seus filhos como meu avocirc

Joaquim Paulo dos Santos que se casou com Maria Zidora dos

Santos que tiveram seus filhos chamados Manoel Ciriaco dos Santos

Sebastiatildeo Vicente dos Santos Ana Raimunda dos Santos Na eacutepoca

que eles se casaram eles natildeo eram mais escravos jaacute eram alforriados

e trabalhavam para os senhores do retiro nos garimpo e na lavoura de

cana e cafeacute A cana para poder fazer a cachaccedila a rapadura e o

melado Eles vivia disso mais trabalhava mais natildeo tinha valor o seu

serviccedilo e moravam tambeacutem na lapa (casa de pedra) que nem foram

criados nos seus costumes porque natildeo era valorizado e ali criavam

seus trecircs filhos junto no trabalho da lavoura e alimentavam Aiacute casou

um dos seus filhos o que era meu pai Manoel Ciriaco dos Santos que

casou com Maria Olina do primeiro casamento que teve quatro filhos

com sua primeira esposa Os filhos Jovelina Ciriaco dos Santos Luiza

Ciriaco dos Santos Olegario da Silva e Joatildeo Loriano dos Santos E aiacute

foi trabalhar para poder criar seus quatro filhos no Estado de Minas

Gerais em Santo Antonio do Itambeacute do Serro O meu pai trabalhava

no retiro dos fazendeiros com carpi lavoura de mandioca retirando

carvatildeo no garimpo do ouro Transportava cachaccedila o queijo rapadura

carne secada no sol farinha de mandioca milho O transporte era feito

na cangaia no lombo de burro que era o trabalho que meu pai fazia

Era pra quem trabalhava que ele chamava de seus fulanos que eram

os fazendeiros para sustentar a sua primeira famiacutelia Com o passar do

tempo o meu pai perdeu a minha irmatilde que faleceu com 8 anos laacute em

Minas Gerais Ela se chamava Luiza Ciriaco dos Santos Meu pai ficou

viuacutevo ai ele ficou sozinho para poder cuidar dos filhos aiacute resolveu

casar de novo com a minha matildee Ana Rodrigues dos Santos aiacute tiveram

quatro filhos laacute no Estado de Minas Gerais Eurides dos Santos

Sebastiana Feliciana dos Santos Antocircnio Gregoacuterio dos Santos e Joseacute

Maria Gonccedilalves Aiacute eu sai dali com minha matildee e meu pai e meus

irmatildeos eu tinha seis meses de vida Aiacute naquela eacutepoca meu pai deixou

o meu irmatildeo com sete anos o Joatildeo Loriano dos Santos Aiacute nos fomos

para o Estado de Satildeo Paulo na cidade de Caiabuacute perto de Presidente

Prudente no ano de 1956 municiacutepio de Martinoacutepolis Meus pais

tiveram mais dois filhos Joaquim dos Santos e Geralda dos Santos Laacute

meu pai trabalhava torrando farinha para meu tio aiacute ele foi pra uma

fazenda arrendocirc uma terra de fazendeiro aiacute prantocirc amendoim

algodatildeo feijatildeo aiacute depois de oito anos noacutes saiacutemos de laacute e vinhemos

para o Paranaacute em 1964 na cidade de Guairaacute no Patrimocircnio do

Maracaju dos Gauacutechos aonde noacuteis residimos ateacute hoje Mais na

chegada aqui era tudo mato aiacute eu meu pai e meus irmatildeos mais velhos

ajudamos meu pai a caccedilar e derrubar a mata Fizemos uma barraca de

lona e acampamos no meio do mato Aiacute com o tempo fizemos um

rancho com taubinha de cedro e cercado de coqueiro e no chatildeo

61

passava argila misturada com esterco de vaca Noacuteis dormia no chatildeo e

minha matildee cozinhava no fogatildeo de barro mais mesmo assim noacutes

passava necessidade tinha dia que noacutes natildeo tinha nem o angu para

comer nem feijatildeo Caccedilava caccedila do mato pescava assava e comia

porque a gordura noacuteis natildeo tinha Minha matildee lavava nossa roupa No

lugar do sabatildeo porque natildeo tinha usava cinza de madeira e lavava na

mina Aiacute com o tempo noacuteis fomo roccedilando fomo preparando a terra e

aiacute saiu a lavoura que noacuteis comecemos a plantar Com o tempo tivemos

mais trecircs irmatildeos Paulo dos Santos Adir Rodrigo dos Santos e Joatildeo

Aparecido dos Santos Com o tempo o meu irmatildeo Paulo ele era

deficiente mental aiacute veio a falecer com 15 anos Aiacute depois faleceu

Manoel Ciriaco dos Santos com 69 anos Aiacute depois faleceu Antocircnio

Gregoacuterio dos Santos faleceu com 35 anos depois faleceu Sebastiana

Feliciana dos Santos depois faleceu Ana Rodrigues dos Santos aiacute

depois que meus pais e meus irmatildeos faleceram ficamos soacute nois os

filhos Continuamos lidando com a terra mais com muita dificuldade

Passamos fome e humilhaccedilatildeo pelos grande fazendeiro porque na

eacutepoca que meu pai faleceu deixou muita diacutevida por causa da lavoura

aiacute comeccedilamos a trabaiaacute por dia para poder sustentar nossas famiacutelia e

assim mesmo tinha muita dificuldade para pode pagar as contas Por

causa disso noacutes nunca pudemos ir pra frente soacute ficamos pra trais aqui

nesse lugar passamos a trabaiaacute mais por dia pros outros nas lavoura

de mandioca para pequeno e grande agricultor para podecirc pagar as

nossas contas e mesmo assim natildeo conseguimos porque se pagasse

as contas ficava sem comer Trabalhamos no rancadatildeo de mandioca

para poder se alimentar Com muita dificuldade trabalhamos dias

mecircs anos e ateacute hoje continuamos no mesmo serviccedilo sem futuro pra

noacutes e nossos filhos Isto eacute um pouco da nossa histoacuteria da nossa

comunidade e o contador da histoacuteria eacute o negro Joseacute Maria Gonccedilalves

filho do Manoel Ciriaco dos Santosrdquo (Joeacute Maria Gonccedilalves) (GRUPO

DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 p 149-151)

A fala apresentada acima eacute central para este trabalho por ser a primeira

narrativa do grupo para agentes do Estado que foi registrada53 O finado Zeacute Maria eacute o

narrador perante os membros do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM)54 e resume

a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade Ele era na eacutepoca o mais velho dentre os irmatildeos

que permaneceram no siacutetio em GuaiacuteraPR depois da saiacuteda da maior parte das

famiacutelias a partir da deacutecada de 1990 Com este decreacutescimo de famiacutelias e com a morte

dos mais velhos que vieram de Minas (tendo como referecircncia principal os pais Manoel

Ciriaco falecido em 1989 e Ana Rodrigues em 1994) os adultos que ficaram na

comunidade se tornaram os portadores das lembranccedilas daqueles que vivenciaram

esta histoacuteria familiar de movimento Zeacute Maria por exemplo saiu de Minas Gerais com

53 Este relato foi gravado em 15 de janeiro de 2007 Disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 54 Grupo Intersecretarial criado pelo governo do estado do Paranaacute em 2005 para realizar levantamento de comunidades quilombolas no estado Foi extinto em 2010

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apenas seis meses de vida Dentre os irmatildeos mais novos que satildeo os que

permanecem em Guaiacutera atualmente Joaquim (55) e Geralda (53) nasceram no estado

de Satildeo Paulo proacuteximo a Presidente Prudente ndash no municiacutepio de CaiabuSP ndash

enquanto Adir (46) e Joatildeo Aparecido (43) nasceram no Pararaacute em Guaiacutera55

Na narrativa acima observa-se que a organizaccedilatildeo dos fatos se daacute de modo

cronoloacutegico e tem iniacutecio com o marco fundamental dos seus bisavocircs casal ancestral

que foi escravizado em Santo Antocircnio Itambeacute do SerroMG Suas lembranccedilas falam

da situaccedilatildeo de pobreza e sofrimento dos antepassados associada a elementos como

o trabalho escravo no garimpo a moradia na senzala a submissatildeo agrave violecircncia fiacutesica

a fome a falta de acesso a roupa e recursos baacutesicos O nascimento de seu pai

Manoel Ciriaco dos Santos em 1920 eacute um acontecimento destacado eacute ele o

personagem central do processo de deslocamento do grupo para o Paranaacute Durante

toda a narrativa destaca os viacutenculos de parentesco nascimentos casamentos e

mortes em uma percepccedilatildeo do tempo baseada na sequecircncia de geraccedilotildees Zeacute Maria

reforccedila que mesmo com o fim da escravidatildeo seus avoacutes continuaram a trabalhar para

os senhores no garimpo e na lavoura de cana e cafeacute tendo se mantido a

desvalorizaccedilatildeo de seu trabalho e a dificuldade de sobrevivecircncia da famiacutelia Indica que

a alforria natildeo trouxe portanto uma mudanccedila significativa para as suas condiccedilotildees de

vida e as relaccedilotildees de trabalho O movimento em etapas eacute iniciado pelas famiacutelias ateacute

chegarem em Guaiacutera onde conquistam novas aacutereas de terra atraveacutes do trabalho duro

em uma histoacuteria de ldquoluta e humilhaccedilatildeordquo O narrador finaliza sua histoacuteria demonstrando

os motivos pelos quais os membros da comunidade natildeo tecircm perspectivas de futuro

pois tal reconfiguraccedilatildeo acaba novamente reproduzindo a opressatildeo

Esta narrativa como todo ato de recordaccedilatildeo deve ser entendida como uma

interpretaccedilatildeo e natildeo como recordaccedilatildeo literal Trata-se da ldquoconstruccedilatildeo de um

lsquoesquemarsquo de uma codificaccedilatildeo que nos permite discernir e por isso recordarrdquo

(CONNERTON 1999 p 30) A autoidentificaccedilatildeo final do narrador como negro bem

como sua insistecircncia em destacar tal caracteriacutestica em relaccedilatildeo aos parentes parece

55 No plano narrativo uma situaccedilatildeo rememorada natildeo seraacute contada a partir de um narrador onisciente

que daacute um testemunho autecircntico e estaacute ldquoacima do desenvolvimento dos fatos mas a partir de um narrador parcial e imerso em seu interiorrdquo permeado portanto pela rede de relaccedilotildees em que se insere o narrador Eacute o processo de visatildeo decorrente do caraacuteter parcial do ponto de vista em sua subjetividade e natildeo os fatos que satildeo vistos o que eacute mais relevante na anaacutelise das narrativas de memoacuterias o que aponta para as condiccedilotildees sociais de sua produccedilatildeo bem como suas articulaccedilotildees com o momento presente (PORTELLI 1996 p 64)

63

apontar a percepccedilatildeo do lugar que cabe ao negro nos contextos descritos O aspecto

da resistecircncia do grupo natildeo eacute lido pelo narrador como confronto aberto em relaccedilatildeo agrave

ordem instituiacuteda Resistir eacute de certa forma persistir na reproduccedilatildeo da ldquocampesinidade

como ordem moralrdquo (WOORTMANN 1990) na luta contiacutenua por estar na terra

condiccedilatildeo de sua existecircncia material afetiva e simboacutelica o que aponta para uma

amaacutelgama entre resistecircncia racial e resistecircncia camponesa (RUBERT SILVA 2009)

Na histoacuteria desta famiacutelia portanto o foco do deslocamento natildeo era o urbano

como comum na deacutecada de 1960 mas a possibilidade de reinserccedilatildeo do grupo por

meio da reproduccedilatildeo do trabalho rural Este anseio do grupo pode ser inserido como

desdobramentos de um panorama histoacuterico mais amplo no qual a resistecircncia dos ex-

escravos passou pela consolidaccedilatildeo de uma alternativa camponesa que

() possibilite a autonomia produtiva direcionada tanto para o autoconsumo quanto para diversos circuitos do mercado Essa autonomia produtiva soacute eacute possiacutevel por sua vez mediante a consolidaccedilatildeo de um espaccedilo em que instacircncias de socializaccedilatildeo que no caso satildeo fundamentadas em uma gramaacutetica do parentesco operam a passagem por parte de escravos e ex-escravos da condiccedilatildeo de coisa agrave condiccedilatildeo de pessoa (RUBERT SILVA 2009 p 267)

A busca pela reproduccedilatildeo camponesa destas famiacutelias negras implicou entatildeo

na decisatildeo de saiacuterem de sua regiatildeo origem com o alto custo emocional e econocircmico

que tal escolha gera O antropoacutelogo Klaas Woortmann com importante contribuiccedilatildeo

para os estudos do campesinato demonstrou como a migraccedilatildeo eacute uma praacutetica de

reproduccedilatildeo dos camponeses enquanto condiccedilatildeo para a permanecircncia de parte da

famiacutelia na aacuterea rural Isso porque a migraccedilatildeo definitiva tem como um dos principais

motivos minimizar ou impedir o fracionamento da terra pela heranccedila56 tendo em vista

o processo histoacuterico de reduccedilatildeo da aacuterea do campesinato pelo avanccedilo capitalista

Outro mecanismo para preservar o patrimocircnio familiar eacute o ldquopadratildeo de preferecircncias

matrimoniaisrdquo pelo casamento endogacircmico (WOORTMANN 2009 p 229-230)

praacutetica que era comum nestas famiacutelias negras desde Minas e que se mantiveram no

processo de migraccedilatildeo A definiccedilatildeo de quem dentro da famiacutelia se tornaraacute migrante

passa por praacuteticas como a valorizaccedilatildeo da primogenitura que define a condiccedilatildeo de

ldquoherdeiro preferencialrdquo No caso de Manoel Ciriaco ao passo que Manoel migrou o

irmatildeo mais velho Sebastiatildeo Vicente tornou-se herdeiro da terra da famiacutelia

56 Assim tambeacutem demonstrou o estudo de Galizoni sobre a regiatildeo especiacutefica do Alto Jequitinhonha (MG) como citado na Introduccedilatildeo (GALIZONI 2002)

64

Devem migrar todos os filhos de determinada famiacutelia menos o herdeiro Para

os membros de um conjunto de irmatildeos haacute portanto como que duas temporalidades

a continuidade para uns e a descontinuidade para outros Para que uns continuem

sitiantes outros devem deixar de secirc-lo (WOORTMANN 2009 p 233) A migraccedilatildeo

ocorre por meio da rede de parentesco os que migram de uma mesma localidade

tendem a buscar um destino comum Laacute iratildeo constituir redes onde se replica o

casamento entre primos e forma-se um sistema de apoio para novos migrantes

(WOORTMANN 2009 p 234) Conforme expliacutecito no cartaz que seraacute apresentado

abaixo exposto no barracatildeo da comunidade o movimento destas famiacutelias negras eacute

compreendido na memoacuteria do grupo como parte fundamental do processo de

emergecircncia eacutetnica

O iniacutecio da trajetoacuteria de deslocamento da comunidade eacute identificado no

cartaz57 abaixo em referecircncia ao traacutefico de africanos para serem comercializados

como escravos no Brasil mais especificamente no estado de Minas Gerais O paiacutes de

origem na Aacutefrica de onde imaginam serem provavelmente descendentes eacute Angola

mas natildeo haacute informaccedilotildees sobre este passado mais remoto A relaccedilatildeo com a regiatildeo de

origem africana surgiu a partir da identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas comuns a

alguns membros da comunidade Segundo Adir lideranccedila quilombola em Guaiacutera

Nosso pessoal natildeo veio de um lugar soacute da Aacutefrica porque tem uns que satildeo alto e magro canela fina que o senhor do engenho usava mais no serviccedilo da roccedila Outros que satildeo mais baixo e forte satildeo mais lento usava mais no trabalho em casa As mulheres mais fortes mais baixa mais troncuda eacute que serviria para dar de mamar para as crianccedilas do senhor de engenho

57 O cartaz foi elaborado pelos membros da comunidade junto com uma teacutecnica da EMATER com quem tecircm forte proximidade quando da inauguraccedilatildeo em 2008 do Telecentro (sala com computadores com acesso a internet) instalado na comunidade pela empresa ELETROSUL Nesta oportunidade foi feita uma festa no barracatildeo da comunidade para receber as pessoas da regiatildeo (inclusive Adir destacou que os vizinhos do Maracaju estiveram presentes pois ainda natildeo havia ocorrido o conflito desencadeado pela elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico no acircmbito do procedimento do INCRA) Para divulgar a histoacuteria da comunidade nesta oportunidade resolveram entatildeo fazer um cartaz em que contassem os momentos principais da sua trajetoacuteria marcada pelo deslocamento Atualmente o cartaz fica exposto no barracatildeo da comunidade ndash espaccedilo onde fazem reuniotildees ocorrem as aulas de educaccedilatildeo de jovens e adultos jogam capoeira recebem visitas de escolas e agentes diversos

65

FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia

66

Em Minas Gerais onde os antepassados dessas famiacutelias criaram raiacutezes

ldquocomeccedila a saga da famiacutelia dos Remanescentes dos Quilombos com a histoacuteria do

patriarca Manoel Ciriaco dos Santos A famiacutelia morava em uma lsquolaparsquo de pedra A vida

era feita de fome e muito trabalhordquo como legendado no cartaz A palavra saga aponta

para o caraacuteter heroico que eacute atribuiacutedo a esta histoacuteria dos antepassados pois de Minas

Gerais tiveram que sair rumo ao desconhecido com bebecircs crianccedilas idosos com

poucos recursos para a viagem enfrentando inuacutemeras dificuldades e desafios para

buscarem oportunidades no estado de Satildeo Paulo Foi a ldquomudanccedila de vida rumo a Satildeo

Paulo com destino a Caiabu O trabalho colheita de algodatildeo e amendoimrdquo Por fim

o terceiro momento descrito no cartaz eacute marcado pelo deslocamento em direccedilatildeo ao

Paranaacute e eacute identificado como sendo a ldquoconquista da liberdade Manoel Ciriaco compra

terras em Guaiacutera no Estado do Paranaacute em 1962 A famiacutelia do patriarca chega ao

patrimocircnio do Maracaju dos Gauacutechos em suas terras no ano de 1964rdquo A liberdade

real significa entatildeo a autonomia e a possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo viabilizada

pela conquista de um pedaccedilo de terra em Guaiacutera um ldquoterritoacuterio quilombolardquo a partir

do qual novas conquistas seratildeo alcanccediladas pela comunidade

Ao comparar a fala de Zeacute Maria com a trajetoacuteria descrita no cartaz eacute possiacutevel

perceber que ele na articulaccedilatildeo de suas memoacuterias ainda natildeo apontava o caminho

do reconhecimento como quilombolas enquanto uma possibilidade de alteraccedilatildeo do

percurso histoacuterico de exclusatildeo que narra jaacute que conclui sua fala apontando para a

falta de perspectiva de futuro para ele e seus parentes No caso do cartaz ao

contraacuterio a perspectiva de futuro aparece com a conquista do territoacuterio e

posteriormente com o conhecimento de uma seacuterie de direitos dos quais se

consideram detentores e em busca dos quais passam a se organizar em torno da

identidade quilombola Isto mostra como a memoacuteria eacute dinacircmica enquanto fruto do

trabalho coletivo realizado com base no ldquorepertoacuterio de narrativas de uma comunidade

afetivardquo Tal repertoacuterio estaacute ldquoem permanente relaccedilatildeo com o oral apresentando-se

sempre como versatildeo aberta permanentemente reconstruiacuteda pelas trocas sociais e

constantemente reestabelecida pela repeticcedilatildeo e pela negociaccedilatildeo de versotildeesrdquo

(ARRUTI1996 p 32-33)

Considerando que a fala de Zeacute Maria foi registrada nos primeiros contatos dos

representantes do grupo com agentes externos em janeiro de 2007 eacute interessante

observar que o eixo narrativo do deslocamento do sofrimento e da discriminaccedilatildeo

67

provavelmente natildeo foi elaborado com a intenccedilatildeo de adequar a histoacuteria do grupo como

uma resposta agrave demanda pela construccedilatildeo identitaacuteria enquanto quilombolas pois esta

questatildeo natildeo aparece em sua reflexatildeo Por outro lado em termos de sistematizaccedilatildeo

histoacuterica da trajetoacuteria do grupo que lhe foi demandada naquele momento os

elementos que estruturaram o seu relato continuaratildeo a subsidiar este processo de

construccedilatildeo identitaacuteria quilombola da comunidade em GuaiacuteraPR

O cartaz por sua vez elaborado pelos membros da comunidade junto com

uma teacutecnica da EMATER com quem consideram ter uma relaccedilatildeo de bastante

confianccedila e proximidade tambeacutem tinha o intuito de contar visualmente a histoacuteria da

comunidade Isto ocorreu em 2008 apoacutes a autoidentificaccedilatildeo do grupo como

quilombolas de modo que eacute possiacutevel observar como o cartaz aponta para a afirmaccedilatildeo

desta identidade como o comeccedilo de um novo ciclo na histoacuteria dessas famiacutelias desde

seus antepassados Se no seacuteculo XIX foram escravizados em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG e laacute resistiram ateacute a deacutecada de 50 do seacuteculo XX com os deslocamentos e

a reorganizaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera novas perspectivas de futuro se apresentam

pelo caminho da identidade quilombola no iniacutecio do seacuteculo XXI Deste modo ldquoa

identidade contrastiva constituiacuteda sob a eacutegide do estigmardquo seraacute invertida como uma

afirmaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a si mesmos (RUBERT SILVA 2009 p 252-258)

A elaboraccedilatildeo da identidade quilombola conforme eacute possiacutevel perceber na fala

de Adir passa a ser construiacuteda a partir da temaacutetica da resistecircncia frente a contextos

contiacutenuos de adversidade desde nossos antepassados da luta e da busca pela

efetivaccedilatildeo dos nossos direitos A categoria de autoidentificaccedilatildeo como ldquoquilombolasrdquo

seraacute mobilizada portanto a partir de elementos preacute-existentes da histoacuteria e da

memoacuteria do grupo Esta fala foi realizada para um puacuteblico de alunos de uma escola

da regiatildeo que visitaram a comunidade na semana da comemoraccedilatildeo da aboliccedilatildeo da

escravatura (13 de maio) em 20 de maio de 201458

Adir () Vou contar pra vocecircs as nossas dificuldades a nossa luta no dia a dia a nossa trajetoacuteria desde os nossos antepassados na Aacutefrica trajetoacuteria da Aacutefrica em navio negreiro de laacute pra caacute e tambeacutem da onde o nosso pessoal foi

58 Esta foi uma de muitas visitas que recebem (segundo Adir recebem mais de mil pessoas durante o

ano todo enfatizando a intensidade dos agendamentos) quando satildeo procurados principalmente por professores da regiatildeo que querem levar os alunos para conhecer a histoacuteria dos quilombolas Aleacutem do 13 de maio as visitas ocorrem com maior frequecircncia proacuteximo ao dia 20 de novembro dia da consciecircncia negra A professora que acompanhou este grupo especiacutefico em 20 de maio de 2014 contou ao final da apresentaccedilatildeo de Adir como jaacute incorporou a visita agrave comunidade como uma proposta de levar todo ano seus alunos para conhecer o ldquoquilombo de Guaiacuterardquo

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centralizado no estado em Minas Gerais onde o trabalho desde o trabalho escravo e depois o trabalho nas mesmas fazendas garimpo de ouro cana-de-accediluacutecar cafeacute Entatildeo todo aquele trabalho que eles faziam em Minas Gerais desde os mais velhos que sofreram na eacutepoca da escravidatildeo Eu sei que o local onde eles morava laacute era um local de difiacutecil acesso em loca de pedra muito difiacutecil o trabalho deles o sofrimento fome sem identidade sem nenhum tipo de direito e isso fez com que eles saiacutessem de laacute e procuramos um local melhor procurando sobreviver melhor e aconteceu que hoje noacutes estamos aqui Eles fizeram a trajetoacuteria de Minas ateacute o Estado de Satildeo Paulo e do estado de Satildeo Paulo nessa regiatildeo aqui em Guaiacutera Eacute uma regiatildeo de muito preconceito o local onde a gente taacute centralizado aqui Me lembro que na idade de vocecircs que a gente estudava no coleacutegio a gente era chamado de macaco de filho do capeta natildeo tinham respeito com a gente jaacute dizia que por causa da cor da pele jaacute significava tudo pra eles a separaccedilatildeo de negro e de branco Entatildeo noacutes sobrevivemos a tudo isso o maior preconceito e mesmo assim noacutes trabalhamos pra eles Depois que a gente cresceu os nossos mais velhos dependiam do trabalho porque quando nosso pai chegou era tudo o mato natildeo tinha nada a sobrevivecircncia era tirar o sustento tambeacutem da mata aproveitar ao maacuteximo possiacutevel pra sobrevivecircncia e poder criar a famiacutelia Aqui noacutes aprendemos a nossa religiatildeo aqui noacutes aprendemos a trabalhar e respeitar as pessoas aqui noacutes aprendemos a sobreviver de forma difiacutecil de forma sofrida E por isso a gente taacute aqui hoje mesmo com esse sofrimento todo toda a pressatildeo opressatildeo de latifundiaacuterio opressatildeo que queria tomar as nossas terras opressatildeo de toda forma E noacutes a nossa resistecircncia pra noacutes taacute aqui ateacute hoje aqui nessa luta sem sonho sem poder sem direito E noacutes a partir de 2005 e 2006 foi aonde que a gente criou essa esperanccedila de que a gente podia conhecer os nossos direitos lutar se organizar construir uma associaccedilatildeo e aonde a gente aprendeu e ainda estamos aprendendo muitas coisas para noacutes requerer nossos direitos Natildeo digo soacute direito da terra mas direito tambeacutem das poliacuteticas puacuteblicas direito de conviver com a naccedilatildeo direito de sobreviver com dignidade e que as pessoas possam nos respeitar E de vocecirc olhar pra um negro e dizer que esse negro natildeo deve andar no meio da sociedade natildeo possa ter as suas poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode ter nada de garantia nem sobrevivecircncia Mas a nossa mentalidade hoje a gente pensa diferente de antes Antes a gente ficava calado a gente natildeo falava numa religiatildeo a gente natildeo falava na nossa culinaacuteria e a gente natildeo podia falar em nada tudo que a gente aprendeu e aprendia isso era guardado soacute na mente E hoje natildeo hoje a gente possa pronunciar que a gente vecirc o direito que tecircm E natildeo soacute por causa do direito porque eu acho que nem precisaria a gente ficar correndo atraacutes de algum direito Se eacute que o negro trabalhou nesse paiacutes de forma injusta e quantos derramaram o seu sangue nesse solo brasileiro pra construir esse paiacutes que natildeo precisava a gente taacute aiacute nessa correria pra recorrer aos nossos direitos recorrer a algumas coisas e ateacute mesmo agrave nossa sobrevivecircncia

Nesta construccedilatildeo identitaacuteria raccedila eacute um conceito ecircmico fundamental no

cotidiano das pessoas que influenciou de modo determinante os significados

atribuiacutedos agrave identidade quilombola neste grupo (MELLO 2012 p 50) A importacircncia

da noccedilatildeo de raccedila no contexto local remete ao processo de ldquooutrificaccedilatildeordquo a que a

populaccedilatildeo negra foi submetida no Brasil conforme analisado por Rita Segato ldquoser

negro significa exibir traccedilos que lembram e remetem agrave derrota histoacuterica dos povos

africanos perante os exeacutercitos coloniais e sua posterior escravizaccedilatildeordquo Enquanto

ldquoalteridade histoacutericardquo a experiecircncia de ldquoser outro no contexto da naccedilatildeo e da regiatildeordquo

69

(SEGATO 2005) eacute ainda mais sentida pelos membros do grupo em sua inserccedilatildeo na

regiatildeo Sul do Brasil onde a segregaccedilatildeo racial remonta ao projeto estatal de

branqueamento da populaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX Mas se antes natildeo se sabiam

ldquoquilombolasrdquo e ficavam calados como aponta Adir passaram entatildeo a se pronunciar

a partir do processo de autoidentificaccedilatildeo identitaacuteria que toma os deslocamentos como

marcos de uma histoacuteria de resistecircncia contiacutenua

Assim o ldquocaminhar quilombolardquo que orienta as narrativas locais no acircmbito do

processo de emergecircncia do grupo como sujeito poliacutetico tema deste capiacutetulo

questiona o cerne dos estereoacutetipos constituintes dos discursos colonial e poacutes-colonial

sobre a construccedilatildeo da alteridade nos termos de sua ldquodependecircncia em relaccedilatildeo ao

conceito de lsquofixidezrsquo Fixidez implica repeticcedilatildeo rigidez e uma ordem imutaacutevelrdquo como

observou o autor indiano Homi Bhabha (BHABHA 1998 p 70-104) Este discurso de

fixidez tem grande reverberaccedilatildeo dentre os agentes do Estado que satildeo aqueles que

instituem categorias para identificaccedilatildeo de sujeitos de direitos coletivos que passam

desta forma a ser objeto da accedilatildeo estatal o que Arruti entende por ldquoprocesso de

nominaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 45-46)

Tomando por base tal ideia de ldquofixidezrdquo a ldquopoliacutetica das identidadesrdquo tende a

captar e reduzir as expressotildees de ldquoidentidades poliacuteticasrdquo que foram engendradas

como resposta dos grupos sociais ao processo hegemocircnico e verticalizante de

produccedilatildeo de ldquoalteridades histoacutericasrdquo A autoidentificaccedilatildeo dos grupos de saiacuteda estaacute

sobredeterminada pela ldquopoliacutetica das identidadesrdquo que eacute institucionalizada legal e

administrativamente em torno da perspectiva de enraizamento territorial o que pode

implicar na perda da profundidade histoacuterica da complexidade de origem da riqueza e

da densidade ldquodas outredades localmente modeladasrdquo (SEGATO 2005) como no

caso de uma comunidade quilombola que se constroacutei a partir do movimento e natildeo na

relaccedilatildeo ancestral com um mesmo territoacuterio Identidade quilombola esta reivindicada

vale destacar pelo grupo que saiu da regiatildeo de origem

A partir destas narrativas e reflexotildees dos quilombolas em Guaiacutera os debates

do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold em seu livro Lines a brief history ganharam

relevacircncia para as anaacutelises desta dissertaccedilatildeo O autor traz exemplos de cosmologias

de grupos para os quais o movimento consiste em um modo de ser Este eacute o caso do

povo Inuit habitantes da regiatildeo do Aacutertico para os quais o ato de viajar define quem o

viajante eacute Neste sentido o viajante e a linha de seu movimento sua trilha satildeo o

70

mesmo Outro exemplo eacute do povo Walbiri estudado por Roy Wagner para os quais a

vida de uma pessoa eacute a soma de seus caminhos e a inscriccedilatildeo de seus movimentos

algo que pode ser traccedilado atraveacutes do chatildeo (INGOLD 2007 p 75-79)

Por mais efecircmeras que sejam essas trilhas permanecem na memoacuteria pois o

trajeto eacute mais do que a distacircncia de um ponto ao outro Implica em atividades

permanentes de interaccedilatildeo e de monitoramento perceptivo do ambiente visando a

sustentaccedilatildeo daquele que o percorre (INGOLD 2007 p 76) Observando uma estreita

ligaccedilatildeo entre locomoccedilatildeo e percepccedilatildeo Ingold define movimento como

(hellip) Not a casting about the hard surfaces of a word in which everything is already laid out but an issuing along with things in the very process of their generation not the trans-port (carrying across) of completed being but the pro-duction (bringing forth) of perpetual becoming (INGOLD 2011 p 12)

A partir dessa compreensatildeo de movimento Ingold elabora sua perspectiva do

habitar que perpassa a imersatildeo dos seres nas correntes do mundo da vida atraveacutes

da atenccedilatildeo e do engajamento com o ambiente em um movimento ao longo de um

caminho no qual as vidas satildeo vividas os talentos desenvolvidos as observaccedilotildees satildeo

feitas e as compreensotildees crescem Observaccedilatildeo implica movimento todos os seres

observadores satildeo animais e todos os animais satildeo moacuteveis O caminho deste modo eacute

a condiccedilatildeo primeira de ser ou melhor de se tornar jaacute que ldquowayfaring is the

fundamental mode by which living beings inhabit the earthrdquo (INGOLD 2011 p 09-12)

O autor reforccedila a prioridade dos processos contiacutenuos sobre a forma final na constante

coproduccedilatildeo do ambiente e de seus habitantes humanos e natildeo humanos Questiona

assim as premissas de uma antropologia sincrocircnica jaacute que esta desconsidera a

historicidade dos grupos sociais em suas trajetoacuterias A questatildeo poreacutem eacute mais ampla

pois tambeacutem eacute possiacutevel abordar a histoacuteria atraveacutes de lugares e eventos circunscritos

A ecircnfase seria em Ingold principalmente em dinacircmicas e processos os quais natildeo se

fixam em momentos ou locais especiacuteficos A anaacutelise de tais movimentos portanto

demandaraacute em sua abordagem uma perspectiva necessariamente diacrocircnica

Ingold dialoga com outras propostas teoacutericas da antropologia que buscam

superar o paradigma da fixidez em prol de anaacutelises que trabalhem com a fluidez59 O

59 Esta anaacutelise proposta por Ingold estaacute conectada com a influecircncia trazida para as discussotildees

contemporacircneas da Antropologia por meio do livro Mil Platocircs dos filoacutesofos franceses Deleuze e Guattari cuja primeira ediccedilatildeo eacute de 1980 Com o enfoque analiacutetico na complexidade na heterogeneidade na coexistecircncia nos processos os autores apontam para a importacircncia das

71

autor entende que a vida se desenvolve natildeo dentro dos lugares mas atraveacutes em

torno e a partir deles para outros lugares ao longo dos caminhos em trajetoacuterias de

movimento A ideia do que se pode tentar traduzir como ldquoviagem a peacuterdquo (wayfaring) eacute

utilizada entatildeo para descrever a experiecircncia corporal deste movimento

perambulatoacuterio pois eacute como ldquocaminhantesrdquo que os humanos habitam a terra O autor

prefere entatildeo conceituar as pessoas como ldquohabitantesrdquo e natildeo como ldquolocaisrdquo pois

seria equivocado supor que estas pessoas estivessem confinadas dentro de um lugar

particular ou que sua experiecircncia ficasse circunscrita pelo restrito horizonte de uma

vida vivida apenas ali Trata-se ao contraacuterio da ligaccedilatildeo entre lugares que ocorre por

meio das trilhas deixadas Onde as pessoas se encontram neste caminhar as trilhas

se entrelaccedilam formando um noacute O lugar portanto eacute como um noacute mais ou menos

denso de acordo com a quantidade de linhas de vida entrelaccediladas (INGOLD 2011

p 148)

Dentro deste modo de anaacutelise o siacutetio onde vivem os quilombolas de

GuaiacuteraPR pode ser entendido como um noacute de trilhas entrelaccediladas cuja origem

descreve uma linha de conexatildeo com o noacute originaacuterio Santo Antocircnio do ItambeacuteMG60 e

um outro noacute tambeacutem relevante na regiatildeo de Presidente PrudenteSP Natildeo uma

territorialidade fechada e circunscrita em Guaiacutera mas uma base territorial que

diferentes linhas que compotildeem uma multiplicidade Apesar de sua relevacircncia e profundidade teoacuterica iremos apenas mencionar que no que tange aos processos de territorializaccedilatildeo tema que se relaciona diretamente com a anaacutelise desta dissertaccedilatildeo a partir da ecircnfase no movimento haveraacute sempre um potencial de desterritorializaccedilatildeo e de reterritorializaccedilatildeo conforme as respostas agenciadas diante de elementos cuja interferecircncia gera novos contextos de modo que as configuraccedilotildees nunca satildeo fechadas Por outro lado ponderam que o aparelho do Estado enquanto ldquoo logos o filoacutesofo-rei a transcendecircncia da Ideia a interioridade do conceito a repuacuteblica dos espiacuteritos o tribunal da razatildeo os funcionaacuterios do pensamento o homem legislador e sujeitordquo natildeo compreende em sua atuaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo este tipo de dinacircmica presente por exemplo em praacuteticas como a do nomadismo (DELEUZE GUATTARI 2000 [1997] p 35) Neste sentido importante mencionar que a proacutepria descriccedilatildeo do funcionamento do rizoma modelo epistemoloacutegico nesta teoria filosoacutefica aponta para dinacircmicas de territorializaccedilatildeo e desterritorializaccedilatildeo e reterritorializaccedilatildeo Por um lado as linhas de segmentaridade que compotildeem o rizoma iratildeo estratificaacute-lo de modo a territorializaacute-lo e organizaacute-lo mas por outro o rizoma tambeacutem eacute composto por linhas de desterritorializaccedilatildeo linhas de fuga as quais podem reencontrar ldquoorganizaccedilotildees que reestratificam o conjuntordquo Resumidamente podemos entender o rizoma a partir da seguinte citaccedilatildeo ldquooposto a uma estrutura que se define por um conjunto de pontos e posiccedilotildees por correlaccedilotildees binaacuterias entre estes pontos e relaccedilotildees biuniacutevocas entre estas posiccedilotildeesrdquo O rizoma eacute feito somente de linhas ldquolinhas de segmentaridade de estratificaccedilatildeo como dimensotildees mas tambeacutem linha de fuga ou de desterritorializaccedilatildeo como dimensatildeo maacutexima segundo a qual em seguindo-a a multiplicidade se metamorfoseia mudando de naturezardquo (DELEUZE GUATTARI 2000 p 31) 60 Antes das viagens realizadas para Santo Antocircnio do Itambeacute e Serro em Minas Gerais no final da

pesquisa em marccedilo e junho de 2015 estas conexotildees permaneciam no plano da memoacuteria posteriormente o viacutenculo estaacute sendo reconstruiacutedo com os parentes que foram (re)encontrados

72

possibilitou a reproduccedilatildeo de uma comunidade61 que se entende aberta em uma

articulaccedilatildeo entre identidade parentesco e origem comum Importante destacar que

um elemento importante na construccedilatildeo desta identidade tambeacutem passa pela

possibilidade de movimento que surge atraveacutes de viagens que se tornaram frequentes

na vida da lideranccedila do grupo Adir em contato com agentes externos em encontros

reuniotildees audiecircncias etc Para seguir nas trilhas abertas pelos habitantes da

comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo se pode portanto

desconsiderar a importacircncia dessas relaccedilotildees externas inclusive para ldquoproduzir natildeo soacute

o a imagem do grupo mas o proacuteprio grupordquo

Nesta produccedilatildeo o exerciacutecio de representaccedilatildeo das ldquolideranccedilas peregrinasrdquo

em seu papel de porta-voz eacute fundamental ao ldquose fazerem conhecer por autoridades

extra-locaisrdquo atraveacutes do circuito das viagens e do paulatino domiacutenio da loacutegica de

mediaccedilatildeo (ARRUTI 1996 p 57) A busca por reconhecimento contatos acesso a

direitos projetos de futuro atraveacutes das lideranccedilas em constantes viagens podem ser

entendidas portanto como ldquoverdadeiras romarias poliacuteticasrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998

p 65) Pude acompanhar uma dessas viagens da lideranccedila do grupo Adir para a

participaccedilatildeo como delegado representando o estado do Paranaacute na Conferecircncia

Nacional de Educaccedilatildeo (CONAE)62 em novembro de 2014 que ocorreu em

BrasiacuteliaDF Durante o evento Adir me falou em uma entrevista sobre sua experiecircncia

com viagens para diversos encontros que destaca como um dos pontos mais

61 Se em relaccedilatildeo aos parentes que estatildeo fora a comunidade quilombola natildeo pode ser vista como

unidade fechada em relaccedilatildeo aos que estatildeo morando no territoacuterio vale ressaltar isso tambeacutem natildeo se sustenta O papel de lideranccedila de Adir apesar de natildeo haver candidato disposto agrave substituiacute-lo mesmo depois de sete anos na presidecircncia da ACONEMA colocaria segundo outros parentes me falaram seu nuacutecleo familiar numa posiccedilatildeo privilegiada Por outro lado Adir entende que sua atuaccedilatildeo como lideranccedila as constantes viagens para outras cidades ou mesmos os deslocamentos entre a comunidade e a sede do municiacutepio em Guaiacutera (distante vinte quilocircmetros do siacutetio) prejudica seu trabalho como agricultor e a possibilidade de dedicaccedilatildeo agrave sua ldquovida particularrdquo o que os outros parentes natildeo reconheceriam Haacute tambeacutem fissuras internas em relaccedilatildeo ao modo adequado de gerir a associaccedilatildeo e de lidar com os projetos e programas do governo que a comunidade acessa o que fica restrito a conversas indiretas e natildeo eacute explicitado em contextos mais amplos tendo em vista que mais do que um grupo poliacutetico trata-se de relaccedilotildees de convivecircncias diaacuterias de uma comunidade estruturada nos viacutenculos de parentesco Haacute tambeacutem visotildees dissonantes de projetos de futuro entre as geraccedilotildees sendo que os jovens satildeo criticados pelos mais velhos por natildeo valorizarem as ldquofacilidadesrdquo que eles teriam se comparado com a infacircncia e juventude de precariedade material que os adultos viveram Os jovens satildeo vistos como seduzidos por padrotildees de consumo por exemplo e distantes de Deus Apesar da relevacircncia das dinacircmicas internas natildeo me aprofundarei neste tema No entanto se enfatizo a dimensatildeo do grupo em distinccedilatildeo ao contexto local natildeo desconsidero essas fissuras internas e a criacutetica necessaacuteria a uma idealizaccedilatildeo do conceito de comunidade como unidade harmocircnica 62 Adir foi delegado com direito a voz e voto na Conferecircncia por indicaccedilatildeo estadual enquanto representante ldquodos movimentos de afirmaccedilatildeo da diversidaderdquo Dentro deste conceito estavam abarcados os seguintes movimentos ldquoLGBT movimento feminista movimento negro representaccedilatildeo quilombola representaccedilatildeo social dos povos indiacutegenasrdquo conforme regulamento da conferecircncia

73

positivos em relaccedilatildeo agrave inserccedilatildeo da comunidade no movimento quilombola O grupo

passou a ter contato com os oacutergatildeos puacuteblicos estaduais de modo que ele chegou a

fazer treze viagens em um mesmo ano para Curitiba capital do Paranaacute distante mais

de setecentos quilocircmetros de Guaiacutera

Tais viagens como reforccedilou Adir o transformaram profundamente e o

construiacuteram enquanto lideranccedila Nesta viagem para Brasiacutelia em novembro de 2014

jaacute era a quarta vez que Adir estava na capital nacional Segundo ele a primeira vez

que laacute esteve foi a viagem mais marcante pois as lideranccedilas quilombolas foram

recebidas no dia 20 de novembro o ldquoDia da Consciecircncia Negrardquo pelo entatildeo

presidente da repuacuteblica Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que estava comeccedilando a abrir a

porta para as comunidades quilombolas no governo federal Adir relata como por

meio desta participaccedilatildeo em encontros eventos reuniotildees foi aos poucos perdendo a

timidez que considera caracteriacutestica dos membros do grupo quando em contato com

pessoas de fora

Adir Comecei a se soltar um pouco mas na hora que eu falava eu tremia porque totalmente uma realidade diferente da que noacutes veve a nossa vida ali foi uma vida inteira soacute ali entre noacutes mesmos No mais as pessoas ali da cidade que a gente as vezes no comeccedilo a gente nem ia soacute vivia entre noacutes aiacute depois ter o conhecimento na cidade mas a vida pacata mesmo aquela vidinha laacute escondida Ai de repente acontece o reconhecimento da nossa comunidade aiacute eu comeccedilo a sair em busca de objetivo melhoria em vaacuterias aacutereas poliacuteticas puacuteblicas Ai comecei a conhecer pessoas de dentro do estado comecei a conhecer pessoas fora do estado e hoje eu tenho contato no RS SC MS BA um monte contato com outras comunidades quilombolas e aldeia indiacutegena

A caracteriacutestica de movimento como algo que empodera as lideranccedilas

tambeacutem estaacute presente na anaacutelise de Yara Alves em seu artigo Como etnografar um

mundo em que tudo gira gera e mexe sobre a comunidade quilombola de Pinheiro

no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais A relaccedilatildeo entre ldquoandanccedilasrdquo e ldquosabedoriardquo

eacute acionada pelos membros do grupo no contexto de sua inserccedilatildeo no movimento

quilombola a partir das experiecircncias das viagens a eventos realizadas pelas

lideranccedilas ao representarem a associaccedilatildeo63 (ALVES 2015 p 85) Deste modo as

63 A centralidade do movimento abrange tambeacutem outras formas e escalas de socialidade do grupo As

ldquosaiacutedas para trabalharrdquo que os conectam com a regiatildeo do interior de Satildeo Paulo municiacutepio de Barreirinha eacute um dos elementos que compotildeem movimentos muacuteltiplos ldquoencarados de maneiras diversas e altamente valorizados - um motor existencial muito mais do que um recurso econocircmicordquo

(ALVES 2015)

74

viagens feitas pelas lideranccedilas poliacuteticas adquirem uma dimensatildeo fundamental no

processo de emergecircncia eacutetnica dos grupos sociais

No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos portanto a

possibilidade de deslocamento constituiu a experiecircncia dos antepassados enquanto

estrateacutegia de conquista de condiccedilotildees melhores de vida para as famiacutelias e continua se

desdobrando na ativa atuaccedilatildeo da lideranccedila do grupo em viagens fora de Guaiacutera Eacute a

partir do processo de elaboraccedilatildeo identitaacuteria que ocorre a passagem de uma

experiecircncia de silenciamento para a possibilidade de se pronunciarem sobre a proacutepria

identidade e buscarem novos caminhos de reproduccedilatildeo social do grupo

13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE

A importacircncia das dinacircmicas de movimento para a Comunidade Quilombola

Manoel Ciriaco dos Santos que buscamos demonstrar ateacute aqui tambeacutem estaacute

presente na dimensatildeo da religiosidade dos membros do grupo tema que iremos tratar

neste subitem Na minha uacuteltima viagem a campo para Presidente PrudenteSP

realizada no iniacutecio de agosto de 2015 pude perceber como as relaccedilotildees entre

movimento e religiosidade estavam presentes na histoacuteria do grupo de um modo

marcante na proacutepria motivaccedilatildeo da saiacuteda de Manoel Ciriaco de Minas O intuito desta

viagem de campo foi visitar D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que haviacuteamos

encontrado em marccedilo morando em SerroMG e que em junho ajudamos a trazecirc-la

de mudanccedila para morar com a sobrinha D Jovelina em Presidente PrudenteSP

Nas outras duas viagens anteriores em que estive com D Ana em marccedilo e

em junho de 2015 natildeo havia tido oportunidade de conversar com ela sobre os motivos

que impulsionaram a saiacuteda de seu irmatildeo Manoel Ciriaco de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG em 1956 quando foi embora e nunca mais voltou Imaginando que ela

iria me falar das dificuldades de sobrevivecircncia de toda a famiacutelia na terra que era

heranccedila da matildee deles Izidora sou surpreendida com sua resposta ela conta que o

que desencadeou a saiacuteda de Manoel foi que ele ficou muito doente e assim que

melhorou resolveu ir embora O movimento inicial de deslocamento do grupo familiar

segundo me contou tinha sido impulsionado por causas maacutegico-religiosas

D Ana Raimunda Ele ficou doente depois a cabeccedila esquentou e saiu de laacute que laacute era bom e era ruim ficou doente demais doenccedila quase matou ele laacute mas Deus ajudou que

75

Dandara Mas era coisa feita pra ele

D Ana Raimunda Era ele oh (fez sinal com as matildeos)

Dandara Tinha tambeacutem desentendimento entre os parentes

D Ana Raimunda Tinha cascou fora foi bom ter vindo embora se natildeo ia mais de pressa neacute Entatildeo eles vieram e a gente ficou laacute rezando se apegando com Deus pra eles Demorou dar notiacutecia nossa ela (Izidora matildee de D Ana e Manoel) ficava chorando dia e noite eu falei natildeo chora natildeo que eles daacute notiacutecia e como deu neacute deu notiacutecia que tava bem graccedilas a Deus

Se ateacute agora analisamos os fatores sociais e econocircmicos que contribuiacuteram

para a decisatildeo de deslocamento destas famiacutelias neste momento da conversa com D

Ana vieram agrave tona informaccedilotildees sobre como dentro deste quadro social mais amplo

as tensotildees sociais internas foram decisivas e atuaram para o impulso de saiacuteda

Importante observar neste sentido que natildeo haacute uma reaccedilatildeo mecacircnica ao

desenvolvimento regional mas sim uma combinaccedilatildeo de fatores externos e internos

ao grupo familiar

A fala de D Ana aponta para uma acusaccedilatildeo de que Manoel teria sido alvo de

uma agressatildeo maacutegica com consequecircncias muito seacuterias pois quase o levou agrave morte

e que quando ele se recuperou dos efeitos deste enfeiticcedilamento64 deu na cabeccedila de

vir embora As dimensotildees maacutegico-religiosas nesta visatildeo de mundo especiacutefica

portanto podem gerar deslocamentos concretos

Neste momento do texto apresento alguns exemplos sinteacuteticos65 do modo

como a religiosidade implica em movimento concretos na trajetoacuteria de vida dessas

pessoas e tambeacutem estaacute permeada por movimentos natildeo concretos em seu cotidiano

Estes movimentos sutis se apresentam por exemplo no acircmbito das relaccedilotildees que satildeo

estabelecidas entre o humano e o divino como quando acionam a capacidade de se

64 Importante considerar que a histoacuteria sobre a morte de Manoel em GuaiacuteraPR tambeacutem eacute narrada como

resultado de um feiticcedilo Geralda me contou que foi uma pessoa bem proacutexima da famiacutelia que tinha muita inveja de Manoel porque eles tinham progredido ele era respeitado e querido na cidade Relatou que Manoel estava trabalhando na roccedila e foram buscar uma aacutegua para ele a seu pedido Soacute que o pessoal que estava na roccedila comeccedilou a achar estranho que estava demorando demais para voltarem e parecia ateacute que tinham ido furar o poccedilo D Ana falou com Manoel que ela estava esganado por aacutegua e por quecirc natildeo esperava chegar em casa A pessoa que fez o feiticcedilo entatildeo pegou um sapo raspou o couro dele e pocircs na aacutegua Daiacute Manoel bebeu mas os outros natildeo quiseram porque tinham cisma Com o passar do tempo ele comeccedilou a se sentir mal natildeo conseguia comer porque sentia gosto de areia a pressatildeo subia foi piorando sofreu muito ateacute que morreu Ressalta-se que estas natildeo foram as uacutenicas histoacuterias sobre feiticcedilo que me foram relatadas durante o trabalho de campo no entanto natildeo irei me deter neste assunto pois isso geraria uma dispersatildeo no texto 65 Natildeo eacute possiacutevel levando em conta o enfoque analiacutetico da dissertaccedilatildeo abordar as questotildees relativas

agrave religiosidade do grupo com a profundidade necessaacuteria em apenas um subitem Por isso iremos analisar sobre a religiosidade apenas alguns aspectos que satildeo relevantes para o conjunto do argumento do texto no que tange ao tema do movimento

76

deslocar entre mundos e conectar subjetividades temporalidades e espacialidades

distintas Os mortos os espiacuteritos as entidades os santos em suas diversas formas

de manifestaccedilatildeo satildeo agentes importantes e presentes no dia-a-dia dos quilombolas

As formas como suas praacuteticas de devoccedilatildeo satildeo interpretadas pelos vizinhos

consideradas como preconceituosas pelos quilombolas eacute tambeacutem uma dimensatildeo

importante Este preconceito que combina dimensotildees raciais e religiosas como

iremos analisar impulsionou a saiacuteda de Antocircnio filho de Manoel Ciriaco que realizava

trabalhos mediuacutenicos na comunidade Ele teve que ir morar na periferia de Guaiacutera

pois sua praacutetica espiritual como curador e meacutedium natildeo era aceita no bairro rural

ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo

A religiosidade importante destacar eacute uma esfera significativa de reproduccedilatildeo

da memoacuteria comunitaacuteria e do viacutenculo que o grupo manteacutem com a regiatildeo de origem

Aleacutem de narrativa (cognitiva) como analisamos no subitem anterior a memoacuteria eacute

tambeacutem performativa e corporal O reencenamento do passado na conduta presente

constitui uma ldquomnemocircnica do corpordquo66 muito caracteriacutestica nas culturas orais67

conforme analisado no livro Como as sociedades recordam do antropoacutelogo Paul

Connerton (CONNERTON 1999 p 86) Um dos aspectos interessantes desta

mnemocircnica corporal quilombola foi indicado por Geralda que trabalha como meacutedium

em um terreiro de Umbanda haacute mais de sete anos a experiecircncia da incorporaccedilatildeo de

entidades como os pretos-velhos permite a reativaccedilatildeo de memoacuterias dos espiacuteritos de

escravos

Tais espiacuteritos satildeo investidos de eficaacutecia e de autoridade para fornecer

conselhos de cura para os vivos quando incorporados nos meacutediuns Estas entidades

espirituais se apresentam no terreiro de Umbanda para lidar com todos os tipos de

problemas pessoais da clientela que frequenta o terreiro Enquanto ldquoculto de

possessatildeordquo a Umbanda eacute composta por um panteatildeo que integra ldquoalgumas entidades

do candombleacute aleacutem de novos estereoacutetipos como iacutendios preto-velhos tropeiros

66 Para aleacutem das histoacuterias narrativas nos interessam tambeacutem o processo de permanecircncia social

enfocado atraveacutes da noccedilatildeo de ldquomemoacuteria-haacutebitordquo enquanto capacidade de reproduzir determinada accedilatildeo que dentro da dimensatildeo social eacute ldquoingrediente essencial para o desempenho bem-sucedido dos coacutedigos e normasrdquo Haacute outras formas de lembrar por exemplo por meio de ldquoatos de transferecircncia que tornam possiacutevel recordar em conjuntordquo Trata-se de ldquotipos particulares de repeticcedilatildeordquo que ocorrem no acircmbito da ldquomemoacuteria comunalrdquo como vivenciado nas cerimocircnias comemorativas e nas praacuteticas corporais (CONNERTON 1999 p 44) 67 Em contraste com a cultura escrita caracterizada pela ldquopraacutetica de inscriccedilatildeordquo por meio da qual a

memoacuteria se reproduz atraveacutes dos ldquodispositivos de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilatildeordquo (CONNERTON 1999 p 84-87)

77

baianosrdquo Com profunda influecircncia do Espiritismo e do Catolicismo popular e derivada

em boa parte do Candombleacute a Umbanda deu cobertura para uma seacuterie de ldquopraacuteticas

miacutesticas populares altamente estigmatizadasrdquo Eacute a proacutepria marginalidade desses

espiacuteritos no que tange aos valores estabelecidos pelo sistema social hegemocircnico a

fonte da forccedila e da capacidade que possuem para resolver as afliccedilotildees humanas

(BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64-86)

A manifestaccedilatildeo dos pretos-velhos ou as pretas-velha espiacuteritos de velhos(as)

escravos(as) traz agrave tona temas da memoacuteria coletiva brasileira e da ideologia religiosa

que resiste agraves hierarquias alienantes do colonialismo e do capitalismo (MATORY

2007 p 405) A representaccedilatildeo sobre estes espiacuteritos enquanto importante siacutembolo da

identidade nacional abrange desde a submissatildeo resignada agrave resistecircncia heroica do

escravo (HALE 1997 p 393)

These spirits constitute sign vehicles through which Umbandistas interpret and explore themes of racism national identity domination suffering and redemption within a moral framework broadly informed by the values and motifs of popular Catholicism At the same time pretos velhos work a reciprocal semiotic movement through them these cultural discourses and collective memories constitute bodily experience by way of spirit possession and spirit performance (HALE 1997 p 393)

Eacute por meio dessa experiecircncia corporal vivenciada por Geralda

quinzenalmente como meacutedium na ldquoAssociaccedilatildeo Espiacuterita Reino de Baluaecircrdquo que ela faz

a associaccedilatildeo dos pretos-velhos com sua trajetoacuteria pessoal e familiar Enquanto

quilombolas agricultores ela compara o desgaste fiacutesico que tiveram em decorrecircncia

dessas atividades rurais com a experiecircncia dos pretos(as) velhos(as) quando viveram

na terra e trabalharam como escravos(as) Esta memoacuteria corporal se manifesta na

forma de incorporaccedilatildeo do meacutedium quando ldquoo controle social do corpo natildeo eacute

simplesmente abolido no transe mas substituiacutedo por outro controle o dos estereoacutetipos

corporais da incorporaccedilatildeo de cada entidade miacutesticardquo (BRUMANA MARTINEZ 1991

p 84) A maioria destas entidades exibem sinais caracteriacutesticos de idade e debilidade

fiacutesica caminham debruccediladas sobre suas bengalas com rigidez articular movimentos

trabalhados e pausados Ao incorporarem no meacutedium portanto apresentam um

ldquodesempenho corporalrdquo que passa por uma certa codificaccedilatildeo estereotiacutepica que as

identificam entre si e as distinguem das demais entidades atraveacutes de atributos

materiais como o cachimbo e o vinho doce podendo usar chapeacuteu de palha e lenccedilos

(BRUMANA MARTINEZ 1991 p 240)

78

Podemos pensar nas entidades da Umbanda enquanto mediadores entre

temas culturais mais abrangentes e a experiecircncia corporal Ademais aleacutem desta

codificaccedilatildeo a performance da possessatildeo espiritual vai ocorrer tambeacutem a partir de

uma ldquogramaacutetica da accedilatildeo socialrdquo a partir do contexto do proacuteprio meacutedium (HALE 1997

P 393) Assim os pretos-velhos podem ser analisados como veiacuteculos atraveacutes dos

quais

Umbandistas speak to and embody Brazilian dramas of race and power () Their bodies are worn-out from hard labor torture hunger and accident This is understood most of the time the physical signs stand as a mute reproach for the suffering inflicted by the allegedly benevolent system of Brazilian slavery (HALE 1997 p 395 397)

Geralda entende que eacute a partir dessa experiecircncia comum que ela ganha forccedila

como meacutedium para trabalhar com os(as) pretos-velhos(as) Segundo ela me contou

sobre as histoacuterias dessas entidades eles(as) cantavam para aliviar a dor de tanto que

apanhavam amarrados com a matildeo para traacutes e com os cantos louvavam a Nossa

Senhora Aparecida para que os ajudassem E completou ldquoera soacute no chicote ficavam

presos comendo aquele angu os restos quando a princesa Isabel libertou os

negros eles louvaram a Deusrdquo Ela se lembrou tambeacutem de como ouvia seus pais

contarem sobre os parentes que tinham trabalhado como escravos em Minas Gerais

e da avoacute Maria Bernarda que chorava e falava que eles natildeo tinham liberdade

O acionamento dos espiacuteritos dos antepassados dos negros representado de

um modo abrangente por estas entidades espirituais deste modo faz com que se

tornem mediadores da elaboraccedilatildeo identitaacuteria o que reforccedila a forccedila poliacutetica da

memoacuteria revivida nos rituais da Umbanda Este paralelismo construiacutedo na fala de

Geralda sobre a experiecircncia de trabalho racismo pobreza escravidatildeo em relaccedilatildeo agraves

entidades dos pretos-velhos foi se explicitando ao longo do trabalho etnograacutefico

Segundo ela como trabalhou muito catando algodatildeo sabe bem o que eacute o trabalho

duro e o porquecirc de os pretos-velhos serem encurvados pois era de tanto trabalhar na

roccedila no sol quente Eacute por causa da lembranccedila deste corpo torturado sujeito a um

sofrimento ilegiacutetimo que quando o preto-velho sai do corpo do meacutedium e

desincorpora eles te mata ocecirc de tatildeo sofrido que eles eram

79

FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildee o seu altar

Esta memoacuteria do sofrimento ilegiacutetimo do tempo da escravidatildeo se desdobra

em uma infeliz continuidade que se estende ao tempo presente Neste sentido haacute

uma reflexatildeo feita pelos quilombolas sobre como a pobreza assim como o racismo

institui uma realidade contraacuteria agrave vontade divina jaacute que foi Deus que nos deu esta cor

e todos somos irmatildeos perante a Ele Nesse sentido a cunhada de Geralda casada

com seu irmatildeo Joaquim Eva que eacute a principal referecircncia da praacutetica do catolicismo na

comunidade de Guaiacutera comenta sobre como passou a ter orgulho de sua cor

Eva Eu tenho o maior orgulho que eu sou preta eu natildeo tenho problema que eu sou preta natildeo Deus me deu esta cor e eu natildeo ligo natildeo () De primeiro eu tinha vergonha que eu era preta eu natildeo ligo que eu sou preta natildeo Deus fez eu assim eu tenho que ficar assim vou fazer o quecirc Natildeo tem como a pessoa mudar mais Eacute a vontade de Deus assim a cor da pessoa com sauacutede

A ideia de que haveria uma maior sacralidade dos negros eacute recorrente neste

grupo quilombola Liliana Porto encontrou uma concepccedilatildeo proacutexima nas suas

pesquisas no Vale do Jequitinhonha e aponta que ldquosatildeo os negros e pobres os

80

legiacutetimos representantes do divinordquo (PORTO 2007 p 143) Estas duas experiecircncias

de subalternidade a pobreza e o racismo muito presentes na histoacuteria do grupo

quilombola em Guaiacutera satildeo vistas por eles como recompensadas por Deus por outro

lado atraveacutes da presenccedila de dons mediuacutenicos e espirituais em vaacuterios membros da

famiacutelia como meacutediuns benzedores e adivinho Desde os meus primeiros contatos

com a comunidade ainda em 2011 quando eu era assessora do Ministeacuterio Puacuteblico

Geralda jaacute se identificara como umbandista e nos mostrou sua carteirinha do Conselho

Mediuacutenico do Brasil (CEBRAS)

FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil

As histoacuterias da manifestaccedilatildeo da mediunidade e dons de benzimento cura e

adivinhaccedilatildeo satildeo muito valorizadas internamente como um dom Seria como uma

missatildeo recebida do plano superior que coloca em movimento o acesso agraves fontes do

sagrado democratizando-o e provocando uma ldquorotinizaccedilatildeo dos milagresrdquo (BRUMANA

MARTINEZ 1991 p 23-25) A histoacuteria do finado Zeacute Maria eacute muito interessante

neste sentido Como me contou Geralda quando ele nasceu ele veio dentro de uma

espeacutecie de capa um envoltoacuterio que era um iacutendice reconhecido pelos adultos de sua

capacidade de adivinhaccedilatildeo um dom que ele jaacute veio trazendo porque Deus deu a ele

A parteira (Maria Inaacutecia das Dores matildee de Antocircnio e sogra de Geralda) que conhecia

o significado desta peculiaridade perguntou para D Ana matildee de Zeacute Maria se ela

81

queria guardar a capa mas a matildee disse que natildeo e esta foi enterrada Se tivesse sido

guardada quando ele completasse sete anos poderia ser confirmado seu dom

adivinhatoacuterio atraveacutes do seguinte desafio pegariam a roupa que ele usou quando

nasceu e colocariam no meio de outras Se ele adivinhasse qual era a que tinha usado

na ocasiatildeo de seu nascimento o seu dom estaria confirmado Mesmo este processo

natildeo tendo sido feito Geralda reforccedilou como ele era sabido e natildeo falava nada errado

ou seja o dom estaacute presente independente de um processo ritual de confirmaccedilatildeo

Haacute entre os membros do grupo a referecircncia mais forte dos seguintes

benzedoresbenzedeiras que jaacute faleceram e vieram de Minas Gerais morar em Guaiacutera

Ana Rodrigues (esposa de Manoel Ciriaco) Altina (tia de Ana Rodrigues irmatilde de sua

matildee Maria Bernarda) Maria Madalena (nora de Altina e sogra de Geralda) Geraldo

(filho de Altina e pai de Eva) Sobre Geralda sua matildee Ana Rodrigues benzeu muita

gente no ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo e depois falavam que a gente natildeo prestava

FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria68

68 Ela faleceu com 108 anos e segundo acreditam essa era sua idade miacutenima jaacute que ela foi registrada

em Minas Gerais e antigamente se demorava para fazer o registro da crianccedila

82

Segundo Geralda nascida em 1962 e criada em Guaiacutera no siacutetio os meus pais

criaram noacutes assim iam buscar remeacutedio na casa dos benzedor o que destaca o

aspecto maacutegico das concepccedilotildees de sauacutede e doenccedila na comunidade Os remeacutedios

eram predominantemente caseiros produzidos a partir da proacutepria mata como as

garrafadas os chaacutes o uso terapecircutico de uma diversidade de plantas medicinais A

restauraccedilatildeo da sauacutede neste contexto eacute permeada por uma concepccedilatildeo ampla que

natildeo se restringe a males com origens fiacutesicas mas perpassam uma seacuterie de ameaccedilas

miacutesticas como o mau-olhado o quebrante ateacute a feiticcedilaria que soacute podem ser revertidos

por meio de benzeccedilotildees simpatias curas recebidas espiritualmente ou no caso do

feiticcedilo com accedilotildees de defesa que anulem seus efeitos69 Um contexto semelhante eacute

analisado por Porto a partir da etnografia realizada proacuteximo da regiatildeo de origem do

grupo no Alto Jequitinhonha

No universo acima delineado a percepccedilatildeo do processo sauacutede e doenccedila eacute bastante complexa envolvendo uma seacuterie de avaliaccedilotildees em torno de questotildees religiosas maacutegicas e orgacircnicas e natildeo sendo evidente a separaccedilatildeo entre estas esferas () natildeo se baseia em uma distinccedilatildeo clara entre natural e sobrenatural Mesmo a distinccedilatildeo entre ldquodoenccedila de meacutedicordquo e ldquodoenccedila de curadorrdquo hoje existente me parece muito mais o resultado de um processo de especializaccedilatildeo dos serviccedilos de cura e a classificaccedilatildeo natildeo eacute necessariamente excludente (PORTO 2005)

Geralda ressaltou vaacuterias vezes em conversas comigo e tambeacutem pude

observar na minha estadia em sua casa a quantidade de pessoas que ela benze

neste caso ldquosozinhardquo aleacutem do benzimento que ela faz como meacutedium no terreiro Haacute

para ela um sentido de obrigaccedilatildeo como benzedeira em atender a todos que lhe

pedem ajuda Desde pequena relatou jaacute pediam para que ela benzesse mas ela natildeo

queria e fugia Quando comeccedilou a trabalhar na Umbanda a demanda de benzimento

69 Atualmente satildeo muito mais dependentes da aquisiccedilatildeo de remeacutedios e alguns frequentam meacutedicos

regularmente tanto no postinho do Maracaju onde haacute uma tarde disponibilizada na semana exclusivamente para os quilombolas Haacute tambeacutem casos que dependem dos deslocamentos promovidos pelo municiacutepio principalmente a Cascavel para tratamentos especializados agendados pelo SUS (principalmente Joaquim que tem problema na perna Eva e Geralda que tecircm problemas nos olhos) Adir e Joaquim fazem questatildeo de frisar que natildeo tomam remeacutedio de farmaacutecia e Nilza viuacuteva de Zeacute Maria me relatou que foi pouquiacutessimas vezes no meacutedico durante toda a sua vida Se por um lado a medicina busca se impor como discurso hegemocircnico por outro os especialistas populares de cura natildeo desaparecem bem como haacute manifestaccedilotildees de resistecircncia de algumas pessoas da comunidade em aderir a ida aos meacutedicos ou o uso de remeacutedios como tratamento (PORTO 2013a p 73)

83

aumentou bastante e as entidades lhe orientaram no sentido de que ela tinha que

benzer sem restriccedilatildeo para que pudesse ter a felicidade em sua vida70

Em relaccedilatildeo aos dons mediuacutenicos entre os membros da comunidade de

Guaiacutera satildeo mais citados os irmatildeos de Geralda ldquofinado Antocircniordquo ldquofinado Zeacute Mariardquo e

Joaquim Geralda e seu marido Antocircnio conhecido como Guaraacute Os pais de Geralda

seu Manoel e dona Ana segundo ela comentou jaacute frequentavam centro de umbanda

desde Minas Gerais mas natildeo trabalhavam O finado Antocircnio assassinado no comeccedilo

da deacutecada de 90 eacute a principal referecircncia de trabalhos mediuacutenicos tendo manifestado

seus dons desde crianccedila enquanto ldquouma capacidade inata para encontrar e incorporar

espiacuteritosrdquo sem necessidade de iniciaccedilatildeo para tanto (SANSI 2009 p 141)

Segundo Sansi as religiotildees afro-brasileiras incorporam a histoacuteria em suas

praacuteticas rituais atraveacutes da relaccedilatildeo dialeacutetica entre a iniciaccedilatildeo pela reproduccedilatildeo das

dinacircmicas da tradiccedilatildeo e o dom expresso na capacidade dos meacutediuns de

incorporarem novos espiacuteritos (SANSI 2009) A presenccedila de manifestaccedilotildees de

mediunidade entre os membros da comunidade quilombola em questatildeo abrange

essas duas possibilidades pois em alguns casos ela parte de um dom de

mediunidade que a pessoa jaacute trouxe desde a infacircncia e desenvolveu de modo

autocircnomo como no caso de Antocircnio e em outros casos esta capacidade de

incorporaccedilatildeo mediuacutenica dependeu de um processo de iniciaccedilatildeo na Umbanda como

na histoacuteria de Geralda

Esta matriz de religiosidade afro-brasileira71 natildeo eacute portanto dependente

unicamente da relaccedilatildeo com terreiros de Umbanda mas tambeacutem eacute resultado de uma

experiecircncia histoacuterica e cultural proacutepria da trajetoacuteria familiar Nesta trajetoacuteria familiar o

que poderia ser compreendido em outros contextos como catolicismo e umbanda

enquanto esferas distintas manifestam-se em um mesmo continuum de dinamicidade

70 Quando as pessoas vatildeo em sua casa pedir benzimento geralmente mulheres moccedilas e crianccedilas ela

pega o nome completo acende uma vela para o anjo da guarda daquela pessoa e pede para que os orixaacutes intercedam por ela Entatildeo benze com um ramo de arruda o que pode se repetir por trecircs dias consecutivos caso necessaacuterio Geralda entende que a proacutepria pessoa deve trazer a vela para que o pedido seja feito em sua intenccedilatildeo mas muitas vezes as pessoas natildeo trazem e ela se sente sobrecarregada pois acaba oferecendo a vela com seus proacuteprios e escassos recursos Natildeo haacute nestes casos uma reciprocidade pela ajuda realizada o que fere a proacutepria dinacircmica de oferecimento e recompensa que permeia a relaccedilatildeo com o sagrado em sua visatildeo 71 Segundo GOLDMAN uma definiccedilatildeo inicial sobre as ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo aponta para ldquoum

conjunto algo heteroacuteclito mas certamente articulado de praacuteticas e concepccedilotildees religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que ao longo da sua histoacuteria incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e praacuteticas indiacutegenas assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeiardquo (2009 p 106)

84

Nas histoacuterias sobre o finado Antocircnio seus irmatildeos contam como ele comeccedilou a se

desenvolver mediunicamente em casa sozinho e passou a realizar trabalhos em uma

casinha de coqueiro e tambeacutem dentro da mata do siacutetio com o apoio dos demais

irmatildeos que tambeacutem tinham o dom Geralda e Guaraacute lembraram que ele trabalhava

com baiano (baiano Juvenal) caboclo exu penacho boiadeiro Zeacute Pilintra preto-

velho pomba-gira e outros

Por motivo do preconceito religioso que sofreram da parte dos vizinhos que

os acusavam de macumbeiros feiticeiros coisa do capeta entre outros Antocircnio

resolveu se mudar do siacutetio deixar o conviacutevio cotidiano com sua famiacutelia para poder

trabalhar como curador e cumprir sua missatildeo primeiro em Terra Roxa e depois se

fixou na Vila Guarani periferia de Guaiacutera Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula me contou

sobre este processo

Joatildeo Soacute que eu sei que na vila Guarani Dandara oacuteia ele recebia muita gente Aqui nessa regiatildeo ele tirava em primeiro lugar ele que atingia mais gente nessa regiatildeo aqui Dandara Mais ateacute que esse terreiro hoje que a Geralda vai Joatildeo Mais porque ela (a matildee de santo D Penha) natildeo tinha aquilo ali antigamente O dela era bem mais pequeno Soacute que ela natildeo recebia o tanto de gente que meu irmatildeo recebia natildeo Ele recebia muita gente por dia Tinha dia que a gente chegava laacute e ele falava assim ldquooh eu tocirc ateacute agora natildeo almocei tomei um cafezinho aacutegua soacuterdquo Era gente do Mato Grosso Paraguai Cascavel toda regiatildeo Dandara vinha Esses dias atraacutes o Joaquim recebeu um cara aqui o cara vinha a procura dele Aiacute o Joaquim falou com ele ldquoOh infelizmente o meu irmatildeo faleceurdquo O cara saiu daqui de cabeccedila baixa Entatildeo tem muita gente ainda que natildeo sabe e sempre na cidade eles pergunta noacutes o que aconteceu que meu irmatildeo natildeo recebe mais ningueacutem aiacute noacutes falamos ldquonatildeo ele faleceurdquo Eu tenho tudinho guardado na lembranccedila tudinho tem o local laacute em cima na mata onde ele fazia os trabalhos dele Entatildeo tenho ateacute hoje e foi uma desde pequeno que a gente vem nessa religiatildeo da Umbanda soacute que a gente assim Dandara natildeo vecirc assim tem gente que vecirc a Umbanda como se fosse assim ah a religiatildeo do democircnio outros natildeo vecirc como uma boa coisa mas a gente vecirc assim que vocecirc mesmo vocecirc pode assistir laacute natildeo sei se vocecirc pocircde assistir um trabalho Natildeo eacute coisa do outro mundo Que tem muitos que vecirc aquilo ali e meu deus do ceacuteu eacute coisa que que vai acabar com tudo Natildeo eacute Sempre a gente fala mesmo assim pra jogar pedra eacute faacutecil mas vocecirc tem que ver primeiro as coisas pra depois vocecirc estar criticando Porque essa religiatildeo a gente foi muito criticado por causa disso ai mesmo Quando ele (Antocircnio) trabalhava aqui teve uma eacutepoca que a gente teve que trabalhar escondido porque os pessoal natildeo podia saber que natildeo eles ia falava ldquoaqueles ali tatildeo mexendo tudo eles satildeo macumbeiro eles satildeo feiticeirordquo Soacute que a gente natildeo trabalhava pro mal porque foi um dom que ele recebeu neacute mas eles via aquilo ali e nossa Aiacute ele falava assim ldquoNatildeo eu sou obrigado a trabalhar escondido pra ningueacutem ficar sabendordquo

85

Geralda eacute a irmatilde que daacute continuidade como meacutedium para os trabalhos de seu

irmatildeo Antocircnio atualmente Um siacutembolo desta vinculaccedilatildeo de forccedila e missatildeo eacute uma

guia (colar) com as sete linhas da Umbanda que ela recebeu de Antocircnio e que natildeo

tira do pescoccedilo haacute mais de vinte anos Geralda me disse que vai fazer um terreiro

ainda que isso eacute um desejo que ela vai realizar Ela (52 anos) e seu marido que

tambeacutem se chama Antocircnio (49 anos) frequentam a Associaccedilatildeo Espiacuterita Reino de

Baluaecirc72 localizada no Municiacutepio de Terra RoxaPR (vizinho agrave Guaiacutera)73

FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da ldquogirardquo

72 Disponiacutevel em wwwreinodebaluaecombr Acesso em 20082014 73 As ldquogirasrdquo nome dado ao ritual central da Umbanda aberto para que as pessoas se consultem

diretamente com as entidades (principalmente preto-velho caboclo e vaacuterias formas de Exu) ocorrem aos saacutebados duas vezes no mecircs Geralda eacute meacutedium de incorporaccedilatildeo e Guaraacute estaacute girando ainda ou seja estaacute sendo preparado para que possa incorporar Enquanto isso ele daacute suporte agrave muacutesica por meio do pandeiro ou tambor que satildeo muito importantes nas chamadas que satildeo feitas para que as

entidades baixem no terreiro

86

Geralda fala do desenvolvimento de sua mediunidade como um mandato

espiritual pois se fosse por ela natildeo queria ter desenvolvido este trabalho o qual

implica em muitas obrigaccedilotildees e restriccedilotildees pois jaacute estava cansada pelo tanto que

trabalhara na roccedila em serviccedilo pesado a vida inteira Antes de comeccedilar a trabalhar

ela jaacute frequentava o terreiro para buscar atendimento e ficava na assistecircncia de onde

as pessoas que natildeo fazem parte do corpo de trabalho da casa observam a sessatildeo e

satildeo beneficiadas por ela Chegou um tempo em que ela comeccedilou a sentir muita

fraqueza colocava a panela no fogo e tinha que deitar Quando foi consultar no terreiro

para ver o que era a Matildee de Santo que eacute o cargo mais alto da hierarquia da Umbanda

(eacute quem tem e manteacutem o terreiro) lhe disse que teria que trabalhar como meacutedium

caso contraacuterio ela soacute iria piorar e ldquodava seis meses tava morta porque tinha que ter

algueacutem pra substituirrdquo O diagnoacutestico da doenccedila portanto como eacute muito comum nas

histoacuterias dos meacutediuns indicou a interferecircncia de um espirito no sentido da

necessidade do desenvolvimento da mediunidade da pessoa com seu consequente

ingresso na Umbanda (BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64)

Geralda e seu marido Antocircnio (Guaraacute) fazem pedidos e oferecem retribuiccedilotildees

agraves entidades recorrentemente em um quarto de sua casa que aliaacutes era o quarto que

eu dormia quando fiquei hospedada com eles Quando eu ia me deitar geralmente

esperava a vela apagar o cigarro acabar e eles retiravam as oferendas para que eu

pudesse me deitar Essa experiecircncia me provocava sensaccedilotildees diferentes e

impactantes quando eu pensava que aquele quarto estava povoado por relaccedilotildees e

seres invisiacuteveis Esse processo de comunicaccedilatildeo entre pessoas e entidades e qual

entidade estava sendo acionada em determinado dia natildeo me era relatado apenas

algumas informaccedilotildees eram mencionadas mas sempre encobertas por um ar de

misteacuterio enquanto conhecimento iniciaacutetico Importante eacute perceber apesar de eu natildeo

poder me aprofundar neste tema agora que a Umbanda nesta dinacircmica de interaccedilatildeo

recupera a reciprocidade como valor de modo que o dar-e-receber atua ldquocomo um

princiacutepio moral fundamental que une todos os homens entre si e toda a humanidade

viva com uma humanidade morta este mundo com o outro e os homens com os

Orixaacutesrdquo (BRUMANA MARTINEZ 1991 p 25)

Geralda questionou em conversas comigo o porquecirc de algumas pessoas

terem inveja dela no terreiro como uma outra meacutedium com quem teve um seacuterio

desentendimento Na avaliaccedilatildeo de Geralda uma mulher branca de classe meacutedia que

87

tem um carro e sabe dirigir tem muito mais reconhecimento na sociedade do que ela

que sendo ldquopreta e pobrerdquo em seus proacuteprios termos sabe que ocupa na classificaccedilatildeo

social hegemocircnica o lugar menos privilegiado No entanto por outro lado Geralda

reconhece que possui uma forccedila que esta sua mesma origem lhe confere uma forccedila

que eacute miacutestica podemos dizer e que estaacute ligada agrave feacute e agrave proteccedilatildeo que recebe dos seus

Orixaacutes74 o que tambeacutem eacute valorizado pelo Pai de Santo do terreiro que ela frequenta

Pude perceber que o reconhecimento em relaccedilatildeo ao papel de Geralda que lhe

eacute conferido pelos seus vizinhos da ldquoEletrosulrdquo enquanto benzedeira meacutedium de um

terreiro com sabedoria e capacidade de orientaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo valorizado no acircmbito

de sua proacutepria famiacutelia Se Adir eacute quem tem o manejo como mediador com os agentes

externos para realizar as articulaccedilotildees poliacuteticas ela desde o comeccedilo da minha

estadia estava me dizendo nas entrelinhas que era quem possuiacutea o manejo como

mediadora junto aos espiacuteritos e agraves forccedilas miacutesticas Ela eacute quem domina atualmente a

esfera da religiosidade afro-brasileira a qual embora seja em algumas situaccedilotildees

acionada como um siacutembolo para a afirmaccedilatildeo da identidade negra e quilombola do

grupo natildeo aparece de modo tatildeo expliacutecito como por exemplo a capoeira praacutetica que

tambeacutem remete a esta ldquomnemocircnica do corpordquo (CONNERTON 999 p 86)

Deve-se levar em conta que o tema da religiosidade afro-brasileira eacute ainda

muito delicado pois vinculado a um forte preconceito racialreligioso presente na

sociedade brasileira Jaacute a capoeira eacute um marcador negro muito menos polecircmico e cuja

performance da roda se consolidou como modo de apresentaccedilatildeo da comunidade

quilombola nas visitas feitas pelas escolas Este natildeo acionamento da Umbanda como

elemento diacriacutetico enquanto quilombolas remete ao fato de esta religiatildeo que

apresenta aspectos de influecircncia africana e que remete agrave experiecircncia negra no Brasil

eacute tambeacutem um motivo de estigmatizaccedilatildeo para o grupo como explicitado na fala acima

de Joatildeo sobre a saiacuteda de Antocircnio do siacutetio pelas acusaccedilotildees que recebia tendo que

desenvolver seu trabalho como meacutedium na periferia de Guaiacutera

Neste sentido interessante refletir sobre a dinacircmica que se estabeleceu no

Brasil entre religiosidade magia e preconceito racial jaacute que ldquoa visatildeo construiacuteda do

negro e de sua religiatildeo os vincula a caracteriacutesticas natildeo soacute desvalorizadas mas

74 Ela estaacute sempre dizendo que se natildeo fossem os seus Orixaacutes lhe ajudando ela natildeo sabe como

conseguiria dar conta de todas as suas atribuiccedilotildees cotidianas jaacute que tem a sauacutede fraca desde pequena o que se agravou de tanto trabalhar aleacutem de um problema especiacutefico nos olhos

88

tambeacutem socialmente condenadasrdquo75 Construiu-se assim um sistema classificatoacuterio

elaborado a partir da perspectiva dicotocircmica entre bem e mal no qual as religiotildees

cristatildes figuram no polo do bem e enquanto modelo branco satildeo vistas precisamente

como religiotildees Jaacute as religiotildees afro-brasileiras aparecem no polo oposto entendidas

ao contraacuterio como feiticcedilaria ou ldquomacumbariardquo ou seja em alusatildeo ao mal (PORTO

2014187-190) Deste modo este viacutenculo entre preconceito racial e preconceito

religioso somado agrave ldquocondenaccedilatildeo moral da magiardquo a partir da identificaccedilatildeo feita com

ldquoo uso da magia maleacutefica ndash feiticcedilaria ou lsquomagia negrarsquordquo remonta a processos histoacutericos

do periacuteodo colonial Eacute ainda no Brasil colocircnia que se consolida o medo do feiticcedilo no

Brasil direcionado por meio de acusaccedilotildees feitas pelos sujeitos legitimados do sistema

dominante branco e catoacutelico aos natildeo brancos indiacutegenas e negros ou seja aos que

constituiacuteam as alteridades deste modelo (PORTO 2014 191) A imagem do negro

portanto eacute elaborada pela elite a partir de estereoacutetipos negativos que se reforccedilam e

que constroem seu lugar marginal na sociedade Evidencia-se assim a importacircncia

do preconceito para a manutenccedilatildeo da ordem vigente por atribuir argumentos que

legitimariam a exclusatildeo e exploraccedilatildeo desta camada da populaccedilatildeo

O caso do grupo quilombola em questatildeo eacute relevante notar articula estas

referecircncias de religiotildees de matriz afro-brasileiras com expressotildees do catolicismo

popular ou mesmo com o que podemos chamar de ldquocatolicismo negrordquo Esta

articulaccedilatildeo eacute muito presente na religiosidade de Eva quilombola de 50 anos que eacute

detentora de vasta memoacuteria da histoacuteria do grupo76 Ela mora no siacutetio desde seus dois

anos de idade quando seus pais Geraldo e Antocircnia migraram de Satildeo Paulo para o

Paranaacute junto com as demais famiacutelias Eacute casada com Joaquim filho de Manoel Ciriaco

com quem possui certo grau de parentesco consanguiacuteneo (primos de terceiro grau)

Sua devoccedilatildeo eacute reconhecida pelas demais pessoas simbolicamente no fato de ela

cumprir seu ritual cotidiano de rezar o terccedilo de joelhos todos os dias agrave noite depois

de jaacute ter rezado de manhatilde vinte ave-marias (por isso os dois joelhos dela estatildeo

75 A reafirmaccedilatildeo do preconceito teve papel fundamental no momento em que foi abolida a escravidatildeo

no paiacutes sendo que a religiosidade negra eacute um dos pilares que o sustenta Como se pode observar na associaccedilatildeo estrateacutegica realizada por meio da criminalizaccedilatildeo de praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras no Coacutedigo Penal de 1890 Interessante notar neste sentido que apesar de os elementos maacutegico-religiosos marcarem toda a religiosidade nacional sua identificaccedilatildeo ficou restrita aos sujeitos natildeo brancos (PORTO 2014 200-201) 76 Lembrando inclusive o ano em que os fatos preteacuteritos aconteceram data de aniversaacuterio de muitos

parentes Eva conversa tranquilamente sobre a genealogia da famiacutelia sabendo contaacute-la a partir da histoacuteria de fixaccedilatildeo do grupo no Paranaacute

89

marcados com uma espeacutecie de calo como lembrou sua filha Jaqueline enquanto

conversaacutevamos sobre este assunto)77

Ademais ela frequenta com seu marido Joaquim (55) e suas duas filhas

Jaqueline (20) e Janaina (14) as missas em Guaiacutera apenas uma vez por mecircs apesar

de que gostaria de poder ir mais frequentemente Isso se torna difiacutecil devido ao

dispecircndio com o combustiacutevel necessaacuterio para percorrer o trecho entre o bairro rural

Maracaju dos Gauacutechos e a sede do Municiacutepio distante 20 km Por muitas vezes natildeo

poder se deslocar ela utiliza aleacutem do raacutedio a televisatildeo que transmite missas e

terccedilos78 Antes do conflito ocorrido entre o grupo e os proprietaacuterios vizinhos79 o qual

foi desencadeado pelo processo administrativo de regularizaccedilatildeo quilombola eles

frequentavam a igreja do ldquoMaracajurdquo o que se tornou insustentaacutevel para o grupo Eva

me explicou como ldquoficava sem jeito de ir para a igrejardquo

Dandara Como que foi essa saiacuteda Eva Isso aiacute porque as turma ficou com raiva de noacuteis por causa do negoacutecio do INCRA aiacute cara feia pra noacutes sei laacute eu ficava sem jeito pra ir na Igreja neacute as turma falava assim ldquoah pode ir eles natildeo pode toca ocecircs da igreja a igreja eacute puacuteblica a igreja eacute pra todo mundordquo ningueacutem pode tocar a gente da igreja mas a pessoa fica com vergonha de ir neacute porque eles natildeo conversa com a pessoa nem nada como eacute que a gente vai na igreja Dandara E o padre assim vocecirc sentiu alguma coisa da parte do padre Eva Ah o padre acho que puxava mais pras turma ele veio uma vez na comunidade aqui ele rezou a missa nem conversou muito com noacutes conversou pouco e quando noacutes puxou no assunto aqui das turma ele escapou fora foi embora e natildeo vortocirc mais Dandara A Sra imagina de ter uma igreja aqui Eva Meu sonho menina eacute ter uma Igreja aqui eu falo pro Adir direto eacute meu sonho que tivesse uma igreja perto direto eu tava na igreja

77 Tambeacutem ouve diariamente pelo raacutedio o programa ldquoExperiecircncia de Deusrdquo apresentado pelo Padre

Reginaldo Manzotti enquanto organiza a cozinha em seu ritmo hoje mais lento devido a seu problema de visatildeo Este programa tem uma hora de duraccedilatildeo e conta com a participaccedilatildeo de ouvintes leitura biacuteblica que Eva acompanha com sua biacuteblia em matildeos aleacutem da realizaccedilatildeo de novena 78 Eva contou que na sexta-feira santa como ela natildeo pocircde ir na ldquoprocissatildeo do Senhor Mortordquo ela

benzeu pela tv um ramo de aacutervore Esta procissatildeo antigamente era acompanhada por muitas pessoas do grupo e ldquouma renca de gente aqui da comunidade ia a peacute ateacute Terra Roxardquo municiacutepio vizinho agrave Guaiacutera cuja sede fica mais proacutexima ao siacutetio Os meios de comunicaccedilatildeo de massa portanto satildeo utilizados como em outras comunidades tradicionais com presenccedila de catoacutelicos para que se possa ter acesso a ritos religiosos e praacuteticas em certa medida maacutegicas como a benzeccedilatildeo de aacutegua 79 O tema do conflito ocorrido em 2009 e 2010 com os proprietaacuterios vizinhos seraacute abordado no proacuteximo

capiacutetulo

90

Apesar de natildeo poder mais frequentar a igreja com a frequecircncia que gostaria

isso natildeo diminui a vivecircncia cotidiana que ela tem de sua feacute Por outro lado as pessoas

do Maracaju dos Gauacutechos que estatildeo indo na igreja na visatildeo de Eva natildeo tecircm uma

atitude cristatilde Isso porque mesmo dentro da missa satildeo movidos por sentimentos de

discriminaccedilatildeo e de orgulho o que acabou fazendo com que os membros da

comunidade natildeo se sentissem mais confortaacuteveis para continuar frequentando tal

igreja

Em relaccedilatildeo ao preconceito racial que ateacute hoje sofrem no ldquoMaracaju dos

Gauacutechos ele se estende inclusive a Nossa Senhora Aparecida santa negra de quem

a comunidade eacute devota Neste sentido Joaquim me contou uma histoacuteria sobre uma

senhora que havia se mudado para bairro rural e que tinha feito uma promessa para

Nossa Senhora Aparecida Ela foi de ocircnibus com a famiacutelia agrave Basiacutelica em AparecidaSP

e de laacute trouxe uma imagem e tinha o desejo de colocaacute-la na igreja do Maracaju Mas

como a maioria dos moradores satildeo descendentes de imigrantes europeus com

atitudes consideradas racistas pelos quilombolas eles natildeo aceitaram a santa

alegando que ela era a ldquoNossa Senhora dos Morcegosrdquo em referecircncia a ser uma santa

negra Joaquim concluiu afirmando que se eles tinham raiva da santa que natildeo lhes

poderia fazer nenhum mal ele imaginava entatildeo o quanto tinham raiva das pessoas

da comunidade Mas ele acrescentou que posteriormente houve outra pessoa que

fez uma promessa e que entatildeo eles acabaram tendo que aceitar colocar a santa na

igreja do Maracaju Nossa Senhora Aparecida eacute natildeo somente negra mas tambeacutem a

padroeira do Brasil A devoccedilatildeo a ela eacute muito grande em todo o paiacutes (sendo um

exemplo a relevacircncia das romarias a Aparecida do Norte inclusive entre os membros

do grupo) A recusa agrave santa negra eacute sentida de uma forma particular pela comunidade

mas a resistecircncia dos vizinhos europeus natildeo pode se sustentar embora natildeo tenha

sido vencida por um membro da comunidade mas por uma pessoa natildeo identificada

Importante neste momento pontuar que uma anaacutelise aprofundada das

concepccedilotildees e praacuteticas religiosas da comunidade demandaria um capiacutetulo inteiro desta

dissertaccedilatildeo No entanto objetivo analisar neste subitem alguns aspectos dentro

deste universo religioso que sobressaem atraveacutes das dinacircmicas de movimento

(concretas e natildeo-concretas) e de comunicaccedilatildeo entre expressotildees religiosas Durante

o trabalho de campo fui me tornando mais atenta para situaccedilotildees e narrativas que

apontavam como as percepccedilotildees quilombolas sobre diferentes praacuteticas religiosas natildeo

91

eram descontiacutenuas ou antagocircnicas mas permeadas por diaacutelogos permanentes e

proacuteximos o que eacute comum observar em contextos de religiosidade popular80 O

movimento tambeacutem permeia a accedilatildeo religiosa dos membros da comunidade por meio

da praxe dedicada agrave circulaccedilatildeo entre pessoas e santos (permeada por promessas)

bem como em relaccedilatildeo agraves entidades da umbanda (por meio de pedidos oferendas e

obrigaccedilotildees) Esta dimensatildeo relacional vai tecendo uma socialidade comum entre

sujeitos que embora hieraacuterquica natildeo eacute irrevogaacutevel Em contraposiccedilatildeo a dinacircmica

estabelecida entre Deus e fiel eacute constituiacuteda pela distacircncia equivalente agrave relaccedilatildeo entre

sujeito e objeto (CALAVIA SAEZ 2009 p 204-205) As viagens rituais para o

pagamento de promessas para o santuaacuterio de Nossa Senhora Aparecida localizado

no municiacutepio de AparecidaSP tambeacutem apontam para a importacircncia do movimento no

contato com o sagrado como nas experiecircncias de peregrinaccedilatildeo e romaria (TURNER

2008 p 155-214)

Haacute muitas histoacuterias no grupo de promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida

que foram atendidas Uma delas a primeira que Eva me contou foi feita por sua sogra

Ana Rodrigues esposa de Manoel Ciriaco Interessante notar que quando Eva foi me

contar como a promessa veio a se cumprir ou seja quando Joaquim enfim conseguiu

parar de beber o contexto passou a trazer elementos e entidades da Umbanda

demonstrando a continuidade a que nos referimos acima D Ana pediu agrave santa que

seu filho Joaquim marido de Eva parasse com o viacutecio com bebidas alcoacuteolicas

Mandou entatildeo fazer uma capelinha para a imagem da santa e quando Eva e Joaquim

se casaram ela lhes deu de presente A cura de Joaquim do viacutecio no entanto veio

de um modo inesperado e assustador Tudo aconteceu quando Joaquim tinha parado

de fazer suas obrigaccedilotildees com os Orixaacutes pois costumava ascender vela e defumar a

casa Um dia ele incorporou ldquoSeu Tranca Ruardquo (Exu) que chegou e falou para Eva

que iria jogar seu ldquopeacute-de-calccedilardquo81 embaixo de quatro rodas Neste momento a

entidade estava se referindo ao fato de que ela iria provocar um acidente com o seu

cavalo (o meacutedium) ou seja Joaquim E o que a entidade falou acabou acontecendo

80 Segundo a criacutetica do antropoacutelogo Calavia Saez ldquoa religiatildeo popular eacute a religiatildeo normal natildeo uma

versatildeo empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiecircncia ndash algo que boa parte dos estudos sobre religiatildeo subalterna manifesta agrave revelia do paradigma em que se desenvolvemrdquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 201) 81 Essa expressatildeo ldquopeacute-de-calccedilardquo eacute utilizada no terreiro de Umbanda para se referir aos homens como me explicou Geralda Depois que eu assisti uma gira no seu terreiro e me consultei com a Preta-Velha que ela tinha incorporado Geralda me esclareceu a duacutevida sobre o significado dessa expressatildeo que a entidade tinha falado para mim

92

Eva me contou que um dia quando Joaquim estava becircbado ele e seu irmatildeo Adir

estavam lidando com o trator quando Joaquim caiu e o trator acabou passando em

cima da perna dele Ele soacute natildeo perdeu a perna neste acidente porque estava com

uma calccedila jeans nova que resistiu e protegeu a perna que ficou pendurada Eva

sonhou com Nossa Senhora Aparecida que lhe disse que natildeo seria necessaacuterio

amputar a perna dele Joaquim ficou vaacuterios dias no hospital e depois por meses em

recuperaccedilatildeo em casa Soacute assim com o susto provocado pelo acidente com o trator

que Joaquim parou de beber e a promessa da sua matildee foi entatildeo atendida

FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana

Pode-se observar portanto que haacute uma comunicaccedilatildeo total entre estes seres

no universo maacutegico-religioso do grupo em uma histoacuteria em que a entidade da

Umbanda um Exu aparece como mediadora para o cumprimento de uma promessa

feita para Nossa Senhora Aparecida o que aponta um marcador de identidade

significativo em contraponto com um ldquooutro catolicismordquo dos vizinhos

O pai de Eva Geraldo tambeacutem foi um dos beneficiados com as graccedilas de

uma promessa atendida por Nossa Senhora Aparecida em mais uma relaccedilatildeo pessoal

bem-sucedida entre santos e fieacuteis Segundo Eva me contou ele pediu agrave santa para

que fosse capaz de aprender a ler e a escrever e que conseguisse comprar um pedaccedilo

93

de terra Aleacutem de ter aprendido o que pediu esse pedaccedilo de terra conquistado foram

os cinco alqueires que ele comprou no Maracaju dos Gauacutechos Deste modo esta

promessa aparece como um mito de origem da comunidade que fortalece a devoccedilatildeo

a Nossa Senhora Aparecida jaacute confirmada por outras promessas atendidas que me

foram narradas

FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP

Eva me contou tambeacutem sobre quando ela e Joaquim foram em romaria a

Basiacutelica de Nossa Senhora Aparecida em AparecidaSP82 para pagar a promessa que

ele tambeacutem tinha feito para que ele conseguisse parar de beber Ela percebeu

sensaccedilotildees fiacutesicas diferentes ao chegar laacute o que reforccedila o sentimento de que se estaacute

diante de um local sagrado o corpo fica leve e a pessoa natildeo tem pensamentos

82 O Santuaacuterio Nacional eacute o ldquomaior santuaacuterio mariano do mundordquo construiacutedo em 1955 ldquoPreocupados

em providenciar o jantar para o poderoso Conde de Assumar de passagem pela Vila de Guaratinguetaacute trecircs pescadores retiraram com suas redes do Rio Paraiacuteba do Sul uma imagem de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo A imagem ficou abrigada durante anos na casa de um dos pescadores ateacute que em 1745 foi construiacuteda uma capela no Morro dos Coqueirosrdquo Disponiacutevel em httpaparecidaspgovbrhistoria-da-cidade Acesso em 01092014

94

Contou que era preciso pagar trecircs reais para subir ateacute o local onde fica a imagem da

santa que foi encontrada no rio onde tambeacutem ficam expostas as correntes dos

escravos Eva assim como Joaquim entende que eacute possiacutevel circular entre as religiotildees

e que se deve respeitar a todas Faz tempo que ela natildeo vai no terreiro de Umbanda

mas jaacute frequentou e sabe contar em quais dias satildeo realizadas as festas das entidades

como Preto Velho Cosme e Damiatildeo e Zeacute Pilintra Em sua casa possui uma imagem

de Satildeo Cosme e Damiatildeo os santos gecircmeos sincretizados com os orixaacutes ibejis

divindade gecircmea na mitologia yorubaacute (PRANDI 2001366-377)

Quando fui ao terreiro de Umbanda com a Geralda como estava ficando na

casa de Eva e Joaquim no siacutetio conversamos sobre este assunto quando voltei

Joaquim entatildeo contou-me sobre uma mulher de Terra Roxa municiacutepio vizinho que

antes de plantar oferecia as ervas para cada santo e entatildeo a muda dava ldquoTudo tem

um misteacuteriordquo e aquelas pessoas que tecircm matildeo boa sabem disso portanto quando vai

fazer o plantio do milho por exemplo eacute importante ter feacute para ter uma boa colheita Eacute

necessaacuterio ter matildeo boa tambeacutem para fazer o patildeo crescer para fazer vinagre de

mamona e para fazer sabatildeo83 reforccedilando como a intenccedilatildeo da pessoa que prepara

interfere no resultado obtido Eva tambeacutem eacute conhecedora da preparaccedilatildeo de

garrafadas que satildeo remeacutedios caseiros ensinados pelos antigos Mesmo entre aqueles

que natildeo frequentam atualmente terreiro de Umbanda percebe-se como a

religiosidade eacute maacutegica e eacute permeada por ritos de proteccedilatildeo relacionados com um

ldquocatolicismo negrordquo brasileiro

Ao olhar para o futuro Eva fala de uma mudanccedila que ocorreraacute na percepccedilatildeo

sobre as religiotildees pois segundo me contou no Apocalipse o fim do mundo estaacute

anunciado que todas as religiotildees seratildeo uma soacute jaacute que Deus eacute um soacute Este Deus uacutenico

aponta como sua a concepccedilatildeo de religiatildeo tem por base o cristianismo

Eva Eu Dandara natildeo desfaccedilo de nenhum tem gente que natildeo gosta assim de esprito assim os evangeacutelico tem gente que natildeo gosta Eu natildeo pra mim tudo eacute um soacute Tem gente que fala ldquoah eu natildeo gosto de crenterdquo Eu natildeo eu natildeo falo Porque quando no fim do mundo ateacute o pastor falou isso a igreja vai ser tudo uma soacute vai unir todo mundo junto Deus natildeo separou ningueacutem neacute Deus eacute um soacute Tem gente que natildeo acredita Eu natildeo eu natildeo desfaccedilo de nenhuma eu gosto tudo igual

83 Nesse sentido interessante que na pesquisa realizada por Cambuy na comunidade quilombola Joatildeo

Suraacute em AdrianoacutepolisPR o sabatildeo eacute tido como um preparo que eacute louco de reineiro pois entre todos eacute o mais faacutecil de reinar ou seja natildeo daacute certo se a pessoa que fizer ldquonatildeo tiver o coraccedilatildeo bomrdquo ou se for alvo de olho gordo sendo necessaacuterio para o sucesso do sabatildeo que seja feito em um contexto harmocircnico (CAMBUY 2011 250-252)

95

No entanto quando um pastor que agraves vezes realizava cultos na comunidade

(que mesmo com a forte presenccedila de praacuteticas afro-brasileiras natildeo tem dificuldade de

dialogar com os crentes) quis batizaacute-la ela contou que se negou ldquoAh eu natildeo batizo

na religiatildeo nisso aiacute natildeo Ele queria que eu batizasse na lei de crente mas eu natildeo jaacute

sou batizada desde pequena vou batizar outro batismo pra quecirc rdquo Haacute portanto uma

perspectiva da religiatildeo como abrangente natildeo havendo neste caso contradiccedilatildeo entre

denominaccedilotildees e frequecircncias a espaccedilos diversos No entanto haacute tambeacutem a

necessidade de uma escolha oficial que no caso de Eva se daacute pela religiatildeo catoacutelica

A religiosidade do grupo aponta assim para uma perspectiva proacutepria de um

universo negro que natildeo estabelece fronteiras claras entre as religiotildees mas uma

interdependecircncia constante Como tentamos demonstrar ao longo deste subitem

estas experiecircncias falam de dinacircmicas de movimento natildeo soacute no diaacutelogo entre esferas

religiosas mas de movimentos concretos como nas viagens realizadas para

pagamentos de promessas movimentos estabelecidos na relaccedilatildeo entre devoto e

santo entre meacutedium e entidades espirituais Estas praacuteticas falam de uma memoacuteria

corporal performaacutetica e ritual que constitui parte essencial da relaccedilatildeo que

estabelecem com o passado e da forma de atualizaacute-lo no presente Religiosidade que

marca a relaccedilatildeo entre negritude opressatildeo e santidade significativa nos discursos de

grupos quilombolas sobre sua relaccedilatildeo com o sagrado (PORTO 2007)

96

2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS

Quando os funcionaacuterios do governo do Paranaacute chegaram ateacute as famiacutelias em

questatildeo em GuaiacuteraPR e lhes apresentaram a possibilidade de reivindicaccedilatildeo da

identidade quilombola nunca tinham ouvido falar neste termo ou sequer imaginavam

que poderiam reivindicar algum direito de um Estado que segundo afirmam nunca

lhes enxergou ou lhes protegeu pelo contraacuterio Esta situaccedilatildeo inesperada causou

muita duacutevida e inseguranccedila sobre acionar ou natildeo a autodeclaraccedilatildeo como quilombolas

tendo em vista os riscos e as consequecircncias da opccedilatildeo por este caminho Quando

optaram por trilhaacute-lo entraram aos poucos em mais uma trajetoacuteria de movimento

agora de inserccedilatildeo e circulaccedilatildeo em novas esferas sociais tanto concretas quanto

simboacutelicas

Passaram entatildeo a ter que lidar com uma linguagem estatal e burocraacutetica que

desconheciam com uma organizaccedilatildeo em termos poliacuteticos por meio de uma

associaccedilatildeo juriacutedica ndash que os integrou formalmente como sujeito coletivo ndash e neste

processo Adir como lideranccedila da comunidade desde entatildeo foi convidado a realizar

vaacuterias viagens como representante quilombola tanto no Paranaacute como em outros

estados Com a pauta de reivindicaccedilatildeo territorial foi desencadeada uma redefiniccedilatildeo

das relaccedilotildees locais vindo agrave tona de forma impactante processos de tensatildeo antes

latentes na convivecircncia com os proprietaacuterios vizinhos Por outro lado houve tambeacutem

uma ampliaccedilatildeo significativa de relaccedilotildees para aleacutem das dinacircmicas locais ndash um aspecto

considerado pelos quilombolas como muito positivo ndash pois a inserccedilatildeo no movimento

quilombola os colocou em contato com outras comunidades e inclusive proporcionou

uma retomada de viacutenculos dentro da proacutepria famiacutelia reconectando-os com sua regiatildeo

de origem em Minas Gerais por meio da realizaccedilatildeo das viagens de volta que seratildeo

abordadas no terceiro capiacutetulo

No entanto a peculiaridade de um grupo marcado por dinacircmicas de

movimento e que se reconhece como quilombola a partir de um viacutenculo com uma

regiatildeo de origem na qual natildeo mais habitam ndash pois de laacute saiacuteram em trajetoacuterias seguidas

de deslocamentos como vimos no capiacutetulo anterior ndash colocou um grande desafio e

quase um empecilho para o tracircmite do processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do grupo

junto ao oacutergatildeo responsaacutevel o Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria

97

(INCRA) O caso da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos como

veremos nos permite o aprofundamento de uma reflexatildeo muito importante sobre ateacute

que ponto o reconhecimento da diversidade sociocultural estaacute de fato presente nos

processos e procedimentos administrativos bem como na compreensatildeo dos agentes

que atuam em nome do Estado nesta temaacutetica Sobre esta delicada questatildeo a

antropoacuteloga Miriam Chagas argumenta que

() a sociedade moderna admitiria uma uacutenica foacutermula minimizada de reconhecimento das diferenccedilas ou seja a mera conversatildeo da igualdade em identidade Essa consideraccedilatildeo aponta para uma questatildeo de difiacutecil tratamento pois o proacuteprio conceito de identidade ndash tambeacutem cultural ndash seria fruto da configuraccedilatildeo ideonormativa do sistema de valores da sociedade moderna (CHAGAS 2001 p 232)

Deve-se levar em conta que antes da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o

ordenamento juriacutedico nacional negava a diversidade cultural da populaccedilatildeo brasileira

procurando homogeneizaacute-la A partir da consolidaccedilatildeo em 1988 de ldquodireitos eacutetnicosrdquo

enquanto garantias constitucionais iniciou-se um novo momento de reconhecimento

formal e consolidaccedilatildeo do acesso a tais direitos Os agentes do Estado daiacute em diante

ao classificarem em legislaccedilotildees categorias como ldquoquilombolasrdquo ldquoindiacutegenasrdquo ldquopovos e

comunidades tradicionaisrdquo precisam considerar que natildeo estatildeo apenas a nomear e a

reconhecer tais grupos mas tambeacutem estatildeo produzindo alteridades Marcadas ldquopela

qualidade de lsquoprimitivorsquo lsquotradicionalrsquo e correlatosrdquo estas categorias criam e

caracterizam o que nomeiam ao oporem um quadro classificatoacuterio de definiccedilatildeo e

redefiniccedilatildeo da alteridade com desdobramentos na emergecircncia de novos sujeitos

poliacuteticos organizados (ARRUTI 2006 51-53) Eacute a partir da sobrecodificaccedilatildeo e

normatizaccedilatildeo estatal portanto que tais grupos estaratildeo categorizados e seu

reconhecimento territorial seraacute regulado em procedimentos administrativos atraveacutes de

regulamentaccedilatildeo infraconstitucional

Estes sujeitos coletivos se mobilizam em unidades sociais a partir de um

pertencimento comum que funda uma identidade coletiva em processos de

autodefiniccedilatildeo referenciados nas categorias juridicamente reconhecidas Esta

mobilizaccedilatildeo poliacutetica que se desenrola principalmente em torno da luta pela garantia

dos territoacuterios ocupados tradicionalmente tambeacutem gera efeitos por meio de pressotildees

de movimentos sociais articulados ao tensionar o centro de poder do Estado Neste

processo estes grupos sociais vatildeo atribuindo seus proacuteprios sentidos aos conceitos

98

geneacutericos de reconhecimento como ldquoquilombolasrdquo os quais satildeo acionados em uma

vasta gama de situaccedilotildees para expressar diversos significados

Uma multiplicidade de metaacuteforas eacute portanto atribuiacuteda aos signos eacutetnicos no

processo social da etnicidade pelos grupos sociais que reivindicam ldquodireitos de uma

cidadania diferenciada ao Estado brasileirordquo (OrsquoDWYER 2009 p 175) Este processo

de reivindicaccedilatildeo vai gerando uma maximizaccedilatildeo da alteridade ndash por meio da

diferenciaccedilatildeo de sentidos ndash mesmo no acircmbito instituiacutedo de padronizaccedilatildeo estatal Esta

maximizaccedilatildeo eacute necessaacuteria porque ldquoas unidades de descriccedilatildeo das populaccedilotildees

submetidas respondem ao custo de uma brutal reduccedilatildeo de sua alteridade agraves

necessidades de produccedilatildeo de unidades geneacutericas de intervenccedilatildeo e controle socialrdquo

(ARRUTI 1997 p 20) Haacute que se refletir sobre ateacute que ponto

() quilombo expressa a dimensatildeo poliacutetica da identidade negra no Brasil ou ele eacute uma nova reduccedilatildeo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este prisma teriam que se adequar a um conceito geneacuterico para novos propoacutesitos de intervenccedilatildeo e controle social (LEITE 2000 p 343)

De forma anaacuteloga ao que ocorreu com os povos indiacutegenas com o

estabelecimento de um certo padratildeo de ldquoindianidaderdquo ndash imposto pelo oacutergatildeo estatal e

que acaba sendo assumido como padratildeo de comportamento dos grupos em questatildeo

ndash podemos observar a existecircncia tambeacutem de um modelo de ldquoquilombolidaderdquo com

uma determinada forma de compreender quem satildeo os ldquoquilombolasrdquo a partir da qual

se estabelece procedimentos padronizados para lidar com esta diversidade (ARRUTI

1997 p 41) Esta necessidade de limitar a complexidade social para definir de modo

impositivo quem seriam os destinataacuterios do direito territorial reconhecido

constitucionalmente mostra marcas de um colonialismo interno que em muito ainda

manteacutem ldquouma praacutetica de dominaccedilatildeo intimamente ligada agrave ideologia da concentraccedilatildeo

fundiaacuteria como sinocircnimo de progresso numa economia agroexportadorardquo (ALMEIDA

2011 p 07-13)

No caso do direito territorial das comunidades quilombolas o primeiro marco

normativo foi estabelecido na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mas natildeo em seu corpo

permanente e sim no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) pelo

artigo 68 ldquoaos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras eacute reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-

99

lhes os tiacutetulos respectivosrdquo84 A partir de 2003 com o Decreto Federal 4887 assinado

no primeiro ano de mandato do entatildeo Presidente Lula a questatildeo quilombola ganha

forccedila e passa por uma estruturaccedilatildeo paulatina no Governo Federal A competecircncia

para titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas eacute atribuiacuteda ao INCRA no acircmbito do Ministeacuterio

do Desenvolvimento Agraacuterio o qual passa a incidir diretamente na questatildeo fundiaacuteria

das comunidades quilombolas em todo o Brasil

O conceito de quilombo imposto arbitrariamente no periacuteodo colonial enquanto

tipo penal para reprimir escravos fugidos85 demandou novos procedimentos

interpretativos ao se tornar uma categoria para reconhecimento de sujeitos de direitos

no presente Deve haver assim um deslocamento conceitual sobre as ideias de

quilombo como sobrevivecircncia e reminiscecircncia para que se possa compreender o que

satildeo as comunidades que se reconhecem como quilombolas hoje e como construiacuteram

sua autonomia historicamente (ALMEIDA 2011 p 64) Para tal reconfiguraccedilatildeo

conceitual a perspectiva antropoloacutegica tem contribuiccedilatildeo fundamental e se contrapocircs

por exemplo agraves limitaccedilotildees trazidas pelo Decreto Federal 3912 de 2001 obra do

governo do entatildeo presidente Fernando Henrique Cardoso

Nesta regulamentaccedilatildeo em forma de decreto do artigo 68 do ADCT realizada

em 2001 natildeo se reconhecia a autoatribuiccedilatildeo identitaacuteria pelos proacuteprios grupos sociais

Ao partir de um criteacuterio de heteroidentidade o decreto reproduzia a recusa da titulaccedilatildeo

definitiva das comunidades quilombolas sendo que durante a vigecircncia deste

instrumento no periacuteodo de dois anos nenhuma titulaccedilatildeo foi realizada Foram

estabelecidas condiccedilotildees restritivas como

(a) a manutenccedilatildeo da competecircncia da Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) para

titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas o que limitava o direito territorial unicamente agrave

dimensatildeo cultural Esta atribuiccedilatildeo de competecircncia a FCP impossibilitava a efetivaccedilatildeo

da desapropriaccedilatildeo fundiaacuteria necessaacuteria

84 Esta parte da Constituiccedilatildeo na qual foi inserido o artigo 68 o ADCT consiste em um ato para regulaccedilatildeo da transiccedilatildeo entre regimes constitucionais o que revela a dificuldade em pautar esta temaacutetica que natildeo constou no corpo do texto principal da Constituiccedilatildeo No entanto segundo os juristas que se utilizam do modo de interpretaccedilatildeo sistemaacutetica da Constituiccedilatildeo este fato natildeo minimiza a eficaacutecia da norma enquanto garantidora de um direito fundamental Sobre o debate doutrinaacuterio e jurisprudencial acerca da temaacutetica ver SOUZA 2013 85 O Conselho Ultramarino Portuguecircs de 1740 definia quilombo como ldquotoda habitaccedilatildeo de negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida ainda que natildeo tenham ranchos levantados ou se achem pilotildees nelesrdquo (LEITE 2000 p 336)

100

(b) a aplicaccedilatildeo do direito apenas para o caso das terras que jaacute estavam

ocupadas por quilombos em 1888 data da aboliccedilatildeo da escravidatildeo e que

continuassem ocupadas por ldquoremanescentesrdquo em 1988 quando da promulgaccedilatildeo da

Constituiccedilatildeo Federal Trata-se no entanto de duas datas arbitraacuterias do calendaacuterio do

Estado que por si soacute natildeo produziram ldquoa instituiccedilatildeo de um novo estado de coisas na

sociedaderdquo e que somadas estabeleceram um requisito temporal arbitraacuterio

colocando a necessidade de comprovaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo por cem anos para a

aquisiccedilatildeo do direito (MILANO 2011 p 97)

Em um contexto em que eacute o Estado no exerciacutecio de um poder tutelar que

define se um grupo eacute ou natildeo quilombola dentro desta perspectiva da heteroidentidade

estabelecida no decreto federal de 2001 a interlocuccedilatildeo do fazer antropoloacutegico dentro

do procedimento administrativo de titulaccedilatildeo seria direcionada para a produccedilatildeo de

laudos que teriam uma funccedilatildeo dupla de investigaccedilatildeo primeiro do da legitimidade do

reconhecimento eacutetnico da identidade reivindicada pelo grupo para entatildeo analisar o

reconhecimento territorial

Um novo cenaacuterio vem agrave tona com a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 sobre Povos

Indiacutegenas e Tribais da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) por meio do

Decreto Legislativo nordm 143 de 200286 de modo que passa a ser incorporado no

ordenamento juriacutedico nacional o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo na identificaccedilatildeo de grupos

eacutetnicos Este criteacuterio foi previsto entatildeo no Decreto Federal 4887 de 2003 ndash tendo

revogado o decreto anterior 3912 de 2001 ndash o qual estaacute atualmente em vigor e

regulamenta os procedimentos para a titulaccedilatildeo territorial quilombola de

responsabilidade do INCRA

Com o Decreto 4883 de 2003 ndash que precedeu o Decreto 4887 tambeacutem de

2003 ndash a competecircncia para titulaccedilatildeo quilombola havia sido transferida da Fundaccedilatildeo

Cultural Palmares (FCP) para o INCRA Esta mudanccedila teve uma repercussatildeo positiva

pois este oacutergatildeo federal eacute o que possui atribuiccedilatildeo para ordenaccedilatildeo da estrutura fundiaacuteria

nacional podendo realizar assim desapropriaccedilotildees com o intuito de efetivar as

titulaccedilotildees quilombolas Entretanto o INCRA natildeo possuiacutea estrutura institucional para

lidar com demandas de caraacuteter eacutetnico ndash em contraste com a Fundaccedilatildeo Cultural

86 Aleacutem do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 trouxe outras inovaccedilotildees significativas para o ordenamento juriacutedico nacional sobre as quais natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho Sobre este tema ver MILANO 2011

101

Palmares (FCP) e a Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI) oacutergatildeos federais que jaacute

contavam com ampla experiecircncia de trabalho com demandas eacutetnicas

Com uma nova conjuntura estabelecida pela incorporaccedilatildeo do criteacuterio de

autoatribuiccedilatildeo nos processos de regularizaccedilatildeo territorial os laudos antropoloacutegicos

deixam de exercer a funccedilatildeo de ldquoreconhecimento eacutetnico-territorialrdquo para assumir a

funccedilatildeo apenas de ldquoreconhecimento territorialrdquo (ARRUTI 2006 p 27-32) pois o

reconhecimento eacutetnico passou a ser definido pela autoidentificaccedilatildeo dos proacuteprios

grupos sociais A questatildeo deixa de ser a quem se aplica o direito para quais satildeo os

grupos que dirigem suas reivindicaccedilotildees a estes direitos ou ainda quem satildeo os sujeitos

que orientam suas accedilotildees a partir do sentimento de pertencer a um grupo especiacutefico

quilombola O criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo estaacute de acordo com a perspectiva

antropoloacutegico de que os grupos eacutetnicos satildeo entidades autodefinidas e de que ldquoas

etnicidades demandam uma visatildeo construiacuteda de dentro e elas natildeo tecircm relaccedilotildees

imperativas com qualquer criteacuterio objetivordquo (OrsquoDWYER 2011 p 113)87

Eacute por meio dos processos de emergecircncia de novas identidades sociais que o

passado e as narrativas histoacutericas da memoacuteria coletiva vatildeo ser articulados de modo

ldquopoliacutetica e socialmente operacionaisrdquo no sentido de subsidiar as reivindicaccedilotildees

identitaacuterias (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 22) Assim como natildeo haacute criteacuterios

objetivos para a definiccedilatildeo da etnicidade natildeo haacute tambeacutem um passado pronto que

vecircm agrave tona Ademais eacute por meio destes novos contextos de interaccedilatildeo que as

diferenccedilas culturais seratildeo percebidas pelos proacuteprios sujeitos como socialmente

significativas (BARTH 2011)

Neste cenaacuterio de reconhecimento de direitos eacutetnicos a interlocuccedilatildeo do saber

antropoloacutegico com o juriacutedico tem se potencializado mas natildeo sem ambivalecircncias A

participaccedilatildeo de antropoacutelogos como peritos em procedimentos de reconhecimento

territorial tem sido fundamental para a realizaccedilatildeo de ldquoestudo in loco dos processos

pelos quais emergem os grupos negrosrdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) A

antropologia tem contribuiacutedo portanto com seu acuacutemulo teoacuterico que passa a ser

colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees puacuteblicas o que torna necessaacuteria por conseguinte

a ldquobusca por paracircmetros de avaliaccedilatildeo e execuccedilatildeo para a antropologia e antropoacutelogosrdquo

em um novo acircmbito de profissionalizaccedilatildeo

87 Este eacute um aspecto central discutido pela tradiccedilatildeo teoacuterica da antropologia cuja referecircncia fundamental

eacute o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth com seu texto Grupos eacutetnicos e suas fronteiras publicado inicialmente em 1969 (BARTH 2011)

102

Para a elaboraccedilatildeo de tais paracircmetros eacute preciso que haja ampla discussatildeo

divulgaccedilatildeo e debate acerca dos trabalhos de periacutecia criando assim um espaccedilo de

reflexatildeo criacutetica dentro da disciplina antropoloacutegica capaz de responder a tais demandas

geradas na interface entre o saber juriacutedico e antropoloacutegico visando que ldquoo campo se

consolide e este instrumento (o relatoacuterio antropoloacutegico) seja cada vez mais eficaz no

contexto e objetivos a que se propotildeerdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) Este eacute

o principal objetivo deste segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo no qual pretendo analisar

comparativamente os dois relatoacuterios antropoloacutegicos produzidos sobre a ldquoComunidade

Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

Ambos os relatoacuterios foram produzidos no acircmbito do Procedimento

Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria que tramita na

Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro

relatoacuterio foi produzido por meio do convecircnio do INCRA com a Universidade Estadual

do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) tendo a versatildeo final sido encaminhada a este oacutergatildeo

federal em 29 de outubro de 2010 Os argumentos levantados iam de encontro agraves

premissas da autoatribuiccedilatildeo questionando assim a legitimidade da reivindicaccedilatildeo

identitaacuteria e territorial da comunidade Este relatoacuterio foi recusado pelo INCRA com

base em vaacuterios argumentos dentre os quais destaco o fato de os autores terem

apresentado ldquobaixa qualidade teacutecnica e antropoloacutegicardquo e natildeo terem cumprido ldquocom os

termos do convecircnio e da IN 492008rdquo 88

Este primeiro relatoacuterio que seraacute a partir de agora denominado de ldquorelatoacuterio

anti-antropoloacutegicordquo nesta dissertaccedilatildeo foi posteriormente retirado do procedimento de

regularizaccedilatildeo territorial do grupo passando a constar apenas no procedimento

referente agrave finalizaccedilatildeo e tomada de contas do convecircnio com a UNIOESTE

(Procedimento Administrativo nordm 542000023842008-33) Dentre os argumentos

levantados questionando a legitimidade da reivindicaccedilatildeo da comunidade destaca-se

o entendimento de que natildeo havia ancestralidade de ocupaccedilatildeo de um mesmo territoacuterio

e que aquele natildeo era um territoacuterio quilombola tendo em vista por exemplo a

inexistecircncia de registros histoacutericos de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR

Em decorrecircncia do trabalho do INCRA com a comunidade houve o

desencadeamento de um seacuterio conflito causado pela mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios

88 Instruccedilatildeo Normativa que regia o procedimento de titulaccedilatildeo quilombola no INCRA na eacutepoca da

produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico

103

vizinhos contraacuterios agraves reivindicaccedilotildees quilombolas sendo que a lideranccedila do grupo foi

ameaccedilada de morte vaacuterias vezes em um clima de forte tensatildeo e animosidade Em

resposta a esta situaccedilatildeo de inseguranccedila e agrave recusa do primeiro relatoacuterio o INCRA

contratou um segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foi produzido pela empresa Terra

Ambiental Esta empresa foi a vencedora do pregatildeo eletrocircnico realizado pela

Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas (DFQ) da sede do

INCRA em Brasiacutelia tendo em vista a urgecircncia deste processo de regularizaccedilatildeo

territorial em GuaiacuteraPR A versatildeo final do segundo relatoacuterio foi encaminhada em 15

de julho de 2013 E avaliado em sua consonacircncia com a instruccedilatildeo normativa em vigor

572009 o relatoacuterio antropoloacutegico foi aprovado e incorporado ao Relatoacuterio Teacutecnico de

Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID)89 da comunidade

A pesquisa para produccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico teve que lidar

com as questotildees provocadas pelo primeiro estudo e sua recusa em reconhecer a

autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombolas Como resposta a equipe de

pesquisadores contratados pela empresa Terra Ambiental realizou um levantamento

acerca das memoacuterias coletivas do grupo sobre sua origem mineira deslocando o

historiador Cassius Cruz ateacute a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de onde as

famiacutelias satildeo provenientes Atraveacutes deste levantamento de informaccedilotildees em Minas

Gerais foi possiacutevel apontar os viacutenculos e as referecircncias comuns de memoacuteria entre a

comunidade de Guaiacutera e comunidades quilombolas desta regiatildeo mineira bem como

levantar possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco com a Comunidade Quilombola Vila Nova

localizada em SerroMG especificamente

89 O RTID eacute um conjunto de peccedilas teacutecnicas que eacute produzido pelo INCRA no acircmbito do procedimento administrativo para regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas O relatoacuterio antropoloacutegico eacute a primeira peccedila teacutecnica do RTID (o qual eacute composto por outros estudos) e tem como objetivo ldquocaracterizarrdquo a comunidade quilombola e o territoacuterio reivindicado conforme a Instruccedilatildeo Normativa 57 de 2009 que regulamenta o procedimento De um modo mais geral sobre as etapas que compotildeem o processo de titulaccedilatildeo tem-se que ldquoa primeira parte dos trabalhos do Incra consiste na elaboraccedilatildeo de um estudo da aacuterea destinado agrave confecccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) do territoacuterio Uma segunda etapa eacute a de recepccedilatildeo anaacutelise e julgamento de eventuais contestaccedilotildees Aprovado em definitivo esse relatoacuterio o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do territoacuterio quilombola A fase seguinte do processo administrativo corresponde agrave regularizaccedilatildeo fundiaacuteria com desintrusatildeo de ocupantes natildeo quilombolas mediante desapropriaccedilatildeo eou pagamento de indenizaccedilatildeo e demarcaccedilatildeo do territoacuterio O processo culmina com a concessatildeo do tiacutetulo de propriedade agrave comunidaderdquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrestrutura-fundiariaquilombolas Acesso em 180915

104

Para entender a complexidade da produccedilatildeo destes dois relatoacuterios eacute

importante levar em conta que a produccedilatildeo de tal tipo de documento no acircmbito de um

procedimento do INCRA consiste em uma forma especiacutefica de pesquisa

antropoloacutegica Trata-se de um processo dirigido de interaccedilatildeo entre o antropoacutelogo e os

sujeitos de pesquisa a partir de paracircmetros legais e administrativos O territoacuterio a ser

delimitado como proposta final do estudo seraacute neste contexto resultado de uma

fabricaccedilatildeo mediada por atores que interagem em uma rede configurada tambeacutem como

um forte campo de disputas Em jogo estatildeo natildeo soacute as tensotildees entre estes campos

de conhecimento mas tambeacutem entre interesses antagocircnicos sobre a questatildeo eacutetnica

e territorial principalmente no que tange agrave resistecircncia dos setores conservadores da

sociedade em relaccedilatildeo agraves possibilidades de alteraccedilatildeo e democratizaccedilatildeo da estrutura

agraacuteria nacional

Um dos efeitos em relaccedilatildeo a essa disputa que cria entraves para a efetivaccedilatildeo

de titulaccedilotildees de territoacuterios quilombolas foi o aumento na burocratizaccedilatildeo dos

procedimentos exigidos pelo INCRA por meio da alteraccedilatildeo das instruccedilotildees normativas

(IN) que regem este processo ateacute a atual IN 57 de 2009 Ainda em 2008 a Associaccedilatildeo

Brasileira de Antropologia (ABA) se posicionou sobre o debate acerca da reforma da

IN 20 anterior agrave mais exigente IN 5790 por meio da ldquoCarta de Porto Segurordquo criticando

o estabelecimento de um roteiro com itens descritivos a serem seguidos pelo

antropoacutelogo responsaacutevel pela realizaccedilatildeo de relatoacuterios de identificaccedilatildeo territorial

() Diferentemente de outras periacutecias teacutecnicas o relatoacuterio antropoloacutegico natildeo trabalha sob o suposto de uma verdade absoluta e externa aos atores mas desempenha o papel de apreender e interpretar o ponto de vista nativo sobre sua histoacuteria sociedade e ambiente de forma a traduzi-lo nas linguagens externas a ele Como corolaacuterio deste papel principal a Antropologia tambeacutem tem o papel de relativizar e enriquecer tais saberes e linguagens do Estado ao confrontaacute-lo com concepccedilotildees e conceitos que lhe satildeo externos A recusa de qualquer destes objetivos deve ser assumida pelas agecircncias de Estado como fruto de decisatildeo poliacutetica expliacutecita e natildeo transferida para o exerciacutecio antropoloacutegico por meio de constrangimentos legais ou normativos Diante destas consideraccedilotildees repudiamos a pretensatildeo do Estado Brasileiro em interferir sobre o saber e o fazer antropoloacutegicos tendo em vista interesses

90 Segundo Arruti as alteraccedilotildees da Instruccedilatildeo Normativa 202005 para a 572009 foram decorrentes da

mediaccedilatildeo do Governo Federal frente agrave pressatildeo poliacutetica que os opositores ao tema provocaram com a proposta de Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3239 encaminhada pelo partido Democratas ao Supremo Tribunal Federal Esta ADIn questiona o Decreto 48872003 que regulamenta o procedimento de titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas Arruti afirma que ldquo() o governo federal assumiu o ocircnus de incorporar o contraditoacuterio imposto pela oposiccedilatildeo ao tema na forma de uma nova proposta de reformulaccedilatildeo da Instruccedilatildeo Normativa interna ao Incra abrindo um novo campo de disputas que agora o opotildee ele mesmo ao movimento quilombolardquo (ARRUTI 2009 p 120)

105

conjunturais e externos ao legiacutetimo debate puacuteblico em torno dos objetivos que formalmente sustentam o diaacutelogo entre antropoacutelogos e agecircncias de Estado91

O contato do campo juriacutedico com os antropoacutelogos ndash tanto na esfera

administrativa como na judicial ndash nas quais o relatoacuterio antropoloacutegico pode ser

interpretado como prova pericial ndash cria uma expectativa por parte dos operadores do

direito da produccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico objetivo pensado a partir de fatos

como elementos externos e preacute-existentes bem como a partir da dicotomia entre

representaccedilatildeo e realidade (OrsquoDWYER 2009 p 177) Esta aproximaccedilatildeo entre campos

de conhecimento tem sido permeada portanto de desentendimentos muacutetuos

Haacute o poder e a autoridade do juiz de dizer de quem eacute ou natildeo eacute o direito quem pode ou natildeo pode quem vai ou natildeo vai ter direito agrave condiccedilatildeo pleiteada ou neste exemplo agrave terra reivindicada O mesmo natildeo pode ser esperado do antropoacutelogo embora sua voz seja importante na decisatildeo do juiz () Haacute muitas vezes durante esse processo uma dificuldade de entendimento sobre o lugar efetivo do antropoacutelogo Entatildeo lhe recaem responsabilidades que parecem criar uma confusatildeo entre saberes poderes e responsabilidades a ponto de ser atribuiacutedo ao antropoacutelogo um lugar de juiz isto eacute o papel de julgar e definir quem seraacute beneficiado (LEITE 2004 67)

Os criteacuterios juriacutedicos natildeo deveriam desta forma desconsiderar os paracircmetros

de execuccedilatildeo e de avaliaccedilatildeo da proacutepria antropologia jaacute que eacute a esta tradiccedilatildeo teoacuterica

que se estaacute recorrendo em funccedilatildeo de seu campo interpretativo para subsidiar a

compreensatildeo das dinacircmicas sociais em questatildeo A relevacircncia do meacutetodo etnograacutefico

para a antropologia coloca em questatildeo as dificuldades impostas em contextos de

pesquisa em que a temporalidade do processo natildeo eacute a mesma da etnografia para

estudos acadecircmicos Eacute importante que este meacutetodo de pesquisa possa ser

incorporado nos procedimentos desta poliacutetica de reconhecimento em condiccedilotildees de

efetivo respeito agrave alteridade Nesse sentido para que a etnografia possa se realizar a

partir do criteacuterio da produccedilatildeo de um conhecimento dialoacutegico e operar como um

instrumento adequado antropologicamente seria necessaacuterio que a poliacutetica de

reconhecimento do Estado incorporasse outros saberes e linguagens capazes de

enriquecer e problematizar a questatildeo da diversidade cultural

Ademais se por um lado o direito cria um filtro para lidar com a antropologia

a antropologia por outro eacute ela mesma um filtro Importante destacar que o problema

91 ldquoCarta de Porto Seguro sobre as posturas estatais diante das consultas formais aos antropoacutelogosrdquo

Disponiacutevel em httpwwwabantorgbrconteudoANAISCD_Virtual_26_RBAcartadeportoseguropdf Acesso em 180915

106

do poder e do silenciamento na produccedilatildeo de textos antropoloacutegicos estaacute teoricamente

elaborado desde a deacutecada de 1970 com a virada poacutes-moderna O etnoacutegrafo natildeo pode

mais escapar imune dessa ldquocrise teoacuterico-poliacuteticardquo Necessaacuterio retomar desta maneira

a criacutetica aos modos de escrita antropoloacutegica que instauram regimes de verdade em

relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo do nativo a partir de padrotildees de disciplinamento e controle

que escamoteiam a presenccedila do antropoacutelogo como autor e que podem reforccedilar uma

ldquounidade cognoscenterdquo92 em relaccedilotildees de poder sobre os grupos estudados

(CARVALHO 2002 p 06)

Ao passo que este debate sobre a representaccedilatildeo etnograacutefica estaacute colocado

para a antropologia em situaccedilotildees de diaacutelogo com esferas como o direito que trabalha

com a busca de provas a partir da elaboraccedilatildeo de periacutecias torna-se muito mais

complexo (mas natildeo menos necessaacuterio) problematizar o lugar do antropoacutelogo na

relaccedilatildeo de pesquisa e na forma de escrita Nesta intersecccedilatildeo de aacutereas de saber o

que vem agrave tona muitas vezes em primeiro plano eacute a possibilidade pragmaacutetica dos

antropoacutelogos participarem dos processos de garantia de direitos para os grupos aos

quais tecircm dedicado longa tradiccedilatildeo de estudos e neste processo debates importantes

da antropologia podem acabar negligenciados em prol de estrateacutegias de persuasatildeo

argumentativa dos relatoacuterios antropoloacutegicos

Neste contexto de traduccedilotildees e incompreensotildees eacute necessaacuterio reafirmar

conforme pautado pelo documento produzido pela Associaccedilatildeo Brasileira de

Antropologia (ABA) ndash a Carta de Ponta das Canas93 ndash que agrave antropologia cabe a

produccedilatildeo de inteligibilidade e natildeo de julgamentos a construccedilatildeo de interpretaccedilotildees e

natildeo de ldquoverdadesrdquo natildeo tendo o relatoacuterio antropoloacutegico um caraacuteter de atestado (ABA

2001) A diferenccedila deste tipo de trabalho com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo acadecircmica estaria

em uma certa economia a que o antropoacutelogo deve responder restringindo na medida

do possiacutevel a riqueza etnograacutefica aos limites da demanda Essa tensatildeo entre

antropologia e direito no entanto natildeo deve ser eliminada pois isso soacute ocorreria por

meio da submissatildeo de um saber ao outro Assim recomenda-se que o antropoacutelogo

92 O antropoacutelogo Joseacute Jorge de Carvalho problematiza o fato de que a comunidade antropoloacutegica eacute

avassaladoramente branca e que se de um lado a antropologia estaacute interessada na diversidade nativa natildeo conseguiu ainda superar a homogeneidade social racial e de classe dos proacuteprios antropoacutelogos profissionais (CARVALHO 2002 p 08) 93 Documento produzido na ldquoOficina sobre Laudos Antropoloacutegicosrdquo realizada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) e organizada pelo Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ver ABA Laudos Antropoloacutegicos - Carta de Ponta das Canas Textos e Debates n 9 Florianoacutepolis NUERUFSC 2001

107

seja minucioso e sistemaacutetico na explicitaccedilatildeo das razotildees que o levaram agrave apresentaccedilatildeo

das informaccedilotildees selecionadas tendo em vista os objetivos especiacuteficos deste tipo de

documento (ABA 2001 p 04- 05)

Eacute sabido que diferentes situaccedilotildees etnograacuteficas iratildeo gerar diferentes respostas

dos grupos sociais em termos da possibilidade de estabelecimento de relaccedilotildees de

confianccedila compreensibilidade e diaacutelogo (OLIVEIRA FILHO 2003 141-180) Para

aleacutem do caraacuteter juriacutedico que assume o relatoacuterio antropoloacutegico haacute uma importante

dimensatildeo de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da legitimidade e dos conhecimentos dos

grupos que passam por tal tipo de estudo o que iraacute depender do posicionamento eacutetico

dos profissionais envolvidos e das relaccedilotildees estabelecidas com seus interlocutores

Com um relatoacuterio antropoloacutegico que possa embasar teoricamente esta experiecircncia

histoacuterica e coletiva especiacutefica abre-se a possibilidade inclusive de uma confrontaccedilatildeo

de historicidades tendo em vista que a histoacuteria oficial em sua linearidade

uniformizadora natildeo incorpora esta diversidade de experiecircncias histoacutericas (CHAGAS

2005 p 75)

Neste capiacutetulo busco analisar de que forma o processo de reconhecimento

da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos ndash por meio da atuaccedilatildeo de diferentes atores

externos e especialmente no que tange agrave produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos

ndash foi percebido pelos membros do grupo quilombola e ao mesmo tempo em um certo

sentido produziu o proacuteprio grupo94 em um acircmbito institucional Assim como afirmou

Homi Bhabha importante teoacuterico dos estudos poacutes-coloniais eacute preciso reconhecer a

forccedila da escrita e de seu discurso retoacuterico ldquocomo matriz produtiva que define o lsquosocialrsquo

A textualidade natildeo eacute simplesmente uma expressatildeo ideoloacutegica de segunda ordem ou

um sintoma verbal de um sujeito poliacutetico preacute-dadordquo (BHABHA 1988 p 48) Assim

deve-se ter em vista o potencial transformador contido no processo que se pretende

de ldquoreconhecimentordquo e que muitas vezes incorre no equiacutevoco de buscar uma

identidade e um territoacuterio preacute-existentes

94 Se no primeiro relatoacuterio os autores afirmaram que natildeo se tratava de um grupo quilombola mas sim

de famiacutelias negras de trabalhadores rurais no segundo relatoacuterio reconheceu-se a autoindentificaccedilatildeo como grupo quilombola e fundamentou-se sua reivindicaccedilatildeo identitaacuteria a partir das referecircncias sobre a regiatildeo de origem do grupo Com base na pesquisa feita pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico impulsionou-se o retorno de quilombolas para Minas Gerais em busca de seus parentes e de mais informaccedilotildees sobre seus antepassados Isto demonstra como os processos de escrita sobre o grupo repercutiram em sua proacutepria dinacircmica interna de modo significativo tendo em vista que a memoacuteria coletiva estava passando por uma adequaccedilatildeo a este tipo de avaliaccedilatildeo externa

108

O que natildeo pode ser deixado de lado eacute o caraacuteter criativo e transformador deste processo que tende a ser obscurecido quando se supotildee que o ldquoterritoacuteriordquo remete necessariamente a sentidos e usos do espaccedilo preexistentes a ele A proacutepria noccedilatildeo de ldquoreconhecimentordquo tende a favorecer tal interpretaccedilatildeo sugerindo que o que estaacute em jogo eacute apenas a ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo de um estado de coisas jaacute existente Ainda que fosse esse o caso eacute preciso destacar tambeacutem que tal ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo implica em substanciais mudanccedilas na dinacircmica vital e social dos grupos envolvidos Sem qualquer pretensatildeo agrave exaustividade poderiacuteamos a esse respeito evocar apenas a intensificaccedilatildeo da presenccedila dos ldquomediadoresrdquo (lideranccedilas de movimentos sociais e sindicatos universitaacuterios pesquisadores funcionaacuterios do Estado e de ONGs) na vida cotidiana destas pessoas No contexto da luta poliacutetica elas satildeo obrigadas a se ver agraves voltas com dinacircmicas que se por um lado satildeo positivamente avaliadas como indicadores da ldquopolitizaccedilatildeordquo ou ldquoresistecircnciardquo da ldquocomunidaderdquo por outro satildeo por elas mesmas contrapostas ao ldquosossegordquo ou ldquotranquilidaderdquo que usufruiacuteam nos momentos em que podiam manter uma maior autonomia perante as exigecircncias e pressotildees do mundo ldquourbanordquo eou ldquoletradordquo Note-se que nesse uacuteltimo caso estamos nos referindo tanto aos ldquoinimigosrdquo destes grupos como aos seus aliados as ameaccedilas oriundas dos primeiros muitas vezes tornando imperativo o estabelecimento e consolidaccedilatildeo de relacionamentos com os segundos ndash frequentemente a partir de formas praacuteticas e linguagens que satildeo mais familiares a estes mediadores do que agravequeles que por eles ldquomediadosrdquo Que as dificuldades decorrentes desses relacionamentos sejam desconsideradas em prol das vantagens deles originadas soacute confirma o que pretendemos argumentar aqui para o bem ou para o mal natildeo se vive impunemente a luta poliacutetica e as alianccedilas vinculadas a ela as marcas decorrentes de tal processo frequentemente se convertendo em marcos na histoacuteria e memoacuteria dos grupos que optaram por ndash ou foram compelidos a ndash ldquose engajarrdquo (GUEDES 2013b p 56-57)

Entre inimigos e aliados o grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo

viveu impunemente a sua opccedilatildeo pelo engajamento poliacutetico Parece que a primeira

impressatildeo de que o reconhecimento como quilombolas poderia representar um risco

como veremos abaixo veio a se confirmar para eles com os desdobramentos

conflituosos que se seguiram agrave presenccedila do INCRA na comunidade (a partir da

atuaccedilatildeo da equipe que realizou o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) resultando na

perda de empregos nas propriedades vizinhas no isolamento das famiacutelias e na

necessidade de receberem cestas baacutesicas por falta de meios de sobrevivecircncia Com

o segundo relatoacuterio antropoloacutegico uma nova perspectiva se apresentou atraveacutes da

busca por informaccedilotildees que demonstrassem o viacutenculo da comunidade em Guaiacutera com

sua regiatildeo de origem em Minas Gerais Essa pesquisa trouxe repercussotildees

significativas natildeo soacute no acircmbito do procedimento do INCRA pois ganhou dimensotildees

profundas em termos emocionais simboacutelicos e poliacuteticos para o grupo Eacute a partir dos

questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e desta conflituosidade do

processo de reconhecimento que os quilombolas em GuaiacuteraPR impulsionam-se

para a busca de maiores informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica de seus

109

antepassados e reacionam os viacutenculos com a regiatildeo de origem bem como com seus

parentes em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG como analisaremos no uacuteltimo capiacutetulo

21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS

O autorreconhecimento como quilombolas remete ao contato que as famiacutelias

tiveram com agentes do Estado que lhes apresentaram esta via de direitos no ano de

2005 a partir da visita de Clemilda Santiago Neto professora de histoacuteria e militante

do movimento negro que na eacutepoca trabalhava na Secretaria de Educaccedilatildeo do Estado

do Paranaacute (SEED) e no Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) O chamado ldquoGT

Cloacutevis Mourardquo foi criado por iniciativa do governo estadual95 tendo atuado entre os

anos de 2005 e 2010 enquanto uma equipe intersecretarial com o objetivo de realizar

um ldquoLevantamento Baacutesico de Comunidades Negras do Paranaacuterdquo96 o qual teve

importacircncia fundamental no estiacutemulo agrave certificaccedilatildeo de grupos quilombolas no estado

Poreacutem como iremos analisar o contato com agentes estatais no caso da comunidade

quilombola em questatildeo desde o primeiro momento envolveu tensotildees e foi marcado

pela desconfianccedila por parte dos quilombolas

Os grupos sociais que foram identificados no levantamento do governo do

estado tendo em vista o objetivo de ldquodescobrir o Paranaacute Negrordquo poderiam ser

classificados segundo os membros do GTCM em trecircs categorias Remanescente de

Quilombo Negros Tradicionais ou Comunidade Negra (LEWANDOWISKI 2009 p

42 50) Tais comunidades foram vistas pelo GTCM como ldquohistoricamente e ateacute agora

invisibilizadas eou suprimidas pelas diversas esferas do poder e da sociedade civilrdquo

e para superar tal situaccedilatildeo o levantamento visava ldquoatingir objetivos mais imediatos

tornaacute-las alvo de poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo disponibilizadas a outras

comunidades e segmentos sociais em accedilatildeo de inclusatildeo socialrdquo97

O resultado da pesquisa apontava em 2010 quando o grupo de trabalho foi

extinto para um quadro de trinta e seis comunidades quilombolas certificadas pela

95 Resoluccedilatildeo conjunta nordm 012005 que inclui a Secretaria do Estado da Educaccedilatildeo Assuntos Estrateacutegicos Cultura Comunicaccedilatildeo Social e Meio Ambiente 96 O relatoacuterio final elaborado pelo GTCM estaacute disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 97 Texto de apresentaccedilatildeo que consta no site institucional do GTCM Disponiacutevel em

httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=16 Acesso em 170215

110

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) vinte ldquocomunidades negras tradicionaisrdquo ainda

natildeo certificadas e 32 (trinta e dois) indicativos da existecircncia de outras comunidades

no estado do Paranaacute (GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 17-21)

Atualmente a Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute possui 37 procedimentos de

regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas abertos Deste total dez estatildeo em andamento

e cinco estatildeo em processo de elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e

Delimitaccedilatildeo (RTID) dentre os quais o da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos98

Durante o governo estadual de Roberto Requiatildeo (PMDB2003-2010) levando

em consideraccedilatildeo o alinhamento com o governo federal de Luis Inaacutecio Lula da Silva

(PT2003-2010) foi gerado portanto um momento propiacutecio para pautar a agenda

puacuteblica com as questotildees relativas agraves minorias eacutetnicas com base em leis e decretos

que inovaram no tratamento destas questotildees99 Buscou-se assim sensibilizar os

administradores em relaccedilatildeo agraves demandas das comunidades quilombolas e dar apoio

para que os proacuteprios segmentos pudessem acionar com a mediaccedilatildeo do GTCM as

diversas secretarias de estado bem como os oacutergatildeos federais

Quando a comunidade se auto-reconhecia como remanescente de quilombo o grupo de trabalho prestava uma assessoria para organizaccedilatildeo das associaccedilotildees de moradores condiccedilatildeo fundamental para abertura dos processos junto ao Incra na construccedilatildeo dos estatutos e na eleiccedilatildeo de uma diretoria Quando escolhidas as novas lideranccedilas comunitaacuterias passavam a ter contato intenso com a equipe do GT A orientaccedilatildeo era para que diante de qualquer duacutevida ou problema o GT pudesse ser acionado para resolver (LEWANDOWSKI 2009 p 51)

Em relaccedilatildeo agrave chegada de Clemilda ndash uma das principais protagonistas do

processo de levantamento das comunidades pelo GTCM ndash e a como ocorreu o

reconhecimento do grupo em GuaiacuteraPR Eva (50) esposa de Joaquim (55) (portanto

98 As outras comunidades em processo de elaboraccedilatildeo do RTID satildeo Adelaide Maria Trindade Batista em Palmas Varzeatildeo em Doutor Ulysses Serra do Apon em Castro e Mamatildes em Cerro Azul Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwincragovbrnoticiasmesa-de-acompanhamento-da-politica-de-regularizacao-quilombola-e-instalada-no-parana Acesso em 24022015 99 Dentre as principais normatizaccedilotildees estatildeo a Lei 106392003 (que inclui ldquono curriacuteculo oficial da Rede

de Ensino a obrigatoriedade da temaacutetica Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira) o Decreto Federal 48872003 (que regulamenta o processo de titulaccedilatildeo ldquodas terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos) e o Decreto Federal 60402007 (que ldquoinstitui a Poliacutetica Nacional de Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionaisrdquo) dentre outras regulamentaccedilotildees federais neste sentido

111

nora de Manoel Ciriaco) contou-me sobre como ficaram surpresos com a visita de

uma funcionaacuteria puacuteblica interessada na histoacuteria do grupo

Dandara Como seraacute que ela ficou sabendo de vocecircs mesmo

D Eva Porque eu estudava aqui na escola com a Lucia daiacute ela tambeacutem trabaiava no negoacutecio que a Clemilda trabaia laacute Daiacute entatildeo ela falou que aqui ni Guaiacutera tinha ela achava que era descendente de escravo era remanescente de quilombo Daiacute ela mandou vim aqui daiacute a Clemilda veio Ela veio primeiro falar daiacute depois a Clemilda veio Acho que ela (Lucia) veio aqui se era dois mil ih fazia tempo nem lembrava disso mais Daiacute foi a Clemilda chegou aqui Ningueacutem acreditava E o Zeacute Maria falava assim ldquonatildeo eles vatildeo roubar de noacutesrdquo Eacute (risos) ldquoNoacutes nunca foi conhecido nesse lugar Noacutes nunca foi reconhecido nesse lugar aqui Noacutes sempre desprezado aqui Como eacute que domingo ainda Ah natildeo acredito ah natildeo acreditordquo (risos) Pegou a muletinha dele e foi embora pra casa Natildeo quis nada de jeito nenhum

Dandara E antes da Clemilda vocecircs natildeo imaginavam que teriam direito

D Eva Natildeo noacutes natildeo imaginava natildeo que noacutes natildeo sabia de nada eacute natildeo falava nem nada disso aiacute

As pessoas da comunidade natildeo soacute ficaram surpresas com a chegada de

Clemilda como tambeacutem desconfiaram de suas intenccedilotildees ainda mais porque ela

chegou em um dia de domingo Me contaram como desconfiaram ateacute se ela era do

governo principalmente o ldquofinado Zeacute Mariardquo que na eacutepoca era a referecircncia e a

lideranccedila da famiacutelia sendo o filho mais velho dentre os que permaneceram na

comunidade Ele resistiu muito ateacute concordar em assinar os papeacuteis que solicitariam o

reconhecimento da comunidade como quilombola Joaquim destacou como a postura

do irmatildeo foi enfaacutetica e estava legitimada na sua posiccedilatildeo de autoridade

Joaquim Ai uma hora ele falou com ela ldquoeacute eu fico muito emocionado noacutes aqui nesse fim de mundo e vocecircs que eacute pessoal do governo veio procurar a gente que nunca aconteceu issordquo Ele falou pra ela (risos) Aiacute a hora que ela caccedilou ele falou ldquoMelhor ficar que eu vou embora agora que o que meu pai deixou pra noacutes eacute mixaria e eu natildeo quero perder e ningueacutem me faz eu assinarrdquo

A fala de Joaquim em referecircncia ao comentaacuterio de Zeacute Maria indica uma

sensaccedilatildeo de invisibilidade e abandono por parte do Estado para com estas famiacutelias

o que eacute reforccedilado na leitura dos membros do grupo pela condiccedilatildeo histoacuterica de

exclusatildeo e opressatildeo do negro no Brasil Se esta percepccedilatildeo poderia ter sido alterada

com o processo de reconhecimento do grupo como quilombola percebe-se no

entanto que o Estado entendido como figura abstrata dissociada de seus agentes

112

especiacuteficos ndash com os quais em alguns casos eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees de

confianccedila e amizade ndash continua apresentando posicionamentos duacutebios e natildeo dignos

de confianccedila O Estado de alguma forma segundo Adir se isentaria diante do fato

de que os quilombolas tecircm ainda que correr atraacutes de direitos que deveriam lhes ser

garantidos prontamente tendo em vista a histoacuteria de opressatildeo a que vem sendo

submetidos Para conquistar algum direito com muita luta e paciecircncia sentem-se

refeacutens dos labirintos burocraacuteticos e hieraacuterquicos de procedimentos instruccedilotildees

normativas leis e barganhas poliacuteticas

Joaquim Eva e Adir me relataram como foi conturbado este contato inicial

com agentes do Estado Zeacute Maria pediu inclusive para que Adir solicitasse agrave Clemilda

o seu crachaacute comprovando que ela era funcionaacuteria puacuteblica Esta desconfianccedila em

assinar os papeacuteis que solicitariam o reconhecimento da comunidade como quilombola

parece decorrente do risco de expropriaccedilatildeo por eles percebido bem como aponta

para a dificuldade de domiacutenio do mundo documental pelos membros do grupo100 Fala

tambeacutem sobre o processo de exclusatildeo e sobre como o grupo o percebe jaacute que se

estar invisiacutevel era algo que confirmava a situaccedilatildeo perifeacuterica em que viviam por outro

lado a visibilidade tambeacutem eacute percebida como um risco101 No entanto Zeacute Maria foi

depois convencido e assinou o documento que subsidiou a elaboraccedilatildeo da ldquoCertidatildeo

de Auto-Reconhecimentordquo expedida em 02 de outubro de 2006 Em 2007 o grupo

funda com auxiacutelio do GTCM a Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos

Santos (ACONEMA)

Antes disso eles desconheciam que esta identidade era reconhecida e

guarnecida pelo Estado bem como desconheciam as nominaccedilotildees de ldquoquilombolasrdquo

ou ldquoremanescente de quilombosrdquo agraves quais iratildeo paulatinamente conferir significado

com base na releitura de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido

A noccedilatildeo de ldquoremanescenterdquo como algo que jaacute natildeo existe ou em processo de desaparecimento e tambeacutem a de ldquoquilombordquo como unidade fechada igualitaacuteria e coesa tornou-se extremamente restritiva Mas foi principalmente porque a expressatildeo natildeo correspondia agrave autodenominaccedilatildeo destes mesmos

100 No caso da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna localizada em CuriuacutevaPR por exemplo o relatoacuterio antropoloacutegico relata como eles foram enganados por parente proacuteximo que pediu que assinassem documento que foi posteriormente utilizado para a expropriaccedilatildeo de uma aacuterea do grupo (PORTO 2012 p 61-62) 101 O fato tambeacutem de se tratar de um grupo com niacutevel baixo de acesso agrave educaccedilatildeo formal reforccedila esta dificuldade em lidar com a documentaccedilatildeo principalmente concernente agrave terra Este quadro estaacute sendo modificado na geraccedilatildeo de jovens hoje os quais tecircm condiccedilotildees de terminar o ensino meacutedio e ateacute o ensino superior comeccedila a ser acessado

113

grupos e por tratar-se de uma identidade ainda a ser politicamente construiacuteda que suscitou tantos questionamentos De saiacuteda exigiu-se nada mais que um esforccedilo interpretativo do processo como um todo por parte dos intelectuais e militantes bem como das proacuteprias comunidades envolventes e sem o qual seria impossiacutevel a aplicabilidade juriacutedica do artigo (LEITE 2000 p 341)

A experiecircncia que meus interlocurores(as) possuiacuteam de uma ldquotrajetoacuteria

histoacuterica proacutepriardquo vinculada agrave ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo conceitos da

definiccedilatildeo de quilombo trazida pelo Decreto 44872003 (que regulamenta o processo

de titulaccedilatildeo quilombola) ficava restrita enquanto objeto de introspecccedilatildeo interna ao

grupo Isto porque tal afirmaccedilatildeo segundo eles seria percebida como motivo de

escaacuternio e de discriminaccedilatildeo por parte das outras pessoas da regiatildeo102 Eacute atraveacutes de

uma rede de mediadores como o GTCM organizaccedilotildees governamentais natildeo

governamentais e movimento negro que o ldquoprocesso de reconhecimentordquo eacute

estimulado no Paranaacute e neste caso especiacutefico

Na fala dos irmatildeos Adir e Joaquim atualmente presidente e vice-presidente

da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) aparece

este sentimento de que se comentassem sobre sua histoacuteria antes do processo de

reconhecimento como quilombolas ningueacutem iria acreditar neles e seriam alvo de

ridicularizaccedilatildeo

Dandara Mas essa histoacuteria da origem do Manoel Ciriaco laacute de Minas que tinha descendecircncia de ex-escravos isso tudo era todo mundo que conhecia ou era soacute alguns que sabiam dessa histoacuteria

Adir Vocecirc fala a populaccedilatildeo

Dandara Natildeo vocecircs da famiacutelia mesmo

Adir Noacutes jaacute sabia

Joaquim E muitos aqui sabia tambeacutem que meu pai falava neacute com os italiano aqui que eles Mas eles natildeo ligava

Adir Mas era coisa que nem eles mais falava assim ldquoque vatildeo buscar nada de histoacuteria deles nada atraacutes nadardquo Chegaram contaram o que eles passaram quando chegaram aqui que teve dificuldade que vieram de um lugar laacute onde teve escravo isso e aquilo outro Mas quem que ia ligar nisso Nem noacutes mesmos Noacutes aprendemos com nossos pais nossos avoacutes nossa matildee sim nossa histoacuteria que noacutes natildeo podia pronunciar pra ningueacutem Ia falar pra quem Dizer pra quem isso aiacute E quando surge isso nos pega tambeacutem de surpresa E ai vocecirc vai falar o quecirc Vai divulgar o quecirc Quem que vai acreditar em vocecirc Natildeo eacute difiacutecil E eacute isso aiacute

102 Sobre o tema da introspecccedilatildeo acerca da identidade ver o caso do grupo indiacutegena Caxixoacute de Minas Gerais (SANTOS OLIVEIRA 2003 p 22)

114

Nesta fala de Adir e Joaquim eacute relevante notar a diferenccedila entre o que eacute

entendido como um silenciamento sobre o passado em contraste com um processo

de esquecimento (PORTO 2013b p 175) Eacute a partir do momento em que se encontra

uma possibilidade de escuta que a memoacuteria passa a ser pronunciada publicamente

Ateacute entatildeo estava contida como algo indiziacutevel pois soacute fazia sentido enquanto processo

de transmissatildeo de memoacuteria interno agrave famiacutelia (POLLAK 1989 p 09) Haacute uma

polarizaccedilatildeo portanto entre um passado de silenciamento e um presente de

pronunciamento que aparece como um princiacutepio de operaccedilatildeo na forma como

percebem a relaccedilatildeo deles com o contexto mais amplo no qual se inserem Poderem

ser ouvidos como narradores legiacutetimos de sua proacutepria histoacuteria por meio deste novo

contexto de reconhecimento pelo Estado eacute um ganho que transcende as questotildees

juriacutedicas e poliacuteticas na medida em que representa para eles uma valorizaccedilatildeo e um

reconhecimento da necessidade de reparaccedilatildeo da opressatildeo sofrida

Esta fala tambeacutem aponta para a expectativa que a comunidade tinha frente agrave

produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio de que sua histoacuteria seria registrada e reconhecida aleacutem

de significar um marco para a possibilidade de conquista de direitos que os

empoderaria diante do contexto local adverso Como veremos adiante foram muitas

as dificuldades que tiveram para lidar com o fato de sua identidade ter sido negada

oficialmente por um antropoacutelogo bem como com os conflitos gerados a partir dos

desdobramentos do procedimento que tramita no INCRA103

O registro da histoacuteria comum dos membros da comunidade deu um novo

status agrave memoacuteria coletiva e agravequeles que satildeo vistos internamente como os guardiotildees

destas histoacuterias Os elementos preacute-existentes da memoacuteria passam a ser mobilizados

de formas especiacuteficas tendo em vista que eacute o Estado quem estabelece os criteacuterios

normativos que funcionaratildeo como modelos a partir do qual a populaccedilatildeo passa a se

pensar em termos de identidade objetivada conceitualmente o que se faraacute por meio

de mediaccedilotildees e modulaccedilotildees (MARCUS 1991)104

103 Este impasse vivido pelo grupo aponta para a ldquodificuldade de identificar os sujeitos do direito e suas

complexas demandasrdquo bem como ldquoas tensotildees entre as conceituaccedilotildees histoacuterica antropoloacutegica e juriacutedica de quilombordquo (LEITE FERNANDES 2006 p 12) sobre as quais no entanto natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho 104 Interessante observar o deslocamento semacircntico no que tange estas modulaccedilotildees do Estado que foi ocorrendo ldquorealizado tanto por agentes estatais quanto por membros do movimento social e representantes do meio acadecircmico - em que os remanescentes de comunidades de quilombos passam a ser definidos como comunidades remanescentes de quilombos e no momento seguinte

115

O claacutessico estudo de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva demonstra como

apesar da aparecircncia de experiecircncia individual a memoacuteria soacute eacute possiacutevel por meio das

relaccedilotildees sociais de interaccedilatildeo enquanto fenocircmeno coletivo Assim a duraccedilatildeo de uma

memoacuteria estaria limitada agrave duraccedilatildeo do grupo no acircmbito do qual tais lembranccedilas foram

geradas e enquanto fenocircmeno construiacutedo coletivamente tambeacutem estaacute sujeita a

transformaccedilotildees Dentro destas dinacircmicas o autor ressalta a existecircncia de pontos de

referecircncias comuns que formam um nuacutecleo resistente relativamente invariaacutevel um fio

condutor de acontecimentos-chaves (HALBWACHS 2003 p 35)

No caso do quilombo de Guaiacutera enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo

(HALBWACHS 2003) que gera o sentimento de pertencimento de identificaccedilatildeo e

aglutinaccedilatildeo entre seus membros este fio condutor passa pelo compartilhamento da

memoacuteria das dinacircmicas de movimento e fixaccedilatildeo das famiacutelias Este movimento inicia-

se a partir do que podemos chamar de um ldquolugar formador de memoacuteriardquo (POLLAK

1992 p 203) a regiatildeo de origem do grupo Mesmo fora do espaccedilo-tempo da vida da

comunidade no Paranaacute esta referecircncia eacute fundamental para a identidade do grupo a

partir da qual se contextualiza a memoacuteria herdada dos antepassados em continuidade

com a construccedilatildeo da autoimagem do grupo no presente A origem mineira assume

entatildeo uma dimensatildeo miacutetica pois seu significado eacute ampliado e formalizado de modo

simboacutelico como autorrepresentaccedilatildeo partilhada pelo grupo (PORTELLI 1998 p 120)

A memoacuteria coletiva do grupo quilombola como vimos no primeiro capiacutetulo foi

reorganizada discursivamente a partir do autorreconhecimento identitaacuterio de modo

que pudessem se tornar testemunhas contra o ldquoesquecimento compulsivordquo da sua

proacutepria trajetoacuteria histoacuterica (CONNERTON 1999 p 17) A organizaccedilatildeo poliacutetica do

grupo como quilombolas foi fundamental para a preservaccedilatildeo do que podemos chamar

de ldquomemoacuterias subterracircneasrdquo as quais satildeo majoritariamente reproduzidas pela

oralidade e ldquocomo parte integrante das culturas minoritaacuterias e dominadas se opotildeem

agrave lsquoMemoacuteria Oficialrsquo no caso a memoacuteria nacionalrdquo (POLLAK 1989 p 05)

A percepccedilatildeo de um passado comum em relaccedilatildeo ao qual se destacam as

histoacuterias contadas pelos mais velhos sobre o sofrimento que viveram em Minas

Gerais com a memoacuteria de ascendentes que foram escravizados integra-se agrave busca

por uma nova possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo por meio dos deslocamentos a

comunidades quilombolas apontando para a modificaccedilatildeo conceitual ocorrida ()rdquo (PORTO KAISS COFREacute 2012 p 41)

116

percepccedilatildeo da distintividade cultural enquanto grupo negro rural viacutetima de preconceito

racial e religioso em GuaiacuteraPR bem como a perspectiva da reelaboraccedilatildeo de um

futuro comum com acesso a direitos historicamente negados mobilizam dentre outros

fatores este processo de etnogecircnese

22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo

Quatro anos depois do iniacutecio do processo de contato com agentes externos e

do autorreconhecimento da comunidade como quilombola em 2009 e 2010 foi

realizado o primeiro relatoacuterio de cunho antropoloacutegico dentro do procedimento de

titulaccedilatildeo territorial da comunidade quilombola em Guaiacutera de responsabilidade do

INCRA105 O posicionamento dos autores defendido no documento no entanto negou

que esta comunidade em GuaiacuteraPR seria um grupo quilombola entendendo que se

tratava de uma famiacutelia negra de trabalhadores rurais e que o grupo estava construindo

recentemente esta identidade de modo vinculado com o interesse de garantia de

direitos concluindo que

ldquoO que se percebeu por intermeacutedio da pesquisa eacute que a identidade quilombola eacute algo novo entre as pessoas e que ainda esta (sic) em processo de formaccedilatildeo natildeo estando presente no pensamento coletivo eacute como se os membros da auto denominada (sic) comunidade Negra estivessem aprendendo a ser quilombolasrdquo (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1521 [p 111])

Como jaacute citado o primeiro relatoacuterio foi fruto de um convecircnio entre o INCRA e

a UNIOESTE Conforme a legislaccedilatildeo quando natildeo dispuser de profissional em seu

quadro para a realizaccedilatildeo do relatoacuterio antropoloacutegico o INCRA poderaacute realizar

contrataccedilotildees Junto com Antocircnio Pimentel Pontes Filho antropoacutelogo responsaacutevel pela

equipe tambeacutem participaram da pesquisa mais um mestre em antropologia Roberto

Biscoli e duas auxiliares de pesquisa graduandas da UNIOESTE106 A uacuteltima versatildeo

do relatoacuterio apresentada pelo antropoacutelogo responsaacutevel ndash depois dos pedidos de

105 Percebe-se como o desdobramento do procedimento no INCRA demonstra como este oacutergatildeo natildeo

tinha ainda uma compreensatildeo amadurecida sobre como lidar com as questotildees antropoloacutegicas tendo deixado que o primeiro relatoacuterio fosse concluiacutedo com suas graves consequecircncias para o grupo quilombola para apenas depois de sua finalizaccedilatildeo o avaliar como insuficiente tecnicamente e o retirar do procedimento de titulaccedilatildeo da comunidade 106 Neste convecircnio com a UNIOESTE foi produzido mais um relatoacuterio antropoloacutegico de responsabilidade do mesmo antropoacutelogo na Comunidade Quilombola Maria Adelaide Trindade Batista localizada no Municiacutepio de PalmasPR o qual tambeacutem natildeo foi aprovado

117

adequaccedilatildeo solicitados pelo INCRA os quais foram em grande parte desconsiderados

ndash era composta de centro e trinta e quatro paacuteginas organizadas nas seguintes partes

sobre as quais destacamos alguns pontos principais

(1) Introduccedilatildeo os autores do relatoacuterio trazem um debate sobre o conceito de

quilombo e se posicionam no sentido de que o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo

natildeo eacute compatiacutevel com a perspectiva relacional de etnicidade a qual

entenderia os grupos eacutetnicos como constituiacutedos em relaccedilatildeo por meio das

fronteiras O relatoacuterio afirma que esta abordagem pressupotildee que deva

haver o reconhecimento tambeacutem pelos ldquooutrosrdquo de que o grupo que se

autoidentifica apresenta uma identidade diferenciada em um processo de

ldquohetero-identidaderdquo Eacute segundo esta perspectiva reconhecida por eles

mesmos como incompatiacutevel com o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo que estatildeo

embasadas suas anaacutelises no relatoacuterio Trazem tambeacutem uma seacuterie de

informaccedilotildees sobre o processo de elaboraccedilatildeo da pesquisa elencando ao

longo de quinze paacuteginas cada uma das entrevistas realizadas bem como

demais atividades da equipe desde ofiacutecios e-mails visitas destacando

inclusive os contatos externos aos membros do grupo que foram

realizados Comentam sobre o conflito desencadeado durante a pesquisa

mas se isentam de qualquer responsabilidade em relaccedilatildeo aos

acontecimentos

(2) ldquoA auto denominada (sic) comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

pelo proacuteprio tiacutetulo atribuiacutedo ao segundo capiacutetulo do relatoacuterio recusam a

denominaccedilatildeo de ldquoquilombolasrdquo e parecem estar denunciando em uma

negaccedilatildeo dupla o processo de autorreconhecimento da comunidade como

ilegiacutetimo Apresentam uma anaacutelise sobre os membros da comunidade

como se este pertencimento estivesse restrito agraves pessoas que estatildeo

indicadas no estatuto da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco

dos Santos (ACONEMA) Trazem tambeacutem uma descriccedilatildeo das famiacutelias

que moravam na aacuterea na eacutepoca

(3) ldquoGuaiacutera ndash Paranaacute descriccedilatildeo sobre a regiatildeordquo retomam o processo histoacuterico

de colonizaccedilatildeo da regiatildeo Depois analisam o histoacuterico de constituiccedilatildeo do

que chamam ldquoComunidade de Maracaju dos Gauacutechosrdquo atribuindo ao

bairro rural tambeacutem um sentido de grupo e de relaccedilotildees de pertencimento

118

em equiparaccedilatildeo com a autodenominaccedilatildeo como comunidade por parte dos

quilombolas Afirmam que as aacutereas adquiridas pela ldquofamiacutelia Santosrdquo natildeo

constituem um territoacuterio quilombola preacute-existente e que o levantamento

realizado pelo Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) careceu de

ldquocriteacuterios antropoloacutegicosrdquo

(4) ldquoTrajetoacuteria histoacuterica da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel

Ciriaco dos Santosrdquo analisam os relatos dos membros da comunidade

sobre sua trajetoacuteria histoacuterica de fixaccedilatildeo em GuaiacuteraPR mas o fazem de

modo a desvalorizar a memoacuteria e as informaccedilotildees trazidas que satildeo

entendidas pelos autores como insuficientes ou improcedentes ao serem

por exemplo cotejadas com dados repassados pelos vizinhos Afirmam

que natildeo houve segregaccedilatildeo racial na constituiccedilatildeo do bairro rural e que natildeo

existiria preconceito por parte dos vizinhos acusando ao contraacuterio os

membros da comunidade de serem preconceituosos em relaccedilatildeo aos

ldquoitalianosrdquo

(5) ldquoCaracterizaccedilatildeo atual da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel

Ciriaco dos Santos sua organizaccedilatildeo espacial e socialrdquo apresentam uma

descriccedilatildeo da comunidade destacando as poliacuteticas puacuteblicas e os cursos a

que passaram a ter acesso bem como as atividades de cultivo e criaccedilatildeo

de animais Afirmam haver um sentimento de propriedade e de posse

particular por parte dos membros da comunidade que natildeo se organizaria

por dinacircmicas propriamente comunitaacuterias Concluem que os moradores da

comunidade natildeo se diferenciam em suas praacuteticas de seus vizinhos

Trazem informaccedilotildees geneacutericas sobre ldquopapeacuteis sociaisrdquo entre os seus

membros e tambeacutem sobre religiatildeo

(6) ldquoRe-construccedilatildeo (sic) de uma memoacuteria e de uma identidade socioculturalrdquo

defendem a perspectiva de que deve ser alcanccedilada uma objetividade

etnograacutefica e afirmam neste sentido que o processo de construccedilatildeo da

identidade eacutetnica do grupo seria recente e giraria em torno de uma

finalidade poliacutetica a partir do contato do grupo com agentes externos com

o objetivo de criar uma distinccedilatildeo ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo Os autores afirmam que tal

identidade estaacute baseada em suposiccedilotildees de uma origem e de

antepassados que teriam sido escravos Defendem que se haacute preconceito

119

no acircmbito da relaccedilatildeo com os vizinhos eacute um preconceito muacutetuo e concluem

dizendo que a ldquoauto denominada comunidade negrardquo (sic) natildeo apresenta

os sinais diacriacuteticos que ldquodeveriamrdquo os diferenciar

(7) ldquoResultado da periacuteciardquo por fim asseveram que apesar de terem partido da

categoria do autorreconhecimento entendem que natildeo haacute territoacuterio

quilombola a ser indicado pois a equipe de pesquisa ldquoconstatourdquo que eles

seriam apenas herdeiros de uma propriedade e que portanto ldquopossuem

relaccedilotildees comuns ao mundo ruralrdquo natildeo havendo um territoacuterio quilombola

preacute-existente

(8) Bibliografia e anexos

Para analisar os argumentos apresentados por este relatoacuterio ldquoanti-

antropoloacutegicordquo eacute importante primeiramente trazer algumas reflexotildees dos quilombolas

em relaccedilatildeo agrave forma como foram conduzidos os trabalhos pela primeira equipe de

pesquisadores

Joaquim Os antropoacutelogos que eles arrumaram Dandara eu falei assim ldquovocecircs tinha que arrumar uns antropoacutelogo que sabia fazer antropologia Os antropoacutelogos natildeo ficavam com noacutes aqui Era duas horas trecircs horas por dia soacute vinha e voltava raacutepido noacutes desconfiou dos antropoacutelogo Aiacute noacutes tava laacute dentro de Guaiacutera e eles trataram com o Adir que era pra noacutes encontrar que eles ia pegar coacutepia do certificado da comunidade Noacutes taacute esperando e ldquonoacutes tamo chegando tamo chegandordquo e natildeo chegava Aiacute tinha esse advogado que eacute vizinho nosso aqui que mora laacute em Guaiacutera Daqui a pouco ele vem e vem os dois antropoacutelogos de laacute pra caacute no escritoacuterio dele e noacutes tava em frente a prefeitura que eacute pertinho Aiacute eles chegaram ldquoeacute mas noacutes natildeo pode ficar aqui que a turma taacute de zoacuteio em noacutes que natildeo sei que laacuterdquo Pegou a coacutepia da nossa matildeo e despediu de noacutes ldquoNoacutes tem que vazar emborardquo ldquoentatildeo taacute bomrdquo Mas a gente natildeo eacute tanto besta neacute aiacute noacutes pensamos ldquosabe de uma coisa vou dar uma volta na rua aqui pra ver se eles foram embora mesmordquo Noacutes damo a volta na rua eles laacute no advogado e tinha ido embora Aiacute tudo que eles falavam no raacutedio o advogado tava sabendo que era representando os agricultor neacute Ele tava sabendo tudinho Mas quem taacute passando informaccedilatildeo eacute os antropoacutelogos Menina noacutes teve raiva laacute em Toledo na Universidade eles chamaram pra noacutes pra ter uma reuniatildeo () Quando esse antropoacutelogo comeccedilou a falar eu falei com eles assim ldquovocecircs pensa que noacutes eacute tatildeo besta Tatildeo besta natildeo eacute noacutes eacute da roccedila natildeo temo estudo natildeo temo a linguagem que vocecircs fala mas vocecirc lembra aquele dia que vocecircs tava em Guaiacutera Vocecircs dando noacute em noacutes falando que ia embora se vocecircs tava laacute junto com o advogado e tudo ele taacute sabendo o que vocecircs tava fazendordquo E eu falei ldquoa antropologia de vocecircs eacute fraca Eu natildeo entendo de antropologia a antropologia de vocecircs eacute fracardquo Eu falei ldquovocecircs fica sabendordquo - e tava gravando e filmando ndash ldquovocecircs tatildeo fazendo antropologia de cem quilocircmetros de distacircncia cem quilocircmetrordquo Aiacute o reitor da universidade abanou a cabeccedila Aiacute eu falei ldquovocecircs natildeo fizeram nada vocecircs natildeo fizeram nada nadardquo

120

Percebe-se que a criacutetica que Joaquim faz inicia-se com uma

responsabilizaccedilatildeo do INCRA pois foram eles que ldquoarrumaramrdquo estes antropoacutelogos

para fazer o estudo Interessante observar neste sentido que Antocircnio Pimentel

Pontes Filho o pesquisador responsaacutevel pelo estudo natildeo tinha experiecircncia com

grupos etnicamente diferenciados sendo que suas pesquisas de graduaccedilatildeo e

mestrado giravam em torno de questotildees relacionadas agrave antropologia da religiatildeo com

foco na organizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica O INCRA com uma gestatildeo burocratizada e

impessoal apesar de ter tido acesso a versotildees preliminares do relatoacuterio que iam

abertamente de encontro ao criteacuterio da autoatribuiccedilatildeo natildeo evitou contudo que um

relatoacuterio final - depois considerado pelo proacuteprio INCRA como de ldquobaixa qualidaderdquo ndash

fosse incorporado ao procedimento da comunidade Apenas depois da natildeo aprovaccedilatildeo

da versatildeo final pelo INCRA encaminharam-se as medidas administrativas para

finalizar o convecircnio com a UNIOESTE por meio de um procedimento separado ainda

em tracircmite no qual passou a constar o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo

(Procedimento Administrativo 542000023842008-33) retirado do procedimento de

regularizaccedilatildeo do territoacuterio da comunidade (Procedimento Administrativo

542000010752008-46)

A partir da fala de Joaquim citada acima eacute possiacutevel tambeacutem entender qual o

lugar que a relaccedilatildeo com os antropoacutelogos passa a ocupar no discurso dos quilombolas

sistematizada na indicaccedilatildeo de trecircs momentos centrais O primeiro momento diz

respeito agrave constataccedilatildeo da falta de contato da equipe de pesquisa com o grupo jaacute que

natildeo estavam presentes na comunidade durante um periacuteodo de tempo considerado

satisfatoacuterio pelos quilombolas A permanecircncia em campo eacute tida portanto como um

criteacuterio determinante para a antropologia inclusive na visatildeo das lideranccedilas

quilombolas O segundo momento central apresentado por Joaquim diz respeito agrave

percepccedilatildeo de que haveria um viacutenculo dos pesquisadores com os proprietaacuterios

vizinhos o que lhes causou revolta dada a mobilizaccedilatildeo agressiva desencadeada

contrariamente ao trabalho do INCRA na localidade Assim a leitura que Joaquim faz

em relaccedilatildeo ao resultado do relatoacuterio passa pela percepccedilatildeo de um compromisso direto

dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos O terceiro momento eacute quando

Joaquim destaca a possibilidade de uma reaccedilatildeo bem-sucedida do grupo em uma

reuniatildeo realizada na UNIOESTE Nesta oportunidade eles verbalizaram

publicamente esta insatisfaccedilatildeo com o trabalho produzido e questionaram os

121

antropoacutelogos diretamente sobre o que consideraram ser uma ldquoantropologia de cem

quilocircmetros de distacircnciardquo destacando a importacircncia que datildeo agrave relaccedilatildeo de proximidade

e confianccedila que natildeo se estabeleceu em nenhum momento com esta primeira equipe

A dificuldade de comunicaccedilatildeo foi outro ponto destacado por Joaquim o que

se configura em um problema muito seacuterio e limitador em uma pesquisa antropoloacutegica

ainda mais quando se trata de um estudo sobre a reivindicaccedilatildeo territorial do grupo

Adir E depois laacute em Cascavel dizer pra noacutes assim ldquopelo que noacutes pesquisamos vocecircs durante esse tempo vocecircs eacute uma comunidade igual agrave comunidade de Maracaju natildeo tem diferenccedila nenhuma Vocecircs natildeo satildeo quilombolardquo ()

Joaquim O que os outros plantava noacutes plantava tambeacutem Eu falei assim ldquoOh noacutes planta pimenta noacutes planta taioba noacutes planta inhame Vocecirc viu os italianos se eles tecircm inhame plantado tem taioba tanta coisa se eles temrdquo aiacute ele diz que eacute tarde

Adir Eu mostrei pra eles o que noacutes cultivava eu falei ldquooacute a nossa histoacuteria professor Antocircnio vocecirc pode prestar atenccedilatildeo da nossa histoacuteria Noacutes nossos antepassados vieram da Aacutefrica trazido pra um solo brasileiro trabalharam como escravo cara

Joaquim Eles falaram isso laacute em Cascavel soacute que em Toledo eles mudaram

Adir ldquoAjudar a construir esse paiacutes soacute isso jaacute chega natildeo precisa de mais nada Soacute a nossa cor jaacute nos identifica noacutes mesmo a nossa escravidatildeo no passado Seraacute que pra vocecirc que eacute um professor um doutor vem falar issordquo

O depoimento acima sintetiza a concepccedilatildeo de que o fato de serem da cor

negra jaacute demonstra a descendecircncia de africanos escravizados Esta compreensatildeo

identificada no plano eacutetnico-racial correlaciona parentesco com traccedilos fenotiacutepicos e

expressa ldquoas propriedades primordiais elegidas para a construccedilatildeo de uma memoacuteria

das lsquoorigensrsquo remetida agrave experiecircncia comum do cativeirordquo (RUBERT SILVA 2009 p

269) A fala aponta tambeacutem para a percepccedilatildeo dos sujeitos quilombolas em relaccedilatildeo agrave

valorizaccedilatildeo das diferenccedilas entre eles e os proprietaacuterios vizinhos sendo que os sinais

diacriacuteticos destacados por Joaquim se referem aos tipos de alimentos cultivados pelo

grupo quilombola As diferenccedilas se expressam aleacutem disso no lugar social dos

quilombolas em contraste com o lugar dos antropoacutelogos de um lado a experiecircncia

histoacuterica de opressatildeo a autoidentificaccedilatildeo que comeccedila pela cor da pele a afirmaccedilatildeo

de uma cultura proacutepria e distinta e de uma relaccedilatildeo especiacutefica com uma base territorial

de outro pesquisadores de uma elite (branca) ldquoum doutorrdquo que mesmo antropoacutelogo

desconsiderou a percepccedilatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria quando deveria ter

pelo menos buscado compreendecirc-la

122

O fato de as famiacutelias que se autodefinem como quilombolas natildeo terem um

viacutenculo ancestral com aquele territoacuterio por serem provenientes de outra regiatildeo bem

como o fato de serem donos da aacuterea que ocupam em GuaiacuteraPR foi interpretado pelo

primeiro relatoacuterio como um fator de descaracterizaccedilatildeo de sua ldquoquilombolidaderdquo A

conquista do acesso formal agrave terra por estas famiacutelias superando todo um contexto de

exclusatildeo territorial da populaccedilatildeo negra foi entendida como um criteacuterio para negar o

reconhecimento do direito de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio considerado como condiccedilatildeo

fundamental pelos quilombolas para viabilizar a sobrevivecircncia do grupo Este tipo de

compreensatildeo por parte dos autores do relatoacuterio evidencia uma certa expectativa de

que a condiccedilatildeo de estar agrave margem do sistema formal de propriedade seria um iacutendice

da legitimidade da reivindicaccedilatildeo de direitos territoriais quilombolas

As propriedades adquiridas na comunidade de Maracajuacute dos Gauacutechos pela famiacutelia Santos por meio de Seu Manuel natildeo caracterizam um territoacuterio preacute-existente nem se justifica o pedido pelos membros desta comunidade ou de sua representante coletiva ACONEMA de uma expansatildeo territorial (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1466 [p 56])

Tal perspectiva que parte da ideia de um territoacuterio ancestralmente ocupado

desconsidera o fato de que ldquopor sua mesma estrutura e mobilidade os quilombos natildeo

permitiram uma continuidade da ocupaccedilatildeo da terra e sobretudo natildeo deixaram restos

arqueoloacutegicos ou provas documentaisrdquo (MALIGUETTI 2000 p 102) (traduccedilatildeo minha)

Eacute muito difiacutecil encontrar provas factuais da existecircncia de quilombos histoacutericos e

praticamente impossiacutevel provar que o lugar e a terra onde as comunidades

quilombolas vivem hoje sejam os mesmos em que originariamente se formaram Este

tipo de comprovaccedilatildeo faacutetica natildeo eacute exigido pelo Decreto 48872003 que regulamenta o

procedimento de titulaccedilatildeo atualmente em vigor Em seu artigo 2ordm considera como

ldquoremanescentes das comunidades dos quilombosrdquo os grupos eacutetnico-raciais ldquosegundo

criteacuterios de auto-atribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees

territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a

resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo Em relaccedilatildeo agrave territorialidade afirma no sect2ordm

do mesmo artigo que ldquosatildeo terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos as utilizadas para a garantia de sua reproduccedilatildeo fiacutesica social econocircmica e

culturalrdquo

123

Natildeo haacute na legislaccedilatildeo portanto a imposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo de verdadeiro ou

falso a partir da ideia de prova histoacuterica em relaccedilatildeo agraves narrativas daqueles que se

autodefinem como quilombolas No entanto a utilizaccedilatildeo de argumentos de ordem

histoacuterica se torna o padratildeo de persuasatildeo discursiva de modo mais amplo na

produccedilatildeo de relatoacuterios antropoloacutegicos sobre grupos quilombolas adotando loacutegicas e

linguagem proacuteprias agraves instacircncias do Estado pautadas em criteacuterios de verdade para

ganhar eficaacutecia

() os laudos sobre remanescentes de quilombos satildeo produzidos quase invariavelmente ndash com maior ou menor competecircncia clareza e elaboraccedilatildeo por parte dos seus autores ndash lanccedilando matildeo de argumentos histoacutericos Assim ao ser expulsa pela porta a histoacuteria retorna pela janela numa versatildeo ingecircnua e positivista quando natildeo simplesmente hipoteacutetica (ARRUTI 2005 p 24)

A postura analiacutetica defendida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo

aponta para a supremacia de instacircncias externas de legitimaccedilatildeo e a desconsideraccedilatildeo

do ponto de vista da comunidade o que se expressa por exemplo na busca por

comprovaccedilotildees histoacutericas Deste modo emprestam ldquoagraves identidades sociais substacircncia

e permanecircnciardquo buscando no passado uma continuidade linear com as dinacircmicas do

presente e assim desconsideram as ldquocategorias e praacuteticas nativas da construccedilatildeo

simboacutelica do grupo e de sua atualizaccedilatildeo por meio de accedilotildees sociaisrdquo (OLIVEIRA

FILHO SANTOS 2003 p 116-131) que satildeo o vetor da elaboraccedilatildeo de laudos periciais

antropoloacutegicos Ignorando o processo contiacutenuo de produccedilatildeo de fronteiras sociais o

relatoacuterio em um tom de autoridade afirma que se ldquoconstatourdquo

() com relaccedilatildeo agrave presunccedilatildeo de ancestralidade da Famiacutelia Santos primeiro natildeo haacute nenhuma memoacuteria sobre escravismo na regiatildeo em que vivem hoje segundo que eles mesmos natildeo descrevem essa ancestralidade como sendo do local onde estatildeo pois se dizem filhos de mineiros (e por exemplo o mineirismo a mineiridade satildeo demonstrados pela culinaacuteria que praticam pelo que cultivam em suas hortas dentre outros aspectos (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1528 [p 118])

Este tom objetivista perpassa todo o relatoacuterio e se amplifica no uso de

expressotildees como ldquocomprovaccedilatildeo documentalrdquo ldquoinformaccedilatildeo confirmadardquo

ldquocomprovaccedilatildeo por meio de pesquisa histoacutericardquo assim como o uso dos verbos como

ldquoconstatou-serdquo e ldquoverificou-serdquo entre outras construccedilotildees discursivas este mesmo

padratildeo Aleacutem disso ao longo do texto os autores expressam de maneira reiterada as

124

suas desconfianccedilas em relaccedilatildeo agrave legitimidade das fontes orais107 Estas posturas

estatildeo todas articuladas em uma certa visatildeo do que seria o criteacuterio antropoloacutegico de

pesquisa enquanto conhecimento teacutecnico e cientiacutefico e o papel do antropoacutelogo como

ldquopesquisador-censorrdquo em sua abordagem essencialista da identidade eacutetnica (MELLO

2012 p 44) como fica evidenciado neste trecho do relatoacuterio

Como apontam diversos autores e estudos antropoloacutegicos a antropologia se baseia nas etnografias feitas e estas natildeo satildeo apenas subjetividade dos autores eou um amontoado de dados mas sim uma compreensatildeo objetiva com argumento de objetividade etnograacutefica sobre um problema social posto para estudo Assim natildeo se incorre em um jogo de versotildees sobre um fato eou mera disputa de opiniotildees (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1511 [p 101])

Dentro desta visatildeo de uma pretensa ldquoobjetividade etnograacuteficardquo os autores do

relatoacuterio entendem que tecircm como atribuiccedilatildeo averiguar a existecircncia ou natildeo de uma

comunidade quilombola Apesar de afirmarem reconhecer e operar a partir do conceito

de autoidentificaccedilatildeo que estaacute previsto na legislaccedilatildeo nacional natildeo a incorporam como

premissa teoacuterica e etnograacutefica No iniacutecio do relatoacuterio haacute uma tentativa de justificar a

natildeo adesatildeo completa ao criteacuterio da autodefiniccedilatildeo com o argumento de que este seria

insuficiente para definir a identidade do grupo devendo ser complementado por uma

noccedilatildeo heteroidentidade que torna necessaacuterio o reconhecimento exterior de que se

trata de um grupo percebido como distinto em uma relaccedilatildeo entre ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo

No Decreto 4887 fica claro que os criteacuterios a serem reconhecidos pelo governo federal satildeo o de auto-atribuiccedilatildeo contrastando com a perspectiva antropoloacutegica interacionista relacional pois esta trabalha com o processo de construccedilatildeo da identidade onde a categoria do ldquonoacutesrdquo constroacutei-se na relaccedilatildeo com a categoria do ldquoelesrdquo natildeo existindo uma heacutetero identidade (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1422 [p 12])

Eacute possiacutevel perceber por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica de todo o texto do

relatoacuterio que houve um uso instrumental e distorcido da teoria da identidade

107 Como observa Alessandro Portelli em seu livro ldquoEnsaios de Histoacuteria Oralrdquo os documentos satildeo

envoltos por uma ldquopresunccedilatildeo de verdade que uma certa historiografia atribui agraves fontes escritas consagrando-as com o nome de documentosrdquo Trata-se da historiografia do seacuteculo XIX que tomou o documento como uma realidade sem perceber no entanto que eles estatildeo tambeacutem permeados pela ideologia pelos sonhos e pela subjetividade de quem os escreve Esta corrente historiograacutefica teve forte influecircncia na atribuiccedilatildeo de superioridade das fontes escritas sobre as fontes orais o que se percebe claramente no acircmbito do direito e mais especificamente nos processos judiciais e administrativos (PORTELLI 201068)

125

contrastiva proposta pelo antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth Ao contraacuterio do que

afirmado no trecho acima foi a partir das contribuiccedilotildees deste autor que processos de

autoatribuiccedilatildeo passaram a ser considerados como centrais no estudo dos grupos

eacutetnicos bem como no modo de constituiccedilatildeo dos proacuteprios limites sociais do grupo com

relaccedilatildeo a outros grupos No caso das comunidades quilombolas segundo os

desdobramentos das anaacutelises desta tradiccedilatildeo teoacuterica o reconhecimento destes grupos

natildeo deve partir de ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da

interpretaccedilatildeo historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI

2006 p 39-40) Contraditoriamente eacute a partir de uma tal lista que os autores do

relatoacuterio parecem estabelecer os paracircmetros para embasar a pretensa ldquoobjetividade

etnograacuteficardquo que reivindicam

Esta contradiccedilatildeo fica evidente por exemplo no argumento desenvolvido a

respeito da existecircncia ou natildeo dos ldquosinais diacriacuteticos que deveriam os diferenciar dos

seus vizinhosrdquo e em natildeo os constatando concluem que fica ldquoevidente sim os sinais

diacriacuteticos que os igualam no seu modo de ser dos demais moradores da comunidade

Maracaju dos Gauacutechosrdquo (grifo meu) Esta utilizaccedilatildeo da ideia de fronteira entre ldquonoacutesrdquo e

os ldquoelesrdquo parece ter sido acionada ao longo do texto para justificar a opccedilatildeo pela

realizaccedilatildeo de um trabalho de campo ndash que consideram amplo neutro e mais

aprofundado ndash no qual estabeleceram contato efetivo de pesquisa com pessoas ldquoda

comunidade negra da comunidade de Maracaju dos Gauacutechos e da cidaderdquo108

Com relaccedilatildeo agrave ideia de que a ldquoauto-identidade que eacute definida por si mesmardquo

dependeria de uma ldquohetero-identidade que eacute definida pelos outrosrdquo109 argumentam

Compreende-se que a identidade eacute sempre contrastiva relacional e situacional focando essa fronteira entre o ldquonoacutesrdquo e os ldquooutrosrdquo se procurou dar voz ao entorno da auto denominada comunidade Negra moradores de origem eacutetnica italiana alematilde portuguesa ou entatildeo mineiros gauacutechos paulistas paraiacutebas pois a equipe de pesquisa entendeu que devia observar como os grupos se vecircem e satildeo vistos uns pelos outros (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1518 [p 108])

A despeito novamente de afirmarem que ldquoprivilegiaram a metodologia

participativa a qual prevecirc a incorporaccedilatildeo de saberes e perspectivas locais em todas

as etapas do estudordquo110 em muitos momentos do relatoacuterio a fala dos quilombolas satildeo

108 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1438 [p 28] 109 Idem p 1519 [p 109] 110 Ibidem p 1426 [p 16]

126

questionadas ao passo que agrave versatildeo dos proprietaacuterios vizinhos eacute atribuiacuteda

legitimidade considerando que esta sim poderia ser comprovada documentalmente

Essa adesatildeo ao discurso dos proprietaacuterios do entorno foi utilizada como argumento

comprovatoacuterio da natildeo existecircncia de segregaccedilatildeo racial por parte da ldquoSociedade Agro-

Pecuaacuteria Maracaju LTDArdquo que teria vendido os lotes indistintamente inclusive para

Manoel Ciriaco

Assim esta pretensa ausecircncia de discriminaccedilatildeo formal ganha destaque no

texto enquanto o sentimento de discriminaccedilatildeo vivenciado pela comunidade quilombola

eacute desqualificado Os autores afirmam por exemplo que ldquoa equipe de pesquisa

constatou atraveacutes das falas da famiacutelia Santos a existecircncia de um auto-isolamento

motivado pela pobreza e timidezrdquo111 O fato de ter ocorrido um casamento entre a

enteada de Adir Juliana (que natildeo tem viacutenculo de parentesco com o grupo e que

poderia ser considerada apenas como ldquomorenardquo na classificaccedilatildeo interna112) com um

dos descendentes dos italianos eacute considerado pelos autores como uma prova de que

natildeo haveria preconceito racial por parte dos ldquoitalianosrdquo Por outro lado identificam uma

fala ldquogeneralista e preconceituosardquo da parte de Zeacute Maria

Joseacute Maria Gonccedilalves relata que ldquoos italianos sempre quiseram comprar as nossas terras queriam afastar a gente daqui porque somos pretosrdquo Tal fala chamou a atenccedilatildeo da equipe de pesquisa pois desde o primeiro dia de pesquisa de campo se sabia que Juliana enteada do Adir Santos pertencente a auto denominada comunidade Negra Manoel Ciriaco dos santos eacute casada com Fabio Graciano filho de Paulo Um casamento entre negros e ldquoitalianosrdquo desabona a fala generalista e preconceituosa exposta por Joseacute Maria (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473 [p 63])

Argumentam tambeacutem que puderam observar um preconceito por parte da

proacutepria comunidade Manoel Ciriaco em relaccedilatildeo aos seus vizinhos aos quais

denominariam como ldquoitalianosrdquo ldquoalematildeesrdquo ldquoratos brancosrdquo entre outros termos

Buscam atribuir assim uma equivalecircncia entre os dois lados desconsiderando a

percepccedilatildeo quilombola de uma desigualdade de poder e oportunidades entre brancos

e negros Os quilombolas afirmam neste sentido que sempre trabalharam para esses

proprietaacuterios em relaccedilotildees informais de trabalho como por meio de diaacuterias situaccedilotildees

111 Ibidem p 1520 [p 110] 112 Depois que a enteada de Adir se casou com o filho de um agricultor do Maracaju dos Gauacutechos

descendente de italianos rompeu com a comunidade inclusive tendo agredido verbalmente sua matildee e condenando a reivindicaccedilatildeo do grupo

127

nas quais eles lhes pagavam o quanto desejavam Aleacutem disso sentem-se alvo de

racismo em diversas situaccedilotildees ao longo de anos como jaacute apontamos nas falas

ressaltadas no primeiro capiacutetulo

No acircmbito desta descaracterizaccedilatildeo da comunidade produzida pelo

documento ndash que parece funcionar mais como um contra-laudo ao fundamentar-se na

ldquoheacutetero-identidaderdquo produzida pela visatildeo dos proprietaacuterios vizinhos ndash um dos aspectos

destacados diz respeito agrave suposta natildeo autenticidade da reivindicaccedilatildeo da identidade

quilombola tendo em vista que esta seria decorrente de um contato estreito com

agentes externos

Este processo de construccedilatildeo de identidade eacutetnica estaacute baseado em accedilotildees inicialmente de agentes esternos (sic) a auto denominada (sic) Comunidade Negra e que a partir destes contatos tem buscado em supostas interpretaccedilotildees de origens antepassado que teriam sido escravos (sic) bem como a criaccedilatildeo de uma memoacuteria de exclusatildeo por parte das sociedades onde viveram (Itambeacute do Serro Caiabu e agora Maracaju dos Gauacutechos) () (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473

[p 63]) 113

Ao passo que neste relatoacuterio a inserccedilatildeo do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura

(GTCM) no cenaacuterio poliacutetico de estiacutemulo agrave autodeclaraccedilatildeo e organizaccedilatildeo associativa

quilombola foi considerada como ilegiacutetima por ldquotrazer de forardquo a reivindicaccedilatildeo da

identidade no Relatoacuterio Antropoloacutegico da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna

localizada em CuriuacutevaPR realizado pela antropoacuteloga Liliana Porto a importacircncia

deste trabalho do GTCM eacute destacada como uma ldquoguinada significativardquo para o

reconhecimento das comunidades quilombolas no contexto paranaense A

antropoacuteloga ressalva contudo que tal elaboraccedilatildeo identitaacuteria das comunidades soacute foi

possiacutevel tendo como base elementos preacute-existentes que foram entatildeo mobilizados

pelos grupos ldquoa partir de um contexto poliacutetico-legal novordquo (PORTO 2008 07)

Esta desvalorizaccedilatildeo por parte dos autores do relatoacuterio sobre a comunidade de

GuaiacuteraPR do que consideram ldquoelementos trazidos de forardquo implica em uma

essencializaccedilatildeo da cultura o que contrasta diretamente com a abordagem relacional

da etnicidade que afirmam adotar Dentro desta perspectiva o fato de os quilombolas

terem passado a participar posteriormente agrave certificaccedilatildeo pela Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares de aulas de artesanato e de capoeira indicaria um esforccedilo natildeo autecircntico do

113 Transcriccedilatildeo igual agrave redaccedilatildeo no texto original inclusive com os erros de portuguecircs

128

grupo por praacuteticas que pudessem ldquolembrar haacutebitos de seus antepassadosrdquo114 No

entanto estes autores natildeo levam em conta que ldquoos discursos sobre o passado

apontam a maneira como no presente se lida com este passadordquo (PORTO SALLES

MARQUES 2013 p174) tendo em vista ainda uma certa de expectativa de futuro

Neste sentido segundo Joatildeo Aparecido quilombola que mora na comunidade

e que eacute filho de Manoel Ciriaco a capoeira jaacute era praticada por eles mas natildeo do

mesmo jeito que passaram a jogar com as aulas do Mestre Djalma Este professor foi

contratado pela prefeitura a partir de uma articulaccedilatildeo dos quilombolas Antes segundo

Joatildeo a praacutetica da capoeira era uma brincadeira ensinada pelos primos que moravam

em AssisSP que tinham mais experiecircncia Com as aulas do Mestre Djalma na

comunidade comeccedilaram a aprender de forma sistematizada com troca de cordatildeo115

realizada em Guaiacutera e com uma periodicidade que proporcionou o envolvimento todos

os jovens da comunidade Este enfoque em atividades para os jovens eacute algo sempre

reforccedilado por Adir como uma necessidade de trazecirc-los mais proacuteximos da histoacuteria do

grupo da cultura pois satildeo eles que iratildeo dar continuidade no futuro

A capoeira foi entatildeo mobilizada como um marcador da diferenccedila cultural do

grupo na condiccedilatildeo de siacutembolo de resistecircncia dos escravos ao sistema de opressatildeo e

tornou-se tambeacutem uma espeacutecie de ldquoritual poliacuteticordquo para demarcar fronteiras a partir da

exigecircncia de descontinuidade com os regionais116 Todas as vezes que a comunidade

recebe visita de escolas sobre as quais mencionamos no primeiro capiacutetulo eacute a roda

de capoeira a performance da cultura escolhida para falar sobre as origens do grupo

e sobre a continuidade de sua luta Neste sentido Adir compara a resistecircncia dos

negros do passado com o momento presente do grupo no qual continuam resistindo

aos processos de negaccedilatildeo de direitos impostos a partir da loacutegica do capitalismo em

que as exclusotildees social e racial se reforccedilam mutuamente Joatildeo Aparecido tambeacutem

comentou que escolheram o berimbau como siacutembolo da Associaccedilatildeo Comunidade

Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) porque a capoeira ajudou na histoacuteria

114 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1513 [p 103] 115 Momento no qual o aluno sobe de gradaccedilatildeo e recebe um novo cordatildeo que usa com o uniforme do

grupo de capoeira Para tanto no dia da troca ele tem que colocar em praacutetica o que aprendeu no entanto ldquotem que esquivar mas natildeo pode revidarrdquo 116 No caso analisado por Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho sobre a emergecircncia de identidades indiacutegenas no Nordeste o ritual poliacutetico mobilizado foi o ldquotoreacuterdquo protagonizado ldquosempre que eacute necessaacuterio demarcar as fronteiras entre lsquoiacutendiosrsquo e lsquobrancosrsquo Ele ldquopermite exibir a todos os atores presentes nessa situaccedilatildeo intereacutetnica (regionais indigenistas e os proacuteprios iacutendios) os sinais diacriacuteticos de uma indianidade (Oliveira 1988) peculiar aos iacutendios do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1997 p 60)

129

dos quilombos e se relaciona diretamente com a religiosidade do grupo lembrando-

se de como o seu irmatildeo Zeacute Maria gostava de cantar as ladainhas de capoeira que

satildeo como os pontos do terreiro de Umbanda117

Na anaacutelise dos processos de autoidentificaccedilatildeo eacutetnica segundo Barth e sua

teoria da identidade contrastiva natildeo satildeo as diferenccedilas em si que importam mas como

em determinados contextos elas satildeo acionadas (BARTH 2011) como neste caso do

acionamento da capoeira como um siacutembolo central da comunidade Ademais o

compartilhamento por um grupo de uma mesma cultura e a consequente produccedilatildeo de

diferenccedilas culturais deve ser lido como consequecircncia de processos de interaccedilatildeo e

natildeo como causa primeira (VILLAR 2004 171) Na contramatildeo desta perspectiva os

autores do relatoacuterio antropoloacutegico pareciam estar agrave procura de traccedilos ldquooriginaisrdquo que

correspondessem a um modelo estereotiacutepico de quilombo Tal noccedilatildeo pode ser

remetida ao modo como a histoacuteria oficial se reporta agrave experiecircncia da formaccedilatildeo de

quilombos enquanto fenocircmeno social que ocorreu durante o periacuteodo escravista118

Em relaccedilatildeo agrave anaacutelise da presenccedila de ldquomemoacuterias sobre a escravidatildeordquo na

comunidade os autores do relatoacuterio afirmam que apesar de existirem referecircncias agrave

escravidatildeo natildeo existiriam ldquoreminiscecircncias de um quilombordquo119 Afirmam entatildeo que

ldquoa identidade como algo contrastivo se faz presente desde antes desse pedido de

reconhecimentordquo mas que ldquoa construccedilatildeo de uma identidade quilombola eacute algo

recenterdquo120 Deste modo o relatoacuterio eacute finalizado com a seguinte conclusatildeo

Por fim a equipe de pesquisa esclarece que o que se viu constatou e

verificou foram somente dois lotes rurais de nuacutemeros 186ordf (pertencentes por

heranccedila aos filhos de Seu Manoel C Santos) assim como os lotes rurais dos

seus vizinhos como constatado no mapa da Gleba nordm 4-A colocircnia ldquoCrdquo Serra

Maracajuacute natildeo havendo distinccedilatildeo entre eles portanto natildeo haacute qualquer

territorialidade quilombola possiacutevel na regiatildeo da comunidade de Maracajuacute dos

Gauacutechos Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do

INCRAPR p 1532 [p 122]

117 Por outro lado a religiosidade embora central como vimos no capiacutetulo anterior natildeo eacute mobilizada

pelo grupo como marcador puacuteblico de identidade o que pode estar ligado a uma estrateacutegia de evitar as criacuteticas geradas pela combinaccedilatildeo de preconceito racial e religioso bem como pode decorrer da opccedilatildeo de deixar a esfera do sagrado separada das dinacircmicas de mobilizaccedilatildeo identitaacuterias pelo seu proacuteprio valor especial e superior 118 Deste modo determinadas caracteriacutesticas da experiecircncia do quilombo com mais repercussatildeo histoacuterica o quilombo de Palmares tecircm sido colocadas como regras e condicionantes para o reconhecimento de outros grupos com histoacuterias e caracteriacutesticas diversas (MILANO 2011 31) 119 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1505 [p 95] 120 Idem p 1521 [p 111]

130

Esta insistecircncia em uma classificaccedilatildeo externa por parte dos autores do relatoacuterio

se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos e suas formas de viver

na medida em que natildeo reconhece a possibilidade de autoidentificaccedilatildeo destes grupos

Deste modo

ldquose a situaccedilatildeo se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos populaccedilotildees sobre suas formas de viver na medida pois ldquose a situaccedilatildeo presente eacute de pluralismo do corpo social se natildeo mais subsiste o poder de um grupo sobre os demais natildeo haacute soluccedilatildeo possiacutevel senatildeo que cada qual assuma para si as suas definiccedilotildees identitaacuteriasrdquo (DUPRAT 2014 p 60)

Natildeo eacute pertinente portanto fundamentar a negativa do acesso ao direito

territorial quilombola como faz o relatoacuterio com base no argumento de que haveria

uma manipulaccedilatildeo identitaacuteria por parte do grupo Este ponto de vista decorre de uma

perspectiva superada teoricamente na antropologia que parte de uma

ldquoessencializaccedilatildeo impliacutecita dos conteuacutedos socioculturais que informariam as

identidades eacutetnicasrdquo (SANTOS 1996 p 136)

Muitas perguntas podem ser levantadas com a anaacutelise deste documento Eacute

possiacutevel que a antropologia sirva a interesses antagocircnicos como de quilombolas e de

proprietaacuterios vizinhos Pode a antropologia ser vista como um saber teacutecnico e natildeo

poliacutetico Eacute possiacutevel reconhecer a diversidade sem transformar o Outro em uma

imagem paacutelida de noacutes mesmos Sem pretender esgotar o debate entendo que antes

de mais nada eacute necessaacuterio aceitar que haacute muito o que se avanccedilar nas poliacuteticas

puacuteblicas no Brasil para que natildeo seja a proacutepria imagem do Estado sobre a diversidade

a uacutenica possibilidade de reconhecimento admitida (HARTUNG 2009 p 11)

Para os quilombolas de GuaiacuteraPR as consequecircncias do primeiro relatoacuterio

foram muito graves como veremos a respeito do conflito desencadeado ndash que seraacute

abordado no toacutepico abaixo A necessidade de lidar com a negaccedilatildeo oficial de sua

identidade colocou-os diante de uma encruzilhada ou desistiam do processo em

tracircmite no INCRA de modo que a primeira versatildeo do relatoacuterio se tornaria a uacutenica

interpretaccedilatildeo oficial sobre a trajetoacuteria do grupo ndash mesmo que natildeo aprovada pelo

INCRA e pela comunidade ndash ou optariam por passar por um novo estudo que

recomeccedilaria todo o processo e poderia reacender os conflitos com os proprietaacuterios

vizinhos mas por outro lado tambeacutem seria uma chance de rever e responder aos

questionamentos colocados pela equipe da UNIOESTE e dar seguimento agrave

131

reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial do grupo Decidiram entatildeo continuar a trilhar o

caminho do reconhecimento territorial

23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS

O processo de produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo foi o eixo de

um conflito desencadeado entre a comunidade quilombola e os proprietaacuterios vizinhos

como analisaremos neste momento Quando finalizado este documento natildeo foi

aprovado pela comunidade que natildeo se sentiu nele representada nem tampouco pelo

INCRA que por questotildees de insuficiecircncias teacutecnicas o rejeitou No ano de 2012

ocorreu a produccedilatildeo de um segundo relatoacuterio como uma das respostas institucionais

do INCRA diante da grave situaccedilatildeo em que o grupo quilombola se encontrava e de

cuja responsabilidade tal oacutergatildeo natildeo poderia se furtar

As razotildees do INCRA para ter rejeitado o primeiro relatoacuterio podem ser

sintetizadas nos seguintes pontos conforme Informaccedilatildeo Teacutecnica produzida por um

antropoacutelogo do INCRA da Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios

Quilombolas em Brasiacutelia (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do

INCRAPR p 1576-1579)

a) Argumentaccedilatildeo contraacuteria ao processo de construccedilatildeo identitaacuteria da

comunidade vista como uma tentativa de manipulaccedilatildeo jaacute que afirmam

natildeo existir nenhuma diferenciaccedilatildeo com os proprietaacuterios do entorno

b) Ausecircncia de reflexotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade que daacute

sentido agrave construccedilatildeo da territorialidade bem como sobre os conflitos com

a comunidade envolvente o processo de perda territorial a organizaccedilatildeo

social da comunidade o modo como se relaciona com o territoacuterio e o meio

ambiente

c) Ausecircncia de uma proposta de delimitaccedilatildeo territorial para a comunidade

tendo em vista que os autores mantiveram a posiccedilatildeo de que natildeo existiria

um territoacuterio quilombola a ser indicado natildeo atendendo assim aos

objetivos deste tipo de estudo

132

d) Incompatibilidade do relatoacuterio com os termos da Instruccedilatildeo Normativa em

vigor na eacutepoca IN 492008 bem como com o convecircnio entre o INCRA e a

UNIOESTE

Eacute possiacutevel observar que a avaliaccedilatildeo do INCRA em relaccedilatildeo ao primeiro

relatoacuterio se aproxima da visatildeo da comunidade sobre a atuaccedilatildeo da primeira equipe

expressa na insatisfaccedilatildeo dos quilombolas por considerarem que natildeo houve uma

ldquoescutardquo de suas narrativas memoacuterias pontos de vistas sentimentos e projetos Este

descontentamento da comunidade foi denunciado pela Federaccedilatildeo das Comunidades

Quilombolas do Paranaacute (FECOQUI) agrave 6ordf Cacircmara de Coordenaccedilatildeo e Revisatildeo sobre

Povos Indiacutegenas e Comunidades Tradicionais do Ministeacuterio Puacuteblico Federal e tambeacutem

agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) tendo o antropoacutelogo responsaacutevel pelo

primeiro relatoacuterio sido advertido por falta grave por esta uacuteltima instituiccedilatildeo A despeito

de o INCRA ter rejeitado o estudo e depois ter contratado uma nova equipe de

pesquisadores bem como de seus funcionaacuterios tambeacutem terem sido viacutetimas da reaccedilatildeo

dos proprietaacuterios vizinhos isto natildeo os isentou na avaliaccedilatildeo dos quilombolas da

responsabilidade pelos desdobramentos ocorridos Como afirmou Adir de forma

enfaacutetica ldquoquando veio o impacto do trabalho do INCRA nossa nos devorou

arrebentourdquo

A autodeclaraccedilatildeo deste grupo como quilombola e a reivindicaccedilatildeo de

ampliaccedilatildeo territorial implicou que arcassem com consequecircncias negativas

importantes como a evidenciaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo de conflitos com os grupos locais O

conflito com os proprietaacuterios vizinhos foi considerado pelo governo estadual como um

dos piores do estado do Paranaacute tendo em vista as frequentes ameaccedilas de violecircncia

fiacutesica e uma seacuterie de violecircncias simboacutelicas que atingiram a comunidade Em 2009

enquanto este primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo estava sendo produzido a

mobilizaccedilatildeo do grupo contraacuterio liderada pelo entatildeo presidente do Sindicato Rural

Patronal de Guaiacutera Silvanir Rosseti teve apoio da imprensa local e regional em seus

questionamentos sobre a identidade quilombola e a ampliaccedilatildeo do territoacuterio do grupo

Essa oposiccedilatildeo tatildeo intensa dos proprietaacuterios vizinhos intensificou-se ainda

mais quando tiveram acesso de modo irregular ao mapa preliminar ndash construiacutedo por

meio da orientaccedilatildeo dada pelos antropoacutelogos da primeira equipe aos quilombolas ndash

que supostamente representaria o territoacuterio reivindicado pela comunidade Acontece

133

que o modo como os antropoacutelogos orientaram o grupo sobre os criteacuterios para a

indicaccedilatildeo das aacutereas eacute questionado por Joaquim e Adir que ressaltam a dificuldade

sentida para a compreensatildeo a linguagem dos pesquisadores o que gerou uma falta

de fluidez na comunicaccedilatildeo entre eles Atualmente eles percebem que teriam sido

induzidos a indicar uma aacuterea maior do que pretendiam incluindo todas as

propriedades com as quais tinham tido viacutenculos mesmo que fossem apenas por meio

de trabalho121 Conjugando esta interpretaccedilatildeo com a que fazem em relaccedilatildeo ao

compromisso dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos a elaboraccedilatildeo de um

mapa com pretensotildees muito maiores do que era reivindicado pelo grupo teria servido

natildeo soacute para enfraquecer sua demanda territorial como para justificar a forte reaccedilatildeo

dos donos das aacutereas indicadas

Joaquim Esses outros antropoacutelogos sabe o que eles fizeram com a gente

Dandara Eles jogaram noacutes contra a parede Eles falou de onde eacute que noacutes

tinha viacutenculo com aquela terra aquela propriedade noacutes tinha que indicar Aiacute

noacutes falamos ldquomas naquela propriedade tem essa daqui oacute noacutes tem viacutenculo

essa daqui nem essa daqui noacutes natildeo temrdquo ldquoNatildeo tem que ir levando tudo

Vocecircs pode ir ateacute 10 km cecircs pode ateacute ir daqui em Guaiacuterardquo (fala dos

antropoacutelogos)

Adir Vocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que vocecirc vai conseguir vocecirc vai passar A antropologia do Professor Antocircnio que era o chefe laacute da equipe falar a verdade Um cara que fala vocecirc pode ver o cara fala e duratildeo Fala de uma maneira que natildeo eacute a nossa linguagem Eles natildeo podia fazer isso com noacutes que eles fez

Joaquim Eles vieram trecircs vezes aqui Dandara e eles falou ldquoou vocecircs daacute a resposta hoje ou se natildeo vocecircs vai de aacutegua baixordquo Noacutes tinha que falar eles falou assim ldquomas noacutes tambeacutem noacutes temos contrato que se vocecircs natildeo vai fazer a indicaccedilatildeo entatildeo noacutes mesmo fazrdquo Noacutes podia ter deixado eles fazer

A assimetria na relaccedilatildeo entre os antropoacutelogos e os quilombolas bem como a

dificuldade de diaacutelogo satildeo portanto questotildees centrais na maneira como o grupo

interpreta os fatos ocorridos Em contraste com esta situaccedilatildeo de pesquisa que

consideram malsucedida eu sou entatildeo colocada no diaacutelogo acima entre Adir e

Joaquim quando Adir afirma ldquovocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que

vocecirc vai conseguir vocecirc vai passarrdquo A comparaccedilatildeo entre a minha pesquisa e a

pesquisa do primeiro relatoacuterio natildeo eacute feita por Adir de um modo direto mas eacute possiacutevel

121 No acircmbito do procedimento de reconhecimento territorial o fato de terem trabalhado para os proprietaacuterios vizinhos natildeo eacute criteacuterio para ampliaccedilatildeo da aacuterea que jaacute possuem com base no artigo 2ordm do Decreto Federal 4887 de 2003

134

inferir que por ter sido construiacuteda uma relaccedilatildeo de confianccedila entre mim e os membros

do grupo ndash relaccedilatildeo esta que antecedia a proacutepria pesquisa e que remete a minha antiga

posiccedilatildeo como assessora do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute ndash havia uma

expectativa positiva de que o resultado do meu trabalho iria trazer algum tipo de

contribuiccedilatildeo para a comunidade

Eacute a falta de confianccedila dos quilombolas em relaccedilatildeo ao trabalho da primeira

equipe de pesquisadores que no presente embasa esta percepccedilatildeo de que teriam

sido enganados pelas orientaccedilotildees dos antropoacutelogos quando da elaboraccedilatildeo do mapa

preliminar Uma desconfianccedila que foi se acentuando durante o processo de pesquisa

ateacute que fosse confirmada segundo eles pelo proacuteprio resultado do relatoacuterio final que

era contraacuterio agraves reivindicaccedilotildees da comunidade Com a colocaccedilatildeo de Joaquim no

diaacutelogo acima ndash ldquoNoacutes podia ter deixado eles fazerrdquo ndash percebe-se que ao se sentirem

incomodados com as orientaccedilotildees passadas pelos antropoacutelogos eles poderiam ter

tomado outra atitude ao inveacutes de naquele momento terem aceitado a pressatildeo dos

antropoacutelogos de que o mapa soacute poderia ser produzido daquela maneira

Joaquim me contou entatildeo como ldquoo INCRA deixou eles (os vizinhos)

roubarem o mapardquo jaacute que o oacutergatildeo deveria ao contraacuterio ter zelado por este

documento de importacircncia central para o processo tanto em um niacutevel administrativo

como para as dinacircmicas de relaccedilotildees locais em torno da questatildeo territorial Observa-

se na fala de Joaquim uma ambiguidade na forma como ele avalia a posiccedilatildeo do oacutergatildeo

federal que se de um lado estava atuando na regiatildeo com o objetivo de garantir o

direito do grupo de outro mostra-se imprudente ao contratar pesquisadores

inadequados para realizar o estudo e ainda acaba por perder o mapa preliminar

Joaquim Eacute Dandara eu jaacute desconfiei na hora sabe por quecirc A indicaccedilatildeo que noacutes fez era bem grande aiacute eles ponharam eu e a Claudia do INCRA o Adir natildeo tava aqui eu e a Claacuteudia o motorista e um outro que veio saber onde eacute que a gente tinha indicaccedilatildeo e noacutes andamos tudo em volta com a camionete do INCRA Aiacute quando chegou aqui o cara falou assim ldquoEh a indicaccedilatildeo eacute muito a aacuterea eacute muito granderdquo Ateacute o cara desconfiou da aacuterea aiacute eu falei ldquoquem fez noacutes dar essa indicaccedilatildeo Os antropoacutelogos Que eles falou que noacutes podia ir ateacute 20 30 km e noacutes foi indicandordquo E depois a turma do INCRA deixou eles roubarem o mapa a coacutepia do mapa Eu natildeo sei como eacute que eles fizeram eles tiraram de dentro da camioneta ali embaixo ali Aiacute eles passaram a divulgaccedilatildeo pra todo mundo Eles levaram no Sindicato Patronal levou pra casa de um cara que eu sei onde eacute que eacute laacute pra frente aiacute esconderam porque a poliacutecia podia ir atraacutes neacute Aiacute a poliacutecia natildeo sabia que um passou pro outro foi passando Aiacute aumentaram a aacuterea ponharam uma parte do municiacutepio de Terra Roxa Aiacute eles botaram os dois municiacutepios contra a gente E eu ainda falei com a Juliana assim ldquomas vocecircs tinha uma coisa em segredo eles que tava com essa coacutepia natildeo podia ter deixado as turma

135

roubarrdquo () Aiacute quando eles tinham tomado a chave da camioneta quando eles subiram laacute pra cima no meio da roccedila tava tudo limpo natildeo tinha plantaccedilatildeo nenhuma aiacute eles pegaram terra assim colocaram dentro do tanque da camioneta Eles (funcionaacuterios do INCRA) ficaram detido das oito horas da manhatilde ateacute as trecircs horas da tarde A Poliacutecia Federal que veio soltar eles aliacute E aiacute depois cercaram a camioneta cercaram eles duas vez dentro do Maracaju e natildeo deixaram eles descer aqui embaixo

Esta ocasiatildeo de forte tensatildeo social ocorrida em 30 de setembro de 2009 foi

o primeiro protesto realizado pelos proprietaacuterios vizinhos Os funcionaacuterios do INCRA

sofreram ameaccedilas ndash como a de que o carro da instituiccedilatildeo seria incendiado ndash e foram

impedidos de chegar agrave comunidade tendo sido mantidos como refeacutens por algumas

horas dentro de uma casa nas proximidades da comunidade122 A gravidade do

conflito ganhou repercussatildeo pela presenccedila das emissoras de televisatildeo Tarobaacute e

Record bem como a raacutedio de Guaiacutera

Adir () Quando foi trecircs horas da tarde aiacute a rede Record veio aqui em casa a raacutedio tudo aqui Aiacute disse ldquooacute Adir eu quero saber o que que taacute acontecendo se vocecirc pode dar uma entrevista pra falar dos seus vizinhos pra falar da sua convivecircncia com eles desse trabalho que taacute sendo feito do INCRA Aiacute que eu falei pra eles eu falei assim ldquoeu natildeo vou dar entrevista de nada o que eu vou falar com vocecircs eacute o seguinte esse trabalho natildeo eacute nosso eacute do INCRA esse levantamento que foi feito pra noacutes ser reconhecido aqui natildeo foi noacutes eacute o governo vocecircs tem que conversar com o governo e conversar com o pessoal do INCRA Noacutes tamo aqui haacute tantos anos e vamos continuar o mesmo eles tambeacutem vatildeo continuar noacutes natildeo queremos nada que eacute deles Se o INCRA taacute fazendo um trabalho que ateacute pra noacutes eacute uma surpresa porque noacutes natildeo entende o que taacute acontecendo natildeo queremos confusatildeo com ningueacutem guerra com ningueacutem E noacutes hoje noacutes estamos podendo falar da nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar a gente ficou preso a vida inteira sem poder pronunciar o que que a gente eacute de verdaderdquo Aiacute chamei as crianccedilas todas e falei ldquovamos mostrar pra eles o que Vamos tocar pra eles vamos cantar vamos tocar vamos bater atabaque e eacute issordquo Aiacute chamei as crianccedilas noacutes toquemo cantamos e ldquoEacute isso se vocecircs quiser filmar vocecircs filma isso aqui Pelo menos vamos preservar a nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar Agora essa questatildeo aiacute natildeo eacute nossa Eacute questatildeo do INCRA e vocecircs Do governo federal e do governo estadual natildeo eacute nossardquo

Quando Adir relata sua recusa em dar uma resposta para a emissora ele estaacute

indicando que a responsabilidade pelo trabalho que estava sendo conduzido natildeo era

dos quilombolas e sim do INCRA Pelo modo como ocorreu o contato com a primeira

equipe de pesquisadores os quilombolas acabam se sentindo viacutetimas e natildeo sujeitos

do processo Por outro lado a resposta de Adir reforccedila o aspecto positivo do processo

122 O Ministeacuterio Puacuteblico Federal de Umuarama ofereceu denuacutencia contra os proprietaacuterios que se ldquoopuseram agrave execuccedilatildeo do ato legalrdquo por parte do INCRA que realizaria na oportunidade levantamento agroambiental referente ao procedimento da Comunidade Quilombola A denuacutencia estaacute disponiacutevel em httpwwwprprmpfgovbrpdfs2013umuarama20-20quilombolas20-20denunciapdf Acesso em 241015

136

de reconhecimento como forma de ter a voz do grupo reconhecida no espaccedilo puacuteblico

abrindo a possibilidade de falarem de sua cultura de pronunciarem sua identidade e

por isso conclui dizendo ldquovamos tocar vamos cantarrdquo Contudo se o processo de

regularizaccedilatildeo territorial poderia ter sido este momento de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da

histoacuteria do grupo e de suas reivindicaccedilotildees ele natildeo alcanccedila o resultado esperado jaacute

que por meio da atuaccedilatildeo de agentes autorizados pelo Estado para produzirem o

relatoacuterio antropoloacutegico a legitimidade de suas falas lhe eacute novamente negada

Em um outro episoacutedio de conflito ocorrido em 20 de novembro de 2009 dia

da consciecircncia negra os quilombolas saiacuteam de ocircnibus em direccedilatildeo a Marechal

Cacircndido Rondon municiacutepio da regiatildeo para apresentaccedilatildeo do grupo de capoeira em

duas escolas estaduais No entanto em protesto os proprietaacuterios vizinhos fecharam

a estrada do bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo com ameaccedilas de que iriam incendiar

o ocircnibus Apoacutes horas de negociaccedilatildeo o grupo de quilombolas conseguiu ultrapassar a

barreira de manifestantes Esta situaccedilatildeo de obstruccedilatildeo da estrada ocorreu em outras

ocasiotildees por exemplo com o impedimento de que cestas baacutesicas chegassem agrave

comunidade Houve portanto um processo de inviabilizaccedilatildeo de movimentos e

restriccedilatildeo de circulaccedilatildeo dos quilombolas que eram possiacuteveis antes do iniacutecio dos

estudos para o primeiro relatoacuterio

Um exemplo importante dessas restriccedilotildees ocorreu na articulaccedilatildeo por parte

dos vizinhos por meio do Sindicato Rural Patronal para natildeo mais contratarem

quilombolas para trabalharem em suas propriedades nas quais faziam diversos tipos

de funccedilotildees desde cortar rama carpir plantaccedilatildeo rancaccedilatildeo de mandioca entre outros

e recebiam por diaacuteria Segundo me relataram a situaccedilatildeo econocircmica da comunidade

se agravou pois este tipo de trabalho antes permitia uma complementaccedilatildeo

fundamental da fonte de renda das famiacutelias quilombolas Aleacutem disso os proprietaacuterios

vizinhos tambeacutem influenciaram os donos de comeacutercio para natildeo dar creacutedito para estas

famiacutelias Sem trabalho ou creacutedito dependeram de doaccedilatildeo de cestas baacutesicas por parte

do Estado uacutenico auxiacutelio direto dos oacutergatildeos puacuteblicos que destacam terem recebido

(outros tipos de auxiacutelio estatildeo ligados agrave mediaccedilatildeo de conflitos) Esta situaccedilatildeo de

dependecircncia eacute vista por Adir e Joaquim como algo ateacute vergonhoso pois consideram

digno conquistar as coisas com o proacuteprio trabalho mas para isso teriam que ter

oportunidades por meio de projetos dos oacutergatildeos puacuteblicos para geraccedilatildeo de renda na

comunidade

137

Adir Porque eacute o seguinte se tem editais tem projeto tem tudo e noacutes na situaccedilatildeo que noacutes se encontramos aqui eles (agentes do Estado) viram eles mesmo viram com os proacuteprios olhos e nos auxiliaram em nada nos apoiaram em nada soacute apoiaram com conversa e noacutes aqui precisando ateacute hoje eu fico preocupado com esses jovens fico preocupado com essas mulheres porque noacutes soacute vamos conseguir afirmar aqui com trabalho com geraccedilatildeo de renda O primeiro passo eacute a geraccedilatildeo de renda Aiacute noacutes consegue ter uma comunidade decente natildeo viver de cesta de baacutesica que isso eu natildeo quero

Joaquim E se fosse pra noacutes viver de cesta baacutesica noacutes jaacute tinha morrido de fome Eles fica cinco seis mecircs sem mandar

Adir A cesta baacutesica ela natildeo daacute noacutes assim poder pra noacutes crescer noacutes queremos viver do nosso proacuteprio suor do nosso proacuteprio trabalho

Joaquim Eacute que noacutes nunca vivemos de cesta baacutesica

Adir Pra noacutes conseguir comprar o que eacute nosso ter o prazer de ocecirc chegar e comprar tocirc trabalhando e tenho condiccedilotildees de fazer isso Viver de cesta baacutesica isso natildeo existe noacutes natildeo queremos isso noacutes queremos ter nosso proacuteprio sustento que noacutes sempre vivia trabalhamos nem que for sofrendo e tudo mas nosso sustento Natildeo viver eacute dependendo de cesta baacutesica dependendo de governo natildeo dependendo de noacutes mesmo eacute isso que eu quero escrever pra SEPPIR e pra Fundaccedilatildeo Palmares Que eacute muito bonito nos eventos que eu jaacute fui vaacuterios nossa jaacute perdi a conta de andar nesse Brasil No comeccedilo eu ia com esperanccedila e trazia aquela esperanccedila aquela coisa pra dentro da comunidade falava pra eles que era isso e aquilo outro que ia acontecer que ia acontecer

Assim como observamos no capiacutetulo anterior esta situaccedilatildeo de

vulnerabilidade desencadeada pelos conflitos em torno do primeiro relatoacuterio reforccedilou

o sentimento de sofrimento e humilhaccedilatildeo que estaacute presente na leitura que fazem de

sua trajetoacuteria coletiva Na fala de Adir abaixo em que avalia a poliacutetica puacuteblica para as

comunidades quilombolas ele aponta para a expectativa de que o contato com os

diversos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis jaacute tivesse naquele momento repercutido de

forma positiva para a comunidade123

Adir Eacute e daiacute a gente Dandara trazia uma esperanccedila pra comunidade e aiacute depois eu comecei a trazer uma desesperanccedila pra dentro da comunidade Aiacute como que fica Um presidente da comunidade taacute indo atraacutes laacute o pessoal fica esperando e eu trazer o quecirc pra eles Comecei a natildeo trazer mais nada Comecei nem a falar nada mais pra eles porque eu ia e voltava falar o quecirc Trazer o quecirc Papel Papel Soacute Na praacutetica nada Aiacute eu comecei ateacute eu ter desesperanccedila Eu luto sim porque eu tenho um conhecimento hoje mas eu vou correr atraacutes daquilo que quando eu vejo que eacute certo eu tenho que lutar nem que tenha dificuldade burocracia cecirc sabe que isso existe

123 Uma das principais demandas do grupo eacute a garantia de uma dinacircmica interna de geraccedilatildeo de renda

que crie para os quilombolas autonomia de trabalho e que viabilize a permanecircncia das famiacutelias no territoacuterio

138

Esta posiccedilatildeo de mediador poliacutetico ocupada por Adir teve consequecircncias

graves durante os conflitos em decorrecircncia da pressatildeo dos vizinhos que de certo

modo foi nele personificada Sofreu vaacuterias ameaccedilas de morte e foi incluiacutedo no

Programa de Proteccedilatildeo aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria de

Direitos da Presidecircncia da Repuacuteblica Uma das ameaccedilas que sofreu foi atraveacutes de um

trabalho de magia feito contra ele Foram encontrados nos fundos da aacuterea da

comunidade um pequeno caixatildeo uma galinha morta vela pinga areia e uma cruz

com o nome de Adir e a data em que seria morto 13012010 A relevacircncia desta

ameaccedila estaacute ligada a uma referecircncia expliacutecita agrave religiosidade afro-brasileira do grupo

vinculada agrave Umbanda Adir me contou como foi ateacute o lugar e jogou sal grosso em cima

do trabalho para se proteger O jornal local noticiou o ocorrido trazendo a fala de Adir

em resposta ldquoConhecemos essa arte termos irmatildeos que frequentaram a Mesa

Branca a pessoa que fez isso natildeo sabe com quem estaacute brincandordquo

Geralda irmatilde de Adir me explicou de modo indignado mesmo depois de anos

do ocorrido que ela e seu marido por frequentarem o centro de Umbanda foram

acusados pelos vizinhos de terem feito aquilo para gerar falaccedilatildeo Para ela foram os

proacuteprios vizinhos que fizeram o trabalho e os acusaram com o objetivo de criar uma

crise interna na famiacutelia Segundo Geralda os vizinhos tambeacutem frequentam terreiros

mas de modo velado jaacute que natildeo ldquovatildeo ali na regiatildeo porque natildeo querem que ningueacutem

saiba que eles mexem com issordquo Deste modo os vizinhos natildeo explicitariam o viacutenculo

com terreiros de Umbanda jaacute que tecircm acesso e influecircncia junto ao padre local tendo

inclusive acionado esta influecircncia contra os quilombolas para ldquotirar eles da Igrejardquo

139

FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado FONTE Jornal Paranazatildeo 11 de setembro de 2009

140

A acusaccedilatildeo contra Geralda e seu marido indica como abordamos no capiacutetulo

anterior a percepccedilatildeo dos vizinhos em relaccedilatildeo ao grupo de que eles seriam ldquonegros

feiticeiros ou macumbeirosrdquo atribuindo-lhes natildeo soacute uma inadequaccedilatildeo moral mas

tambeacutem uma representaccedilatildeo como possiacuteveis agressores (PORTO 2014 p 199) Por

um lado se haacute uma condenaccedilatildeo moral na interpretaccedilatildeo das religiotildees afro-brasileiras

parece haver por outro um reconhecimento de sua eficaacutecia pois aleacutem de Geralda

afirmar que eles tambeacutem acionam este circuito religioso de modo velado teriam se

utilizado de um trabalho para tentar agredir seus oponentes neste momento de

exacerbaccedilatildeo do conflito Eficaacutecia esta natildeo reconhecida no acircmbito de uma esfera

religiosa mas como uma praacutetica de ldquomagiardquo o que acaba por reforccedilar a atribuiccedilatildeo de

subalternidade que seria conferida a este tipo de praacutetica miacutestica (BRUMANA

MARTINEZ 1991 p 81) Esta ameaccedila contra Adir ganhou repercussatildeo no jornal local

como mais uma forma de intimidaccedilatildeo contra o liacuteder da comunidade

A tensatildeo entre brancos e negros antes latente transformou-se com a

eclosatildeo do conflito no que Adir denominou de ldquoapartheidrdquo Esta situaccedilatildeo ficou

evidente para ele principalmente na dificuldade de convivecircncia entre as crianccedilas e

adolescentes da comunidade e os filhos dos proprietaacuterios vizinhos que pegavam

juntos o ocircnibus para ir para a escola Jaqueline (19 anos) filha de Joaquim contou

como o preconceito que jaacute sofria na escola por sempre ter sido a uacutenica negra de sua

sala agravou-se durante o conflito Ela tinha que escutar os outros adolescentes

falando que sua comunidade iria roubar a terra dos pais deles No ocircnibus os filhos

dos proprietaacuterios vizinhos natildeo deixavam que as crianccedilas e adolescentes da

comunidade se sentassem juntos deles

Outro fato que marcou muito o grupo no final de 2009 foi a morte do irmatildeo

mais velho e liacuteder interno da comunidade Zeacute Maria que sofria de diabetes Nos

relatos sobre este periacuteodo os seus irmatildeos responsabilizam as ameaccedilas e o conflito

com os vizinhos os quais foram pressionando os quilombolas e teriam assim

contribuiacutedo para fragilizar a sauacutede de Zeacute Maria Ademais eles contam como enquanto

seu corpo estava sendo velado na comunidade indignaram-se ao ouvirem fogos de

artifiacutecios que entenderam como ato de comemoraccedilatildeo provocaccedilatildeo e total desrespeito

por parte dos vizinhos agrave situaccedilatildeo de perda da famiacutelia

Neste contexto de adversidade procuraram apoio junto a vaacuterios oacutergatildeos puacuteblicos

como a Poliacutecia Federal a Poliacutecia Civil a Poliacutecia Militar o Ministeacuterio Puacuteblico Federal

141

o Ministeacuterio Puacuteblico Estadual e os oacutergatildeos do Governo Federal que tratam da temaacutetica

quilombola o proacuteprio INCRA a Fundaccedilatildeo Cultural Palmares FCP) e a Secretaria de

Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da Igualdade Racial da Presidecircncia da Repuacuteblica (SEPPIR)

Somente quando a questatildeo deixou de ficar restrita ao acircmbito regional do INCRA no

Paranaacute e houve uma intervenccedilatildeo direta de agentes do Estado representantes do

governo federal o conflito se acalmou

Joaquim () E noacutes natildeo tinha mais sossego Aiacute depois que veio as turma de Brasiacutelia neacute Adir aiacute que eles obedeceram Que essas turma de Brasiacutelia que botaram o ponto final Falou ldquocecircs natildeo cerca mais ningueacutem que vai laacute hoje na comunidade deles mais ningueacutem A ordem agora vem de Brasiacutelia natildeo eacute daqui de Guaiacutera mais natildeordquo Aiacute eles natildeo mexeram mais porque eles falou ldquoAgora noacutes vamos prender mesmordquo

O Ministeacuterio Puacuteblico Federal (MPF) em Umuarama propocircs em julho de 2012

uma Accedilatildeo Civil Puacuteblica contra o INCRA a Uniatildeo o Estado do Paranaacute e o municiacutepio

de Guaiacutera com objetivo de garantir direitos da comunidade quilombola em Guaiacutera124

Tal accedilatildeo teve como base o Inqueacuterito Civil Puacuteblico instaurado em 2008 no

MPFUmuarama que acompanhou a realizaccedilatildeo do estudo antropoloacutegico e os

desdobramentos conflituosos que foram desencadeados e que tiveram ampla

repercussatildeo nos meios de comunicaccedilatildeo da regiatildeo125 Assim depois de todo impacto

negativo do trabalho do INCRA com a comunidade os quilombolas se questionaram

se valia a pena dar continuidade ao procedimento de regularizaccedilatildeo territorial jaacute que

tinham arcado com muitos prejuiacutezos e humilhaccedilotildees e aleacutem disso o relatoacuterio

antropoloacutegico produzido era contraacuterio aos seus interesses O trabalho tinha sido

iniciado mas o INCRA segundo Joaquim natildeo teve estrutura para conduzi-lo de forma

adequada de modo que as lideranccedilas do grupo passaram a distinguir entatildeo o que

era o trabalho do INCRA e o que era o proacuteprio posicionamento dos quilombolas

124 ldquoNa accedilatildeo o MPF pede liminarmente que a Justiccedila Federal de Guaiacutera fixe um prazo maacuteximo de um ano para que o Incra conclua o procedimento administrativo de identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas pela Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Pedem ainda que Uniatildeo Estado do Paranaacute e municiacutepio de Guaiacutera cumpram com o dever legal de inserir a comunidade em suas respectivas poliacuteticas puacuteblicasrdquo ldquoUmuarama pede que Incra conclua procedimento para garantir direitos de quilombola Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwredesuldenoticiascombrhomeaspid=43708 Acesso em 240215 125 Sobre os conflitos em comunidades quilombolas abordados na imprensa estadual no Paranaacute o caso de Guaiacutera eacute um dos principais ldquonas notiacutecias a respeito desta comunidade destaca-se aleacutem da lideranccedila quilombola ter sido ameaccedilada por supostos rituais de feiticcedilaria o fato dos funcionaacuterios do INCRA terem sido feitos de refeacutens por cerca de 150 agricultores da regiatildeo durante a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do Territoacuterio Quilombolardquo CRUZ Cassius Conjuntura quilombola no Paranaacute Disponiacutevel em httpsetnicowordpresscomcategoryquilombos Acesso em 240215

142

Neste sentido a persistecircncia na luta pelo direito territorial com a decisatildeo de

passarem pela elaboraccedilatildeo de um segundo relatoacuterio antropoloacutegico mesmo diante de

todas as condiccedilotildees adversas que estavam colocadas pelo primeiro parecer contraacuterio

parece demonstrar ldquoa existecircncia de um projeto de futuro suficientemente

compartilhadordquo (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 130) Com a produccedilatildeo de um

segundo relatoacuterio antropoloacutegico renovaram-se as esperanccedilas de que pudessem ter

um territoacuterio suficiente para a reproduccedilatildeo do grupo com a perspectiva de retorno de

familiares que saiacuteram dali e que juntos consigam construir um projeto comum

Ademais aleacutem deste aspecto territorial tal decisatildeo de dar continuidade ao

procedimento no INCRA tambeacutem se relaciona agrave afirmaccedilatildeo da legitimidade da

perspectiva do grupo sobre a sua proacutepria histoacuteria

Mas se antes do iniacutecio do trabalho deste oacutergatildeo federal na comunidade os

quilombolas desconheciam os processos estatais pelos quais iriam passar ateacute a

regularizaccedilatildeo do territoacuterio depois de todos os desdobramentos ocorridos estavam

muito mais informados e ldquocalejadosrdquo com relaccedilatildeo ao funcionamento deste tipo de

poliacutetica puacuteblica territorial Eacute a partir de um novo espaccedilo de experiecircncia que passaram

entatildeo a refletir sobre o que ocorreu desde a certificaccedilatildeo da comunidade pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares em 2006 Tornaram-se assim mais seguros de suas

perspectivas sobre a postura tanto das equipes de pesquisa bem como dos

funcionaacuterios do INCRA e de outros oacutergatildeos federais responsaacuteveis pela temaacutetica A

necessidade de circular por novas esferas de atuaccedilatildeo e diaacutelogo se consolidou como

um novo campo de movimento no qual os membros do grupo interagem questionam

reivindicam e constituem aliados para a busca de seus objetivos

24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO

A decisatildeo de continuar com o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do INCRA

passou pelo desejo de consolidar o reconhecimento puacuteblico da legitimidade da histoacuteria

e da luta do grupo questionadas pelo primeiro relatoacuterio Como apontado em conversa

com Adir e Joaquim eles natildeo queriam desistir do objetivo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio

da comunidade tendo em vista a possibilidade de garantir o retorno dos parentes que

de laacute saiacuteram nas uacuteltimas deacutecadas Para manter este propoacutesito consideram que eacute

143

preciso ter ldquocoragem forccedila e feacute em Deusrdquo acionando o suporte de uma ordem de

moral e de justiccedila superior que lhes ampara

Adir Que o nosso pessoal aqui Dandara natildeo viveu soacute no municiacutepio de Guaiacutera Quando esse pessoal vieram de Minas ocupou os dois municiacutepios

Joaquim E trabalhava de diaacuteria pra todo mundo que era muita gente neacute entatildeo noacutes natildeo tinha terra pra trabalhar soacute pra gente Ia derrubando mato tocava trecircs anos e eles ia passando pra frente

Adir E hoje podia taacute todo mundo aqui Natildeo taacute porque de alguma forma contribuiacuteram (os vizinhos) pra que esse pessoal nosso saiacutesse daqui Ocuparam os espaccedilos e noacutes fiquemos sem nada Por isso que noacutes natildeo podemos deixar de lutar Noacutes tem que lutar mesmo Que nem eu falo pra eles ldquose um morrer a guerra natildeo pode parar tem que continuarrdquo E a gente quer mostrar dentro desse municiacutepio de Guaiacutera mostrar pra eles que noacutes tambeacutem temos ndash oportunidade natildeo temos ndash mas que temos coragem forccedila e feacute em Deus pra lutar e conseguir com nossos braccedilos nossas pernas conseguir mostrar pra eles

No entanto a decisatildeo de retomar o processo do INCRA natildeo foi faacutecil jaacute que

na percepccedilatildeo de Joaquim e Adir o oacutergatildeo os decepcionou quando recuou diante da

reaccedilatildeo dos proprietaacuterios e ldquolargou noacutes aqui abandonadordquo Joaquim ressalta como

deixou claro para a antropoacuteloga do INCRA Juliane que acompanhou o procedimento

da comunidade desde o comeccedilo que o oacutergatildeo tinha responsabilidade pelos

desdobramentos do conflito bem como pela situaccedilatildeo econocircmica precaacuteria em que

ficou a comunidade Todos esses acontecimentos faziam com que se sentissem

temeraacuterios com o reiniacutecio dos trabalhos com a reelaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio

antropoloacutegico

Joaquim E teve um ano que noacutes fiquemos nervoso eu falei com a Juliane mesmo do INCRA Eu falei ldquovocecircs natildeo teve peito pra arcar com o pessoal que noacutes natildeo sabe tambeacutem como eacute que eacute essa lei o direitordquo Porque vocecircs recuaram

Adir Recuaram de alguma forma Tambeacutem eacute muito novo Joaquim Eles abriram esse trabalho e depois largou noacutes aqui abandonado Noacutes tamo abandonado sem serviccedilo sem ningueacutem E vocecircs eacute difiacutecil entrar em comunicaccedilatildeo com a gente noacutes fiquemos aqui oacute foi muito tempo sem eles entrar em comunicaccedilatildeo com noacutes

Atualmente entendem a continuidade do procedimento como positiva jaacute que

a avaliaccedilatildeo que fazem da segunda equipe de pesquisadores eacute muito diferente da

primeira Um dos principais criteacuterios utilizados eacute a permanecircncia do antropoacutelogo com

144

eles na comunidade para presenciar o cotidiano e ldquoentender o que estaacute acontecendordquo

Neste mesmo sentido tambeacutem a minha pesquisa eacute avaliada

Adir () Eles (primeira equipe) estava escrevendo uma coisa de laacute natildeo aqui proacuteximo a noacutes Eacute legal que nem vocecirc taacute aqui agora vocecirc falou que vai vir pra ficar tantos dias depois vocecirc volta de novo pra ficar tantos dias depois vocecirc pode voltar de novo ficar tantos dia Aiacute vocecirc vai conviver com noacutes aqui durante esses dias tudo vocecirc vai ver o que vai acontecer o que taacute acontecendo vocecirc vai presenciar tudo Entatildeo que nem noacutes fala pro pessoal do INCRA pra esses antropoacutelogos pra fazer um relatoacuterio antropoloacutegico tem que conviver laacute dentro tem que viver laacute junto com noacutes tem que ver da nossa cultura da nossa alimentaccedilatildeo da nossa dificuldade da nossa luta de tudo isso tem que conviver com noacutes aqui dentro Natildeo adianta vir meia hora sentar com noacutes ali bater um papo pesquisar noacutes ali e voltar embora Presenciar dia a dia

Dandara Quando veio o Paulo (antropoacutelogo) agora pra esse segundo (relatoacuterio) eles ficaram aqui

Adir Ah o Paulo estava aqui presente todo dia com a gente

Joaquim Totalmente diferente

Adir Totalmente diferente E o Paulo foi buscar nossa histoacuteria laacute em Minas que era ateacute pra mim ter ido junto com o Cassius (historiador) aiacute deu um problema que eu natildeo pude ir mas o Cassius me chamou era pra mim taacute junto com eles laacute

A elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico teve o meacuterito segundo os

quilombolas de ter incluiacutedo a pesquisa realizada por Cassius Cruz historiador da

equipe junto agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de proveniecircncia de Manoel

Ciriaco dos Santos em Minas Gerais Adir na eacutepoca foi convidado para que o

acompanhasse na viagem com o intuito de contribuir para a realizaccedilatildeo desta

pesquisa o que natildeo pode acontecer segundo Cassius em decorrecircncia de o contrato

do INCRA com a empresa Terra Ambiental natildeo disponibilizar recursos suficientes e

de Adir natildeo ter como realizaacute-la com recursos proacuteprios Caso a equipe responsaacutevel

optasse por deslocar recursos para financiar a ida da lideranccedila quilombola natildeo

haveria condiccedilotildees para o pagamento total das diaacuterias de trabalho de campo dos

pesquisadores Muitas contribuiccedilotildees poderiam ter sido geradas para o relatoacuterio

antropoloacutegico se priorizado pelo oacutergatildeo federal como ldquoprocessordquo (de pesquisa de

articulaccedilatildeo de fortalecimento comunitaacuterio) no acircmbito do qual seria muito relevante a

participaccedilatildeo de Adir nesta pesquisa em Minas Gerais No entanto esta possibilidade

natildeo se concretizou dada a incompatibilidade com o orccedilamento disponiacutevel na execuccedilatildeo

145

do relatoacuterio vieacutes pelo qual responde a uma certa dinacircmica administrativa que o

entende afinal de contas como ldquoprodutordquo contratado (FERNANDES 2005)

Mesmo sem a ida de um integrante da comunidade a pesquisa em Minas

Gerais foi fundamental para a argumentaccedilatildeo que o segundo relatoacuterio construiu

As pesquisas de campo realizadas em Minas Gerais possibilitaram localizar elementos comuns entre as narrativas da comunidade de Manoel Ciriaco e a Comunidade de Vila Nova (Serro-MG) aleacutem de constatar a presenccedila material de imagens recorrentemente explicitadas pela memoacuteria dos descendentes de Manoel Ciriaco para se referir agrave origem mineira exemplo disso eacute o fato de utilizarem provisoriamente de lapas de pedra como forma de habitaccedilatildeo e espaccedilo de trabalho (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 735 [p 32])

Neste sentido Adir comenta a importacircncia deste relatoacuterio por ter dado

subsiacutedio e legitimidade para a versatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria muito

diferente da experiecircncia com o primeiro estudo

Adir () E eu faccedilo de tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio antropoloacutegico noacutes vamos contribuir com tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio que no final decirc o que decirc mas pelo menos o trabalho tem que ser feito Demorou pra noacutes porque quase que noacutes natildeo ia aceitar o relatoacuterio antropoloacutegico mais Porque tudo que a gente passou noacutes tivemos muita conversa com o pessoal do INCRA eu mais o Joaquim fomos pra Curitiba umas par de vez pra gente sentar laacute com o Nilton (Superindente do INCRA no Paranaacute) conversamos com o pessoal de Brasiacutelia porque noacutes natildeo ia aceitar mais o relatoacuterio antropoloacutegico noacutes fiquemos muito desgastado desgastado de mais

A pesquisa para o segundo relatoacuterio foi produzida durante o ano de 2012 por

uma equipe multidisciplinar coordenada pelo antropoacutelogo Paulo R Homem de Goacutees

que tinha ampla experiecircncia de trabalho e pesquisa com comunidades indiacutegenas Tal

equipe foi contratada pela Empresa Terra Ambiental que venceu a licitaccedilatildeo puacuteblica

(modelo de pregatildeo eletrocircnico) 126 para a produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no

126 O modelo de convecircnio com universidades em comparaccedilatildeo com o modelo de ldquopregatildeo eletrocircnicordquo

adotado desde 2011 era melhor avaliado pelos antropoacutelogos por sua contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de um campo de debate antropoloacutegico sobre o tema dos quilombos nos espaccedilos acadecircmicos proporcionando um nuacutemero expressivo de trabalhos e grupos de pesquisa em cursos de antropologia todo o paiacutes (ARRUTI 2013) No entanto o modelo de convecircnio foi substituiacutedo pelo chamado ldquoPregatildeo Eletrocircnicordquo que se tornou a ferramenta de contrataccedilatildeo para os relatoacuterios antropoloacutegicos e produccedilatildeo de RTID No caso de Guaiacutera contudo a experiecircncia com a realizaccedilatildeo do pregatildeo apresentou melhores resultados do que com o convecircnio estabelecido com a UNIOESTE localizada na regiatildeo oeste do Paranaacute pois neste convecircnio natildeo havia em seu quadro docente um antropoacutelogo que dispusesse de experiecircncia sobre temas relacionados com identidade e territorialidade e que estivesse assim apto para coordenar o estudo em questatildeo

146

Paranaacute nos municiacutepios de Guaiacutera e Palmas Trata-se precisamente das duas

comunidades quilombolas que haviam passado pela produccedilatildeo de um primeiro

relatoacuterio antropoloacutegico fruto do convecircnio do INCRA com a UNIOESTE cujos

resultados foram recusados tanto pelo oacutergatildeo como pelas comunidades pesquisadas

O histoacuterico de conflitos em Guaiacutera gerou questionamentos quanto aos riscos

a que os pesquisadores envolvidos na elaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico

e os proacuteprios quilombolas poderiam estar expostos Assim foram pensadas

estrateacutegias para evitar novas situaccedilotildees de animosidade Para que aceitassem passar

por um novo momento de pesquisa os quilombolas exigiram que o INCRA garantisse

a seguranccedila dos membros da comunidade jaacute que se sentiram desprotegidos e

vulneraacuteveis no conflito desencadeado pelo primeiro relatoacuterio Uma das estrateacutegias foi

a realizaccedilatildeo de uma audiecircncia puacuteblica convocada pelo Ministeacuterio Puacuteblico Federal de

Guaiacutera na qual participaram os representantes quilombolas os agricultores do

Maracaju dos Gauacutechos da Poliacutecia Federal e Militar do Sindicato Patronal Rural de

Guaiacutera do INCRA da empresa Terra Ambiental da Casa Civil do Estado do Paranaacute

e da Federaccedilatildeo da Agricultura do Estado do Paranaacute De acordo com o segundo

relatoacuterio antropoloacutegico

O objetivo da reuniatildeo foi tornar puacuteblico o reiniacutecio do processo e garantir que fosse realizado de forma paciacutefica explicitando os procedimentos legais que envolvem a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do qual o Relatoacuterio Antropoloacutegico ora apresentado constitui apenas a primeira etapa Avaliamos que natildeo obstante os intensos questionamentos realizados por parte dos agricultores na audiecircncia que durou cerca de 5 horas a mesma teve um resultado extremamente produtivo uma vez que foi possiacutevel agrave equipe teacutecnica realizar suas atividades ao longo dos meses subsequentes sem interferecircncia de agentes externos ou ameaccedila Destacamos apenas que houve dificuldade em dialogar com pessoas vizinhas agrave comunidade sobre o processo pois os conflitos geraram muita desconfianccedila e temor (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 760 [p 67])

Deste modo o segundo estudo natildeo poderia desconsiderar todo este contexto

preacutevio de relaccedilotildees externas e tambeacutem o proacuteprio conteuacutedo levantado pela primeira

pesquisa sobre a qual os autores do segundo relatoacuterio antropoloacutegico avaliam

A forma como o processo foi conduzido pelos pesquisadores da Unioeste foi desaprovada pelas lideranccedilas da comunidade que atribuem parte dos conflitos decorrentes desse primeiro processo de elaboraccedilatildeo do RTID agrave conduccedilatildeo da pesquisa antropoloacutegica A reabertura do processo e a contrataccedilatildeo de nova equipe multidisciplinar foi recebida com alegria pela comunidade poreacutem natildeo sem receio dado a experiecircncia anterior

147

(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701 [p 08])

A repercussatildeo do questionamento sobre a identidade do grupo pode ser

percebida tambeacutem na dissertaccedilatildeo elaborada em 2012 por Claacuteudia Hoffmann que

versa sobre a comunidade quilombola de Guaiacutera no acircmbito do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Sociedade Cultura e Fronteiras da UNIOESTE Mesmo a autora

fazendo criacuteticas ao primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo e agrave situaccedilatildeo de conflito que

se seguiu ela afirma ao longo do texto que optou por natildeo os denominar como

ldquoquilombolasrdquo porque ainda natildeo havia ocorrido a ldquodemarcaccedilatildeo de suas terrasrdquo

preferindo entatildeo referir-se a eles como ldquointegrantes da comunidade negrardquo

(HOFFMANN 2012 p 14-15) Questionou deste modo a autoidentificaccedilatildeo do grupo

como se esta soacute fosse legiacutetima em consequecircncia do reconhecimento territorial oficial

por parte do Estado Interessante observar no entanto que a autora na mesma

dissertaccedilatildeo natildeo hesitou em denominar a comunidade de Joatildeo Suraacute localizada no

municiacutepio de AdrianoacutepolisPR como ldquoComunidade Remanescente de Quilombo Joatildeo

Suraacuterdquo (HOFFMANN 2012 p 40) embora este grupo tambeacutem natildeo tenha sido titulado

como territoacuterio quilombola pelo INCRA Esta diferenccedila de posicionamento pode ser

decorrente de seu desconhecimento do tracircmite do procedimento da comunidade de

Joatildeo Suraacute no INCRA ou talvez ter surgido devido ao fato de este grupo se encaixar

no modelo de ldquoquilombo tiacutepicordquo bem mais do que o grupo de GuaiacuteraPR e natildeo ter tido

a sua identidade questionada oficialmente

Para lidar com os questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e suas

repercussotildees a pesquisa para elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico como

nos referimos acima buscou dar suporte agraves referecircncias da memoacuteria coletiva do grupo

em GuaiacuteraPR sobre a vida de seus antepassados em Minas Gerais e o processo de

migraccedilatildeo ateacute o Paranaacute A versatildeo final do relatoacuterio com cento e trinta e quatro

paacuteginas127 foi estruturada com as seguintes partes

(1) ldquoIntroduccedilatildeo e definiccedilatildeo dos conceitosrdquo fazem uma leitura densa sobre o

desenvolvimento da interpretaccedilatildeo teoacuterica sobre o conceito de quilombo reforccedilando a

importacircncia da ressemantizaccedilatildeo do termo a partir da introduccedilatildeo do artigo 68 do ADCT

na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 para abranger o novo contexto de emergecircncia

127 Interessante observar que ambos os relatoacuterios apresentam o mesmo nuacutemero de paacuteginas

148

identitaacuteria das comunidades quilombolas no presente Destacam tambeacutem a

importacircncia da incorporaccedilatildeo do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo trazido pelo Decreto Federal

48872003 e finalizam com uma anaacutelise criacutetica da efetivaccedilatildeo dos direitos territoriais

das comunidades quilombolas que tem ocorrido em uma velocidade muito aqueacutem da

necessaacuteria

(2) ldquoCaracterizaccedilatildeo do municiacutepiordquo apresentam o histoacuterico de ocupaccedilatildeo e

colonizaccedilatildeo da regiatildeo desde meados do seacuteculo XIX e o contexto de criaccedilatildeo do

municiacutepio de Guaiacutera a partir do empreendimento da empresa Matte Laranjeira no

local Destacam tambeacutem como nas deacutecadas de 1970 e 1980 houve uma inversatildeo na

proporccedilatildeo de habitantes das aacutereas rurais e urbanas do municiacutepio chegando a uma

proporccedilatildeo de 80 da populaccedilatildeo na aacuterea urbana no ano 2000 processo que teve forte

impacto na comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

(3) ldquoHistoacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriacordquo abordam os dados

da pesquisa realizada em MG demonstrando os laccedilos de memoacuteria e indicativos de

possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a comunidade quilombola de GuaiacuteraPR e ldquoas

comunidades quilombolas migrantes do Jequitinhonha ndash MGrdquo assim como uma

anaacutelise mais especiacutefica sobre a trajetoacuteria de migraccedilatildeo de seu Manoel Ciriaco

Destacam tambeacutem o fato de a migraccedilatildeo jaacute estar presente nas dinacircmicas das famiacutelias

negras na regiatildeo de origem do grupo Estes processos migratoacuterios ocorriam em uma

escala local de circulaccedilatildeo das famiacutelias que viviam em lapas (cavernas) de pedra e

mantinham sua autonomia com poucos recursos o que gerava uma significativa

mobilidade territorial Apontam como entre os seacuteculos XIX e XX havia uma

importante produccedilatildeo local de queijo cachaccedila milho carne e outros alimentos que

visava o abastecimento de Diamantina principal centro minerador da regiatildeo As

famiacutelias de ex-escravos aleacutem do trabalho com o garimpo mantinham uma produccedilatildeo

de modo autocircnomo para o autoconsumo e tambeacutem para este abastecimento externo

atraveacutes da atividade tropeira Nas deacutecadas de 1950 e 1960 muitas destas famiacutelias

foram compelidas a migrar por conta do processo de modernizaccedilatildeo e pressatildeo sobre

as terras camponesas na regiatildeo

(4) ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo analisam como o

casamento preferencial a partir de uma loacutegica endogacircmica ndash tabu do lsquooutcestrsquo ou

seja do casamento fora do grupo ndash jaacute era uma caracteriacutestica presente desde MG e

se constituiu como importante dinacircmica para a manutenccedilatildeo e coesatildeo do grupo em

149

GuaiacuteraPR Os autores propotildeem entatildeo uma anaacutelise do processo de migraccedilatildeo como

mecanismo necessaacuterio para a manutenccedilatildeo das famiacutelias em contraste com a anaacutelise

anterior do primeiro relatoacuterio que entendia a migraccedilatildeo como elemento

descaracterizador da identidade quilombola do grupo Descrevem ainda os aspectos

da religiosidade e os procedimentos terapecircuticos utilizados pelos membros da

comunidade finalizando este capiacutetulo com uma anaacutelise do processo de

reconhecimento do direito quilombola e dos conflitos dele decorrentes

(5) ldquoA terra as plantas e a produccedilatildeordquo apresentam uma anaacutelise de aspectos

ambientais e agronocircmicos da comunidade

(6) ldquoProposta de delimitaccedilatildeo da comunidade remanescente de quilombo

Manoel Ciriaco dos Santos em que apresentam uma proposta de territoacuterio quilombola

como base nos dados da pesquisa realizada diversamente do primeiro relatoacuterio que

afirmava natildeo haver territoacuterio quilombola a ser indicado

(7) Referecircncias bibliograacuteficas e anexos

O caminho argumentativo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico estruturou-se

por meio da fundamentaccedilatildeo histoacuterica das ldquomemoacuterias mineirasrdquo do grupo quilombola

em GuaiacuteraPR Apontam assim para os ldquopotenciais elos de parentesco com

comunidades quilombolas de Minas Geraisrdquo bem como para os ldquodados histoacutericos

sobre origens e dispersotildees geograacuteficasrdquo das comunidades quilombolas da regiatildeo

mineira e suas ldquodinacircmicas locais de migraccedilatildeordquo A significativa presenccedila da

argumentaccedilatildeo histoacuterica neste relatoacuterio estaacute relacionada possivelmente ao contexto de

produccedilatildeo da pesquisa realizada na sequecircncia de um outro relatoacuterio antropoloacutegico que

rejeitava a legitimidade da identidade e da reivindicaccedilatildeo territorial do grupo

precisamente por conta da suposta impossibilidade de vinculaacute-los a uma

ancestralidade quilombola Assim os autores do segundo relatoacuterio buscam

demonstrar como o trabalho de campo realizado em MG proporcionou fontes ldquoque

corroboram e possibilitam aprofundar os elementos apontados pelas famiacutelias

quilombolas de Manoel Ciriaco sobre suas origens mineirasrdquo (Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701-702 [p 08-09] 721

[p28])

Esta busca de comprovaccedilatildeo histoacuterica natildeo eacute como jaacute abordamos

anteriormente um requisito legal conforme a definiccedilatildeo atual dada pelo Decreto

Federal 4887 de 2003 que regulamentou o processo de titulaccedilatildeo de territoacuterios

150

quilombolas A opccedilatildeo do decreto em atribuir ao relatoacuterio antropoloacutegico ndash e natildeo a um

ldquorelatoacuterio histoacutericordquo ndash a responsabilidade de ser um dos estudos (o primeiro deles) que

subsidia o tracircmite de acesso a direitos territoriais aponta para um direcionamento que

perceba como o grupo elabora no presente suas narrativas sobre ldquoa resistecircncia agrave

opressatildeo histoacuterica sofridardquo a partir da ldquopresunccedilatildeo da ancestralidade negrardquo nos

termos do referido decreto o que natildeo depende de uma noccedilatildeo restrita de comprovaccedilatildeo

da ascendecircncia do grupo com negros escravizados no passado No entanto apesar

de formalmente este relatoacuterio ter caraacuteter antropoloacutegico as precauccedilotildees adotadas pelo

pesquisador em relaccedilatildeo a possiacuteveis contestaccedilotildees e contralaudos dentro do

procedimento administrativo no INCRA podem fazer com que haja um predomiacutenio de

argumentos de ordem histoacuterica os quais parecem ser mais persuasivos para os

diferentes atores implicados na rede que de dentro do Estado em um dado momento

de estabilizaccedilatildeo iraacute consolidar o territoacuterio do grupo (RIBEIRO CALABRIA 2013)

Dentre estes atores haacute um predomiacutenio da loacutegica juriacutedica a partir da qual o

relatoacuterio antropoloacutegico pode ser interpretado como prova pericial o que cria uma

expectativa da produccedilatildeo por parte da antropologia de um conhecimento cientiacutefico

objetivo (OrsquoDWYER 2009 p 177) Nesta relaccedilatildeo entre direito e antropologia o

conhecimento histoacuterico entendido numa chave positivista e factualista eacute convocado

a oferecer provas comprovatoacuterias que serviriam para atender as expectativas do

campo juriacutedico Opera-se desta maneira a partir de uma certa linguagem de

legalidade que estabelece linhas de interpretaccedilatildeo do passado e de clivagem do social

e do cultural gerando uma racionalizaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade em um todo

coerente com base em significados e registros de comunicaccedilatildeo preacute-estabelecidos

Faz-se necessaacuterio para tanto o silenciamento do fluxo e da indeterminaccedilatildeo do

passado para que seja possiacutevel uma reduccedilatildeo taacutetica e palataacutevel aos instrumentos

juriacutedicos os quais parecem basear sua legitimidade em uma promessa pragmaacutetica de

criar equivalecircncia para a transaccedilatildeo entre interesses contraacuterios e incomensuraacuteveis

(como no caso de disputas por terras) a partir de um denominador comum Nisto em

parte reside sua hegemonia a despeito de que em si mesmos os criteacuterios juriacutedicos

natildeo satildeo garantidores de igualdade (COMAROFF COMAROFF 2011 p 145-151)

Para que fosse possiacutevel a realizaccedilatildeo da pesquisa e do trabalho de campo na

regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash fundamental para a estrutura narrativa

construiacuteda pelo relatoacuterio ndash algumas estrateacutegias foram adotadas A primeira foi a

151

divulgaccedilatildeo junto agraves organizaccedilotildees e instituiccedilotildees que executam trabalhos com as

comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo de uma mensagem

produzida pela comunidade em conjunto com os pesquisadores Esta mensagem

visou estabelecer contato com as comunidades quilombolas da regiatildeo e solicitou em

nome da lideranccedila do grupo em GuaiacuteraPR apoio para a localizaccedilatildeo dos parentes que

permaneceram em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Prezados Me chamo Adir Rodrigues dos Santos lideranccedila da comunidade quilombola Manoel Ciriaco localizada em Guaiacutera - PR Somos uma comunidade certificada pela Fundaccedilatildeo Palmares e estamos no processo de elaboraccedilatildeo do laudo antropoloacutegico para realizaccedilatildeo nasceram (sic) no municiacutepio de Santo Antonio do Itambeacute em Minas Gerais suas terras eram proacuteximas a um fazendeiro chamado Milton Gonccedilalves em Santo Antonio do Itambeacute No ano de 1981 o filho de seu Manoel Joatildeo Louriano dos Santos casado com Maria Conceiccedilatildeo das Dores e seu primo Aniacutesio Dioniacutesio de Paula (irmatildeo de Geraldo de Paula ambos filhos de Sebastiatildeo Vicente) vieram para Guaiacutera Paranaacute Manoel Ciriaco chegou em Guaiacutera em 1962 onde nascemos e vivemos ateacute hoje Fazendo pesquisa na internet encontramos no site httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_lista_comunidadeshtml as comunidades de Mata dos Crioulos Botafogo e Martins localizadas no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute e as comunidades Ausente Bauacute Comunidade do Ocirc Ribeiratildeo dos Porcos e Rua Vila Nova no municiacutepio do Serro meu pai tinha memoacuteria desses dois municiacutepios Acreditamos que nessas comunidades haacute ancestrais nossos encontraacute-los contribuiria muito para nossa luta pelo reconhecimento e titulaccedilatildeo Caso vocecircs tenham maiores informaccedilotildees sobre essas comunidades relatoacuterios jaacute realizados ou qualquer pista que contribua aos nossos estudos pedimos que nos enviem (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 700 [p 07])

A articulaccedilatildeo entre os pesquisadores que elaboravam o relatoacuterio

antropoloacutegico e as comunidades quilombolas da regiatildeo mineira se deu a partir do

contato estabelecido com a equipe de assessoria juriacutedica quilombola que atua dentro

do curso de graduaccedilatildeo em direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Serro (PUC-

Serro) e que realiza haacute mais de cinco anos projetos de extensatildeo com estes grupos128

Este contato possibilitou o acesso de Cassius Cruz historiador da equipe aos

mediadores poliacuteticos das comunidades quilombolas da regiatildeo tornando possiacutevel a

realizaccedilatildeo de trabalho de campo em seis comunidades quilombolas nos municiacutepios

de Serro (ldquoAusentesrdquo ldquoBauacuterdquo ldquoVila Novardquo ldquoQueimadasrdquo e ldquoSanta Cruzrdquo) e de

128 Este campus da PUC estaacute localizado no municiacutepio de Serro que eacute vizinho a Santo Antocircnio do Itambeacute

e funciona como municiacutepio referecircncia por ter um porte maior com 20835 habitantes segundo o censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro Acesso em 230915

152

Diamantina (ldquoMata dos Crioulosrdquo) nos periacuteodos de 05 a 13 de setembro e de 22 a 28

de outubro de 2012 (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do

INCRAPR p 721 [p 28])

Durante a pesquisa de campo foram levantadas possibilidades de viacutenculos de

parentesco entre a comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e o casal

fundador da Comunidade Quilombola Vila Nova Os diagramas de parentesco dos

grupos mineiros bem como fotos e viacutedeos foram enviados para Guaiacutera para que fosse

possiacutevel a identificaccedilatildeo de viacutenculos de parentesco entre as comunidades

No final do mecircs de setembro apresentamos as fotografias viacutedeos e demais informaccedilotildees que conseguimos em Minas Gerais agrave comunidade de Manoel Ciriaco sendo este um momento chave da relaccedilatildeo estabelecida entre os pesquisadores e a comunidade pois se manifestaram muito felizes com os resultados apresentados e por termos conseguido encontrar e registrar informaccedilotildees que eles mesmos conheciam unicamente pela transmissatildeo oral (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 702-703 [p 09-10])

O segundo relatoacuterio argumenta ao longo de todo o capiacutetulo sobre a ldquoHistoacuteria

da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo que a memoacuteria coletiva

existente em Guaiacutera sobre sua regiatildeo de origem pocircde ser respaldada pela pesquisa

realizada em Minas Gerais a partir de elementos comuns ldquoseja com relaccedilatildeo aos

modos de produccedilatildeo habitaccedilatildeo religiosidade quer seja pela descriccedilatildeo de estrateacutegias

matrimoniais dos grupos familiaresrdquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 p 737 [p 44]) Uma das narrativas importantes que compotildee

a memoacuteria do grupo em Guaiacutera diz respeito ao uso provisoacuterio que seus antepassados

fizeram de lapas ou locas de pedra como moradia Como a pesquisa na regiatildeo mineira

pocircde demonstrar esta eacute uma praacutetica cultural mantida ateacute os dias de hoje em

comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo como registrado na atraveacutes

trazida a foto abaixo129 na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos

(DiamantinaMG)

129 A importacircncia da evocaccedilatildeo desta imagem na construccedilatildeo do argumento do segundo relatoacuterio antropoloacutegico parece ser confirmada pela sua utilizaccedilatildeo tambeacutem na capa do documento

153

FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 726 [p 33]

Esta praacutetica parece estar relacionada segundo a anaacutelise do relatoacuterio agrave

situaccedilatildeo de precariedade em que viviam e agrave criatividade necessaacuteria para sobreviver a

partir do que a natureza lhes oferecia no periacuteodo escravagista e poacutes-escravagista Os

autores apontam assim como a utilizaccedilatildeo de lapas se insere em dinacircmicas de busca

por autonomia e liberdade em contraste com a experiecircncia de descendentes de

escravos que permaneceram agregados agraves fazendas formando comunidades

quilombolas que se caracterizam por uma baixa mobilidade A estrateacutegia de

mobilidade em um mesmo contexto regional associada a diferentes modos de

trabalho e ocupaccedilatildeo territorial tambeacutem conformaram comunidades quilombolas na

regiatildeo marcadas ldquoainda hoje por fluxos migratoacuterios internos e externos e uma rede

de parentesco que articula diversas dessas comunidadesrdquo (Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 724-725 [p 31 e 32])

A experiecircncia de mobilidade portanto teria significativa importacircncia na

trajetoacuteria de muitas famiacutelias negras que atualmente se reconhecem como quilombolas

na regiatildeo de Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG Esta seria uma das caracteriacutesticas

154

marcantes da continuidade histoacuterica do grupo do Paranaacute com seus antepassados

dessa regiatildeo

A mobilidade espacial destes grupos jaacute tendia ser maior mesmo antes do iniacutecio do processo migratoacuterio que levaria famiacutelias a sair de Minas Gerais pois mantinham uma relaccedilatildeo mais tecircnue e por isso de mais autonomia frente ao contexto regional de arregimentaccedilatildeo de matildeo-de-obra uma vez que faziam das lapas suas moradias natildeo sendo assim dependentes das estruturas das fazendas (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 743 [p 50])

A continuidade histoacuterica estaria presente tambeacutem nessa busca de autonomia

nas relaccedilotildees de trabalho A pesquisa indicou a existecircncia de um padratildeo seguido por

geraccedilotildees e expresso na estrateacutegia atual dos membros da comunidade em Guaiacutera de

complementarem a renda obtida no proacuteprio territoacuterio com relaccedilotildees de trabalho

estruturadas fora da loacutegica patratildeo-empregado como diaristas arrendataacuterios ou

empreiteiros Esta opccedilatildeo garantiria a manutenccedilatildeo de autonomia ldquouma vez que natildeo

se tornam dependentes de patrotildees especiacuteficosrdquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 745 [p 52])

Dentre as estrateacutegias identificadas pela pesquisa como aquelas que apontam

para a manutenccedilatildeo de referecircncias comuns com as comunidades quilombolas da

regiatildeo mineira estaacute segundo o relatoacuterio a continuidade da tendecircncia endogacircmica

que analisam atraveacutes de vaacuterios excertos genealoacutegicos apresentados no capiacutetulo

ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo A importacircncia desta estrateacutegia

estaria na possibilidade de manutenccedilatildeo do sentimento de pertencimento a uma

origem comum que cria identidade e memoacuteria coletiva permitindo a continuidade das

dinacircmicas de organizaccedilatildeo social do grupo mesmo com a dispersatildeo territorial

Reforccedilada pelo contexto socialmente perifeacuterico e de preconceito racial no qual

o grupo se inseriu na regiatildeo de GuaiacuteraPR esta tendecircncia endogacircmica como

argumentam os autores eacute precedente e contribui para o fortalecimento de alianccedilas

intra-familiares enquanto heranccedila socioloacutegica que reforccedilou as fronteiras e a

capacidade de manutenccedilatildeo da coesatildeo social do grupo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 738 [p 45]) Deste modo esta capacidade

de manutenccedilatildeo de uma coletividade natildeo se baseia apenas na aacuterea que lograram

adquirir e que ocupam haacute sessenta anos mas tambeacutem decorre das relaccedilotildees de

parentesco e das formas proacuteprias de organizaccedilatildeo social (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 736 [p 43])

155

As relaccedilotildees de parentesco atualmente estendem-se por uma rede que

transcende os limites territoriais desta comunidade Esta rede ampliada se expandiu

com os deslocamentos de famiacutelias que deixaram a comunidade em GuaiacuteraPR nas

uacuteltimas deacutecadas em decorrecircncia da diminuiccedilatildeo das aacutereas e das oportunidades de

trabalho na regiatildeo ligadas ao processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura A estrutura do

segundo relatoacuterio aborda assim como aleacutem da importacircncia de uma territorialidade

especiacutefica construiacuteda em GuaiacuteraPR haacute uma visatildeo sobre os viacutenculos de

pertencimento ao grupo que se abre por esta rede de parentes (que estatildeo fora do

territoacuterio e que podem retornar com o processo de titulaccedilatildeo) o que gera uma

percepccedilatildeo de territorialidade mais ampla perpassada por referecircncias de memoacuteria

sobre a regiatildeo de origem do grupo no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Neste sentido a literatura antropoloacutegica recente tem tematizado sobre a natildeo

exclusividade da relaccedilatildeo territorial enquanto criteacuterio de identificaccedilatildeo de grupos

quilombolas jaacute que ldquoo conceito de quilombo natildeo pode ser territorial apenas ou fixado

em um uacutenico lugar geograficamente definido historicamente lsquodocumentadorsquo e

arqueologicamente lsquoescavadorsquordquo (ALMEIDA 2011 p 45) A situaccedilatildeo de deslocamento

caracteriacutestica deste grupo de GuaiacuteraPR mas tambeacutem os outros casos de expulsatildeo e

de reassentamento demonstram como ldquomais do que uma exclusiva dependecircncia da

terra o quilombo faz da terra a metaacutefora que possibilita a continuidade do grupo ()rdquo

(LEITE FERNANDES 2006 p 11)

O segundo relatoacuterio corrobora esta leitura antropoloacutegica que natildeo se limita a

uma noccedilatildeo de territorialidade fixa para reconhecer direitos territoriais agraves comunidades

quilombolas Dessa forma a proposta de delimitaccedilatildeo territorial apresentada e

aprovada pela comunidade atraveacutes de discussatildeo em reuniatildeo especiacutefica indica

a) A recomposiccedilatildeo dos lotes adquiridos por Manoel Ciriaco dos Santos (aacuterea

de 102 alqueires paulistas dos quais 142 alq foi vendido e 45 estatildeo

arrendados atualmente) e por Geraldo dos Santos (51 alq paulistas

vendidos em 1993) a serem titulados enquanto territoacuterio quilombola

b) A aquisiccedilatildeo pelo INCRA de uma aacuterea complementar de aproximadamente

35 alqueires paulistas que eacute justificada devido ldquoagraves formas de relaccedilatildeo de

trabalho tradicionais da comunidade que diminuem com a mecanizaccedilatildeo

agriacutecola aos conflitos gerados pelo processo que inviabilizaram o acesso

156

a trabalhos na regiatildeo e ao consequente crescimento do ecircxodo de

membros da comunidade do territoacuteriordquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 802 [p 109]) Outro motivo para

a aquisiccedilatildeo complementar eacute a possibilidade de retorno de em meacutedia vinte

e seis famiacutelias as quais atualmente estatildeo vivendo em condiccedilotildees precaacuterias

em diferentes cidades Este eacute um dado referente ao nuacutemero aproximado

de famiacutelias que deixaram o territoacuterio em Guaiacutera e que segundo as

lideranccedilas manteacutem viacutenculos com a comunidade e retornariam caso

houvesse possibilidade O nuacutemero de trinta e trecircs famiacutelias (somando as

sete famiacutelias residentes na comunidade na eacutepoca da elaboraccedilatildeo do

relatoacuterio mais as vintes e seis com previsatildeo de retorno) embasou o caacutelculo

desta aacuterea adicional tendo tambeacutem como referecircncia os criteacuterios

agronocircmicos para a estimativa da necessidade de acreacutescimo de aacuterea de

cultivo que possa viabilizar a manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo fiacutesica e econocircmica

da comunidade

De acordo com a avaliaccedilatildeo do INCRA o segundo relatoacuterio antropoloacutegico

cumpriu com seus objetivos e caracterizou a comunidade e o territoacuterio ao qual o grupo

tem direito a partir de dados etnograacuteficos e histoacutericos suficientes segundo a Instruccedilatildeo

Normativa 592007 atualmente em vigor Enquanto a aacuterea do territoacuterio quilombola que

seraacute titulada corresponde aos dois lotes acima referidos a aacuterea complementar seraacute

obtida por meio de desapropriaccedilatildeo por interesse social conforme previsto na Lei

41321962 ficando a comunidade com o usufruto atraveacutes de Contrato de Concessatildeo

de Direito Real de Uso (CCDRU) O tamanho da aacuterea adicional necessaacuteria apesar de

jaacute previamente indicado no relatoacuterio dependeraacute conforme aponta o parecer

conclusivo SR(09)F4Nordm 0012014 do INCRAPR130 do nuacutemero de famiacutelias

cadastradas pelo INCRA que permaneceratildeo no territoacuterio bem como da discussatildeo

sobre os tipos de produccedilatildeo agriacutecola que seratildeo por elas desenvolvidas

Atualmente haacute um importante viacutenculo com as aacutereas adquiridas por Manoel

Ciriaco e Geraldo dos Santos apoacutes deacutecadas de ocupaccedilatildeo que embasa uma

130 De acordo com a ementa do documento trata-se do ldquoParecer conclusivo do Serviccedilo de

Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas do INCRAPR sobre o Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos com base na IN 572009rdquo (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 1062-1067)

157

reivindicaccedilatildeo especiacutefica pelo retorno do territoacuterio ao tamanho da aacuterea inicial a qual

somava quinze alqueires e da qual soacute mantiveram em torno de 50 Aleacutem desta aacuterea

de ocupaccedilatildeo efetiva a possibilidade de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio com a compra pelo

INCRA de uma nova aacuterea ndash com a qual o grupo quilombola natildeo possui uma relaccedilatildeo

preacutevia ndash demonstra a especificidade deste caso e a necessidade portanto de que

houvesse um procedimento diferenciado por parte deste oacutergatildeo federal

A demanda por um procedimento diferenciado de regularizaccedilatildeo territorial no

caso de GuaiacuteraPR foi necessaacuteria tendo em vista que a experiecircncia de ldquoresistecircncia agrave

opressatildeo histoacuterica sofridardquo organizou-se por meio da realizaccedilatildeo de deslocamentos

Tais movimentos visavam a concretizaccedilatildeo da autonomia liberdade e melhores

condiccedilotildees de vida para estas famiacutelias dada a insuficiecircncia das aacutereas na regiatildeo de

origem do grupo em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG por meio do acesso a novos

territoacuterios Deste modo percebe-se que a possibilidade de conquista de territoacuterios estaacute

no acircmago deste processo de resistecircncia social e que se em outros casos de grupos

quilombolas a resistecircncia consiste na permanecircncia em um mesmo territoacuterio

tradicional neste caso ela se constituiu pela experiecircncia de deslocamentos

Deve-se levar em conta ainda que estes deslocamentos iniciados em 1956

por estas famiacutelias negras da aacuterea rural de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo

ao municiacutepio de CaiabuSP implicavam em seacuterios riscos tanto no caminho como no

processo de fixaccedilatildeo em um novo lugar onde teriam que encontrar novas

oportunidades de inserccedilatildeo e de trabalho As referecircncias a existecircncia de mais famiacutelias

relacionadas ao nuacutecleo de parentes do casal Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues

apontam para o fato de que esta linha de migraccedilatildeo da regiatildeo de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ateacute a regiatildeo de Presidente PrudenteSP consistia em um movimento mais

amplo como rede de apoio para a migraccedilatildeo de novas famiacutelias No acircmbito deste fluxo

de deslocamentos a busca por direitos da comunidade de GuaiacuteraPR eacute construiacuteda

atualmente a partir da trajetoacuteria de deslocamentos do casal Manoel e Ana mas natildeo

se restringe a este nuacutecleo familiar Eacute principalmente a partir desta rede preacutevia de apoio

que os desafios da migraccedilatildeo puderam ser por eles enfrentados Como mencionado

no primeiro capiacutetulo a referecircncia de Manoel na regiatildeo paulista era seu primo de

primeiro grau Raimundo Constantino que saiu com esposa e filhos de Santo Antocircnio

do Itambeacute em 1949 sete anos antes de Manoel Tais desafios do processo de

158

migraccedilatildeo satildeo ainda mais significativos tendo em vista a existecircncia de contextos que

podem ser hostis para a inserccedilatildeo da populaccedilatildeo negra

Importante para finalizar este capiacutetulo destacar que foi o processo

conturbado de regularizaccedilatildeo territorial e reconhecimento da legitimidade da

reivindicaccedilatildeo identitaacuteria da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que impulsionou

a realizaccedilatildeo de duas viagens de retorno para a regiatildeo de origem do grupo as quais

iremos abordar no capiacutetulo seguinte Com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir

da pesquisa realizada pelo historiador Cassius Cruz na regiatildeo do SerroMG Adir

enquanto lideranccedila da comunidade de Guaiacutera comeccedila a ter expectativas de conhecer

a regiatildeo de origem de sua famiacutelia buscar os parentes com quem perderam o contato

pesquisar mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria de seus antepassados A realizaccedilatildeo

desta pesquisa de mestrado mostrou-se como oportunidade de aprofundar tal

pesquisa a partir dos caminhos apontados pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico tendo

em vista que jaacute havia um primeiro levantamento de dados e contatos na regiatildeo de

origem do grupo

159

3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo

31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo131

Se no primeiro capiacutetulo destacamos a relevacircncia das dinacircmicas de

movimento para a compreensatildeo da emergecircncia identitaacuteria quilombola em GuaiacuteraPR

eacute fundamental neste momento pontuar que a centralidade dos deslocamentos na

trajetoacuteria do grupo natildeo nos levou a recorrer a uma ideia de ldquomobilidaderdquo132 pois este

conceito poderia sugerir que haacute uma constacircncia ou uma facilidade em se realizar

deslocamentos por parte dos membros do grupo o que de fato natildeo ocorre Para que

se consiga visualizar como a trajetoacuteria do grupo eacute perpassada pelo movimento faz-se

necessaacuteria uma perspectiva de longa duraccedilatildeo considerando que no presente como

observei durante o trabalho de campo haacute uma possibilidade muito limitada de

deslocamentos em decorrecircncia das dificuldades financeiras Viajar para visitar os

parentes eacute sempre um plano mas dificilmente sobram recursos para concretizaacute-lo

A dificuldade de deslocamento comeccedila inclusive dentro do proacuteprio municiacutepio

pois os quilombolas natildeo tecircm acesso a transporte puacuteblico que chegue proacuteximo agrave

comunidade e ateacute 2012 contavam apenas com um carro utilitaacuterio antigo em uma

comunidade com em meacutedia sete famiacutelias Na eacutepoca em que eu atuei como assessora

juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute pude contribuir para o

encaminhamento de um pedido realizado pela Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel

Ciriaco dos Santos (ACONEMA) junto agrave Poliacutecia Federal de Foz do Iguaccedilu133 visando

agrave doaccedilatildeo de um veiacuteculo para a associaccedilatildeo Tal pedido foi embasado na necessidade

da comunidade de dispor de meios para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos

abrangidas pelo contrato do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA)134

131 Tiacutetulo homocircnimo ao trabalho de Oliveira Filho ldquoA Viagem da Volta reelaboraccedilatildeo cultural e horizonte

poliacutetico dos povos indiacutegenas do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1994) 132 Este termo eacute utilizado no segundo relatoacuterio antropoloacutegico para destacar a importacircncia da presenccedila de deslocamentos na trajetoacuteria histoacuterica do grupo 133 As ldquoentidades sem fins lucrativosrdquo podem solicitar doaccedilotildees de mercadorias apreendidas pela Poliacutecia

Federal devendo constar na solicitaccedilatildeo entre outros requisitos formais a justificativa e a finalidade do pedido 134 Dentre as entidades que atualmente recebem a doaccedilatildeo de alimentos conforme o contrato que a

comunidade quilombola eacute responsaacutevel destaca-se como mencionado no primeiro capiacutetulo treze tekohas (aldeias avaacute-guaranis) de Guaiacutera e do municiacutepio vizinho Terra Roxa Esta parceria com os grupos indiacutegenas eacute fruto da articulaccedilatildeo direta entre Adir e os caciques

160

Com o recebimento da doaccedilatildeo de uma camionete ldquosilveradordquo com trecircs

lugares na frente e uma carroceria ampla e fechada a execuccedilatildeo do PAA na

comunidade foi viabilizada em termos concretos com condiccedilotildees para o transporte da

produccedilatildeo agriacutecola o que era uma demanda muito urgente para as famiacutelias

quilombolas Esta poliacutetica puacuteblica de seguranccedila alimentar se constituiu como uma

importante fonte de renda na comunidade nos uacuteltimos anos mesmo tendo em vista a

demora na realizaccedilatildeo dos pagamentos por parte do governo que natildeo lhes garante

uma renda mensal135 Neste contexto os programas de assistecircncia e previdecircncia

social como aposentadoria e Bolsa Famiacutelia136 proporcionam uma complementaccedilatildeo

econocircmica considerada pelos quilombolas como muito necessaacuteria Os quilombolas

realizam tambeacutem a comercializaccedilatildeo de seus produtos como verduras legumes

raiacutezes frutos temperos animais de pequeno porte e tambeacutem milho e soja

Atualmente trecircs pessoas trabalham fora da comunidade a esposa e a enteada de

Adir na lanchonete do posto de gasolina localizado na rodovia em frente agrave entrada

para o bairro rural Maracaju dos Gauacutechos e Luciano ndash casado com Cleusimar filha

de Zeacute Maria ndash que tambeacutem trabalha de auxiliar de limpeza no mesmo posto

O territoacuterio atualmente de 85 alqueires eacute considerado por eles como

insuficiente para as sete famiacutelias que tiram seu sustento da produccedilatildeo agriacutecola

Segundo Adir o ideal seria cinco alqueires por famiacutelia no miacutenimo Uma das principais

demandas somada agrave necessidade de ampliaccedilatildeo do territoacuterio eacute o acesso a poliacuteticas

puacuteblicas que possibilitem uma fonte de renda gerada na proacutepria comunidade

Pleiteiam assim a construccedilatildeo de um barracatildeo onde sonham com a instalaccedilatildeo por

exemplo de uma cozinha comunitaacuteria137 Deve-se levar em conta ainda que a

135 O limite anual do valor de repasse do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social oacutergatildeo responsaacutevel pelo

PAA na modalidade de ldquoDoaccedilatildeo Simultacircneardquo ndash acessada pela comunidade quilombola ndash eacute de ateacute R$ 65 mil por ano por agricultor 136 O ldquoBolsa Famiacuteliardquo segundo a paacutegina virtual do Governo Federal ldquoeacute um programa de transferecircncia

direta de renda direcionado agraves famiacutelias em situaccedilatildeo de pobreza e extrema pobreza em todo o Paiacutes de modo que consigam superar a situaccedilatildeo de vulnerabilidade e pobrezardquo Disponiacutevel em httpwwwcaixagovbrprogramas-sociaisbolsa-familiaPaginas Acesso em 041115 137 A solicitaccedilatildeo da comunidade de que a prefeitura construa este barracatildeo foi questionada pela

administraccedilatildeo municipal em decorrecircncia de a aacuterea da comunidade consistir em uma propriedade privada e natildeo ter sido realizada ainda a titulaccedilatildeo quilombola conforme me relatou Adir No entanto de acordo com a Portaria Interministerial (Ministeacuterio do Planejamento Orccedilamento e Gestatildeo Ministeacuterio da Fazenda e Controladoria Geral da Uniatildeo) nordm 507 de 2011 artigo 39 sect2ordm inciso III aliacutenea ldquoardquo o municiacutepio tem respaldo para a construccedilatildeo de uma benfeitoria ldquopor interesse puacuteblico ou socialrdquo na comunidade que eacute certificada pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares e que estaacute em processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo INCRA A referida portaria estaacute disponiacutevel em httpswwwconveniosgovbrportalarquivos1_Portaria_Interministerial_507_24_11_2011_e_alteracoes_Dezembro_de_2013pdf Acesso em 091015

161

situaccedilatildeo econocircmica da comunidade se agravou muito apoacutes o conflito com os vizinhos

em decorrecircncia do qual natildeo satildeo mais contratados para trabalharem nas propriedades

do entorno atividade que haacute muitos anos realizavam na regiatildeo

Com esta breve descriccedilatildeo das dificuldades de geraccedilatildeo de renda das famiacutelias

quilombolas eacute possiacutevel compreender as limitaccedilotildees que encontram para se

deslocarem mesmo que seja para visitas a parentes que moram proacuteximos De acordo

com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido pela empresa Terra Ambiental

() satildeo no miacutenimo 43 indiviacuteduos que possuem relaccedilatildeo de parentesco direto com os atuais moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo Manoel Ciriaco dos Santos e vivem em cidades localizadas em um raio de no maacuteximo 200 quilocircmetros sendo que desses 35 vivem em um raio inferior a 100 quilocircmetros da comunidade Segue uma relaccedilatildeo dos municiacutepios e nuacutemero de indiviacuteduos cujos viacutenculos de parentesco foram identificados

(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 751[p 58])

Dentro da rede ampliada de parentesco138 dos quilombolas de GuaiacuteraPR um

local muito significativo e mais afastado em relaccedilatildeo agrave comunidade eacute a regiatildeo de

Presidente PrudenteSP por onde as famiacutelias que saiacuteram de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG passaram tendo vivido no municiacutepio de CaiabuSP entre as deacutecadas de

19501960 antes de se fixarem em GuaiacuteraPR e para onde retornaram os irmatildeos mais

velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) O municiacutepio de

Presidente PrudenteSP fica a 448 km de Guaiacutera e o trajeto demanda um investimento

de em meacutedia duzentos reais para passagens rodoviaacuterias de ida e volta por pessoa

Se este trajeto eacute de acesso difiacutecil para os quilombolas de GuaiacuteraPR o que

falar entatildeo do anseio reforccedilado pelos questionamentos colocados pelo conturbado

processo de titulaccedilatildeo em tracircmite no INCRA de ir ateacute Minas Gerais para que

138 Quando nos referimos a parentesco natildeo estamos falando apenas do parentesco genealoacutegico mas

em um sentido mais amplo que inclui relaccedilotildees por exemplo de compadrio (ARANTES 1975)

Municiacutepio Nordm Indiviacuteduos

Terra Roxa- PR 22

Assis Chateaubriand- PR 6

Satildeo Jorge do Patrociacutenio - PR 4

Guaraniaccedilu ndash PR 3

Catanduvas- PR 3

Guaiacutera- PR 2

Eldorado ndash MS 2

Cascavel- PR 1

162

pudessem conhecer suas raiacutezes e reencontrar seus parentes mineiros Somando

apenas os valores das passagens rodoviaacuterias para poder ir e voltar de GuaiacuteraPR a

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de ocircnibus percorrendo em meacutedia 3354 quilocircmetros por

terra (duas vezes o percurso de 1677 km139) o custo gira em torno atualmente de

setecentos reais por pessoa

Assim a contradiccedilatildeo apontada acima entre os deslocamentos que marcaram

a trajetoacuteria do grupo nos uacuteltimos sessenta anos e a condiccedilatildeo de difiacutecil mobilidade das

geraccedilotildees atuais tem uma chave de interpretaccedilatildeo comum a posiccedilatildeo socioeconocircmica

perifeacuterica do grupo A mesma condiccedilatildeo que os imobiliza por natildeo disporem atualmente

de recursos financeiros que permitam a realizaccedilatildeo de viagens eacute parte significativa

das causas que provocaram os movimentos de deslocamento das famiacutelias em busca

de melhores condiccedilotildees de vida no passado

Importante pontuar que se os deslocamentos que marcam a trajetoacuteria histoacuterica

da famiacutelia criaram por um lado uma situaccedilatildeo de inviabilidade do reencontro entre

parentes ndash jaacute que os que foram para GuaiacuteraPR perderam nas uacuteltimas deacutecadas

qualquer contato com os parentes que se mantiveram em MG ndash por outro lado tal

interrupccedilatildeo do contato natildeo significou uma ruptura de viacutenculos (GALIZONI 2002)140

Com base nos encontros proporcionados pelas duas viagens de retorno para Serro e

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG realizadas no acircmbito desta pesquisa em marccedilo e em

junho de 2015 foi possiacutevel perceber que houve uma atualizaccedilatildeo significativa dos laccedilos

e viacutenculos afetivos que estavam antes latentes

Natildeo soacute os viacutenculos foram mantidos mas como analisado pelo segundo

relatoacuterio antropoloacutegico houve um processo de permanecircncia de referecircncias culturais e

de memoacuterias comuns que continuaram mesmo agrave distacircncia e sem contatos

conectando os quilombolas de Guaiacutera a seus parentes em Minas Gerais Neste

sentido importante mencionar a contribuiccedilatildeo de Garcia Jr (1989) em sua pesquisa

com migrantes que saiacuteam da Paraiacuteba para o Sul na qual reflete sobre como tais

deslocamentos natildeo implicaram no abandono de suas formas de organizaccedilatildeo social

139 Este caacutelculo foi feito com base no trajeto que pode ser percorrido de ocircnibus conforme experiecircncia

da viagem realizada em marccedilo de 2015 de GuaiacuteraPR para UmuaramaPR de laacute para Presidente PrudenteSP ateacute Belo HorizonteMG Na capital mineira toma-se um ocircnibus para SerroMG e de onde

enfim chega-se em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG 140 Em seu estudo na regiatildeo do Alto Vale do Jequitinhonha muito proacutexima a regiatildeo aqui em questatildeo

Galizoni aponta como a migraccedilatildeo eacute um processo familiar e soacute muito raramente ocorre as pessoas que saiacuteram de sua regiatildeo de origem ldquorompem de vez com a famiacuteliardquo (GALIZONI 2002 p 569)

163

anteriores mas ao contraacuterio na sua manutenccedilatildeo com o objetivo de retorno para suas

aacutereas de origem no Nordeste141

No acircmbito deste processo de manutenccedilatildeo de viacutenculos ndash e do desejo de uma

reconexatildeo natildeo soacute simboacutelica e mnemocircnica mas tambeacutem fiacutesica com este lugar de

origem e com os parentes que laacute ficaram ndash a possibilidade de organizar a viagem de

volta que percorresse a trajetoacuteria de deslocamentos das famiacutelias surgiu das minhas

conversas com Adir durante o trabalho de campo em GuaiacuteraPR Ele havia

comentado comigo em vaacuterias ocasiotildees como gostaria de ter tido apoio por parte do

INCRA para acompanhar Cassius na pesquisa realizada em Minas Gerais durante a

elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico

Esta busca pelo contato com pessoas que compartilham a mesma

ldquocomunidade de lembranccedilardquo (HALBWACHS 2003) protagonizada por Adir aponta

para dois aspectos complementares do fenocircmeno eacutetnico a ldquoluta por reconhecimentordquo

e a ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo142 (ARRUTI 2006 p 44) No que tange agrave noccedilatildeo de

ldquoluta por reconhecimentordquo o que estaacute em questatildeo eacute a proacutepria autoidentificaccedilatildeo do

grupo como quilombola ldquopor meio da experenciaccedilatildeo comum de um desrespeito tiacutepico

e de sua traduccedilatildeo em uma identidade coletivardquo (ARRUTI 2006) As viagens de retorno

a Minas Gerais trouxeram agrave tona a compreensatildeo de que o caraacuteter coletivo de

desrespeito agraves famiacutelias que marca a reivindicaccedilatildeo do grupo em GuaiacuteraPR como

coletividade especiacutefica reflete-se na situaccedilatildeo de separaccedilatildeo e de dispersatildeo dos

parentes Trata-se de um sofrimento gerado pela impossibilidade de manutenccedilatildeo das

famiacutelias na regiatildeo de origem e de reproduccedilatildeo do modo de vida camponecircs enquanto

populaccedilatildeo negra que natildeo teve seu processo de cidadania garantido de forma plena

Esta ldquocomunidade de lembranccedilardquo abrange portanto uma noccedilatildeo mais ampla de

pertencimento por parte dos membros da comunidade quilombola de Guaiacutera no qual

141 Este tambeacutem eacute o caso do processo de mobilidade do povo indiacutegena Pankararu de Pernambuco

analisado por Arruti no qual grupos de famiacutelias transferiram seu local de morada por tempo indeterminado em especial para a cidade de Satildeo Paulo na favela Real Parque no bairro do Morumbi ldquoonde se desenha uma espeacutecie de reterritorializaccedilatildeo Pankararurdquo Neste caso a mediaccedilatildeo entre territoacuterio e identidade fruto da abstraccedilatildeo dos ldquodireitosrdquo gerada na modulaccedilatildeo com o Estado produz o sentido de um ldquoterritoacuterio imaterialrdquo como um espaccedilo poliacutetico e simboacutelico para os indiacutegenas Se o territoacuterio eacute acionado como referecircncia fundamental natildeo eacute percebido no entanto como moldura e limitaccedilatildeo de modo que pode se abrir ldquopara o vasto exterior da identidade Pankararu onde a dicotomia do ser natildeo ser tem um caraacuteter mais pendular que geomeacutetricordquo (ARRUTI 1996 p 166-159) 142 A noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo eacute retomada a partir das discussotildees de Taylor e de ldquoluta por reconhecimentordquo a partir de Honneth (ARRUTI 2006)

164

estatildeo englobados o local de origem de Manoel Ciriaco e os demais locais de dispersatildeo

do grupo familiar nos processos de deslocamento ao longo das uacuteltimas deacutecadas

O comentaacuterio de Adir em uma conversa com as duas senhoras que

encontramos morando em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash D Regina (77) e D Zulmira

(73) cunhadas de Seu Joatildeo Loriano (71) filho de Manoel Ciriaco ndash eacute muito enfaacutetico

a respeito desta forma de compreensatildeo da histoacuteria familiar Tal conversa ocorreu no

final da primeira viagem realizada em marccedilo de 2015 durante a gravaccedilatildeo de um viacutedeo

no qual Adir conta para elas o que tinha ocorrido em nosso percurso e comenta sobre

o significado da viagem para ele e para a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos

Esse lugar onde a gente mora hoje eacute uma comunidade reconhecida pela Fundaccedilatildeo Cultural dos Palmares Uma comunidade que hoje eu represento que natildeo eacute tatildeo grande porque as pessoas estatildeo espalhadas como se fosse aqui tambeacutem espalhados pra todo canto Por que no passado essas pessoas natildeo teve oportunidade de ficar junto e de viver junto e essa lembranccedila ficasse de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo mas todo mundo tivesse o seu espaccedilo Porque se a gente falar na eacutepoca da escravidatildeo noacutes somos de uma eacutepoca da escravidatildeo uma escravidatildeo passada onde a gente natildeo adquiriu nada nem o nosso nome E isso tudo passava na minha cabeccedila e eu lembrava e falava assim ldquoMeu Deusrdquo

O desejo dos quilombolas de GuaiacuteraPR de encontrarem seus parentes em

sua regiatildeo de origem e de poderem ldquovoltar a paacutegina da nossa vida do comeccedilordquo como

na expressatildeo utilizada por Adir que serve de tiacutetulo a este capiacutetulo inscreve-se em

uma dinacircmica dupla que abrange uma dimensatildeo poliacutetica vinculada ao processo de

regularizaccedilatildeo territorial da comunidade e um significado familiar e afetivo muito

intenso A mobilizaccedilatildeo de Adir em torno da realizaccedilatildeo desta viagem inicia-se pelo

anseio de subsidiar a consolidaccedilatildeo da imagem do grupo na esfera puacuteblica ndash o que

pode ser compreendido por meio da noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo (ARRUTI

2006) ndash jaacute que tal imagem da comunidade foi abertamente questionada pelo primeiro

relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo durante o processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo

INCRA ainda em tracircmite

Na leitura de meus interlocutores(as) sobre tais demandas externas de

legitimaccedilatildeo entendiam que se o segundo relatoacuterio antropoloacutegico havia demonstrado

a continuidade histoacuterica entre a comunidade de GuaiacuteraPR e as comunidades

quilombolas da regiatildeo mineira de um modo mais amplo apenas o retorno dos

proacuteprios quilombolas agrave regiatildeo ndash percorrendo a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia

ndash poderia proporcionar-lhes mais referecircncias sobre a histoacuteria de seus antepassados

165

assim como a retomada das relaccedilotildees com os parentes apoacutes anos sem contato Os

laccedilos da comunidade em GuaiacuteraPR com este passado ldquoprecisam ser produzidos hoje

atraveacutes da seleccedilatildeo e recriaccedilatildeo de elementos da memoacuteriardquo (ARRUTI 1997 p 23)

recriaccedilatildeo esta que passa pela ideia de ldquoorigemrdquo143 e de ldquoretornordquo

Em sua anaacutelise sobre o processo de emergecircncia identitaacuteria dos povos

indiacutegenas no Nordeste144 Oliveira Filho lanccedilou matildeo da metaacutefora da ldquoviagem da voltardquo

que eacute parte de uma poesia de Torquato Neto sobre a narrativa de um migrante

nordestino que deseja retornar agrave terra de origem ldquodesde que saiacute de casa trouxe a

viagem da volta gravada na minha matildeo enterrada no umbigo dentro e fora assim

comigo minha proacutepria condiccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) Com o uso desta

expressatildeo Oliveira Filho destaca as dimensotildees constitutivas da etnicidade no que

tange agrave trajetoacuteria histoacuterica do grupo social que natildeo anula mas ateacute mesmo reforccedila o

sentimento de referecircncia agrave origem (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)

Os quilombolas de GuaiacuteraPR assim como os povos indiacutegenas no

Nordeste145 natildeo se encaixam nas representaccedilotildees difusas da identidade que

reivindicam Tendo em vista esta descontinuidade gerada em grande parte pela

condiccedilatildeo diaspoacuterica da trajetoacuteria coletiva de reterritorializaccedilatildeo destas famiacutelias

quilombolas a necessidade que sentiram de buscar referecircncias histoacutericas para

dialogar com uma demanda de ldquoorigemrdquo somada a um desejo interno ao grupo deram

para a expressatildeo da ldquoviagem da voltardquo um sentido natildeo soacute metafoacuterico de etnogecircnese

como tambeacutem um sentido literal de regresso No contexto conturbado do

procedimento de regularizaccedilatildeo do grupo em tracircmite no INCRA a volta agrave regiatildeo de

origem se tornou necessaacuteria para o reconhecimento de uma identidade negra singular

que os legitimasse como quilombolas Este processo de retorno se iniciou com a

143 Este reinvestimento nas memoacuterias estava tambeacutem referenciado na busca por ldquotraccedilos culturais que

sirvam como os ldquosinais externosrdquo reconhecidos pelos mediadores e o oacutergatildeo que tem a autoridade de nomeaccedilatildeordquo (ARRUTI 1997 p 23) A identificaccedilatildeo destes ldquosinais externosrdquo da etnicidade remontam ao acionamento da ideia de ldquoorigemrdquo que estaacute na base do conceito de ldquoremanescentesrdquo utilizado pela Constituiccedilatildeo Federal para reconhecer direitos territoriais aos ldquoremanescentes das comunidades de quilombosrdquo no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) 144 O conceito de ldquoremanescenterdquo foi utilizado para se referir aos ldquoremanescentes indiacutegenasrdquo na regiatildeo

Nordeste ndash os quais passaram por um processo de retomada de tradiccedilotildees nas uacuteltimas deacutecadas e que satildeo percebidos como tendo pouca distintividade em relaccedilatildeo aos regionais (ARRUTI 1997) 145 Esta comparaccedilatildeo entre quilombolas e povos indiacutegenas no Nordeste estaacute relacionada agrave dificuldade

de ldquoprecisar os contextos sociohistoacutericos em que tais grupos se constituiacuteram e se consolidaram como ldquounidades discretasrdquo portadoras de um forte referencial eacutetnico e assim diferenciadas do contexto social mais amplordquo (BRASILEIRO SAMPAIO 2002 p 83)

166

elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico e se ampliou por meio das viagens

realizadas em marccedilo e junho de 2015 no acircmbito desta pesquisa de mestrado

Diante do exposto acima interessante ressaltar que estas viagens para Santo

Antocircnio do Itambeacute em 2015 foram precedidas por outras viagens de retorno que

segundo meus interlocutores(as) ocorreram na deacutecada de 1980 Eva filha de Geraldo

dos Santos que tambeacutem adquiriu um lote vizinho ao de Manoel relatou como era difiacutecil

juntar dinheiro para visitar os parentes em Minas e manter contato agrave distacircncia Contou-

me como sua matildee Antocircnia Domingues dos Santos que saiu de Minas Gerais para

morar em GuaiacuteraPR ficou mais de dezesseis anos sem ver a matildee dela Alexandrina

Moreira da Silva que permaneceu na regiatildeo mineira

Dandara E nesta eacutepoca mandava carta assim ou nem carta Eva Mandava nada natildeo sabia mais o endereccedilo deles natildeo sabia mais nada Dezesseis anos daiacute foi saber o endereccedilo Soacute uma vez depois que casou depois que ela veio aqui para o Paranaacute soacute essa vez ela foi na casa da matildee dela Dandara Ela contou como que foi Eva Ela falou que laacute era triste menina Laacute tava triste Falou que era tudo manual casinha tudo ruim as casinhas deles trabalho demais sofria demais era muito sofrido minha matildee falava que a terra era fraca lavoura natildeo saiacutea direito e quando ela falava pro pai e a matildee dela vir pra caacute (GuaiacuteraPR) meu vocirc falava que natildeo vinha pra caacute natildeo que ele natildeo ia largar a terra dele laacute natildeo Minha matildee falava ldquooh meu fio se ocecirc for laacute pro Paranaacute se ocecirc saber o tamanho das pranta que noacutes pranta o tamanho que fica a pranta aqui as pranta natildeo sai da terra baixinha assimrdquo ldquoNatildeo eu vou morrer aqui memo daqui eu natildeo saiordquo ele falou pra matildee A matildee falou que laacute era triste Dandara E ela viajou sozinha essa vez Eva Natildeo foi ela meu pai e meu cunhado o irmatildeo do Adir o Antocircnio Meu pai e o finado Antocircnio largou matildee laacute na casa da matildee dela Minha irmatilde tambeacutem foi irmatilde minha mais velha Iracema e foi a Cenira que era a caccedilula Cenira tinha acho que um ano e trecircs mecircs Daiacute meu pai largou matildee laacute e eles foi laacute na titia na Bahia Dandara Tem parente na Bahia tambeacutem Eva Natildeo eles foi laacute numa titia laacute neacute Dandara Quem que eacute titia Eva Assim eacute que benzia neacute titia matildee de santo noacutes falava titia Eles foi na casa dela pegou endereccedilo com a famiacutelia deles laacute Meu pai foi e meu cunhado o Antocircnio irmatildeo do Adir mais velho Dandara E seu pai jaacute tinha mais contato com a Umbanda

167

Eva Sim ele trabalhava tambeacutem em Umbanda O Antocircnio tambeacutem meu pai minha matildee tambeacutem trabalhava Tudo trabalhava na Umbanda

Em 1981 Antocircnia e seu marido Geraldo voltaram a Minas Gerais para

reverem seus parentes e foram acompanhados por Antocircnio filho de Manoel Ciriaco

Se em Guaiacutera passavam dificuldades quando se trata de Minas Gerais as memoacuterias

reforccedilam como a sobrevivecircncia era ainda mais complicada No entanto mesmo com

tamanha adversidade o avocirc de Eva Sebastiatildeo preferiu permanecer em Minas

Gerais reforccedilando a importacircncia do viacutenculo com seu lugar de origem No relato sobre

este retorno a Minas Gerais Eva destacou a viagem de Geraldo e Antocircnio que

aproveitaram a oportunidade e foram para a Bahia onde estaacute localizado o terreiro de

Umbanda em que Antocircnio fez sua iniciaccedilatildeo ritual

Nesta mesma viagem realizada em 1981 Antocircnio conseguiu encontrar seu

irmatildeo Joatildeo Loriano filho do primeiro casamento de seu pai que o havia deixado em

Minas aos cuidados da avoacute Izidora como mencionamos no primeiro capiacutetulo Segundo

nos contou Joatildeo Loriano146 Antocircnio comprou ateacute roupa para ele poder viajar pois ele

passava muita dificuldade na regiatildeo de origem de seu pai Quando chegou no Paranaacute

ele se considerou rico pois em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG soacute comiam coisa do

mato como tatu lagartixa e ateacute garrincha (passarinho bem pequeno) que eles

matavam e davam para os filhos comerem com purecirc de farinha Quando Joatildeo Loriano

encontrou o pai contou que sentiu tanta alegria que ateacute o pegou para danccedilar Entatildeo

o pai falou ldquosai pra laacute meu filhordquo mas Joatildeo se justificou dizendo que era de tanto amor

que sentia pelo pai que natildeo via haacute tantos anos Os demais irmatildeos contaram como o

pai tambeacutem estava feliz que fez uma festa para receber o filho

Depois que trouxe o irmatildeo Joatildeo Loriano Antocircnio voltou no ano seguinte para

Minas Gerais para buscar a mulher de Seu Joatildeo Maria das Dores e seus filhos que

passaram a morar em Guaiacutera no siacutetio de Manoel com os demais parentes Nesta

mesma viagem Antocircnio trouxe para o Paranaacute seu primo Aniacutesio filho de seu tio

paterno Sebastiatildeo Vicente que era irmatildeo de seu pai Em 1983 Antocircnio jaacute com a

experiecircncia adquirida nas viagens anteriores eacute quem leva Maria das Dores para

visitar sua famiacutelia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Quando retornam trazem com

146 Joatildeo Loriano atualmente mora em Presidente Prudente Esta fala foi registrada jaacute durante a viagem

passando por Presidente Prudente ateacute Minas Gerais em marccedilo de 2015

168

eles a esposa de seu primo Aniacutesio Ceciacutelia e seu filhos pois Aniacutesio morava em

GuaiacuteraPR desde 1982

No mesmo ano 1983 Antocircnio volta novamente agrave regiatildeo mineira acompanhado

agora de Joaquim com o intuito de reivindicarem a heranccedila e venderem a parte do

siacutetio de Izidora que cabia a seu pai Manoel e tambeacutem a heranccedila da matildee de Geraldo

Altina Segundo Joaquim relatou as parcelas hereditaacuterias seriam de respectivamente

onze e oito alqueires No entanto quando chegaram no siacutetio de Izidora relatam que

foram recebidos com desconfianccedila ldquoos homensrdquo (parentes) estavam armados e

falaram para eles que soacute passariam o documento da terra para Olegaacuterio o filho mais

velho de Manoel que havia morado laacute A regra local para transmissatildeo de heranccedila

parecia atribuir naquela eacutepoca apenas aos sujeitos que haviam morado no local o

direito de reivindica-la como no caso de Olegaacuterio o que natildeo se estendia aos seus

descendentes ou parentes colaterais como os irmatildeos Antocircnio e Joaquim

Por fim a uacuteltima visita realizada na deacutecada de 1980 ocorreu entre 1985 e 1986

quando Antocircnio acompanhou Ceciacutelia com os filhos de volta a Santo Antocircnio do Itambeacute

pois ela natildeo havia se adaptado agrave regiatildeo de GuaiacuteraPR e natildeo estava vivendo bem junto

a seu marido Aniacutesio segundo me contou Eva A famiacutelia de Ceciacutelia importante

destacar foi a uacutenica dentre os que se mudaram para o Paranaacute que voltou a viver em

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A realizaccedilatildeo destas viagens em um periacuteodo de cinco anos aponta para como

na deacutecada de 1980 a condiccedilatildeo econocircmica da comunidade estava melhor147 As

viagens no entanto depois se interrompem por deacutecadas Com o falecimento de seu

Manoel a comunidade fica em uma situaccedilatildeo muito delicada financeiramente com as

diacutevidas deixadas por ele aleacutem da perda da referecircncia daquele que era o administrador

da economia familiar A mecanizaccedilatildeo da agricultura tambeacutem tem um impacto direto

sobre as dinacircmicas de trabalho da comunidade como jaacute destacado Atualmente

ressaltam como a necessidade de ldquopagar contasrdquo em contraste com um periacuteodo

anterior de maior autossuficiecircncia impactam diretamente sobre a renda familiar

32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS

147 Na eacutepoca produziam e comercializavam o algodatildeo plantado no proacuteprio siacutetio e em aacutereas arrendadas

possuiacuteam um mangueiratildeo de porco e Manoel adquirira um trator para ldquogradearrdquo (arar e sulcar) a terra

169

As anaacutelises de Oliveira Filho indicadas acima enfocam a relaccedilatildeo entre

pertencimento eacutetnico e territorialidade dando um peso central agrave dimensatildeo poliacutetica da

organizaccedilatildeo dos grupos sociais no acircmbito dos paracircmetros colocados pelo Estado e

do processo de territorializaccedilatildeo148 Se as reflexotildees deste autor nos ajudam a pensar

(a) o processo de emergecircncia identitaacuteria (b) a importacircncia atribuiacuteda ao viacutenculo com a

regiatildeo de origem e (c) a dinacircmica que a relaccedilatildeo com o Estado desempenhou nesta

organizaccedilatildeo poliacutetica do grupo a partir da reivindicaccedilatildeo territorial em GuaiacuteraPR

importante pontuar por outro lado que ndash com a realizaccedilatildeo das viagens de volta em

marccedilo e junho de 2015 da qual participaram cinco membros da famiacutelia149 ndash a ecircnfase

dada pelos quilombolas para a estruturaccedilatildeo do pertencimento identitaacuterio pareceu estar

muito mais centrada nas dinacircmicas do parentesco do que na noccedilatildeo de territorialidade

A relaccedilatildeo entre a pessoa e o grupo eacutetnico ndash que implica na sua possibilidade

de autorreconhecimento como quilombola ndash foi acionada por meio da mediaccedilatildeo das

relaccedilotildees de parentesco as quais saiacuteram fortalecidas neste percurso que conectou

parte significativa da rede expandida de famiacutelias Este enfoque no parentesco natildeo

minimiza no entanto a importacircncia da reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial em

GuaiacuteraPR que estaacute baseada inclusive como um dos principais argumentos na

possibilidade do retorno de parentes que estatildeo atualmente fora do territoacuterio e que

pelo viacutenculo familiar podem se autorreconhecer como quilombolas

Esta possibilidade foi estendida a parentes que encontraram na primeira

viagem e que sempre viveram na regiatildeo mineira Este convite para viver no territoacuterio

em GuaiacuteraPR foi apresentado por exemplo a D Ana Raimunda (87) irmatilde de Manoel

Ciriaco que encontramos morando no SerroMG e a Seu Daniel (80) primo de

primeiro grau de Ana Rodrigues (esposa de Manoel) que mora em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG Seu Daniel ficou feliz com o convite pois mora com a filha o genro e o

neto em condiccedilotildees muito precaacuterias mas precisaria de suporte para que pudesse

148 Com o conceito de ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho

afirma buscar se afastar da ideia de qualidade imanente consubstanciada na noccedilatildeo de territorialidade e deste modo critica as premissas de continuidade e de imemorialidade atribuiacutedas ao territoacuterio indiacutegena Destaca dentre os seus argumentos a frequecircncia com a qual os povos indiacutegenas passaram por processos de reterritorializaccedilatildeo no acircmbito do proacuteprio processo de colonizaccedilatildeo e defende que a avaliaccedilatildeo para a criaccedilatildeo de uma terra indiacutegena apresenta uma caracteriacutestica conjuntural (OLIVEIRA FILHO 1994ordf p 134) 149 Na primeira viagem para Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG realizada em marccedilo de 2015 eu e

Cassius acompanhamos Adir e Geralda quilombolas de Guaiacutera aleacutem de Seu Joatildeo Loriano que mora atualmente em Presidente PrudenteSP Na segunda viagem em junho de 2015 eu e Cassius acompanhamos D Jovelina e D Maria das Dores que moram atualmente em Presidente PrudenteSP

170

realizar essa mudanccedila Pareceu-me que neste caso a possibilidade ficou no ar D

Ana como veremos no proacuteximo toacutepico em junho de 2015 foi morar com D Jovelina

em Presidente PrudenteSP a partir da viagem que fizemos para buscaacute-la em

SerroMG

Para que fosse possiacutevel realizar a primeira viagem em marccedilo de 2015 foi

fundamental o contato que eu jaacute possuiacutea com Cassius o historiador que desenvolveu

a pesquisa na regiatildeo durante a produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Eu o

conheci quando trabalhava como assessora juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico e ele

compunha o Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) equipe que realizou o

levantamento das comunidades quilombolas no Paranaacute no periacuteodo de 2005-2010

Atualmente Cassius estaacute cursando doutorado em Ciecircncias Sociais na UNICAMP e

pesquisa justamente o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco

quilombola Um dos processos que passou a analisar em sua pesquisa de doutorado

com a realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais foi o da comunidade quilombola Manoel

Ciriaco dos Santos

Propus para Cassius que organizaacutessemos juntos esta viagem e buscaacutessemos

recursos com as respectivas universidades agraves quais estamos vinculados UFPR e

UNICAMP para financiar a nossa ida em marccedilo de 2015 bem como de mais trecircs

pessoas Adir e Geralda do grupo que mora em GuaiacuteraPR e Joatildeo Loriano que mora

atualmente em Presidente PrudenteSP A importacircncia da ida de Seu Joatildeo Loriano foi

defendida por Adir e Geralda tendo em vista que ele foi o uacutenico filho de Manoel Ciriaco

que ficou em MG ateacute 1981 ano em que se mudou para GuaiacuteraPR Em 1993 Joatildeo

Loriano Olegaacuterio e Eurides se mudaram de GuaiacuteraPR para Presidente PrudenteSP

onde a irmatilde Jovelina jaacute morava desde 1986 Deste modo quando pensamos nosso

trajeto ateacute MG a proposta de Adir e de Geralda que nunca tinham ido ateacute laacute foi que

pudeacutessemos passar por Presidente PrudenteSP para que eles conversassem com

estes irmatildeos mais velhos com o objetivo de buscar mais informaccedilotildees sobre as

memoacuterias mineiras e sobre a histoacuteria da famiacutelia para subsidiar a pesquisa na regiatildeo

Ademais propuseram que Joatildeo Loriano pudesse continuar o caminho ateacute MG

conosco e ser uma espeacutecie de guia para a nossa viagem

A uacuteltima vez que Adir tinha conseguido visitar os parentes em Presidente

PrudenteSP havia sido antes da comunidade de GuaiacuteraPR ser reconhecida como

quilombola haacute nove anos e Geralda natildeo ia a Presidente Prudente haacute vinte anos

171

Deste modo percebe-se que ateacute com os irmatildeos que estatildeo no estado de Satildeo Paulo o

grupo de Guaiacutera tem dificuldade de manter contato presencial mas manteacutem contatos

frequentes por meio de telefone celular Adir comentou que estava sendo muito

oportuna esta visita pois ainda natildeo tinha tido condiccedilotildees de explicar para seus irmatildeos

sobre o momento atual do tracircmite do procedimento do INCRA que em breve realizaraacute

o cadastramento das famiacutelias que compotildee a comunidade quilombola segundo

indicaccedilatildeo a ser feita pelo proacuteprio grupo A viagem tambeacutem proporcionou uma

retomada de memoacuterias e de trocas de experiecircncias que em outras circunstacircncias

poderiam natildeo ser acionadas

Outro ponto importante na organizaccedilatildeo da nossa viagem eacute que a primeira ida

de Cassius agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de origem de Manoel Ciriaco em

2012 viabilizou o contato com os professores do curso de direito da PUC-Serro

(Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica) os quais atuam com estes grupos e se

disponibilizaram a nos dar o apoio logiacutestico durante a nossa estadia Fomos

convidados em contrapartida a fazer parte de um evento realizado na universidade

com o seguinte tema ldquoSeminaacuterio de Introduccedilatildeo aos Direitos Eacutetnicos direito e conflitos

em territoacuterios quilombolasrdquo Eu Cassius e Adir participamos como palestrantes em

mesas do evento sendo que os dois trataram especificamente da histoacuteria da

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

Neste subitem meu objetivo seraacute debater dados levantados a partir nesta

primeira viagem realizada entre os dias 28 de fevereiro a 13 de marccedilo de 2015 e no

subitem seguinte em relaccedilatildeo agrave segunda viagem derivada da primeira e realizada

entre os dias 05 e 08 de junho de 2015 A estrateacutegia por mim e por Cassius adotada

foi que os quilombolas fossem os protagonistas em todo o trajeto e que escolhessem

os caminhos a serem acionados tendo por base uma programaccedilatildeo preacutevia

estabelecida em parceria com nossos apoiadores da PUCSerro

321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos

No momento da chegada agrave rodoviaacuteria de Presidente PrudenteSP em um

saacutebado dia 28 de fevereiro Cassius perguntou para Adir como tinha sido a viagem de

GuaiacuteraPR ateacute ali e ele em resposta referiu-se agrave viagem de um modo mais amplo em

seu objetivo de chegar ateacute Minas Gerais

172

A viagem Cassius pra mim foi taacute sendo muito importante primeiro que eu vou rever todos os meus parentes quanto tempo que eu natildeo vejo mais os meus irmatildeos meus sobrinhos primos e segundo eacute aquela viagem para Minas Gerais que ela vai ser uma viagem muito importante para nossa vida principalmente para mim

A possibilidade de atualizaccedilatildeo das relaccedilotildees de parentesco era um dos

objetivos principais da viagem que estava dividida em duas etapas Presidente

PrudenteSP e a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A passagem por Presidente

PrudenteSP como mencionamos acima tinha como objetivo trocar experiecircncias

sobre as memoacuterias do tempo em que os irmatildeos mais velhos viveram em Minas Gerais

e convidar Seu Joatildeo Loriano para nos acompanhar pois ele foi o uacutenico irmatildeo que laacute

ficou morando ateacute os 37 anos Ao nosso convite seu Joatildeo respondeu ldquopode ficar

tranquilos que noacutes vamos rachar no mundo Falou comigo que eacute pra passear meu

filhordquo 150 A histoacuteria de Seu Joatildeo que foi sendo contada e detalhada durante a viagem

eacute central para compreender esta reconexatildeo da famiacutelia que estaacute no Paranaacute e no estado

de Satildeo Paulo com a regiatildeo de origem em Minas Gerais

Manoel Ciriaco antes de se casar com Ana Rodrigues era viuacutevo de Maria

Olinda com quem teve quatro filhos Luiza (que faleceu aos oito anos) Olegaacuterio

Jovelina e Joatildeo Loriano Maria Olinda foi criada pelo Padre Joviano um padre muito

estimado pela populaccedilatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG que o considera santo

Junto com ela mais trecircs irmatildes de criaccedilatildeo moravam na casa do padre ndash Cecilia

Geralda Estrelina e outra irmatilde de quem Seu Joatildeo natildeo se lembrou o nome Esta casa

ficava beirando o rio bem proacuteximo agrave Igreja Matriz Maria Olinda segundo nos contou

Seu Joatildeo e D Jovelina foi achada no mato pelo padre em um dia que ele ia a cavalo

rezar uma missa e quando ouviu um choro de bebecirc foi ver o que era A menina que

teria acabado de nascer havia sido deixada enrolada em uma coberta A pessoa que

a abandonara natildeo teria deixado pistas da trilha por onde passou

Quando Seu Joatildeo tinha um mecircs e sete dias sua matildee faleceu151 tendo ele

ficado aos cuidados de sua avoacute Izidora matildee de Manoel e de sua tia Ana Raimunda

150 Curioso notar que apesar da seriedade do propoacutesito da viagem ela eacute vista por Seu Joatildeo tambeacutem

como uma chance de diversatildeo atraveacutes do movimento o que se expressa na ideia de ldquopassearrdquo 151 Segundo Geralda Maria Olinda teria morrido por ter sido viacutetima de feiticcedilo Geralda contou que ela

falava demais e Maneacute a avisava para ter cuidado Um dia quando ela estava trabalhando serviram para ela aacutegua com uma folha Ela teria achado estranho mas tomou Depois passou um tempo descobriram por meio das entidades espirituais que era feiticcedilo mas jaacute natildeo tinha mais o que fazer para reverter o efeito ldquoEm Minas tem feiticeiro mesmordquo acrescentou Geralda

173

irmatilde de seu pai Seu Joatildeo ficou morando com avoacute Izidora quando Manoel saiu de

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo ao estado de Satildeo Paulo em 1956 pois seu

pai natildeo teria tido coragem de o separar da avoacute Durante um certo periacuteodo Seu Joatildeo

comentou que eles tiveram contato com seu pai uma ou duas vezes por carta mas

quando foram mandar notiacutecia sobre o falecimento de Izidora natildeo sabiam mais seu

endereccedilo

Quando ocorreu o falecimento de sua avoacute Seu Joatildeo foi morar e trabalhar na

fazenda de Zinho Gonccedilalves e como ele frisou foi mais criado na fazenda do que em

casa Ele trabalhava com tropa levando cachaccedila e outros produtos pela regiatildeo Tinha

dia que ele falava para a esposa que natildeo ia levar marmita para ldquolargar o comecirc pra daacute

pros meus meninordquo Ele casou com 16 anos com D Maria das Dores que tinha a

mesma idade Segundo D Maria das Dores nos contou foi o fazendeiro que os ajudou

financeiramente para que pudessem casar e ldquoos vestiu dos peacutes agrave cabeccedilardquo

No Itambeacute Seu Joatildeo era conhecido como ldquoJoatildeo do Rosaacuteriordquo pois quando foi

fazer seu registro em Minas Gerais ndash como seu pai havia levado seu documento ndash ao

lhe perguntarem no cartoacuterio qual era seu sobrenome ele entatildeo respondeu ldquoAh potildee

Joatildeo do Rosaacuterio de qualquer jeitordquo Seu Joatildeo riu quando terminou de nos relatar esta

lembranccedila que fala de sua experiecircncia difiacutecil como rapaz que cresceu oacuterfatildeo da matildee

falecida e do pai do qual natildeo tinha notiacutecias Seu Joatildeo soacute saiu de Santo Antocircnio do

Itambeacute em 1981 quando tinha 37 anos como mencionamos acima Por toda essa

experiecircncia que Seu Joatildeo teve de anos de vida na regiatildeo a sua participaccedilatildeo na

viagem era de importacircncia central

Apesar de jaacute termos algum planejamento anterior boa parte das decisotildees

foram sendo tomadas ao longo do percurso A princiacutepio haviacuteamos pensado em passar

apenas o final de semana em Presidente PrudenteSP e embarcar jaacute na segunda-feira

para Minas Gerais No entanto Adir e Geralda optaram por estender a visita aos

irmatildeos e demais parentes e resolveram ir para SerroMG apenas na quinta-feira agrave

noite Isso tambeacutem porque Seu Joatildeo precisou de uns dias para se liberar e poder nos

acompanhar na viagem Eu e Cassius entatildeo decidimos ir antes na terccedila-feira agrave noite

para organizar junto aos professores da PUCSerro as questotildees relativas ao evento

que foi composto por duas mesas de palestras na sexta-feira agrave noite (0603) e no

saacutebado pela manhatilde (0703)

174

Para compreender a importacircncia atribuiacuteda por Geralda e Adir agrave estadia junto

aos irmatildeos mais velhos que moram em Presidente PrudenteSP deve-se destacar

que eacute a experiecircncia de ter participado do passado familiar em Minas Gerais que

parece ser um criteacuterio de distinccedilatildeo daqueles que satildeo tidos como capazes de fazer a

conexatildeo narrativa da histoacuteria atual do grupo com seu ldquomito de origemrdquo Trata-se ldquodos

depositaacuterios da histoacuteria mais idosos ldquotronco velhordquo lideranccedilas das parentelas

guardiotildees da histoacuteria da comunidaderdquo (MONBELLI BENTO 2006 p 24)152 Com o

processo de autoidentificaccedilatildeo como quilombolas e a reelaboraccedilatildeo da memoacuteria

coletiva os irmatildeos mais velhos ganham status como ldquoguardadores da memoacuteriardquo os

quais passaram a ldquodesempenhar um papel sem precedentes na vida do grupordquo

(ARRUTI 1997 p 23)

Aleacutem deste aspecto da pesquisa e levantamento das histoacuterias da famiacutelia Adir

e Geralda tinham como objetivo mais imediato rever os irmatildeos(atildes) cunhados(as)

sobrinhos(as) primos(as) que vivem atualmente na regiatildeo do municiacutepio paulista Joatildeo

Aparecido irmatildeo caccedilula de Adir e Geralda tambeacutem foi por mim e Cassius apoiado

financeiramente para que pudesse chegar ateacute Presidente PrudenteSP153 onde

atualmente residem sua ex-mulher Kelly e seus dois filhos Joatildeo Vitor (13) e Tauane

(16) A ex-mulher e os filhos de Joatildeo Aparecido moravam em GuaiacuteraPR ateacute 2011

quando Kelly perdeu seu emprego na escola municipal do Maracaju dos Gauacutechos

onde trabalhava com serviccedilo de limpeza e merenda Ela resolveu entatildeo morar em

Presidente PrudenteSP e ficar proacutexima de sua famiacutelia pois acreditava que teria mais

chances de conseguir um emprego jaacute que na comunidade a situaccedilatildeo de conflito com

os vizinhos aleacutem de gerar inseguranccedila para as famiacutelias fez com que as possibilidades

de trabalho diminuiacutessem Na eacutepoca Kelly chamou Joatildeo Aparecido para que a

acompanhasse na mudanccedila mas ele natildeo foi porque entendia que sua permanecircncia

no siacutetio em GuaiacuteraPR era importante para o projeto coletivo de comunidade que ele

conduz junto com os irmatildeos Adir e Joaquim Esta situaccedilatildeo entatildeo acabou gerando a

152 O par de categorias de parentesco ldquotronco velhordquo e ldquopontas de ramardquo presente na etnografia

realizada por Arruti junto aos Pankararu no estado de Pernambuco traduzem a distacircncia entre o grupo indiacutegena e seus antepassados considerados ldquoiacutendios purosrdquo sendo utilizadas para organizar as relaccedilotildees marcadas pela ideia de ldquomisturardquo de modo a criar um ldquofluxo diferencial de forccedila religiosa e legitimidaderdquo no sentido do ldquotronco velhordquo (ARRUTI 1996 p 64) 153 Soacute Joaquim dentre os irmatildeos que moram em GuaiacuteraPR natildeo foi para Presidente PrudenteSP pois algum deles tinha que ldquoficar cuidando de tudo no siacutetiordquo

175

separaccedilatildeo do casal Haacute dois anos Joatildeo Aparecido natildeo ia para Presidente PrudenteSP

e ficou este periacuteodo sem ver os filhos

O fato de dois filhos de Manoel Ciriaco chamarem-se Joatildeo ocorreu em razatildeo

de o pai ter dado ao seu filho caccedilula nascido em 1972 o nome de Joatildeo Aparecido

para lembrar-se do filho Joatildeo Loriano que havia ficado em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG Segundo Adir nesta eacutepoca o pai natildeo tinha mais esperanccedila de encontraacute-

lo depois de dezesseis anos de separaccedilatildeo O reencontro para aliacutevio de Manoel

ocorreu nove anos depois do nascimento de Joatildeo Aparecido em 1981 quando Joatildeo

Loriano passou a viver com a esposa Maria das Dores e os seis filhos na terra do pai

em GuaiacuteraPR

FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP

Em Presidente PrudenteSP Cassius Adir Joatildeo Aparecido Geralda e eu

ficamos hospedados na casa de D Jovelina e Seu Davi Eles moram em um bairro

perifeacuterico do municiacutepio chamado ldquoAna Jacintardquo que fica a mais ou menos uma hora

de distacircncia do centro da cidade Seu Joatildeo Loriano e D Maria das Dores tambeacutem

moram no mesmo bairro assim como alguns filhos destes dois casais com suas

respectivas famiacutelias o que permite uma convivecircncia constante e uma rede de

176

solidariedade entre eles154 Destaca-se que duas das filhas155 de Seu Joatildeo ndash

Aparecida e Dulce ndash satildeo casadas com os filhos gecircmeos de sua irmatilde D Jovelina ndash

Damasio e Damasceno ndash exemplo da ocorrecircncia de casamento entre primos de

primeiro grau

Haviacuteamos chegado em Presidente PrudenteSP no saacutebado No dia seguinte

foi preparado um almoccedilo com churrasco que reuniu parte da famiacutelia que mora proacuteximo

do bairro ldquoAna Jacintardquo para comemorar a visita dos parentes de GuaiacuteraPR

FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina

Neste almoccedilo celebrativo Cassius ensinou Adir a usar uma das trecircs cacircmeras

de viacutedeo que tiacutenhamos agrave disposiccedilatildeo Adir ficou muito animado em poder registrar seu

olhar sobre os momentos da viagem gravando conversas com os parentes paisagens

do caminho etc Durante todo o percurso boa parte das filmagens foram realizadas

por Adir que interpelava e entrevistava as pessoas conforme seus interesses e

154 Eacute possiacutevel perceber a presenccedila de caracteriacutesticas no cotidiano destas famiacutelias que remontam agrave sua

origem no meio rural e a uma trajetoacuteria que os distingue dos demais vizinhos mesmo morando em um bairro de uma grande cidade Por exemplo Seu Joatildeo Damasio e Damasceno filhos de Jovelina acertam com os proprietaacuterios de terrenos baldios do bairro a possibilidade de utilizarem a aacuterea para plantar garantindo em contrapartida a manutenccedilatildeo do terreno 155 Outra informaccedilatildeo relevante eacute que a filha mais velha de Seu Joatildeo Maria de Faacutetima dos Santos estaacute

haacute mais de quinze anos desaparecida e segundo nos informaram teria sumido em Campinas quando para laacute foi com o entatildeo marido Edison e perderam o contato Atualmente a famiacutelia tenta encontraacute-la

177

prioridades Este material tambeacutem eacute aqui analisado como fonte de pesquisa e registro

do trabalho de campo

Adir em mais de uma oportunidade durante a estadia em Presidente

PrudenteSP mostrou para seus parentes que eles fazem parte da luta quilombola da

comunidade em GuaiacuteraPR e reforccedilou como ele estava feliz em nesta viagem ir

buscar a raiz da histoacuteria da famiacutelia Em conversa na varanda da casa de D Jovelina

comentou sobre a trajetoacuteria do ldquopovo negrordquo desde o traacutefico de africanos ateacute a

experiecircncia do Quilombo dos Palmares Concluiu dizendo a seus primos

Vocecirc deve buscar neacute na internet hoje vocecirc consegue muita coisa os quilombos Quilombo de Palmares ver o tanto de negro que entrava no Brasil E o Cassius ele eacute professor pode explicar melhor do que eu e a Dandara tambeacutem que vocecircs estudam e eu natildeo estudo fico dentro da roccedila laacute Mas tudo o que das viagens dos encontros de tudo que eu jaacute vi na vida ateacute hoje estaacute guardado aqui Mais do que eu escrevi do que eu jaacute vi Aiacute que eu penso assim em buscar a histoacuteria do meu passado por isso que eu luto Que eu vou ateacute o fim Se eles natildeo me matar

Adir ressaltava assim a importacircncia de se mobilizarem para ldquomostrar pras

pessoas que noacutes somos negros e que tem que nos respeitarrdquo Identificava a presenccedila

de tal desrespeito por exemplo na falta de acesso ao estudo para a populaccedilatildeo negra

como no caso de Olegaacuterio Seu Joatildeo e D Maria das Dores que natildeo aprenderam a ler

e a escrever Ao mesmo tempo em que Adir afirmava seu intuito de ir ldquoateacute o fimrdquo com

esta busca era a proacutepria viagem que parecia estar lhe proporcionando um

fortalecimento de convicccedilotildees bem como da vontade de continuar a frente deste

processo de mobilizaccedilatildeo Eacute como se esta viagem ateacute Minas Gerais pudesse ser

comparada a uma peregrinaccedilatildeo na qual Adir estava a visitar os lugares ldquosagradosrdquo

da memoacuteria e da experiecircncia familiar e nesta jornada fosse descobrindo quem ele

mesmo eacute (TURNER 2008)

Outro encontro que ocorreu durante nossa estadia em Presidente

PrudenteSP foi com Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel Atualmente a famiacutelia de

Olegaacuterio mora em um lote de oito alqueires que conquistaram haacute catorze anos no

ldquoAssentamento Palurdquo156 Este assentamento fica localizado na zona rural do municiacutepio

de Presidente BernardesSP no distrito de ldquoNova Paacutetriardquo proacuteximo a Presidente

PrudenteSP Olegaacuterio e Valdeniacutecio um de seus filhos que nos relatou esta histoacuteria

156 A ocupaccedilatildeo desta fazenda se deu pelo movimento ldquoBandeira Brancardquo que na eacutepoca tinha conflito

com o ldquoMovimento dos trabalhadores Rurais Sem Terrardquo (MST)

178

revezaram-se durante dois anos no periacuteodo de acampamento para conseguirem o

acesso agrave terra Os outros filhos de Olegaacuterio lhes ajudavam por exemplo com cestas

baacutesicas Segundo Valdeniacutecio quando Olegaacuterio e os filhos vieram para o estado de

Satildeo Paulo em 1993 seu pai continuou trabalhando com produccedilatildeo de farinha com a

qual jaacute lidava em GuaiacuteraPR No estado de Satildeo Paulo trabalhou com farinha mesmo

quando moravam na cidade mas era complicado segundo Valdeniacutecio por conta dos

vizinhos que se incomodavam com a fumaccedila Quando conseguiram o lote no

assentamento estruturaram a farinheira sendo que parte dela foi Olegaacuterio mesmo

que projetou Valdeniacutecio comentou que antes de mecanizar o processo de produccedilatildeo

era difiacutecil trabalhar com a farinha de mandioca Atualmente produzem em meacutedia

vinte sacos por dia

FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira

O caso de Olegaacuterio atualmente com setenta e sete anos eacute muito significativo

ao apontar para a busca ateacute agora bem-sucedida de se manterem na aacuterea rural e

reproduzirem um modo de vida autocircnomo dentro da tradiccedilatildeo de trabalho familiar

Valdeniacutecio nos mostrou o funcionamento da farinheira e explicou detalhadamente para

Joatildeo Aparecido e Adir os quais estavam muito interessados e admirados com a forma

de trabalho dos seus parentes Durante a conversa Valdeniacutecio se lembrou do tempo

que morava em GuaiacuteraPR e que laacute eles eram ldquomais de cento e poucos negros tudo

casa de coqueirordquo Frisou tambeacutem sua lembranccedila do preconceito racial que sofriam

no ldquoMaracajurdquo afirmando que quando eles passavam todos juntos os vizinhos

provocavam-lhes dizendo que formava uma ldquonuvem pretardquo e ia chover

179

Tivemos uma longa conversa com Olegaacuterio que saiu de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG com aproximadamente vinte anos de idade Ele nos contou que o siacutetio da

avoacute Izidora de dez alqueires fica em um lugar chamado ldquoQueimadasrdquo Na eacutepoca

nessa terra moravam as famiacutelias dos irmatildeos Manoel Ciriaco e Sebastiatildeo Vicente de

Paula Manoel trabalhava de ldquopuxar cana pra fazer rapadura cortava lenha

trabalhava na lavra tirando cristalrdquo Ele saiacutea para trabalhar longe e chegou a ir ateacute

Londrina no norte do Paranaacute em migraccedilatildeo sazonal Olegaacuterio contou que Manoel

quando saiacutea de Santo Antocircnio do Itambeacute para essas viagens a trabalho iaacute primeiro

ateacute Diamantina distante mais de cem quilocircmetros157 sendo que parte do percurso

eles caminhavam cortando o morro durante o dia todo Outra parte era feita no ldquopau

de ararardquo que eacute um tipo de caminhatildeo coberto de lona que transportava pessoas

Depois em Diamantina pegava o trem e continuava a viagem Quando a famiacutelia se

mudou para o estado de Satildeo Paulo e depois para o Paranaacute jaacute foram de ocircnibus

Olegaacuterio tambeacutem nos passou vaacuterias referecircncias de lugares e pessoas que estavam

relacionadas agrave famiacutelia na regiatildeo de origem e afirmou que em uma proacutexima

oportunidade ele tambeacutem gostaria de voltar para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A nossa passagem por Presidente PrudenteSP tambeacutem permitiu que fosse

gravado um viacutedeo de D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo Loriano mandando

uma mensagem para que se noacutes achaacutessemos os seus irmatildeos em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ldquoaqueles que tive vivordquo pudeacutessemos lhes mostrar o seu recado Quem

registrou a conversa com ela foi Adir

Adir E daiacute cumadi Maria o que a senhora manda falar noacutes encontrando os seus parentes em Minas Gerais

D Maria das Dores Oacute eu mando cumpadi Nadir muita lembranccedila um abraccedilatildeo pra cumpadi Erosino pra cumadi Regina pra cumadi Zulmira e com a famia E muitos anos de vida sauacutede pra eles quem tiver vivo

Adir E que mais de seus irmatildeos cumadi que a sra lembra

D Maria das Dores Quero recordaccedilatildeo e notiacutecia da Teresa cumadi Anita minha irmatilde Joaquim meu irmatildeo Geralda natildeo que essa taacute pra caacute e o menino que minha matildee criou eacute o Dudu

Adir Como eacute que era o nome de sua matildee cumadi

D Maria das Dores Luzia Eleoteacuteria da Silva

Adir E seu pai cumadi

157Em sua fala frisou a distacircncia em leacuteguas forma tradicional de mediccedilatildeo da regiatildeo

180

D Maria das Dores Bertolino Gino Domingo

Adir A sra lembra o lugar que a sra morava laacute e tudo

D Maria das Dores Santo Antocircnio do Itambeacute do Serro

Adir Era muito sofrido

D Maria das Dores Era sofrido nossa Senhora meu Deus A gente comia sem nada de gordura natildeo tinha nada de sal a gente fazia gordura desse bucho de boi eacute uma gordura muito ruim A fartura que tinha laacute era mandioca cana e cafeacute Minas Gerais E tambeacutem cheguei no Paranaacute o meu cunhado que Deus daacute bom lugar pra ele chegando no Paranaacute foi benccedila e alegria ()

Adir E eu tenho feacute em Deus cumadi junto com o marido da senhora que eacute meu irmatildeo o cumpadi Joatildeo a gente vai pisar naquele solo de Minas no mesmo lugar que a senhora morou quero que o cumpadi Joatildeo revecirc isso ai a gente vai filmar tudo isso eu tenho feacute em Deus que eu encontro ainda seus irmatildeos suas irmatildes todo esse pessoal que a senhora falou que taacute gravado aqui pra gente achar esse pessoal e a gente filmar tirar foto e trazer pra senhora Ver como eacute que taacute esse pessoal laacute

D Maria das Dores Ver como eacute que taacute laacute se taacute bom

Adir Saber notiacutecia que a gente perdeu notiacutecia de todo mundo

D Maria das Dores Perdemo notiacutecia Ana Raimunda tambeacutem

Adir Pois eacute perdemo tudo essa notiacutecia

Na fala de D Maria a anguacutestia da falta de notiacutecias se expressa na duacutevida de

natildeo saber quem ainda estaria vivo dentre os seus irmatildeos A possibilidade de superar

esta situaccedilatildeo eacute atribuiacuteda por ela a uma intercessatildeo divina pois concluiu a conversa

afirmando ldquoo negoacutecio eacute joelho no chatildeo jejum e oraccedilatildeordquo pois ldquoJesus vai na frenterdquo e eacute

quem pode abrir os caminhos que permitiratildeo este reencontro Como natildeo se

sensibilizar com o drama de uma separaccedilatildeo entre familiares que se estendeu por tanto

tempo por falta segundo eles mesmos afirmam de possibilidades de deslocamento e

manutenccedilatildeo do contato Agravequeles que saiacuteram da regiatildeo de origem eacute a quem caberia

o retorno pois para os que ficaram seria ainda mais difiacutecil saber como procuraacute-los

322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova

Geralda Adir e Seu Joatildeo fizeram o trajeto de Presidente PrudenteSP ateacute Belo

HorizonteMG de ocircnibus Na rodoviaacuteria de Belo Horizonte eu e Cassius combinamos

que o professor Ricardo Ferreira Ribeiro que atua nas aacutereas de antropologia e

sociologia no curso de direito da PUCSerro iria encontra-los e leva-los para Serro

aproveitando o trajeto que Ricardo jaacute faria para ir dar aula Conforme Adir destacou

181

foi muito importante terem conversado com o professor Ricardo durante a viagem ateacute

Serro um trajeto de 330 km que demora em meacutedia cinco horas de carro Neste

caminho como eacute possiacutevel recuperar por meio dos vaacuterios viacutedeos gravados por Adir o

professor Ricardo foi lhes mostrando os elementos do ambiente os rios contando e

tambeacutem ouvindo histoacuterias sobre a regiatildeo

Ele lhes contou por exemplo sobre a comemoraccedilatildeo em 2014 dos cento e

cinquenta anos da articulaccedilatildeo do movimento de revolta dos escravos desde Serro a

Diamantina que se reuniriam no intuito de acabar com a escravidatildeo No entanto

dentro do movimento teve um traidor que denunciou o esquema e a guarda acabou

prendendo as lideranccedilas da revolta Adir em resposta comentou ldquotem histoacuteria esse

Serro heinrdquo Quando laacute chegaram Adir e Geralda que nunca tinham estado ali

puderam se encantar com a arquitetura do municiacutepio caracteriacutestica das vilas

setecentistas mineiras o que lhes remetia ainda mais a este passado familiar e

regional ndash a partir do qual fundamentam a reivindicaccedilatildeo identitaacuteria como quilombolas

em GuaiacuteraPR158

Se no Serro tem histoacuteria ateacute da organizaccedilatildeo de uma revolta de escravos uma

forma de resistecircncia negra direta enquanto motim as memoacuterias familiares sobre a

vida nesta regiatildeo conforme apontou Geralda indicam uma resistecircncia cotidiana e

silenciosa enquanto processo de sobrevivecircncia (FERNANDES BUSTOLIN

TEIREIRA 2006 p134) A moradia em ldquolocardquo ou ldquolapardquo de pedra eacute um importante

siacutembolo dessa resistecircncia onde se abrigavam de modo precaacuterio nos locais oferecidos

pelo ambiente Geralda contou por exemplo que sua avoacute materna Maria Bernarda

sofreu muito pois foi abandonada pelo marido com cinco filhas mulheres dentre elas

Ana Rodrigues sua matildee A famiacutelia soacute de mulheres passou fome Ana contava para

Geralda que cansou de comer um tipo de feijatildeo do mato que elas natildeo sabiam mas

era veneno comeram e adoeceram

Ao chegarem no Serro159 iniciava para Geralda Adir e Joatildeo o processo de

busca pelos parentes Jaacute na primeira tentativa encontraram um neto de D Zulmira

158 O municiacutepio do Serro foi o primeiro municiacutepio brasileiro cujo patrimocircnio arquitetocircnico e urbaniacutestico

foi tombado pelo Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional (IPHAN) ainda em 1938 Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015 159 Serro com 20835 habitantes159 eacute um municiacutepio que fica distante 27 km de Santo Antocircnio do Itambeacute

que tem uma populaccedilatildeo de 4135 habitantes conforme o Censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro

182

cunhada de Seu Joatildeo Loriano e irmatilde de D Maria das Dores Conforme Adir relatou

quando gravamos um viacutedeo dele contando como tinha sido a viagem para D Regina

e D Zulmira as irmatildes de D Maria das Dores que encontramos em Santo Antocircnio do

Itambeacute

Chegando no Serro eu queria andar eu soacute pensava em andar andar Via as pessoas eu mais cumpadi Joatildeo perguntava ldquoseraacute que eacute nosso parente Eacute nosso parenterdquo Eu mais cumpadi Joatildeo corria laacute e perguntava Ele ia na frente porque jaacute conhecia Minas Gerais 34 anos que saiu daqui E a gente ficava nessa eu quero encontrar um parente E ele falava ldquose noacutes encontrar dois encontramo o restordquo E dito e feito Primeira pessoa que noacutes se deparemo quando saiacute do local onde a gente tava num hotel em frente a um posto de gasolina tinha um barzinho Eu falei ldquoCumpadi Joatildeo eu quero tomar uma cachaccedila de Minas Geraisrdquo porque meu pai falava muito nessa cachaccedila e eu queria tomar uma cachaccedila () Comeccedilemo a encontrar uma pessoa que dizia que era parente de vocecircs aqui das senhoras E a gente ficou naquela esperanccedila noacutes tem que encontrar Ele falou ldquoNatildeo vou soacute domingo pra laacuterdquo E noacutes fiquemo naquela

Geralda me contou sobre como ocorreu este encontro pois eu e Cassius

tiacutenhamos ido no evento na PUC enquanto eles tinham ficado descansando no hotel

pois haviam chegado em SerroMG naquele dia sexta-feira 06 de marccedilo depois de

uma longa viagem Geralda ressaltou que o rapaz Julio ndash dono do bar que fica ao

lado do hotel onde estaacutevamos hospedados ndash comentou com eles que quando os viu

jaacute pressentiu que eram parentes Ficaram entatildeo sabendo que D Zulmira e D Regina

ndash irmatildes de D Maria das Dores de quem estavam agrave procura ndash ainda moravam em

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

No outro dia de manhatilde Geralda comentou comigo que natildeo tinha dormido

durante a noite porque ficou se lembrando de sua matildee e de seu pai das coisas que

eles contavam principalmente que andavam por todos aqueles morros carregando

suas coisas em cima da cabeccedila e que era muito sofrido Geralda completou

lamentando todo este tempo que eles almejaram sem poderem retornar pois ficavam

esperando juntar um dinheiro para poder vir caccedilar os parentes Lembrou-se tambeacutem

que Manoel queria ter mandado buscar sua irmatilde Ana Raimunda mas que nunca lhe

sobrava dinheiro

Fomos todos juntos entatildeo ao segundo dia do seminaacuterio na PUC A

participaccedilatildeo de Geralda Adir e Seu Joatildeo foi muito significativa A mesa do saacutebado de

Acesso em 141015 Santo Antocircnio do Itambeacute soacute se tornou um municiacutepio independente de Serro em 1963 sete anos depois que Manoel e demais famiacutelias saiacuteram de laacute

183

manhatilde se chamava ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos

geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova

(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo Como palestrantes estavam o professor Ricardo

Cassius e duas lideranccedilas quilombolas Seu Adatildeo lideranccedila da Comunidade

Quilombola Vila Nova e Adir lideranccedila da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco

dos Santos No tiacutetulo da mesa percebe-se a conexatildeo como apontado pelo segundo

relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade em GuaiacuteraPR entre a trajetoacuteria histoacuterica de

deslocamentos da comunidade em GuaiacuteraPR com os processos de migraccedilatildeo da

Comunidade Vila Nova pois na regiatildeo de origem do grupo esta jaacute era uma

caracteriacutestica marcante

Com base na pesquisa realizada para o segundo relatoacuterio antropoloacutegico

Cassius expocircs um panorama da trajetoacuteria de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues desde

Minas Gerais ateacute o Paranaacute Ao ouvirem a fala de Cassius e verem as fotos de seus

parentes na apresentaccedilatildeo Adir Geralda e Seu Joatildeo que compunham a mesa natildeo

contiveram a emoccedilatildeo Para aleacutem de uma recuperaccedilatildeo histoacuterica da trajetoacuteria da famiacutelia

aquele momento tinha um valor simboacutelico muito marcante para eles pois estavam

sendo recebidos e acolhidos na regiatildeo de origem de sua famiacutelia em um momento de

reconhecimento e valorizaccedilatildeo dentro de uma universidade

Em sua fala Adir iniciou agradecendo a Deus aos Orixaacutes e a todos que

apoiaram a realizaccedilatildeo deste sonho de chegar na regiatildeo de origem de seu pai Contou

um pouco da histoacuteria de migraccedilatildeo e resistecircncia dos seus antepassados que saiacuteram

de Minas Gerais e foram buscar uma oportunidade de vida no estado de Satildeo Paulo e

depois no Paranaacute Refletiu sobre o processo de reconhecimento como quilombolas

das famiacutelias em GuaiacuteraPR os conflitos dele decorrentes e a persistecircncia da

comunidade em lutar pelo acesso agraves poliacuteticas puacuteblicas Concluiu dizendo ldquonossa luta

eacute em memoacuteria daqueles que jaacute foram e nossa luta eacute pela sobrevivecircnciardquo

184

FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova (MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo

A ideia de realizaccedilatildeo do seminaacuterio comeccedilou como forma de dar suporte agrave

nossa estadia na regiatildeo mineira para a qual eu e Cassius tambeacutem contribuiacutemos com

recursos pessoais e algum apoio das universidades agraves quais estaacutevamos vinculados

Por meio da articulaccedilatildeo com o professor do curso de direito da PUCSerro Matheus

de Mendonccedila Gonccedilalves Leite foi viabilizada parte da nossa alimentaccedilatildeo e

hospedagem aleacutem do auxiacutelio para deslocamento na regiatildeo Este evento tomou uma

proporccedilatildeo muito mais significativa do que o sentido pragmaacutetico que o motivou

inicialmente como mencionamos acima Nesta oportunidade tambeacutem ocorreu o

primeiro contato entre os quilombolas de Guaiacutera e da comunidade ldquoVila Novardquo que

fica localizada no distrito do municiacutepio de Serro chamado ldquoSatildeo Gonccedilalo do Rio das

Pedrasrdquo para onde nos deslocamos e permanecemos ateacute segunda-feira dia 09 de

marccedilo de 2015

Como mencionamos no capiacutetulo anterior foi com esta comunidade quilombola

que a pesquisa do segundo relatoacuterio antropoloacutegico indicou possiacuteveis relaccedilotildees de

parentesco A estadia junto agraves famiacutelias desta comunidade propiciou para Adir Seu

Joatildeo e Geralda uma experiecircncia de contato com um modo de vida especiacutefico que lhes

remeteu muito agraves histoacuterias de sua origem familiar Durante os trecircs dias em que laacute

ficamos Adir Geralda e Seu Joatildeo tentaram encontrar relaccedilotildees de parentesco atraveacutes

de nomes comuns da memoacuteria sobre os antepassados Muitos nomes de parentes

eram iguais o que gerou longa conversas ateacute nos darmos conta de que natildeo

185

estaacutevamos falando das mesmas pessoas Apenas no final da viagem com a nossa

estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pudemos entender qual era a ligaccedilatildeo entre

estas famiacutelias Como veremos no proacuteximo subitem o viacutenculo de parentesco ocorre

por meio dos ascendentes da famiacutelia da esposa de Seu Joatildeo D Maria das Dores

pelo lado de sua matildee Luzia Eleoteacuteria da Silva

FIGURA 24 Da esquerda para a direita Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo

O distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras fica a trinta quilocircmetros da sede

do municiacutepio de Serro com acesso por estrada de terra Estaacute situado no alto da Serra

do Espinhaccedilo a 1150 m de altitude e conta com vaacuterias cachoeiras que compotildeem uma

linda paisagem O distrito com em torno de mil e quinhentos habitantes surgiu no

iniacutecio do seacuteculo XVIII em decorrecircncia da intensificaccedilatildeo da exploraccedilatildeo de ouro na

regiatildeo do ldquoSerro Friordquo160 ndash hoje municiacutepio de Serro ndash e manteacutem ainda caracteriacutesticas

arquitetocircnicas do periacuteodo colonial A comunidade quilombola ldquoVila Novardquo localiza-se

na aacuterea urbana do distrito e laacute acessam os serviccedilos puacuteblicos disponiacuteveis como escola

posto de sauacutede telefonia aacutegua tratada energia eleacutetrica entre outros As casas das

famiacutelias quilombolas que compotildeem um mesmo grupo familiar ficam todas proacuteximas

Segundo seus relatos estas famiacutelias antes moravam no entorno do distrito sendo

oriundas da localidade de Aacutegua Santa proacuteximo ao Pico do Itambeacute onde atualmente

160 A antiga ldquoVila do Priacutencipe do Serro Friordquo foi sede de comarca uma das quatro primeiras da ldquoCapitania

das Minas Geraisrdquo Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015

186

se localiza o Parque Estadual do Pico do Itambeacute Mudaram-se para Satildeo Gonccedilalo

ainda na primeira metade do seacuteculo XX161 ldquoVila Novardquo eacute uma das cinco comunidades

quilombolas em Serro junto com as comunidades ldquoAusenterdquo e ldquoBauacuterdquo proacuteximas do

Distrito de Milho Verde e a ldquoComunidade do Oacuterdquo que se localiza neste distrito aleacutem

da comunidade de ldquoRibeiratildeo dos Porcosrdquo162 Eacute possiacutevel falar em um territoacuterio regional

cultural quilombola com forte presenccedila dessas comunidades nos municiacutepios no

entorno de Serro ateacute Diamantina onde uma meacutedia de trinta comunidades jaacute se

autorreconhecem como quilombolas163 A formaccedilatildeo destas comunidades estaacute

vinculada ao processo de exploraccedilatildeo de ouro e diamante com matildeo de obra escrava

sendo que os vastos espaccedilos territoriais desocupados permitiram na eacutepoca a

formaccedilatildeo de vaacuterios quilombos164

FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo conversando e ao

lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona

161 Conforme consta no segundo relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade ldquoManoel Ciriacordquo Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 728-730 [p 35-37] 162 As cinco comunidades de Serro receberam a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento da Fundaccedilatildeo

Cultural Palmares em 2012 Em MG ateacute fevereiro de 2015 duzentos e vinte e seis comunidades contavam com a certidatildeo e mais quarenta e trecircs aguardavam a finalizaccedilatildeo do procedimento A emissatildeo da certidatildeo eacute regulada pela Portaria nordm 98 de 2007 Dados disponiacuteveis em httpwwwpalmaresgovbrpage_id=88ampestado=MG httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploadscrqslista-das-crqs-processos-abertos-ate-23-02-2015pdf e Portaria disponiacutevel em httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploads201011legis21pdf Acesso em 161015 163 Levando em consideraccedilatildeo as comunidades nos seguintes municiacutepios Serro (5) Santo Antocircnio do

Itambeacute (3) Materlacircndia (6) Sabinoacutepolis (7) Senhora do Porto (1) Alvorada de Minas (1) Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (3) Gouveia (1) e Diamantina (1) Os dados satildeo da Comissatildeo Proacute Iacutendio de Satildeo Paulo (CPISP) Disponiacutevel em httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_mapa_zoom2html Acesso em 161015 164 ldquoQuilombos de Minas Gerais no seacuteculo XXI - Norte e nordeste do Estadordquo Disponiacutevel em

httpwwwcedefesorgbrindexphpp=colunistas_detalheampid_pro=2 Acesso em 161015

187

FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado pelo traccedilado vermelho FONTE ndash Google Maps

188

A conexatildeo entre as famiacutelias quilombolas de Manoel Ciriaco e de Vila Nova

para aleacutem das relaccedilotildees de parentesco expressou-se inclusive no fato de Seu Joatildeo

conhecer muitas pessoas em comum com os quilombolas de Vila Nova Quando

morava no Itambeacute ele ia da fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhava ateacute

Satildeo Gonccedilalo pois transportava para laacute cachaccedila que levava amarrada na cangaia do

burro Os moradores quilombolas da comunidade Vila Nova tambeacutem trabalharam para

o fazendeiro Zinho Gonccedilalves que era de uma famiacutelia abastada da regiatildeo com

propriedade em Santo Antocircnio do Itambeacute

Ao chegarmos na vila deixamos nossas coisas na casa de Jovelina que

funciona tambeacutem como ldquohospedagem familiarrdquo uma forma de receber os turistas que

visitam a localidade Nossa recepccedilatildeo pelos membros da comunidade quilombola ldquoVila

Novardquo no entanto natildeo foi como turistas mas como pesquisadores e quilombolas do

Paranaacute que estavam ali com o intuito de conhecer mais sobre a comunidade e

tambeacutem em busca de levantar possiacuteveis laccedilos de parentesco entre eles Jovelina

apesar de ser nossa anfitriatilde conviveu menos conosco por conta de seus afazeres

As tias maternas de Jovelina irmatildes de Margarida ndash D Necila e D Maria

Geralda ndash foram para mim e Geralda as nossas principais anfitriatildes Passamos horas

em conversas visitas a parentes passeios refeiccedilotildees rodas de muacutesica entrevistas e

viacutedeos Seu Joatildeo Adir e Cassius foram recepcionados por Seu Adatildeo e por seu irmatildeo

Jesu e juntos entre os homens fizeram tambeacutem os seus proacuteprios trajetos para

conhecer Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras

Foram muitas trocas de experiecircncias das quais destaco o interesse de

Geralda em aprender com aquelas senhoras bem como com demais moradores

quilombolas da comunidade sobre plantas medicinais oraccedilotildees e benzimentos

Geralda comentou durante uma de nossas conversas ldquoA gente que benze a gente

tem que ter remeacutedio e eu sei que ocecircs saberdquo Ela entatildeo me pediu para que eu

anotasse o nome das ervas medicinais e para o que elas serviam ndash suas formas

terapecircuticas de uso D Necila e D Maria Geralda foram se lembrando das plantas e

eu fui anotando e registrando com o gravador de voz a marcelica (ldquopra dar pra

crianccedilardquo) o marcelicatildeo (dor de barrigadiarreia) o quebra-pedra (rim) a badama (ldquobom

pro cabelordquolavar a cabeccedila) o quitoco (ajuda no periacuteodo de menstruaccedilatildeoldquobom pra

tudordquo tambeacutem eacute usado como tempero)

189

A carqueja o funcho o guineacute baiano o taquarinho do brejo a salsa parreira

o melatildeozinho de Satildeo Caetano entre diversas ervas foram assunto dos nossos

passeios pela comunidade e pelos quintais das casas quilombolas Conhecimentos

portanto que iam sendo compartilhados por meio de um monitoramento e de

engajamento ativos ao longo deste caminhar (INGOLD 2007 p 76) Seu Joatildeo ia

indicando os remeacutedios para Geralda e Adir que estavam sempre atentos buscando

reconhececirc-los e apontaacute-los pelo caminho Geralda comentou que em GuaiacuteraPR tem

remeacutedio que eacute difiacutecil de achar soacute no raizeiro Ela se lembrou que sua matildee havia levado

consigo desde Minas dentre outras sementes de quitoco para plantar e tinha mudas

no siacutetio em GuaiacuteraPR Junto com as pessoas em seus caminhos de migraccedilatildeo

portanto havia tambeacutem um circuito de sementes e plantas para seus quintais e

plantaccedilotildees que cultivariam em outras regiotildees Seu Joatildeo Adir e Geralda quando

retornaram desta viagem tambeacutem fizeram questatildeo de levar na bagagem sementes e

mudas que foram sendo separadas ao longo do percurso Guardadas como

lembranccedilas estabeleceriam novas conexotildees e continuidades entre eles e sua regiatildeo

de origem

Necessaacuterio frisar que Maria Geralda e Necila (ambas com mais de setenta

anos) Margarida (63) Adatildeo (em torno de 60) e Jesu (um pouco mais novo) nossos

principais interlocutores nesta comunidade satildeo filhos do casal Jovelina Calisto dos

Santos e Raimundo Gomes Ambos Jovelina e Raimundo satildeo primos de primeiro

grau filhos dos irmatildeos Ana Pedro da Silva e Clarindo Gomes Gouveia

respectivamente Os irmatildeos Ana e Clarindo por sua vez satildeo filhos do casal ancestral

ao qual se faz referecircncia na comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Francisco Lucindo e

ldquoMatilirdquo ndash Matilde Balbina de Arauacutejo

Seu Joatildeo conheceu por exemplo Raimundo Gomes e seu irmatildeo Elias

Gomes conhecido por ldquotio Iliardquo sobre quem contam em ldquoVila Novardquo histoacuterias de que

foi escravo Nesta famiacutelia tambeacutem haacute vaacuterios casos de parentes que como na histoacuteria

de Manoel Ciriaco saiacuteram da regiatildeo em busca de oportunidades de trabalho no estado

de Satildeo Paulo sendo que nunca mais souberam notiacutecia sobre alguns deles Joseacute

Bernardo filho mais velho de Jovelina e Raimundo por exemplo perdeu contato com

a famiacutelia e soacute muitos anos depois os irmatildeos encontraram seus sobrinhos e souberam

que Joseacute jaacute era falecido como nos contou seu Adatildeo

190

Eu e Cassius ficamos muito satisfeitos em ver a alegria de Adir Geralda e Seu

Joatildeo nos dias que passamos em Satildeo Gonccedilalo Esta alegria parecia decorrente da

sensaccedilatildeo de estarem em um ambiente de iguais em contraste com os relatos sobre

as experiecircncias de discriminaccedilatildeo que sofrem no Maracaju dos Gauacutechos onde se

percebem separados dos demais Seu Joatildeo que natildeo pegava no violatildeo segundo ele

desde que saiu de Minas tocou com o pessoal da comunidade nos trecircs dias que laacute

permanecemos Adir estava muito empolgado com aquele lugar no qual ainda se

preservava tanto as tradiccedilotildees dos antepassados como o uso dos fornos de barro e

de pedra presente em vaacuterias das casas pelas quais passamos Mesmo com todo seu

desejo de chegar em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Adir sofreu para se despedir dos

novos amigos Geralda estava muito feliz em conversar com aquelas senhoras que

lhe remetiam ao melhor das mulheres de sua famiacutelia muita sabedoria conhecimentos

histoacuterias de luta e resistecircncia receptividade religiosidade entre outras qualidades

Estas histoacuterias eram como um mosaico de experiecircncias nas quais podiam projetar o

modo de vida de seus antepassados pois viveram em um mesmo territoacuterio cultural

regional e tiveram contato entre si D Necila e D Maria Geralda por exemplo

conheceram Maria Olinda matildee de Seu Joatildeo e Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de Manoel

FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D Necila

191

323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Na noite de segunda-feira professor Matheus e Tiago foram nos buscar no

distrito de Satildeo Gonccedilalo para nos levarem a Santo Antocircnio do Itambeacute nossa uacuteltima

etapa da viagem Eles jaacute tinham nos informado que haviam combinado com o Instituto

Estadual de Florestas (IEF) que ficariacuteamos hospedados na sede do Parque Estadual

do Pico do Itambeacute Esta sede administrativa eacute uma grande casa colonial que fazia

parte da antiga Fazenda Satildeo Joatildeo adquirida pelo IEF Quando estaacutevamos chegando

na sede do Parque jaacute passava da meia noite Seu Joatildeo reconheceu entatildeo que

aquela era a mesma fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhou muitos anos

Seu Joatildeo jaacute havia nos relatado que ele entregava cachaccedila em Satildeo Gonccedilalo

depois voltava para um lugar chamado Condado e tinha que carregar tambeacutem ateacute o

Itambeacute trabalhando para Zinho Ele levava a cachaccedila em pipa amarrada em cima do

lombo do burro e caminhava longas distacircncias puxando aquele peso sendo que de

trecircs em trecircs dias ele refazia todo o percurso Nos contou que um dia ele percebeu que

estava ldquotrabalhando como escravordquo pois o que recebia natildeo era suficiente nem para a

alimentaccedilatildeo de sua famiacutelia Depois que havia voltado do Itambeacute jantou primeiro e foi

falar para o patratildeo que natildeo ia trabalhar mais para ele Ao relato de Seu Joatildeo Adir

completou ldquoeacute o quilombo invadindo a casa granderdquo

Seu Joatildeo com seu conhecimento sobre a regiatildeo e com sua capacidade de

acionar uma rede social mais ampla de parentesco foi o nosso ldquodescobridor de

caminhordquo durante a primeira viagem a Minas Gerais o que se intensificou enquanto

estivemos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ldquoDescobridor de caminhordquo eacute uma

expressatildeo cunhada pelo antropoacutelogo Tim Ingold cujas reflexotildees servem de base para

a nossa anaacutelise sobre a importacircncia do movimento para o modo de articulaccedilatildeo da

identidade quilombola do grupo Segundo o autor

Os lugares natildeo tecircm posiccedilatildeo e sim histoacuterias Unidos pelos itineraacuterios de seus habitantes os lugares existem natildeo no espaccedilo mas como noacutes em uma matriz de movimento Chamarei essa matriz de ldquoregiatildeordquo Eacute o conhecimento da regiatildeo e com isso a habilidade de uma pessoa situar-se na sua posiccedilatildeo atual dentro do contexto histoacuterico de jornadas efetuadas anteriormente ndash jornada para lugares de lugares e em volta de lugares ndash que distingue o nativo do forasteiro Assim descobrir-caminho consiste em mover-se de um lugar para outro em uma regiatildeo (INGOLD 2005 p 76)

192

A simples posse de um mapa portanto natildeo poderia substituir a presenccedila de

seu Joatildeo como um descobridor de caminhos com sua bagagem de experiecircncias e

com sua percepccedilatildeo do ambiente produzida ao longo dos anos em seus movimentos

que lhe permitiram realizar um mapeamento da regiatildeo a qual consiste em uma ldquorede

mais ampla de idas e vindasrdquo (INGOLD 2005 p 84) Seu Joatildeo foi assim o elo que

pocircde nos conectar e nos inserir nesta rede de lugares e parentes ao reconstituir um

circuito de relaccedilotildees sociais locais

No primeiro dia em Santo Antocircnio Itambeacute pela manhatilde depois que dormimos

a primeira noite na sede do parque terccedila-feira 10 de marccedilo saiacutemos pela estrada de

terra que liga a sede ao pequeno centro de Santo Antocircnio do Itambeacute No caminho

Adir comentou ldquoEacute como se noacutes voltasse a histoacuteria voltasse a paacutegina da nossa vida do

comeccedilo quando nosso pai andava por tudo Eu quero passar por todas as ruas local

onde ele passavardquo Novamente estava sendo reforccedilada a referecircncia ao caminhar

como forma de dar sentido ao modo de vida de seus antepassados naquele lugar ao

sacrifiacutecio que era andar por todos aqueles morros com as coisas que levavam em

cima da cabeccedila por leacuteguas e leacuteguas pois moravam em um siacutetio longe da vila do

Itambeacute Se os caminhos satildeo parte fundamental na construccedilatildeo da memoacuteria coletiva

quilombola na nossa experiecircncia da primeira viagem continuavam sendo referecircncia

central na percepccedilatildeo de Adir Geralda e Seu Joatildeo

Nesta estrada de chatildeo que percorriacuteamos logo avistamos acima uma primeira

casa Ali Seu Joatildeo se lembrou que antigamente morava um parente Quem nos

recebeu foi Zeacute Simatildeo que estava em frente da casa e tambeacutem nos avistou Seu Joatildeo

lhe perguntou se ele lembrava de Sebastiatildeo Vicente o tio dele irmatildeo de Manoel que

ficou morando nas terras da matildee Izidora Zeacute Simatildeo em resposta disse

Zeacute Simatildeo Entatildeo tem um moccedilo aqui que o senhor deve conhecer o Seu

Daniel

Seu Joatildeo Ele eacute filho de quem

Zeacute Simatildeo Ele eacute desse povo mesmo da mesma parentagem desse povo

mesmo de

Adir Sebastiatildeo Vicente

Zeacute Simatildeo Ele eacute filho de uma tal esqueci o nome da matildee dele filho de um

tal de Joatildeo Domingo

193

Seu Joatildeo Joatildeo Domingo Conheci demais Joatildeo Domingo era tio desse aqui

(vira-se para Adir e continua) esse aqui eacute meu irmatildeo da segunda mulher

Adir Irmatildeo de Maria Bernarda Ele taacute ai

Zeacute Simatildeo Taacute ai vou chamar ele

(Seu Daniel aparece na porta da casa um senhor negro de 80 anos de idade

cabelos brancos peacutes descalccedilos calccedila rasgada)

Seu Joatildeo Eacute o senhor mesmo que eu tocirc querendo ver E o senhor como eacute que

taacute O senhor lembra de mim (Estende a matildeo para cumprimentaacute-lo)

Seu Daniel Natildeo tocirc conhecendo natildeo

Seu Joatildeo Noacutes dois natildeo levava milho laacute pro senhor moer pra noacutes

Seu Daniel Onde Eu carregava milho pra Sebastiatildeo Dama

Seu Joatildeo Eu sou filho de Manoel Ciriaco sobrinho de Sebastiatildeo Paulo

Seu Daniel Sobrinho de Sebastiatildeo Paulo Natildeo tocirc lembrado mais

Seu Joatildeo O senhor natildeo lembra de Joatildeo natildeo

Seu Daniel Joatildeo

Seu Joatildeo Joatildeo que eles falavam Joatildeo de Izidora

Seu Daniel Joatildeo de Izidora Lembro Eacute o cecirc eacute o cecirc queacute eacute Joatildeo

Seu Joatildeo Eacute eu sou neto dela

Seu Daniel Oacute quanto tempo

Seu Joatildeo Taacute com trinta e quatro anos que eu saiacute daqui

Seu Daniel Ele eacute filho de Maneacute Paulo

Geralda Aiacute oacute o nome do meu pai aqui eacute Maneacute Paulo

Zeacute Simatildeo Vocecirc que eacute Joatildeo Joatildeo de Izidora

Seu Joatildeo soacute pocircde ser reconhecido na medida em que foi inserido na rede de

parentesco local Com a referecircncia ao seu nome de registro Joatildeo Loriano dos Santos

ningueacutem poderia identificaacute-lo Foi o que ocorreu quando durante a pesquisa para o

segundo relatoacuterio antropoloacutegico Cassius esteve em frente agrave casa das cunhadas de

seu Joatildeo D Regina e D Zulmira perguntando por parentes de Joatildeo Loriano dos

Santos e o casal que o recebeu (filha de Zulmira e seu marido) respondeu que natildeo

conhecia esta pessoa Manoel Ciriaco por sua vez era conhecido como ldquoManeacute Paulordquo

194

ou ldquoManeacute de Paulardquo ou ainda ldquoManeacute de Izidorardquo pois era filho de Joaquim de Paula e

Izidora Nesta forma de nominaccedilatildeo usa-se o nome da pessoa acompanhado de

expressatildeo que aponta a identificaccedilatildeo a partir de um antepassado ou cocircnjuge

Seu Daniel como descobrimos no comeccedilo da conversa eacute primo de primeiro

grau de Ana Rodrigues matildee de Adir e Geralda O pai dele Joatildeo Domingos era irmatildeo

de Maria Bernarda matildee de Ana Rodrigues Ficamos por volta de trecircs horas na casa

em que moram Seu Daniel sua filha seu genro e seu neto com meses de vida Seu

Daniel nos recebeu muito bem e estava muito feliz em rever Seu Joatildeo um velho

amigo e conhecer Adir e Geralda seus primos de segundo grau Conversamos

longamente com ele enquanto eu e Cassius adicionaacutevamos as informaccedilotildees na aacutervore

genealoacutegica da famiacutelia especialmente sobre dados a respeito da famiacutelia de sua tia

paterna Maria Bernarda sobre a qual ele guardava muitas memoacuterias

FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel

3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda

Quando saiacutemos da casa de seu Daniel fomos procurar junto com Zeacute Simatildeo

a casa de D Regina e D Zulmira cunhadas de Seu Joatildeo e irmatildes de D Maria das

Dores que havia enviado por noacutes uma mensagem em viacutedeo para ser mostrada a seus

irmatildeos ldquoos que tive vivordquo No caminho logo encontramos a filha de D Regina

Aparecida que seu Joatildeo reconheceu ao avistaacute-la na rua quando ela e outras

195

mulheres voltavam para casa da roccedila Aparecida muito feliz de reencontrar o tio nos

levou entatildeo direto para a casa de D Zulmira pois sua matildee D Regina estava longe

trabalhando na roccedila Primeiro Aparecida foi na frente e contou para a tia D Zulmira

que Seu Joatildeo o cunhado dela estava chegando e que a irmatilde D Maria das Dores natildeo

tinha vindo mas que deram notiacutecia que ela estava bem D Zulmira jaacute se emocionou

muito com a novidade e agradeceu a Deus a Jesus Cristo louvando a possibilidade

deste reencontro Abraccedilou Seu Joatildeo e depois ele Adir e Geralda foram logo lhe

dando notiacutecias dos familiares que tinham saiacutedo dali para o Paranaacute como Manoel e

Ana que jaacute tinham falecido Olegaacuterio e Jovelina que estatildeo vivos Ela tambeacutem foi

atualizando seu Joatildeo e contando sobre os parentes que continuaram morando na

regiatildeo

Mostramos entatildeo para D Zulmira o viacutedeo com a mensagem enviada por sua

irmatilde D Maria das Dores a qual mencionamos acima D Zulmira falou que natildeo

achava que veria eles mais

D Zulmira O meu Santiacutessimo Sacramento porquecirc que some assim Ai meu nosso Senhor Que benccedilatildeo de Jesus Deus Deus achou

Cassius Eacute sua irmatilde

D Zulmira Eacute minha irmatilde meu fio Ai meu Deus Eacute das mais nova Ela deve ter uns sessenta anos Ela taacute muito bonita Eacute ela mesmo

Adir Eacute ela

D Zulmira Como eacute que eu tocirc gente Que Deus Ocirc minha Nossa Senhora cecirc trouxe o meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer ainda (se abaixa com as matildeos no rosto e comeccedila a chorar) Graccedilas a Deus Faz vinte anos ou vinte e cinco

Adir Eacute muita emoccedilatildeo

D Zulmira Eu perdi tantos irmatildeo

Adir Mas a senhora ainda vai ver ela Se Deus quiser a senhora vai ver

O nosso encontro com D Zulmira (73 anos) e depois com D Regina (78

anos) que logo chegou da roccedila foi uma experiecircncia uacutenica para todos os presentes

Segundo elas receber notiacutecias da irmatilde e rever o cunhado era a concretizaccedilatildeo de uma

intercessatildeo divina pela qual sempre rezavam buscando esperanccedilas para acreditar

que um dia este reencontro poderia acontecer Em seguida pedimos para que elas

196

mandassem uma mensagem que levariacuteamos de volta para D Maria das Dores Dona

Regina que estava mais calma comeccedilou mandando o seu recado

Hoje eu tocirc chegando da roccedila e tive a maior surpresa com a maior satisfaccedilatildeo cumadi Maria de ver o meu cumpadi Joatildeo mais a famiacutelia dele Eu tive muito prazer que eu vivia sempre na cabeccedila achando que nem vivo ocecircs era porque ocecircs tambeacutem natildeo dava nem notiacutecia pra mim E eu perdi o contato com ocecircs porque tomaram o endereccedilo e nunca mais me deram Entatildeo eu fiquei sem jeito de ligar pra vocecircs Agora ocecircs de laacute pra caacute tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacute Entatildeo cumadi Maria hoje eu tocirc no maior prazer na maior riqueza sou veia e pra mim fiquei nova de prazer de saber notiacutecia da minha irmatilde com a famiacutelia dela e meu cumpadi Joatildeo Cumadi Maria breve noacutes vamos encontra se Deus quiser Agora eu natildeo vou natildeo mas eu vou

Dona Zulmira depois tambeacutem deixou sua mensagem

Cumadi Maria eu minha fia graccedilas a Deus tive tanto prazer que eu vi a sua famiacutelia que chegou de laacute a moccedila e o rapaz o cumpadi Joatildeo o irmatildeo dele a irmatilde dele eu fiquei tatildeo emocionada de vecirc essa famiacutelia prazerosa que Jesus mandou pra noacutes nesse horaacuterio certo que chegou devia de ser meio dia Eu fiquei tatildeo emocionada que eu vou falar procecirc que eu natildeo tive ideia de dar pra eles nada a ideia que eu tive foi de chorar Fiquei tatildeo feliz tatildeo satisfeita tatildeo alegre porque sempre eu pensava assim ldquoEacute de vera a minha irmatilde foi embora essa eu natildeo vejo ela maisrdquo Mas Deus abenccediloou que trouxe eles em paz com vida e sauacutede e assim eacute de trazer a senhora tambeacutem E que breve se Deus quiser noacutes vamos encontrar E cecirc vecirc que depois que a senhora foi noacutes perdeu nossa matildee noacutes perdeu nosso pai noacutes perdeu meu irmatildeo Erosino a Benedita e a Margarida entatildeo cecirc sabe Eu fiquei assim pro rumo natildeo sube nem cumprimentar eles como eles merecia de tanta emoccedilatildeo que eu fiquei Mas eu fiava em Deus que eu esperava sempre que Deus ia abenccediloar que um dia que ocecircs tivesse a par ocecircs vinha caacute e noacutes encontrava Eu fiquei tatildeo feliz que soacute cecirc vendo Natildeo soube nem tratar eles como eles merecia E a companhia deles a moccedila mais o rapaz que tava com eles de fora que tambeacutem eacute outros irmatildeo tudo que eu fiquei toda feliz e tudo eu considerei por minha famiacutelia E Deus que te abenccediloa e algum dia noacutes encontra

A experiecircncia de ter um parente perdido era para elas muito angustiante

pois se a pessoa morre eacute porque ldquoDeus levardquo mas no caso de D Maria das Dores a

anguacutestia estava nesta duacutevida que se estendia por anos da ausecircncia de qualquer

notiacutecia Fazia dezenove anos que D Maria das Dores tinha ido pela uacuteltima vez para

Santo Antocircnio do Itambeacute A responsabilidade de fazer o movimento para o reencontro

como pode se depreender do comentaacuterio de D Regina ndash ldquoAgora ocecircs de laacute pra caacute

tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacuterdquo ndash afinal de contas eacute atribuiacuteda agravequeles que

migraram pois sabiam para onde voltar para encontrar os parentes diferente dos que

permaneceram na regiatildeo para quem seria muito mais difiacutecil tal busca

197

FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das Dores

Com o pouco tempo que passamos com D Regina e D Zulmira criamos com

elas uma conexatildeo muito forte Eu e Cassius entatildeo nos comprometemos a ajudar a

levar a D Maria das Dores para reencontraacute-las assim que fosse possiacutevel Com D

Zulmira e D Regina tambeacutem conversamos sobre a aacutervore genealoacutegica com enfoque

nos antepassados e compreendemos entatildeo o viacutenculo de parentesco da famiacutelia de

Manoel Ciriaco com a comunidade quilombola ldquoVila Novardquo165

O viacutenculo de parentesco se daacute por meio de D Maria das Dores que eacute filha de

Luiza Eleoteacuteria da Silva e neta de Virgulino Martins Gomes Virgulino por sua vez era

irmatildeo de Clarindo Gomes e filho de Matili e Francisco Lucindo o casal ancestral

estruturante da comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Clarindo Gomes era pai de

Raimundo Gomes e avocirc de seu Adatildeo D Necila D Maria Geralda e Jesu nossos

anfitriotildees em Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras Portanto Raimundo Gomes filho de

Clarindo eacute primo de primeiro grau de Luzia Eleoteacuteria filha de Virgulino e matildee de D

Maria das Dores

165Aleacutem da importacircncia das relaccedilotildees de parentesco destacadas ateacute aqui eacute necessaacuterio aprofundar a

pesquisa a respeito das relaccedilotildees de compadrio que parecem centrais tambeacutem neste caso para reforccedilar os viacutenculos de parentesco

198

Por meio de dois casamentos a famiacutelia de Luzia Eleoteacuteria da Silva se conecta

com a famiacutelia de Manoel Trata-se do casamento entre D Maria das Dores (filha de

Luzia) e Seu Joatildeo (filho de Manoel) e entre Zeacute (filho de Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de

Manoel Ciriaco) e Benedita (irmatilde de D Maria das Dores) D Maria das Dores nos

falou tambeacutem da possibilidade de uma conexatildeo entre as famiacutelias na geraccedilatildeo

ascendente mais distante agrave qual tivemos referecircncias Ela achava que ldquoVovoacute Matilirdquo

sua bisavoacute era irmatilde de Joseacute Domingos pai de Maria Bernarda e avocirc de Ana

Rodrigues (esposa de Manoel) bisavocirc portanto de Adir e Geralda conforme Excerto

Genealoacutegico apresentado abaixo Em alaranjado destacam-se os trecircs membros da

famiacutelia D Jovelina D Maria das Dores e Seu Joatildeo os quais efetivamente retornaram

a Minas Gerais por meio destas duas viagens pois laacute jaacute haviam morado Em amarelo

destacam-se os parentes com quem eles se encontraram durante as duas viagens

199

FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4

200

Segundo D Zulmira a famiacutelia de ldquovovoacute Matilirdquondash originaacuteria de Aacutegua Santa ndash era

muito pobre Este lugar atualmente estaacute abrangido pelo Parque Estadual do Pico do

Itambeacute uma unidade de conservaccedilatildeo de proteccedilatildeo integral em decorrecircncia da qual os

uacuteltimos moradores foram retirados da aacuterea e reassentados Esta localidade de acordo

com D Zulmira era ldquoterra de ningueacutemrdquo uma ldquoterra de heranccedilardquo onde passaram

muitas dificuldades e por isso de laacute saiacuteram Com tais explicaccedilotildees pudemos comeccedilar

a compreender a conexatildeo entre a famiacutelia de D Maria das Dores e a famiacutelia da

comunidade quilombola ldquoVila Novardquo que tambeacutem originaacuteria de Aacutegua Santa bem como

conhecer um pouco de sua histoacuteria de deslocamentos dentro de uma mesma

regiatildeo166

Depois que saiacutemos da casa de D Zulmira e D Regina naquele dia 10 de

marccedilo voltamos para a casa de Zeacute Simatildeo pois ele tinha dito que sabia o paradeiro

de D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que ajudou a criar Seu Joatildeo junto com

a avoacute Izidora Contratamos uma van escolar para nos levar de Itambeacute ao Serro na

casa que Zeacute Simatildeo indicava como sendo de D Ana Raimunda Natildeo tiacutenhamos certeza

se era a mesma pessoa de quem estaacutevamos falando pois alguns como a proacutepria D

Zulmira achavam que ela jaacute tivesse morrido Mas Zeacute Simatildeo genro de Seu Daniel

que nos contou que tambeacutem foi criado por Ana Raimunda afirmou que tinha ido visitaacute-

la recentemente Quando chegamos em sua casa logo na primeira pergunta que Adir

fez jaacute tivemos a confirmaccedilatildeo ldquoAna Raimunda irmatilde de Sebastiatildeo de Paulardquo Ela

respondeu ldquoEacute eu mesmordquo

Ana Raimunda da Silva nasceu em 19 de fevereiro de 1925 e tem 87 anos

Viuacuteva seu companheiro Joseacute Teoacutefilo dos Reis faleceu em 31 de agosto de 2014

quando ambos estavam hospitalizados Depois da morte de Teoacutefilo e de sua

recuperaccedilatildeo D Ana continuou morando na mesma casa e ldquopor natildeo ter parentes que

moram proacuteximordquo passou a receber cuidados da vizinhanccedila contando com uma

cuidadora chamada ldquoFatinhardquo Passou a receber tambeacutem o auxiacutelio de ldquopensatildeo por

morterdquo ndash com o intermeacutedio de Josiane outra vizinha que lhe auxiliava com as questotildees

financeiras e prestava esclarecimentos ao Centro de Referecircncia Especializado de

Assistecircncia Social (CREAS) ndash segundo consta do relatoacuterio da assistente social que

Josiane e Fatinha fizeram questatildeo de nos mostrar

166 Questatildeo que como jaacute mencionamos foi apontada pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir da pesquisa realizada por Cassius em 2012 a qual merece desdobramento em pesquisa posterior

201

Seu Joatildeo se apresentou ldquoE a senhora lembra de mim Joatildeo de Izidora que a

senhora criourdquo E jaacute foi logo falando que iria levaacute-la embora com ele para Presidente

PrudenteSP Geralda tambeacutem se apresentou como filha de ldquoManeacute de Paulardquo e

perguntou sobre quais filhos de Maneacute que D Ana ainda tinha lembranccedila D Ana se

lembrou primeiro da sobrinha Jovelina e entatildeo Geralda lhe deu o recado de sua irmatilde

ldquoEla disse que vai vir aqui pra buscar a senhorardquo D Jovelina e D Ana Raimunda

puderam conversar por telefone e ficaram muito felizes depois de cinquenta e nove

anos sem se falarem Jovelina estava desde que saiacutemos de Presidente PrudenteSP

esperando notiacutecias se tiacutenhamos conseguido encontrar sua tia que junto com a avoacute

Izidora cuidou dela de Joatildeo e de Olegaacuterio quando eram pequenos e ficaram sem a

matildee Maria Olinda que havia falecido

Noacutes ficamos horas conversando com ela sobre os parentes e ela nos contou

muitas histoacuterias D Ana Raimunda eacute irmatilde de Manoel Ciriaco apenas por parte de pai

ndash Joaquim Guilherme de Paula ndash assim como Sebastiatildeo Vicente de Paula filhos de

matildees diferentes informaccedilatildeo que Adir e Geralda desconheciam O uacutenico dos irmatildeos

que era filho de Izidora era Manoel Ciriaco Ana Raimunda contou que ela eacute filha de

Joaquim de Paula Guilherme com a sobrinha de Izidora Luiza Eufraacutesio da Silva

Quando Ana nasceu sua matildee Luiza tinha a intenccedilatildeo de em seguida matar o bebecirc

pois era fruto de uma gravidez indesejada D Ana contou entatildeo que Izidora mesmo

com a traiccedilatildeo do marido interveio para lhe salvar enrolando-a na saia Depois disso

sua matildee bioloacutegica Luiza foi embora e ela nunca mais a viu Izidora foi quem a criou

e em retribuiccedilatildeo D Ana cuidou dela ateacute sua morte

Uma hora no meio da conversa D Ana comentou com Fatinha ldquoVocecirc viu a

borboleta A borboleta aqui oacute todo mundordquo E D Ana entatildeo nos explicou sobre o

que estava falando

ldquoChegou uma borboleta aqui de tarde ela chegou ai na porta fez assim oacute (fez o gesto da borboleta voando com a matildeo) e sumiu Ai eu falei assim ldquoUai Fatinha a borboleta taacute chegando aqui na porta quarque coisa eacute alguma notiacutecia ela vai dar E laacute em casa no quarto tem uma direto laacuterdquo (risos)

A borboleta veio anunciando para D Ana a chegada dos sobrinhos Ela havia

recebido haacute algum tempo a notiacutecia por outros parentes da parte de seu irmatildeo

Sebastiatildeo Vicente de Paula que moram na regiatildeo de que seus sobrinhos Olegaacuterio e

Joatildeo jaacute haviam falecido Segundo ela a notiacutecia que eles lhe haviam dado visava

202

confirmar o domiacutenio que o filho de Sebastiatildeo Vicente Geraldo tem hoje sobre a terra

que foi de Izidora E D Ana nos contou que desde que recebeu a notiacutecia rezava

para alma de Joatildeo e Olegaacuterio todos os dias

FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda

Ela natildeo podia imaginar que naquele dia Seu Joatildeo iria visitaacute-la trazendo

consigo mais dois sobrinhos para ela conhecer Geralda e Adir que nasceram no

Paranaacute E D Ana agradeceu ldquoGraccedilas a Deus Eacute Deus que trouxe ocecircs Todo mundordquo

D Ana explicou que natildeo poderia ir agora com eles embora de Serro pois ela ainda

precisava ficar por mais um tempo ali para poder resolver algumas questotildees

pendentes sobre a heranccedila de Teoacutefilo seu marido que faleceu Segundo nos contou

com tristeza os parentes que moram na regiatildeo natildeo visitam mais ela quase natildeo tecircm

contato Ressentiu-se de ficar muito sozinha pois estaacute debilitada e precisando de

cuidados Com a diabetes ela ficou com uma ferida que estava aberta no peacute e que a

impedia de caminhar sem apoio

Noacutes entatildeo combinamos que iriacuteamos manter contato para que ela pudesse ir

passar um tempo com eles no estado de Satildeo Paulo e no Paranaacute Voltando para a

sede do parque naquele 10 de marccedilo de 2015 conversaacutevamos sobre como aquele

tinha sido um dia que entrou para a histoacuteria da famiacutelia No mesmo dia haviacuteamos

encontrado as pessoas que eles mais almejavam as irmatildes de D Maria das Dores D

Zulmira e D Regina e a irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda

203

3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda

No outro dia o quinto e uacuteltimo que ficamos na regiatildeo passamos na igreja

matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Geralda reforccedilou vaacuterias vezes como estava

realizada por chegar naquele lugar sagrado pois nunca tinha imaginado que um dia

poderia ir na igreja que foi frequentada por seu pai e sua matildee onde eles tambeacutem se

casaram

FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A ldquoIgreja Matriz de Santo Antocircniordquo eacute a uacutenica igreja catoacutelica do municiacutepio

Construiacuteda no seacuteculo XVIII se tornou paroacutequia no ano de 1868 Apesar do desgaste

da construccedilatildeo com o passar do tempo a imagem de Santo Antocircnio estaacute preservada

e fica em destaque do lado do altar As histoacuterias sobre a imagem do santo remontam

agrave eacutepoca de construccedilatildeo da igreja matriz Conta-se como a imagem eacute viva167 pois havia

167 ldquoOs santos constituem o exemplo mais claacutessico de objetos ndash objetos de barro ou madeira objetos

narrativos objetos sem mais ndash e de ldquofeitichesrdquo que se manifestam como atores que em cada um de seus avatares natildeo se comportam como intermediaacuterios ou como signos transparentes mas como

204

sido construiacuteda uma capela para abrigaacute-la em outro lugar mas a imagem aparecia no

local onde fica atualmente a igreja como um sinal do santo de que era ali o lugar onde

a igreja deveria ser construiacuteda

Esta era a igreja em que Padre Joviano atuava Como comentamos acima

Padre Joviano foi quem criou Maria Olinda matildee de Joatildeo Jovelina e Olegaacuterio Sobre

ele contaram como era muito caridoso e amoroso com todos e por isso eacute ainda hoje

muito estimado pelo povo do lugar que o considera santo168 Ele estaacute enterrado dentro

da igreja onde as pessoas acendem velas e fazem pedidos por sua intercessatildeo

Joviano Alves Diamantino nasceu em 08 de julho de 1874 e faleceu em 10 de maio

de 1965 com 91 anos Como D Maria Geralda e D Necila haviam nos contado ele

era proveniente do distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras tendo ido depois morar

em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Acima de seu tuacutemulo estaacute afixado em uma placa os seguintes dizeres ldquoComo

Pedro foi pedra fundamental dos ensinamentos de Cristo Padre Joviano foi o pilar da

feacute do povo desta terrardquo Natildeo por acaso a data de sua morte eacute celebrada no calendaacuterio

cultural do municiacutepio conforme consta na paacutegina virtual da prefeitura169 Em duas

casas que visitamos de pessoas que foram suas contemporacircneas no municiacutepio de

Santo Antocircnio do Itambeacute ndash de Seu Daniel e de D Regina ndash vimos a imagem do padre

em um porta-retrato afixado na parede

mediadores razoavelmente opacos () Os meus livros estatildeo cheios de exemplos de como as imagens sagradas (essas imagens tatildeo desprezadas por todos os iconoclastas) satildeo muito mais ativas do que parece a sua materialidade natildeo passa despercebida aos fieacuteis que a partir dela elaboram novos relatos a respeitordquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 215) 168 Segundo o antropoacutelogo Calavia Saez os santos satildeo achados e domesticados por meio de um

processo de canonizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica mas natildeo satildeo instituiacutedos pela instituiccedilatildeo pois tem origem na margem como no caso dos cultos a mortos praticamente anocircnimos (CALAVIA SAEZ p 200) 169 Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidadecalendario-de-eventos Acesso em

121015

205

FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel

Padre Joviano eacute portanto personagem destacado da histoacuteria local como

tambeacutem se evidencia no hino municipal

Estribilho ndash I Para alto para frente Com civismo amor e feacute Povo forte nobre gente Santo Antocircnio do Itambeacute II Das bandeiras heroacuteicas e rudes Tu herdastes os anseios e a feacute Guardiatildeo de lendaacuterias virtudes Junto a ti se levanta o Itambeacute III Foste em Minas o berccedilo do prelo Esta gloacuteria tu tens sem rival Com Geraldo Pacheco de Melo170 Desfraudando o pendatildeo liberal IV Joviano chamou-se o teu Santo Outro igual nunca mais tu teraacutes Seja sempre teu nome o teu canto Numa prece de amor e de paz (grifos nossos)171

Por ter criado Maria Olinda o padre ocupa a posiccedilatildeo de avocirc de Olegaacuterio

Jovelina e Joatildeo Seu Joatildeo nos contou que conviveu muito na casa do padre que

passava por laacute e o padre o chamava de ldquominha Maria Olindardquo ao se lembrar da filha

de criaccedilatildeo que jaacute era falecida Nos contou tambeacutem como o padre sempre lhe dava

algo para comer em um gesto de cuidado e consideraccedilatildeo Hoje a casa do padre eacute

uma moradia particular Na frente haacute uma placa talhada em madeira com a

identificaccedilatildeo ldquoSolar do Padrerdquo

170 Outro importante personagem da histoacuteria local foi ourives e jornalista tendo fundado o primeiro jornal

da regiatildeo ldquoLiberal do Serrordquo em 1828 Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiSanto_AntC3B4nio_do_ItambC3A9 Acesso em 1210015 171 Hino do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute Letra composta por Padre Celso de Carvalho e

melodia por Mozart Bicalho Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidade Acesso em 121015

206

Na imagem abaixo esta relaccedilatildeo de parentesco fica simbolizada na disposiccedilatildeo

assumida por Geralda Seu Joatildeo e Adir ndash que estaacute com as matildeos no ombro da estaacutetua

de Padre Joviano ndash que parece apontar para a percepccedilatildeo de uma continuidade entre

passadopresente e mortosvivos como em outros momentos jaacute destaquei neste

trabalho

FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano

3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente

Seu Joatildeo Adir e Geralda natildeo poderiam segundo eles ir embora sem antes

passarem na terra que foi de Izidora onde Manoel Ciriaco viveu ateacute sua saiacuteda da

regiatildeo Seu Joatildeo ateacute 1981 quando foi morar no siacutetio de seu pai em GuaiacuteraPR

tambeacutem viveu na terra que pertencia a sua avoacute Izidora Nela atualmente moram

parentes que pelas informaccedilotildees que tivemos teriam recebido autorizaccedilatildeo de Geraldo

ndash filho de Sebastiatildeo Vicente de Paula que era irmatildeo de Manoel e D Ana Raimunda ndash

que com a morte do pai ldquotomou conta de tudordquo nos termos D Ana Ela tambeacutem nos

207

contou que quando Manoel foi embora Sebastiatildeo Vicente ocupou toda a terra e natildeo

deixou nenhum espaccedilo para ela que passou a viver na cidade do Serro172

Seu Joatildeo jaacute muito contrariado com tudo que havia sido falado sobre as

ldquoarbitrariedadesrdquo173 do falecido Sebastiatildeo Vicente e agora de Geraldo preparou-se

para conversar com seu primo sobre como tinha ficado a questatildeo do documento da

terra Quando chegamos laacute o clima era hostil Geraldo foi muito incisivo em afirmar

que os filhos de Manoel Ciriaco natildeo teriam mais direito nenhum sobre aquela terra

pois toda a aacuterea tinha sido registrada como propriedade de seu pai Sebastiatildeo Vicente

jaacute que Manoel tinha ido embora dali e nunca mais voltado Como apontamos no

primeiro capiacutetulo a migraccedilatildeo consiste em uma estrateacutegia importante precisamente

para excluir da heranccedila membros da famiacutelia visando evitar o fracionamento da terra

a um ponto que inviabilize a reproduccedilatildeo camponesa (WOORTMANN 2009)

Por outro lado esta postura de Geraldo desconsiderava que Seu Joatildeo havia

morado nesta aacuterea ateacute 1981 e que os irmatildeos filhos do segundo casamento de Manoel

ndash Joaquim e Antocircnio ndash haviam ido ateacute laacute na deacutecada de 1980 quando Sebastiatildeo

Vicente ainda era vivo para vender a parcela hereditaacuteria que cabia a Manoel Ciriaco

Na eacutepoca conforme me contou Joaquim tinham sido recebidos tambeacutem com

hostilidade e a resposta do seu tio foi que ldquonatildeo negociava com molequerdquo e que

Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel era quem teria que ir pessoalmente laacute para

que fosse feito qualquer acordo Esta fala de Sebastiatildeo Vicente mostra que soacute o

primogecircnito dentre os filhos de Manoel ndash que ademais nasceu e morou na aacuterea ndash

poderia reivindicar a parte do pai ao passo que Antocircnio ndash que saiu de MG com quatro

anos de idade ndash e Joaquim ndash que nasceu na regiatildeo de Presidente PrudenteSP no

municiacutepio de CaiabuSP ndash ambos filhos do segundo casamento natildeo seriam

172 Pelo que se pocircde observar ateacute o momento haacute uma possibilidade de que as mulheres segundo o

arranjo costumeiro natildeo fossem herdeiras pois no sistema tradicional camponecircs geralmente elas natildeo satildeo incluiacutedas na heranccedila sendo portanto recompensadas por meio do dote pago agrave famiacutelia do marido quando se casam Posteriormente a mulher eacute incluiacuteda na heranccedila do marido (SEYFERTH 1985) Para poder fazer esta afirmaccedilatildeo de modo mais consistente no entanto seraacute necessaacuterio um aprofundamento da pesquisa na regiatildeo Soacute desta forma seraacute possiacutevel compreender as regras locais sobre o direito de heranccedila 173 Os dados levantados indicam que este parece ser um caso de ldquoheranccedila indivisardquo ou ldquoheranccedila

impartiacutevelrdquo camponesa conforme o direito costumeiro tendo em vista que o modelo de heranccedila igualitaacuteria por todos os herdeiros previsto no direito civil natildeo corresponde agraves estrateacutegias acionadas no mundo rural brasileiro Neste modelo de ldquoheranccedila indivisardquo apenas um herdeiro fica com toda a propriedade familiar (SEYFERTH 1985) No caso em questatildeo a heranccedila fica para Sebastiatildeo Vicente ao passo que Manoel migra para o Paranaacute e Ana Raimunda natildeo herda nenhuma parcela

208

reconhecidos pelo tio neste sentido conforme apontariam as regras locais de direito

costumeiro

Deve-se levar em conta ainda que os acordos locais sobre os acertos de

heranccedila podem abranger estrateacutegias variadas conforme as condiccedilotildees de escassez de

terras bem como outros fatores importantes avaliados em um dado momento Aleacutem

desta possibilidade de variaccedilatildeo das proacuteprias regras conforme a situaccedilatildeo eacute possiacutevel

perceber neste caso especiacutefico da famiacutelia de Manoel que haacute uma variaccedilatildeo no modo

de interpretaccedilatildeo das regras a partir da perspectiva especiacutefica dos sujeitos que estatildeo

posicionados de modos diferentes na estrutura familiar Eacute possiacutevel tambeacutem que haja

uma combinaccedilatildeo da estrateacutegia interpretativa local com os argumentos da legislaccedilatildeo

civil nacional

No caso de Seu Joatildeo Adir e Geralda pude observar nas conversas sobre o

tema da heranccedila a presenccedila do entendimento de que os filhos de Manoel que

moraram na terra de sua avoacute Izidora teriam o direito de retorno e de reivindicaccedilatildeo de

uma parte da aacuterea mesmo depois de anos que saiacuteram da regiatildeo Galizoni em estudo

sobre a regiatildeo no Alto Vale do Jequitinhonha muito proacuteximo da aacuterea aqui em questatildeo

apontou como a entrada do herdeiro potencial com seu retorno apoacutes a migraccedilatildeo eacute

uma situaccedilatildeo conflituosa Isso porque se cria sobre a terra ldquocamadas de direitos que

convivem uns com os outros e se sobrepotildeemrdquo (GALIZONI 2002 571)

Idealmente todos os irmatildeos tecircm direitos iguais assim como todos os netos e bisnetos Acontece que no jogo de dados que se estabelece entre filhos (as) no interior da famiacutelia e as conjunturas externas dadas por migraccedilatildeo trabalho casamento processos de acumulaccedilatildeo e ambiente cria-se uma diferenciaccedilatildeo interna na famiacutelia que se refletiraacute nas diversificaccedilotildees de trajetoacuterias e destinos e seraacute fundamental para a construccedilatildeo do herdeiro e do migrante Essas diferenciaccedilotildees podem ocorrer tanto na mesma geraccedilatildeo ndash entre irmatildeos por exemplo ndash quanto entre geraccedilotildees no caso tios e sobrinhos A partilha da terra e a sua passagem entre geraccedilotildees ocorrem atraveacutes de um processo que se desenrola no interior da famiacutelia articulado com processos exteriores (GALIZONI 2002 571)

No jogo entre herdeiros a terra principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos

agricultores eacute valorizada como um recurso valioso de modo que as disputas entre

parentes pela heranccedila camponesa decorrem de sua escassez A interpretaccedilatildeo por

parte de Seu Joatildeo Adir e Geralda acima mencionada de que os filhos de Manoel

Ciriaco que viveram neste siacutetio em Santo Antocircnio do Itambeacute seriam ldquoherdeiros

potenciaisrdquo ndash entendendo a heranccedila como um viacutenculo simboacutelico que natildeo se dilui com

209

o tempo e que garante assim a possibilidade de retorno ou reivindicaccedilatildeo da parcela

hereditaacuteria ndash conjugou-se com a possibilidade discutida naquele momento de que

futuramente decidissem acionar judicialmente o direito agrave reparticcedilatildeo igualitaacuteria entre os

herdeiros previsto na legislaccedilatildeo

Os acircnimos entre Seu Joatildeo e Geraldo poderiam ter se exaltado mas a minha

presenccedila e a do professor Matheus que foi quem nos levou fizeram com que como

Seu Joatildeo comentou ele tivesse se contido de modo que preferiu se retirar a gerar

uma confusatildeo Mesmo sem conseguirem ver uma possibilidade de negociaccedilatildeo sobre

o direito que entendem possuir sobre aquela terra principalmente em referecircncia aos

trecircs irmatildeos mais velhos que laacute viveram para Geralda e Adir soacute o fato de terem ido

conhecer o siacutetio onde seu pai e sua avoacute Izidora moraram jaacute foi muito significativo

Se por um lado a postura de Seu Joatildeo reforccedila um conjunto de relaccedilotildees

comuns ao campesinato como questotildees de honra que estatildeo baseadas na valorizaccedilatildeo

do trabalho e do sofrimento que seu pai passou ali ndash o que sustenta a sua leitura da

atitude da famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente como um ato de expropriaccedilatildeo ndash por outro

lado a postura de Geraldo pode estar embasada em regras de direito costumeiro que

sustentam estrateacutegias sucessorais locais jaacute que como analisamos acima o modo de

lidar com a heranccedila na aacuterea rural natildeo eacute uma praacutetica fixa que obedeccedila a regras gerais

do direito civil (SEYFERTH 1985 p 09)

Ao mesmo tempo reivindicar essa aacuterea seria retirar aqueles que atualmente

constroem suas vidas a partir dela jaacute que se conseguissem retomaacute-la provavelmente

natildeo haveria intenccedilatildeo de as famiacutelias de Jovelina Joatildeo e Olegaacuterio passarem a viver ali

O que mais se apontou foi a intenccedilatildeo de que a parcela hereditaacuteria fosse vendida

visando garantir melhores condiccedilotildees financeiras na localidade onde vivem hoje

Presidente PrudenteSP Com a impossibilidade de negociaccedilatildeo com Geraldo no

entanto esta questatildeo ficou suspensa para refletirem posteriormente se iriam mesmo

tomar qualquer atitude para reaver a aacuterea

Por fim no que toca aos descendentes de Sebastiatildeo Vicente tambeacutem

visitamos a casa da ex-mulher de seu filho Aniacutezio Aniacutezio estaacute haacute muitos anos

morando no Paraguai depois de ter vivido com os parentes em GuaiacuteraPR e natildeo

manteacutem mais contato com seus filhos Juliana ndash filha de Aniacutesio e sua ex-mulher

Ceciacutelia que retornou a morar em Santo Antocircnio do Itambeacute com a matildee em meados da

deacutecada de 1980 depois de terem vivido um periacuteodo na regiatildeo de GuaiacuteraPR com seu

210

pai ndash entregou a Adir entatildeo uma carta para que ele fizesse chegar ateacute Aniacutezio na

qual estava escrito

Meus irmatildeos satildeo Marcelo Erlindo Vardeti Pedro Eva

Uomesan (incompreensiacutevel) e Carlos Quase todos tem

famiacutelias Meu nome eacute Juliana tenho oito filhos um moreu

em asidenti de carro com bicicleta U nome deles satildeo

Karina Wilka Tomaz Francineli Joatildeo Vitor Camila

Igridi e Julia Eu queria encontrar meu pai para ele me

achuda minha casa taacute quase caindo o nome dele eacute Anizio

Dionizio de Paula Quando eu sai de terra rocha eu era

muito pequena Eu agora capino para sobreviver e cuidar

da minha famiacutelia Tudo que eu quero eacute encontrar meu pai

Eu queria que ele me achudace natildeo tem ninguem que me

achuda aleacutem de Deus e Nossa Senhora174

Ceciacutelia e seus filhos foram a uacutenica famiacutelia que depois de terem se mudado para

a regiatildeo de Guaiacutera (na carta Juliana cita que morou em Terra Roxa municiacutepio

vizinho) retornaram para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Este caso de retorno indica

como a modalidade de migraccedilatildeo se temporaacuteria ou definitiva soacute pode ser definida no

fim da vida das pessoas (GALIZONI 2002 p 569) Pelo que Juliana relata na carta e

pelas condiccedilotildees de moradia que vimos na casa de Ceciacutelia atualmente estatildeo

passando por muitas dificuldades financeiras e podem vir a ser uma das famiacutelias com

interesse em retornar para o siacutetio em GuaiacuteraPR a partir da regularizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo

da aacuterea por meio do procedimento em tracircmite no INCRA

324 Novos movimentos

Depois de nossa estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG retornamos para

SerroMG de onde pegamos um ocircnibus para Belo HorizonteMG De laacute eu e Cassius

embarcamos de aviatildeo para CuritibaPR enquanto Adir e Geralda voltaram de aviatildeo

ateacute CascavelPR e de laacute puderam seguir de ocircnibus ateacute GuaiacuteraPR Seu Joatildeo por sua

vez foi de ocircnibus ateacute Presidente PrudenteSP Interessante destacar que em

Cascavel Adir e Geralda pernoitaram na casa de parentes e tambeacutem aproveitaram

para fazer uma visita e ldquocolocar a conversa em diardquo

174 Adotei o uso de um formato de letra que se aproxime da letra cursiva para fazer referecircncia agrave transcriccedilatildeo de textos escritos por meus interlocutores(as)

211

Com o impacto que a primeira viagem teve para Adir Geralda e Seu Joatildeo

bem como para mim e para Cassius a possibilidade de um retorno ndash visando a

conclusatildeo de algumas questotildees prementes que ficaram abertas com esta retomada

do contato ndash fez com que eu e Cassius jaacute iniciaacutessemos o planejamento de uma nova

viagem A intenccedilatildeo agora era que D Maria das Dores fosse ateacute Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG reencontrar suas irmatildes e que D Jovelina encontrasse sua tia D Ana

Raimunda em SerroMG e a trouxesse para morar com ela em Presidente

PrudenteSP Demorou quase trecircs meses ateacute que todo este processo fosse articulado

Em 05 de junho uma sexta-feira eu e Cassius desembarcamos de aviatildeo em Belo

HorizonteMG enquanto D Maria das Dores e D Jovelina viajavam juntas de ocircnibus

desde Presidente PrudenteSP Desta vez tanto D Ana Raimunda como D Zulmira

e D Regina estavam cientes da nossa chegada e nos aguardavam para aquele fim

de semana

Eu e Cassius resolvemos entatildeo alugar um carro em Belo Horizonte para que

pudeacutessemos ter mais autonomia nos deslocamentos entre Serro e Santo Antocircnio do

Itambeacute e tambeacutem para proporcionar mais conforto agraves duas senhoras D Maria das

Dores e D Jovelina que estavam conosco aleacutem da possibilidade de que D Ana

Raimunda tambeacutem retornasse no final da viagem Por outro lado a opccedilatildeo do aluguel

do carro fez com que nos programaacutessemos para ficar apenas o final de semana jaacute

que tiacutenhamos que devolvecirc-lo na segunda-feira dia 08 de junho Apesar de ter sido

uma viagem curta como veremos abaixo este final de semana proporcionou

segundo elas tudo o que D Maria das Dores e D Jovelina almejavam

3241 O reencontro das irmatildes

Quando chegamos na casa de D Zulmira com D Maria das Dores e D

Jovelina jaacute era de madrugada e elas ficaram sem dormir conversando muito felizes

de poderem se atualizar sobre as histoacuterias as experiecircncias de vida os sofrimentos e

as alegrias Aquele reencontro tatildeo esperado tinha se concretizado No outro dia de

manhatilde saacutebado 06 de junho foi que D Maria encontrou entatildeo D Regina que eacute

vizinha de sua irmatilde D Zulmira

Eu e D Zulmira fomos na padaria comprar patildeo para o cafeacute D Zulmira estava

tatildeo eufoacuterica por conta do reencontro com sua irmatilde que foi logo contando para o dono

212

da padaria Alex sobre a vinda de D Maria das Dores que natildeo via haacute muitos anos

Alex que era tambeacutem comentarista nas missas da Igreja de Santo Antocircnio ficou muito

feliz com a notiacutecia de D Zulmira Comentou entatildeo da possibilidade de conversar com

o padre para pedir que eu fizesse um testemunho na missa que ocorreria agraves 19h

contando esta histoacuteria do reencontro entre as irmatildes Este convite se justificava

tambeacutem pelo fato de que aquele dia 06 de junho era o primeiro dia dos festejos para

Santo Antocircnio cuja ldquodata augerdquo da festa seria no saacutebado seguinte dia 13 de junho o

dia do santo Esta sincronia da nossa chegada com o calendaacuterio sagrado daquele

lugar fez com que Alex atribuiacutesse agrave intercessatildeo de Santo Antocircnio aquele

acontecimento que era tatildeo esperado por D Zulmira e D Regina

Os eventos relacionados ao catolicismo como a Festa de Santo Antocircnio o

santo padroeiro do municiacutepio satildeo os grandes eventos da sociabilidade local na regiatildeo

do Vale do Jequitinhonha (PORTO 2007 p 156) Assim que chegou a notiacutecia de que

o padre tinha concordado com a ideia os parentes ficaram muito animados e felizes

principalmente as trecircs irmatildes que consideraram este fato uma importante forma de

reconhecimento e valorizaccedilatildeo local da histoacuteria da famiacutelia bem como uma confirmaccedilatildeo

do caraacuteter sagrado daquele reencontro

Conversei entatildeo com D Maria das Dores que mesmo sendo evangeacutelica

aceitou e ficou feliz com a possibilidade de dar seu testemunho mas fez questatildeo de

apontar que segundo seu ponto de vista natildeo se tratava de milagre do santo mas de

obra de Deus diretamente No primeiro capiacutetulo destaquei neste sentido a

importacircncia das relaccedilotildees de continuidade percebidas pelos meus interlocutores(as)

entre diferentes religiotildees para aleacutem das divergecircncias existentes Podemos nos

lembrar por exemplo da fala de Eva de que ldquoDeus eacute um soacuterdquo compreensatildeo novamente

reforccedilada pela decisatildeo de D Maria das Dores em participar do ritual catoacutelico

Combinamos entatildeo que eu faria uma pequena fala introdutoacuteria e passaria o

microfone para ela relatar sua chegada em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG depois de

muitos anos sem contato com a famiacutelia E assim fizemos Depois da comunhatildeo como

estava acertado Alex que estava fazendo os comentaacuterios da missa fez um gesto

sinalizando que era a hora de subirmos ateacute o altar D Maria das Dores depois de

minha pequena introduccedilatildeo contextualizando a pesquisa e o subsiacutedio que havia sido

dado para aquele reencontro agradeceu a Deus pela oportunidade de seu retorno

que era uma grande benccedilatildeo na sua vida e de seus familiares Contou um pouco de

213

sua trajetoacuteria e fez questatildeo de enfatizar que ela natildeo tinha saiacutedo de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ldquopor orgulhordquo mas porque ldquotinha sido buscadardquo Afirmou que temos

sempre que glorificar a Deus por suas obras e concluiu sua fala de modo um tanto

tiacutemido mas com muita firmeza

No final da missa as trecircs irmatildes foram novamente ateacute o altar para

cumprimentar e agradecer ao padre tirar fotos e neste momento foram aplaudidas

por todos os presentes Apoacutes a missa houve uma confraternizaccedilatildeo em frente agrave Igreja

onde havia uma barraca na qual se podiam comprar comidas e bebidas iniciando as

festas juninas

FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

De alguma forma eu e Cassius fizemos parte daquilo que para elas era

consequecircncia de um milagre e segundo afirmaram vaacuterias vezes tiacutenhamos sido

enviados por Deus para trazer esta benccedilatildeo para a famiacutelia Interessante observar

neste sentido como o catolicismo eacute uma linguagem muito presente que sustenta o

modo de compreensatildeo das pessoas e lhes daacute um horizonte de futuro bem como uma

estabilidade no presente mesmo em situaccedilotildees de adversidade Ao falarem da morte

por exemplo usam a expressatildeo ldquoDeus levourdquo ao comentarem que moram sozinhos

214

ressalvam ldquomoro eu e Deusrdquo ao dizerem que natildeo podem contar com ningueacutem como

na carta de Juliana lembram-se da ajuda ldquode Deus e Nossa Senhorardquo Esta

concepccedilatildeo catoacutelica de mundo eacute tida como a forma legiacutetima de falar dos

acontecimentos e dizer que eacute um milagre natildeo traz necessariamente um sentido de

extraordinaacuterio pois tudo estaacute sobre o domiacutenio da justiccedila divina O sagrado portanto

faz parte do cotidiano e fornece a base dos valores fundamentais a serem seguidos

a partir da religiosidade cristatilde (PORTO 2007 p 157)

Nos dois dias que D Maria passou em Santo Antocircnio do Itambeacute ela pocircde

reencontrar vaacuterios sobrinhos e tambeacutem parentes que ainda natildeo conhecia pois a

maioria foi lhe ver na casa de suas irmatildes Ela foi muito bem recebida e acolhida por

todos que estavam em clima de festa A partir deste reencontro trocaram contatos no

intuito de que natildeo haja mais um lapso de convivecircncia e de comunicaccedilatildeo como ocorrido

anteriormente

FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira (no canto esquerdo) sua

sobrinha com o marido e os filhos

215

Antes de partimos gravamos um viacutedeo com as trecircs irmatildes contando sobre

como tinha sido aquele reencontro D Maria das Dores entatildeo comentou

D Maria Que noacutes foi muito bem recebida E eu tenho trecircs irmatildeos em Belo Horizonte e ateacute isso eu jaacute consegui conversar hoje com uma soacute E amanhatilde eu espero que se Deus quiser ela taacute na rodoviaacuteria pra noacutes se ver Entatildeo eu fiquei muito feliz neacute porque a gente viu meu sobrinho tudo minha sobrinha tocirc muito alegre Gloacuteria a Deus por isso E eu vou falar verdade que eu fui muito bem recebida na casa da cumadi Zulmira minha irmatilde e na casa da cumadi Regina E graccedilas a Deus laacute eu vou levando muita alegria porque tocirc vendo que taacute tudo bem neacute tudo em ordem muita fartura muita alegria e muita uniatildeo Gloacuteria a Deus por isso

Por fim jaacute na rodoviaacuteria de Belo Horizonte mais um reencontro aconteceu

entre D Maria das Dores e suas duas irmatildes que moram na capital mineira Teresa e

Anita Elas haviam combinado por telefone enquanto estaacutevamos em Santo Antocircnio

do Itambeacute que na segunda-feira se encontrariam na rodoviaacuteria da capital O uacutenico

irmatildeo que D Maria natildeo viu foi Joaquim que tambeacutem mora em Belo Horizonte mas

natildeo pocircde encontraacute-la naquele dia Segundo D Maria das Dores ela ficou imaginando

a possibilidade de um novo retorno com mais tempo para um encontro entre todos

os irmatildeos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

FIGURA 37 (Da esquerda para a direita) Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo Horizonte

216

3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda

D Jovelina estava ansiosa pelo reencontro com a tia Ana Raimunda que natildeo

via haacute cinquenta e nove anos desde que saiu de laacute em 1956 quando tinha catorze

anos Nesta segunda viagem depois de termos pousado a primeira noite na casa de

D Zulmira em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG no saacutebado pela manhatilde eu e Cassius

levamos D Jovelina na casa de D Ana Raimunda que morava em Serro Quando

chegamos D Ana Raimunda nos aguardava tambeacutem ansiosa pois haviacuteamos dito que

chegariacuteamos na noite anterior o que natildeo havia sido possiacutevel O encontro entre as

duas foi de muita alegria

Dandara Bom dia pra senhora

D Ana Bom dia tudo bem

Dandara Tudo bom Graccedilas a Deus

D Jovelina Ei minha matildeezinha do ceacuteu sua benccedilatildeo

D Ana Oi minha fia tem anos que eu natildeo vejo pelo amor de Deus Que tempo Jaacute tem uns quarenta anos ou mais

D Jovelina Eu natildeo to acreditando meu Deus do Ceacuteu

D Ana Jaacute tem uns quarenta anos ou mais Hein

D Jovelina Acho que eacute sessenta anos

D Ana Sessenta anos Noacute pelo amor de Deus Sumiu

D Jovelina A senhora vai comigo agora dessa vez

D Ana Que dia que vocecirc vai

D Jovelina Segunda-feira

D Ana Graccedilas a Deus Eu tocirc arrumando Que eacute eu sozinha com Deus aqui oacuteh (junta as matildeos como em oraccedilatildeo)

D Jovelina Agora eu vou te levar pra laacute vou ponhar papinha na sua boca

D Ana Eu sei boba

D Jovelina Vou te dar banho vou te carregar ponha na cama pra dormir

D Ana (risos) Ograve minha companheira

D Jovelina O que eu puder fazer eu vou fazer

D Ana Se Deus quiser Vai dar um pouquinho de confusatildeo mas vai dar certo Eu gostei que vocecirc vai segunda que segunda vai daacute tempo de noacutes arrumar tudo Vamo entrar pra dentro

217

FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos

D Ana Raimunda jaacute estava se preparando para ir para a casa de D Jovelina

em Presidente PrudenteSP e contou com a ajuda da sobrinha que passou com ela

o final de semana para organizar e levar o maacuteximo de coisas possiacuteveis Ela disse que

natildeo estava se mudando definitivamente pois ainda teria que voltar para Serro com o

intuito de vender a casa que era de seu falecido marido Teacuteofilo e ver questotildees

relacionadas agrave heranccedila entre ela e os dois filhos dele

D Ana estava muito feliz pois agora teria sempre companhia cuidados amor

de familiares e natildeo ficaria mais tatildeo sozinha e desamparada como se sentia ali Na

segunda-feira pela manhatilde conseguimos despachar as vaacuterias sacolas e bagagens de

D Ana pelo ocircnibus e seguimos de carro ateacute a rodoviaacuteria de Belo Horizonte D Ana

estava muito tranquila durante todo o percurso e assim foi ateacute chegar em Presidente

PrudenteSP acompanhada de D Jovelina e D Maria das Dores que seguiram

viagem juntas D Ana estaacute haacute cinco meses morando com D Jovelina e se sente muito

bem junto da famiacutelia como pude observar em agosto de 2015 quando fui visitaacute-la na

casa de D Jovelina

218

FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa da sobrinha Jovelina

Eacute possiacutevel perceber deste modo como estes reencontros apontaram para

dinacircmicas que operam entre relaccedilotildees de proximidade e de distacircncia em famiacutelias

como esta marcadas por situaccedilotildees de deslocamento natildeo haacute rupturas definitivas mas

potencialidades que podem dinamizar ou colocar as relaccedilotildees em letargia A facilidade

e a intensidade da retomada do contato por meio das viagens realizadas nas quais

foram refeitos partes dos caminhos de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100)

confirmaram a forccedila do sentimento de viacutenculo com os parentes e de continuidade com

este passado comum

Da situaccedilatildeo de isolamento que se reportavam em relaccedilatildeo agrave experiecircncia do

grupo em GuaiacuteraPR antes do autorreconhecimento como quilombolas foi possiacutevel

chegar a um novo momento em que houve um acionamento significativo da ampla

rede social de parentesco Ademais estas relaccedilotildees de parentesco entre as famiacutelias

que se deslocaram para o estado de Satildeo Paulo e para o Paranaacute e as famiacutelias

quilombolas da regiatildeo de origem tende a operar como um iacutendice da ldquoquilombolidaderdquo

do grupo Eacute possiacutevel assim identificar trecircs momentos centrais de institucionalizaccedilatildeo

da alteridade da ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

219

(a) no primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo natildeo foi reconhecido pelos

pesquisadores nenhum ldquograurdquo de alteridade

(b) no segundo relatoacuterio antropoloacutegico foi fundamentada a existecircncia de

alteridade em continuidade com o passado mineiro do grupo com base na pesquisa

realizada na regiatildeo de SerroMG e

(c) com as duas viagens de volta realizadas em marccedilo e junho de 2015 houve

por fim um significativo fortalecimento do sentimento de continuidade dos quilombolas

com sua origem comum bem como maiores subsiacutedios para sustentar a legitimidade

histoacuterica e a possibilidade de reivindicaccedilatildeo de direitos do grupo no presente

De algum modo como jaacute mencionamos foi esta demanda por coesatildeo e

coerecircncia das narrativas do grupo que impulsionou o retorno dos proacuteprios quilombolas

agrave regiatildeo de origem como um aprofundamento do processo de ldquoauto-organizaccedilatildeo em

termos poliacuteticosrdquo e concomitantemente de ldquoarticulaccedilatildeo dos antigos costumes e

formas de relacionamento social com as novas regras a que estatildeo submetidosrdquo

(ARRUTI 1997 23-24) Para aleacutem desta dimensatildeo pragmaacutetica houve uma

transformaccedilatildeo natildeo soacute na identidade quilombola com a multiplicaccedilatildeo dos espaccedilos

pelos quais eacute validada (ARRUTI 1996) mas tambeacutem na vida e nas trajetoacuterias dos

sujeitos envolvidos com estas experiecircncias de retorno

A realizaccedilatildeo destas duas viagens agrave Minas Gerais em marccedilo e junho de 2015

criou um entrelaccedilamento do movimento dos meus interlocutores(as) e do processo de

pesquisa que gerou esta dissertaccedilatildeo Este diaacutelogo aberto decorre da proximidade e

da relaccedilatildeo de confianccedila que jaacute possuiacuteamos criada por meio de um contato que se

estende desde 2011 Foi portanto a circulaccedilatildeo por espaccedilos institucionais a partir do

autorreconhecimento como quilombolas que os conectou com agentes do estado e

com pesquisadores como eu e Cassius que criou um contexto favoraacutevel para a

realizaccedilatildeo dessas viagens de volta

Neste percurso sinuoso da trajetoacuteria histoacuterica destas famiacutelias quilombolas

marcada por continuidades e descontinuidades busquei compreender o grupo ldquopor

meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenocircmenos distribuiacutedos

por diferentes locais escalas e temposrdquo (ARRUTI 2006 p 35) Foi possiacutevel perceber

deste modo como a histoacuteria da comunidade eacute construiacuteda como resultado de um

processo de negociaccedilatildeo Como jaacute mencionado a adoccedilatildeo da identidade implica na

proacutepria produccedilatildeo dessa realidade em uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre o herdado e o

220

projetado (ARRUTI 1997 p 28) a partir da categoria geneacuterica de ldquoquilombolardquo cujo

caraacuteter juriacutedico-administrativo eacute o caminho pelo qual as coletividades organizadas

podem se auto-objetivar (ARRUTI 2006 44)

A ldquoplasticidade identitaacuteriardquo formadora desses grupos permite efetivamente que eles ldquoresgatemrdquo ldquorecuperemrdquo elementos substantivos de identidade que passam a integrar seus processos de emergecircncia mas como ldquomateacuterias-primasrdquo que precisam ser manufaturadas pelas forccedilas mobilizadas no seu interior na forma de desejos coletivos (ARRUTI 1997 p 28)

Este passado pensado em comum estaacute portanto sendo elaborado a partir

do momento presente (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 24) o que destaca o

lugar central que estas viagens a Minas Gerais passaram a ocupar em tal processo

de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria Imagino ter sido suficientemente exposto ao longo

deste trabalho a centralidade para estas famiacutelias quilombolas do que podemos

compreender por meio da expressatildeo ldquodever de memoacuteriardquo entendido ldquocomo um ldquodireito

agrave reparaccedilatildeo em funccedilatildeo do esquecimento e guetificaccedilatildeo a que foram submetidas suas

histoacuterias ao longo do seacuteculo XXrdquo (MATTOS ABREU 2011 p 150) Com as viagens

realizadas em marccedilo e junho de 2015 este ldquodever de memoacuteriardquo se transformou em

algo acessiacutevel para os proacuteprios quilombolas de GuaiacuteraPR ao retraccedilarem o caminho

de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) Por meio destas viagens foi possiacutevel

compreender na praacutetica a necessidade de dessubstancializaccedilatildeo da identidade no

sentido de perceber como esta eacute construiacuteda pela tomada de consciecircncia sobre as

diferenccedilas e natildeo pelas diferenccedilas em si (SCHWARCZ 1999 p 296)

221

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Eu vou contar um pouco da minha histoacuteria pra vocecircs

Dandara e alguns mais importante com esse assunto Em

primeiro lugar o assunto eacute esse eu era companheiro de

minha matildee aos 4 anos e meio de idade eu completei 5 anos

na estrada muito sofrido ateacute que um senhor passou por ela

e chegou ateacute falar ldquodona a senhora vai matar esse menino

por favor natildeo faccedila isso natildeordquo Mais com todos sofrimentos ela

foi pelejando com a vida e noacutes continuamos mais tem aquele

ditado ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo Era muito difiacutecil porque

tudo era com o sofrimento ateacute para agente estudar tinha

que andar 4 km para ir e mais 4 km de voltar tinha que ir

a peacute as vez ateacute discalccedilo nem sapato noacutes natildeo tinha tempo de

frio com bluza uma calccedila todos dias sempre furava o fundo

era costurado toda vez tinha hora que natildeo tava nem

aceitando remendo mais natildeo tinha onde remendar mais

Quando a gente ganhava alguma peccedila de roupa agente

nem sabia o que fazia de tanta alegria Tinha que ir a aula

e voltar de pressa para poder ganhar uns troco ainda porque

meu pai era doente natildeo podia trabalhar que ele sentia um

bronquite forte e ficava muito canccedilado coitado ele viveu ateacute

43 anos com muito sofrimento e agente natildeo podia deixar

sem o remeacutedio porque agente tinha doacute que noacutes natildeo queria

ver ele naquele sofrimento era muito triste o estado que ele

ficou mais fazer o que todos noacutes tem que passar por isso A

gente comeccedilou a trabalhar muito cedo mais a gente soacute

ajudou os outros arrumar a vida deles e noacutes ficou Eu tive

uma chance no quartel eles queria que servisse mais por

motivo do falecimento do meu pai eu natildeo pude servi outra

chance eu tive tambeacutem foi no accedilougue para trabalhar natildeo

pude tambeacutem porque noacutes tinha lavoura de algodatildeo mais

natildeo dava muito porque era as meias tudo dividido pela

metade e assim noacutes continuamos Mais graccedila a Deus estamos

ai mais natildeo pode perder a esperanccedila cada um de noacutes temos

a nossa cruz para carregar ningueacutem passa por ela a num

ser a gente Hoje graccedilas meu Bom Deus eu tenho um lugar

para agente amparar uma motinha natildeo eacute nova mais da

para agente quebrar um galho temos roupas temos

alimentos para noacutes poder alimentar temos lugar para poder

plantar alguma coisa O que noacutes queremos eacute um apoio do

Governo Federal e temos que trabalhar reunidos com paz e

amor e concentrar naquilo que estamos fazendo Fazemos

um projeto para termos um sombrite para organizar melhor

a horta para sair uns bons lucros o sombrite ajuda e proteja

do sol e o tempo da geada Escrevido por Antocircnio Aparecido

dos Santos

222

Este texto trazido como epiacutegrafe destas consideraccedilotildees finais foi escrito por

Antocircnio Aparecido dos Santos marido de Geralda e entregue a mim enquanto estive

hospedada em sua casa na vila Eletrosul durante o trabalho de campo realizado em

GuaiacuteraPR Antocircnio conhecido pelo seu apelido Guaraacute eacute filho de Maria Madalena

Rocha dos Santos e Joseacute dos Santos175 casal que tambeacutem era proveniente de Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG e viveram em GuaiacuteraPR ateacute falecerem O texto de Antocircnio eacute

aqui destacado por ser significativo para pensar a importacircncia de aspectos analisados

ao longo desta dissertaccedilatildeo sobre este grupo quilombola Desta histoacuteria que Antocircnio

nos conta a mim e ldquoalguns mais importante com esse assuntordquo gostaria de analisar

alguns elementos

Antocircnio deixa expliacutecito logo no iniacutecio de sua narrativa sua expectativa de que

ela pudesse chegar ateacute pessoas que tenham interesse e atuaccedilatildeo com a temaacutetica

quilombola de modo que haja publicidade para suas memoacuterias para sua trajetoacuteria de

luta e feacute bem como para seus anseios de que haja uma melhor condiccedilatildeo de vida para

as famiacutelias Articula suas reflexotildees assim de modo a destacar elementos desta

memoacuteria que satildeo definidos por ele como significativos a partir do momento presente

de sua vida e da sua percepccedilatildeo sobre a trajetoacuteria coletiva do grupo quilombola

Ele ressalta em primeiro lugar como completou cinco anos ldquona estradardquo Filho

uacutenico era o companheiro de sua matildee jaacute que seu pai estava doente Ao acompanhaacute-

la em suas tarefas diaacuterias ele narra como ainda muito novo tinha que enfrentar

extensos trajetos de caminhada Para estudar novamente a experiecircncia do sofrimento

trazido por este caminhar mas acrescenta ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo e assim

sugere a importacircncia que atribui agrave religiosidade para a superaccedilatildeo das adversidades

da vida e da cruz que cada um tem que carregar Como vimos no primeiro capiacutetulo

este modo de elaborar a experiecircncia do sofrimento na interface com a feacute constroacutei um

saber sobre o mundo Saber pautado pela religiosidade cristatilde que vista pela lente de

um catolicismo negro eacute permeada pela religiosidade umbandista da qual Antocircnio eacute

adepto junto com sua esposa Geralda

Quando ainda crianccedilas voltavam da escola depois de oito quilocircmetros de

caminhada percorrida Antocircnio conta como tinham ainda que enfrentar uma jornada

de trabalho na roccedila que no caso dele era ainda mais necessaacuterio pelo fato de que ele

175 Joseacute dos Santos era irmatildeo de Geraldo do Santos que adquiriu um dos lotes da aacuterea original da

famiacutelia em GuaiacuteraPR

223

e a matildee tinham que cuidar de seu pai adoentado O trabalho que os membros da

comunidade realizaram desde muito novos para sobreviver contribuiu segundo ele

ldquoparra arrumar a vida delesrdquo se referindo agrave melhoria da situaccedilatildeo econocircmica dos

proprietaacuterios vizinhos e em contraste ldquonoacutes ficourdquo mostrando que natildeo foi possiacutevel

reverter os benefiacutecios deste trabalho para as proacuteprias famiacutelias da comunidade Este

contexto de interaccedilatildeo com os proprietaacuterios vizinhos a experiecircncia de ldquotrabalhar para

os outrosrdquo permeia a histoacuteria do grupo e eacute interpretada pelos quilombolas como uma

reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo de preconceito e exclusatildeo ndash um dos fatores que motivou o

movimento de saiacuteda das famiacutelias de Minas Gerais Se o deslocamento era uma

estrateacutegia de busca por autonomia e liberdade visando a superaccedilatildeo dos processos

de exclusatildeo nos quais estavam inseridos o processo de fixaccedilatildeo em um novo contexto

acaba por reproduzir as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo

Antocircnio faz referecircncias entatildeo a oportunidades de profissionalizaccedilatildeo que teve

quando jovem fora da aacuterea rural e complementa explicando os motivos pelos quais

natildeo foi possiacutevel investir nestas carreiras A alternativa de inserccedilatildeo no mercado de

trabalho urbano natildeo se consolida como um caminho de fato viaacutevel de modo que a

estruturaccedilatildeo de sua vida continua passando pelo trabalho na aacuterea rural mesmo

quando vai residir em uma vila da periferia de GuaiacuteraPR E novamente reforccedila a

importacircncia da feacute da esperanccedila e da gratidatildeo a Deus na melhoria de suas condiccedilotildees

de vida pois atualmente ele e sua esposa tecircm moradia proacutepria um meio de transporte

(motinha) roupas alimentos Aleacutem disso a permanecircncia da famiacutelia no territoacuterio em

GuaiacuteraPR permite a reproduccedilatildeo do trabalho familiar um certo niacutevel de autonomia

alimentar um modo de vida especiacutefico

Este ldquolugar para poder plantar alguma coisardquo ao qual Antocircnio se refere foi

deixado por seus pais e parentes mais velhos que empreenderam este processo de

chegada e conquista do territoacuterio em Guaiacutera Assim apesar de sempre ter sido

considerada uma aacuterea insuficiente para o nuacutemero de famiacutelias que nela viviam era a

garantia que poderiam deixar para seus filhos e descendentes ndash um lugar para morar

para plantar trabalhar e viverem unidos Por isso Manoel deixou como conselho que

seus filhos nunca vendessem este patrimocircnio familiar que ele lhes deixaria como

heranccedila Como Joatildeo Aparecido filho de Manoel me contou durante uma entrevista

Manoel sofreu muito para poder comprar esse ldquopedacinho de terrardquo pois quando

chegou em GuaiacuteraPE era soacute mato ldquoele natildeo tinha nem comida nem roupa nem nadardquo

224

Ficou anos trabalhando roccedilando aacutereas derrubando a mata e plantando milho e feijatildeo

para conseguir pagar parcelado o valor da terra Segundo Joatildeo ele colhia o milho

debulhava e levava para vender ateacute GuaiacuteraPR ndash caminhava carregando aquele peso

nas costas pelas picadas estreitas por dentro do mato e gastava o dia inteiro para ir

e voltar Todo este sofrimento de Manoel dos pais de Antocircnio e demais familiares

cria assim um compromisso moral dos seus descendentes de seguirem o exemplo

deixado e tambeacutem lutarem sempre lsquotrabalhando na honestidaderdquo

Assim em contraste com o ldquotrabalho para os outrosrdquo que remete na narrativa

de Antocircnio agrave experiecircncia de exploraccedilatildeo e estagnaccedilatildeo ele ressalta ao final de seu

texto o que vislumbra para o futuro o projeto coletivo de autonomia por meio da

geraccedilatildeo de renda para as famiacutelias no proacuteprio territoacuterio com o ldquoapoio do Governo

Federalrdquo para que possam ldquotrabalhar reunidos com paz e amor e concentrar naquilo

que estamos fazendordquo Um lugar portanto que antes mais nada sustenta a

possibilidade de uma vivecircncia coletiva

De um modo mais amplo como vimos um dos aspectos centrais do projeto de

futuro da comunidade eacute a possibilidade natildeo soacute de as famiacutelias que laacute vivem atualmente

permanecerem neste territoacuterio como tambeacutem garantir o aumento do nuacutemero de

famiacutelias da comunidade Esta ampliaccedilatildeo que esperam seja garantida com a conclusatildeo

do procedimento de regularizaccedilatildeo territorial do INCRA proporcionaraacute o aumento do

nuacutemero de famiacutelias da comunidade a partir do retorno de parentes que estatildeo sofrendo

em vaacuterias cidades os quais assim eacute esperado teratildeo condiccedilotildees entatildeo para geraccedilatildeo

de renda no proacuteprio territoacuterio com o acesso a poliacuteticas puacuteblicas necessaacuterias

Satildeo as dinacircmicas de parentesco que justificam a ampliaccedilatildeo do territoacuterio visto

como referecircncia mas natildeo como limite para o pertencimento identitaacuterio o qual se abre

para uma rede expandida de famiacutelias que se encontram espalhadas por todo o canto

como comentado por Adir em depoimento durante a primeira viagem para Minas

Gerais apresentado no terceiro capiacutetulo Este caso nos permite assim relativizar a

ideia de territorialidade como qualidade imanente e percebecirc-la a partir de uma busca

pela conquista de locais em que fosse possiacutevel a reproduccedilatildeo do modo de vida

especiacutefico ndash por meio de movimentos de deslocamento que desenham uma linha de

continuidade em uma longa trajetoacuteria Movimentos que satildeo eles mesmos iacutendices da

resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida e do desrespeito coletivo ao qual se sentem

submetidos

225

A relaccedilatildeo naturalizada entre identidade e territorialidade como apontamos

tem sido pressuposta pela poliacutetica puacuteblica de regularizaccedilatildeo territorial das

comunidades quilombolas no Brasil Trata-se de uma projeccedilatildeo da ideia de

enraizamento que necessita ser revisada e contextualizada historicamente ndash como

nos aponta este caso especiacutefico da experiecircncia quilombola em GuaiacuteraPR ndash para que

natildeo atue como fator limitador da possibilidade de reconhecimento de direitos a grupos

que natildeo se encaixem no padratildeo estabelecido como modelo Neste sentido a

percepccedilatildeo de continuidade natildeo necessariamente se enquadra nas expectativas da

poliacutetica de reconhecimento que tendem a desconsiderar a complexidade desta

conexatildeo com o passado enquanto dinacircmica de ldquorecuperaccedilatildeo do processo histoacuterico

vivido por tal grupordquo bem como de ldquorefabricaccedilatildeo constante de sua unidade e diferenccedila

em face de outros grupos com os quais esteve em interaccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO

1994a p123) ndash presente mesmo em casos de comunidades que incluem em suas

trajetoacuterias a experiecircncia do deslocamento entre territoacuterios

O retorno agrave regiatildeo de origem foi impulsionado como vimos a partir do

processo conturbado de reconhecimento do grupo como quilombolas que gerou a

produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do procedimento que ainda

tramita no INCRA Este regresso no entanto como apontei na introduccedilatildeo natildeo faz

desta linha de movimento um ciacuterculo que se fecha mas uma dinacircmica em espiral que

se abre para novos movimentos em busca de um futuro norteado pelo pertencimento

a um passado comum e pelos valores compartilhados por esta identidade coletiva Tal

abertura para novos movimentos se fez presente de um modo muito significativo na

mudanccedila de D Ana Raimunda com 87 anos de idade que deixou sua casa em Serro

e se mudou para Presidente PrudenteSP onde atualmente mora com sua sobrinha

Jovelina

A defesa de um deslocamento conceitual da ideia de quilombo tido como

sobrevivecircncia para a ressemantizaccedilatildeo do termo tendo em vista os sujeitos que se

reconhecem como quilombolas no presente (ALMEIDA 2002 p 64) pode ser ainda

ampliada com base nesta experiecircncia de pesquisa Refiro-me assim a um

deslocamento conceitual que inclua tambeacutem o reconhecimento dos proacuteprios

movimentos e deslocamentos dos grupos quilombolas como processo que natildeo retira

a legitimidade de suas reivindicaccedilotildees identitaacuterias e territoriais Este reconhecimento

tem suporte historiograacutefico nas pesquisas que apontam para a intensa movimentaccedilatildeo

226

da populaccedilatildeo negra no contexto do poacutes-aboliccedilatildeo (LIMA 2000) movimento que tinha

como sentido a saiacuteda de aacutereas de colonizaccedilatildeo histoacuterica como a regiatildeo de Minas

Gerais para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente como eacute a regiatildeo de GuaiacuteraPR no caso

em questatildeo

Minha interaccedilatildeo com estas famiacutelias quilombolas eacute fruto da circulaccedilatildeo da

comunidade representada por suas lideranccedilas em espaccedilos institucionais aos quais

passaram a acessar com o autorreconhecimento como quilombolas e a inserccedilatildeo no

movimento poliacutetico estadual em articulaccedilatildeo com demais comunidades Enquanto

relaccedilatildeo estabelecida com o grupo primeiro em uma posiccedilatildeo de agente do Estado

como assessora no Ministeacuterio Puacuteblico do Paranaacute depois como mestranda em

antropologia tive que lidar com esta posiccedilatildeo ambiacutegua que explicita meu duplo

pertencimento acadecircmico que transita entre o direito e antropologia

Acredito que com a convivecircncia cotidiana e a possibilidade de

aprofundamento dos viacutenculos a relaccedilatildeo que antes era de intermediadora de suas

demandas dentro do oacutergatildeo ministerial passou a ser a posiccedilatildeo de algueacutem com quem

pudessem compartilhar suas histoacuterias experiecircncias e sonhos dentro dos quais me vi

imersa Esta imersatildeo possibilitou que pudeacutessemos trilhar juntos o caminho de volta

ateacute Minas Gerais e sem perceber de iniacutecio eu estava tambeacutem sendo levada por esta

linha de movimento dos seus antepassados ndash que se tornou norteadora das

estrateacutegias de pesquisa e da redaccedilatildeo deste trabalho bem como o objeto de reflexatildeo

central fruto da relaccedilatildeo entre pesquisador e sujeitos de pesquisa

Ao concluirmos a segunda viagem de volta em junho de 2015 eu estava

entatildeo inserida em suas leituras permeadas pela compreensatildeo sagrada dos

acontecimentos vivenciados Os modos de compreensatildeo dos meus interlocutores(as)

apontavam para uma leitura de que a relaccedilatildeo entre noacutes assim como entre eles e

Cassius tinham sido acionadas por meio de oraccedilotildees e preces que nos colocaram

como instrumentos na concretizaccedilatildeo destes reencontros Natildeo pude conter a emoccedilatildeo

quando por exemplo D Zulmira agradecia ldquoocirc minha Nossa Senhora ocecirc trouxe o

meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer aindardquo

quando da nossa chegada em sua casa naquela terccedila-feira 10 de marccedilo de 2015 O

desafio colocado pela escrita antropoloacutegica ndash de construccedilatildeo de uma objetividade

perspectiva parcial e situada ndash deste modo natildeo deve ser orientado pela noccedilatildeo de

crenccedila mas pela reflexatildeo sobre como estas pessoas constroem o mundo com base

227

na articulaccedilatildeo destes conceitos Trata-se afinal de um saber sobre o mundo

(GOLDMAN 2003 p 461)

Outro desafio foi o de encontrar uma certa estabilidade que seria produzida

no registro da experiecircncia na forma de texto no que tange a processos percebidos

pelos meus interlocutores(as) como accedilatildeo e transformaccedilatildeo no mundo vivido Busquei

criar uma reflexatildeo analiacutetica a partir destas experiecircncias que foram perpassadas por

emoccedilotildees intensas e que me faziam refletir sobre a trajetoacuteria dos meus proacuteprios

antepassados como meus avoacutes paternos que tambeacutem saiacuteram do estado de Minas

Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute na deacutecada de 1940 em busca de melhores

condiccedilotildees de vida Nossos caminhos haviam se entrelaccedilado e como diria Ingold a

partir dali um noacute havia sido criado unindo nossas trajetoacuterias (INGOLD 2011 p 148)

o que espero possa se desdobrar na continuidade desta pesquisa com a intenccedilatildeo de

aprofundar a reflexatildeo sobre muitos pontos que demandam maior investimento de

anaacutelise

Como indagaccedilatildeo final proposta por este trabalho fica a questatildeo de ateacute que

ponto a autoidentificaccedilatildeo e a reconfiguraccedilatildeo do conceito de quilombo estatildeo

consolidadas para os atores que lidam com os procedimentos estatais sobre esta

temaacutetica Eacute necessaacuterio neste processo que se reconheccedila a historicidade e a

diversidade de trajetoacuterias que constitui tais grupos sociais suas dinacircmicas e agecircncias

de modo que se possa garantir direitos sem que se parta de uma fundamentaccedilatildeo

cristalizada decorrente da ideia de territorialidade fixa ou mesmo de imobilidade

Quando pensamos no conceito de ldquotradicionalrdquo natildeo devemos deste modo buscar

uma continuidade direta e substancializadora da identidade (como na perspectiva

produzida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) mas um tipo de relaccedilatildeo especial

com este passado coletivo que permite a manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social que estaacute

ela mesma sempre em transformaccedilatildeo (como analisado pelo segundo relatoacuterio)

No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos estamos

falando da diferenccedila entre por um lado partir da ideia de uma origem a ser

comprovada enquanto requisito para o reconhecimento da identidade quilombola e a

compreensatildeo por outro de como essa origem eacute acionada como importante elemento

identitaacuterio ndash pelos proacuteprios atores sociais enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo

(HALBWACHS 2003 p 94) ndash na forma pela qual se relacionam e se reinventam

como trajetoacuteria compartilhada Este viacutenculo com a origem se expressa na fala de Adir

228

ndash ao comentar sobre a nossa viagem e agradecer a recepccedilatildeo que recebemos de D

Regina e D Zulmira ndash com a qual encerro essas reflexotildees

Eu quero aqui agradecer em nome de toda a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que a senhora conheceu que noacutes demos o nome dessa comunidade em memoacuteria dele em Guaiacutera Paranaacute Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos onde a gente comeccedilou Meu sonho era buscar a histoacuteria da famiacutelia () E enquanto eu natildeo conseguir a histoacuteria da nossa famiacutelia que somos famiacutelia mas eu quero buscar desde o passado ateacute o presente eu natildeo vou descansar Se um dia eu morrer vou morrer feliz mas conhecer a nossa histoacuteria a histoacuteria de todos noacutes () Essa passagem taacute sendo experiecircncia pra mim porque como um filho de mineiro um filho dessa terra de pisar aqui nessa terra Que a minha vontade era andar descalccedilo soacute andar andar andar O que eu pensava era soacute andar

229

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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CHAGAS Miriam de Faacutetima Estudos antropoloacutegicos nas ldquocomunidades remanescentes de quilombosrdquo sinais que amplificam a luta por uma vida histoacuterica vida juriacutedica In LEITE Ilka Boaventura (Org) Laudos periciais antropoloacutegicos em debate Florianoacutepolis Co-ediccedilatildeo NUERABA 2005 COLODEL Joseacute Augusto ldquoCinco seacuteculos de histoacuteriardquo In PERIS Alfredo Fonceca (Org) Estrateacutegias de desenvolvimento regional Regiatildeo Oeste do Paranaacute Cascavel Cascavel 2003 COMAROFF John L COMAROFF Jean Theory from the South or How Euro-America is Evolving Toward Africa London Paradigm Publishers 2011 CONNERTON Paul Como as sociedades recordam Lisboa Celta Editora 1999 DUPRAT Deborah A convenccedilatildeo 169 da OIT e o direito agrave consulta preacutevia livre e informada Revista Culturas Juriacutedicas Vol 1 Nuacutem 1 p 51-72 2014 FABIAN Johannes O tempo e o outro como a antropologia estabelece seu objeto Petroacutepolis Vozes 2013 FERNANDES Ricardo Cid Produto e processo desafios para o antropoacutelogo na elaboraccedilatildeo de laudos de impacto ambiental In Ilka Boaventura LEITE (Org) Laudos periciais antropoloacutegicos em debate 1 ed Florianoacutepolis Coediccedilatildeo NUERABA 2005 FERNANDES Ricardo Cid BUSTOLIN Cindia TEIREIRA Luana Satildeo Roque In BOLETIM INFORMATIVO DO NUER Quilombos no Sul do Brasil Periacutecias Antropoloacutegicas vol 3 nordm 3 Florianoacutepolis NUERUFSC 2006 GALIZONI Flaacutevia Maria Terra ambiente e heranccedila no alto do Jequitinhonha Minas Gerais Rev Econ Sociol Rural vol40 n3 p561-580 2002 GARCIA Jr Afracircnio Raul Sul caminho do roccedilado estrateacutegias de reproduccedilatildeo camponesa e transformaccedilatildeo social Satildeo Paulo Marco Zero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia MCT ndash CNPQ 1989 GOLDMAN Marcio Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos etnografia antropologia e poliacutetica em Ilheacuteus Bahia Revista de Antropologia 46(2)423-444 2003

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GOLDMAN Marcio Formas do saber e modos do ser observaccedilotildees sobre multiplicidade e ontologia no candombleacute Religiatildeo e Sociedade 25(2)102-120 2005 GOLDMAN Marcio Histoacuterias devires e fetiches das religiotildees afro-brasileiras ensaio de simetrizaccedilatildeo antropoloacutegica Anaacutelise Social no190 p105-137 2009 GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA Quilombos do Paranaacute relatoacuterio 2005-2010 Curitiba GTCM 2010 GUEDES Andreacute Dumans O trecho as matildees e os papeacuteis etnografia de movimentos e duraccedilotildees no norte de Goiaacutes Satildeo Paulo Garamond 2013a GUEDES Andreacute Dumans Lutas por Terra e Lutas por Territoacuterio nas Ciecircncias Sociais Brasileiras Fronteiras Conflitos e Movimentos In ACSELRAD Henri (Org) Cartografia Social Terra e Territoacuterio Rio de Janeiro ETTERNIPPURUFRJ Coleccedilatildeo Territoacuterio ambiente e conflitos sociais n3 p41-80 2013b GEERTZ Clifford Obras e vidas o antropoacutelogo como autor 2ed Rio de Janeiro Ed UFRJ 2009 [1988] GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA Quilombos do Paranaacute relatoacuterio 2005- 2010 Curitiba 2010 HALBWACHS Maurice A Memoacuteria Coletiva Satildeo Paulo Centauro 2003 HALE Lindsay Preto velho resistance redemption and engendered representations of slavery in a brazilian possession-trance religion American Ethnologist vol 24 n 2 p 392-414 1997 HARTUNG Miriam Furtado O sangue e o espiacuterito dos antepassados escravidatildeo heranccedila e expropriaccedilatildeo no grupo negro Invernada Paiol de Telha-PR Florianoacutepolis NUERUFSC 2004 HOFFMANN Claudia Cristina Fronteiras de um quilombo em ldquoconstruccedilatildeordquo um estudo sobre o processo de demarcaccedilatildeo das terras da comunidade negra Manoel Ciriacuteaco dos Santos ndash GuaiacuteraPR 120 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Sociedade Cultura e Fronteiras) Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Foz do Iguaccedilu 2012

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MARCUS George Identidades passadas presentes e emergentes requisitos para etnografias sobre a modernidade no final do seacuteculo XX ao niacutevel mundial Revista de Antropologia 34 197-221 1991 MATORY J Lorand Free to be a slave slavery as metaphor in the afro-atlantic religions Journal of Religion in Africa n 37 p 398-425 2007 MATTOS Hebe ABREU Martha ldquoRemanescentes das Comunidades dos Quilombosrdquo memoacuteria do cativeiro patrimocircnio cultural e direito agrave reparaccedilatildeo Iberoamericana ano XI n42 p145-158 2011 MATTOS Hebe Maria RIOS Ana Maria O poacutes-aboliccedilatildeo como problema histoacuterico balanccedilos e perspectivas TOPOI v 5 n 8 p 170-198 jan-jun 2004 MELLO Marcelo Moura Reminiscecircncias dos quilombos territoacuterios da memoacuteria em uma comunidade negra rural Satildeo Paulo Editora Terceiro Nome 2012 MILANO Giovanna Territoacuterios cultura e propriedade privada direitos territoriais quilombolas no Brasil 182 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) Setor de Direito Universidade Federal do Paranaacute Curitiba 2011 MOMBELLI Raquel BENTO Joseacute Invernada dos Negros In NUER Quilombos no Sul do Brasil periacutecias antropoloacutegicas v 3 n 3 Florianoacutepolis NUERUFSC 2006 OrsquoDWYER Eliane Cantarino Quilombos os caminhos do reconhecimento em uma perspectiva contrastiva entre o direito e a antropologia Fronteiras Dourados MS v 11 n 19 p 165-178 jan jun2009 OrsquoDWYER Eliane Cantarino Etnicidade e direitos territoriais no Brasil contemporacircneo Iberoamericana (Madrid) v 42 p 111-126 2011 OLIVEIRA Diogo Os Avaacute-Guarani no Oeste do Paranaacute histoacuteria e resistecircncia de um povo indiacutegena In FILHO Carlos Frederico Mareacutes de Souza NOGUEIRA Caroline Barbosa Contente FERREIRA Heline Sivini (Orgs) Direito socioambiental uma questatildeo para a Ameacuterica Latina Curitiba Letra da Lei p 161-176 2014 OLIVEIRA FILHO Joatildeo Pacheco de A Viagem da Volta Reelaboraccedilatildeo Cultural e Horizonte Poliacutetico dos Povos Indiacutegenas do Nordeste In Atlas das Terras IndiacutegenasNordeste Rio de Janeiro PETI Museu NacionalUFRJ p V-VIII 1994

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OLIVEIRA FILHO Joatildeo Pacheco de Os instrumentos de bordo expectativas e possibilidades do trabalho do antropoacutelogo em laudos periciais In SILVA Orlando Sampaio LUZ Liacutedia HELM Ceciacutelia Maria (Orgs) Periacutecias antropoloacutegicas em processos judiciais Florianoacutepolis Ed da UFSC 1994a OLIVEIRA FILHO Joatildeo Pacheco de Uma etnologia dos iacutendios misturados situaccedilatildeo colonial territorializaccedilatildeo e fluxos culturais Mana Rio de Janeiro v 4 n 1 p 47-77 abril 1998 Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophppid=S010493131998000100003ampscript=sci_arttext Acesso em 08012015 OLIVEIRA FILHO Joatildeo Pacheco de SANTOS Ana Flaacutevia Moreira Reconhecimento eacutetnico em exame dois estudos sobre os Caxixoacute Rio de Janeiro Contra-capaLACED 2003 OLIVEIRA FILHO Joatildeo Pacheco de Os caxixoacutes do Capatildeo do Zezinho uma comunidade indiacutegena distante da primitividade e do iacutendio geneacuterico In OLIVEIRA FILHO Joatildeo Pacheco de SANTOS Ana Flaacutevia Moreira Reconhecimento eacutetnico em exame dois estudos sobre os Caxixoacute Rio de Janeiro Contra-capaLACED 2003 PACKER Ian Violaccedilotildees dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paranaacute (1946-1988) Subsiacutedios para a Comissatildeo Nacional da Verdade Centro de Trabalho Indigenista Satildeo Paulo 2013a Disponiacutevel em httpbdtrabalhoindigenistaorgbrsitesdefaultfilesRelatC3B3rio20CNV_final_pdf Acesso em 12012015 PAOLIELLO Renata Medeiros ldquoCondiccedilatildeo camponesardquo e novas identidades entre remanescentes de quilombos no Vale do Ribeira de Iguape In GODOI Emilia Pietrafesa de MENEZES Marilda Aparecida de MARIN Rosa Acevedo (Orgs) Satildeo Paulo Editora UNESP Brasiacutelia DF Nuacutecleo de Estudos Agraacuterios e Desenvolvimento Rural 2009 POLLAK Michael Memoacuteria esquecimento silecircncio Estudos histoacutericos Rio de Janeiro vol 2 n 3 p 3-15 1989 POLLAK Michael Memoacuteria e identidade social Estudos histoacutericos Rio de Janeiro vol 5 n 10 p 200-212 1992 PONTES FILHO Antocircnio Pimentel BISCOLI Roberto Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos Guaiacutera Paranaacute UNIOESTE Toledo 2010

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PORTELLI Alessandro A filosofia e os fatos narraccedilatildeo interpretaccedilatildeo e significado nas memoacuterias e nas fontes orais Tempo Rio de Janeiro vol 1 nordm 2 p 59-72 1996 PORTELLI Alessandro O massacre de Civittela Vai di Chiana (Toscana 29 de junho de 1944) mito e poliacutetica luto e senso comum In FERREIRA Marieta de Moraes AMADO Janaiacutena (Orgs) Usos amp abusos da histoacuteria oral 1ordf ed Rio de Janeiro FGV p 103-130 1998 PORTELLI Alessandro Ensaios de histoacuteria oral Satildeo Paulo Letra e Voz 2010 PORTO Liliana Relaccedilotildees entre a Crenccedila em Feiticcedilaria e a Percepccedilatildeo do Processo Sauacutede-Doenccedila em uma Cidade do Vale do JequitinhonhaMG XIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na Ameacuterica Latina 2005 PORTO Liliana A ameaccedila do outro magia e religiosidade no Vale do Jequitinhonha (MG) Satildeo Paulo Attar 2007 PORTO Liliana Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Quilombola de Aacutegua Morna ndash CuriuvaPR UFPR Curitiba 2008 PORTO Liliana KAISS Carolina COFRE Ingeborg Sobre solo sagrado identidade quilombola e catolicismo na comunidade de Aacutegua Morna (Curiuacuteva PR) Revista Religiatildeo amp Sociedade Brasil Vol 32 Nuacutem 1 Jun p 39-70 2012 PORTO Liliana A consolidaccedilatildeo da medicina oficial no Brasil e a readequaccedilatildeo dos espaccedilos de cura Anaacutelise a partir de um caso etnograacutefico Anuaacuterio de Antropologia Social y Cultural en Uruguay v II p 71-85 2013(a) PORTO Liliana Memoacuterias de um mundo ruacutestico narrativas e silecircncios sobre o passado em Pinhatildeo In PORTO Liliana SALLES Jefferson MARQUES Socircnia (Orgs) Memoacuteria dos povos do campo no Paranaacute ndash Centro-Sul Curitiba ITCG 2013(b) PORTO Liliana O ensino da histoacuteria e cultura afro-brasileiras e a temaacutetica religiosa dilemas enfrentados na aplicaccedilatildeo da lei 1063903 Curso de Especializaccedilatildeo em Relaccedilotildees Eacutetnico-Raciais ndash NEABUFPR 2014 PRANDI Reginaldo A mitologia dos Orixaacutes Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001

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RIBEIRO Dandara dos Santos Damas CALABRIA Juliana Eacutetica e metodologia na produccedilatildeo de laudos antropoloacutegicos anaacutelise do contra-laudo ao RTID do territoacuterio da comunidade quilombola de Terras Altas Natal 2014 Anais da 29ordf Reuniatildeo Brasileira de Antropologia (RBA) 2014 Disponiacutevel em httpwww29rbaabantorgbrresourcesanais11402023063_ARQUIVO_CALABRIAampDAMAS_EticaeMetodologiapdf Acesso em 230915 RIBEIRO Dandara dos Santos Damas Anaacutelise Ritual do Julgamento da Questatildeo Quilombola (ADIn 32392004) pelo Min Cezar Peluso no STF Revista dos Tribunais (Satildeo Paulo Impresso) v 958 p 151 2015 RIOS Ana Lugatildeo COSTA Carlos Eduardo C Famiacutelias negras migraccedilatildeo e dispersatildeo no poacutes-aboliccedilatildeo duas fontes para um problema In XXVIII International Congress of the Latin American Studies Association Rio de Janeiro 2009 Disponiacutevel em httpwwwabepnepounicampbrencontro2008docsPDFABEP2008_1269pdf RUBERT Rosane Aparecida SILVA Paulo Seacutergio da O acamponesamento como sinocircnimo de aquilombamento o amaacutelgama entre resistecircncia racial e resistecircncia camponesa em comunidades negras rurais do Rio Grande do Sul In GODOI Emilia Pietrafesa de MENEZES Marilda Aparecida de MARIN Rosa Acevedo (Orgs) Diversidade do campesinato expressotildees e categorias construccedilotildees identitaacuterias e sociabilidades v1 Satildeo Paulo Editora UNESP Brasiacutelia DF Nuacutecleo de Estudos Agraacuterios e Desenvolvimento Rural 2009 SANSI Roger ldquoFazer o santordquo dom iniciaccedilatildeo e historicidade nas religiotildees afro-brasileiras Anaacutelise Social XLIV (1)139-160 2009 SANTOS Alessandra Regina Nesse solo que voacutes estais lembrai-vos que eacute de morrer Uma etnografia das praacuteticas de caminhar conhecer e mapear entre os habitantes de Pedro Cubas um Remanescente de Quilombo do Vale do Ribeira Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade Federal de Satildeo Carlos Satildeo Carlos 2014 SANTOS Ana Flaacutevia Moreira Iacutendios e posseiros consideraccedilotildees sobre o conceito de identidade Uma reavaliaccedilatildeo do caso Xakriabaacute Rio de Janeiro Tempo Brasileiro p 127-144 1996 SCHWARCZ Lilia K Moritz Questatildeo racial e etnicidade In MICELI Sergio (Org) O que ler na ciecircncia social brasileira (1970-1995) vol II (Antropologia) Satildeo Paulo ANPOCS 1999 SEGATO Rita Laura Raccedila eacute signo In Seacuterie Antropologia n 372 Brasiacutelia 2005

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SEYFERTH Giralda Heranccedila e estrutura familiar camponesa Boletim do Museu Nacional Antropologia n 52 Rio de Janeiro UFRJ 1985 SOUZA Vanezza Emanuelle de Trabalho migraccedilatildeo e identidade no quilombo do Matatildeo (PB) In GODOI Emilia MENEZES Marilda Uma terra para se viver assentados colonos e quilombolas Satildeo Paulo Anna Blume 2013 SOUZA Pedro Bastos de Os quilombolas na Constituiccedilatildeo de 1988 da proteccedilatildeo agrave identidade cultural ao direito fundamental agraves terras de preto In CONPEDI UNINOVE (Org) Sociologia Antropologia e Cultura Juriacutedicas - XXII Congresso Nacional do CONPEDI 1edFlorianoacutepolis FUNJAB v 1 p 183-208 2013 TERRA AMBIENTAL Relatoacuterio Antropoloacutegico de caracterizaccedilatildeo histoacuterica econocircmica ambiental e sociocultural ndash Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos ndash GuaiacuteraPR 2013 TURNER Victor Dramas Campos e Metaacuteforas accedilatildeo simboacutelica na sociedade humana Niteroacutei Editora da Universidade Federal Fluminense 2008 VILLAR Diego Uma abordagem criacutetica do conceito de etnicidade na obra de Fredrik Barth Mana vol10 no1 p165-192 Abril 2004 WACHOWICZ Ruy Christovam Obrageros mensus e colonos histoacuteria do oeste paranaense Curitiba Ed Vicentina 1987 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2013 Mortes Matadas por Armas de Fogo FLACSOCEBELA 2013 WOORTMANN Klaas ldquoCom parente natildeo se neguceiardquo o campesinato como ordem moral Anuaacuterio Antropoloacutegico 87 11-73 Brasiacutelia Editora UNB 1990 WOORTMANN Klaas Migraccedilatildeo famiacutelia e campesinato In WELCH Clifford A et all (Orgs) Camponeses brasileiros Vol 1 Leituras e interpretaccedilotildees claacutessicas Satildeo Paulo Ed da UNESP Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio NEAD 2009

Page 2: COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS

DANDARA DOS SANTOS DAMAS RIBEIRO

COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS IDENTIDADE E

FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTO

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Social Setor de Ciecircncias Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Antropologia Social

Orientadora Prof Dra Liliana de Mendonccedila Porto

CURITIBA

2015

uNivgRSiCAoe feoeR A t d o Pa r a n a

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIEcircNCIAS HUMANASPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ANTROPOLOGIA RUA GENERAL CARNEIRO 460 6o ANDAR CEP 80060-150 - CURITIBA-PR Telefone (41) 3360-5272

PARECER DA BANCA EXAMINADORA

Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute

(PPGA) para realizar a arguiccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo de Mestrado de Dandara dos Santos

Damas Ribeiro intitulada ldquoCOMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS

SANTOS IDENTIDADE E FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTOrdquo apoacutes terem

inquirido a aluna e realizado a avaliaccedilatildeo do trabalho satildeo de parecer pela

s u a j^ ^ ^Ccedil s f^ completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas

desta Instituiccedilatildeo para a obtenccedilatildeo do Grau de Mestre em Antropologia Social

Consideraccedilotildees adicionais da Banca Examinadora

K CAtilde-~ ikjOu

ampJSraquo V3 51X ^V CUacuteUumlSS^sSi bull

Curitiba 23 de novembro de 2015

Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto Orientadora r

Prof Dr Andreacute Dumaifjs Guedes 1o Examinador

laacuteampgyCjProf Dr Ricardo Cid Fernandes

2a Examinador

Dedico este trabalho ao meu pai Antocircnio e agrave minha matildee Elisabete O apoio a

paciecircncia a generosidade e o amor que recebi de vocecircs foram o oxigecircnio para este

mergulho bem como para o recomeccedilo que se anuncia

AGRADECIMENTOS

Entendo essa pesquisa como uma primeira tentativa de organizaccedilatildeo de um

rico material de campo como a possibilidade de aprofundamento do viacutenculo que jaacute

possuiacutea e que pretendo manter com as famiacutelias quilombolas de GuaiacuteraPR e espero

o iniacutecio de uma longa caminhada de dedicaccedilatildeo agrave Antropologia Agradeccedilo muitiacutessimo

pela receptividade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em todos os lugares que percorri

durante o trabalho de campo GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG e SerroMG Agraves famiacutelias da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos o meu agradecimento pela hospitalidade confianccedila atenccedilatildeo e aprendizados

Sou grata a Deus por nossos caminhos terem confluiacutedo para a oportunidade deste

conviacutevio que foi repleto de experiecircncias incomensuraacuteveis

Agradeccedilo pela possibilidade de mergulho na Antropologia um novo caminho

que comecei a trilhar na minha graduaccedilatildeo no curso de Direito da UFPR Esta

curiosidade se ampliou com a oportunidade de trabalhar no Ministeacuterio Puacuteblico do

Paranaacute que me proporcionou o contato com vaacuterias comunidades quilombolas no

estado oportunidade pela qual agradeccedilo ao procurador de justiccedila e amigo Dr Marcos

Fowler Percebo como finalizo essa pesquisa com a convicccedilatildeo de que o que eu

precisava mesmo era de uma experiecircncia de trabalho de campo que fizesse do

conviacutevio a base para uma proposta de conhecimento que busca a horizontalidade o

diaacutelogo e a sensibilidade ndash o que gera uma transformaccedilatildeo dentro e fora de noacutes Natildeo

poderia ter realizado esta pesquisa sem o apoio da minha famiacutelia que diante das

inseguranccedilas e desafios do caminho confortaram-me com a inestimaacutevel sensaccedilatildeo e

certeza de ser amada incondicionalmente Pela simplicidade e grandiosidade deste

amor sem preacute-condiccedilotildees sou grata eternamente em especial aos meus avoacutes Doca

e Ruy Joatildeo aos meus pais Antocircnio e Elisabete agraves minhas irmatildes Tatiara Naiara e

Janaina ao meu cunhado Marcelo e agrave minha sobrinha Olga Agrave Naiara um

agradecimento todo especial pelas contribuiccedilotildees no processo de revisatildeo deste texto

em sua versatildeo final com seu amparo atenccedilatildeo e amor Aos meus avoacutes Joaquim e

Maria Julia em memoacuteria agradeccedilo e os homenageio lembrando de suas trajetoacuterias

como migrantes os quais assim como meus interlocutores(as) tambeacutem saiacuteram de

Minas Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute em busca de melhores condiccedilotildees de

vida Durante o periacuteodo do trabalho de campo em Santo Antocircnio do Itambeacute e

SerroMG lembrei-me dos dois e no coraccedilatildeo os senti tatildeo proacuteximos

Se de longe recebi o incentivo dos meus familiares de perto agradeccedilo e

honro o conforto da presenccedila de meu companheiro de jornada Jean Luis com seu

apoio cotidiano confianccedila carinho atenccedilatildeo amor e magia Agrave grande famiacutelia que nos

tornamos junto com os amigos Simone e Julio Ceacutesar Angeacutelica e Gustavo com suas

crianccedilas abenccediloadas Brisa Mareacute Otto e Joatildeo eu agradeccedilo por terem preenchido

meu cotidiano de amor alegria e uniatildeo Aos meus colegas de mestrado agradeccedilo

pela convivecircncia proacutespera Em especial agrave Gabi ao ldquoTucanordquo e agrave Karina dos quais

recebi toda a ajuda necessaacuteria para o ingresso no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em

Antropologia da UFPR Agradeccedilo tambeacutem o incentivo ao longo de todo o curso e a

confianccedila que depositaram em mim Com vocecircs compartilho memoacuterias muito

especiais de um periacuteodo uacutenico de minha vida Ao meu querido amigo Leonardo Bora

minha gratidatildeo e alegria por poder contar com sua generosidade na revisatildeo do texto

Agrave minha orientadora Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto agradeccedilo pelo

acompanhamento gentil e consistente pela delicadeza sensibilidade e estiacutemulos

contiacutenuos em nossas conversas por seu exemplo de antropoacuteloga e de pessoa que

seratildeo sempre referecircncias para mim A todos os professores e teacutecnicos do Curso de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute agradeccedilo pela

dedicaccedilatildeo e pelos ensinamentos compartilhados Em especial aos Professores Dr

Ricardo Cid Fernandes e Dr Joatildeo Rickli pelas contribuiccedilotildees e sugestotildees ao trabalho

na banca de qualificaccedilatildeo

Ao pesquisador Cassius Cruz sou muito grata pela oportunidade da parceria

de pesquisa na realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais Tambeacutem ao professor Dr

Matheus de Mendonccedila Gonccedilalves Leite e ao pesquisador Tiago Geisler ambos da

PUCSerro agradeccedilo pelo apoio e solicitude com que nos receberam no municiacutepio do

SerroMG Sem a disponibilidade de vocecircs nossa pesquisa na regiatildeo teria sido muito

difiacutecil ou mesmo inviaacutevel O significado dessa experiecircncia na minha vida e na de meus

interlocutores(as) transcende em muito as reflexotildees desta dissertaccedilatildeo

Preciso me encontrar

ldquoDeixe-me ir

Preciso andar

Vou por aiacute a procurar

Rir pra natildeo chorarrdquo

Cartola

Agraves vezes me chamam de negro

Agraves vezes me chamam de negro

Pensando que vatildeo me humilhar

Mas o que eles natildeo sabem

Eacute que soacute me faz relembrar

Que eu venho daquela raccedila

Que lutou pra se libertar

Que eu venho daquela raccedila

Que lutou pra se libertar

Que criou o maculelecirc

E acredita no candombleacute

E que tem o sorriso no rosto

Oi a ginga no corpo e o samba no peacute

O que eacute que tem

E que tem o sorriso no rosto

Oi a ginga no corpo e o samba no peacute

(Ladainha de Capoeira)

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo baseada na etnografia realizada junto agrave ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em GuaiacuteraPR problematiza a vinculaccedilatildeo direta entre a legitimidade da reivindicaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas e a ideia de territorialidade fixa que tem sido presumida pela poliacutetica de garantia de direitos territoriais quilombolas no Brasil Esta pesquisa indicou como a construccedilatildeo da identidade quilombola eacute perpassada pelos processos de deslocamentos constitutivos da trajetoacuteria das famiacutelias que vivem atualmente em GuaiacuteraPR mas satildeo provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A reivindicaccedilatildeo da identidade quilombola eacute elaborada pelos meus interlocutores(as) com base na origem e na ancestralidade comuns com antepassados negros que foram escravizados nesta regiatildeo de Minas Gerais a partir da qual ocorre a saiacuteda das famiacutelias em busca de melhores condiccedilotildees de vida passando pelo estado de Satildeo Paulo ateacute a mudanccedila para GuaiacuteraPR onde adquirem aacuterea proacutepria Nas narrativas dos membros da comunidade percebe-se como o movimento natildeo dissolve mas ao contraacuterio sustenta o pertencimento coletivo Este caso exemplifica como a ideia de territorialidade fixa desconsidera experiecircncias de ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo ndash criteacuterio trazido pelo Decreto Federal 48872003 ao regulamentar o processo de titulaccedilatildeo quilombola ndash constituiacutedas por meio de estrateacutegias de deslocamento e natildeo pela permanecircncia em um mesmo territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional Estas dinacircmicas de movimento foram em um primeiro momento do processo de regularizaccedilatildeo territorial que ainda tramita no Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) entendidas como um elemento de descaracterizaccedilatildeo da legitimidade da reivindicaccedilatildeo do grupo pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido sobre a comunidade Com a natildeo aprovaccedilatildeo deste estudo por parte do INCRA um novo relatoacuterio foi contratado tendo este investido no argumento de que haacute uma continuidade entre as dinacircmicas socioculturais do grupo de GuaiacuteraPR e as comunidades quilombolas de sua regiatildeo origem a partir de pesquisa realizada no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio ItambeacuteMG Esta pesquisa realizada pelo segundo relatoacuterio criou o interesse por parte da comunidade de que eles mesmos pudessem visitar a regiatildeo Tais viagens de retorno foram realizadas no acircmbito desta dissertaccedilatildeo para buscarmos mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica das famiacutelias o que gerou um entrelaccedilamento entre a minha pesquisa e a trajetoacuteria do grupo O (re)encontro entre parentes perdidos e a possibilidade de acesso agraves histoacuterias dos antepassados proporcionados por estas viagens sugerem que a busca pela reconstituiccedilatildeo de histoacuterias e viacutenculos com a regiatildeo de origem por parte dos quilombolas de GuaiacuteraPR natildeo se restringe ao acircmbito instrumental e administrativo mas tem tambeacutem uma importante dimensatildeo afetiva A articulaccedilatildeo destas dimensotildees aponta para o anseio dos quilombolas pelo reconhecimento da legitimidade de sua versatildeo sobre sua histoacuteria do valor de sua origem e trajetoacuteria bem como do direito de se construiacuterem como sujeitos e como coletividade especiacutefica

Palavras-chave comunidade quilombola relatoacuterios antropoloacutegicos movimento memoacuteria

ABSTRACT

The present thesis based on ethnography with the Quilombola Community Manoel Ciriaco dos Santos a black community located in Guaiacutera Paranaacute State (PR) Brazil questions the direct link between the legitimacy of the territorial claims of quilombola communities and the fixed territoriality idea that has been assumed by the quilombola land rights guarantee policy in Brazil This research indicated how the construction of a quilombola identity includes process of movement that are present in the trajectory of displacements of a group of families who although originally from Santo Antocircnio do Itambeacute in Minas Gerais State live nowadays in GuaiacuteraPR Their claim over a quilombola identity is elaborated on the bases of a common origin and ancestrality of black enslaved ancestors from the Center-Northeast region of Minas Gerais which unfolds in a journey for better life conditions leaving the place crossing Satildeo Paulo State and finally arriving at GuaiacuteraPR where they acquired their own land In the narratives of community members it is noticeable that the movement does not dissolve but rather sustains the collective pertaining This case exemplifies how the fixed territoriality idea disregards experiences of resistance to historical oppression- feature brought by the Federal Decree 48872003 that regulates the process of quilombola titling - that are based on shifting strategies and not by staying in one traditionally occupied territory These movement dynamics were regarded in the first instance of the land regularization process which is still pending in the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA) as a distortion element of the legitimacy of the groups identity claim by the first anthropological report on the community With the rejection of this study by the INCRA a new report was hired From research held in the surrounding area of the municipality of Santo Antocircnio do ItambeacuteMG the repory argument that there is a continuity between the socio-cultural dynamics of the Guaira group and the quilombola communities of their region of origin This research by the second anthropological report has created the interest from the community that they themselves could visit the region Such return trips were undertaken in this thesis to seek more information on the historical trajectory of these families which generated an entanglement between my research and the trajectory of the group The re-gathering among long unseen relatives and the possibility of access to the stories of ancestors provided by these trips suggest that the search for the reconstitution of stories and links with the region of origin by the quilombolas of GuaiacuteraPR is not restricted by mere instrumental or administrative aim but also it has an important affective dimension The articulation of these dimensions points to the quilombolarsquos desire for recognition of the legitimacy of the communityrsquos version of their own history of the value of their origin and trajectory of their right to shape themselves as subjects and as an specific collectivity

Key-words quilombola community anthropological reports movement memory

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o estado

Mato Grosso do Sul32

FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel

Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa34

FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute39

FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 143

FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2 44

FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 348

FIGURA 7 ndash Documentos de identidade de Manoel Ciriaco dos Santos nascido em

16031920 e Ana Rodrigues nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)50

FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia53

FIGURA 9 Fluxo migratoacuterio54

FIGURA 10 Divisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos57

FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia65

FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildeem o seu altar79

FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil80

FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria81

FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da

ldquoGirardquo85

FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana92

FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP93

FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado139

FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na

comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo153

FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP175

FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina176

FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira178

FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos

geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova

(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo184

FIGURA 24 Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria

Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo185

FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo

conversando e ao lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona186

FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado

pelo traccedilado vermelho187

FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D

Necila190

FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel194

FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das

Dores197

FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4199

FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda202

FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz203

FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel205

FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano206

FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do Itambeacute213

FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira sua

sobrinha com o marido e os filhos214

FIGURA 37 Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo

Horizonte215

FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos217

FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa

da sobrinha Jovelina218

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

i ndash Estrutura dos Capiacutetulos19

ii ndash Notas sobre a pesquisa26

1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO 31

11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacuteMG E GUAIacuteRAPR DOIS PONTOS DE UMA

LINHA 31

12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA59

13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE74

2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS96

21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS109

22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo116

23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS131

24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO142

3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo159

31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo159

32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS 168

321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos171

322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova180

323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG191

3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda194

3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda203

3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente206

324 Novos movimentos210

3241 O reencontro das irmatildes211

3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda216

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS221

12

INTRODUCcedilAtildeO

As narrativas das famiacutelias negras a respeito do periacuteodo posterior agrave aboliccedilatildeo

formal da escravidatildeo no Brasil em 1888 tecircm vindo agrave tona nas uacuteltimas trecircs deacutecadas

por meio da emergecircncia da reivindicaccedilatildeo identitaacuteria das ldquocomunidades quilombolasrdquo

Este florescimento de narrativas foi estimulado pela inserccedilatildeo do direito agrave propriedade

coletiva dos territoacuterios sociais tradicionalmente ocupados conforme previsto na

Constituiccedilatildeo Federal (CF) de 1988 no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees

Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) que versa ldquoaos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a

propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivosrdquo Com este

ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo1 (OLIVEIRA FILHO 1998) e a consequente

reelaboraccedilatildeo da relaccedilatildeo com o passado como novos sujeitos poliacuteticos tem ocorrido

a ldquorecuperaccedilatildeo e reenquadramento da memoacuteria ateacute entatildeo recalcadardquo (ARRUTI 2006

p 28)

O ldquoprocesso de nominaccedilatildeordquo dos ldquoremanescentes das comunidades dos

quilombosrdquo na CF instituiu assim uma categoria juriacutedica e administrativa para

identificar sujeitos de direitos coletivos como objeto de accedilatildeo do Estado (ARRUTI

2006 p 45) No entanto o artigo constitucional permaneceu sem aplicaccedilatildeo ateacute 1995

(tricentenaacuterio da morte de Zumbi) sendo que soacute foi complementado por uma

regulamentaccedilatildeo que previa a criaccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica com condiccedilotildees miacutenimas

para realizar a titulaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas em 2003 Trata-se

do Decreto Federal 4887 que revogou o Decreto Federal anterior 3912 de 2001 Para

esta regularizaccedilatildeo territorial eacute exigida a elaboraccedilatildeo de um relatoacuterio antropoloacutegico ndash

que figura como a primeira peccedila teacutecnica produzida no acircmbito do processo de titulaccedilatildeo

quilombola ndash responsabilidade do Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio por meio

1 Segundo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo consiste no

processo por meio do qual os grupos sociais (no caso da discussatildeo especiacutefica do autor o foco satildeo povos indiacutegenas mas este mesmo raciociacutenio pode ser estendido para as comunidades quilombolas) tornam-se coletividades organizadas enquanto objeto poliacutetico-administrativo de modo que formulam uma identidade proacutepria estabelecem mecanismos de decisatildeo e de representaccedilatildeo e reestruturam as suas formas culturais Assim ldquoas afinidades culturais ou linguiacutesticas bem como os viacutenculos afetivos e histoacutericos porventura existentes entre os membros dessa unidade poliacutetico-administrativa (arbitraacuteria e circunstancial) seratildeo retrabalhados pelos proacuteprios sujeitos em um contexto histoacuterico determinado e contrastados com caracteriacutesticas atribuiacutedas aos membros de outras unidades deflagrando um processo de reorganizaccedilatildeo sociocultural de amplas proporccedilotildeesrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 56)

13

do Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) atraveacutes de suas

superintendecircncias estaduais2

Esta dissertaccedilatildeo busca analisar o processo de reconstituiccedilatildeo das memoacuterias e

da histoacuteria coletiva fruto da emergecircncia identitaacuteria da comunidade negra

autodenominada ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em

Guaiacutera no estado do Paranaacute (PR) Esta comunidade desde 2008 haacute sete anos

iniciou o processo de titulaccedilatildeo de seu territoacuterio junto agrave Superintendecircncia do INCRA no

Paranaacute Este procedimento administrativo que tramita com o nordm 542000010752008-

46 foi marcado pelo desencadeamento de conflitos e incompreensotildees resultando na

produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos em decorrecircncia da anulaccedilatildeo do primeiro

A trajetoacuteria de reconhecimento desta comunidade apresentou desafios especiacuteficos

tendo em vista que sua histoacuteria destoa do imaginaacuterio redutivo e preacute-concebido

comumente atribuiacutedo agraves comunidades quilombolas3 que parte de uma ideia de

fixaccedilatildeo territorial e de uma relaccedilatildeo ancestral e contiacutenua com um mesmo territoacuterio

tradicionalmente ocupado Este grupo quilombola no Paranaacute constroacutei sua identidade

coletiva como iremos analisar ao longo deste trabalho a partir de processos de

deslocamentos geograacuteficos no qual GuaiacuteraPR eacute o ponto de chegada para algumas

famiacutelias e ponto de passagem para outras

O municiacutepio de Guaiacutera estaacute na regiatildeo de fronteira internacional entre o Brasil

e o Paraguai definida pelos contornos do Rio Paranaacute no extremo oeste do estado

Nesta regiatildeo tais famiacutelias chegaram como gostam de narrar no comeccedilo da deacutecada

de 60 a partir de um movimento iniciado no estado de Minas Gerais (MG) passando

2 Esta atribuiccedilatildeo de titulaccedilatildeo dos territoacuterios quilombolas nas Superintendecircncias Regionais do INCRA

eacute executada pelo ldquoServiccedilo de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolasrdquo que integra a ldquoDivisatildeo de Ordenamento da Estrutura Fundiaacuteriardquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrincra-nos-estados Acesso em 291015 3 Um exemplo da forte presenccedila desta loacutegica reducionista no campo juriacutedico eacute o voto do entatildeo Ministro

do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso que foi o relator em 18 de abril de 2012 da Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade 3239 proposta pelo Partido Democratas questionando a constitucionalidade do Decreto Federal 4887 de 2003 O voto do Ministro Relator que abriu o julgamento baseou-se na acepccedilatildeo histoacuterica de quilombo para interpretar o sentido e a abrangecircncia da aplicaccedilatildeo do artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias Caso o julgamento venha a confirmar este mesmo entendimento do Ministro Peluso haveraacute um enorme retrocesso na poliacutetica quilombola com a retirada do Decreto 4887 de 2003 do ordenamento juriacutedico e com a necessidade de que tal direito seja regulamentado por lei a ser aprovada pelo Congresso Nacional no qual a bancada ruralista eacute muito expressiva Endereccedilo eletrocircnico do viacutedeo da sessatildeo de julgamento httpwwwyoutubecomwatchv=ZV94XhbFV6s Acesso em 08012015 Para uma anaacutelise do voto do ministro ver artigo que desenvolvi neste sentido (RIBEIRO 2015)

14

pela regiatildeo oeste do estado de Satildeo Paulo (SP) no municiacutepio de Caiabu4 ndash distante

quarenta quilocircmetros de Presidente Prudente5 que eacute o municiacutepio polo da regiatildeo ndash

onde chegaram em 1956 As narrativas quilombolas destacam que Manoel trabalhou

com a famiacutelia em CaiabuSP na colheita de algodatildeo e amendoim ateacute que ele e mais

alguns parentes resolvem se mudar com o objetivo de comprar terras no extremo

oeste do Paranaacute na regiatildeo dos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa

Em Minas6 viviam no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute considerado o

local de origem do grupo localizado proacuteximo ao iniacutecio da regiatildeo conhecida como ldquoVale

do Jequitinhonhardquo Satildeo as memoacuterias dos mais velhos sobre esta regiatildeo de origem que

constituem a base da histoacuteria deste grupo conforme eacute mobilizada pelas famiacutelias que

vivem atualmente em Guaiacutera e cujos membros importante destacar jaacute nasceram no

estado de Satildeo Paulo ou no Paranaacute ou seja depois do iniacutecio do processo de

descolamento das famiacutelias

Nas narrativas sobre o passado mineiro da comunidade haacute referecircncias a

ancestrais que foram escravizados no garimpo e em fazendas da regiatildeo cujo

povoamento ainda no seacuteculo XVIII surgiu com a exploraccedilatildeo de ouro vinculada agrave

expansatildeo bandeirante paulista com forte presenccedila da escravidatildeo africana (PORTO

2007 p 66) No entanto as memoacuterias da escravidatildeo deste grupo natildeo estatildeo

circunscritas em suas narrativas ao tempo da escravidatildeo jaacute que haacute uma extensatildeo

temporal que expressa uma percepccedilatildeo de continuidade desta experiecircncia por meio

da situaccedilatildeo de viver como escravo (MELLO 2012 p 214)

4 O municiacutepio de CaiabuSP antes distrito de Regente Feijoacute foi criado pela Lei Estadual nordm 2456 de

1953 Nesta localidade desde 1935 com o iniacutecio do povoamento havia plantaccedilotildees de algodatildeo e outras culturas na qual a famiacutelia de Manoel se inseriu a partir de 1956 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio tem uma populaccedilatildeo de 4072 habitantes Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350890ampsearch=||infogrE1ficos-informaE7F5es-completas Acesso em 041115 5 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio de Presidente PrudenteSP tem uma

populaccedilatildeo de 207610 habitantes Seu povoamento foi iniciado ainda no seacuteculo XIX a partir dos deslocamentos de mineiros para a regiatildeo que com o esgotamento das minas de ouro estavam ldquoem busca de terras boas para a lavourardquo Foi elevado agrave categoria de municiacutepio pela Lei nordm 1798 de 1921 desmembrado do municiacutepio de Campos Novos e Conceiccedilatildeo de Monte Alegre Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=354140ampsearch=sao-paulo|presidente-prudente|infograficos-historico Acesso em 041115 Presidente PrudenteSP exerce assim influecircncia sobre os municiacutepios menores do entorno Iremos destacar ao longo do trabalho a passagem das famiacutelias provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pelo estado de Satildeo Paulo por meio da referecircncia agrave ldquoregiatildeo de Presidente Prudenterdquo pois natildeo tive acesso a muitas referecircncias especiacuteficas em relaccedilatildeo agrave forma e ao histoacuterico de ocupaccedilatildeo das famiacutelias nesta regiatildeo embora se indique que Manoel viveu em CaiabuSP 6 Uso a grafia em itaacutelico para a sinalizaccedilatildeo de expressotildees nativas e aspas duplas para as falas dos meus interlocutores e citaccedilotildees bibliograacuteficas

15

Nestes deslocamentos de Minas Gerais ao Paranaacute o movimento destas

famiacutelias negras foi traccedilado em direccedilatildeo primeiro agrave regiatildeo de Presidente PrudenteSP

onde se estabeleceram por alguns anos trabalhando na aacuterea rural em terras

arrendadas No comeccedilo da deacutecada de 60 vislumbraram entatildeo a possibilidade de

adquirirem aacutereas proacuteprias nos loteamentos rurais na regiatildeo de GuaiacuteraPR em contato

com pessoas que trabalhavam como ldquocorretoresrdquo e buscavam pessoas interessadas

no estado de Satildeo Paulo Novamente resolvem se deslocar agora em direccedilatildeo ao

extremo oeste paranaense onde adquirirem aacuterea no loteamento rural de iniciativa da

Sociedade Agropecuaacuteria Industrial e Comercial Maracaju LTDA que tinha sede em

Caxias do Sul Este loteamento eacute atualmente denominado como bairro rural ldquoMaracaju

dos Gauacutechosrdquo distante vinte quilocircmetros do centro comercial do municiacutepio de

GuaiacuteraPR

Estes deslocamentos constitutivos da experiecircncia do grupo satildeo articulados

por meio da atribuiccedilatildeo de uma dimensatildeo moral em relaccedilatildeo ao desrespeito coletivo ao

qual percebem terem sido submetidos e que constitui um aspecto central da

elaboraccedilatildeo de sua identidade coletiva A identificaccedilatildeo deste desrespeito7 ndash percebido

na situaccedilatildeo de precariedade de condiccedilotildees de vida e no preconceito racial sofrido por

estas famiacutelias negras enquanto fator determinante para tais movimentos com o alto

custo emocional gerado pela separaccedilatildeo entre parentes ndash veio agrave tona com o processo

de reconhecimento do grupo como quilombolas Como procuraremos apontar eacute a

trajetoacuteria coletiva de movimento e a relaccedilatildeo com esta origem mineira que constitui a

fonte de pertencimento identitaacuterio que estrutura o processo de etnogecircnese no caso do

quilombo de GuaiacuteraPR8

No entanto esta trajetoacuteria natildeo foi tida como legiacutetima em muitas situaccedilotildees de

contato do grupo com agentes externos inclusive no acircmbito do procedimento de

regularizaccedilatildeo territorial que tramita no INCRA Em contraste com este modo de

elaboraccedilatildeo da identidade que eacute reivindicada a partir da trajetoacuteria de movimento a

interpretaccedilatildeo corrente com base na previsatildeo normativa tem tomado a territorialidade

7 Ao que Arruti denomina ldquoprocesso de identificaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 46) 8 A relaccedilatildeo entre trajetoacuteria e origem segundo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho pode ser compreendida

como dinacircmica constitutiva da etnicidade pois esta supotildee necessariamente uma trajetoacuteria histoacuterica ldquodeterminada por muacuteltiplos fatoresrdquo e uma origem enquanto experiecircncia primaacuteria ldquotraduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplarrdquo Deste modo ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedila Eacute da resoluccedilatildeo simboacutelica e coletiva dessa contradiccedilatildeo que decorre a forccedila poliacutetica e emocional da etnicidaderdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)

16

como epicentro da identidade bem como da mobilizaccedilatildeo por direitos no processo de

reconhecimento puacuteblico dos grupos quilombolas no Brasil Tendo como referecircncia a

previsatildeo constitucional do artigo 68 do ADCT referida acima tem sido pressuposta

uma equivalecircncia entre a ancestralidadecontinuidade da ocupaccedilatildeo do territoacuterio

tradicional e a legitimidade da emergecircncia eacutetnica

A relaccedilatildeo entre ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo tambeacutem tem sido enfocada no debate

atual mais amplo sobre as comunidades tradicionais o que se daacute por meio da

construccedilatildeo de ldquouma articulaccedilatildeo especiacutefica entre certas dimensotildees lsquoespaciaisrsquo e outras

lsquoculturaisrsquordquo Poreacutem eacute necessaacuterio pensar as praacuteticas espaciais desses grupos sociais

sem pressupor ndash como parece mais palataacutevel e administraacutevel pela loacutegica estatal ndash que

eles estejam ldquoa priori (ou a posteriori) destinados ou lsquocondenadosrsquo a se enraizar num

pedaccedilo de solo qualquerrdquo (GUEDES 2013b p 53-56) Portanto

Faz-se necessaacuterio entatildeo contextualizar historicamente as ideias de ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo bem como destacar a contingecircncia da associaccedilatildeo existente entre elas em razatildeo da crescente popularidade de certas narrativas que certamente imbuiacutedas de propoacutesitos criacuteticos e poliacuteticos simpaacuteticos agrave causa das comunidades tradicionais inadvertidamente naturalizam o ldquoenraizamentordquo de tais grupos (GUEDES 2013b p 54)

A naturalizaccedilatildeo do enraizamento dos grupos quilombolas consiste em uma

ldquoidealizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ldquopreacute-desterritorializaccedilatildeordquo esta uacuteltima implicitamente

sugerindo uma estabilidade ldquoterritorializadardquo destes grupos na terra que no contexto

brasileiro eacute antes a exceccedilatildeo do que a regrardquo (GUEDES 2013b p 55) Tal

interpretaccedilatildeo desconsidera no caso da formaccedilatildeo de grupos quilombolas o histoacuterico

de intensa movimentaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra nas deacutecadas poacutes-aboliccedilatildeo em busca

de terras para sua reproduccedilatildeo como campesinato autocircnomo Deste modo o

deslocamento de famiacutelias negras para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente ndash como

GuaiacuteraPR ndash aparece como estrateacutegia de garantia de liberdade sempre ameaccediladas

pelo padratildeo de relaccedilotildees entre brancos e negros em regiotildees com um histoacuterico antigo

e consolidado de escravidatildeo (LIMA 2000) ndash caso de Minas Gerais Sem essa

consideraccedilatildeo mais ampla e complexa restringe-se a possibilidade de abarcar a

pluralidade de formas e contextos nos quais ocorreram a constituiccedilatildeo de territoacuterios

negros e as articulaccedilotildees identitaacuterias quilombolas no Brasil

A ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo por exemplo leva o

nome do patriarca da famiacutelia que liderou o processo de saiacuteda de Minas Gerais

17

chegada e consolidaccedilatildeo do grupo no Paranaacute Esta histoacuteria de deslocamentos implicou

em dificuldades natildeo soacute para a manutenccedilatildeo do contato entre parentes que se

dispersaram como tambeacutem para a reproduccedilatildeo intergeracional da memoacuteria coletiva

Um dos principais desafios dos membros da comunidade passava pela necessidade

de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria coletiva que precisava ser reinterpretada agrave luz da

autoidentificaccedilatildeo como quilombolas O aumento do ciacuterculo de interaccedilatildeo do grupo com

agentes externos e a consequente influecircncia que este processo passou a ter em sua

autoimagem tornava necessaacuteria a construccedilatildeo de um novo lugar de legitimidade para

a sua histoacuteria na medida em que esta se transformava em ldquoprinciacutepio de justificaccedilatildeo

das demandas do presenterdquo (MELLO 2012 p 20) A construccedilatildeo de uma imagem de

si como quilombolas fez surgir entatildeo a necessidade de organizar ldquouma memoacuteria

linear e coerente sobre suas lsquoorigensrsquordquo (ARRUTI 2001 p 243) o que antes natildeo

aparecia como uma questatildeo a ser elaborada de forma sistemaacutetica por essas famiacutelias

No entanto a resposta a esta demanda esbarrou na ausecircncia dos parentes mais

velhos que viveram em Minas pois jaacute haviam falecido ou saiacutedo de GuaiacuteraPR

Esta necessidade de acessar a memoacuteria atraveacutes dos mais velhos e assim

subsidiar as suas narrativas em acircmbito oficial reconhecida pelos(as) proacuteprios(as)

quilombolas intensificou-se diante do questionamento levantado pelo primeiro

relatoacuterio antropoloacutegico9 publicado em 2010 e produzido no acircmbito do procedimento

do INCRA A trajetoacuteria de movimento do grupo foi em um primeiro momento lida

como obstaacuteculo para o reconhecimento puacuteblico de sua autoidentificaccedilatildeo Com o

transcorrer do processo de reconhecimento cada vez mais a busca pela nossa

histoacuteria e o desejo de retomar o contato com os parentes que permaneceram em MG

passam a ser um objetivo principalmente da lideranccedila do grupo Adir e tambeacutem uma

demanda de legitimaccedilatildeo identitaacuteria no contexto mais amplo Isso porque as memoacuterias

do grupo sobre a regiatildeo de origem e os processos de deslocamento que constituiacuteram

sua trajetoacuteria no seacuteculo XX mesmo que acessadas de modo indireto pelos que vivem

9 Como mencionado acima foram realizados dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do Procedimento

Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos que tramita na Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro relatoacuterio realizado levantou questionamentos ao negar a legitimidade da autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombola e de sua trajetoacuteria histoacuterica especiacutefica tendo em vista a natildeo ancestralidade de ocupaccedilatildeo do territoacuterio e a inexistecircncia de registros de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR Este primeiro relatoacuterio foi anulado pelo INCRA bem como foi rejeitado pelos quilombolas Estas questotildees referentes agrave produccedilatildeo dos relatoacuterios seratildeo aprofundadas no capiacutetulo 2

18

hoje na comunidade em Guaiacutera constituiacuteam o eixo da reivindicaccedilatildeo de uma

identidade quilombola

Tendo em vista a natildeo aprovaccedilatildeo do primeiro relatoacuterio eacute soacute a partir do

segundo estudo publicado em 2012 que a identidade quilombola do grupo seraacute

reconhecida e sustentada teoacuterica e etnograficamente Com este estudo a anaacutelise natildeo

seraacute mais baseada em interpretaccedilotildees substancializadas por meio de estereoacutetipos e

substratos culturais Neste debate travado dentro do procedimento administrativo do

INCRA a especificidade da experiecircncia histoacuterica da trajetoacuteria de movimento destas

famiacutelias negras foi uma questatildeo central para ambos os relatoacuterios antropoloacutegicos No

entanto as anaacutelises foram opostas o primeiro entendeu que a identidade do grupo

quilombola natildeo era legiacutetima e estava sendo forjada enquanto o segundo afirmou que

o processo de migraccedilatildeo consistia em mecanismo de resistecircncia agrave experiecircncia de

opressatildeo histoacuterica sofrida

A reivindicaccedilatildeo territorial do grupo no acircmbito deste procedimento

administrativo eacute a ampliaccedilatildeo do que restou da aacuterea que adquiriram em GuaiacuteraPR

por meio de anos de trabalho 85 alqueires onde vivem atualmente em meacutedia vinte

e cinco pessoas (sete famiacutelias)10 A conquista desta aacuterea possibilitou a manutenccedilatildeo

da coesatildeo e da identidade dos grupos familiares que haviam se deslocado de Minas

Gerais Importante ressaltar neste sentido que o acesso agrave terra eacute um instrumento

fundamental para a reproduccedilatildeo fiacutesica econocircmica social e cultural do grupo de modo

que seja viaacutevel a manutenccedilatildeo de uma forma de vida especiacutefica Apesar de poucos

moradores efetivos atualmente na aacuterea a reinvindicaccedilatildeo pela ampliaccedilatildeo territorial eacute

estimada a partir da amplitude de moradores potenciais pois contempla

principalmente a expectativa de retorno de familiares que moraram em GuaiacuteraPR

mas que em algum momento tiveram que se deslocar novamente

Tomando o tema do movimento como eixo desta dissertaccedilatildeo a histoacuteria do

grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos seraacute pensada atraveacutes de uma linha que

desenha o caminhar constitutivo da identidade do grupo (INGOLD 2007) Esta linha

os conecta segundo suas narrativas apontam desde Minas Gerais no tempo da

escravidatildeo ateacute Guaiacutera no presente e segue se ramificando no movimento das

famiacutelias que continuaram se deslocando A opccedilatildeo deste recorte temaacutetico eacute fruto de

10 Este nuacutemero variou durante o periacuteodo de trabalho de campo apontando para a continuidade das dinacircmicas de movimento

19

uma sistematizaccedilatildeo que se demonstrou coerente com base na etnografia realizada e

que retrata uma escolha de anaacutelise como autora mas que principalmente emerge

no processo dialoacutegico com os sujeitos de pesquisa

i ndash Estrutura dos capiacutetulos

No primeiro capiacutetulo ldquoIdentidade em movimentordquo busco analisar como os

processos de deslocamento vivenciados por essas famiacutelias no sentido MG↦SP↦PR

satildeo por elas articulados em termos de dinacircmicas constitutivas da resistecircncia

quilombola uma vez que as experiecircncias de fixaccedilatildeo remetem sobretudo agrave exclusatildeo

social e a relaccedilotildees de preconceito racial Busco refletir sobre como os membros do

grupo de Guaiacutera sentem-se fortemente vinculados e unidos por meio das memoacuterias

construiacutedas sobre a origem mineira e sobre a trajetoacuteria de deslocamentos O sentido

de unidade criado por estas famiacutelias eacute tambeacutem consequecircncia de sua inserccedilatildeo em

Guaiacutera em um contexto considerado por eles como adverso tendo em vista que o

municiacutepio foi colonizado por descendentes de europeus a partir de um vieacutes

modernizador sendo atualmente marcado pelos interesses do agronegoacutecio

Situaccedilotildees de discriminaccedilatildeo racial satildeo constantemente relatadas pelos quilombolas na

interaccedilatildeo com os italianos e alematildees proprietaacuterios vizinhos no bairro rural onde se

localiza a comunidade

O acionamento da identidade quilombola os faz reforccedilar a importacircncia das

narrativas de memoacuteria sobre a regiatildeo de origem do grupo em Minas Gerais o

municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute bem como sobre a chegada das famiacutelias em

GuaiacuteraPR Satildeo memoacuterias elaboradas a partir de um sentimento de continuidade

expresso na ecircnfase atribuiacuteda agraves dificuldades de sobrevivecircncia e agrave busca pela

superaccedilatildeo do sofrimento Esta experiecircncia de estigmatizaccedilatildeo social e racial passa a

ser positivada internamente atraveacutes do autorreconhecimento como quilombolas o

qual cria uma ruptura com a experiecircncia de silenciamento anterior A inserccedilatildeo no

movimento quilombola fez com que o grupo se colocasse em uma nova rede de

relaccedilotildees com agentes externos Adir na posiccedilatildeo de presidente da Associaccedilatildeo

Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) passou a realizar

viagens para encontros e debates sobre a temaacutetica quilombola o que o construiu

como lideranccedila e abriu espaccedilo para o pronunciamento puacuteblico sobre a proacutepria histoacuteria

20

e identidade A possibilidade destas viagens como a que foi realizada por Adir para

Brasiacutelia no Distrito Federal em novembro de 2014 na qual o acompanhei coloca-os

novamente em movimento agora de circulaccedilatildeo em acircmbito poliacutetico

A religiosidade do grupo tambeacutem seraacute abordada no primeiro capiacutetulo na

medida em que eacute permeada por dinacircmicas de movimento (a) deslocamentos

concretos como as viagens religiosas de pagamentos de promessas a saiacuteda de

Manoel Ciriaco de Minas Gerais depois de ter sido viacutetima de agressatildeo maacutegica e a

saiacuteda do filho de Manoel Ciriaco Antocircnio do siacutetio em GuaiacuteraPR para ir morar na

cidade por conta do preconceito religioso que sofriam no bairro rural ldquoMaracaju dos

Gauacutechosrdquo e (b) movimentos natildeo concretos como praacuteticas de devoccedilatildeo cotidianas que

os colocam em relaccedilatildeo com santos Orixaacutes entidades espiacuteritos almas abrindo

assim a possibilidade de se deslocarem entre mundos conectando tempos espaccedilos

linguagens possibilitando curas e orientaccedilotildees etc Aleacutem disso a religiosidade aponta

para dinacircmicas de continuidade marcadas pelas imbricaccedilotildees entre um catolicismo

negro e experiecircncias proacuteprias do universo da umbanda Nas narrativas sobre este

tema tambeacutem eacute possiacutevel perceber a convergecircncia entre as dimensotildees religiosa racial

e social considerando que as praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras satildeo natildeo soacute

desvalorizadas mas socialmente condenadas Esta dimensatildeo cultural religiosa ndash que

os conecta com sua origem mineira ndash tende a natildeo ser enfatizada publicamente pelos

membros da comunidade como um sinal diacriacutetico opccedilatildeo que parece permeada pelo

receio de que isso possa ser usado para reforccedilar um lugar de marginalidade e

estigmatizaccedilatildeo para o grupo

No segundo capiacutetulo ldquoIdentidade quilombola e relatoacuterios antropoloacutegicosrdquo

analiso o novo voacutertice de movimento presente na trajetoacuteria coletiva do grupo que se

consolidou a partir de sua inserccedilatildeo no acircmbito poliacutetico como sujeito de direitos coletivo

o autorreconhecimento como quilombolas A inserccedilatildeo no campo de reivindicaccedilatildeo

como quilombolas colocou-os novamente nos termos de Adir diante de uma longa

caminhada Muitos percalccedilos foram enfrentados no processo de regularizaccedilatildeo

quilombola pelo INCRA ainda em tracircmite tendo em vista os questionamentos

levantados pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido em 2010 Eacute muito faacutecil

iniciar uma conversa de horas com Adir e Joaquim presidente e vice da ACONEMA

a respeito de suas criacuteticas e decepccedilotildees em relaccedilatildeo aos conflitos gerados a partir do

iniacutecio das atividades do INCRA junto agrave comunidade Apesar dos descontentamentos

21

e frustraccedilotildees continuam a alimentar a esperanccedila de uma resoluccedilatildeo futura que lhes

garanta a regularizaccedilatildeo territorial

A pesquisa para elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico ainda em

2009 havia sido liderada pelo professor da Universidade Estadual do Oeste do

Paranaacute (UNIOSTE) Antocircnio Pimentel Pontes Filho o qual questionou a legitimidade

das narrativas quilombolas tomando-as como oportunistas11 O fato de o grupo natildeo

ter uma relaccedilatildeo ancestral com o territoacuterio atual natildeo apresentar informaccedilotildees

consideradas consistentes sobre a existecircncia de ancestrais escravizados e natildeo se

adequar ao modelo de quilombo tiacutepico foi considerado como criteacuterio para negar a

legitimidade da identidade quilombola de modo que foram entendidos ldquoapenasrdquo como

um grupo de trabalhadores rurais negros O primeiro relatoacuterio ndash apoacutes pedidos de

alteraccedilotildees solicitados pelo INCRA mas desconsiderados pelo antropoacutelogo

responsaacutevel ndash foi rejeitado tanto pelos quilombolas quanto pelo INCRA O

desencadeamento de conflitos com os gauacutechos proprietaacuterios vizinhos agrave comunidade

quilombola a situaccedilatildeo de isolamento e a perda de relaccedilotildees de trabalho que

mantinham nas propriedades do entorno foram algumas das consequecircncias geradas

pelo iniacutecio do trabalho do INCRA com o grupo a partir da atuaccedilatildeo da primeira equipe

de pesquisadores

Um segundo relatoacuterio foi entatildeo realizado por uma nova equipe em 2012 a

partir da contrataccedilatildeo pelo INCRA via sistema de licitaccedilatildeo puacuteblica (pregatildeo eletrocircnico)

da empresa Terra Ambiental Com a possibilidade de reelaboraccedilatildeo da pesquisa

antropoloacutegica o historiador da segunda equipe de pesquisadores Cassius Cruz

deslocou-se ateacute Minas Gerais a fim de pesquisar sobre as comunidades quilombolas

da regiatildeo de origem do grupo A partir da memoacuteria coletiva indicada pelo grupo em

Guaiacutera12 muitos pontos em comum com as narrativas dos quilombolas da regiatildeo

mineira foram identificados as referecircncias a personagens histoacutericos comuns a

memoacuteria da estrateacutegia de habitaccedilatildeo em lapas de pedra (tipo de moradia construiacuteda

dentro de cavernascasa de pedra) a mobilidade espacial como processo de

formaccedilatildeo de algumas das comunidades quilombolas mineiras a tendecircncia

11 Este mesmo antropoacutelogo em 2014 foi contratado pelos produtores rurais da regiatildeo para fazer um contralaudo em contestaccedilatildeo ao relatoacuterio antropoloacutegico da FUNAI para a demarcaccedilatildeo de uma terra indiacutegena Avaacute-Guarani em GuaiacuteraPR 12 Conforme me esclareceu Cassius Cruz nenhum quilombola pocircde acompanha-lo nesta oportunidade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em Minas Gerais em decorrecircncia de falta de recursos previstos no contrato com o INCRA

22

endogacircmica dos casamentos bem como possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e a Comunidade Quilombola Vila

Nova localizada no municiacutepio de SerroMG O segundo relatoacuterio fundamentou-se

entatildeo na capacidade de manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social do grupo em continuidade

com sua regiatildeo de origem que entre outros fatores geram o sentimento de

pertencimento comum e identificaccedilatildeo como quilombolas Com a aprovaccedilatildeo do 2ordm

relatoacuterio o reconhecimento da legitimidade da identidade do grupo finalmente ganhou

mais forccedila

Por fim esta possibilidade de buscar mais conhecimento sobre a histoacuteria dos

antepassados articulada por meio da pesquisa produzida pelo segundo relatoacuterio

antropoloacutegico impulsionou aos quilombolas de Guaiacutera e a mim junto com Cassius

Cruz ndash que foi por noacutes convidado para essa empreitada ndash a ir ateacute Minas Gerais com

o objetivo de seguir o caminho de volta da trajetoacuteria de deslocamentos dos

antepassados do grupo A pesquisa por noacutes realizada em Minas Gerais eacute o tema

central do terceiro capiacutetulo denominado ldquoEacute como se noacutes voltasse a paacutegina da nossa

vida do comeccedilordquo Foram duas viagens ateacute a regiatildeo mineira realizadas em marccedilo e

em junho de 2015 A pesquisa acabou entatildeo tornando-se uma etnografia nocircmade e

entrelaccedilando-se com a histoacuteria do grupo A linha de movimento deste grupo ateacute

Guaiacutera somada a sua inserccedilatildeo no movimento quilombola gerou assim um impulso

de reaproximaccedilatildeo no qual tambeacutem nos inserimos que pode ser interpretado na chave

tripla de (a) saiacuteda (b) afirmaccedilatildeo identitaacuteria e (c) retorno Esta linha no entanto natildeo

deve ser entendida como se fechando em um movimento circular mas se constituindo

como uma espiral jaacute que natildeo eacute possiacutevel retornar mais ao mesmo lugar de onde se

saiu tendo em vista que este lugar para o qual se quer voltar jaacute se transformou bem

como os sujeitos envolvidos

Assim o esforccedilo de pesquisa natildeo esteve focado na anaacutelise do grupo

quilombola como totalidade autocontida pois buscou compreender os fluxos e

relaccedilotildees que perpassam esta trajetoacuteria de movimento conectando pessoas e

experiecircncias espalhadas por diferentes locais (ARRUTI 2006 p 35) O trabalho de

campo ritual central na antropologia e parte constitutiva do arqueacutetipo do etnoacutegrafo

ganhou dessa forma contornos especiais Permitiu uma abordagem realizada com

23

os sujeitos de pesquisa a partir de sua historicidade13 de modo que a continuidade

dos movimentos empreendidos pelos quilombolas parece demonstrar a presenccedila de

dinacircmicas de distanciamentos e aproximaccedilotildees com a potencialidade de atualizaccedilatildeo

dos viacutenculos e relaccedilotildees mesmo apoacutes muito tempo de interrupccedilatildeo

Para que a viagem ateacute Minas Gerais pudesse atender os propoacutesitos dos

quilombolas de GuaiacuteraPR inclusive de fortalecimento identitaacuterio os irmatildeos Adir (46)

e Geralda (53) filhos de Manoel Ciriaco e tambeacutem lideranccedilas locais sugeriram que

antes de irmos ateacute Santo Antocircnio do ItambeacuteMG deveriacuteamos passar por Presidente

PrudenteSP Este municiacutepio faz parte da regiatildeo para onde desde a deacutecada de 1980

retornaram os seus irmatildeos mais velhos que jaacute haviam morado com seus pais no

municiacutepio proacuteximo em CaiabuSP Com a inclusatildeo de Presidente PrudenteSP em

nosso roteiro de viagem ateacute Minas Gerais iriam assim retraccedilar o caminho de seus

ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) atraveacutes de seu trajeto de deslocamento

realizado nas deacutecadas de 19501960 agora no sentido inverso de GuaiacuteraPR ateacute

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Em Presidente PrudenteSP moram atualmente os quatro irmatildeos mais

velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) que nasceram

em Minas Gerais e acompanharam seu pai na trajetoacuteria de deslocamento ateacute

GuaiacuteraPR e depois nas deacutecadas de 19801990 estabeleceram-se no estado de Satildeo

Paulo regiatildeo na qual jaacute haviam morado entre a deacutecada de 19501960 antes

chegarem no estado do Paranaacute Dentre os irmatildeos Joatildeo Loriano seria a pessoa mais

indicada para nos acompanhar ateacute Minas Gerais conforme me explicaram Adir e

Geralda

Joatildeo Loriano nascido em 1944 foi o uacutenico filho que Manoel Ciriaco havia

deixado em Minas Gerais quando de laacute saiu em 1956 histoacuteria que conheceremos

mais a fundo no terceiro capiacutetulo O menino ficou aos cuidados de sua avoacute Izidora

(matildee de Manoel) que foi quem o criou desde quando tinha um mecircs e sete dias de

vida pois a matildee da crianccedila Maria Olinda primeira esposa de Manoel havia falecido

na sequecircncia de seu nascimento Manoel segundo relatam natildeo teria tido coragem

de levar o menino junto com ele para natildeo o separar de sua avoacute Izidora Em 1981

quando Joatildeo Loriano jaacute tinha 37 anos seu irmatildeo Antocircnio foi ateacute Santo Antocircnio do

13 ldquoAssim a etnografia histoacuterica converge com a chamada microhistoacuteria justamente ao adotar como

procedimento acompanhar o fio de um destino particular e com ele a multiplicidade de espaccedilos de tempos e de relaccedilotildees em que se inscreverdquo (ARRUTI 2006 p 36)

24

ItambeacuteMG e conseguiu lhe achar convidando-o para ir com ele embora para o

Paranaacute Antocircnio entatildeo levou Joatildeo e sua famiacutelia esposa e filhos para GuaiacuteraPR

regiatildeo em que viveram ateacute 1992 quando decidem residir em Presidente PrudenteSP

Sendo Joatildeo o filho de Manoel que mais tempo viveu em MG ele seria afinal de

contas a pessoa que poderia ter mais facilidade para caccedilar os parentes que

permaneceram na regiatildeo mineira e com os quais perderam contato nas uacuteltimas

deacutecadas Seu Joatildeo quando por noacutes interpelado aceitou o convite para nos

acompanhar na viagem com muito entusiasmo depois de trinta e quatro anos que de

laacute havia saiacutedo sem nunca mais ter conseguido retornar

A intensidade das emoccedilotildees despertadas pelos encontros entre parentes que

jaacute natildeo se sabiam mais vivos ou que ainda natildeo se conheciam contagiou a todos

durante nossa estadia em Santo Antocircnio do Itambeacute e no municiacutepio vizinho SerroMG

Isso permitiu conversas e entrevistas que soacute poderiam ter sido geradas neste

entrelaccedilamento de lugares tempos e pessoas instaurando um regime de

temporalidade especial no qual o presente o passado e o futuro destas famiacutelias

ganhavam novos sentidos ndash concomitantemente As circunstacircncias nas quais estes

depoimentos foram produzidos e colhidos permitiam que a cacircmera de viacutedeo ligada a

maior parte do tempo ou mesmo o gravador de voz natildeo causassem estranhamento

agraves pessoas ndash quando tudo o que se passava estava contido em um momento uacutenico

que deveria ser registrado ndash nestes encontros que marcaram a histoacuteria de vida dessas

pessoas bem como a minha e a de Cassius

De alguma forma o futuro da comunidade quilombola em GuaiacuteraPR era o

retorno a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG a esse passado depois de deacutecadas de

interrupccedilatildeo do contato efetivo Este anseio pelo retorno agrave origem que remete a uma

certa busca pela ldquocomprovaccedilatildeordquo do viacutenculo da comunidade com sua ancestralidade

mineira partiu da proacutepria comunidade no bojo de um processo controverso de

regularizaccedilatildeo territorial mas natildeo de uma demanda ou de uma opccedilatildeo teoacuterica da minha

pesquisa Deve-se levar em conta que a autoidentificaccedilatildeo de grupos como

quilombolas natildeo demanda a demonstraccedilatildeo de viacutenculos genealoacutegicos com ancestrais

escravizados como veremos com calma no segundo capiacutetulo Este modo de

25

compreensatildeo construiria um sentido de origem histoacuterica muito limitado que natildeo estaacute

refletido na regulamentaccedilatildeo do Decreto Federal 48872003 em vigor14

A primeira viagem de quinze dias em marccedilo de 2015 oportunizou que os

quilombolas se tornassem pesquisadores e agentes da construccedilatildeo da sua proacutepria

narrativa histoacuterica Enfim o passado pocircde ocupar o importante papel que jaacute lhe era

conferido como quando os quilombolas de Guaiacutera reforccedilam a continuidade e natildeo a

ruptura em suas construccedilotildees discursivas mesmo que tal continuidade fosse

constituiacuteda por meio de dinacircmicas de movimento e mudanccedila Haacute linearidade portanto

mas natildeo aquela da linha reta

Com as oportunidades promovidas pelas viagens novos caminhos se

abriram A irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda que encontramos morando no

municiacutepio de SerroMG aos cuidados de vizinhos decidiu que queria morar perto da

famiacutelia a convite de sua sobrinha filha de Manoel Ciriaco Jovelina que mora

atualmente em Presidente PrudenteSP Esta decisatildeo de Dona Ana Raimunda

mesmo aos oitenta e sete anos eacute significativa para apontar que o movimento das

famiacutelias natildeo implicou em rompimentos definitivos dos viacutenculos como eacute comum na

regiatildeo mineira do ldquoAlto Vale do Jequitinhonhardquo (GALIZONI 2002)15 mesmo cinquenta

e nove anos depois que Manoel saiu de Minas com parte de sua famiacutelia

Eu e Cassius fomos entatildeo em junho trecircs meses depois da primeira viagem

a Minas Gerais em uma raacutepida aventura de quatro dias Nosso objetivo foi

acompanhar D Jovelina (73) para que buscasse sua tia Ana Raimunda no SerroMG

e D Maria das Dores (70) ndash esposa de Seu Joatildeo Loriano que saiu de Santo Antocircnio

do ItambeacuteMG para acompanha-lo em 1982 ndash para rever suas duas irmatildes ndash D

Zulmira (73) e D Regina (77) ndash que tambeacutem encontramos e fizemos contato na

primeira viagem em marccedilo de 2015 A elas eu e Cassius haviacuteamos prometido que

ajudariacuteamos a organizar estes reencontros Por fim realizei mais uma uacuteltima viagem

de campo para Presidente PrudenteSP em agosto de 2015 para entrevistar D Ana

Raimunda depois de dois meses que jaacute estava morando com sua sobrinha D

Jovelina

14 Segundo seu artigo 2o ldquoconsideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos para os

fins deste Decreto os grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo 15 Regiatildeo muito proacutexima a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

26

ii ndash Notas sobre a pesquisa

Importante neste momento finalizada a siacutentese dos temas principais dos

capiacutetulos desta dissertaccedilatildeo refletir sobre como foi a minha entrada em campo as

condiccedilotildees e as escolhas da pesquisa O meu contato com o grupo se iniciou pelo

nuacutecleo de famiacutelias em Guaiacutera trecircs anos antes da presente pesquisa realizada entre

2014 e 2015 Nos anos de 2011 e 2012 atuei como assessora juriacutedica em um setor

especializado em direitos humanos do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute

(MPPR) em decorrecircncia da minha formaccedilatildeo como bacharel em direito Tal setor tinha

como parte de suas atividades a articulaccedilatildeo com as comunidades quilombolas do

estado visando mediar as suas demandas por acesso a direitos junto aos oacutergatildeos

puacuteblicos Tornando-me uma referecircncia enquanto pessoa que trabalha dentro do

Estado junto ao grupo busquei com a pesquisa de mestrado um reposicionamento

em campo saindo da figura de agente estatal que traz a resposta para construir

relaccedilotildees de horizontalidade no conviacutevio cotidiano

Para mim o reposicionamento tambeacutem tinha uma dimensatildeo pessoal jaacute que

eu ainda vivo essa experiecircncia de transiccedilatildeo profissional entre o direito e a

antropologia Um novo caminho que em muito tem enriquecido e desafiado a minha

formaccedilatildeo inicial a qual tambeacutem influenciou na direccedilatildeo dos meus interesses de

pesquisa Tal interesse aparece por exemplo na anaacutelise do processo de

regularizaccedilatildeo territorial quilombola em suas relaccedilotildees com o universo juriacutedico

problematizado especialmente no capiacutetulo 2 Interessante observar neste sentido

que se a identidade do grupo natildeo eacute produzida a partir do Estado por outro lado ela

teraacute que ser modulada com o Estado no processo de reconhecimento enquanto

sujeito poliacutetico e cultural especiacutefico (MARCUS 1991)

Sobre o tema do processo no INCRA as entrevistas selecionadas foram na

maioria realizadas com os homens mais envolvidos com a poliacutetica e a representaccedilatildeo

puacuteblica do grupo A predominacircncia da voz masculina no segundo capiacutetulo natildeo reflete

no entanto a caracteriacutestica da pesquisa em geral Em todos os lugares que a pesquisa

percorreu seja em GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP e Santo Antocircnio do Itambeacute ou

SerroMG enquanto pesquisadora mulher minha inserccedilatildeo se deu pelo universo

feminino o que me possibilitou uma reflexividade muacutetua com essas mulheres

27

quilombolas Por elas fui recebida de modo muito hospitaleiro e natildeo demorei a criar

viacutenculos

Ao fazer da subjetividade um meio de conhecimento a antropologia evidencia

como os ldquodadosrdquo estatildeo prenhes de representaccedilotildees e satildeo a proacutepria anaacutelise

construiacutedos no corte possiacutevel do etnoacutegrafo A reflexatildeo etnograacutefica constroacutei portanto

aquilo que descreve bem como constroacutei o modo de relacionamento que produz o

conhecimento pois natildeo haacute um real que jaacute estaacute laacute no campo O tema e os recortes do

trabalho se delinearam como resultado da construccedilatildeo da proacutepria etnografia por isso

soacute puderam ser definidos no final da pesquisa o que prova que sair a campo vale a

pena (CALAVIA SAEZ 2001 597-599) Essas experiecircncias etnograacuteficas satildeo antes

de tudo experiecircncias de vida perpassadas por relaccedilotildees de afetividade e mediadas

pela compreensatildeo de que a expressatildeo da identidade ganha contornos especiacuteficos

conforme os contextos com os quais o grupo interage (MELLO 2012 p 117)

Em Guaiacutera realizei trabalho de campo por periacuteodos equivalentes em dois locais

(siacutetio e Vila Eletrosul) somando quarenta dias No periacuteodo em que estive no ldquosiacutetiordquo

(como eles mesmos denominam o local onde fica a ldquocomunidaderdquo16) foi importante eu

ter sido hospedada na casa de Joaquim e Eva e natildeo na casa de Adir presidente da

associaccedilatildeo pois isso me possibilitou expandir e aprofundar o contato com outras

pessoas aleacutem da lideranccedila com quem jaacute tinha mais proximidade desde a eacutepoca da

minha atuaccedilatildeo no Ministeacuterio Puacuteblico Eva minha anfitriatilde e suas duas filhas moccedilas

Jaqueline (20) e Janaina (14) foram as minhas principais referecircncias de conviacutevio

Quando natildeo estive no siacutetio fiquei hospedada na casa do casal Geralda e

Guaraacute (apelido de Antocircnio) em uma vila localizada na periferia de Guaiacutera

denominada Vila Eletrosul A casa de Geralda tem um importante papel para seus

irmatildeos que moram no siacutetio quando eles precisam resolver questotildees na cidade Deste

modo minha estadia na Vila Eletrosul me permitiu visualizar as dinacircmicas de

interaccedilatildeo entre urbano e rural o contexto perifeacuterico do municiacutepio de Guaiacutera aleacutem de

me aprofundar na religiosidade umbandista jaacute que Geralda e Guaraacute satildeo os dois

membros do grupo que efetivamente participam de um terreiro de Umbanda

localizado no municiacutepio vizinho Terra Roxa Ademais Geralda eacute benzedeira e

16 Deve-se levar em conta a criacutetica em relaccedilatildeo ao fato de que o termo aciona ldquoum estereoacutetipo de comunidade relativamente igualitaacuteria harmocircnica coesa solidaacuteria com projetos poliacuteticos comuns (em siacutentese uma visatildeo romacircntica ndash e pode-se dizer cristatilde ndash de comunidade)rdquo (PORTO 2012 41) Atualmente este termo se tornou um conceito ecircmico

28

mobiliza uma forte rede de reciprocidade com seus vizinhos sendo um referencial

local de sabedoria conselhos e cura

Joaquim (55) Geralda (52) Adir (45) e Joatildeo Aparecido (42) satildeo irmatildeos filhos

de Manoel Ciriaco dos Santos e sua segunda esposa Ana Rodrigues dos Santos o

casal fundador da comunidade em Guaiacutera hoje jaacute falecidos Estes quatro irmatildeos tecircm

um importante papel na manutenccedilatildeo do grupo quilombola atualmente satildeo os dentre

os herdeiros do ldquoVelho Maneacuterdquo os que permaneceram na propriedade que foi

comprada por ele (e no caso de Geralda moradora da periferia do mesmo municiacutepio

que permanece com viacutenculos cotidianos com a famiacutelia) Destes quatro irmatildeos os trecircs

homens moram no siacutetio e tocam a produccedilatildeo da horta e outros plantios aleacutem da criaccedilatildeo

de pequenos animais estando diretamente engajados no projeto de manutenccedilatildeo da

comunidade quilombola com a geraccedilatildeo de renda no proacuteprio territoacuterio e com o

processo de titulaccedilatildeo no INCRA Outro nuacutecleo familiar que permanece na comunidade

satildeo os trecircs filhos (com seus cocircnjuges e filhos) e a viuacuteva de Joseacute Maria (irmatildeo mais

velho de Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido) que faleceu em 2009 durante os

conflitos da comunidade com os vizinhos gauacutechos Mais duas famiacutelias durante o

periacuteodo que estive fazendo trabalho de campo na comunidade eram de agregados

ao nuacutecleo familiar por meio do casamento entre Adir e Solange Jaqueline ndash enteada

de Adir que mora com seus trecircs filhos pequenos ndash e D Luzia sogra de Adir com o

marido e um de seus netos

Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula por exemplo preferiu se separar da esposa

que se mudou para Presidente PrudenteSP Kelly com os dois filhos do casal em

busca de trabalho do que ir com ela e deixar a comunidade Sobre esta possibilidade

Joatildeo Aparecido comentou o seguinte

Esta luta aqui natildeo daacute pra deixar o Adir e o Joaquim Essa luta que noacutes viemos hoje abandonar assim tambeacutem natildeo daacute neacute Dandara Falei ldquodeixar eles Natildeo natildeo vira natildeo noacutes comeccedilamos noacutes temos que ir ateacute o final e meu pai sofreu muito pra comprar esse pedacinho de chatildeo aquirdquo Aiacute eu falei assim ldquocomeccedila a sair um sair o outro daqui uns dias aiacute acabou a comunidaderdquo

Estes quatro irmatildeos filhos de Manoel Ciriaco ndash que continuaram morando na

comunidade em GuaiacuteraPR ndash mantecircm contato por telefone celular aleacutem de algumas

visitas esparsas com seus quatro irmatildeos mais velhos que moram em Presidente

PrudenteSP como citado acima Laacute eles tecircm mais uma irmatilde tambeacutem filha de Manoel

e Ana Eurides (64) e aleacutem dos trecircs irmatildeos que satildeo filhos do primeiro casamento de

29

Manoel Ciriaco dos Santos com Maria Olinda Olegaacuterio (79) Jovelina (74) e Joatildeo

Loriano (71) Os quatro irmatildeos que moram no municiacutepio paulista satildeo nascidos em

Minas Gerais Santo Antocircnio do Itambeacute antes de seu pai decidir sair de sua terra natal

e iniciar uma trajetoacuteria de deslocamentos

Para aleacutem do trabalho de campo em Guaiacutera o processo de mapeamento

desta rede de parentesco realizado por meio de duas viagens a Minas Gerais foi fruto

da minha parceria de pesquisa com Cassius Cruz Ele doutorando em ciecircncias sociais

na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ndash aleacutem de ter participado da

produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico publicado em 2012 ndash neste momento

pesquisa em sua tese o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco

quilombola Com a confluecircncia dos temas de pesquisa e o seu compromisso pessoal

de se aprofundar no estudo por ele realizado anteriormente em Minas Gerais sobre a

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Cassius se interessou em somar

esforccedilos para viabilizar que os proacuteprios quilombolas pudessem ir em busca de seus

parentes e assim realizar o objetivo do grupo de compreender melhor a trajetoacuteria de

seus antepassados

O fato no entanto das viagens para Minas Gerais soacute terem se concretizado

em marccedilo e junho de 2015 apoacutes a minha banca de qualificaccedilatildeo fez com que natildeo

fosse possiacutevel o aprofundamento necessaacuterio diante da riqueza do material de

pesquisa coletado e da intensidade das experiecircncias que este trabalho de campo me

proporcionou o que tambeacutem demanda uma maturaccedilatildeo para a posterior reflexatildeo

atraveacutes da escrita Assim de um uacuteltimo capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo acredito que este

material possa vir a se transformar no iniacutecio de uma nova pesquisa que poderaacute ser

desdobrada posteriormente e que me permitiraacute a atenccedilatildeo e o cuidado que esta

experiecircncia de trabalho de campo merece

Enfim a escrita desta dissertaccedilatildeo colocou-me diante do desafio de lidar com

o intervalo entre a pesquisa etnograacutefica e o texto antropoloacutegico o que confirma a

dimensatildeo parcial da anaacutelise e o caraacuteter inesgotaacutevel da experiecircncia Importante

ressaltar neste sentido a desconstruccedilatildeo de um lugar de objetividade na teoria

antropoloacutegica para reconhecer o texto como uma anaacutelise perspectiva relacional e

contextual17 A partir da experiecircncia deste grupo quilombola busco analisar nas

17 A criacutetica de Geertz por exemplo direciona-se a certas estrateacutegias de escrita em que o antropoacutelogo

natildeo se coloca no texto ndash ao construiacute-lo como se sua experiecircncia pudesse ser transposta em uma ldquojanela de cristalrdquo revelando supostamente o mundo laacute fora como ele ldquorealmente eacuterdquo Tal estrateacutegia buscaria

30

paacuteginas que seguem como a construccedilatildeo de um ldquonoacutes quilombolasrdquo neste caso

especiacutefico aponta para dinacircmicas de movimento que natildeo dissolvem mas ao

contraacuterio sustentam o pertencimento coletivo

credibilidade em relaccedilatildeo a questionamentos fundados em paracircmetros objetivistas pautados em criteacuterios das ciecircncias exatas mas para Geertz a antropologia estaria muito mais proacutexima dos ldquodiscursos literaacuteriosrdquo do que dos ldquocientiacuteficosrdquo (GEERTZ 2009)

31

1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO

11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacute E GUAIacuteRA DOIS PONTOS DE UMA LINHA

O percurso de deslocamento das famiacutelias negras em questatildeo pode ser

pensado como uma linha que conecta Santo Antocircnio do ItambeacuteMG agrave GuaiacuteraPR

distantes aproximadamente mil e seiscentos quilocircmetros O conceito de ldquolinhardquo aqui

trazido tem inspiraccedilatildeo nas contribuiccedilotildees do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold como

seraacute melhor abordado no item 12 O que eacute importante retermos por enquanto eacute que

a ideia de linha aqui natildeo remete a uma reta mas a uma trajetoacuteria de movimento que

tem uma dinacircmica e um traccedilado especiacuteficos

Em seu livro Lines a brief history o autor se propotildee a realizar uma

ldquoantropologia comparativa da linhardquo e delinear um campo de reflexatildeo que aglutina

aspectos das atividades humanas cotidianas como falar gesticular e caminhar ndash

subsumidos pela caracteriacutestica comum de geraccedilatildeo de linhas (INGOLD 2007) A partir

do caminhar o deslocamento constitui uma linha que pode ser tanto aquela que

descobre o seu percurso enquanto o caminho eacute percorrido ndash ou seja uma jornada que

natildeo tem um comeccedilo ou um fim oacutebvios ndash em contraste com um outro tipo de linha a

linha reta ndash que faz a conexatildeo entre pontos e que estaacute fragmentada em destinaccedilotildees

sucessivas preacute-determinadas como uma sequecircncia de compromissos

assemelhando-se a um mapa de rota onde se vecirc tudo de uma vez (2007 p 72-103)

No caso do grupo em questatildeo a trajetoacuteria de deslocamento estaacute muito mais proacutexima

da primeira caracterizaccedilatildeo de linha como jornada na qual o movimento se desenvolve

como processo de descoberta e de interaccedilatildeo como no caminho de Minas Gerais ateacute

o Paranaacute passando antes pelo estado de Satildeo Paulo

Eacute em GuaiacuteraPR que parte de um grupo maior de parentes ndash composto por

unidades familiares que estatildeo espalhadas por todo canto ndash passou a se reconhecer

como quilombola e a refletir sobre sua proacutepria trajetoacuteria histoacuterica Alguns dados

estatiacutesticos nos ajudam a compreender o perfil atual de GuaiacuteraPR e a histoacuteria da

inserccedilatildeo do grupo quilombola neste municiacutepio De acordo com o uacuteltimo censo de 2010

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Guaiacutera tem uma populaccedilatildeo

32

de 30704 pessoas18 Do total 28206 habitantes estatildeo na aacuterea urbana ou seja 92

da populaccedilatildeo e apenas 2498 8 na aacuterea rural (IPARDES 2013 p10) Em termos

raciais19 apenas 269 (828 pessoas) da populaccedilatildeo se declarou como ldquopretardquo

3658 (11233 pessoas) como ldquopardardquo 166 (512 pessoas) como ldquoindiacutegenardquo e

217 (669 pessoas) como ldquoamarelardquo A predominacircncia da populaccedilatildeo que se declarou

ldquobrancardquo que representa quase 57 do total (17462 pessoas) aponta para a poliacutetica

de colonizaccedilatildeo e povoamento ocorrido no iniacutecio do seacuteculo XX marcado pelo estiacutemulo

agrave vinda de colonos da regiatildeo sul principalmente descendentes de italianos e alematildees

FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o Mato Grosso do Sul FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 718 [p 25]

A expansatildeo dos colonos e das colonizadoras gauacutechas em direccedilatildeo agrave Guaiacutera

ocorreu a partir da deacutecada de 1930 ndash viabilizada como poliacutetica de Estado ndash sob o

slogan de ldquoMarcha para o Oesterdquo Este estiacutemulo estatal veio com o entatildeo Presidente

da Repuacuteblica Getuacutelio Vargas que tomou como base a ideia de ldquovazio demograacuteficordquo e

a referecircncia ao ldquoespiacuterito do bandeiranterdquo Tal poliacutetica tinha como um de seus objetivos

a nacionalizaccedilatildeo da chamada ldquofronteira guaranirdquo (regiatildeo fronteiriccedila entre Brasil

Paraguai e Argentina) que estava ainda dominada pelos interesses estrangeiros por

18 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 140115 19 Dados sobre Populaccedilatildeo Censitaacuteria - Cor Raccedila disponiacuteveis em httpwwwipardesprgovbrimpindexphp Acesso em 140115 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=410880ampidtema=91ampsearch=parana|guaira|censo-demografico-2010-resultados-da-amostra-religiao- Acesso em 20022015

33

meio do sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate desenvolvido na regiatildeo entre o final do

seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX20

Esta poliacutetica de colonizaccedilatildeo significou o avanccedilo sobre o territoacuterio da

populaccedilatildeo nativa da etnia Guarani que jaacute tinha sido submetida desde o seacuteculo XVI

agraves reduccedilotildees jesuiacuteticas21 ao processo de miscigenaccedilatildeo e ao trabalho escravo nas

obrages O povoamento da regiatildeo no seacuteculo XX reforccedilou assim o processo de

desterritorializaccedilatildeo desta populaccedilatildeo cujos desdobramentos se refletem nos conflitos

entre os proprietaacuterios do municiacutepio e o povo indiacutegena autodenominado ldquoAvaacute-guaranirdquo22

que vieram agrave tona no iniacutecio do seacuteculo XXI Nos uacuteltimos anos houve um processo de

forte mobilizaccedilatildeo e retorno desta populaccedilatildeo agrave Guaiacutera e ao municiacutepio vizinho Terra

Roxa com o objetivo de reivindicar a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio guarani na regiatildeo

Como eacute possiacutevel observar no censo de 2010 ao qual fizemos referecircncia

acima 166 da populaccedilatildeo guairense (512 pessoas) se declarou ldquoindiacutegenardquo o que

aponta para este processo de reorganizaccedilatildeo das famiacutelias ldquoavaacute-guaranirdquo Desde o final

dos anos 1980 tais famiacutelias passam a ldquose reagrupar e organizar novamente em

aldeamentos os tekoha em busca de reconstituir o espaccedilo onde eacute possiacutevel viver

segundo o modo de ser guaranirdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)23

20 As obrages foram um sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate e madeira tiacutepico da regiatildeo entatildeo

dominada por interesses hispano-platinos que utilizou o trabalho escravo da populaccedilatildeo nativa guarani Tais empreendimentos se beneficiavam do isolamento estrateacutegico da regiatildeo o que evitava a possibilidade de questionamento da violecircncia na qual se dava o modo de exploraccedilatildeo do trabalho Neste contexto a Companhia Mate Laranjeira exercia importante papel econocircmico e eacute considerada como a fundadora do distrito de Guaiacutera em 1902 que se torna sua sede Neste distrito a empresa construiu um porto por meio do qual escoava os sacos de erva-mate e as toras de madeira extraiacutedas (WACHOWICZ 1987 p 52 141) 21 O histoacuterico de colonizaccedilatildeo do municiacutepio de Guaiacutera remonta ao seacuteculo XVI quando a regiatildeo do antigo

ldquoGuairaacuterdquo jaacute era alvo do interesse dos colonizadores Entre 1608 e 1767 foram fundadas na regiatildeo mais de uma dezena de reduccedilotildees jesuiacuteticas sendo uma das mais importantes a ldquoCiudad Real del Guayraacuterdquo criada em 1554 Em 1600 ldquoas autoridades administrativas espanholas sediadas em Assunccedilatildeo acham por bem transformar a Ciudad Real em sede da Proviacutencia de Guairaacute () Eacute atraveacutes da Proviacutencia del Guairaacute e pela atividade missioneira dos jesuiacutetas que a Coroa espanhola amplia a sua presenccedila e o seu campo de atuaccedilatildeo no atual Oeste paranaenserdquo (COLODEL 2008 p 38) Nesta localidade atualmente estaacute localizado o municiacutepio de Terra Roxa vizinho ao municiacutepio de Guaiacutera 22 A estimativa atual da lideranccedila Guarani cacique Ilson Soares conforme me relatou eacute que em torno

de mil guaranis residem na regiatildeo de Guaiacutera e Terra Roxa 23 ldquoDesta forma no final dos anos 1990 intensifica-se o processo de judicializaccedilatildeo das ocupaccedilotildees

indiacutegenas inicialmente com accedilotildees movidas pela Itaipu seguida de inuacutemeros pleitos movidos por particulares que passam a reivindicar a posse das aacutereas indiacutegenas as quais possuem tiacutetulos registrados nos cartoacuterios municipais A intervenccedilatildeo intensa do Ministeacuterio Puacuteblico Federal para a promoccedilatildeo dos direitos coletivos dos iacutendios acaba por repercutir em decisotildees judiciais favoraacuteveis agrave permanecircncia dos aldeamentos indiacutegenas em algumas aacutereas Aleacutem disso as sentenccedilas determinaram agrave Uniatildeo e agrave FUNAI que promovessem os estudos necessaacuterios para identificaccedilatildeo e delimitaccedilatildeo das terras de ocupaccedilatildeo tradicional Avaacute-Guarani na regiatildeo deflagrando processos que ainda se encontram em tracircmite no acircmbito da Fundaccedilatildeordquo rdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)

34

FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa FONTE Projeto de pesquisa ldquoA questatildeo indiacutegena no oeste do Paranaacute e a reconstruccedilatildeo do territoacuterio Avaacute-Guaranirdquo24 (2014) (Grifos meus)

24 O Projeto eacute apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPQ) e desenvolvido no curso de Direito da PUC-PR O mapa foi elaborado com base nos dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Violaccedilotildees dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paranaacute (1946-1988) Subsiacutedios para a Comissatildeo Nacional da Verdade Ver httpbdtrabalhoindigenistaorgbrdocumentoviolaC3A7C3B5es-dos-direitos-humanos-e-territoriais-dos-guarani-no-oeste-do-paranC3A1-1946-1988-sub Acesso em 07 de janeiro de 2015

35

No mapa apresentado estatildeo identificadas as localizaccedilotildees das tekoha

existentes nos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa bem como a presenccedila da

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos destacada no canto esquerdo

inferior do mapa No atual contexto de reivindicaccedilatildeo territorial tanto por indiacutegenas

como por quilombolas em Guaiacutera os proprietaacuterios rurais da regiatildeo tecircm se articulado

e promovido fortes reaccedilotildees em forma de protestos e de articulaccedilotildees poliacuteticas para se

oporem a essas reivindicaccedilotildees Deve-se ter em conta para compreender esta

mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais25 que ldquoa demarcaccedilatildeo de territoacuterios e o

reconhecimento de identidades tradicionais satildeo uma forma de resistecircncia mais eficaz

e imediata agraves lsquoagroestrateacutegiasrsquo do que outras modalidades de luta e reivindicaccedilatildeo

fundiaacuteriasrdquo (GUEDES 2013b p 43)

A forccedila destes atores organizados localmente tambeacutem por meio do Sindicato

Rural patronal deve-se ao perfil econocircmico do municiacutepio estruturado na produccedilatildeo de

ldquocommoditiesrdquo para exportaccedilatildeo A topografia plana e a boas condiccedilotildees de fertilidade

do solo possibilitaram o forte desenvolvimento do agronegoacutecio na regiatildeo com o

processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura26 Deste modo a regiatildeo oeste do Paranaacute

apresenta atualmente intensa atividade do agronegoacutecio o que fez com que o preccedilo

da terra aumentasse muito nos uacuteltimos anos um alqueire na regiatildeo jaacute estaacute valendo

em meacutedia cem mil reais Esta valorizaccedilatildeo do preccedilo da terra eacute percebida de forma

expressiva pelos membros da comunidade quilombola Em 2003 depois de dez anos

que os trecircs irmatildeos mais velhos Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano saiacuteram da

comunidade para morar em Presidente PrudenteSP quando resolveram vender 15

alqueires da aacuterea adquirida por seu pai conseguiram o valor equivalente a dezoito mil

reais por alqueire Conforme relato do filho caccedilula do segundo casamento de Manoel

Joatildeo Aparecido em seis meses o preccedilo do alqueire jaacute tinha subido para o equivalente

a cinquenta mil reais de modo que seus irmatildeos demonstram arrependimento por

terem vendido a aacuterea que lhes cabia da heranccedila por um valor tatildeo baixo

Segundo dados do IBGE referentes agrave produccedilatildeo agriacutecola municipal de Guaiacutera

em 2013 as trecircs principais culturas foram o milho (182470 toneladas) depois a soja

25 Esta articulaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais tem ocorrido em Guaiacutera e no estado do Mato Grosso do

Sul por exemplo por meio da ldquoOrganizaccedilatildeo Nacional de Garantia do Direito de Propriedaderdquo 26 Conforme informaccedilotildees trazidas pelo antropoacutelogo da FUNAI Diogo Oliveira no I Congresso ldquoA questatildeo indiacutegena no Oeste do Paranaacute e a Reconstruccedilatildeo do Territoacuterio Guaranirdquo realizado em novembro de 2014 em Foz do Iguaccedilu 80 das terras de Guaiacutera em extensatildeo (natildeo em nuacutemero) pertencem a grandes proprietaacuterios rurais e em 90 das terras agricultaacuteveis planta-se milho e soja

36

(110425 toneladas) e por uacuteltimo o trigo (990 toneladas)27 Por outro lado diante deste

cenaacuterio adverso agrave efetivaccedilatildeo de direitos territoriais Avaacutes-Guarani e quilombolas tecircm

se fortalecido de modo articulado por meio do contato gerado entre as lideranccedilas no

acircmbito do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA) 28 com visitas frequentes dos

quilombolas nas aldeias indiacutegenas para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos Neste

cenaacuterio tais grupos sociais tentam colocar na agenda puacuteblica dominada pelos

interesses hegemocircnicos do agronegoacutecio importantes debates e disputas a partir de

outras loacutegicas de uso e de relaccedilatildeo com a terra29

O contexto de Guaiacutera eacute visto como adverso pelos quilombolas ao reforccedilar um

discurso regional predominante que vecirc o agronegoacutecio como expressatildeo do

desenvolvimentordquo e da ldquoevoluccedilatildeordquo e que desloca por conseguinte indiacutegenas e

quilombolas para o passado por meio do que pode ser qualificado como um

ldquorebaixamento diacrocircnico do outrordquo estabelecendo uma sinoniacutemia entre diferenccedila e

distacircncia temporal (FABIAN 2013) Vaacuterias vezes comentaram que na regiatildeo Sul do

Brasil existe muito mais discriminaccedilatildeo contra negros do que na regiatildeo de onde satildeo

provenientes jaacute que laacute a expressividade da populaccedilatildeo negra eacute muito maior Esta

perspectiva por eles articulada pode ser entendida em relaccedilatildeo ao processo de

consolidaccedilatildeo da imagem de um Paranaacute eminentemente europeu pelas diversas

esferas do poder e da sociedade paranaense que tende a negar o reconhecimento

27 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 20022015 Outra comunidade quilombola que enfrenta um contexto de grande impacto do agronegoacutecio no Paranaacute (centro-sul) eacute a Comunidade Paiol de Telha (HARTUNG 2004) 28 O PAA consiste em um programa do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social (MDS) criado em 2003 a partir do Programa Fome Zero Por meio desta poliacutetica puacuteblica oacutergatildeos estatais puderam adquirir com dispensa de licitaccedilatildeo produtos da agricultura familiar e doaacute-los para grupos em situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar No caso de Guaiacutera os quilombolas por meio de contrato com a Secretaria de Trabalho e Economia Solidaacuteria (SETS) atuam como produtores dos alimentos e entregam essas doaccedilotildees diretamente agraves aldeias indiacutegenas de Guaiacutera e Terra Roxa 29 Este estreito contato parece ser decorrente do ldquoefeito provaacutevel de certos mecanismos histoacutericos

comuns de repressatildeo controle e territorializaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 32) Ademais tanto no caso dos indiacutegenas da etnia Guarani como no caso dos quilombolas de Guaiacutera a presenccedila do histoacuterico de deslocamentos na trajetoacuteria destes grupos aparece como argumento mobilizado pelos articuladores do movimento contraacuterio agrave demarcaccedilatildeo territorial enquanto elemento deslegitimador das reivindicaccedilotildees destas comunidades No caso dos Guaranis a partir da deacutecada de 70 com a mecanizaccedilatildeo da agricultura sua matildeo-de-obra passou a ser desprezada e aquelas famiacutelias que resistiram ao processo de colonizaccedilatildeo foram se estabelecendo apenas nas margens do Rio Paranaacute pela pressatildeo e esbulho territorial que sofreram A maior parte foram afugentadas para o leste paraguaio sob grande violecircncia dos oacutergatildeos do Estado processo no qual o Estado ditatorial brasileiro participou ativamente Trata-se portanto de um processo de migraccedilatildeo forccedilada que ocorreu nas uacuteltimas deacutecadas e que contrasta com a dinacircmica de deslocamentos proacuteprios da etnia ligados a perspectivas e significados cosmoloacutegicos (CARVALHO 2013)

37

agraves demais alteridades e grupos eacutetnicos no estado Neste sentido afirma a antropoacuteloga

Mirian Hartung

A invisibilidade tornou-se um dos aspectos mais relevantes da identidade social dos afrodescendentes no sul do Brasil O projeto de colonizaccedilatildeo com europeus implantado entre meados do seacuteculo XIX e o XX foi a sua contraface Em um seacuteculo foram concedidos aos colonos europeus todas as primazias sobre as terras os capitais as oportunidades de trabalho e o crescimento econocircmico Este modelo seletivo e excludente orientou as poliacuteticas puacuteblicas as accedilotildees particulares e a voz dos cientistas (2004 p 7)

Em relaccedilatildeo aos desdobramentos deste modelo de colonizaccedilatildeo regional por

descentes de europeus implantado em Guaiacutera a partir da deacutecada de 1930 Joaquim

(55 anos) tambeacutem filho de Manoel Ciriaco do segundo casamento eacute pessimista no

tocante agraves mudanccedilas em curso no mundo rural O que seus vizinhos enxergam como

progresso segundo ele me relatou eacute a produccedilatildeo de transgecircnicos na base de

veneno30 o uso de sementes esteacutereis fabricadas em laboratoacuterio que implicam no

pagamento de lsquordquoroyaltiesrdquo para as empresas multinacionais Muitas plantas agriacutecolas

satildeo resistentes ao veneno que acaba por sua vez com o mato natildeo havendo

necessidade capinar Assim natildeo tem mais emprego nas plantaccedilotildees Eacute a maacutequina que

planta a semente uma por uma Denunciou entatildeo o fato de que quando os vizinhos

passam o veneno (e eles acompanham estes ciclos praticamente todos juntos) soacute

com o cheiro do veneno as folhas das plantas que estatildeo na aacuterea do grupo quilombola

tambeacutem se enrolam em consequecircncia

Estes satildeo exemplos entre outros que Joaquim citou como modificaccedilotildees

alarmantes de modo que os mais jovens ressente-se natildeo chegam sequer a

conhecer como era antes quando a regiatildeo de Guaiacutera era tomada pela mata fechada

e a produccedilatildeo era manual familiar pautada em uma loacutegica de valorizaccedilatildeo do trabalho

na terra do alimento da solidariedade Ao olhar para o passado Joaquim apontou

que na eacutepoca que Seu Manoel comprou aquela terra no iniacutecio da deacutecada de 1960 o

preccedilo era muito barato e aleacutem disso pagava-se como podia ao longo dos anos Na

eacutepoca Manoel natildeo teria comprado uma aacuterea maior porque natildeo teriam como tocar

aquele tanto de terra o que indica que a loacutegica do grupo era de ocupaccedilatildeo efetiva da

30 A imagem de Guaiacutera estaacute muito associada ao contrabando de produtos do Paraguai Um dos

produtos que satildeo contrabandeados e afetam diretamente a comunidade quilombola satildeo os defensivos agriacutecolas comercializados no Paraguai e proibidos no Brasil para uso em plantaccedilotildees como no caso do MPK 40 que foi a mim denunciado pelos quilombolas e por mais dois servidores puacuteblicos que trabalham no municiacutepio

38

aacuterea para produccedilatildeo familiar Em relaccedilatildeo ao futuro Joaquim afirmou que soacute Deus para

colocar um limite nesta ambiccedilatildeo nas alteraccedilotildees feitas na Sua criaccedilatildeo

No contexto das dificuldades que enfrentam no municiacutepio ainda mais

significativa eacute a relevacircncia atribuiacuteda pelos quilombolas agrave memoacuteria coletiva e aos laccedilos

sociais e histoacutericos principalmente no que se refere aos mais velhos que tentam

direcionar os mais novos neste mesmo sentido Este sentimento de um pertencimento

comum embasa a autoidentificaccedilatildeo e a mobilizaccedilatildeo do grupo pelo reconhecimento

como quilombolas A emergecircncia desta identidade estaacute inserida em um contexto de

relaccedilotildees de tensatildeo antes velada e que aponta para dinacircmicas de fronteira entre

brancos e negros no bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo onde residem31

A reproduccedilatildeo da coesatildeo do grupo estaacute presente na leitura que fazem dos

processos de deslocamento que natildeo passa pela ideia de ruptura como mencionamos

na introduccedilatildeo Pelo contraacuterio desenha-se a partir da continuidade do movimento

como mecanismo de reproduccedilatildeo do grupo o que reforccedila os viacutenculos com o local de

proveniecircncia (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) A regiatildeo do municiacutepio de Santo Antocircnio

do Itambeacute sobre a qual traremos abaixo uma breve apresentaccedilatildeo eacute o lugar de

sustentaccedilatildeo do ldquomito de origemrdquo do grupo e remonta agrave vivecircncia dos mais velhos que

laacute residiram

Apesar de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG estar abrangido pela divisatildeo

institucional da ldquomesorregiatildeo metropolitana de Belo Horizonterdquo o municiacutepio estaacute muito

mais proacuteximo em termos sociais e culturais da ldquomesorregiatildeo do Vale do

Jequitinhonhardquo situada no nordeste do estado No que tange agraves bacias hidrograacuteficas

o municiacutepio localiza-se entre a bacia do Alto Jequitinhonha e a bacia do Rio Doce e

como sugerem os moradores da regiatildeo ldquoeacute o comeccedilo do Valerdquo

31 Segundo Barth ldquoos elementos da cultura presente em um grupo eacutetnico natildeo surgem por conseguinte

do conjunto particular que constituiu a cultura do grupo em um periacuteodo anterior embora o grupo tenha uma existecircncia organizacional contiacutenua com fronteiras (criteacuterios de pertenccedila) que apesar das modificaccedilotildees nunca deixaram de delimitar uma unidade contiacutenuardquo (BARTH 2011 p 227) Tais reflexotildees deste autor continuam sendo segundo Joseacute Mauriacutecio Arruti ldquoas melhores orientaccedilotildees para a anaacutelise de grupos autodefinidos com base na origem ou em atributos de formaccedilatildeordquo e embasam a noccedilatildeo de etnicidade na reflexatildeo antropoloacutegica contemporacircnea (ARRUTI 2006 p 39)

39

FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute FONTE Autora (2015)

Atualmente o municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG possui 4121

habitantes conforme estimativa do IBGE para 201432 Segundo o Censo de 2010

1230 pessoas moravam na zona urbana o equivalente a 2984 e mais de 70 da

populaccedilatildeo continua habitando a zona rural um total de 2905 pessoas Em termos

raciais em Santo Antocircnio do Itambeacute apenas 863 da populaccedilatildeo (357 pessoas) se

declarou como ldquobrancardquo Jaacute a autoidentificaccedilatildeo como sendo da cor ldquopretardquo somou

1947 (805 pessoas) e ldquopardardquo 6972 (2883 pessoas) A diferenccedila no que tange

ao percentual de brancos e negros com relaccedilatildeo agrave GuaiacuteraPR33 eacute significativa jaacute que laacute

a populaccedilatildeo que se declarou branca eacute a maioria 57 em contraste com os apenas

863 de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Dito isto voltemos agraves narrativas quilombolas que destacam principalmente a

capacidade de resistecircncia dos antepassados em condiccedilotildees adversas de muito

sofrimento vivenciadas na regiatildeo mineira Em Guaiacutera me contaram sobre os relatos

32 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316020 Acesso em 22062015 33 Praticamente todos os dados que seratildeo apresentados para a comparaccedilatildeo entre as duas regiotildees satildeo

fortemente contrastantes

40

que ouviram dos pais avoacutes tios irmatildeos mais velhos sobre experiecircncias de fome

trabalho aacuterduo e precariedade das moradias que tinham que ser feitas dentro de lapas

ou locas de pedra (cavernas) Por outro lado Minas eacute valorizada por sua cultura local

narrada pelas histoacuterias sobre os antepassados

Importante levar em conta que na narrativa sobre o passado certos traccedilos se

esvanecem e outros satildeo reforccedilados conforme o momento presente daqueles que

compotildeem uma mesma ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo (HALBWACHS 2003 p 94) O

relato de Jovelina filha mulher mais velha de Manoel Ciriaco atualmente com 73

anos que morou em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ateacute seus quinze anos e atualmente

reside em Presidente PrudenteSP34 destaca a fome como uma memoacuteria central nos

tempos de sua infacircncia

Dandara Dona Jo a senhora repete entatildeo pra gente o que comentou laacute das memoacuterias do pessoal mais antigo de Minas

D Jovelina Laacute no siacutetio do meu pai tinha tinha natildeo que deve ter ateacute hoje que aquilo ali natildeo foi tampado aquele valo Aliacute era cerca pros bois natildeo passar pra roccedila pra comer a roccedila Ali tinha aqueles buracatildeo os boi chegava laacute e olhava assim via aquele buraco laacute e saiacutea E se ele quebrasse a perna ali dentro aiacute entatildeo o dono dele dava pra aquelas pessoas repartir Aiacute a gente pegava e ia laacute buscar e eles repartiam tudo pra aquelas pessoas e a nossa turma ia alegre pra casa porque tava tudo morrendo de fome Ai entatildeo ia naquele lugar onde aquele boi tentou cair ali aiacute escavava mais pra baixo ainda E tinha uns ainda que tinham minha voacute sempre falava que tinha ateacute corrente no peacute que aquele ali que natildeo trabalhasse era preguiccediloso ia ser amarrado laacute no tronco da aacutervore laacute E laacute ficava

Eacute possiacutevel observar que quando Dona Jovelina fala de sua infacircncia relembra

as histoacuterias contadas pela avoacute Izidora sobre o tempo da escravidatildeo35 Interessante

refletir que na forma como a narradora conta esta lembranccedila natildeo aparece um corte

temporal entre o periacuteodo em que a famiacutelia se alimentava da carne do boi que caiacutea no

valo utilizado como cerca entre as propriedades e a eacutepoca em que as pessoas

trabalhavam acorrentadas e eram castigadas no tronco da aacutervore como a avoacute sempre

falava Haacute deste modo uma continuidade sugestiva na narrativa que faz um

34 Esta entrevista ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de 2015

quando passamos por Presidente PrudenteSP justamente para conversar com os irmatildeos mais velhos Jovelina Olegaacuterio e Joatildeo Loriano sobre suas lembranccedilas da vida em Santo Antocircnio do Itambeacute 35 Com os pais provavelmente ocupados em atividades laborais os avoacutes conforme problematizado por

Connerton ocupam uma posiccedilatildeo central no processo de transmissatildeo de conhecimentos sobre o passado diretamente agrave geraccedilatildeo mais nova (CONNERTON 1999 p 43-44) No caso de Jovelina ela ficou sem a matildee que faleceu quando ela tinha dois anos de idade tendo sido cuidada por sua avoacute Izidora e sua tia Ana Raimunda junto com seu pai Manoel Ciriaco

41

entrecruzamento de temporalidades em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da escravidatildeo

apontando para uma forte conexatildeo entre periacuteodos cronoloacutegicos experiecircncias e

vivecircncias ateacute o momento de sua infacircncia na deacutecada de 1940 (MELLO 2012 p 170)

D Jovelina lembrou-se tambeacutem de que quando crianccedila ela e seu irmatildeo Joatildeo ainda

muito pequenos recorriam agrave alternativa de encontrar no rio utilizando uma bateia

algum ouro que entregavam para a tia Ana Raimunda para fazer um pouco de dinheiro

e comprar algo para a famiacutelia36

D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo (filho de Manoel Ciriaco do primeiro

casamento) que atualmente tambeacutem mora em Presidente PrudenteSP37 comentou

sobre seu sofrimento em Minas Gerais38

Cassius A sra falou que comeccedilou a trabalhar desde pequena laacute em Santo Antocircnio

D Maria Desde pequenininha lavando mandioca no rio de manhatilde cedo com frio eacute eu sofri muito Depois cresci trabalhando pras casas dos outros Eu nunca tive vida forgada Eu criei meus filhos tudo sofrendo O menino que natildeo foi sofrido foi esse aiacute que nasceu no Paranaacute mas os outros laacute de Minas tudo () Nem roupa pra vestir a gente natildeo tinha chinelo pra pocircr no peacute era uma vida cruel A gente natildeo comia nem um arroz nem nada Nem oacuteleo pra pocircr na comida natildeo tinha

Dandara A terra era fraca neacute

D Maria Terra natildeo ia nada soacute o que eu plantava laacute era soacute cafeacute cana e mandioca soacute a fartura que vocecirc via laacute era isso eacute natildeo tinha nada natildeo

A baixa qualidade da terra e a escassez de aacutereas para plantio podem ter

impulsionado a estrateacutegia de Manoel Ciriaco de sair rumo a regiatildeo de Satildeo Paulo e

depois norte do Paranaacute acompanhado de demais parentes o que era uma praacutetica

recorrente nesta regiatildeo mineira De acordo com Flaacutevia Galizoni a regiatildeo nordeste de

Minas Gerais tem uma caracteriacutestica proacutepria em relaccedilatildeo ao modo de aquisiccedilatildeo do

direito agrave terra que se daacute principalmente por heranccedila Este eacute o caso da famiacutelia de

36 Esta forma de garimpo eacute muito comum entre mulheres e crianccedilas (GUEDES 2013a p 126) Em sua

etnografia no norte de Goiaacutes Guedes destaca como o garimpo eacute visto como uma alternativa precisamente a situaccedilotildees entendidas como cativeiro eou escravidatildeo Segundo o autor ldquotratamos aqui da continuidade ndash ou para ser mais preciso da eterna expectativa pelo retorno ou volta ndash de uma escravidatildeo cuja aboliccedilatildeo lsquoformalrsquo por vezes eacute tratada como objeto de escaacuternio natildeo passando de uma iniciativa hipoacutecrita dos ricosrdquo Garimpeiros e quilombolas ldquocompartilham assim interstiacutecios e margens e sempre estiveram a se fundir e confundir uns com os outrosrdquo (GUEDES 2013a p 118-119) 37 Esta entrevista tambeacutem realizada durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo

de 2015 38 Esta entrevista tambeacutem ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de

2015

42

Manoel cuja herdeira era sua matildee Izidora pois o siacutetio havia sido comprado pelo pai

dela como me relata Jovelina

As pessoas foram morrendo e deixando pros filhos agora aqueles filhos que morriam ficava pros outros netos deles e era assim ia ficando () Era tudo negro que tinha por aiacute Quando um tava meio apurado de serviccedilo ia laacute ah fulano vocecirc vai trabalhar pra mim que eu te pagordquo () Entatildeo chamava ia aquela turma de gente ali ajudava quando era o outro dia ia laacute na casa do outro trabalhar pro outro pagar aquele dia Que eles trabalhavam natildeo era pra receber dinheiro porque natildeo tinha Entatildeo trabalhava o dia trocado Hoje vocecirc vinha aqui e ajudava eu a fazer aquele serviccedilo aiacute amanhatilde eu ia e te ajudava tambeacutem era trocado

A terra eacute um patrimocircnio familiar transmitida pela heranccedila no acircmbito de uma

ordem moral camponesa que natildeo a restringe ao valor de mercadoria mas que a

concebe a partir de valoraccedilotildees eacuteticas Aquele que se torna dono o faz mediante o

trabalho que eacute ademais um trabalho familiar no qual as relaccedilotildees de reciprocidade

satildeo centrais (WOORTMANN 1990) em um modelo relacional que fica niacutetido na fala

de Dona Jovelina Nesta dinacircmica a migraccedilatildeo39 eacute um dos elementos importantes para

manter a terra em um tamanho necessaacuterio para as futuras geraccedilotildees jaacute que seu

fracionamento extremo pode ldquoinviabilizar a continuidade da famiacutelia como grupo de

agricultores independentesrdquo

A terra eacute o principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos agricultores mas em decorrecircncia da pressatildeo demograacutefica e da exaustatildeo do ambiente torna-se ao longo do tempo um limite para a sua reproduccedilatildeo social Quando o nuacutemero de membros excede a capacidade de suporte da terra surge o imperativo de se decidir no interior da famiacutelia como seraacute resolvida essa questatildeo e nesse contexto a heranccedila constitui um ponto nodal para compreender as estrateacutegias de permanecircncia dos agricultores familiares na terra (GALIZONI2007 p 564)

Para que parte da famiacutelia fique na terra como herdeiros torna-se imperativo

que outra saia enquanto excedente familiar no que tange o uso da terra A migraccedilatildeo

ocorre como processo familiar pois acontece em grupo a partir de estrateacutegias de

contatos nos locais de destino com o objetivo de reconstruir as unidades familiares

No caso em questatildeo Manoel antes de sair definitivamente praticava a migraccedilatildeo

39 Importante ressaltar a criacutetica ao conceito de migraccedilatildeo jaacute que esta concepccedilatildeo esta permeada

frequentemente por uma visatildeo de que o ldquomovimento natildeo teria um valor em si mesmo constituindo-se basicamente como a passagem entre dois pontosrdquo Assim o deslocamento eacute visto como acontecimento excepcional e a sedentariedade como regra Deste modo o movimento e natildeo a permanecircncia eacute o que tem que ser explicado (GUEDES 2013a p 31-36)

43

sazonal movimento recorrente nesta regiatildeo no periacuteodo da seca quando saiacutea para

trabalhar como peatildeo mundo afora Um dos seus destinos de trabalho era a regiatildeo de

Londrina norte do Paranaacute para onde se deslocava de trem Foi atraveacutes desta

experiecircncia preacutevia que traccedilou a estrateacutegia de saiacuteda definitiva com demais parentes

para a regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde morou no municiacutepio de CaiabuSP Eacute

importante salientar que nesta regiatildeo paulista Manoel Ciriaco e demais parentes

puderam contar com o suporte da famiacutelia de seu primo de primeiro grau Raimundo

Constantino ndash filho de sua tia materna Joana ndash que laacute jaacute se encontrava Raimundo

que havia saiacutedo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG com esposa e filhos em 1949 jaacute

havia falecido quando Manoel chegou em CaiabuSP

Na eacutepoca em que Manoel deixou sua regiatildeo de origem ele jaacute havia ficado

viuacutevo de Maria Olinda sua primeira esposa com quem teve quatro filhos Luiza ndash que

faleceu aos 8 anos de idade ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano

FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 1

Como afirmei anteriormente quando Maria Olinda faleceu Joatildeo Loriano tinha

apenas um mecircs de vida tendo sido criado pela avoacute Izidora e pela irmatilde de seu pai

Ana Raimunda Depois Manoel casou-se com Ana Rodrigues com quem teve mais

quatro filhos ainda em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Eurides Sebastiana (falecida)

Antocircnio (falecido) e Joseacute Maria (falecido) Os outros filhos deste casal jaacute nasceram

no processo de deslocamentos da famiacutelia ndash dos quais apenas Paulo faleceu quando

tinha 15 anos ndash e os quatro irmatildeos mais novos satildeo os que atualmente continuam

morando em GuaiacuteraPR e atuam de forma direta no projeto de estruturaccedilatildeo da

comunidade quilombola Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido

44

FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2

45

Para compreender o contexto da saiacuteda dessas famiacutelias em 1956 deve-se ter

em conta que a deacutecada de 1950 eacute o periacuteodo de decliacutenio da produccedilatildeo camponesa na

regiatildeo mineira em decorrecircncia da abertura de estradas bem como do

desenvolvimento e da urbanizaccedilatildeo do entorno De 1950 a 1970 a regiatildeo do ldquoVale do

Jequitinhonhardquo40 vivenciou um importante marco histoacuterico de integraccedilatildeo na economia

nacional por meio da possibilidade de acesso a produtos industrializados o que como

consequecircncia provocou a desvalorizaccedilatildeo dos produtos regionais Este periacuteodo eacute

marcado pela expansatildeo do capitalismo e pela expropriaccedilatildeo do campesinato com o

aumento significativo do deslocamento da populaccedilatildeo local (PORTO 2007 p 79)

A produccedilatildeo e o comeacutercio de alimentos e artigos artesanais eram justamente

o trabalho realizado pelas famiacutelias negras em questatildeo principalmente na lavoura de

cana-de-accediluacutecar com a qual se fazia a cachaccedila o melado e a rapadura e no

transporte destes produtos em lombo de burro para sua comercializaccedilatildeo aleacutem da

lavoura de cafeacute do trabalho no garimpo de ouro e da agricultura de subsistecircncia

Deste modo a saiacuteda dos camponeses decorre da pressatildeo das ldquoformas empresariais

e capitalistasrdquo em direccedilatildeo agrave regiatildeo ldquoos primeiros continuamente deslocados pela

marcha dos segundosrdquo (GUEDES 2013b p 53) Dentre tais empreendimentos

destaca-se a produccedilatildeo em moldes capitalistas de eucalipto de gado e de cafeacute Deste

modo eacute possiacutevel perceber como a memoacuteria e a experiecircncia do grupo quilombola vai

tomar como um marco os efeitos do histoacuterico de modernizaccedilatildeo regional e do decliacutenio

da produccedilatildeo camponesa no acircmbito de um processo mais amplo de pressatildeo

migratoacuteria (PORTO 2007 p 60) Olegaacuterio (77 anos) filho de Manoel Ciriaco que saiu

de MG com o pai contou que ele e seus parentes foram de Santo Antocircnio do Itambeacute

ateacute Diamantina no pau de arara caminhatildeo coberto de lona e de Diamantina ao estado

de Satildeo Paulo de ocircnibus

Recuando um pouco mais na histoacuteria no que tange ao comeccedilo do seacuteculo XX

os estudos historiograacuteficos demonstram como a migraccedilatildeo jaacute aparecia como uma

estrateacutegia importante para a populaccedilatildeo negra que vivia em regiotildees de colonizaccedilatildeo

antiga como eacute o caso de Minas Gerais Estes estudos tecircm analisado como os negros

40 Esta divisatildeo regional que a partir da deacutecada de 1960 cria de uma forma unificada o ldquoVale do

Jequitinhonhardquo eacute fruto de uma articulaccedilatildeo da esfera poliacutetica que tomou como criteacuterio a carecircncia e a pobreza enquanto argumentos dos poliacuteticos regionais para acessar recursos para uma aacuterea definida como ldquobolsatildeo da pobrezardquo O ldquoprogressordquo por meio desenvolvimento capitalista seraacute entatildeo apresentado como o caminho de redenccedilatildeo para a populaccedilatildeo localrdquo (PORTO 2007 p 61)

46

libertos e seus descendentes traccedilaram estrateacutegias para buscar caminhos de

autonomia e de subsistecircncia tendo em vista as dinacircmicas de disponibilidade de terra

e trabalho no poacutes-aboliccedilatildeo (1888) Esta populaccedilatildeo tinha que lidar com a permanecircncia

das categorizaccedilotildees sociais como a de ldquoex-senhores libertos e homens nascidos

livresrdquo enquanto uma das principais limitaccedilotildees para sua capacidade de negociaccedilatildeo

nas regiotildees de colonizaccedilatildeo mais antigas (MATTOS RIOS 2004 p 180) Eacute sabido

que o fim do regime escravocrata natildeo concretizou a presunccedilatildeo legal de igualdade e

cidadania para esta populaccedilatildeo que ficou sujeita agrave manutenccedilatildeo das hierarquias locais

jaacute que ser negro ainda era visto em alguma medida como sinoniacutemia de ter sido

escravo Eacute necessaacuterio neste sentido refletir sobre o projeto dos libertos no periacuteodo

do poacutes-aboliccedilatildeo ldquosua lsquovisatildeorsquo do que seria liberdade os significados deste conceito

para a populaccedilatildeo que iria finalmente vivenciaacute-la ()rdquo Uma das expressotildees destes

projetos foi a ldquomobilidade espacialrdquo a partir do direito que passaram a ter sobre os

proacuteprios corpos de ir e vir livremente (MATTOS RIOS 2004 p 171-178)

Muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos negros nas regiotildees onde a

escravidatildeo tinha sido significativa como a localidade de Santo Antocircnio do Itambeacute que

faz parte do ldquoCaminho dos Diamantesrdquo e da ldquoEstrada Realrdquo vinculada agrave colonizaccedilatildeo

mineradora A movimentaccedilatildeo geograacutefica dos ldquonatildeo-brancos livresrdquo para aacutereas de

colonizaccedilatildeo mais recente como eacute o caso de Guaiacutera na regiatildeo noroeste do Paranaacute

onde poderiam se organizar como ldquocampesinato reconstituiacutedordquo foi uma opccedilatildeo muito

utilizada Carlos Lima denominou este processo de ldquopequena diaacutesporardquo apontando

para a ldquoforte tendecircncia emigratoacuteriardquo que partia ldquodas aacutereas centrais onde haviam sido

gerados para localidades onde o acesso agrave terra fosse mais plausiacutevelrdquo (LIMA 2000 p

109)41 Deste modo destaca em suas pesquisas sobre o poacutes-aboliccedilatildeo a inserccedilatildeo de

libertos em processos de povoamento e a tendecircncia ao deslocamento de seus

descendentes de aacutereas de colonizaccedilatildeo antiga para regiotildees mais novas ndash como no

caso em questatildeo da regiatildeo de DiamantinaMG ateacute GuaiacuteraPR O autor observou na

documentaccedilatildeo um alto grau de natildeo brancos livres no estado do Paranaacute no seacuteculo

XIX e em relaccedilatildeo inversa um nuacutemero relativamente baixo de natildeo-brancos livres nas

aacutereas de escravidatildeo mais antiga (LIMA 2000)

41 No entanto nem todos os deslocamentos eram bem-sucedidos e como aponta o estudo das historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Rios tambeacutem implicaram em certos casos em ldquohistoacuterias de privaccedilotildees extremas e desestruturaccedilatildeo da vida familiarrdquo (MATTOS RIOS 2004 p 171)

47

Com esta estrateacutegia de movimento o grupo familiar proveniente de MG

conseguiu adquirir terras em GuaiacuteraPR depois de quase uma deacutecada em que

moraram e trabalharam principalmente na colheita de algodatildeo e de amendoim na

regiatildeo de Presidente PrudenteSP em aacutereas arrendadas no municiacutepio de CaiabuSP

A partir do contato com Seu Olindo que era corretor foram para o Paranaacute porque

tinham interesse de comprar terras principalmente porque lhes falaram que a terra laacute

era muito boa Em Guaiacutera estabeleceram-se no iniacutecio da deacutecada de 1960 e adquiriram

quatro pequenos lotes rurais todos proacuteximos os quais demoraram anos para quitar

atraveacutes de muito trabalho modo de pagamento inaceitaacutevel nos padrotildees atuais Com

o estabelecimento de Manoel e de sua esposa Ana Rodrigues com demais parentes

em Guaiacutera outras famiacutelias tambeacutem foram se deslocando para laacute tanto provenientes

do estado de Satildeo Paulo como da regiatildeo mineira Destacam-se nas narrativas sobre

a chegada em uma aacuterea que estava comeccedilando a ser colonizada as dificuldades que

enfrentaram acampando embaixo de lona no meio do mato de onde passaram a

retirar toda a sua sobrevivecircncia por meio da caccedila e da coleta aleacutem da derrubada da

mata para limpar o terreno e para iniciar o plantio agriacutecola

Os quatro homens chefes de famiacutelia que se tornaram proprietaacuterios no Paranaacute

tinham viacutenculos de parentesco entre si e com o casal ancestral Joseacute e Joana

ascendentes mais antigos sobre o qual o grupo tinha referecircncias (antes da pesquisa

realizada em Minas Gerais) inclusive de terem trabalhado como escravos em Minas

Gerais Assim aleacutem de Manoel Ciriaco e Geraldo Domingos dos Santos os quais

adquiriram respectivamente dez e cinco alqueires contiacuteguos da Sociedade

Agropecuaacuteria Comercial e Industrial Maracaju LTDA (lotes 186 e 186-A 187 e 187-A)

tambeacutem adquiriram lotes o ldquotio Raimundatildeordquo que era tio de Ana Rodrigues e Joatildeo

Ferreira cunhado de Ana Nestes siacutetios moravam mais parentes aleacutem daqueles que

tambeacutem residiam em propriedades da regiatildeo e tocavam arrendado No caso de

Raimundo e Joatildeo Ferreira natildeo tive acesso a informaccedilotildees sobre a histoacuteria de aquisiccedilatildeo

e perda dessas aacutereas Imagino que este silenciamento seja decorrente dos conflitos

territoriais que antecederam esta pesquisa com a grupo conforme abordaremos no

segundo capiacutetulo Apesar disso membros da comunidade comentam saudosos sobre

a relevacircncia da dinacircmica de tracircnsito dos parentes entre estas aacutereas periacuteodo no qual

havia em torno de oitenta pessoas da famiacutelia morando na regiatildeo de Guaiacutera e de Terra

RoxaPR

48

FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 3

49

As aacutereas do ldquotio Raimundatildeordquo e de Joatildeo Ferreira atualmente natildeo constam no

processo de reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio que tramita no INCRA A natildeo

indicaccedilatildeo dessas duas aacutereas parece ter sido uma estrateacutegia da comunidade na

produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Esta estrateacutegia como pude

compreender estaacute relacionada aos conflitos gerados pela produccedilatildeo do primeiro

relatoacuterio sobre a comunidade Assim os quilombolas entenderam que era mais

seguro neste segundo relatoacuterio natildeo indicar as duas aacutereas que natildeo satildeo contiacuteguas ao

territoacuterio atual o que poderia reestabelecer a animosidade entre a comunidade e os

proprietaacuterios vizinhos Atualmente o procedimento do INCRA utiliza como base

territorial as aacutereas indicadas pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foram

adquiridas por Manoel Ciriaco e Geraldo dos Santos as quais somavam 15 alqueires

contiacuteguos dos quais soacute restam atualmente 85 alqueires O relatoacuterio indica tambeacutem a

aquisiccedilatildeo de uma aacuterea complementar para que possa haver meios de reproduccedilatildeo

social cultural e econocircmica das famiacutelias que atualmente permanecem na

comunidade42

Em 1992 Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano ndash filhos de Manoel Ciriaco do

primeiro casamento ndash migram de GuaiacuteraPR com suas famiacutelias As famiacutelias de

Olegaacuterio e Joatildeo Loriano foram para a TarabaiSP proacuteximo a Presidente PrudenteSP

e Jovelina foi com a famiacutelia para ColiacutederMS O ldquoVelho Maneacuterdquo havia falecido em 1989

Em 1993 Geraldo dos Santos primo de Manoel que havia comprado lote limiacutetrofe ao

seu vende seus cinco alqueires e migra com sua famiacutelia para Satildeo Jorge do

PatrociacutenioPR municiacutepio proacuteximo onde adquiriu aacuterea maior mas de menor qualidade

pois a terra mais arenosa Eva me contou o motivo de seu pai Geraldo ter preferido

sair de Guaiacutera em 1993 e vender seus cinco alqueires

Dandara Eu queria perguntar tambeacutem para a Sra sobre a saiacuteda do seu pai daqui ele foi muito pressionado pra sair pra vender

Eva Ele quis sair Dandara ele natildeo quis ficar aqui mais pouca terra muito pouco com raiva tambeacutem quando os vizinhos ia limpar a estrada rancava tudo as coisas que ele plantava na beira da estrada ele ficava muito nervoso Ele pegou e natildeo quis viver aqui mais natildeo foi embora caccedilou um outro lugar pra ele morar que um lugar que era tudo gente pobre natildeo queria morar perto

42 Esta aacuterea natildeo necessita de acordo com o procedimento ser limiacutetrofe agrave comunidade e seraacute adquirida

atraveacutes do instrumento de desapropriaccedilatildeo por interesse social pelo INCRA Aleacutem das famiacutelias que atualmente moram na comunidade haacute a previsatildeo de que vaacuterias dentre as que migraram de GuaiacuteraPR poderatildeo caso haja esta ampliaccedilatildeo do territoacuterio retornar e se juntar ao grupo Esta previsatildeo de retorno eacute utilizada para calcular o tamanho da aacuterea adicional conforme abordo no segundo capiacutetulo

50

de gente rica (risos) Daiacute ele pegou e foi embora e chegou laacute e falou que era tudo pobre tambeacutem Soacute que sofreu muito tambeacutem laacute hein

Foram muitas as dificuldades que superaram conforme narram para

permanecerem em uma regiatildeo na qual se sentem discriminados racial e socialmente

Dentro deste processo histoacuterico de deslocamento e estruturaccedilatildeo das famiacutelias no

Paranaacute o casal Manoel Ciriaco dos Santos e Ana Rodrigues dos Santos ocupa o lugar

de casal fundador e aglutinador das relaccedilotildees de parentesco da comunidade

quilombola organizada a partir de GuaiacuteraPR mas que abrange famiacutelias que estatildeo

fora do territoacuterio Esta estruturaccedilatildeo das famiacutelias na regiatildeo de GuaiacuteraPR tambeacutem

portanto foi passageira para alguns nuacutecleos familiares e mais prolongada para outros

Atualmente as famiacutelias que continuaram no territoacuterio em GuaiacuteraPR lutam para

garantirem o direito de laacute permanecerem e para que seja ampliada a aacuterea da

comunidade a qual foi sendo reduzida ao longo das uacuteltimas deacutecadas com o processo

de mecanizaccedilatildeo da agricultura da perda dos meios de trabalho da valorizaccedilatildeo

comercial da terra na regiatildeo e da saiacuteda dos ldquoparentesrdquo

Manoel e Ana o casal que estrutura o modo de elaboraccedilatildeo da narrativa

histoacuterica e da reivindicaccedilatildeo de direitos pela comunidade atualmente eram primos de

segundo grau jaacute que Joana avoacute de Ana Rodrigues era irmatilde de Izidora matildee de

Manoel

FIGURA 7 Documentos de identidade de Manoel nascido em 16031920 e Ana nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)

51

Sobre as dificuldades vivenciadas quando as famiacutelias se estabeleceram em

GuaiacuteraPR e do aperto que viveram Eva filha de Geraldo Domingos dos Santos

destacou

Eva Nossa Senhora Noacutes passou um aperto aqui Aqui o que noacutes passemo aqui Eu acho mesmo o que noacutes comia era peixinho assado no fogo A muieacute que morava assim vizinha aqui quando ela colhia milho e levava milho na casa dela pra moer fazer fubaacute que noacutes comia polenta com radiche do mato serraia nem a gordura pra comer natildeo tinha Tinha dia que noacutes natildeo tinha um gratildeo de accediluacutecar Quando eles trabalhava assim que colhia as coisa pra vender daiacute jaacute comprava aproveitava que o dinheirinho era pouco mesmo depois o dinheiro natildeo dava entatildeo jaacute aproveitava e comprava de uma vez Comprava meio saco de accediluacutecar aiacute entrava pura abeia dentro de casa pura abeia (risos) Quando acabava daiacute meu pai socava poacute no pilatildeo pra noacutes fazer cafeacute de manhatilde cedo Eu falei assim ldquoeacute minha fia hoje natildeo ensina mais nada disso vocecircs nem conhece o que que eacute issordquo

Nos termos de Geralda filha de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues que saiu

dos siacutetios haacute muitos anos e atualmente mora na periferia de Guaiacutera (Vila Eletrosul)43

eles sempre trabalharam para enriquecer os coroneacuteis mas para os negros natildeo

sobrava nada A histoacuteria de seu marido Antocircnio conhecido por Guaraacute44 segundo ela

eacute um exemplo disso ldquopara mim o meu marido foi igual escravo para sofrer o que ele

sofreu As crianccedilas hoje tecircm liberdade Noacutes natildeo noacutes tinha que trabalhar e ningueacutem

tinha doacute E se fosse negro mais aindardquo A experiecircncia da escravidatildeo natildeo fica restrita

portanto a um passado longiacutenquo pois se perpetuou para aleacutem de sua instituiccedilatildeo

oficial por meio da reproduccedilatildeo de um sistema baseado na exploraccedilatildeo continuada e

na discriminaccedilatildeo racial Haacute uma perspectiva bem proacutexima na comunidade quilombola

Aacutegua Morna no estado do Paranaacute registrada no relatoacuterio antropoloacutegico da

comunidade

() Natildeo vinculam a escravidatildeo somente ao periacuteodo preacute-aboliccedilatildeo mas a percebem em tempo muito mais recente Ela estaacute relacionada ao trabalho para os ldquode forardquo e agrave experiecircncia da negritude que os colocaria constantemente em uma situaccedilatildeo de poder desprivilegiada () Nas falas dos moradores locais a escravidatildeo se confunde com a discriminaccedilatildeo relacionada ao racismo e agrave pobreza Muito mais que uma oposiccedilatildeo entre o tempo da escravidatildeo e o tempo da liberdade com uma delimitaccedilatildeo clara entre ambos

43 Outra importante caracteriacutestica sobre a caracterizaccedilatildeo negativa de Guaiacutera eacute que mesmo sendo um

municiacutepio de porte pequeno apresenta um dos maiores iacutendices de homiciacutedio do paiacutes (WAISELFISZ 2013) A Vila Eletrosul eacute tida como um dos bairros mais perigosos de Guaiacutera com vaacuterios casos de

homiciacutedios e apreensotildees Localizada nas proximidades do Rio Paranaacute eacute por laacute que entra parte da droga e do contrabando jaacute que por meio deste desvio evita-se a entrada principal saindo de Salto del Guairaacute no Paraguai para Guaiacutera onde se concentra a fiscalizaccedilatildeo 44 Irei utilizar o apelido de Guaraacute para o distinguir de ldquofinado Antocircniordquo irmatildeo de Geralda

52

dada pela assinatura da Lei Aacuteurea em Aacutegua Morna encontramos a escravidatildeo simultaneamente percebida como una e como tripartida haacute a experiecircncia dos antepassados trazida principalmente atraveacutes do relato de Benedita e da qual a caminhada ndash e a accedilatildeo da Princesa Isabel ndash os libertou haacute a opressatildeo mais recente dos antigos jaacute no proacuteprio territoacuterio mas sujeitos agrave desigualdade que marca as relaccedilotildees com os ldquobrancosricosrdquo e por fim a vivecircncia da discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo no trabalho que permanece na atualidade em que escravidatildeo se aproxima de racismo (PORTO 2008 p 71-72)

A lembranccedila da ausecircncia de acesso a recursos baacutesicos estaacute sempre presente

nas falas da Geralda

Geralda Noacutes tocava um banhado de um homi laacute e eu de a peacute pra leva comida pro Zeacute Maria e aiacute ele falou que tinha dia que ele olhava ateacute na terra pra comer de tanta fome que natildeo comia nada de manhatilde que natildeo tinha nada pra comer Aiacute eu chegava correndo minha matildee pegava um pedacinho de carne eu pegava na matildeo e iacutea correndo leva a marmita comigo longe Ele falava que natildeo tava aguentando mais de fome Ixi minha filha noacutes cheguemo pra aqui ele amarrava roupa de cipoacute num tinha roupa menina () Aiacute a minha sogra ela falava assim quando ele corria da minha sogra ela falava ldquoparece que ocecirc taacute que nem o capeta correndo da cruzrdquo correndo que natildeo tinha roupa Era tudo amarrado de cipoacute

Uma vez quando Geralda estava esquentando fogo quando era moccedila

ocorreu um acidente

Geralda Ah a gente era pobre meu pai comprava aquele paninho bem fininho que a gente falava ldquocarne secardquo aiacute sobrou o resto que minha matildee fez o colchatildeo pegou e mandou meu irmatildeo fazer uma calccedila pra mim Eles ainda ficaram tirando sarro que a calccedila pantalona aiacute as minhas irmatildes tavam ralando uma mandioca pra fazer farinha pra passar Satildeo Joatildeo e eu fiquei esquentando fogo quando eu vi o fogo pegou na minha perna aiacute a minha irmatilde correu e pegou um balde drsquoaacutegua e jogou

Haacute tambeacutem uma outra histoacuteria a da fogueira do dia de Satildeo Joatildeo que me foi

contada por Adir logo que nos encontramos na minha primeira ida a campo ainda na

rodoviaacuteria em sua famiacutelia haacute pessoas como seu irmatildeo Zeacute Maria que jaacute eacute falecido e

tambeacutem tios e tias que eram capazes de andar descalccedilos em cima da brasa da

fogueira de Satildeo Joatildeo Para isso acrescentou Adir eacute preciso ter feacute Assim se a

fogueira aparece nas narrativas de uma situaccedilatildeo de extrema falta de recursos ela

tambeacutem retorna nas memoacuterias de uma famiacutelia que tem tanta feacute que permite que

ocorram milagres como caminhar na brasa ardente sem se queimar

Ao mesmo tempo em que destacam as agruras de um passado difiacutecil um

tempo em que o frio entrava pelas frestas das casas feitas de coqueiro tambeacutem

53

aparece em seus relatos no entanto o sentimento de que havia muito mais uniatildeo no

grupo de parentes A comemoraccedilatildeo do dia de Satildeo Joatildeo por exemplo envolvia o

preparo coletivo da farinha de mandioca e do beiju45 Tambeacutem do manuseio da

mandioca se retirava o polvilho que era utilizado para o preparo de biscoitos46 No

siacutetio em Guaiacutera ressaltam que se hoje moram apenas vinte e tantas pessoas

somavam na deacutecada de 1970 mais de 80 parentes

O iniacutecio da fixaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera eacute ressaltado em todas as falas dos

adultos como um tempo de trabalho duro para homens e mulheres Infacircncia difiacutecil

onde produziam quase tudo que consumiam natildeo tinham nem um cobertor nem um

chinelo roupa era produto de luxo Viviam da agricultura de subsistecircncia produccedilatildeo e

criaccedilatildeo de animais para comercializaccedilatildeo arrendamento de terras para derrubada e

plantio atividades que ampliavam o espaccedilo de trabalho para aleacutem das aacutereas

adquiridas Por outro lado destacam a uniatildeo e a solidariedade entre parentes O lote

de Manoel Ciriaco era o ponto de referecircncia para os demais entre os quais havia uma

forte sociabilidade relaccedilotildees de ajuda muacutetua e momentos de diversatildeo do grupo ao

som de vaacuterios instrumentos produzidos por eles mesmos

FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia tirada na cidade em um ldquoestuacutediordquo (da direita para a esquerda) Seu Davi (esposo de Jovelina) sanfoneiro da famiacutelia com um casal de vizinhos e a esposa de seu primo Maria Madalena com seu filho Antocircnio (marido de Geralda)

45 O beiju eacute ldquouma espeacutecie de patildeo de mandiocardquo Para descriccedilatildeo do modo de preparo tradicional ver a

dissertaccedilatildeo de Andreacuteia Cambuy (CAMBUY 2011 103-105) 46 Estes satildeo alimentos que remetem ao jeito de viver do passado e que satildeo feitos agraves vezes Eles me

foram apresentados pelo meu interesse nas preparaccedilotildees tradicionais mas atualmente envolvem a compra dos ingredientes jaacute prontos do mercado As peccedilas da antiga farinheira estatildeo ainda guardadas mas atualmente natildeo possuem um espaccedilo fiacutesico onde possam reativaacute-la como desejam

54

O grupo de parentes em Guaiacutera engajou-se tambeacutem no plantio e

beneficiamento de hortelatilde (oacuteleo) produccedilatildeo de milho mandioca algodatildeo arroz e o

trabalho como diaristas para os vizinhos-empregadores Tais leques de atividades

contribuiacuteram para um certo grau de autonomia para os membros da comunidade

Poreacutem contam como houve uma grande mudanccedila local com o processo de

mecanizaccedilatildeo da agricultura de modo que os proprietaacuterios vizinhos passaram a natildeo

se interessar pelo arrendamento jaacute que toda a aacuterea de suas propriedades poderia ser

explorada A reduccedilatildeo da aacuterea de trabalho disponiacutevel implicou em grande dificuldade

para a manutenccedilatildeo das famiacutelias que passaram a se deslocar novamente a partir da

deacutecada de 1990

FIGURA 9 Fluxo Migratoacuterio47 FONTE A autora (2015)

Em 1989 ocorre tambeacutem o falecimento de Manoel Ciriaco que era uma

lideranccedila na articulaccedilatildeo das famiacutelias provenientes de Minas Gerais na regiatildeo de

GuaiacuteraPR Ele desempenhava ainda a sua autoridade paterna na condiccedilatildeo de

proprietaacuterio legal da aacuterea de sua famiacutelia (SEYFERTH 1985) coordenando o trabalho

47 A representaccedilatildeo cartograacutefica atraveacutes de linhas de migraccedilatildeo tem um objetivo didaacutetico neste momento

do texto Como veremos no proacuteximo subitem as discussotildees do antropoacutelogo Tim Ingold (2007) problematizam este tipo de representaccedilatildeo do deslocamento atraveacutes da linha reta A representaccedilatildeo com base no autor estaria muito mais proacutexima de um emaranhado de linhas representando o processo do movimento por meio do qual se descobre o proacuteprio caminho

55

familiar e centralizando o contato com pessoas externas Com sua morte deixou

diacutevidas para os filhos que ficaram em uma situaccedilatildeo econocircmica difiacutecil aleacutem de terem

perdido este papel de referecircncia exercido pelo pai48

Este processo de saiacuteda dos parentes de Guaiacutera eacute lembrado como um

momento muito difiacutecil e marcante por aqueles que ficaram Segundo Joaquim noacutes

fiquemo aqui abandonado Atualmente soacute restou destes quatro lotes 85 alqueires do

lote de Manoel Ciriaco sendo que os demais foram vendidos Satildeo vaacuterios os destinos

apontados em relaccedilatildeo aos parentes que migraram na deacutecada de 1990 De Guaiacutera

parentes foram para Salto del Guayra (Paraguai) Satildeo Jorge do PatrociacutenioPR

AssisPR para a regiatildeo Presidente PrudenteSP e uma famiacutelia retornou para Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG De volta para regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde jaacute

haviam morado na deacutecada de 1960 foram os irmatildeos mais velhos filhos do primeiro

casamento de Manoel Ciriaco com Maria Olinda ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano

ndash aleacutem de Eurides filha de Manoel com Ana Rodrigues

O siacutetio onde residem atualmente fica distante 20 km da sede do municiacutepio de

Guaiacutera e mais proacuteximo da divisa com o municiacutepio vizinho Terra Roxa Segundo me

contaram a permanecircncia ali soacute foi possiacutevel porque resistiram agraves pressotildees dos

proprietaacuterios vizinhos os quais satildeo na maioria gauacutechos descendentes de imigrantes

italianos e alematildees que queriam comprar suas terras e retiraacute-los do bairro rural O

nuacutemero de moradores variou no periacuteodo que estive em campo e a perspectiva do

grupo eacute que aumente com a possibilidade de retorno dos parentes em decorrecircncia da

possiacutevel ampliaccedilatildeo do territoacuterio prevista no processo de titulaccedilatildeo quilombola pelo

INCRA (Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria)49

Segundo Geralda haacute uma divisatildeo natildeo verbalizada entre um ldquoMaracaju dos

Pretosrdquo e um ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo nome pelo qual eacute conhecido o bairro rural onde

vivem A convivecircncia (ou a falta dela) com os gauacutechos eacute um elemento importante para

compreender a manutenccedilatildeo das fronteiras do grupo a partir de uma perspectiva

48 Desde sua morte e de sua esposa Ana Rodrigues em 1994 o inventaacuterio da propriedade ainda natildeo

foi realizado havendo a observaccedilatildeo por parte dos herdeiros inclusive dos que natildeo moram mais no siacutetio em GuaiacuteraPR de um acordo interno para a organizaccedilatildeo do uso da terra entre eles Importante ressaltar que a natildeo realizaccedilatildeo do inventaacuterio eacute uma estrateacutegia importante na organizaccedilatildeo camponesa para evitar a fragmentaccedilatildeo do lote original (SEYFERTH 1985) 49 A questatildeo de quem pode requerer o direito a morar no territoacuterio a partir de relaccedilotildees de pertencimento comeccedila a ser trabalhada pelas lideranccedilas do grupo jaacute que a fase de cadastramento das famiacutelias pelo INCRA eacute a proacutexima etapa do procedimento apoacutes a publicaccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) prevista para 2015

56

poliacutetica e relacional de grupos eacutetnicos50 As relaccedilotildees com seus vizinhos foram

estabelecidas majoritariamente pela mediaccedilatildeo de relaccedilotildees de trabalho informais

Antes do conflito desencadeado com o processo no INCRA mantinham relaccedilotildees

proacuteximas apesar de os quilombolas sempre terem percebido as manifestaccedilotildees de

preconceito racial

Geralda Eu natildeo gosto do Maracaju natildeo gosto daquelas turma Menina porque o que noacutes viveu ali Vocecirc chega na igreja noacutes natildeo vai na Igreja que eacute pra rezar Natildeo eacute pra pessoa pensar olhar laacute no padre Eles ficava olhando se vocecirc tava bem vestido se vocecirc tava limpo Hum negro Negro pra eles natildeo presta Eles fazia amizade com noacutes assim de frente mas eles nenhum gostava de noacutes a gente via na cara a gente natildeo eacute besta Noacutes convivia desde pequeno junto com eles ali Eu natildeo tenho saudade natildeo () Porque eu gosto de morar no lugar que eacute humilde neacute que a gente sente bem Vocecirc mora no lugar pro resto da vida se vocecirc morrer ali vocecirc se sente bem Aqui eacute assim (Vila Eletrosul) tem gente metido mas aqui tem gente legal E a amizade que eu tenho aqui dentro dessa Eletrosul Aqui tem muita coisa mas tanta amizade que eu tenho aqui com crianccedila com gente velho com gente novo eacute rapaz eacute moccedila eacute tudo Laacute no Maracaju natildeo eu natildeo tinha amizade Noacutes ia no baile vocecirc taacute pensando que os rapaz de laacute danccedilava com noacutes Eu posso conta procecirc que eu natildeo dancei com um rapaz laacute dentro do Maracaju Nenhum Eles natildeo danccedilava com noacutes que era preto Aiacute vocecirc vai viver num lugar desse e vocecirc vai ficar feliz

O mapa abaixo mostra a porccedilatildeo de terra da comunidade cercada pelas

propriedades vizinhas De acordo com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido na

comunidade (TERRA AMBIENTAL 2013) pode-se dividir a aacuterea atual em quatro

setores O setor 1 e o setor 2 na parte superior do mapa em verde claro

correspondem agrave aacuterea onde se concentram as casas dos moradores o accedilude a

criaccedilatildeo de pequenos animais e a plantaccedilatildeo de verduras para consumo e comeacutercio

Os setores 3 e 4 satildeo de plantaccedilotildees dos proacuteprios quilombolas de mandioca milho

aveia soja entre outros Depois do setor 4 haacute um pequeno pedaccedilo de 15 alqueires

que foi vendido para o vizinho Jacomine em 1992 (quando da saiacuteda dos trecircs irmatildeos

mais velhos que foram para Presidente PrudenteSP) e por fim a aacuterea de reserva

legal da propriedade

50 O enfoque nas fronteiras nos mecanismos necessaacuterios para criaacute-las e mantecirc-las e na diferenciaccedilatildeo estrutural dos grupos em interaccedilatildeo tornam-se elementos centrais para as anaacutelises que tomam a autoatribuiccedilatildeo como traccedilo fundamental da etnicidade conforme reflexatildeo proposta por Barth acerca do modo de constituiccedilatildeo dos limites sociais dos grupos eacutetnicos (BARTH 2011)

57

FIGURA 10 ldquoDivisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriacordquo FONTE Terra Ambiental Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos Guaiacutera ndash PR (p88)

58

Se o grupo familiar saiu de Minas Gerais ateacute o Paranaacute visando a reinserccedilatildeo

social em melhores condiccedilotildees de vida e fugindo do racismo e da marginalizaccedilatildeo

percebe-se que as estruturas de opressatildeo se reproduziram novamente Nestas cinco

deacutecadas em que estatildeo vivendo no Paranaacute natildeo houve a criaccedilatildeo de laccedilos de

parentesco com os vizinhos e a tendecircncia endogacircmica deste grupo familiar que jaacute

ocorria em Minas Gerais acentuou-se Geralda por exemplo eacute casada com Antocircnio

cujo pai Joseacute dos Santos eacute seu primo de 2ordm grau O casamento entre parentes

aparece entatildeo como fator constitutivo da manutenccedilatildeo da coesatildeo do grupo e do

territoacuterio tendo em vista o histoacuterico de deslocamentos (MELLO 2012 p 24) No

entanto para aleacutem de caracteriacutestica proacutepria da organizaccedilatildeo social o racismo e a

discriminaccedilatildeo do entorno reforccedilaram a fronteira do casamento entre brancos e negros

A partir de 2005 com a possibilidade de reivindicarem a identidade

quilombola o estigma do racismo que enfrentaram e ainda enfrentam pocircde ser

recolocado como uma afirmaccedilatildeo positiva de ser negro e uma releitura da proacutepria

trajetoacuteria do grupo Neste sentido

O ato de aquilombar-se ou seja de organizar-se contra qualquer atitude ou sistema opressivo passa a ser portanto nos dias atuais a chama reacesa para na condiccedilatildeo contemporacircnea dar sentido estimular fortalecer a luta contra a discriminaccedilatildeo e seus efeitos Vem agora iluminar parte do passado aquele que salta aos olhos pela enfaacutetica referecircncia contida nas estatiacutesticas onde os negros satildeo maioria dos socialmente excluiacutedos Quilombo vem a ser portanto o mote principal para se discutir parte da cidadania negada (LEITE 2000 p 349)

Tal categoria natildeo correspondia a como os proacuteprios grupos se

autodenominavam de modo que essa identidade quilombola passa a ser politicamente

construiacuteda com base na mobilizaccedilatildeo de elementos histoacutericos e culturais preacute-

existentes em cada caso especiacutefico Ao inveacutes de querer estabelecer portanto uma

ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da interpretaccedilatildeo

historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI 2006 p 39-

40)51 deve-se buscar perceber quem satildeo os grupos que se mobilizam a partir desta

51 Tais criteacuterios riacutegidos baseados em estereoacutetipos satildeo defendidos pelos que se opotildeem aos direitos destes grupos sociais e tecircm a despeito do reconhecimento legal do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo uma repercussatildeo significativa no imaginaacuterio geral impactando nas expectativas colocadas em relaccedilatildeo por exemplo ao teor dos relatoacuterios antropoloacutegicos

59

identidade tomando como base o criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo como reconhecido pelo

ordenamento juriacutedico brasileiro52

Com a inserccedilatildeo do artigo 68 no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais

Transitoacuterias no acircmbito da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 a literatura antropoloacutegica

sobre quilombos vem destacando a diversidade de estrateacutegias e saiacutedas produzidas

pelos grupos sociais que passaram a se mobilizar politicamente e a se reconhecerem

a partir da ldquometaacutefora do quilombordquo (OrsquoDWYER 2011 p 120) Esta diversidade de

experiecircncias sociais dos quilombos implica na necessidade de ressemantizar o

conceito histoacuterico e compreender processos especiacuteficos como o caso da Comunidade

Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

Nesta experiecircncia social a identidade quilombola eacute pensada a partir de uma

origem comum que se desdobra por meio do movimento de deslocamento do grupo

em uma trajetoacuteria de resistecircncia Para o reconhecimento de trajetoacuterias histoacutericas

coletivas como esta como aponta o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho eacute

muito importante o processo de amadurecimento teoacuterico que sai da abordagem da

ldquoantropologia das perdasrdquo para anaacutelises dos processos de emergecircncia eacutetnica jaacute que

ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo

anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedilardquo (OLIVEIRA

FILHO 1998 p 64) Assim eacute necessaacuterio olhar para o processo que gerou a

territorialidade reconhecendo a historicidade a dinamicidade bem como a variedade

de estrateacutegias dos grupos quilombolas

12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA

ldquoA histoacuteria de nosso bisavocirc escravo chamado negro Joseacute Joatildeo Paulo

casado com a negra Maria Joana O lugar que eles moravam no

Estado de Minas Gerais era a cidade de Santo Antocircnio Itambeacute do

Serro aonde eles eram escravizados pelo sinhocirc na eacutepoca da

escravidatildeo Eles eram escravizados no garimpo tirano ouro e pedras

preciosas Ele e sua esposa naquela eacutepoca trabalhavam junto no

52 O criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo atualmente estaacute consagrado em acircmbito internacional e nacional por uma seacuterie de dispositivos normativos Neste sentido destaca-se a convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho sobre Povos Indiacutegenas e Tribais que estabelece em seu artigo 1ordm ldquoA consciecircncia de sua identidade indiacutegena ou tribal deveraacute ser considerada como criteacuterio fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposiccedilotildees da presente Convenccedilatildeordquo Esta convenccedilatildeo foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nordm 143 de 2062002 e entrou em vigor em 2003 No que tange agrave questatildeo especificamente quilombola o Decreto Federal 4887 de 2003 em seu artigo 2ordm sect 1ordm estabelece que ldquoPara os fins deste Decreto a caracterizaccedilatildeo dos remanescentes das comunidades dos quilombos seraacute atestada mediante autodefiniccedilatildeo da proacutepria comunidaderdquo

60

garimpo e tiveram filhos e filhas Seus filhos eram negra Maria

Eduarda negra Dolarina Domingos dos Santos negra Jorgina

Domingos dos Santos negro Joaquim Domingos dos Santos negro

Sebastiatildeo Dama Domingos dos Santos e negro Raimundo Domingos

dos Santos Eles criavam seus filhos com restos que seu sinhocirc dava e

agraves vezes ficavam ateacute sem comer para render mais porque a comida

era pouca ateacute aacutegua era retirada da mina eles tinham que beber aacutegua

suja para poder ateacute cozinhar Aiacute se um negro chegasse perto dessa

mina eles era amarrado e chicotiado e ficavam preso numa das parte

da senzala e ficavam muitos dias ateacute sem comer e doentes por causa

das chicotiadas Seu lugar de descanso eram chamados de lapa

chamado de caverna ou casa de pedra Ali se abrigavam em muitos

para poder aquecer do frio porque natildeo tinham roupa nem sapatos

andavam descalccedilos e assim criavam os seus filhos como meu avocirc

Joaquim Paulo dos Santos que se casou com Maria Zidora dos

Santos que tiveram seus filhos chamados Manoel Ciriaco dos Santos

Sebastiatildeo Vicente dos Santos Ana Raimunda dos Santos Na eacutepoca

que eles se casaram eles natildeo eram mais escravos jaacute eram alforriados

e trabalhavam para os senhores do retiro nos garimpo e na lavoura de

cana e cafeacute A cana para poder fazer a cachaccedila a rapadura e o

melado Eles vivia disso mais trabalhava mais natildeo tinha valor o seu

serviccedilo e moravam tambeacutem na lapa (casa de pedra) que nem foram

criados nos seus costumes porque natildeo era valorizado e ali criavam

seus trecircs filhos junto no trabalho da lavoura e alimentavam Aiacute casou

um dos seus filhos o que era meu pai Manoel Ciriaco dos Santos que

casou com Maria Olina do primeiro casamento que teve quatro filhos

com sua primeira esposa Os filhos Jovelina Ciriaco dos Santos Luiza

Ciriaco dos Santos Olegario da Silva e Joatildeo Loriano dos Santos E aiacute

foi trabalhar para poder criar seus quatro filhos no Estado de Minas

Gerais em Santo Antonio do Itambeacute do Serro O meu pai trabalhava

no retiro dos fazendeiros com carpi lavoura de mandioca retirando

carvatildeo no garimpo do ouro Transportava cachaccedila o queijo rapadura

carne secada no sol farinha de mandioca milho O transporte era feito

na cangaia no lombo de burro que era o trabalho que meu pai fazia

Era pra quem trabalhava que ele chamava de seus fulanos que eram

os fazendeiros para sustentar a sua primeira famiacutelia Com o passar do

tempo o meu pai perdeu a minha irmatilde que faleceu com 8 anos laacute em

Minas Gerais Ela se chamava Luiza Ciriaco dos Santos Meu pai ficou

viuacutevo ai ele ficou sozinho para poder cuidar dos filhos aiacute resolveu

casar de novo com a minha matildee Ana Rodrigues dos Santos aiacute tiveram

quatro filhos laacute no Estado de Minas Gerais Eurides dos Santos

Sebastiana Feliciana dos Santos Antocircnio Gregoacuterio dos Santos e Joseacute

Maria Gonccedilalves Aiacute eu sai dali com minha matildee e meu pai e meus

irmatildeos eu tinha seis meses de vida Aiacute naquela eacutepoca meu pai deixou

o meu irmatildeo com sete anos o Joatildeo Loriano dos Santos Aiacute nos fomos

para o Estado de Satildeo Paulo na cidade de Caiabuacute perto de Presidente

Prudente no ano de 1956 municiacutepio de Martinoacutepolis Meus pais

tiveram mais dois filhos Joaquim dos Santos e Geralda dos Santos Laacute

meu pai trabalhava torrando farinha para meu tio aiacute ele foi pra uma

fazenda arrendocirc uma terra de fazendeiro aiacute prantocirc amendoim

algodatildeo feijatildeo aiacute depois de oito anos noacutes saiacutemos de laacute e vinhemos

para o Paranaacute em 1964 na cidade de Guairaacute no Patrimocircnio do

Maracaju dos Gauacutechos aonde noacuteis residimos ateacute hoje Mais na

chegada aqui era tudo mato aiacute eu meu pai e meus irmatildeos mais velhos

ajudamos meu pai a caccedilar e derrubar a mata Fizemos uma barraca de

lona e acampamos no meio do mato Aiacute com o tempo fizemos um

rancho com taubinha de cedro e cercado de coqueiro e no chatildeo

61

passava argila misturada com esterco de vaca Noacuteis dormia no chatildeo e

minha matildee cozinhava no fogatildeo de barro mais mesmo assim noacutes

passava necessidade tinha dia que noacutes natildeo tinha nem o angu para

comer nem feijatildeo Caccedilava caccedila do mato pescava assava e comia

porque a gordura noacuteis natildeo tinha Minha matildee lavava nossa roupa No

lugar do sabatildeo porque natildeo tinha usava cinza de madeira e lavava na

mina Aiacute com o tempo noacuteis fomo roccedilando fomo preparando a terra e

aiacute saiu a lavoura que noacuteis comecemos a plantar Com o tempo tivemos

mais trecircs irmatildeos Paulo dos Santos Adir Rodrigo dos Santos e Joatildeo

Aparecido dos Santos Com o tempo o meu irmatildeo Paulo ele era

deficiente mental aiacute veio a falecer com 15 anos Aiacute depois faleceu

Manoel Ciriaco dos Santos com 69 anos Aiacute depois faleceu Antocircnio

Gregoacuterio dos Santos faleceu com 35 anos depois faleceu Sebastiana

Feliciana dos Santos depois faleceu Ana Rodrigues dos Santos aiacute

depois que meus pais e meus irmatildeos faleceram ficamos soacute nois os

filhos Continuamos lidando com a terra mais com muita dificuldade

Passamos fome e humilhaccedilatildeo pelos grande fazendeiro porque na

eacutepoca que meu pai faleceu deixou muita diacutevida por causa da lavoura

aiacute comeccedilamos a trabaiaacute por dia para poder sustentar nossas famiacutelia e

assim mesmo tinha muita dificuldade para pode pagar as contas Por

causa disso noacutes nunca pudemos ir pra frente soacute ficamos pra trais aqui

nesse lugar passamos a trabaiaacute mais por dia pros outros nas lavoura

de mandioca para pequeno e grande agricultor para podecirc pagar as

nossas contas e mesmo assim natildeo conseguimos porque se pagasse

as contas ficava sem comer Trabalhamos no rancadatildeo de mandioca

para poder se alimentar Com muita dificuldade trabalhamos dias

mecircs anos e ateacute hoje continuamos no mesmo serviccedilo sem futuro pra

noacutes e nossos filhos Isto eacute um pouco da nossa histoacuteria da nossa

comunidade e o contador da histoacuteria eacute o negro Joseacute Maria Gonccedilalves

filho do Manoel Ciriaco dos Santosrdquo (Joeacute Maria Gonccedilalves) (GRUPO

DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 p 149-151)

A fala apresentada acima eacute central para este trabalho por ser a primeira

narrativa do grupo para agentes do Estado que foi registrada53 O finado Zeacute Maria eacute o

narrador perante os membros do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM)54 e resume

a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade Ele era na eacutepoca o mais velho dentre os irmatildeos

que permaneceram no siacutetio em GuaiacuteraPR depois da saiacuteda da maior parte das

famiacutelias a partir da deacutecada de 1990 Com este decreacutescimo de famiacutelias e com a morte

dos mais velhos que vieram de Minas (tendo como referecircncia principal os pais Manoel

Ciriaco falecido em 1989 e Ana Rodrigues em 1994) os adultos que ficaram na

comunidade se tornaram os portadores das lembranccedilas daqueles que vivenciaram

esta histoacuteria familiar de movimento Zeacute Maria por exemplo saiu de Minas Gerais com

53 Este relato foi gravado em 15 de janeiro de 2007 Disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 54 Grupo Intersecretarial criado pelo governo do estado do Paranaacute em 2005 para realizar levantamento de comunidades quilombolas no estado Foi extinto em 2010

62

apenas seis meses de vida Dentre os irmatildeos mais novos que satildeo os que

permanecem em Guaiacutera atualmente Joaquim (55) e Geralda (53) nasceram no estado

de Satildeo Paulo proacuteximo a Presidente Prudente ndash no municiacutepio de CaiabuSP ndash

enquanto Adir (46) e Joatildeo Aparecido (43) nasceram no Pararaacute em Guaiacutera55

Na narrativa acima observa-se que a organizaccedilatildeo dos fatos se daacute de modo

cronoloacutegico e tem iniacutecio com o marco fundamental dos seus bisavocircs casal ancestral

que foi escravizado em Santo Antocircnio Itambeacute do SerroMG Suas lembranccedilas falam

da situaccedilatildeo de pobreza e sofrimento dos antepassados associada a elementos como

o trabalho escravo no garimpo a moradia na senzala a submissatildeo agrave violecircncia fiacutesica

a fome a falta de acesso a roupa e recursos baacutesicos O nascimento de seu pai

Manoel Ciriaco dos Santos em 1920 eacute um acontecimento destacado eacute ele o

personagem central do processo de deslocamento do grupo para o Paranaacute Durante

toda a narrativa destaca os viacutenculos de parentesco nascimentos casamentos e

mortes em uma percepccedilatildeo do tempo baseada na sequecircncia de geraccedilotildees Zeacute Maria

reforccedila que mesmo com o fim da escravidatildeo seus avoacutes continuaram a trabalhar para

os senhores no garimpo e na lavoura de cana e cafeacute tendo se mantido a

desvalorizaccedilatildeo de seu trabalho e a dificuldade de sobrevivecircncia da famiacutelia Indica que

a alforria natildeo trouxe portanto uma mudanccedila significativa para as suas condiccedilotildees de

vida e as relaccedilotildees de trabalho O movimento em etapas eacute iniciado pelas famiacutelias ateacute

chegarem em Guaiacutera onde conquistam novas aacutereas de terra atraveacutes do trabalho duro

em uma histoacuteria de ldquoluta e humilhaccedilatildeordquo O narrador finaliza sua histoacuteria demonstrando

os motivos pelos quais os membros da comunidade natildeo tecircm perspectivas de futuro

pois tal reconfiguraccedilatildeo acaba novamente reproduzindo a opressatildeo

Esta narrativa como todo ato de recordaccedilatildeo deve ser entendida como uma

interpretaccedilatildeo e natildeo como recordaccedilatildeo literal Trata-se da ldquoconstruccedilatildeo de um

lsquoesquemarsquo de uma codificaccedilatildeo que nos permite discernir e por isso recordarrdquo

(CONNERTON 1999 p 30) A autoidentificaccedilatildeo final do narrador como negro bem

como sua insistecircncia em destacar tal caracteriacutestica em relaccedilatildeo aos parentes parece

55 No plano narrativo uma situaccedilatildeo rememorada natildeo seraacute contada a partir de um narrador onisciente

que daacute um testemunho autecircntico e estaacute ldquoacima do desenvolvimento dos fatos mas a partir de um narrador parcial e imerso em seu interiorrdquo permeado portanto pela rede de relaccedilotildees em que se insere o narrador Eacute o processo de visatildeo decorrente do caraacuteter parcial do ponto de vista em sua subjetividade e natildeo os fatos que satildeo vistos o que eacute mais relevante na anaacutelise das narrativas de memoacuterias o que aponta para as condiccedilotildees sociais de sua produccedilatildeo bem como suas articulaccedilotildees com o momento presente (PORTELLI 1996 p 64)

63

apontar a percepccedilatildeo do lugar que cabe ao negro nos contextos descritos O aspecto

da resistecircncia do grupo natildeo eacute lido pelo narrador como confronto aberto em relaccedilatildeo agrave

ordem instituiacuteda Resistir eacute de certa forma persistir na reproduccedilatildeo da ldquocampesinidade

como ordem moralrdquo (WOORTMANN 1990) na luta contiacutenua por estar na terra

condiccedilatildeo de sua existecircncia material afetiva e simboacutelica o que aponta para uma

amaacutelgama entre resistecircncia racial e resistecircncia camponesa (RUBERT SILVA 2009)

Na histoacuteria desta famiacutelia portanto o foco do deslocamento natildeo era o urbano

como comum na deacutecada de 1960 mas a possibilidade de reinserccedilatildeo do grupo por

meio da reproduccedilatildeo do trabalho rural Este anseio do grupo pode ser inserido como

desdobramentos de um panorama histoacuterico mais amplo no qual a resistecircncia dos ex-

escravos passou pela consolidaccedilatildeo de uma alternativa camponesa que

() possibilite a autonomia produtiva direcionada tanto para o autoconsumo quanto para diversos circuitos do mercado Essa autonomia produtiva soacute eacute possiacutevel por sua vez mediante a consolidaccedilatildeo de um espaccedilo em que instacircncias de socializaccedilatildeo que no caso satildeo fundamentadas em uma gramaacutetica do parentesco operam a passagem por parte de escravos e ex-escravos da condiccedilatildeo de coisa agrave condiccedilatildeo de pessoa (RUBERT SILVA 2009 p 267)

A busca pela reproduccedilatildeo camponesa destas famiacutelias negras implicou entatildeo

na decisatildeo de saiacuterem de sua regiatildeo origem com o alto custo emocional e econocircmico

que tal escolha gera O antropoacutelogo Klaas Woortmann com importante contribuiccedilatildeo

para os estudos do campesinato demonstrou como a migraccedilatildeo eacute uma praacutetica de

reproduccedilatildeo dos camponeses enquanto condiccedilatildeo para a permanecircncia de parte da

famiacutelia na aacuterea rural Isso porque a migraccedilatildeo definitiva tem como um dos principais

motivos minimizar ou impedir o fracionamento da terra pela heranccedila56 tendo em vista

o processo histoacuterico de reduccedilatildeo da aacuterea do campesinato pelo avanccedilo capitalista

Outro mecanismo para preservar o patrimocircnio familiar eacute o ldquopadratildeo de preferecircncias

matrimoniaisrdquo pelo casamento endogacircmico (WOORTMANN 2009 p 229-230)

praacutetica que era comum nestas famiacutelias negras desde Minas e que se mantiveram no

processo de migraccedilatildeo A definiccedilatildeo de quem dentro da famiacutelia se tornaraacute migrante

passa por praacuteticas como a valorizaccedilatildeo da primogenitura que define a condiccedilatildeo de

ldquoherdeiro preferencialrdquo No caso de Manoel Ciriaco ao passo que Manoel migrou o

irmatildeo mais velho Sebastiatildeo Vicente tornou-se herdeiro da terra da famiacutelia

56 Assim tambeacutem demonstrou o estudo de Galizoni sobre a regiatildeo especiacutefica do Alto Jequitinhonha (MG) como citado na Introduccedilatildeo (GALIZONI 2002)

64

Devem migrar todos os filhos de determinada famiacutelia menos o herdeiro Para

os membros de um conjunto de irmatildeos haacute portanto como que duas temporalidades

a continuidade para uns e a descontinuidade para outros Para que uns continuem

sitiantes outros devem deixar de secirc-lo (WOORTMANN 2009 p 233) A migraccedilatildeo

ocorre por meio da rede de parentesco os que migram de uma mesma localidade

tendem a buscar um destino comum Laacute iratildeo constituir redes onde se replica o

casamento entre primos e forma-se um sistema de apoio para novos migrantes

(WOORTMANN 2009 p 234) Conforme expliacutecito no cartaz que seraacute apresentado

abaixo exposto no barracatildeo da comunidade o movimento destas famiacutelias negras eacute

compreendido na memoacuteria do grupo como parte fundamental do processo de

emergecircncia eacutetnica

O iniacutecio da trajetoacuteria de deslocamento da comunidade eacute identificado no

cartaz57 abaixo em referecircncia ao traacutefico de africanos para serem comercializados

como escravos no Brasil mais especificamente no estado de Minas Gerais O paiacutes de

origem na Aacutefrica de onde imaginam serem provavelmente descendentes eacute Angola

mas natildeo haacute informaccedilotildees sobre este passado mais remoto A relaccedilatildeo com a regiatildeo de

origem africana surgiu a partir da identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas comuns a

alguns membros da comunidade Segundo Adir lideranccedila quilombola em Guaiacutera

Nosso pessoal natildeo veio de um lugar soacute da Aacutefrica porque tem uns que satildeo alto e magro canela fina que o senhor do engenho usava mais no serviccedilo da roccedila Outros que satildeo mais baixo e forte satildeo mais lento usava mais no trabalho em casa As mulheres mais fortes mais baixa mais troncuda eacute que serviria para dar de mamar para as crianccedilas do senhor de engenho

57 O cartaz foi elaborado pelos membros da comunidade junto com uma teacutecnica da EMATER com quem tecircm forte proximidade quando da inauguraccedilatildeo em 2008 do Telecentro (sala com computadores com acesso a internet) instalado na comunidade pela empresa ELETROSUL Nesta oportunidade foi feita uma festa no barracatildeo da comunidade para receber as pessoas da regiatildeo (inclusive Adir destacou que os vizinhos do Maracaju estiveram presentes pois ainda natildeo havia ocorrido o conflito desencadeado pela elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico no acircmbito do procedimento do INCRA) Para divulgar a histoacuteria da comunidade nesta oportunidade resolveram entatildeo fazer um cartaz em que contassem os momentos principais da sua trajetoacuteria marcada pelo deslocamento Atualmente o cartaz fica exposto no barracatildeo da comunidade ndash espaccedilo onde fazem reuniotildees ocorrem as aulas de educaccedilatildeo de jovens e adultos jogam capoeira recebem visitas de escolas e agentes diversos

65

FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia

66

Em Minas Gerais onde os antepassados dessas famiacutelias criaram raiacutezes

ldquocomeccedila a saga da famiacutelia dos Remanescentes dos Quilombos com a histoacuteria do

patriarca Manoel Ciriaco dos Santos A famiacutelia morava em uma lsquolaparsquo de pedra A vida

era feita de fome e muito trabalhordquo como legendado no cartaz A palavra saga aponta

para o caraacuteter heroico que eacute atribuiacutedo a esta histoacuteria dos antepassados pois de Minas

Gerais tiveram que sair rumo ao desconhecido com bebecircs crianccedilas idosos com

poucos recursos para a viagem enfrentando inuacutemeras dificuldades e desafios para

buscarem oportunidades no estado de Satildeo Paulo Foi a ldquomudanccedila de vida rumo a Satildeo

Paulo com destino a Caiabu O trabalho colheita de algodatildeo e amendoimrdquo Por fim

o terceiro momento descrito no cartaz eacute marcado pelo deslocamento em direccedilatildeo ao

Paranaacute e eacute identificado como sendo a ldquoconquista da liberdade Manoel Ciriaco compra

terras em Guaiacutera no Estado do Paranaacute em 1962 A famiacutelia do patriarca chega ao

patrimocircnio do Maracaju dos Gauacutechos em suas terras no ano de 1964rdquo A liberdade

real significa entatildeo a autonomia e a possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo viabilizada

pela conquista de um pedaccedilo de terra em Guaiacutera um ldquoterritoacuterio quilombolardquo a partir

do qual novas conquistas seratildeo alcanccediladas pela comunidade

Ao comparar a fala de Zeacute Maria com a trajetoacuteria descrita no cartaz eacute possiacutevel

perceber que ele na articulaccedilatildeo de suas memoacuterias ainda natildeo apontava o caminho

do reconhecimento como quilombolas enquanto uma possibilidade de alteraccedilatildeo do

percurso histoacuterico de exclusatildeo que narra jaacute que conclui sua fala apontando para a

falta de perspectiva de futuro para ele e seus parentes No caso do cartaz ao

contraacuterio a perspectiva de futuro aparece com a conquista do territoacuterio e

posteriormente com o conhecimento de uma seacuterie de direitos dos quais se

consideram detentores e em busca dos quais passam a se organizar em torno da

identidade quilombola Isto mostra como a memoacuteria eacute dinacircmica enquanto fruto do

trabalho coletivo realizado com base no ldquorepertoacuterio de narrativas de uma comunidade

afetivardquo Tal repertoacuterio estaacute ldquoem permanente relaccedilatildeo com o oral apresentando-se

sempre como versatildeo aberta permanentemente reconstruiacuteda pelas trocas sociais e

constantemente reestabelecida pela repeticcedilatildeo e pela negociaccedilatildeo de versotildeesrdquo

(ARRUTI1996 p 32-33)

Considerando que a fala de Zeacute Maria foi registrada nos primeiros contatos dos

representantes do grupo com agentes externos em janeiro de 2007 eacute interessante

observar que o eixo narrativo do deslocamento do sofrimento e da discriminaccedilatildeo

67

provavelmente natildeo foi elaborado com a intenccedilatildeo de adequar a histoacuteria do grupo como

uma resposta agrave demanda pela construccedilatildeo identitaacuteria enquanto quilombolas pois esta

questatildeo natildeo aparece em sua reflexatildeo Por outro lado em termos de sistematizaccedilatildeo

histoacuterica da trajetoacuteria do grupo que lhe foi demandada naquele momento os

elementos que estruturaram o seu relato continuaratildeo a subsidiar este processo de

construccedilatildeo identitaacuteria quilombola da comunidade em GuaiacuteraPR

O cartaz por sua vez elaborado pelos membros da comunidade junto com

uma teacutecnica da EMATER com quem consideram ter uma relaccedilatildeo de bastante

confianccedila e proximidade tambeacutem tinha o intuito de contar visualmente a histoacuteria da

comunidade Isto ocorreu em 2008 apoacutes a autoidentificaccedilatildeo do grupo como

quilombolas de modo que eacute possiacutevel observar como o cartaz aponta para a afirmaccedilatildeo

desta identidade como o comeccedilo de um novo ciclo na histoacuteria dessas famiacutelias desde

seus antepassados Se no seacuteculo XIX foram escravizados em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG e laacute resistiram ateacute a deacutecada de 50 do seacuteculo XX com os deslocamentos e

a reorganizaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera novas perspectivas de futuro se apresentam

pelo caminho da identidade quilombola no iniacutecio do seacuteculo XXI Deste modo ldquoa

identidade contrastiva constituiacuteda sob a eacutegide do estigmardquo seraacute invertida como uma

afirmaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a si mesmos (RUBERT SILVA 2009 p 252-258)

A elaboraccedilatildeo da identidade quilombola conforme eacute possiacutevel perceber na fala

de Adir passa a ser construiacuteda a partir da temaacutetica da resistecircncia frente a contextos

contiacutenuos de adversidade desde nossos antepassados da luta e da busca pela

efetivaccedilatildeo dos nossos direitos A categoria de autoidentificaccedilatildeo como ldquoquilombolasrdquo

seraacute mobilizada portanto a partir de elementos preacute-existentes da histoacuteria e da

memoacuteria do grupo Esta fala foi realizada para um puacuteblico de alunos de uma escola

da regiatildeo que visitaram a comunidade na semana da comemoraccedilatildeo da aboliccedilatildeo da

escravatura (13 de maio) em 20 de maio de 201458

Adir () Vou contar pra vocecircs as nossas dificuldades a nossa luta no dia a dia a nossa trajetoacuteria desde os nossos antepassados na Aacutefrica trajetoacuteria da Aacutefrica em navio negreiro de laacute pra caacute e tambeacutem da onde o nosso pessoal foi

58 Esta foi uma de muitas visitas que recebem (segundo Adir recebem mais de mil pessoas durante o

ano todo enfatizando a intensidade dos agendamentos) quando satildeo procurados principalmente por professores da regiatildeo que querem levar os alunos para conhecer a histoacuteria dos quilombolas Aleacutem do 13 de maio as visitas ocorrem com maior frequecircncia proacuteximo ao dia 20 de novembro dia da consciecircncia negra A professora que acompanhou este grupo especiacutefico em 20 de maio de 2014 contou ao final da apresentaccedilatildeo de Adir como jaacute incorporou a visita agrave comunidade como uma proposta de levar todo ano seus alunos para conhecer o ldquoquilombo de Guaiacuterardquo

68

centralizado no estado em Minas Gerais onde o trabalho desde o trabalho escravo e depois o trabalho nas mesmas fazendas garimpo de ouro cana-de-accediluacutecar cafeacute Entatildeo todo aquele trabalho que eles faziam em Minas Gerais desde os mais velhos que sofreram na eacutepoca da escravidatildeo Eu sei que o local onde eles morava laacute era um local de difiacutecil acesso em loca de pedra muito difiacutecil o trabalho deles o sofrimento fome sem identidade sem nenhum tipo de direito e isso fez com que eles saiacutessem de laacute e procuramos um local melhor procurando sobreviver melhor e aconteceu que hoje noacutes estamos aqui Eles fizeram a trajetoacuteria de Minas ateacute o Estado de Satildeo Paulo e do estado de Satildeo Paulo nessa regiatildeo aqui em Guaiacutera Eacute uma regiatildeo de muito preconceito o local onde a gente taacute centralizado aqui Me lembro que na idade de vocecircs que a gente estudava no coleacutegio a gente era chamado de macaco de filho do capeta natildeo tinham respeito com a gente jaacute dizia que por causa da cor da pele jaacute significava tudo pra eles a separaccedilatildeo de negro e de branco Entatildeo noacutes sobrevivemos a tudo isso o maior preconceito e mesmo assim noacutes trabalhamos pra eles Depois que a gente cresceu os nossos mais velhos dependiam do trabalho porque quando nosso pai chegou era tudo o mato natildeo tinha nada a sobrevivecircncia era tirar o sustento tambeacutem da mata aproveitar ao maacuteximo possiacutevel pra sobrevivecircncia e poder criar a famiacutelia Aqui noacutes aprendemos a nossa religiatildeo aqui noacutes aprendemos a trabalhar e respeitar as pessoas aqui noacutes aprendemos a sobreviver de forma difiacutecil de forma sofrida E por isso a gente taacute aqui hoje mesmo com esse sofrimento todo toda a pressatildeo opressatildeo de latifundiaacuterio opressatildeo que queria tomar as nossas terras opressatildeo de toda forma E noacutes a nossa resistecircncia pra noacutes taacute aqui ateacute hoje aqui nessa luta sem sonho sem poder sem direito E noacutes a partir de 2005 e 2006 foi aonde que a gente criou essa esperanccedila de que a gente podia conhecer os nossos direitos lutar se organizar construir uma associaccedilatildeo e aonde a gente aprendeu e ainda estamos aprendendo muitas coisas para noacutes requerer nossos direitos Natildeo digo soacute direito da terra mas direito tambeacutem das poliacuteticas puacuteblicas direito de conviver com a naccedilatildeo direito de sobreviver com dignidade e que as pessoas possam nos respeitar E de vocecirc olhar pra um negro e dizer que esse negro natildeo deve andar no meio da sociedade natildeo possa ter as suas poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode ter nada de garantia nem sobrevivecircncia Mas a nossa mentalidade hoje a gente pensa diferente de antes Antes a gente ficava calado a gente natildeo falava numa religiatildeo a gente natildeo falava na nossa culinaacuteria e a gente natildeo podia falar em nada tudo que a gente aprendeu e aprendia isso era guardado soacute na mente E hoje natildeo hoje a gente possa pronunciar que a gente vecirc o direito que tecircm E natildeo soacute por causa do direito porque eu acho que nem precisaria a gente ficar correndo atraacutes de algum direito Se eacute que o negro trabalhou nesse paiacutes de forma injusta e quantos derramaram o seu sangue nesse solo brasileiro pra construir esse paiacutes que natildeo precisava a gente taacute aiacute nessa correria pra recorrer aos nossos direitos recorrer a algumas coisas e ateacute mesmo agrave nossa sobrevivecircncia

Nesta construccedilatildeo identitaacuteria raccedila eacute um conceito ecircmico fundamental no

cotidiano das pessoas que influenciou de modo determinante os significados

atribuiacutedos agrave identidade quilombola neste grupo (MELLO 2012 p 50) A importacircncia

da noccedilatildeo de raccedila no contexto local remete ao processo de ldquooutrificaccedilatildeordquo a que a

populaccedilatildeo negra foi submetida no Brasil conforme analisado por Rita Segato ldquoser

negro significa exibir traccedilos que lembram e remetem agrave derrota histoacuterica dos povos

africanos perante os exeacutercitos coloniais e sua posterior escravizaccedilatildeordquo Enquanto

ldquoalteridade histoacutericardquo a experiecircncia de ldquoser outro no contexto da naccedilatildeo e da regiatildeordquo

69

(SEGATO 2005) eacute ainda mais sentida pelos membros do grupo em sua inserccedilatildeo na

regiatildeo Sul do Brasil onde a segregaccedilatildeo racial remonta ao projeto estatal de

branqueamento da populaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX Mas se antes natildeo se sabiam

ldquoquilombolasrdquo e ficavam calados como aponta Adir passaram entatildeo a se pronunciar

a partir do processo de autoidentificaccedilatildeo identitaacuteria que toma os deslocamentos como

marcos de uma histoacuteria de resistecircncia contiacutenua

Assim o ldquocaminhar quilombolardquo que orienta as narrativas locais no acircmbito do

processo de emergecircncia do grupo como sujeito poliacutetico tema deste capiacutetulo

questiona o cerne dos estereoacutetipos constituintes dos discursos colonial e poacutes-colonial

sobre a construccedilatildeo da alteridade nos termos de sua ldquodependecircncia em relaccedilatildeo ao

conceito de lsquofixidezrsquo Fixidez implica repeticcedilatildeo rigidez e uma ordem imutaacutevelrdquo como

observou o autor indiano Homi Bhabha (BHABHA 1998 p 70-104) Este discurso de

fixidez tem grande reverberaccedilatildeo dentre os agentes do Estado que satildeo aqueles que

instituem categorias para identificaccedilatildeo de sujeitos de direitos coletivos que passam

desta forma a ser objeto da accedilatildeo estatal o que Arruti entende por ldquoprocesso de

nominaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 45-46)

Tomando por base tal ideia de ldquofixidezrdquo a ldquopoliacutetica das identidadesrdquo tende a

captar e reduzir as expressotildees de ldquoidentidades poliacuteticasrdquo que foram engendradas

como resposta dos grupos sociais ao processo hegemocircnico e verticalizante de

produccedilatildeo de ldquoalteridades histoacutericasrdquo A autoidentificaccedilatildeo dos grupos de saiacuteda estaacute

sobredeterminada pela ldquopoliacutetica das identidadesrdquo que eacute institucionalizada legal e

administrativamente em torno da perspectiva de enraizamento territorial o que pode

implicar na perda da profundidade histoacuterica da complexidade de origem da riqueza e

da densidade ldquodas outredades localmente modeladasrdquo (SEGATO 2005) como no

caso de uma comunidade quilombola que se constroacutei a partir do movimento e natildeo na

relaccedilatildeo ancestral com um mesmo territoacuterio Identidade quilombola esta reivindicada

vale destacar pelo grupo que saiu da regiatildeo de origem

A partir destas narrativas e reflexotildees dos quilombolas em Guaiacutera os debates

do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold em seu livro Lines a brief history ganharam

relevacircncia para as anaacutelises desta dissertaccedilatildeo O autor traz exemplos de cosmologias

de grupos para os quais o movimento consiste em um modo de ser Este eacute o caso do

povo Inuit habitantes da regiatildeo do Aacutertico para os quais o ato de viajar define quem o

viajante eacute Neste sentido o viajante e a linha de seu movimento sua trilha satildeo o

70

mesmo Outro exemplo eacute do povo Walbiri estudado por Roy Wagner para os quais a

vida de uma pessoa eacute a soma de seus caminhos e a inscriccedilatildeo de seus movimentos

algo que pode ser traccedilado atraveacutes do chatildeo (INGOLD 2007 p 75-79)

Por mais efecircmeras que sejam essas trilhas permanecem na memoacuteria pois o

trajeto eacute mais do que a distacircncia de um ponto ao outro Implica em atividades

permanentes de interaccedilatildeo e de monitoramento perceptivo do ambiente visando a

sustentaccedilatildeo daquele que o percorre (INGOLD 2007 p 76) Observando uma estreita

ligaccedilatildeo entre locomoccedilatildeo e percepccedilatildeo Ingold define movimento como

(hellip) Not a casting about the hard surfaces of a word in which everything is already laid out but an issuing along with things in the very process of their generation not the trans-port (carrying across) of completed being but the pro-duction (bringing forth) of perpetual becoming (INGOLD 2011 p 12)

A partir dessa compreensatildeo de movimento Ingold elabora sua perspectiva do

habitar que perpassa a imersatildeo dos seres nas correntes do mundo da vida atraveacutes

da atenccedilatildeo e do engajamento com o ambiente em um movimento ao longo de um

caminho no qual as vidas satildeo vividas os talentos desenvolvidos as observaccedilotildees satildeo

feitas e as compreensotildees crescem Observaccedilatildeo implica movimento todos os seres

observadores satildeo animais e todos os animais satildeo moacuteveis O caminho deste modo eacute

a condiccedilatildeo primeira de ser ou melhor de se tornar jaacute que ldquowayfaring is the

fundamental mode by which living beings inhabit the earthrdquo (INGOLD 2011 p 09-12)

O autor reforccedila a prioridade dos processos contiacutenuos sobre a forma final na constante

coproduccedilatildeo do ambiente e de seus habitantes humanos e natildeo humanos Questiona

assim as premissas de uma antropologia sincrocircnica jaacute que esta desconsidera a

historicidade dos grupos sociais em suas trajetoacuterias A questatildeo poreacutem eacute mais ampla

pois tambeacutem eacute possiacutevel abordar a histoacuteria atraveacutes de lugares e eventos circunscritos

A ecircnfase seria em Ingold principalmente em dinacircmicas e processos os quais natildeo se

fixam em momentos ou locais especiacuteficos A anaacutelise de tais movimentos portanto

demandaraacute em sua abordagem uma perspectiva necessariamente diacrocircnica

Ingold dialoga com outras propostas teoacutericas da antropologia que buscam

superar o paradigma da fixidez em prol de anaacutelises que trabalhem com a fluidez59 O

59 Esta anaacutelise proposta por Ingold estaacute conectada com a influecircncia trazida para as discussotildees

contemporacircneas da Antropologia por meio do livro Mil Platocircs dos filoacutesofos franceses Deleuze e Guattari cuja primeira ediccedilatildeo eacute de 1980 Com o enfoque analiacutetico na complexidade na heterogeneidade na coexistecircncia nos processos os autores apontam para a importacircncia das

71

autor entende que a vida se desenvolve natildeo dentro dos lugares mas atraveacutes em

torno e a partir deles para outros lugares ao longo dos caminhos em trajetoacuterias de

movimento A ideia do que se pode tentar traduzir como ldquoviagem a peacuterdquo (wayfaring) eacute

utilizada entatildeo para descrever a experiecircncia corporal deste movimento

perambulatoacuterio pois eacute como ldquocaminhantesrdquo que os humanos habitam a terra O autor

prefere entatildeo conceituar as pessoas como ldquohabitantesrdquo e natildeo como ldquolocaisrdquo pois

seria equivocado supor que estas pessoas estivessem confinadas dentro de um lugar

particular ou que sua experiecircncia ficasse circunscrita pelo restrito horizonte de uma

vida vivida apenas ali Trata-se ao contraacuterio da ligaccedilatildeo entre lugares que ocorre por

meio das trilhas deixadas Onde as pessoas se encontram neste caminhar as trilhas

se entrelaccedilam formando um noacute O lugar portanto eacute como um noacute mais ou menos

denso de acordo com a quantidade de linhas de vida entrelaccediladas (INGOLD 2011

p 148)

Dentro deste modo de anaacutelise o siacutetio onde vivem os quilombolas de

GuaiacuteraPR pode ser entendido como um noacute de trilhas entrelaccediladas cuja origem

descreve uma linha de conexatildeo com o noacute originaacuterio Santo Antocircnio do ItambeacuteMG60 e

um outro noacute tambeacutem relevante na regiatildeo de Presidente PrudenteSP Natildeo uma

territorialidade fechada e circunscrita em Guaiacutera mas uma base territorial que

diferentes linhas que compotildeem uma multiplicidade Apesar de sua relevacircncia e profundidade teoacuterica iremos apenas mencionar que no que tange aos processos de territorializaccedilatildeo tema que se relaciona diretamente com a anaacutelise desta dissertaccedilatildeo a partir da ecircnfase no movimento haveraacute sempre um potencial de desterritorializaccedilatildeo e de reterritorializaccedilatildeo conforme as respostas agenciadas diante de elementos cuja interferecircncia gera novos contextos de modo que as configuraccedilotildees nunca satildeo fechadas Por outro lado ponderam que o aparelho do Estado enquanto ldquoo logos o filoacutesofo-rei a transcendecircncia da Ideia a interioridade do conceito a repuacuteblica dos espiacuteritos o tribunal da razatildeo os funcionaacuterios do pensamento o homem legislador e sujeitordquo natildeo compreende em sua atuaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo este tipo de dinacircmica presente por exemplo em praacuteticas como a do nomadismo (DELEUZE GUATTARI 2000 [1997] p 35) Neste sentido importante mencionar que a proacutepria descriccedilatildeo do funcionamento do rizoma modelo epistemoloacutegico nesta teoria filosoacutefica aponta para dinacircmicas de territorializaccedilatildeo e desterritorializaccedilatildeo e reterritorializaccedilatildeo Por um lado as linhas de segmentaridade que compotildeem o rizoma iratildeo estratificaacute-lo de modo a territorializaacute-lo e organizaacute-lo mas por outro o rizoma tambeacutem eacute composto por linhas de desterritorializaccedilatildeo linhas de fuga as quais podem reencontrar ldquoorganizaccedilotildees que reestratificam o conjuntordquo Resumidamente podemos entender o rizoma a partir da seguinte citaccedilatildeo ldquooposto a uma estrutura que se define por um conjunto de pontos e posiccedilotildees por correlaccedilotildees binaacuterias entre estes pontos e relaccedilotildees biuniacutevocas entre estas posiccedilotildeesrdquo O rizoma eacute feito somente de linhas ldquolinhas de segmentaridade de estratificaccedilatildeo como dimensotildees mas tambeacutem linha de fuga ou de desterritorializaccedilatildeo como dimensatildeo maacutexima segundo a qual em seguindo-a a multiplicidade se metamorfoseia mudando de naturezardquo (DELEUZE GUATTARI 2000 p 31) 60 Antes das viagens realizadas para Santo Antocircnio do Itambeacute e Serro em Minas Gerais no final da

pesquisa em marccedilo e junho de 2015 estas conexotildees permaneciam no plano da memoacuteria posteriormente o viacutenculo estaacute sendo reconstruiacutedo com os parentes que foram (re)encontrados

72

possibilitou a reproduccedilatildeo de uma comunidade61 que se entende aberta em uma

articulaccedilatildeo entre identidade parentesco e origem comum Importante destacar que

um elemento importante na construccedilatildeo desta identidade tambeacutem passa pela

possibilidade de movimento que surge atraveacutes de viagens que se tornaram frequentes

na vida da lideranccedila do grupo Adir em contato com agentes externos em encontros

reuniotildees audiecircncias etc Para seguir nas trilhas abertas pelos habitantes da

comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo se pode portanto

desconsiderar a importacircncia dessas relaccedilotildees externas inclusive para ldquoproduzir natildeo soacute

o a imagem do grupo mas o proacuteprio grupordquo

Nesta produccedilatildeo o exerciacutecio de representaccedilatildeo das ldquolideranccedilas peregrinasrdquo

em seu papel de porta-voz eacute fundamental ao ldquose fazerem conhecer por autoridades

extra-locaisrdquo atraveacutes do circuito das viagens e do paulatino domiacutenio da loacutegica de

mediaccedilatildeo (ARRUTI 1996 p 57) A busca por reconhecimento contatos acesso a

direitos projetos de futuro atraveacutes das lideranccedilas em constantes viagens podem ser

entendidas portanto como ldquoverdadeiras romarias poliacuteticasrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998

p 65) Pude acompanhar uma dessas viagens da lideranccedila do grupo Adir para a

participaccedilatildeo como delegado representando o estado do Paranaacute na Conferecircncia

Nacional de Educaccedilatildeo (CONAE)62 em novembro de 2014 que ocorreu em

BrasiacuteliaDF Durante o evento Adir me falou em uma entrevista sobre sua experiecircncia

com viagens para diversos encontros que destaca como um dos pontos mais

61 Se em relaccedilatildeo aos parentes que estatildeo fora a comunidade quilombola natildeo pode ser vista como

unidade fechada em relaccedilatildeo aos que estatildeo morando no territoacuterio vale ressaltar isso tambeacutem natildeo se sustenta O papel de lideranccedila de Adir apesar de natildeo haver candidato disposto agrave substituiacute-lo mesmo depois de sete anos na presidecircncia da ACONEMA colocaria segundo outros parentes me falaram seu nuacutecleo familiar numa posiccedilatildeo privilegiada Por outro lado Adir entende que sua atuaccedilatildeo como lideranccedila as constantes viagens para outras cidades ou mesmos os deslocamentos entre a comunidade e a sede do municiacutepio em Guaiacutera (distante vinte quilocircmetros do siacutetio) prejudica seu trabalho como agricultor e a possibilidade de dedicaccedilatildeo agrave sua ldquovida particularrdquo o que os outros parentes natildeo reconheceriam Haacute tambeacutem fissuras internas em relaccedilatildeo ao modo adequado de gerir a associaccedilatildeo e de lidar com os projetos e programas do governo que a comunidade acessa o que fica restrito a conversas indiretas e natildeo eacute explicitado em contextos mais amplos tendo em vista que mais do que um grupo poliacutetico trata-se de relaccedilotildees de convivecircncias diaacuterias de uma comunidade estruturada nos viacutenculos de parentesco Haacute tambeacutem visotildees dissonantes de projetos de futuro entre as geraccedilotildees sendo que os jovens satildeo criticados pelos mais velhos por natildeo valorizarem as ldquofacilidadesrdquo que eles teriam se comparado com a infacircncia e juventude de precariedade material que os adultos viveram Os jovens satildeo vistos como seduzidos por padrotildees de consumo por exemplo e distantes de Deus Apesar da relevacircncia das dinacircmicas internas natildeo me aprofundarei neste tema No entanto se enfatizo a dimensatildeo do grupo em distinccedilatildeo ao contexto local natildeo desconsidero essas fissuras internas e a criacutetica necessaacuteria a uma idealizaccedilatildeo do conceito de comunidade como unidade harmocircnica 62 Adir foi delegado com direito a voz e voto na Conferecircncia por indicaccedilatildeo estadual enquanto representante ldquodos movimentos de afirmaccedilatildeo da diversidaderdquo Dentro deste conceito estavam abarcados os seguintes movimentos ldquoLGBT movimento feminista movimento negro representaccedilatildeo quilombola representaccedilatildeo social dos povos indiacutegenasrdquo conforme regulamento da conferecircncia

73

positivos em relaccedilatildeo agrave inserccedilatildeo da comunidade no movimento quilombola O grupo

passou a ter contato com os oacutergatildeos puacuteblicos estaduais de modo que ele chegou a

fazer treze viagens em um mesmo ano para Curitiba capital do Paranaacute distante mais

de setecentos quilocircmetros de Guaiacutera

Tais viagens como reforccedilou Adir o transformaram profundamente e o

construiacuteram enquanto lideranccedila Nesta viagem para Brasiacutelia em novembro de 2014

jaacute era a quarta vez que Adir estava na capital nacional Segundo ele a primeira vez

que laacute esteve foi a viagem mais marcante pois as lideranccedilas quilombolas foram

recebidas no dia 20 de novembro o ldquoDia da Consciecircncia Negrardquo pelo entatildeo

presidente da repuacuteblica Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que estava comeccedilando a abrir a

porta para as comunidades quilombolas no governo federal Adir relata como por

meio desta participaccedilatildeo em encontros eventos reuniotildees foi aos poucos perdendo a

timidez que considera caracteriacutestica dos membros do grupo quando em contato com

pessoas de fora

Adir Comecei a se soltar um pouco mas na hora que eu falava eu tremia porque totalmente uma realidade diferente da que noacutes veve a nossa vida ali foi uma vida inteira soacute ali entre noacutes mesmos No mais as pessoas ali da cidade que a gente as vezes no comeccedilo a gente nem ia soacute vivia entre noacutes aiacute depois ter o conhecimento na cidade mas a vida pacata mesmo aquela vidinha laacute escondida Ai de repente acontece o reconhecimento da nossa comunidade aiacute eu comeccedilo a sair em busca de objetivo melhoria em vaacuterias aacutereas poliacuteticas puacuteblicas Ai comecei a conhecer pessoas de dentro do estado comecei a conhecer pessoas fora do estado e hoje eu tenho contato no RS SC MS BA um monte contato com outras comunidades quilombolas e aldeia indiacutegena

A caracteriacutestica de movimento como algo que empodera as lideranccedilas

tambeacutem estaacute presente na anaacutelise de Yara Alves em seu artigo Como etnografar um

mundo em que tudo gira gera e mexe sobre a comunidade quilombola de Pinheiro

no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais A relaccedilatildeo entre ldquoandanccedilasrdquo e ldquosabedoriardquo

eacute acionada pelos membros do grupo no contexto de sua inserccedilatildeo no movimento

quilombola a partir das experiecircncias das viagens a eventos realizadas pelas

lideranccedilas ao representarem a associaccedilatildeo63 (ALVES 2015 p 85) Deste modo as

63 A centralidade do movimento abrange tambeacutem outras formas e escalas de socialidade do grupo As

ldquosaiacutedas para trabalharrdquo que os conectam com a regiatildeo do interior de Satildeo Paulo municiacutepio de Barreirinha eacute um dos elementos que compotildeem movimentos muacuteltiplos ldquoencarados de maneiras diversas e altamente valorizados - um motor existencial muito mais do que um recurso econocircmicordquo

(ALVES 2015)

74

viagens feitas pelas lideranccedilas poliacuteticas adquirem uma dimensatildeo fundamental no

processo de emergecircncia eacutetnica dos grupos sociais

No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos portanto a

possibilidade de deslocamento constituiu a experiecircncia dos antepassados enquanto

estrateacutegia de conquista de condiccedilotildees melhores de vida para as famiacutelias e continua se

desdobrando na ativa atuaccedilatildeo da lideranccedila do grupo em viagens fora de Guaiacutera Eacute a

partir do processo de elaboraccedilatildeo identitaacuteria que ocorre a passagem de uma

experiecircncia de silenciamento para a possibilidade de se pronunciarem sobre a proacutepria

identidade e buscarem novos caminhos de reproduccedilatildeo social do grupo

13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE

A importacircncia das dinacircmicas de movimento para a Comunidade Quilombola

Manoel Ciriaco dos Santos que buscamos demonstrar ateacute aqui tambeacutem estaacute

presente na dimensatildeo da religiosidade dos membros do grupo tema que iremos tratar

neste subitem Na minha uacuteltima viagem a campo para Presidente PrudenteSP

realizada no iniacutecio de agosto de 2015 pude perceber como as relaccedilotildees entre

movimento e religiosidade estavam presentes na histoacuteria do grupo de um modo

marcante na proacutepria motivaccedilatildeo da saiacuteda de Manoel Ciriaco de Minas O intuito desta

viagem de campo foi visitar D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que haviacuteamos

encontrado em marccedilo morando em SerroMG e que em junho ajudamos a trazecirc-la

de mudanccedila para morar com a sobrinha D Jovelina em Presidente PrudenteSP

Nas outras duas viagens anteriores em que estive com D Ana em marccedilo e

em junho de 2015 natildeo havia tido oportunidade de conversar com ela sobre os motivos

que impulsionaram a saiacuteda de seu irmatildeo Manoel Ciriaco de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG em 1956 quando foi embora e nunca mais voltou Imaginando que ela

iria me falar das dificuldades de sobrevivecircncia de toda a famiacutelia na terra que era

heranccedila da matildee deles Izidora sou surpreendida com sua resposta ela conta que o

que desencadeou a saiacuteda de Manoel foi que ele ficou muito doente e assim que

melhorou resolveu ir embora O movimento inicial de deslocamento do grupo familiar

segundo me contou tinha sido impulsionado por causas maacutegico-religiosas

D Ana Raimunda Ele ficou doente depois a cabeccedila esquentou e saiu de laacute que laacute era bom e era ruim ficou doente demais doenccedila quase matou ele laacute mas Deus ajudou que

75

Dandara Mas era coisa feita pra ele

D Ana Raimunda Era ele oh (fez sinal com as matildeos)

Dandara Tinha tambeacutem desentendimento entre os parentes

D Ana Raimunda Tinha cascou fora foi bom ter vindo embora se natildeo ia mais de pressa neacute Entatildeo eles vieram e a gente ficou laacute rezando se apegando com Deus pra eles Demorou dar notiacutecia nossa ela (Izidora matildee de D Ana e Manoel) ficava chorando dia e noite eu falei natildeo chora natildeo que eles daacute notiacutecia e como deu neacute deu notiacutecia que tava bem graccedilas a Deus

Se ateacute agora analisamos os fatores sociais e econocircmicos que contribuiacuteram

para a decisatildeo de deslocamento destas famiacutelias neste momento da conversa com D

Ana vieram agrave tona informaccedilotildees sobre como dentro deste quadro social mais amplo

as tensotildees sociais internas foram decisivas e atuaram para o impulso de saiacuteda

Importante observar neste sentido que natildeo haacute uma reaccedilatildeo mecacircnica ao

desenvolvimento regional mas sim uma combinaccedilatildeo de fatores externos e internos

ao grupo familiar

A fala de D Ana aponta para uma acusaccedilatildeo de que Manoel teria sido alvo de

uma agressatildeo maacutegica com consequecircncias muito seacuterias pois quase o levou agrave morte

e que quando ele se recuperou dos efeitos deste enfeiticcedilamento64 deu na cabeccedila de

vir embora As dimensotildees maacutegico-religiosas nesta visatildeo de mundo especiacutefica

portanto podem gerar deslocamentos concretos

Neste momento do texto apresento alguns exemplos sinteacuteticos65 do modo

como a religiosidade implica em movimento concretos na trajetoacuteria de vida dessas

pessoas e tambeacutem estaacute permeada por movimentos natildeo concretos em seu cotidiano

Estes movimentos sutis se apresentam por exemplo no acircmbito das relaccedilotildees que satildeo

estabelecidas entre o humano e o divino como quando acionam a capacidade de se

64 Importante considerar que a histoacuteria sobre a morte de Manoel em GuaiacuteraPR tambeacutem eacute narrada como

resultado de um feiticcedilo Geralda me contou que foi uma pessoa bem proacutexima da famiacutelia que tinha muita inveja de Manoel porque eles tinham progredido ele era respeitado e querido na cidade Relatou que Manoel estava trabalhando na roccedila e foram buscar uma aacutegua para ele a seu pedido Soacute que o pessoal que estava na roccedila comeccedilou a achar estranho que estava demorando demais para voltarem e parecia ateacute que tinham ido furar o poccedilo D Ana falou com Manoel que ela estava esganado por aacutegua e por quecirc natildeo esperava chegar em casa A pessoa que fez o feiticcedilo entatildeo pegou um sapo raspou o couro dele e pocircs na aacutegua Daiacute Manoel bebeu mas os outros natildeo quiseram porque tinham cisma Com o passar do tempo ele comeccedilou a se sentir mal natildeo conseguia comer porque sentia gosto de areia a pressatildeo subia foi piorando sofreu muito ateacute que morreu Ressalta-se que estas natildeo foram as uacutenicas histoacuterias sobre feiticcedilo que me foram relatadas durante o trabalho de campo no entanto natildeo irei me deter neste assunto pois isso geraria uma dispersatildeo no texto 65 Natildeo eacute possiacutevel levando em conta o enfoque analiacutetico da dissertaccedilatildeo abordar as questotildees relativas

agrave religiosidade do grupo com a profundidade necessaacuteria em apenas um subitem Por isso iremos analisar sobre a religiosidade apenas alguns aspectos que satildeo relevantes para o conjunto do argumento do texto no que tange ao tema do movimento

76

deslocar entre mundos e conectar subjetividades temporalidades e espacialidades

distintas Os mortos os espiacuteritos as entidades os santos em suas diversas formas

de manifestaccedilatildeo satildeo agentes importantes e presentes no dia-a-dia dos quilombolas

As formas como suas praacuteticas de devoccedilatildeo satildeo interpretadas pelos vizinhos

consideradas como preconceituosas pelos quilombolas eacute tambeacutem uma dimensatildeo

importante Este preconceito que combina dimensotildees raciais e religiosas como

iremos analisar impulsionou a saiacuteda de Antocircnio filho de Manoel Ciriaco que realizava

trabalhos mediuacutenicos na comunidade Ele teve que ir morar na periferia de Guaiacutera

pois sua praacutetica espiritual como curador e meacutedium natildeo era aceita no bairro rural

ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo

A religiosidade importante destacar eacute uma esfera significativa de reproduccedilatildeo

da memoacuteria comunitaacuteria e do viacutenculo que o grupo manteacutem com a regiatildeo de origem

Aleacutem de narrativa (cognitiva) como analisamos no subitem anterior a memoacuteria eacute

tambeacutem performativa e corporal O reencenamento do passado na conduta presente

constitui uma ldquomnemocircnica do corpordquo66 muito caracteriacutestica nas culturas orais67

conforme analisado no livro Como as sociedades recordam do antropoacutelogo Paul

Connerton (CONNERTON 1999 p 86) Um dos aspectos interessantes desta

mnemocircnica corporal quilombola foi indicado por Geralda que trabalha como meacutedium

em um terreiro de Umbanda haacute mais de sete anos a experiecircncia da incorporaccedilatildeo de

entidades como os pretos-velhos permite a reativaccedilatildeo de memoacuterias dos espiacuteritos de

escravos

Tais espiacuteritos satildeo investidos de eficaacutecia e de autoridade para fornecer

conselhos de cura para os vivos quando incorporados nos meacutediuns Estas entidades

espirituais se apresentam no terreiro de Umbanda para lidar com todos os tipos de

problemas pessoais da clientela que frequenta o terreiro Enquanto ldquoculto de

possessatildeordquo a Umbanda eacute composta por um panteatildeo que integra ldquoalgumas entidades

do candombleacute aleacutem de novos estereoacutetipos como iacutendios preto-velhos tropeiros

66 Para aleacutem das histoacuterias narrativas nos interessam tambeacutem o processo de permanecircncia social

enfocado atraveacutes da noccedilatildeo de ldquomemoacuteria-haacutebitordquo enquanto capacidade de reproduzir determinada accedilatildeo que dentro da dimensatildeo social eacute ldquoingrediente essencial para o desempenho bem-sucedido dos coacutedigos e normasrdquo Haacute outras formas de lembrar por exemplo por meio de ldquoatos de transferecircncia que tornam possiacutevel recordar em conjuntordquo Trata-se de ldquotipos particulares de repeticcedilatildeordquo que ocorrem no acircmbito da ldquomemoacuteria comunalrdquo como vivenciado nas cerimocircnias comemorativas e nas praacuteticas corporais (CONNERTON 1999 p 44) 67 Em contraste com a cultura escrita caracterizada pela ldquopraacutetica de inscriccedilatildeordquo por meio da qual a

memoacuteria se reproduz atraveacutes dos ldquodispositivos de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilatildeordquo (CONNERTON 1999 p 84-87)

77

baianosrdquo Com profunda influecircncia do Espiritismo e do Catolicismo popular e derivada

em boa parte do Candombleacute a Umbanda deu cobertura para uma seacuterie de ldquopraacuteticas

miacutesticas populares altamente estigmatizadasrdquo Eacute a proacutepria marginalidade desses

espiacuteritos no que tange aos valores estabelecidos pelo sistema social hegemocircnico a

fonte da forccedila e da capacidade que possuem para resolver as afliccedilotildees humanas

(BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64-86)

A manifestaccedilatildeo dos pretos-velhos ou as pretas-velha espiacuteritos de velhos(as)

escravos(as) traz agrave tona temas da memoacuteria coletiva brasileira e da ideologia religiosa

que resiste agraves hierarquias alienantes do colonialismo e do capitalismo (MATORY

2007 p 405) A representaccedilatildeo sobre estes espiacuteritos enquanto importante siacutembolo da

identidade nacional abrange desde a submissatildeo resignada agrave resistecircncia heroica do

escravo (HALE 1997 p 393)

These spirits constitute sign vehicles through which Umbandistas interpret and explore themes of racism national identity domination suffering and redemption within a moral framework broadly informed by the values and motifs of popular Catholicism At the same time pretos velhos work a reciprocal semiotic movement through them these cultural discourses and collective memories constitute bodily experience by way of spirit possession and spirit performance (HALE 1997 p 393)

Eacute por meio dessa experiecircncia corporal vivenciada por Geralda

quinzenalmente como meacutedium na ldquoAssociaccedilatildeo Espiacuterita Reino de Baluaecircrdquo que ela faz

a associaccedilatildeo dos pretos-velhos com sua trajetoacuteria pessoal e familiar Enquanto

quilombolas agricultores ela compara o desgaste fiacutesico que tiveram em decorrecircncia

dessas atividades rurais com a experiecircncia dos pretos(as) velhos(as) quando viveram

na terra e trabalharam como escravos(as) Esta memoacuteria corporal se manifesta na

forma de incorporaccedilatildeo do meacutedium quando ldquoo controle social do corpo natildeo eacute

simplesmente abolido no transe mas substituiacutedo por outro controle o dos estereoacutetipos

corporais da incorporaccedilatildeo de cada entidade miacutesticardquo (BRUMANA MARTINEZ 1991

p 84) A maioria destas entidades exibem sinais caracteriacutesticos de idade e debilidade

fiacutesica caminham debruccediladas sobre suas bengalas com rigidez articular movimentos

trabalhados e pausados Ao incorporarem no meacutedium portanto apresentam um

ldquodesempenho corporalrdquo que passa por uma certa codificaccedilatildeo estereotiacutepica que as

identificam entre si e as distinguem das demais entidades atraveacutes de atributos

materiais como o cachimbo e o vinho doce podendo usar chapeacuteu de palha e lenccedilos

(BRUMANA MARTINEZ 1991 p 240)

78

Podemos pensar nas entidades da Umbanda enquanto mediadores entre

temas culturais mais abrangentes e a experiecircncia corporal Ademais aleacutem desta

codificaccedilatildeo a performance da possessatildeo espiritual vai ocorrer tambeacutem a partir de

uma ldquogramaacutetica da accedilatildeo socialrdquo a partir do contexto do proacuteprio meacutedium (HALE 1997

P 393) Assim os pretos-velhos podem ser analisados como veiacuteculos atraveacutes dos

quais

Umbandistas speak to and embody Brazilian dramas of race and power () Their bodies are worn-out from hard labor torture hunger and accident This is understood most of the time the physical signs stand as a mute reproach for the suffering inflicted by the allegedly benevolent system of Brazilian slavery (HALE 1997 p 395 397)

Geralda entende que eacute a partir dessa experiecircncia comum que ela ganha forccedila

como meacutedium para trabalhar com os(as) pretos-velhos(as) Segundo ela me contou

sobre as histoacuterias dessas entidades eles(as) cantavam para aliviar a dor de tanto que

apanhavam amarrados com a matildeo para traacutes e com os cantos louvavam a Nossa

Senhora Aparecida para que os ajudassem E completou ldquoera soacute no chicote ficavam

presos comendo aquele angu os restos quando a princesa Isabel libertou os

negros eles louvaram a Deusrdquo Ela se lembrou tambeacutem de como ouvia seus pais

contarem sobre os parentes que tinham trabalhado como escravos em Minas Gerais

e da avoacute Maria Bernarda que chorava e falava que eles natildeo tinham liberdade

O acionamento dos espiacuteritos dos antepassados dos negros representado de

um modo abrangente por estas entidades espirituais deste modo faz com que se

tornem mediadores da elaboraccedilatildeo identitaacuteria o que reforccedila a forccedila poliacutetica da

memoacuteria revivida nos rituais da Umbanda Este paralelismo construiacutedo na fala de

Geralda sobre a experiecircncia de trabalho racismo pobreza escravidatildeo em relaccedilatildeo agraves

entidades dos pretos-velhos foi se explicitando ao longo do trabalho etnograacutefico

Segundo ela como trabalhou muito catando algodatildeo sabe bem o que eacute o trabalho

duro e o porquecirc de os pretos-velhos serem encurvados pois era de tanto trabalhar na

roccedila no sol quente Eacute por causa da lembranccedila deste corpo torturado sujeito a um

sofrimento ilegiacutetimo que quando o preto-velho sai do corpo do meacutedium e

desincorpora eles te mata ocecirc de tatildeo sofrido que eles eram

79

FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildee o seu altar

Esta memoacuteria do sofrimento ilegiacutetimo do tempo da escravidatildeo se desdobra

em uma infeliz continuidade que se estende ao tempo presente Neste sentido haacute

uma reflexatildeo feita pelos quilombolas sobre como a pobreza assim como o racismo

institui uma realidade contraacuteria agrave vontade divina jaacute que foi Deus que nos deu esta cor

e todos somos irmatildeos perante a Ele Nesse sentido a cunhada de Geralda casada

com seu irmatildeo Joaquim Eva que eacute a principal referecircncia da praacutetica do catolicismo na

comunidade de Guaiacutera comenta sobre como passou a ter orgulho de sua cor

Eva Eu tenho o maior orgulho que eu sou preta eu natildeo tenho problema que eu sou preta natildeo Deus me deu esta cor e eu natildeo ligo natildeo () De primeiro eu tinha vergonha que eu era preta eu natildeo ligo que eu sou preta natildeo Deus fez eu assim eu tenho que ficar assim vou fazer o quecirc Natildeo tem como a pessoa mudar mais Eacute a vontade de Deus assim a cor da pessoa com sauacutede

A ideia de que haveria uma maior sacralidade dos negros eacute recorrente neste

grupo quilombola Liliana Porto encontrou uma concepccedilatildeo proacutexima nas suas

pesquisas no Vale do Jequitinhonha e aponta que ldquosatildeo os negros e pobres os

80

legiacutetimos representantes do divinordquo (PORTO 2007 p 143) Estas duas experiecircncias

de subalternidade a pobreza e o racismo muito presentes na histoacuteria do grupo

quilombola em Guaiacutera satildeo vistas por eles como recompensadas por Deus por outro

lado atraveacutes da presenccedila de dons mediuacutenicos e espirituais em vaacuterios membros da

famiacutelia como meacutediuns benzedores e adivinho Desde os meus primeiros contatos

com a comunidade ainda em 2011 quando eu era assessora do Ministeacuterio Puacuteblico

Geralda jaacute se identificara como umbandista e nos mostrou sua carteirinha do Conselho

Mediuacutenico do Brasil (CEBRAS)

FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil

As histoacuterias da manifestaccedilatildeo da mediunidade e dons de benzimento cura e

adivinhaccedilatildeo satildeo muito valorizadas internamente como um dom Seria como uma

missatildeo recebida do plano superior que coloca em movimento o acesso agraves fontes do

sagrado democratizando-o e provocando uma ldquorotinizaccedilatildeo dos milagresrdquo (BRUMANA

MARTINEZ 1991 p 23-25) A histoacuteria do finado Zeacute Maria eacute muito interessante

neste sentido Como me contou Geralda quando ele nasceu ele veio dentro de uma

espeacutecie de capa um envoltoacuterio que era um iacutendice reconhecido pelos adultos de sua

capacidade de adivinhaccedilatildeo um dom que ele jaacute veio trazendo porque Deus deu a ele

A parteira (Maria Inaacutecia das Dores matildee de Antocircnio e sogra de Geralda) que conhecia

o significado desta peculiaridade perguntou para D Ana matildee de Zeacute Maria se ela

81

queria guardar a capa mas a matildee disse que natildeo e esta foi enterrada Se tivesse sido

guardada quando ele completasse sete anos poderia ser confirmado seu dom

adivinhatoacuterio atraveacutes do seguinte desafio pegariam a roupa que ele usou quando

nasceu e colocariam no meio de outras Se ele adivinhasse qual era a que tinha usado

na ocasiatildeo de seu nascimento o seu dom estaria confirmado Mesmo este processo

natildeo tendo sido feito Geralda reforccedilou como ele era sabido e natildeo falava nada errado

ou seja o dom estaacute presente independente de um processo ritual de confirmaccedilatildeo

Haacute entre os membros do grupo a referecircncia mais forte dos seguintes

benzedoresbenzedeiras que jaacute faleceram e vieram de Minas Gerais morar em Guaiacutera

Ana Rodrigues (esposa de Manoel Ciriaco) Altina (tia de Ana Rodrigues irmatilde de sua

matildee Maria Bernarda) Maria Madalena (nora de Altina e sogra de Geralda) Geraldo

(filho de Altina e pai de Eva) Sobre Geralda sua matildee Ana Rodrigues benzeu muita

gente no ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo e depois falavam que a gente natildeo prestava

FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria68

68 Ela faleceu com 108 anos e segundo acreditam essa era sua idade miacutenima jaacute que ela foi registrada

em Minas Gerais e antigamente se demorava para fazer o registro da crianccedila

82

Segundo Geralda nascida em 1962 e criada em Guaiacutera no siacutetio os meus pais

criaram noacutes assim iam buscar remeacutedio na casa dos benzedor o que destaca o

aspecto maacutegico das concepccedilotildees de sauacutede e doenccedila na comunidade Os remeacutedios

eram predominantemente caseiros produzidos a partir da proacutepria mata como as

garrafadas os chaacutes o uso terapecircutico de uma diversidade de plantas medicinais A

restauraccedilatildeo da sauacutede neste contexto eacute permeada por uma concepccedilatildeo ampla que

natildeo se restringe a males com origens fiacutesicas mas perpassam uma seacuterie de ameaccedilas

miacutesticas como o mau-olhado o quebrante ateacute a feiticcedilaria que soacute podem ser revertidos

por meio de benzeccedilotildees simpatias curas recebidas espiritualmente ou no caso do

feiticcedilo com accedilotildees de defesa que anulem seus efeitos69 Um contexto semelhante eacute

analisado por Porto a partir da etnografia realizada proacuteximo da regiatildeo de origem do

grupo no Alto Jequitinhonha

No universo acima delineado a percepccedilatildeo do processo sauacutede e doenccedila eacute bastante complexa envolvendo uma seacuterie de avaliaccedilotildees em torno de questotildees religiosas maacutegicas e orgacircnicas e natildeo sendo evidente a separaccedilatildeo entre estas esferas () natildeo se baseia em uma distinccedilatildeo clara entre natural e sobrenatural Mesmo a distinccedilatildeo entre ldquodoenccedila de meacutedicordquo e ldquodoenccedila de curadorrdquo hoje existente me parece muito mais o resultado de um processo de especializaccedilatildeo dos serviccedilos de cura e a classificaccedilatildeo natildeo eacute necessariamente excludente (PORTO 2005)

Geralda ressaltou vaacuterias vezes em conversas comigo e tambeacutem pude

observar na minha estadia em sua casa a quantidade de pessoas que ela benze

neste caso ldquosozinhardquo aleacutem do benzimento que ela faz como meacutedium no terreiro Haacute

para ela um sentido de obrigaccedilatildeo como benzedeira em atender a todos que lhe

pedem ajuda Desde pequena relatou jaacute pediam para que ela benzesse mas ela natildeo

queria e fugia Quando comeccedilou a trabalhar na Umbanda a demanda de benzimento

69 Atualmente satildeo muito mais dependentes da aquisiccedilatildeo de remeacutedios e alguns frequentam meacutedicos

regularmente tanto no postinho do Maracaju onde haacute uma tarde disponibilizada na semana exclusivamente para os quilombolas Haacute tambeacutem casos que dependem dos deslocamentos promovidos pelo municiacutepio principalmente a Cascavel para tratamentos especializados agendados pelo SUS (principalmente Joaquim que tem problema na perna Eva e Geralda que tecircm problemas nos olhos) Adir e Joaquim fazem questatildeo de frisar que natildeo tomam remeacutedio de farmaacutecia e Nilza viuacuteva de Zeacute Maria me relatou que foi pouquiacutessimas vezes no meacutedico durante toda a sua vida Se por um lado a medicina busca se impor como discurso hegemocircnico por outro os especialistas populares de cura natildeo desaparecem bem como haacute manifestaccedilotildees de resistecircncia de algumas pessoas da comunidade em aderir a ida aos meacutedicos ou o uso de remeacutedios como tratamento (PORTO 2013a p 73)

83

aumentou bastante e as entidades lhe orientaram no sentido de que ela tinha que

benzer sem restriccedilatildeo para que pudesse ter a felicidade em sua vida70

Em relaccedilatildeo aos dons mediuacutenicos entre os membros da comunidade de

Guaiacutera satildeo mais citados os irmatildeos de Geralda ldquofinado Antocircniordquo ldquofinado Zeacute Mariardquo e

Joaquim Geralda e seu marido Antocircnio conhecido como Guaraacute Os pais de Geralda

seu Manoel e dona Ana segundo ela comentou jaacute frequentavam centro de umbanda

desde Minas Gerais mas natildeo trabalhavam O finado Antocircnio assassinado no comeccedilo

da deacutecada de 90 eacute a principal referecircncia de trabalhos mediuacutenicos tendo manifestado

seus dons desde crianccedila enquanto ldquouma capacidade inata para encontrar e incorporar

espiacuteritosrdquo sem necessidade de iniciaccedilatildeo para tanto (SANSI 2009 p 141)

Segundo Sansi as religiotildees afro-brasileiras incorporam a histoacuteria em suas

praacuteticas rituais atraveacutes da relaccedilatildeo dialeacutetica entre a iniciaccedilatildeo pela reproduccedilatildeo das

dinacircmicas da tradiccedilatildeo e o dom expresso na capacidade dos meacutediuns de

incorporarem novos espiacuteritos (SANSI 2009) A presenccedila de manifestaccedilotildees de

mediunidade entre os membros da comunidade quilombola em questatildeo abrange

essas duas possibilidades pois em alguns casos ela parte de um dom de

mediunidade que a pessoa jaacute trouxe desde a infacircncia e desenvolveu de modo

autocircnomo como no caso de Antocircnio e em outros casos esta capacidade de

incorporaccedilatildeo mediuacutenica dependeu de um processo de iniciaccedilatildeo na Umbanda como

na histoacuteria de Geralda

Esta matriz de religiosidade afro-brasileira71 natildeo eacute portanto dependente

unicamente da relaccedilatildeo com terreiros de Umbanda mas tambeacutem eacute resultado de uma

experiecircncia histoacuterica e cultural proacutepria da trajetoacuteria familiar Nesta trajetoacuteria familiar o

que poderia ser compreendido em outros contextos como catolicismo e umbanda

enquanto esferas distintas manifestam-se em um mesmo continuum de dinamicidade

70 Quando as pessoas vatildeo em sua casa pedir benzimento geralmente mulheres moccedilas e crianccedilas ela

pega o nome completo acende uma vela para o anjo da guarda daquela pessoa e pede para que os orixaacutes intercedam por ela Entatildeo benze com um ramo de arruda o que pode se repetir por trecircs dias consecutivos caso necessaacuterio Geralda entende que a proacutepria pessoa deve trazer a vela para que o pedido seja feito em sua intenccedilatildeo mas muitas vezes as pessoas natildeo trazem e ela se sente sobrecarregada pois acaba oferecendo a vela com seus proacuteprios e escassos recursos Natildeo haacute nestes casos uma reciprocidade pela ajuda realizada o que fere a proacutepria dinacircmica de oferecimento e recompensa que permeia a relaccedilatildeo com o sagrado em sua visatildeo 71 Segundo GOLDMAN uma definiccedilatildeo inicial sobre as ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo aponta para ldquoum

conjunto algo heteroacuteclito mas certamente articulado de praacuteticas e concepccedilotildees religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que ao longo da sua histoacuteria incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e praacuteticas indiacutegenas assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeiardquo (2009 p 106)

84

Nas histoacuterias sobre o finado Antocircnio seus irmatildeos contam como ele comeccedilou a se

desenvolver mediunicamente em casa sozinho e passou a realizar trabalhos em uma

casinha de coqueiro e tambeacutem dentro da mata do siacutetio com o apoio dos demais

irmatildeos que tambeacutem tinham o dom Geralda e Guaraacute lembraram que ele trabalhava

com baiano (baiano Juvenal) caboclo exu penacho boiadeiro Zeacute Pilintra preto-

velho pomba-gira e outros

Por motivo do preconceito religioso que sofreram da parte dos vizinhos que

os acusavam de macumbeiros feiticeiros coisa do capeta entre outros Antocircnio

resolveu se mudar do siacutetio deixar o conviacutevio cotidiano com sua famiacutelia para poder

trabalhar como curador e cumprir sua missatildeo primeiro em Terra Roxa e depois se

fixou na Vila Guarani periferia de Guaiacutera Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula me contou

sobre este processo

Joatildeo Soacute que eu sei que na vila Guarani Dandara oacuteia ele recebia muita gente Aqui nessa regiatildeo ele tirava em primeiro lugar ele que atingia mais gente nessa regiatildeo aqui Dandara Mais ateacute que esse terreiro hoje que a Geralda vai Joatildeo Mais porque ela (a matildee de santo D Penha) natildeo tinha aquilo ali antigamente O dela era bem mais pequeno Soacute que ela natildeo recebia o tanto de gente que meu irmatildeo recebia natildeo Ele recebia muita gente por dia Tinha dia que a gente chegava laacute e ele falava assim ldquooh eu tocirc ateacute agora natildeo almocei tomei um cafezinho aacutegua soacuterdquo Era gente do Mato Grosso Paraguai Cascavel toda regiatildeo Dandara vinha Esses dias atraacutes o Joaquim recebeu um cara aqui o cara vinha a procura dele Aiacute o Joaquim falou com ele ldquoOh infelizmente o meu irmatildeo faleceurdquo O cara saiu daqui de cabeccedila baixa Entatildeo tem muita gente ainda que natildeo sabe e sempre na cidade eles pergunta noacutes o que aconteceu que meu irmatildeo natildeo recebe mais ningueacutem aiacute noacutes falamos ldquonatildeo ele faleceurdquo Eu tenho tudinho guardado na lembranccedila tudinho tem o local laacute em cima na mata onde ele fazia os trabalhos dele Entatildeo tenho ateacute hoje e foi uma desde pequeno que a gente vem nessa religiatildeo da Umbanda soacute que a gente assim Dandara natildeo vecirc assim tem gente que vecirc a Umbanda como se fosse assim ah a religiatildeo do democircnio outros natildeo vecirc como uma boa coisa mas a gente vecirc assim que vocecirc mesmo vocecirc pode assistir laacute natildeo sei se vocecirc pocircde assistir um trabalho Natildeo eacute coisa do outro mundo Que tem muitos que vecirc aquilo ali e meu deus do ceacuteu eacute coisa que que vai acabar com tudo Natildeo eacute Sempre a gente fala mesmo assim pra jogar pedra eacute faacutecil mas vocecirc tem que ver primeiro as coisas pra depois vocecirc estar criticando Porque essa religiatildeo a gente foi muito criticado por causa disso ai mesmo Quando ele (Antocircnio) trabalhava aqui teve uma eacutepoca que a gente teve que trabalhar escondido porque os pessoal natildeo podia saber que natildeo eles ia falava ldquoaqueles ali tatildeo mexendo tudo eles satildeo macumbeiro eles satildeo feiticeirordquo Soacute que a gente natildeo trabalhava pro mal porque foi um dom que ele recebeu neacute mas eles via aquilo ali e nossa Aiacute ele falava assim ldquoNatildeo eu sou obrigado a trabalhar escondido pra ningueacutem ficar sabendordquo

85

Geralda eacute a irmatilde que daacute continuidade como meacutedium para os trabalhos de seu

irmatildeo Antocircnio atualmente Um siacutembolo desta vinculaccedilatildeo de forccedila e missatildeo eacute uma

guia (colar) com as sete linhas da Umbanda que ela recebeu de Antocircnio e que natildeo

tira do pescoccedilo haacute mais de vinte anos Geralda me disse que vai fazer um terreiro

ainda que isso eacute um desejo que ela vai realizar Ela (52 anos) e seu marido que

tambeacutem se chama Antocircnio (49 anos) frequentam a Associaccedilatildeo Espiacuterita Reino de

Baluaecirc72 localizada no Municiacutepio de Terra RoxaPR (vizinho agrave Guaiacutera)73

FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da ldquogirardquo

72 Disponiacutevel em wwwreinodebaluaecombr Acesso em 20082014 73 As ldquogirasrdquo nome dado ao ritual central da Umbanda aberto para que as pessoas se consultem

diretamente com as entidades (principalmente preto-velho caboclo e vaacuterias formas de Exu) ocorrem aos saacutebados duas vezes no mecircs Geralda eacute meacutedium de incorporaccedilatildeo e Guaraacute estaacute girando ainda ou seja estaacute sendo preparado para que possa incorporar Enquanto isso ele daacute suporte agrave muacutesica por meio do pandeiro ou tambor que satildeo muito importantes nas chamadas que satildeo feitas para que as

entidades baixem no terreiro

86

Geralda fala do desenvolvimento de sua mediunidade como um mandato

espiritual pois se fosse por ela natildeo queria ter desenvolvido este trabalho o qual

implica em muitas obrigaccedilotildees e restriccedilotildees pois jaacute estava cansada pelo tanto que

trabalhara na roccedila em serviccedilo pesado a vida inteira Antes de comeccedilar a trabalhar

ela jaacute frequentava o terreiro para buscar atendimento e ficava na assistecircncia de onde

as pessoas que natildeo fazem parte do corpo de trabalho da casa observam a sessatildeo e

satildeo beneficiadas por ela Chegou um tempo em que ela comeccedilou a sentir muita

fraqueza colocava a panela no fogo e tinha que deitar Quando foi consultar no terreiro

para ver o que era a Matildee de Santo que eacute o cargo mais alto da hierarquia da Umbanda

(eacute quem tem e manteacutem o terreiro) lhe disse que teria que trabalhar como meacutedium

caso contraacuterio ela soacute iria piorar e ldquodava seis meses tava morta porque tinha que ter

algueacutem pra substituirrdquo O diagnoacutestico da doenccedila portanto como eacute muito comum nas

histoacuterias dos meacutediuns indicou a interferecircncia de um espirito no sentido da

necessidade do desenvolvimento da mediunidade da pessoa com seu consequente

ingresso na Umbanda (BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64)

Geralda e seu marido Antocircnio (Guaraacute) fazem pedidos e oferecem retribuiccedilotildees

agraves entidades recorrentemente em um quarto de sua casa que aliaacutes era o quarto que

eu dormia quando fiquei hospedada com eles Quando eu ia me deitar geralmente

esperava a vela apagar o cigarro acabar e eles retiravam as oferendas para que eu

pudesse me deitar Essa experiecircncia me provocava sensaccedilotildees diferentes e

impactantes quando eu pensava que aquele quarto estava povoado por relaccedilotildees e

seres invisiacuteveis Esse processo de comunicaccedilatildeo entre pessoas e entidades e qual

entidade estava sendo acionada em determinado dia natildeo me era relatado apenas

algumas informaccedilotildees eram mencionadas mas sempre encobertas por um ar de

misteacuterio enquanto conhecimento iniciaacutetico Importante eacute perceber apesar de eu natildeo

poder me aprofundar neste tema agora que a Umbanda nesta dinacircmica de interaccedilatildeo

recupera a reciprocidade como valor de modo que o dar-e-receber atua ldquocomo um

princiacutepio moral fundamental que une todos os homens entre si e toda a humanidade

viva com uma humanidade morta este mundo com o outro e os homens com os

Orixaacutesrdquo (BRUMANA MARTINEZ 1991 p 25)

Geralda questionou em conversas comigo o porquecirc de algumas pessoas

terem inveja dela no terreiro como uma outra meacutedium com quem teve um seacuterio

desentendimento Na avaliaccedilatildeo de Geralda uma mulher branca de classe meacutedia que

87

tem um carro e sabe dirigir tem muito mais reconhecimento na sociedade do que ela

que sendo ldquopreta e pobrerdquo em seus proacuteprios termos sabe que ocupa na classificaccedilatildeo

social hegemocircnica o lugar menos privilegiado No entanto por outro lado Geralda

reconhece que possui uma forccedila que esta sua mesma origem lhe confere uma forccedila

que eacute miacutestica podemos dizer e que estaacute ligada agrave feacute e agrave proteccedilatildeo que recebe dos seus

Orixaacutes74 o que tambeacutem eacute valorizado pelo Pai de Santo do terreiro que ela frequenta

Pude perceber que o reconhecimento em relaccedilatildeo ao papel de Geralda que lhe

eacute conferido pelos seus vizinhos da ldquoEletrosulrdquo enquanto benzedeira meacutedium de um

terreiro com sabedoria e capacidade de orientaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo valorizado no acircmbito

de sua proacutepria famiacutelia Se Adir eacute quem tem o manejo como mediador com os agentes

externos para realizar as articulaccedilotildees poliacuteticas ela desde o comeccedilo da minha

estadia estava me dizendo nas entrelinhas que era quem possuiacutea o manejo como

mediadora junto aos espiacuteritos e agraves forccedilas miacutesticas Ela eacute quem domina atualmente a

esfera da religiosidade afro-brasileira a qual embora seja em algumas situaccedilotildees

acionada como um siacutembolo para a afirmaccedilatildeo da identidade negra e quilombola do

grupo natildeo aparece de modo tatildeo expliacutecito como por exemplo a capoeira praacutetica que

tambeacutem remete a esta ldquomnemocircnica do corpordquo (CONNERTON 999 p 86)

Deve-se levar em conta que o tema da religiosidade afro-brasileira eacute ainda

muito delicado pois vinculado a um forte preconceito racialreligioso presente na

sociedade brasileira Jaacute a capoeira eacute um marcador negro muito menos polecircmico e cuja

performance da roda se consolidou como modo de apresentaccedilatildeo da comunidade

quilombola nas visitas feitas pelas escolas Este natildeo acionamento da Umbanda como

elemento diacriacutetico enquanto quilombolas remete ao fato de esta religiatildeo que

apresenta aspectos de influecircncia africana e que remete agrave experiecircncia negra no Brasil

eacute tambeacutem um motivo de estigmatizaccedilatildeo para o grupo como explicitado na fala acima

de Joatildeo sobre a saiacuteda de Antocircnio do siacutetio pelas acusaccedilotildees que recebia tendo que

desenvolver seu trabalho como meacutedium na periferia de Guaiacutera

Neste sentido interessante refletir sobre a dinacircmica que se estabeleceu no

Brasil entre religiosidade magia e preconceito racial jaacute que ldquoa visatildeo construiacuteda do

negro e de sua religiatildeo os vincula a caracteriacutesticas natildeo soacute desvalorizadas mas

74 Ela estaacute sempre dizendo que se natildeo fossem os seus Orixaacutes lhe ajudando ela natildeo sabe como

conseguiria dar conta de todas as suas atribuiccedilotildees cotidianas jaacute que tem a sauacutede fraca desde pequena o que se agravou de tanto trabalhar aleacutem de um problema especiacutefico nos olhos

88

tambeacutem socialmente condenadasrdquo75 Construiu-se assim um sistema classificatoacuterio

elaborado a partir da perspectiva dicotocircmica entre bem e mal no qual as religiotildees

cristatildes figuram no polo do bem e enquanto modelo branco satildeo vistas precisamente

como religiotildees Jaacute as religiotildees afro-brasileiras aparecem no polo oposto entendidas

ao contraacuterio como feiticcedilaria ou ldquomacumbariardquo ou seja em alusatildeo ao mal (PORTO

2014187-190) Deste modo este viacutenculo entre preconceito racial e preconceito

religioso somado agrave ldquocondenaccedilatildeo moral da magiardquo a partir da identificaccedilatildeo feita com

ldquoo uso da magia maleacutefica ndash feiticcedilaria ou lsquomagia negrarsquordquo remonta a processos histoacutericos

do periacuteodo colonial Eacute ainda no Brasil colocircnia que se consolida o medo do feiticcedilo no

Brasil direcionado por meio de acusaccedilotildees feitas pelos sujeitos legitimados do sistema

dominante branco e catoacutelico aos natildeo brancos indiacutegenas e negros ou seja aos que

constituiacuteam as alteridades deste modelo (PORTO 2014 191) A imagem do negro

portanto eacute elaborada pela elite a partir de estereoacutetipos negativos que se reforccedilam e

que constroem seu lugar marginal na sociedade Evidencia-se assim a importacircncia

do preconceito para a manutenccedilatildeo da ordem vigente por atribuir argumentos que

legitimariam a exclusatildeo e exploraccedilatildeo desta camada da populaccedilatildeo

O caso do grupo quilombola em questatildeo eacute relevante notar articula estas

referecircncias de religiotildees de matriz afro-brasileiras com expressotildees do catolicismo

popular ou mesmo com o que podemos chamar de ldquocatolicismo negrordquo Esta

articulaccedilatildeo eacute muito presente na religiosidade de Eva quilombola de 50 anos que eacute

detentora de vasta memoacuteria da histoacuteria do grupo76 Ela mora no siacutetio desde seus dois

anos de idade quando seus pais Geraldo e Antocircnia migraram de Satildeo Paulo para o

Paranaacute junto com as demais famiacutelias Eacute casada com Joaquim filho de Manoel Ciriaco

com quem possui certo grau de parentesco consanguiacuteneo (primos de terceiro grau)

Sua devoccedilatildeo eacute reconhecida pelas demais pessoas simbolicamente no fato de ela

cumprir seu ritual cotidiano de rezar o terccedilo de joelhos todos os dias agrave noite depois

de jaacute ter rezado de manhatilde vinte ave-marias (por isso os dois joelhos dela estatildeo

75 A reafirmaccedilatildeo do preconceito teve papel fundamental no momento em que foi abolida a escravidatildeo

no paiacutes sendo que a religiosidade negra eacute um dos pilares que o sustenta Como se pode observar na associaccedilatildeo estrateacutegica realizada por meio da criminalizaccedilatildeo de praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras no Coacutedigo Penal de 1890 Interessante notar neste sentido que apesar de os elementos maacutegico-religiosos marcarem toda a religiosidade nacional sua identificaccedilatildeo ficou restrita aos sujeitos natildeo brancos (PORTO 2014 200-201) 76 Lembrando inclusive o ano em que os fatos preteacuteritos aconteceram data de aniversaacuterio de muitos

parentes Eva conversa tranquilamente sobre a genealogia da famiacutelia sabendo contaacute-la a partir da histoacuteria de fixaccedilatildeo do grupo no Paranaacute

89

marcados com uma espeacutecie de calo como lembrou sua filha Jaqueline enquanto

conversaacutevamos sobre este assunto)77

Ademais ela frequenta com seu marido Joaquim (55) e suas duas filhas

Jaqueline (20) e Janaina (14) as missas em Guaiacutera apenas uma vez por mecircs apesar

de que gostaria de poder ir mais frequentemente Isso se torna difiacutecil devido ao

dispecircndio com o combustiacutevel necessaacuterio para percorrer o trecho entre o bairro rural

Maracaju dos Gauacutechos e a sede do Municiacutepio distante 20 km Por muitas vezes natildeo

poder se deslocar ela utiliza aleacutem do raacutedio a televisatildeo que transmite missas e

terccedilos78 Antes do conflito ocorrido entre o grupo e os proprietaacuterios vizinhos79 o qual

foi desencadeado pelo processo administrativo de regularizaccedilatildeo quilombola eles

frequentavam a igreja do ldquoMaracajurdquo o que se tornou insustentaacutevel para o grupo Eva

me explicou como ldquoficava sem jeito de ir para a igrejardquo

Dandara Como que foi essa saiacuteda Eva Isso aiacute porque as turma ficou com raiva de noacuteis por causa do negoacutecio do INCRA aiacute cara feia pra noacutes sei laacute eu ficava sem jeito pra ir na Igreja neacute as turma falava assim ldquoah pode ir eles natildeo pode toca ocecircs da igreja a igreja eacute puacuteblica a igreja eacute pra todo mundordquo ningueacutem pode tocar a gente da igreja mas a pessoa fica com vergonha de ir neacute porque eles natildeo conversa com a pessoa nem nada como eacute que a gente vai na igreja Dandara E o padre assim vocecirc sentiu alguma coisa da parte do padre Eva Ah o padre acho que puxava mais pras turma ele veio uma vez na comunidade aqui ele rezou a missa nem conversou muito com noacutes conversou pouco e quando noacutes puxou no assunto aqui das turma ele escapou fora foi embora e natildeo vortocirc mais Dandara A Sra imagina de ter uma igreja aqui Eva Meu sonho menina eacute ter uma Igreja aqui eu falo pro Adir direto eacute meu sonho que tivesse uma igreja perto direto eu tava na igreja

77 Tambeacutem ouve diariamente pelo raacutedio o programa ldquoExperiecircncia de Deusrdquo apresentado pelo Padre

Reginaldo Manzotti enquanto organiza a cozinha em seu ritmo hoje mais lento devido a seu problema de visatildeo Este programa tem uma hora de duraccedilatildeo e conta com a participaccedilatildeo de ouvintes leitura biacuteblica que Eva acompanha com sua biacuteblia em matildeos aleacutem da realizaccedilatildeo de novena 78 Eva contou que na sexta-feira santa como ela natildeo pocircde ir na ldquoprocissatildeo do Senhor Mortordquo ela

benzeu pela tv um ramo de aacutervore Esta procissatildeo antigamente era acompanhada por muitas pessoas do grupo e ldquouma renca de gente aqui da comunidade ia a peacute ateacute Terra Roxardquo municiacutepio vizinho agrave Guaiacutera cuja sede fica mais proacutexima ao siacutetio Os meios de comunicaccedilatildeo de massa portanto satildeo utilizados como em outras comunidades tradicionais com presenccedila de catoacutelicos para que se possa ter acesso a ritos religiosos e praacuteticas em certa medida maacutegicas como a benzeccedilatildeo de aacutegua 79 O tema do conflito ocorrido em 2009 e 2010 com os proprietaacuterios vizinhos seraacute abordado no proacuteximo

capiacutetulo

90

Apesar de natildeo poder mais frequentar a igreja com a frequecircncia que gostaria

isso natildeo diminui a vivecircncia cotidiana que ela tem de sua feacute Por outro lado as pessoas

do Maracaju dos Gauacutechos que estatildeo indo na igreja na visatildeo de Eva natildeo tecircm uma

atitude cristatilde Isso porque mesmo dentro da missa satildeo movidos por sentimentos de

discriminaccedilatildeo e de orgulho o que acabou fazendo com que os membros da

comunidade natildeo se sentissem mais confortaacuteveis para continuar frequentando tal

igreja

Em relaccedilatildeo ao preconceito racial que ateacute hoje sofrem no ldquoMaracaju dos

Gauacutechos ele se estende inclusive a Nossa Senhora Aparecida santa negra de quem

a comunidade eacute devota Neste sentido Joaquim me contou uma histoacuteria sobre uma

senhora que havia se mudado para bairro rural e que tinha feito uma promessa para

Nossa Senhora Aparecida Ela foi de ocircnibus com a famiacutelia agrave Basiacutelica em AparecidaSP

e de laacute trouxe uma imagem e tinha o desejo de colocaacute-la na igreja do Maracaju Mas

como a maioria dos moradores satildeo descendentes de imigrantes europeus com

atitudes consideradas racistas pelos quilombolas eles natildeo aceitaram a santa

alegando que ela era a ldquoNossa Senhora dos Morcegosrdquo em referecircncia a ser uma santa

negra Joaquim concluiu afirmando que se eles tinham raiva da santa que natildeo lhes

poderia fazer nenhum mal ele imaginava entatildeo o quanto tinham raiva das pessoas

da comunidade Mas ele acrescentou que posteriormente houve outra pessoa que

fez uma promessa e que entatildeo eles acabaram tendo que aceitar colocar a santa na

igreja do Maracaju Nossa Senhora Aparecida eacute natildeo somente negra mas tambeacutem a

padroeira do Brasil A devoccedilatildeo a ela eacute muito grande em todo o paiacutes (sendo um

exemplo a relevacircncia das romarias a Aparecida do Norte inclusive entre os membros

do grupo) A recusa agrave santa negra eacute sentida de uma forma particular pela comunidade

mas a resistecircncia dos vizinhos europeus natildeo pode se sustentar embora natildeo tenha

sido vencida por um membro da comunidade mas por uma pessoa natildeo identificada

Importante neste momento pontuar que uma anaacutelise aprofundada das

concepccedilotildees e praacuteticas religiosas da comunidade demandaria um capiacutetulo inteiro desta

dissertaccedilatildeo No entanto objetivo analisar neste subitem alguns aspectos dentro

deste universo religioso que sobressaem atraveacutes das dinacircmicas de movimento

(concretas e natildeo-concretas) e de comunicaccedilatildeo entre expressotildees religiosas Durante

o trabalho de campo fui me tornando mais atenta para situaccedilotildees e narrativas que

apontavam como as percepccedilotildees quilombolas sobre diferentes praacuteticas religiosas natildeo

91

eram descontiacutenuas ou antagocircnicas mas permeadas por diaacutelogos permanentes e

proacuteximos o que eacute comum observar em contextos de religiosidade popular80 O

movimento tambeacutem permeia a accedilatildeo religiosa dos membros da comunidade por meio

da praxe dedicada agrave circulaccedilatildeo entre pessoas e santos (permeada por promessas)

bem como em relaccedilatildeo agraves entidades da umbanda (por meio de pedidos oferendas e

obrigaccedilotildees) Esta dimensatildeo relacional vai tecendo uma socialidade comum entre

sujeitos que embora hieraacuterquica natildeo eacute irrevogaacutevel Em contraposiccedilatildeo a dinacircmica

estabelecida entre Deus e fiel eacute constituiacuteda pela distacircncia equivalente agrave relaccedilatildeo entre

sujeito e objeto (CALAVIA SAEZ 2009 p 204-205) As viagens rituais para o

pagamento de promessas para o santuaacuterio de Nossa Senhora Aparecida localizado

no municiacutepio de AparecidaSP tambeacutem apontam para a importacircncia do movimento no

contato com o sagrado como nas experiecircncias de peregrinaccedilatildeo e romaria (TURNER

2008 p 155-214)

Haacute muitas histoacuterias no grupo de promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida

que foram atendidas Uma delas a primeira que Eva me contou foi feita por sua sogra

Ana Rodrigues esposa de Manoel Ciriaco Interessante notar que quando Eva foi me

contar como a promessa veio a se cumprir ou seja quando Joaquim enfim conseguiu

parar de beber o contexto passou a trazer elementos e entidades da Umbanda

demonstrando a continuidade a que nos referimos acima D Ana pediu agrave santa que

seu filho Joaquim marido de Eva parasse com o viacutecio com bebidas alcoacuteolicas

Mandou entatildeo fazer uma capelinha para a imagem da santa e quando Eva e Joaquim

se casaram ela lhes deu de presente A cura de Joaquim do viacutecio no entanto veio

de um modo inesperado e assustador Tudo aconteceu quando Joaquim tinha parado

de fazer suas obrigaccedilotildees com os Orixaacutes pois costumava ascender vela e defumar a

casa Um dia ele incorporou ldquoSeu Tranca Ruardquo (Exu) que chegou e falou para Eva

que iria jogar seu ldquopeacute-de-calccedilardquo81 embaixo de quatro rodas Neste momento a

entidade estava se referindo ao fato de que ela iria provocar um acidente com o seu

cavalo (o meacutedium) ou seja Joaquim E o que a entidade falou acabou acontecendo

80 Segundo a criacutetica do antropoacutelogo Calavia Saez ldquoa religiatildeo popular eacute a religiatildeo normal natildeo uma

versatildeo empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiecircncia ndash algo que boa parte dos estudos sobre religiatildeo subalterna manifesta agrave revelia do paradigma em que se desenvolvemrdquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 201) 81 Essa expressatildeo ldquopeacute-de-calccedilardquo eacute utilizada no terreiro de Umbanda para se referir aos homens como me explicou Geralda Depois que eu assisti uma gira no seu terreiro e me consultei com a Preta-Velha que ela tinha incorporado Geralda me esclareceu a duacutevida sobre o significado dessa expressatildeo que a entidade tinha falado para mim

92

Eva me contou que um dia quando Joaquim estava becircbado ele e seu irmatildeo Adir

estavam lidando com o trator quando Joaquim caiu e o trator acabou passando em

cima da perna dele Ele soacute natildeo perdeu a perna neste acidente porque estava com

uma calccedila jeans nova que resistiu e protegeu a perna que ficou pendurada Eva

sonhou com Nossa Senhora Aparecida que lhe disse que natildeo seria necessaacuterio

amputar a perna dele Joaquim ficou vaacuterios dias no hospital e depois por meses em

recuperaccedilatildeo em casa Soacute assim com o susto provocado pelo acidente com o trator

que Joaquim parou de beber e a promessa da sua matildee foi entatildeo atendida

FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana

Pode-se observar portanto que haacute uma comunicaccedilatildeo total entre estes seres

no universo maacutegico-religioso do grupo em uma histoacuteria em que a entidade da

Umbanda um Exu aparece como mediadora para o cumprimento de uma promessa

feita para Nossa Senhora Aparecida o que aponta um marcador de identidade

significativo em contraponto com um ldquooutro catolicismordquo dos vizinhos

O pai de Eva Geraldo tambeacutem foi um dos beneficiados com as graccedilas de

uma promessa atendida por Nossa Senhora Aparecida em mais uma relaccedilatildeo pessoal

bem-sucedida entre santos e fieacuteis Segundo Eva me contou ele pediu agrave santa para

que fosse capaz de aprender a ler e a escrever e que conseguisse comprar um pedaccedilo

93

de terra Aleacutem de ter aprendido o que pediu esse pedaccedilo de terra conquistado foram

os cinco alqueires que ele comprou no Maracaju dos Gauacutechos Deste modo esta

promessa aparece como um mito de origem da comunidade que fortalece a devoccedilatildeo

a Nossa Senhora Aparecida jaacute confirmada por outras promessas atendidas que me

foram narradas

FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP

Eva me contou tambeacutem sobre quando ela e Joaquim foram em romaria a

Basiacutelica de Nossa Senhora Aparecida em AparecidaSP82 para pagar a promessa que

ele tambeacutem tinha feito para que ele conseguisse parar de beber Ela percebeu

sensaccedilotildees fiacutesicas diferentes ao chegar laacute o que reforccedila o sentimento de que se estaacute

diante de um local sagrado o corpo fica leve e a pessoa natildeo tem pensamentos

82 O Santuaacuterio Nacional eacute o ldquomaior santuaacuterio mariano do mundordquo construiacutedo em 1955 ldquoPreocupados

em providenciar o jantar para o poderoso Conde de Assumar de passagem pela Vila de Guaratinguetaacute trecircs pescadores retiraram com suas redes do Rio Paraiacuteba do Sul uma imagem de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo A imagem ficou abrigada durante anos na casa de um dos pescadores ateacute que em 1745 foi construiacuteda uma capela no Morro dos Coqueirosrdquo Disponiacutevel em httpaparecidaspgovbrhistoria-da-cidade Acesso em 01092014

94

Contou que era preciso pagar trecircs reais para subir ateacute o local onde fica a imagem da

santa que foi encontrada no rio onde tambeacutem ficam expostas as correntes dos

escravos Eva assim como Joaquim entende que eacute possiacutevel circular entre as religiotildees

e que se deve respeitar a todas Faz tempo que ela natildeo vai no terreiro de Umbanda

mas jaacute frequentou e sabe contar em quais dias satildeo realizadas as festas das entidades

como Preto Velho Cosme e Damiatildeo e Zeacute Pilintra Em sua casa possui uma imagem

de Satildeo Cosme e Damiatildeo os santos gecircmeos sincretizados com os orixaacutes ibejis

divindade gecircmea na mitologia yorubaacute (PRANDI 2001366-377)

Quando fui ao terreiro de Umbanda com a Geralda como estava ficando na

casa de Eva e Joaquim no siacutetio conversamos sobre este assunto quando voltei

Joaquim entatildeo contou-me sobre uma mulher de Terra Roxa municiacutepio vizinho que

antes de plantar oferecia as ervas para cada santo e entatildeo a muda dava ldquoTudo tem

um misteacuteriordquo e aquelas pessoas que tecircm matildeo boa sabem disso portanto quando vai

fazer o plantio do milho por exemplo eacute importante ter feacute para ter uma boa colheita Eacute

necessaacuterio ter matildeo boa tambeacutem para fazer o patildeo crescer para fazer vinagre de

mamona e para fazer sabatildeo83 reforccedilando como a intenccedilatildeo da pessoa que prepara

interfere no resultado obtido Eva tambeacutem eacute conhecedora da preparaccedilatildeo de

garrafadas que satildeo remeacutedios caseiros ensinados pelos antigos Mesmo entre aqueles

que natildeo frequentam atualmente terreiro de Umbanda percebe-se como a

religiosidade eacute maacutegica e eacute permeada por ritos de proteccedilatildeo relacionados com um

ldquocatolicismo negrordquo brasileiro

Ao olhar para o futuro Eva fala de uma mudanccedila que ocorreraacute na percepccedilatildeo

sobre as religiotildees pois segundo me contou no Apocalipse o fim do mundo estaacute

anunciado que todas as religiotildees seratildeo uma soacute jaacute que Deus eacute um soacute Este Deus uacutenico

aponta como sua a concepccedilatildeo de religiatildeo tem por base o cristianismo

Eva Eu Dandara natildeo desfaccedilo de nenhum tem gente que natildeo gosta assim de esprito assim os evangeacutelico tem gente que natildeo gosta Eu natildeo pra mim tudo eacute um soacute Tem gente que fala ldquoah eu natildeo gosto de crenterdquo Eu natildeo eu natildeo falo Porque quando no fim do mundo ateacute o pastor falou isso a igreja vai ser tudo uma soacute vai unir todo mundo junto Deus natildeo separou ningueacutem neacute Deus eacute um soacute Tem gente que natildeo acredita Eu natildeo eu natildeo desfaccedilo de nenhuma eu gosto tudo igual

83 Nesse sentido interessante que na pesquisa realizada por Cambuy na comunidade quilombola Joatildeo

Suraacute em AdrianoacutepolisPR o sabatildeo eacute tido como um preparo que eacute louco de reineiro pois entre todos eacute o mais faacutecil de reinar ou seja natildeo daacute certo se a pessoa que fizer ldquonatildeo tiver o coraccedilatildeo bomrdquo ou se for alvo de olho gordo sendo necessaacuterio para o sucesso do sabatildeo que seja feito em um contexto harmocircnico (CAMBUY 2011 250-252)

95

No entanto quando um pastor que agraves vezes realizava cultos na comunidade

(que mesmo com a forte presenccedila de praacuteticas afro-brasileiras natildeo tem dificuldade de

dialogar com os crentes) quis batizaacute-la ela contou que se negou ldquoAh eu natildeo batizo

na religiatildeo nisso aiacute natildeo Ele queria que eu batizasse na lei de crente mas eu natildeo jaacute

sou batizada desde pequena vou batizar outro batismo pra quecirc rdquo Haacute portanto uma

perspectiva da religiatildeo como abrangente natildeo havendo neste caso contradiccedilatildeo entre

denominaccedilotildees e frequecircncias a espaccedilos diversos No entanto haacute tambeacutem a

necessidade de uma escolha oficial que no caso de Eva se daacute pela religiatildeo catoacutelica

A religiosidade do grupo aponta assim para uma perspectiva proacutepria de um

universo negro que natildeo estabelece fronteiras claras entre as religiotildees mas uma

interdependecircncia constante Como tentamos demonstrar ao longo deste subitem

estas experiecircncias falam de dinacircmicas de movimento natildeo soacute no diaacutelogo entre esferas

religiosas mas de movimentos concretos como nas viagens realizadas para

pagamentos de promessas movimentos estabelecidos na relaccedilatildeo entre devoto e

santo entre meacutedium e entidades espirituais Estas praacuteticas falam de uma memoacuteria

corporal performaacutetica e ritual que constitui parte essencial da relaccedilatildeo que

estabelecem com o passado e da forma de atualizaacute-lo no presente Religiosidade que

marca a relaccedilatildeo entre negritude opressatildeo e santidade significativa nos discursos de

grupos quilombolas sobre sua relaccedilatildeo com o sagrado (PORTO 2007)

96

2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS

Quando os funcionaacuterios do governo do Paranaacute chegaram ateacute as famiacutelias em

questatildeo em GuaiacuteraPR e lhes apresentaram a possibilidade de reivindicaccedilatildeo da

identidade quilombola nunca tinham ouvido falar neste termo ou sequer imaginavam

que poderiam reivindicar algum direito de um Estado que segundo afirmam nunca

lhes enxergou ou lhes protegeu pelo contraacuterio Esta situaccedilatildeo inesperada causou

muita duacutevida e inseguranccedila sobre acionar ou natildeo a autodeclaraccedilatildeo como quilombolas

tendo em vista os riscos e as consequecircncias da opccedilatildeo por este caminho Quando

optaram por trilhaacute-lo entraram aos poucos em mais uma trajetoacuteria de movimento

agora de inserccedilatildeo e circulaccedilatildeo em novas esferas sociais tanto concretas quanto

simboacutelicas

Passaram entatildeo a ter que lidar com uma linguagem estatal e burocraacutetica que

desconheciam com uma organizaccedilatildeo em termos poliacuteticos por meio de uma

associaccedilatildeo juriacutedica ndash que os integrou formalmente como sujeito coletivo ndash e neste

processo Adir como lideranccedila da comunidade desde entatildeo foi convidado a realizar

vaacuterias viagens como representante quilombola tanto no Paranaacute como em outros

estados Com a pauta de reivindicaccedilatildeo territorial foi desencadeada uma redefiniccedilatildeo

das relaccedilotildees locais vindo agrave tona de forma impactante processos de tensatildeo antes

latentes na convivecircncia com os proprietaacuterios vizinhos Por outro lado houve tambeacutem

uma ampliaccedilatildeo significativa de relaccedilotildees para aleacutem das dinacircmicas locais ndash um aspecto

considerado pelos quilombolas como muito positivo ndash pois a inserccedilatildeo no movimento

quilombola os colocou em contato com outras comunidades e inclusive proporcionou

uma retomada de viacutenculos dentro da proacutepria famiacutelia reconectando-os com sua regiatildeo

de origem em Minas Gerais por meio da realizaccedilatildeo das viagens de volta que seratildeo

abordadas no terceiro capiacutetulo

No entanto a peculiaridade de um grupo marcado por dinacircmicas de

movimento e que se reconhece como quilombola a partir de um viacutenculo com uma

regiatildeo de origem na qual natildeo mais habitam ndash pois de laacute saiacuteram em trajetoacuterias seguidas

de deslocamentos como vimos no capiacutetulo anterior ndash colocou um grande desafio e

quase um empecilho para o tracircmite do processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do grupo

junto ao oacutergatildeo responsaacutevel o Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria

97

(INCRA) O caso da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos como

veremos nos permite o aprofundamento de uma reflexatildeo muito importante sobre ateacute

que ponto o reconhecimento da diversidade sociocultural estaacute de fato presente nos

processos e procedimentos administrativos bem como na compreensatildeo dos agentes

que atuam em nome do Estado nesta temaacutetica Sobre esta delicada questatildeo a

antropoacuteloga Miriam Chagas argumenta que

() a sociedade moderna admitiria uma uacutenica foacutermula minimizada de reconhecimento das diferenccedilas ou seja a mera conversatildeo da igualdade em identidade Essa consideraccedilatildeo aponta para uma questatildeo de difiacutecil tratamento pois o proacuteprio conceito de identidade ndash tambeacutem cultural ndash seria fruto da configuraccedilatildeo ideonormativa do sistema de valores da sociedade moderna (CHAGAS 2001 p 232)

Deve-se levar em conta que antes da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o

ordenamento juriacutedico nacional negava a diversidade cultural da populaccedilatildeo brasileira

procurando homogeneizaacute-la A partir da consolidaccedilatildeo em 1988 de ldquodireitos eacutetnicosrdquo

enquanto garantias constitucionais iniciou-se um novo momento de reconhecimento

formal e consolidaccedilatildeo do acesso a tais direitos Os agentes do Estado daiacute em diante

ao classificarem em legislaccedilotildees categorias como ldquoquilombolasrdquo ldquoindiacutegenasrdquo ldquopovos e

comunidades tradicionaisrdquo precisam considerar que natildeo estatildeo apenas a nomear e a

reconhecer tais grupos mas tambeacutem estatildeo produzindo alteridades Marcadas ldquopela

qualidade de lsquoprimitivorsquo lsquotradicionalrsquo e correlatosrdquo estas categorias criam e

caracterizam o que nomeiam ao oporem um quadro classificatoacuterio de definiccedilatildeo e

redefiniccedilatildeo da alteridade com desdobramentos na emergecircncia de novos sujeitos

poliacuteticos organizados (ARRUTI 2006 51-53) Eacute a partir da sobrecodificaccedilatildeo e

normatizaccedilatildeo estatal portanto que tais grupos estaratildeo categorizados e seu

reconhecimento territorial seraacute regulado em procedimentos administrativos atraveacutes de

regulamentaccedilatildeo infraconstitucional

Estes sujeitos coletivos se mobilizam em unidades sociais a partir de um

pertencimento comum que funda uma identidade coletiva em processos de

autodefiniccedilatildeo referenciados nas categorias juridicamente reconhecidas Esta

mobilizaccedilatildeo poliacutetica que se desenrola principalmente em torno da luta pela garantia

dos territoacuterios ocupados tradicionalmente tambeacutem gera efeitos por meio de pressotildees

de movimentos sociais articulados ao tensionar o centro de poder do Estado Neste

processo estes grupos sociais vatildeo atribuindo seus proacuteprios sentidos aos conceitos

98

geneacutericos de reconhecimento como ldquoquilombolasrdquo os quais satildeo acionados em uma

vasta gama de situaccedilotildees para expressar diversos significados

Uma multiplicidade de metaacuteforas eacute portanto atribuiacuteda aos signos eacutetnicos no

processo social da etnicidade pelos grupos sociais que reivindicam ldquodireitos de uma

cidadania diferenciada ao Estado brasileirordquo (OrsquoDWYER 2009 p 175) Este processo

de reivindicaccedilatildeo vai gerando uma maximizaccedilatildeo da alteridade ndash por meio da

diferenciaccedilatildeo de sentidos ndash mesmo no acircmbito instituiacutedo de padronizaccedilatildeo estatal Esta

maximizaccedilatildeo eacute necessaacuteria porque ldquoas unidades de descriccedilatildeo das populaccedilotildees

submetidas respondem ao custo de uma brutal reduccedilatildeo de sua alteridade agraves

necessidades de produccedilatildeo de unidades geneacutericas de intervenccedilatildeo e controle socialrdquo

(ARRUTI 1997 p 20) Haacute que se refletir sobre ateacute que ponto

() quilombo expressa a dimensatildeo poliacutetica da identidade negra no Brasil ou ele eacute uma nova reduccedilatildeo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este prisma teriam que se adequar a um conceito geneacuterico para novos propoacutesitos de intervenccedilatildeo e controle social (LEITE 2000 p 343)

De forma anaacuteloga ao que ocorreu com os povos indiacutegenas com o

estabelecimento de um certo padratildeo de ldquoindianidaderdquo ndash imposto pelo oacutergatildeo estatal e

que acaba sendo assumido como padratildeo de comportamento dos grupos em questatildeo

ndash podemos observar a existecircncia tambeacutem de um modelo de ldquoquilombolidaderdquo com

uma determinada forma de compreender quem satildeo os ldquoquilombolasrdquo a partir da qual

se estabelece procedimentos padronizados para lidar com esta diversidade (ARRUTI

1997 p 41) Esta necessidade de limitar a complexidade social para definir de modo

impositivo quem seriam os destinataacuterios do direito territorial reconhecido

constitucionalmente mostra marcas de um colonialismo interno que em muito ainda

manteacutem ldquouma praacutetica de dominaccedilatildeo intimamente ligada agrave ideologia da concentraccedilatildeo

fundiaacuteria como sinocircnimo de progresso numa economia agroexportadorardquo (ALMEIDA

2011 p 07-13)

No caso do direito territorial das comunidades quilombolas o primeiro marco

normativo foi estabelecido na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mas natildeo em seu corpo

permanente e sim no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) pelo

artigo 68 ldquoaos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras eacute reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-

99

lhes os tiacutetulos respectivosrdquo84 A partir de 2003 com o Decreto Federal 4887 assinado

no primeiro ano de mandato do entatildeo Presidente Lula a questatildeo quilombola ganha

forccedila e passa por uma estruturaccedilatildeo paulatina no Governo Federal A competecircncia

para titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas eacute atribuiacuteda ao INCRA no acircmbito do Ministeacuterio

do Desenvolvimento Agraacuterio o qual passa a incidir diretamente na questatildeo fundiaacuteria

das comunidades quilombolas em todo o Brasil

O conceito de quilombo imposto arbitrariamente no periacuteodo colonial enquanto

tipo penal para reprimir escravos fugidos85 demandou novos procedimentos

interpretativos ao se tornar uma categoria para reconhecimento de sujeitos de direitos

no presente Deve haver assim um deslocamento conceitual sobre as ideias de

quilombo como sobrevivecircncia e reminiscecircncia para que se possa compreender o que

satildeo as comunidades que se reconhecem como quilombolas hoje e como construiacuteram

sua autonomia historicamente (ALMEIDA 2011 p 64) Para tal reconfiguraccedilatildeo

conceitual a perspectiva antropoloacutegica tem contribuiccedilatildeo fundamental e se contrapocircs

por exemplo agraves limitaccedilotildees trazidas pelo Decreto Federal 3912 de 2001 obra do

governo do entatildeo presidente Fernando Henrique Cardoso

Nesta regulamentaccedilatildeo em forma de decreto do artigo 68 do ADCT realizada

em 2001 natildeo se reconhecia a autoatribuiccedilatildeo identitaacuteria pelos proacuteprios grupos sociais

Ao partir de um criteacuterio de heteroidentidade o decreto reproduzia a recusa da titulaccedilatildeo

definitiva das comunidades quilombolas sendo que durante a vigecircncia deste

instrumento no periacuteodo de dois anos nenhuma titulaccedilatildeo foi realizada Foram

estabelecidas condiccedilotildees restritivas como

(a) a manutenccedilatildeo da competecircncia da Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) para

titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas o que limitava o direito territorial unicamente agrave

dimensatildeo cultural Esta atribuiccedilatildeo de competecircncia a FCP impossibilitava a efetivaccedilatildeo

da desapropriaccedilatildeo fundiaacuteria necessaacuteria

84 Esta parte da Constituiccedilatildeo na qual foi inserido o artigo 68 o ADCT consiste em um ato para regulaccedilatildeo da transiccedilatildeo entre regimes constitucionais o que revela a dificuldade em pautar esta temaacutetica que natildeo constou no corpo do texto principal da Constituiccedilatildeo No entanto segundo os juristas que se utilizam do modo de interpretaccedilatildeo sistemaacutetica da Constituiccedilatildeo este fato natildeo minimiza a eficaacutecia da norma enquanto garantidora de um direito fundamental Sobre o debate doutrinaacuterio e jurisprudencial acerca da temaacutetica ver SOUZA 2013 85 O Conselho Ultramarino Portuguecircs de 1740 definia quilombo como ldquotoda habitaccedilatildeo de negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida ainda que natildeo tenham ranchos levantados ou se achem pilotildees nelesrdquo (LEITE 2000 p 336)

100

(b) a aplicaccedilatildeo do direito apenas para o caso das terras que jaacute estavam

ocupadas por quilombos em 1888 data da aboliccedilatildeo da escravidatildeo e que

continuassem ocupadas por ldquoremanescentesrdquo em 1988 quando da promulgaccedilatildeo da

Constituiccedilatildeo Federal Trata-se no entanto de duas datas arbitraacuterias do calendaacuterio do

Estado que por si soacute natildeo produziram ldquoa instituiccedilatildeo de um novo estado de coisas na

sociedaderdquo e que somadas estabeleceram um requisito temporal arbitraacuterio

colocando a necessidade de comprovaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo por cem anos para a

aquisiccedilatildeo do direito (MILANO 2011 p 97)

Em um contexto em que eacute o Estado no exerciacutecio de um poder tutelar que

define se um grupo eacute ou natildeo quilombola dentro desta perspectiva da heteroidentidade

estabelecida no decreto federal de 2001 a interlocuccedilatildeo do fazer antropoloacutegico dentro

do procedimento administrativo de titulaccedilatildeo seria direcionada para a produccedilatildeo de

laudos que teriam uma funccedilatildeo dupla de investigaccedilatildeo primeiro do da legitimidade do

reconhecimento eacutetnico da identidade reivindicada pelo grupo para entatildeo analisar o

reconhecimento territorial

Um novo cenaacuterio vem agrave tona com a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 sobre Povos

Indiacutegenas e Tribais da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) por meio do

Decreto Legislativo nordm 143 de 200286 de modo que passa a ser incorporado no

ordenamento juriacutedico nacional o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo na identificaccedilatildeo de grupos

eacutetnicos Este criteacuterio foi previsto entatildeo no Decreto Federal 4887 de 2003 ndash tendo

revogado o decreto anterior 3912 de 2001 ndash o qual estaacute atualmente em vigor e

regulamenta os procedimentos para a titulaccedilatildeo territorial quilombola de

responsabilidade do INCRA

Com o Decreto 4883 de 2003 ndash que precedeu o Decreto 4887 tambeacutem de

2003 ndash a competecircncia para titulaccedilatildeo quilombola havia sido transferida da Fundaccedilatildeo

Cultural Palmares (FCP) para o INCRA Esta mudanccedila teve uma repercussatildeo positiva

pois este oacutergatildeo federal eacute o que possui atribuiccedilatildeo para ordenaccedilatildeo da estrutura fundiaacuteria

nacional podendo realizar assim desapropriaccedilotildees com o intuito de efetivar as

titulaccedilotildees quilombolas Entretanto o INCRA natildeo possuiacutea estrutura institucional para

lidar com demandas de caraacuteter eacutetnico ndash em contraste com a Fundaccedilatildeo Cultural

86 Aleacutem do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 trouxe outras inovaccedilotildees significativas para o ordenamento juriacutedico nacional sobre as quais natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho Sobre este tema ver MILANO 2011

101

Palmares (FCP) e a Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI) oacutergatildeos federais que jaacute

contavam com ampla experiecircncia de trabalho com demandas eacutetnicas

Com uma nova conjuntura estabelecida pela incorporaccedilatildeo do criteacuterio de

autoatribuiccedilatildeo nos processos de regularizaccedilatildeo territorial os laudos antropoloacutegicos

deixam de exercer a funccedilatildeo de ldquoreconhecimento eacutetnico-territorialrdquo para assumir a

funccedilatildeo apenas de ldquoreconhecimento territorialrdquo (ARRUTI 2006 p 27-32) pois o

reconhecimento eacutetnico passou a ser definido pela autoidentificaccedilatildeo dos proacuteprios

grupos sociais A questatildeo deixa de ser a quem se aplica o direito para quais satildeo os

grupos que dirigem suas reivindicaccedilotildees a estes direitos ou ainda quem satildeo os sujeitos

que orientam suas accedilotildees a partir do sentimento de pertencer a um grupo especiacutefico

quilombola O criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo estaacute de acordo com a perspectiva

antropoloacutegico de que os grupos eacutetnicos satildeo entidades autodefinidas e de que ldquoas

etnicidades demandam uma visatildeo construiacuteda de dentro e elas natildeo tecircm relaccedilotildees

imperativas com qualquer criteacuterio objetivordquo (OrsquoDWYER 2011 p 113)87

Eacute por meio dos processos de emergecircncia de novas identidades sociais que o

passado e as narrativas histoacutericas da memoacuteria coletiva vatildeo ser articulados de modo

ldquopoliacutetica e socialmente operacionaisrdquo no sentido de subsidiar as reivindicaccedilotildees

identitaacuterias (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 22) Assim como natildeo haacute criteacuterios

objetivos para a definiccedilatildeo da etnicidade natildeo haacute tambeacutem um passado pronto que

vecircm agrave tona Ademais eacute por meio destes novos contextos de interaccedilatildeo que as

diferenccedilas culturais seratildeo percebidas pelos proacuteprios sujeitos como socialmente

significativas (BARTH 2011)

Neste cenaacuterio de reconhecimento de direitos eacutetnicos a interlocuccedilatildeo do saber

antropoloacutegico com o juriacutedico tem se potencializado mas natildeo sem ambivalecircncias A

participaccedilatildeo de antropoacutelogos como peritos em procedimentos de reconhecimento

territorial tem sido fundamental para a realizaccedilatildeo de ldquoestudo in loco dos processos

pelos quais emergem os grupos negrosrdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) A

antropologia tem contribuiacutedo portanto com seu acuacutemulo teoacuterico que passa a ser

colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees puacuteblicas o que torna necessaacuteria por conseguinte

a ldquobusca por paracircmetros de avaliaccedilatildeo e execuccedilatildeo para a antropologia e antropoacutelogosrdquo

em um novo acircmbito de profissionalizaccedilatildeo

87 Este eacute um aspecto central discutido pela tradiccedilatildeo teoacuterica da antropologia cuja referecircncia fundamental

eacute o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth com seu texto Grupos eacutetnicos e suas fronteiras publicado inicialmente em 1969 (BARTH 2011)

102

Para a elaboraccedilatildeo de tais paracircmetros eacute preciso que haja ampla discussatildeo

divulgaccedilatildeo e debate acerca dos trabalhos de periacutecia criando assim um espaccedilo de

reflexatildeo criacutetica dentro da disciplina antropoloacutegica capaz de responder a tais demandas

geradas na interface entre o saber juriacutedico e antropoloacutegico visando que ldquoo campo se

consolide e este instrumento (o relatoacuterio antropoloacutegico) seja cada vez mais eficaz no

contexto e objetivos a que se propotildeerdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) Este eacute

o principal objetivo deste segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo no qual pretendo analisar

comparativamente os dois relatoacuterios antropoloacutegicos produzidos sobre a ldquoComunidade

Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

Ambos os relatoacuterios foram produzidos no acircmbito do Procedimento

Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria que tramita na

Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro

relatoacuterio foi produzido por meio do convecircnio do INCRA com a Universidade Estadual

do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) tendo a versatildeo final sido encaminhada a este oacutergatildeo

federal em 29 de outubro de 2010 Os argumentos levantados iam de encontro agraves

premissas da autoatribuiccedilatildeo questionando assim a legitimidade da reivindicaccedilatildeo

identitaacuteria e territorial da comunidade Este relatoacuterio foi recusado pelo INCRA com

base em vaacuterios argumentos dentre os quais destaco o fato de os autores terem

apresentado ldquobaixa qualidade teacutecnica e antropoloacutegicardquo e natildeo terem cumprido ldquocom os

termos do convecircnio e da IN 492008rdquo 88

Este primeiro relatoacuterio que seraacute a partir de agora denominado de ldquorelatoacuterio

anti-antropoloacutegicordquo nesta dissertaccedilatildeo foi posteriormente retirado do procedimento de

regularizaccedilatildeo territorial do grupo passando a constar apenas no procedimento

referente agrave finalizaccedilatildeo e tomada de contas do convecircnio com a UNIOESTE

(Procedimento Administrativo nordm 542000023842008-33) Dentre os argumentos

levantados questionando a legitimidade da reivindicaccedilatildeo da comunidade destaca-se

o entendimento de que natildeo havia ancestralidade de ocupaccedilatildeo de um mesmo territoacuterio

e que aquele natildeo era um territoacuterio quilombola tendo em vista por exemplo a

inexistecircncia de registros histoacutericos de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR

Em decorrecircncia do trabalho do INCRA com a comunidade houve o

desencadeamento de um seacuterio conflito causado pela mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios

88 Instruccedilatildeo Normativa que regia o procedimento de titulaccedilatildeo quilombola no INCRA na eacutepoca da

produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico

103

vizinhos contraacuterios agraves reivindicaccedilotildees quilombolas sendo que a lideranccedila do grupo foi

ameaccedilada de morte vaacuterias vezes em um clima de forte tensatildeo e animosidade Em

resposta a esta situaccedilatildeo de inseguranccedila e agrave recusa do primeiro relatoacuterio o INCRA

contratou um segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foi produzido pela empresa Terra

Ambiental Esta empresa foi a vencedora do pregatildeo eletrocircnico realizado pela

Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas (DFQ) da sede do

INCRA em Brasiacutelia tendo em vista a urgecircncia deste processo de regularizaccedilatildeo

territorial em GuaiacuteraPR A versatildeo final do segundo relatoacuterio foi encaminhada em 15

de julho de 2013 E avaliado em sua consonacircncia com a instruccedilatildeo normativa em vigor

572009 o relatoacuterio antropoloacutegico foi aprovado e incorporado ao Relatoacuterio Teacutecnico de

Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID)89 da comunidade

A pesquisa para produccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico teve que lidar

com as questotildees provocadas pelo primeiro estudo e sua recusa em reconhecer a

autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombolas Como resposta a equipe de

pesquisadores contratados pela empresa Terra Ambiental realizou um levantamento

acerca das memoacuterias coletivas do grupo sobre sua origem mineira deslocando o

historiador Cassius Cruz ateacute a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de onde as

famiacutelias satildeo provenientes Atraveacutes deste levantamento de informaccedilotildees em Minas

Gerais foi possiacutevel apontar os viacutenculos e as referecircncias comuns de memoacuteria entre a

comunidade de Guaiacutera e comunidades quilombolas desta regiatildeo mineira bem como

levantar possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco com a Comunidade Quilombola Vila Nova

localizada em SerroMG especificamente

89 O RTID eacute um conjunto de peccedilas teacutecnicas que eacute produzido pelo INCRA no acircmbito do procedimento administrativo para regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas O relatoacuterio antropoloacutegico eacute a primeira peccedila teacutecnica do RTID (o qual eacute composto por outros estudos) e tem como objetivo ldquocaracterizarrdquo a comunidade quilombola e o territoacuterio reivindicado conforme a Instruccedilatildeo Normativa 57 de 2009 que regulamenta o procedimento De um modo mais geral sobre as etapas que compotildeem o processo de titulaccedilatildeo tem-se que ldquoa primeira parte dos trabalhos do Incra consiste na elaboraccedilatildeo de um estudo da aacuterea destinado agrave confecccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) do territoacuterio Uma segunda etapa eacute a de recepccedilatildeo anaacutelise e julgamento de eventuais contestaccedilotildees Aprovado em definitivo esse relatoacuterio o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do territoacuterio quilombola A fase seguinte do processo administrativo corresponde agrave regularizaccedilatildeo fundiaacuteria com desintrusatildeo de ocupantes natildeo quilombolas mediante desapropriaccedilatildeo eou pagamento de indenizaccedilatildeo e demarcaccedilatildeo do territoacuterio O processo culmina com a concessatildeo do tiacutetulo de propriedade agrave comunidaderdquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrestrutura-fundiariaquilombolas Acesso em 180915

104

Para entender a complexidade da produccedilatildeo destes dois relatoacuterios eacute

importante levar em conta que a produccedilatildeo de tal tipo de documento no acircmbito de um

procedimento do INCRA consiste em uma forma especiacutefica de pesquisa

antropoloacutegica Trata-se de um processo dirigido de interaccedilatildeo entre o antropoacutelogo e os

sujeitos de pesquisa a partir de paracircmetros legais e administrativos O territoacuterio a ser

delimitado como proposta final do estudo seraacute neste contexto resultado de uma

fabricaccedilatildeo mediada por atores que interagem em uma rede configurada tambeacutem como

um forte campo de disputas Em jogo estatildeo natildeo soacute as tensotildees entre estes campos

de conhecimento mas tambeacutem entre interesses antagocircnicos sobre a questatildeo eacutetnica

e territorial principalmente no que tange agrave resistecircncia dos setores conservadores da

sociedade em relaccedilatildeo agraves possibilidades de alteraccedilatildeo e democratizaccedilatildeo da estrutura

agraacuteria nacional

Um dos efeitos em relaccedilatildeo a essa disputa que cria entraves para a efetivaccedilatildeo

de titulaccedilotildees de territoacuterios quilombolas foi o aumento na burocratizaccedilatildeo dos

procedimentos exigidos pelo INCRA por meio da alteraccedilatildeo das instruccedilotildees normativas

(IN) que regem este processo ateacute a atual IN 57 de 2009 Ainda em 2008 a Associaccedilatildeo

Brasileira de Antropologia (ABA) se posicionou sobre o debate acerca da reforma da

IN 20 anterior agrave mais exigente IN 5790 por meio da ldquoCarta de Porto Segurordquo criticando

o estabelecimento de um roteiro com itens descritivos a serem seguidos pelo

antropoacutelogo responsaacutevel pela realizaccedilatildeo de relatoacuterios de identificaccedilatildeo territorial

() Diferentemente de outras periacutecias teacutecnicas o relatoacuterio antropoloacutegico natildeo trabalha sob o suposto de uma verdade absoluta e externa aos atores mas desempenha o papel de apreender e interpretar o ponto de vista nativo sobre sua histoacuteria sociedade e ambiente de forma a traduzi-lo nas linguagens externas a ele Como corolaacuterio deste papel principal a Antropologia tambeacutem tem o papel de relativizar e enriquecer tais saberes e linguagens do Estado ao confrontaacute-lo com concepccedilotildees e conceitos que lhe satildeo externos A recusa de qualquer destes objetivos deve ser assumida pelas agecircncias de Estado como fruto de decisatildeo poliacutetica expliacutecita e natildeo transferida para o exerciacutecio antropoloacutegico por meio de constrangimentos legais ou normativos Diante destas consideraccedilotildees repudiamos a pretensatildeo do Estado Brasileiro em interferir sobre o saber e o fazer antropoloacutegicos tendo em vista interesses

90 Segundo Arruti as alteraccedilotildees da Instruccedilatildeo Normativa 202005 para a 572009 foram decorrentes da

mediaccedilatildeo do Governo Federal frente agrave pressatildeo poliacutetica que os opositores ao tema provocaram com a proposta de Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3239 encaminhada pelo partido Democratas ao Supremo Tribunal Federal Esta ADIn questiona o Decreto 48872003 que regulamenta o procedimento de titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas Arruti afirma que ldquo() o governo federal assumiu o ocircnus de incorporar o contraditoacuterio imposto pela oposiccedilatildeo ao tema na forma de uma nova proposta de reformulaccedilatildeo da Instruccedilatildeo Normativa interna ao Incra abrindo um novo campo de disputas que agora o opotildee ele mesmo ao movimento quilombolardquo (ARRUTI 2009 p 120)

105

conjunturais e externos ao legiacutetimo debate puacuteblico em torno dos objetivos que formalmente sustentam o diaacutelogo entre antropoacutelogos e agecircncias de Estado91

O contato do campo juriacutedico com os antropoacutelogos ndash tanto na esfera

administrativa como na judicial ndash nas quais o relatoacuterio antropoloacutegico pode ser

interpretado como prova pericial ndash cria uma expectativa por parte dos operadores do

direito da produccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico objetivo pensado a partir de fatos

como elementos externos e preacute-existentes bem como a partir da dicotomia entre

representaccedilatildeo e realidade (OrsquoDWYER 2009 p 177) Esta aproximaccedilatildeo entre campos

de conhecimento tem sido permeada portanto de desentendimentos muacutetuos

Haacute o poder e a autoridade do juiz de dizer de quem eacute ou natildeo eacute o direito quem pode ou natildeo pode quem vai ou natildeo vai ter direito agrave condiccedilatildeo pleiteada ou neste exemplo agrave terra reivindicada O mesmo natildeo pode ser esperado do antropoacutelogo embora sua voz seja importante na decisatildeo do juiz () Haacute muitas vezes durante esse processo uma dificuldade de entendimento sobre o lugar efetivo do antropoacutelogo Entatildeo lhe recaem responsabilidades que parecem criar uma confusatildeo entre saberes poderes e responsabilidades a ponto de ser atribuiacutedo ao antropoacutelogo um lugar de juiz isto eacute o papel de julgar e definir quem seraacute beneficiado (LEITE 2004 67)

Os criteacuterios juriacutedicos natildeo deveriam desta forma desconsiderar os paracircmetros

de execuccedilatildeo e de avaliaccedilatildeo da proacutepria antropologia jaacute que eacute a esta tradiccedilatildeo teoacuterica

que se estaacute recorrendo em funccedilatildeo de seu campo interpretativo para subsidiar a

compreensatildeo das dinacircmicas sociais em questatildeo A relevacircncia do meacutetodo etnograacutefico

para a antropologia coloca em questatildeo as dificuldades impostas em contextos de

pesquisa em que a temporalidade do processo natildeo eacute a mesma da etnografia para

estudos acadecircmicos Eacute importante que este meacutetodo de pesquisa possa ser

incorporado nos procedimentos desta poliacutetica de reconhecimento em condiccedilotildees de

efetivo respeito agrave alteridade Nesse sentido para que a etnografia possa se realizar a

partir do criteacuterio da produccedilatildeo de um conhecimento dialoacutegico e operar como um

instrumento adequado antropologicamente seria necessaacuterio que a poliacutetica de

reconhecimento do Estado incorporasse outros saberes e linguagens capazes de

enriquecer e problematizar a questatildeo da diversidade cultural

Ademais se por um lado o direito cria um filtro para lidar com a antropologia

a antropologia por outro eacute ela mesma um filtro Importante destacar que o problema

91 ldquoCarta de Porto Seguro sobre as posturas estatais diante das consultas formais aos antropoacutelogosrdquo

Disponiacutevel em httpwwwabantorgbrconteudoANAISCD_Virtual_26_RBAcartadeportoseguropdf Acesso em 180915

106

do poder e do silenciamento na produccedilatildeo de textos antropoloacutegicos estaacute teoricamente

elaborado desde a deacutecada de 1970 com a virada poacutes-moderna O etnoacutegrafo natildeo pode

mais escapar imune dessa ldquocrise teoacuterico-poliacuteticardquo Necessaacuterio retomar desta maneira

a criacutetica aos modos de escrita antropoloacutegica que instauram regimes de verdade em

relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo do nativo a partir de padrotildees de disciplinamento e controle

que escamoteiam a presenccedila do antropoacutelogo como autor e que podem reforccedilar uma

ldquounidade cognoscenterdquo92 em relaccedilotildees de poder sobre os grupos estudados

(CARVALHO 2002 p 06)

Ao passo que este debate sobre a representaccedilatildeo etnograacutefica estaacute colocado

para a antropologia em situaccedilotildees de diaacutelogo com esferas como o direito que trabalha

com a busca de provas a partir da elaboraccedilatildeo de periacutecias torna-se muito mais

complexo (mas natildeo menos necessaacuterio) problematizar o lugar do antropoacutelogo na

relaccedilatildeo de pesquisa e na forma de escrita Nesta intersecccedilatildeo de aacutereas de saber o

que vem agrave tona muitas vezes em primeiro plano eacute a possibilidade pragmaacutetica dos

antropoacutelogos participarem dos processos de garantia de direitos para os grupos aos

quais tecircm dedicado longa tradiccedilatildeo de estudos e neste processo debates importantes

da antropologia podem acabar negligenciados em prol de estrateacutegias de persuasatildeo

argumentativa dos relatoacuterios antropoloacutegicos

Neste contexto de traduccedilotildees e incompreensotildees eacute necessaacuterio reafirmar

conforme pautado pelo documento produzido pela Associaccedilatildeo Brasileira de

Antropologia (ABA) ndash a Carta de Ponta das Canas93 ndash que agrave antropologia cabe a

produccedilatildeo de inteligibilidade e natildeo de julgamentos a construccedilatildeo de interpretaccedilotildees e

natildeo de ldquoverdadesrdquo natildeo tendo o relatoacuterio antropoloacutegico um caraacuteter de atestado (ABA

2001) A diferenccedila deste tipo de trabalho com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo acadecircmica estaria

em uma certa economia a que o antropoacutelogo deve responder restringindo na medida

do possiacutevel a riqueza etnograacutefica aos limites da demanda Essa tensatildeo entre

antropologia e direito no entanto natildeo deve ser eliminada pois isso soacute ocorreria por

meio da submissatildeo de um saber ao outro Assim recomenda-se que o antropoacutelogo

92 O antropoacutelogo Joseacute Jorge de Carvalho problematiza o fato de que a comunidade antropoloacutegica eacute

avassaladoramente branca e que se de um lado a antropologia estaacute interessada na diversidade nativa natildeo conseguiu ainda superar a homogeneidade social racial e de classe dos proacuteprios antropoacutelogos profissionais (CARVALHO 2002 p 08) 93 Documento produzido na ldquoOficina sobre Laudos Antropoloacutegicosrdquo realizada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) e organizada pelo Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ver ABA Laudos Antropoloacutegicos - Carta de Ponta das Canas Textos e Debates n 9 Florianoacutepolis NUERUFSC 2001

107

seja minucioso e sistemaacutetico na explicitaccedilatildeo das razotildees que o levaram agrave apresentaccedilatildeo

das informaccedilotildees selecionadas tendo em vista os objetivos especiacuteficos deste tipo de

documento (ABA 2001 p 04- 05)

Eacute sabido que diferentes situaccedilotildees etnograacuteficas iratildeo gerar diferentes respostas

dos grupos sociais em termos da possibilidade de estabelecimento de relaccedilotildees de

confianccedila compreensibilidade e diaacutelogo (OLIVEIRA FILHO 2003 141-180) Para

aleacutem do caraacuteter juriacutedico que assume o relatoacuterio antropoloacutegico haacute uma importante

dimensatildeo de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da legitimidade e dos conhecimentos dos

grupos que passam por tal tipo de estudo o que iraacute depender do posicionamento eacutetico

dos profissionais envolvidos e das relaccedilotildees estabelecidas com seus interlocutores

Com um relatoacuterio antropoloacutegico que possa embasar teoricamente esta experiecircncia

histoacuterica e coletiva especiacutefica abre-se a possibilidade inclusive de uma confrontaccedilatildeo

de historicidades tendo em vista que a histoacuteria oficial em sua linearidade

uniformizadora natildeo incorpora esta diversidade de experiecircncias histoacutericas (CHAGAS

2005 p 75)

Neste capiacutetulo busco analisar de que forma o processo de reconhecimento

da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos ndash por meio da atuaccedilatildeo de diferentes atores

externos e especialmente no que tange agrave produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos

ndash foi percebido pelos membros do grupo quilombola e ao mesmo tempo em um certo

sentido produziu o proacuteprio grupo94 em um acircmbito institucional Assim como afirmou

Homi Bhabha importante teoacuterico dos estudos poacutes-coloniais eacute preciso reconhecer a

forccedila da escrita e de seu discurso retoacuterico ldquocomo matriz produtiva que define o lsquosocialrsquo

A textualidade natildeo eacute simplesmente uma expressatildeo ideoloacutegica de segunda ordem ou

um sintoma verbal de um sujeito poliacutetico preacute-dadordquo (BHABHA 1988 p 48) Assim

deve-se ter em vista o potencial transformador contido no processo que se pretende

de ldquoreconhecimentordquo e que muitas vezes incorre no equiacutevoco de buscar uma

identidade e um territoacuterio preacute-existentes

94 Se no primeiro relatoacuterio os autores afirmaram que natildeo se tratava de um grupo quilombola mas sim

de famiacutelias negras de trabalhadores rurais no segundo relatoacuterio reconheceu-se a autoindentificaccedilatildeo como grupo quilombola e fundamentou-se sua reivindicaccedilatildeo identitaacuteria a partir das referecircncias sobre a regiatildeo de origem do grupo Com base na pesquisa feita pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico impulsionou-se o retorno de quilombolas para Minas Gerais em busca de seus parentes e de mais informaccedilotildees sobre seus antepassados Isto demonstra como os processos de escrita sobre o grupo repercutiram em sua proacutepria dinacircmica interna de modo significativo tendo em vista que a memoacuteria coletiva estava passando por uma adequaccedilatildeo a este tipo de avaliaccedilatildeo externa

108

O que natildeo pode ser deixado de lado eacute o caraacuteter criativo e transformador deste processo que tende a ser obscurecido quando se supotildee que o ldquoterritoacuteriordquo remete necessariamente a sentidos e usos do espaccedilo preexistentes a ele A proacutepria noccedilatildeo de ldquoreconhecimentordquo tende a favorecer tal interpretaccedilatildeo sugerindo que o que estaacute em jogo eacute apenas a ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo de um estado de coisas jaacute existente Ainda que fosse esse o caso eacute preciso destacar tambeacutem que tal ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo implica em substanciais mudanccedilas na dinacircmica vital e social dos grupos envolvidos Sem qualquer pretensatildeo agrave exaustividade poderiacuteamos a esse respeito evocar apenas a intensificaccedilatildeo da presenccedila dos ldquomediadoresrdquo (lideranccedilas de movimentos sociais e sindicatos universitaacuterios pesquisadores funcionaacuterios do Estado e de ONGs) na vida cotidiana destas pessoas No contexto da luta poliacutetica elas satildeo obrigadas a se ver agraves voltas com dinacircmicas que se por um lado satildeo positivamente avaliadas como indicadores da ldquopolitizaccedilatildeordquo ou ldquoresistecircnciardquo da ldquocomunidaderdquo por outro satildeo por elas mesmas contrapostas ao ldquosossegordquo ou ldquotranquilidaderdquo que usufruiacuteam nos momentos em que podiam manter uma maior autonomia perante as exigecircncias e pressotildees do mundo ldquourbanordquo eou ldquoletradordquo Note-se que nesse uacuteltimo caso estamos nos referindo tanto aos ldquoinimigosrdquo destes grupos como aos seus aliados as ameaccedilas oriundas dos primeiros muitas vezes tornando imperativo o estabelecimento e consolidaccedilatildeo de relacionamentos com os segundos ndash frequentemente a partir de formas praacuteticas e linguagens que satildeo mais familiares a estes mediadores do que agravequeles que por eles ldquomediadosrdquo Que as dificuldades decorrentes desses relacionamentos sejam desconsideradas em prol das vantagens deles originadas soacute confirma o que pretendemos argumentar aqui para o bem ou para o mal natildeo se vive impunemente a luta poliacutetica e as alianccedilas vinculadas a ela as marcas decorrentes de tal processo frequentemente se convertendo em marcos na histoacuteria e memoacuteria dos grupos que optaram por ndash ou foram compelidos a ndash ldquose engajarrdquo (GUEDES 2013b p 56-57)

Entre inimigos e aliados o grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo

viveu impunemente a sua opccedilatildeo pelo engajamento poliacutetico Parece que a primeira

impressatildeo de que o reconhecimento como quilombolas poderia representar um risco

como veremos abaixo veio a se confirmar para eles com os desdobramentos

conflituosos que se seguiram agrave presenccedila do INCRA na comunidade (a partir da

atuaccedilatildeo da equipe que realizou o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) resultando na

perda de empregos nas propriedades vizinhas no isolamento das famiacutelias e na

necessidade de receberem cestas baacutesicas por falta de meios de sobrevivecircncia Com

o segundo relatoacuterio antropoloacutegico uma nova perspectiva se apresentou atraveacutes da

busca por informaccedilotildees que demonstrassem o viacutenculo da comunidade em Guaiacutera com

sua regiatildeo de origem em Minas Gerais Essa pesquisa trouxe repercussotildees

significativas natildeo soacute no acircmbito do procedimento do INCRA pois ganhou dimensotildees

profundas em termos emocionais simboacutelicos e poliacuteticos para o grupo Eacute a partir dos

questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e desta conflituosidade do

processo de reconhecimento que os quilombolas em GuaiacuteraPR impulsionam-se

para a busca de maiores informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica de seus

109

antepassados e reacionam os viacutenculos com a regiatildeo de origem bem como com seus

parentes em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG como analisaremos no uacuteltimo capiacutetulo

21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS

O autorreconhecimento como quilombolas remete ao contato que as famiacutelias

tiveram com agentes do Estado que lhes apresentaram esta via de direitos no ano de

2005 a partir da visita de Clemilda Santiago Neto professora de histoacuteria e militante

do movimento negro que na eacutepoca trabalhava na Secretaria de Educaccedilatildeo do Estado

do Paranaacute (SEED) e no Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) O chamado ldquoGT

Cloacutevis Mourardquo foi criado por iniciativa do governo estadual95 tendo atuado entre os

anos de 2005 e 2010 enquanto uma equipe intersecretarial com o objetivo de realizar

um ldquoLevantamento Baacutesico de Comunidades Negras do Paranaacuterdquo96 o qual teve

importacircncia fundamental no estiacutemulo agrave certificaccedilatildeo de grupos quilombolas no estado

Poreacutem como iremos analisar o contato com agentes estatais no caso da comunidade

quilombola em questatildeo desde o primeiro momento envolveu tensotildees e foi marcado

pela desconfianccedila por parte dos quilombolas

Os grupos sociais que foram identificados no levantamento do governo do

estado tendo em vista o objetivo de ldquodescobrir o Paranaacute Negrordquo poderiam ser

classificados segundo os membros do GTCM em trecircs categorias Remanescente de

Quilombo Negros Tradicionais ou Comunidade Negra (LEWANDOWISKI 2009 p

42 50) Tais comunidades foram vistas pelo GTCM como ldquohistoricamente e ateacute agora

invisibilizadas eou suprimidas pelas diversas esferas do poder e da sociedade civilrdquo

e para superar tal situaccedilatildeo o levantamento visava ldquoatingir objetivos mais imediatos

tornaacute-las alvo de poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo disponibilizadas a outras

comunidades e segmentos sociais em accedilatildeo de inclusatildeo socialrdquo97

O resultado da pesquisa apontava em 2010 quando o grupo de trabalho foi

extinto para um quadro de trinta e seis comunidades quilombolas certificadas pela

95 Resoluccedilatildeo conjunta nordm 012005 que inclui a Secretaria do Estado da Educaccedilatildeo Assuntos Estrateacutegicos Cultura Comunicaccedilatildeo Social e Meio Ambiente 96 O relatoacuterio final elaborado pelo GTCM estaacute disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 97 Texto de apresentaccedilatildeo que consta no site institucional do GTCM Disponiacutevel em

httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=16 Acesso em 170215

110

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) vinte ldquocomunidades negras tradicionaisrdquo ainda

natildeo certificadas e 32 (trinta e dois) indicativos da existecircncia de outras comunidades

no estado do Paranaacute (GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 17-21)

Atualmente a Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute possui 37 procedimentos de

regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas abertos Deste total dez estatildeo em andamento

e cinco estatildeo em processo de elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e

Delimitaccedilatildeo (RTID) dentre os quais o da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos98

Durante o governo estadual de Roberto Requiatildeo (PMDB2003-2010) levando

em consideraccedilatildeo o alinhamento com o governo federal de Luis Inaacutecio Lula da Silva

(PT2003-2010) foi gerado portanto um momento propiacutecio para pautar a agenda

puacuteblica com as questotildees relativas agraves minorias eacutetnicas com base em leis e decretos

que inovaram no tratamento destas questotildees99 Buscou-se assim sensibilizar os

administradores em relaccedilatildeo agraves demandas das comunidades quilombolas e dar apoio

para que os proacuteprios segmentos pudessem acionar com a mediaccedilatildeo do GTCM as

diversas secretarias de estado bem como os oacutergatildeos federais

Quando a comunidade se auto-reconhecia como remanescente de quilombo o grupo de trabalho prestava uma assessoria para organizaccedilatildeo das associaccedilotildees de moradores condiccedilatildeo fundamental para abertura dos processos junto ao Incra na construccedilatildeo dos estatutos e na eleiccedilatildeo de uma diretoria Quando escolhidas as novas lideranccedilas comunitaacuterias passavam a ter contato intenso com a equipe do GT A orientaccedilatildeo era para que diante de qualquer duacutevida ou problema o GT pudesse ser acionado para resolver (LEWANDOWSKI 2009 p 51)

Em relaccedilatildeo agrave chegada de Clemilda ndash uma das principais protagonistas do

processo de levantamento das comunidades pelo GTCM ndash e a como ocorreu o

reconhecimento do grupo em GuaiacuteraPR Eva (50) esposa de Joaquim (55) (portanto

98 As outras comunidades em processo de elaboraccedilatildeo do RTID satildeo Adelaide Maria Trindade Batista em Palmas Varzeatildeo em Doutor Ulysses Serra do Apon em Castro e Mamatildes em Cerro Azul Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwincragovbrnoticiasmesa-de-acompanhamento-da-politica-de-regularizacao-quilombola-e-instalada-no-parana Acesso em 24022015 99 Dentre as principais normatizaccedilotildees estatildeo a Lei 106392003 (que inclui ldquono curriacuteculo oficial da Rede

de Ensino a obrigatoriedade da temaacutetica Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira) o Decreto Federal 48872003 (que regulamenta o processo de titulaccedilatildeo ldquodas terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos) e o Decreto Federal 60402007 (que ldquoinstitui a Poliacutetica Nacional de Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionaisrdquo) dentre outras regulamentaccedilotildees federais neste sentido

111

nora de Manoel Ciriaco) contou-me sobre como ficaram surpresos com a visita de

uma funcionaacuteria puacuteblica interessada na histoacuteria do grupo

Dandara Como seraacute que ela ficou sabendo de vocecircs mesmo

D Eva Porque eu estudava aqui na escola com a Lucia daiacute ela tambeacutem trabaiava no negoacutecio que a Clemilda trabaia laacute Daiacute entatildeo ela falou que aqui ni Guaiacutera tinha ela achava que era descendente de escravo era remanescente de quilombo Daiacute ela mandou vim aqui daiacute a Clemilda veio Ela veio primeiro falar daiacute depois a Clemilda veio Acho que ela (Lucia) veio aqui se era dois mil ih fazia tempo nem lembrava disso mais Daiacute foi a Clemilda chegou aqui Ningueacutem acreditava E o Zeacute Maria falava assim ldquonatildeo eles vatildeo roubar de noacutesrdquo Eacute (risos) ldquoNoacutes nunca foi conhecido nesse lugar Noacutes nunca foi reconhecido nesse lugar aqui Noacutes sempre desprezado aqui Como eacute que domingo ainda Ah natildeo acredito ah natildeo acreditordquo (risos) Pegou a muletinha dele e foi embora pra casa Natildeo quis nada de jeito nenhum

Dandara E antes da Clemilda vocecircs natildeo imaginavam que teriam direito

D Eva Natildeo noacutes natildeo imaginava natildeo que noacutes natildeo sabia de nada eacute natildeo falava nem nada disso aiacute

As pessoas da comunidade natildeo soacute ficaram surpresas com a chegada de

Clemilda como tambeacutem desconfiaram de suas intenccedilotildees ainda mais porque ela

chegou em um dia de domingo Me contaram como desconfiaram ateacute se ela era do

governo principalmente o ldquofinado Zeacute Mariardquo que na eacutepoca era a referecircncia e a

lideranccedila da famiacutelia sendo o filho mais velho dentre os que permaneceram na

comunidade Ele resistiu muito ateacute concordar em assinar os papeacuteis que solicitariam o

reconhecimento da comunidade como quilombola Joaquim destacou como a postura

do irmatildeo foi enfaacutetica e estava legitimada na sua posiccedilatildeo de autoridade

Joaquim Ai uma hora ele falou com ela ldquoeacute eu fico muito emocionado noacutes aqui nesse fim de mundo e vocecircs que eacute pessoal do governo veio procurar a gente que nunca aconteceu issordquo Ele falou pra ela (risos) Aiacute a hora que ela caccedilou ele falou ldquoMelhor ficar que eu vou embora agora que o que meu pai deixou pra noacutes eacute mixaria e eu natildeo quero perder e ningueacutem me faz eu assinarrdquo

A fala de Joaquim em referecircncia ao comentaacuterio de Zeacute Maria indica uma

sensaccedilatildeo de invisibilidade e abandono por parte do Estado para com estas famiacutelias

o que eacute reforccedilado na leitura dos membros do grupo pela condiccedilatildeo histoacuterica de

exclusatildeo e opressatildeo do negro no Brasil Se esta percepccedilatildeo poderia ter sido alterada

com o processo de reconhecimento do grupo como quilombola percebe-se no

entanto que o Estado entendido como figura abstrata dissociada de seus agentes

112

especiacuteficos ndash com os quais em alguns casos eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees de

confianccedila e amizade ndash continua apresentando posicionamentos duacutebios e natildeo dignos

de confianccedila O Estado de alguma forma segundo Adir se isentaria diante do fato

de que os quilombolas tecircm ainda que correr atraacutes de direitos que deveriam lhes ser

garantidos prontamente tendo em vista a histoacuteria de opressatildeo a que vem sendo

submetidos Para conquistar algum direito com muita luta e paciecircncia sentem-se

refeacutens dos labirintos burocraacuteticos e hieraacuterquicos de procedimentos instruccedilotildees

normativas leis e barganhas poliacuteticas

Joaquim Eva e Adir me relataram como foi conturbado este contato inicial

com agentes do Estado Zeacute Maria pediu inclusive para que Adir solicitasse agrave Clemilda

o seu crachaacute comprovando que ela era funcionaacuteria puacuteblica Esta desconfianccedila em

assinar os papeacuteis que solicitariam o reconhecimento da comunidade como quilombola

parece decorrente do risco de expropriaccedilatildeo por eles percebido bem como aponta

para a dificuldade de domiacutenio do mundo documental pelos membros do grupo100 Fala

tambeacutem sobre o processo de exclusatildeo e sobre como o grupo o percebe jaacute que se

estar invisiacutevel era algo que confirmava a situaccedilatildeo perifeacuterica em que viviam por outro

lado a visibilidade tambeacutem eacute percebida como um risco101 No entanto Zeacute Maria foi

depois convencido e assinou o documento que subsidiou a elaboraccedilatildeo da ldquoCertidatildeo

de Auto-Reconhecimentordquo expedida em 02 de outubro de 2006 Em 2007 o grupo

funda com auxiacutelio do GTCM a Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos

Santos (ACONEMA)

Antes disso eles desconheciam que esta identidade era reconhecida e

guarnecida pelo Estado bem como desconheciam as nominaccedilotildees de ldquoquilombolasrdquo

ou ldquoremanescente de quilombosrdquo agraves quais iratildeo paulatinamente conferir significado

com base na releitura de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido

A noccedilatildeo de ldquoremanescenterdquo como algo que jaacute natildeo existe ou em processo de desaparecimento e tambeacutem a de ldquoquilombordquo como unidade fechada igualitaacuteria e coesa tornou-se extremamente restritiva Mas foi principalmente porque a expressatildeo natildeo correspondia agrave autodenominaccedilatildeo destes mesmos

100 No caso da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna localizada em CuriuacutevaPR por exemplo o relatoacuterio antropoloacutegico relata como eles foram enganados por parente proacuteximo que pediu que assinassem documento que foi posteriormente utilizado para a expropriaccedilatildeo de uma aacuterea do grupo (PORTO 2012 p 61-62) 101 O fato tambeacutem de se tratar de um grupo com niacutevel baixo de acesso agrave educaccedilatildeo formal reforccedila esta dificuldade em lidar com a documentaccedilatildeo principalmente concernente agrave terra Este quadro estaacute sendo modificado na geraccedilatildeo de jovens hoje os quais tecircm condiccedilotildees de terminar o ensino meacutedio e ateacute o ensino superior comeccedila a ser acessado

113

grupos e por tratar-se de uma identidade ainda a ser politicamente construiacuteda que suscitou tantos questionamentos De saiacuteda exigiu-se nada mais que um esforccedilo interpretativo do processo como um todo por parte dos intelectuais e militantes bem como das proacuteprias comunidades envolventes e sem o qual seria impossiacutevel a aplicabilidade juriacutedica do artigo (LEITE 2000 p 341)

A experiecircncia que meus interlocurores(as) possuiacuteam de uma ldquotrajetoacuteria

histoacuterica proacutepriardquo vinculada agrave ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo conceitos da

definiccedilatildeo de quilombo trazida pelo Decreto 44872003 (que regulamenta o processo

de titulaccedilatildeo quilombola) ficava restrita enquanto objeto de introspecccedilatildeo interna ao

grupo Isto porque tal afirmaccedilatildeo segundo eles seria percebida como motivo de

escaacuternio e de discriminaccedilatildeo por parte das outras pessoas da regiatildeo102 Eacute atraveacutes de

uma rede de mediadores como o GTCM organizaccedilotildees governamentais natildeo

governamentais e movimento negro que o ldquoprocesso de reconhecimentordquo eacute

estimulado no Paranaacute e neste caso especiacutefico

Na fala dos irmatildeos Adir e Joaquim atualmente presidente e vice-presidente

da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) aparece

este sentimento de que se comentassem sobre sua histoacuteria antes do processo de

reconhecimento como quilombolas ningueacutem iria acreditar neles e seriam alvo de

ridicularizaccedilatildeo

Dandara Mas essa histoacuteria da origem do Manoel Ciriaco laacute de Minas que tinha descendecircncia de ex-escravos isso tudo era todo mundo que conhecia ou era soacute alguns que sabiam dessa histoacuteria

Adir Vocecirc fala a populaccedilatildeo

Dandara Natildeo vocecircs da famiacutelia mesmo

Adir Noacutes jaacute sabia

Joaquim E muitos aqui sabia tambeacutem que meu pai falava neacute com os italiano aqui que eles Mas eles natildeo ligava

Adir Mas era coisa que nem eles mais falava assim ldquoque vatildeo buscar nada de histoacuteria deles nada atraacutes nadardquo Chegaram contaram o que eles passaram quando chegaram aqui que teve dificuldade que vieram de um lugar laacute onde teve escravo isso e aquilo outro Mas quem que ia ligar nisso Nem noacutes mesmos Noacutes aprendemos com nossos pais nossos avoacutes nossa matildee sim nossa histoacuteria que noacutes natildeo podia pronunciar pra ningueacutem Ia falar pra quem Dizer pra quem isso aiacute E quando surge isso nos pega tambeacutem de surpresa E ai vocecirc vai falar o quecirc Vai divulgar o quecirc Quem que vai acreditar em vocecirc Natildeo eacute difiacutecil E eacute isso aiacute

102 Sobre o tema da introspecccedilatildeo acerca da identidade ver o caso do grupo indiacutegena Caxixoacute de Minas Gerais (SANTOS OLIVEIRA 2003 p 22)

114

Nesta fala de Adir e Joaquim eacute relevante notar a diferenccedila entre o que eacute

entendido como um silenciamento sobre o passado em contraste com um processo

de esquecimento (PORTO 2013b p 175) Eacute a partir do momento em que se encontra

uma possibilidade de escuta que a memoacuteria passa a ser pronunciada publicamente

Ateacute entatildeo estava contida como algo indiziacutevel pois soacute fazia sentido enquanto processo

de transmissatildeo de memoacuteria interno agrave famiacutelia (POLLAK 1989 p 09) Haacute uma

polarizaccedilatildeo portanto entre um passado de silenciamento e um presente de

pronunciamento que aparece como um princiacutepio de operaccedilatildeo na forma como

percebem a relaccedilatildeo deles com o contexto mais amplo no qual se inserem Poderem

ser ouvidos como narradores legiacutetimos de sua proacutepria histoacuteria por meio deste novo

contexto de reconhecimento pelo Estado eacute um ganho que transcende as questotildees

juriacutedicas e poliacuteticas na medida em que representa para eles uma valorizaccedilatildeo e um

reconhecimento da necessidade de reparaccedilatildeo da opressatildeo sofrida

Esta fala tambeacutem aponta para a expectativa que a comunidade tinha frente agrave

produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio de que sua histoacuteria seria registrada e reconhecida aleacutem

de significar um marco para a possibilidade de conquista de direitos que os

empoderaria diante do contexto local adverso Como veremos adiante foram muitas

as dificuldades que tiveram para lidar com o fato de sua identidade ter sido negada

oficialmente por um antropoacutelogo bem como com os conflitos gerados a partir dos

desdobramentos do procedimento que tramita no INCRA103

O registro da histoacuteria comum dos membros da comunidade deu um novo

status agrave memoacuteria coletiva e agravequeles que satildeo vistos internamente como os guardiotildees

destas histoacuterias Os elementos preacute-existentes da memoacuteria passam a ser mobilizados

de formas especiacuteficas tendo em vista que eacute o Estado quem estabelece os criteacuterios

normativos que funcionaratildeo como modelos a partir do qual a populaccedilatildeo passa a se

pensar em termos de identidade objetivada conceitualmente o que se faraacute por meio

de mediaccedilotildees e modulaccedilotildees (MARCUS 1991)104

103 Este impasse vivido pelo grupo aponta para a ldquodificuldade de identificar os sujeitos do direito e suas

complexas demandasrdquo bem como ldquoas tensotildees entre as conceituaccedilotildees histoacuterica antropoloacutegica e juriacutedica de quilombordquo (LEITE FERNANDES 2006 p 12) sobre as quais no entanto natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho 104 Interessante observar o deslocamento semacircntico no que tange estas modulaccedilotildees do Estado que foi ocorrendo ldquorealizado tanto por agentes estatais quanto por membros do movimento social e representantes do meio acadecircmico - em que os remanescentes de comunidades de quilombos passam a ser definidos como comunidades remanescentes de quilombos e no momento seguinte

115

O claacutessico estudo de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva demonstra como

apesar da aparecircncia de experiecircncia individual a memoacuteria soacute eacute possiacutevel por meio das

relaccedilotildees sociais de interaccedilatildeo enquanto fenocircmeno coletivo Assim a duraccedilatildeo de uma

memoacuteria estaria limitada agrave duraccedilatildeo do grupo no acircmbito do qual tais lembranccedilas foram

geradas e enquanto fenocircmeno construiacutedo coletivamente tambeacutem estaacute sujeita a

transformaccedilotildees Dentro destas dinacircmicas o autor ressalta a existecircncia de pontos de

referecircncias comuns que formam um nuacutecleo resistente relativamente invariaacutevel um fio

condutor de acontecimentos-chaves (HALBWACHS 2003 p 35)

No caso do quilombo de Guaiacutera enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo

(HALBWACHS 2003) que gera o sentimento de pertencimento de identificaccedilatildeo e

aglutinaccedilatildeo entre seus membros este fio condutor passa pelo compartilhamento da

memoacuteria das dinacircmicas de movimento e fixaccedilatildeo das famiacutelias Este movimento inicia-

se a partir do que podemos chamar de um ldquolugar formador de memoacuteriardquo (POLLAK

1992 p 203) a regiatildeo de origem do grupo Mesmo fora do espaccedilo-tempo da vida da

comunidade no Paranaacute esta referecircncia eacute fundamental para a identidade do grupo a

partir da qual se contextualiza a memoacuteria herdada dos antepassados em continuidade

com a construccedilatildeo da autoimagem do grupo no presente A origem mineira assume

entatildeo uma dimensatildeo miacutetica pois seu significado eacute ampliado e formalizado de modo

simboacutelico como autorrepresentaccedilatildeo partilhada pelo grupo (PORTELLI 1998 p 120)

A memoacuteria coletiva do grupo quilombola como vimos no primeiro capiacutetulo foi

reorganizada discursivamente a partir do autorreconhecimento identitaacuterio de modo

que pudessem se tornar testemunhas contra o ldquoesquecimento compulsivordquo da sua

proacutepria trajetoacuteria histoacuterica (CONNERTON 1999 p 17) A organizaccedilatildeo poliacutetica do

grupo como quilombolas foi fundamental para a preservaccedilatildeo do que podemos chamar

de ldquomemoacuterias subterracircneasrdquo as quais satildeo majoritariamente reproduzidas pela

oralidade e ldquocomo parte integrante das culturas minoritaacuterias e dominadas se opotildeem

agrave lsquoMemoacuteria Oficialrsquo no caso a memoacuteria nacionalrdquo (POLLAK 1989 p 05)

A percepccedilatildeo de um passado comum em relaccedilatildeo ao qual se destacam as

histoacuterias contadas pelos mais velhos sobre o sofrimento que viveram em Minas

Gerais com a memoacuteria de ascendentes que foram escravizados integra-se agrave busca

por uma nova possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo por meio dos deslocamentos a

comunidades quilombolas apontando para a modificaccedilatildeo conceitual ocorrida ()rdquo (PORTO KAISS COFREacute 2012 p 41)

116

percepccedilatildeo da distintividade cultural enquanto grupo negro rural viacutetima de preconceito

racial e religioso em GuaiacuteraPR bem como a perspectiva da reelaboraccedilatildeo de um

futuro comum com acesso a direitos historicamente negados mobilizam dentre outros

fatores este processo de etnogecircnese

22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo

Quatro anos depois do iniacutecio do processo de contato com agentes externos e

do autorreconhecimento da comunidade como quilombola em 2009 e 2010 foi

realizado o primeiro relatoacuterio de cunho antropoloacutegico dentro do procedimento de

titulaccedilatildeo territorial da comunidade quilombola em Guaiacutera de responsabilidade do

INCRA105 O posicionamento dos autores defendido no documento no entanto negou

que esta comunidade em GuaiacuteraPR seria um grupo quilombola entendendo que se

tratava de uma famiacutelia negra de trabalhadores rurais e que o grupo estava construindo

recentemente esta identidade de modo vinculado com o interesse de garantia de

direitos concluindo que

ldquoO que se percebeu por intermeacutedio da pesquisa eacute que a identidade quilombola eacute algo novo entre as pessoas e que ainda esta (sic) em processo de formaccedilatildeo natildeo estando presente no pensamento coletivo eacute como se os membros da auto denominada (sic) comunidade Negra estivessem aprendendo a ser quilombolasrdquo (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1521 [p 111])

Como jaacute citado o primeiro relatoacuterio foi fruto de um convecircnio entre o INCRA e

a UNIOESTE Conforme a legislaccedilatildeo quando natildeo dispuser de profissional em seu

quadro para a realizaccedilatildeo do relatoacuterio antropoloacutegico o INCRA poderaacute realizar

contrataccedilotildees Junto com Antocircnio Pimentel Pontes Filho antropoacutelogo responsaacutevel pela

equipe tambeacutem participaram da pesquisa mais um mestre em antropologia Roberto

Biscoli e duas auxiliares de pesquisa graduandas da UNIOESTE106 A uacuteltima versatildeo

do relatoacuterio apresentada pelo antropoacutelogo responsaacutevel ndash depois dos pedidos de

105 Percebe-se como o desdobramento do procedimento no INCRA demonstra como este oacutergatildeo natildeo

tinha ainda uma compreensatildeo amadurecida sobre como lidar com as questotildees antropoloacutegicas tendo deixado que o primeiro relatoacuterio fosse concluiacutedo com suas graves consequecircncias para o grupo quilombola para apenas depois de sua finalizaccedilatildeo o avaliar como insuficiente tecnicamente e o retirar do procedimento de titulaccedilatildeo da comunidade 106 Neste convecircnio com a UNIOESTE foi produzido mais um relatoacuterio antropoloacutegico de responsabilidade do mesmo antropoacutelogo na Comunidade Quilombola Maria Adelaide Trindade Batista localizada no Municiacutepio de PalmasPR o qual tambeacutem natildeo foi aprovado

117

adequaccedilatildeo solicitados pelo INCRA os quais foram em grande parte desconsiderados

ndash era composta de centro e trinta e quatro paacuteginas organizadas nas seguintes partes

sobre as quais destacamos alguns pontos principais

(1) Introduccedilatildeo os autores do relatoacuterio trazem um debate sobre o conceito de

quilombo e se posicionam no sentido de que o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo

natildeo eacute compatiacutevel com a perspectiva relacional de etnicidade a qual

entenderia os grupos eacutetnicos como constituiacutedos em relaccedilatildeo por meio das

fronteiras O relatoacuterio afirma que esta abordagem pressupotildee que deva

haver o reconhecimento tambeacutem pelos ldquooutrosrdquo de que o grupo que se

autoidentifica apresenta uma identidade diferenciada em um processo de

ldquohetero-identidaderdquo Eacute segundo esta perspectiva reconhecida por eles

mesmos como incompatiacutevel com o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo que estatildeo

embasadas suas anaacutelises no relatoacuterio Trazem tambeacutem uma seacuterie de

informaccedilotildees sobre o processo de elaboraccedilatildeo da pesquisa elencando ao

longo de quinze paacuteginas cada uma das entrevistas realizadas bem como

demais atividades da equipe desde ofiacutecios e-mails visitas destacando

inclusive os contatos externos aos membros do grupo que foram

realizados Comentam sobre o conflito desencadeado durante a pesquisa

mas se isentam de qualquer responsabilidade em relaccedilatildeo aos

acontecimentos

(2) ldquoA auto denominada (sic) comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

pelo proacuteprio tiacutetulo atribuiacutedo ao segundo capiacutetulo do relatoacuterio recusam a

denominaccedilatildeo de ldquoquilombolasrdquo e parecem estar denunciando em uma

negaccedilatildeo dupla o processo de autorreconhecimento da comunidade como

ilegiacutetimo Apresentam uma anaacutelise sobre os membros da comunidade

como se este pertencimento estivesse restrito agraves pessoas que estatildeo

indicadas no estatuto da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco

dos Santos (ACONEMA) Trazem tambeacutem uma descriccedilatildeo das famiacutelias

que moravam na aacuterea na eacutepoca

(3) ldquoGuaiacutera ndash Paranaacute descriccedilatildeo sobre a regiatildeordquo retomam o processo histoacuterico

de colonizaccedilatildeo da regiatildeo Depois analisam o histoacuterico de constituiccedilatildeo do

que chamam ldquoComunidade de Maracaju dos Gauacutechosrdquo atribuindo ao

bairro rural tambeacutem um sentido de grupo e de relaccedilotildees de pertencimento

118

em equiparaccedilatildeo com a autodenominaccedilatildeo como comunidade por parte dos

quilombolas Afirmam que as aacutereas adquiridas pela ldquofamiacutelia Santosrdquo natildeo

constituem um territoacuterio quilombola preacute-existente e que o levantamento

realizado pelo Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) careceu de

ldquocriteacuterios antropoloacutegicosrdquo

(4) ldquoTrajetoacuteria histoacuterica da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel

Ciriaco dos Santosrdquo analisam os relatos dos membros da comunidade

sobre sua trajetoacuteria histoacuterica de fixaccedilatildeo em GuaiacuteraPR mas o fazem de

modo a desvalorizar a memoacuteria e as informaccedilotildees trazidas que satildeo

entendidas pelos autores como insuficientes ou improcedentes ao serem

por exemplo cotejadas com dados repassados pelos vizinhos Afirmam

que natildeo houve segregaccedilatildeo racial na constituiccedilatildeo do bairro rural e que natildeo

existiria preconceito por parte dos vizinhos acusando ao contraacuterio os

membros da comunidade de serem preconceituosos em relaccedilatildeo aos

ldquoitalianosrdquo

(5) ldquoCaracterizaccedilatildeo atual da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel

Ciriaco dos Santos sua organizaccedilatildeo espacial e socialrdquo apresentam uma

descriccedilatildeo da comunidade destacando as poliacuteticas puacuteblicas e os cursos a

que passaram a ter acesso bem como as atividades de cultivo e criaccedilatildeo

de animais Afirmam haver um sentimento de propriedade e de posse

particular por parte dos membros da comunidade que natildeo se organizaria

por dinacircmicas propriamente comunitaacuterias Concluem que os moradores da

comunidade natildeo se diferenciam em suas praacuteticas de seus vizinhos

Trazem informaccedilotildees geneacutericas sobre ldquopapeacuteis sociaisrdquo entre os seus

membros e tambeacutem sobre religiatildeo

(6) ldquoRe-construccedilatildeo (sic) de uma memoacuteria e de uma identidade socioculturalrdquo

defendem a perspectiva de que deve ser alcanccedilada uma objetividade

etnograacutefica e afirmam neste sentido que o processo de construccedilatildeo da

identidade eacutetnica do grupo seria recente e giraria em torno de uma

finalidade poliacutetica a partir do contato do grupo com agentes externos com

o objetivo de criar uma distinccedilatildeo ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo Os autores afirmam que tal

identidade estaacute baseada em suposiccedilotildees de uma origem e de

antepassados que teriam sido escravos Defendem que se haacute preconceito

119

no acircmbito da relaccedilatildeo com os vizinhos eacute um preconceito muacutetuo e concluem

dizendo que a ldquoauto denominada comunidade negrardquo (sic) natildeo apresenta

os sinais diacriacuteticos que ldquodeveriamrdquo os diferenciar

(7) ldquoResultado da periacuteciardquo por fim asseveram que apesar de terem partido da

categoria do autorreconhecimento entendem que natildeo haacute territoacuterio

quilombola a ser indicado pois a equipe de pesquisa ldquoconstatourdquo que eles

seriam apenas herdeiros de uma propriedade e que portanto ldquopossuem

relaccedilotildees comuns ao mundo ruralrdquo natildeo havendo um territoacuterio quilombola

preacute-existente

(8) Bibliografia e anexos

Para analisar os argumentos apresentados por este relatoacuterio ldquoanti-

antropoloacutegicordquo eacute importante primeiramente trazer algumas reflexotildees dos quilombolas

em relaccedilatildeo agrave forma como foram conduzidos os trabalhos pela primeira equipe de

pesquisadores

Joaquim Os antropoacutelogos que eles arrumaram Dandara eu falei assim ldquovocecircs tinha que arrumar uns antropoacutelogo que sabia fazer antropologia Os antropoacutelogos natildeo ficavam com noacutes aqui Era duas horas trecircs horas por dia soacute vinha e voltava raacutepido noacutes desconfiou dos antropoacutelogo Aiacute noacutes tava laacute dentro de Guaiacutera e eles trataram com o Adir que era pra noacutes encontrar que eles ia pegar coacutepia do certificado da comunidade Noacutes taacute esperando e ldquonoacutes tamo chegando tamo chegandordquo e natildeo chegava Aiacute tinha esse advogado que eacute vizinho nosso aqui que mora laacute em Guaiacutera Daqui a pouco ele vem e vem os dois antropoacutelogos de laacute pra caacute no escritoacuterio dele e noacutes tava em frente a prefeitura que eacute pertinho Aiacute eles chegaram ldquoeacute mas noacutes natildeo pode ficar aqui que a turma taacute de zoacuteio em noacutes que natildeo sei que laacuterdquo Pegou a coacutepia da nossa matildeo e despediu de noacutes ldquoNoacutes tem que vazar emborardquo ldquoentatildeo taacute bomrdquo Mas a gente natildeo eacute tanto besta neacute aiacute noacutes pensamos ldquosabe de uma coisa vou dar uma volta na rua aqui pra ver se eles foram embora mesmordquo Noacutes damo a volta na rua eles laacute no advogado e tinha ido embora Aiacute tudo que eles falavam no raacutedio o advogado tava sabendo que era representando os agricultor neacute Ele tava sabendo tudinho Mas quem taacute passando informaccedilatildeo eacute os antropoacutelogos Menina noacutes teve raiva laacute em Toledo na Universidade eles chamaram pra noacutes pra ter uma reuniatildeo () Quando esse antropoacutelogo comeccedilou a falar eu falei com eles assim ldquovocecircs pensa que noacutes eacute tatildeo besta Tatildeo besta natildeo eacute noacutes eacute da roccedila natildeo temo estudo natildeo temo a linguagem que vocecircs fala mas vocecirc lembra aquele dia que vocecircs tava em Guaiacutera Vocecircs dando noacute em noacutes falando que ia embora se vocecircs tava laacute junto com o advogado e tudo ele taacute sabendo o que vocecircs tava fazendordquo E eu falei ldquoa antropologia de vocecircs eacute fraca Eu natildeo entendo de antropologia a antropologia de vocecircs eacute fracardquo Eu falei ldquovocecircs fica sabendordquo - e tava gravando e filmando ndash ldquovocecircs tatildeo fazendo antropologia de cem quilocircmetros de distacircncia cem quilocircmetrordquo Aiacute o reitor da universidade abanou a cabeccedila Aiacute eu falei ldquovocecircs natildeo fizeram nada vocecircs natildeo fizeram nada nadardquo

120

Percebe-se que a criacutetica que Joaquim faz inicia-se com uma

responsabilizaccedilatildeo do INCRA pois foram eles que ldquoarrumaramrdquo estes antropoacutelogos

para fazer o estudo Interessante observar neste sentido que Antocircnio Pimentel

Pontes Filho o pesquisador responsaacutevel pelo estudo natildeo tinha experiecircncia com

grupos etnicamente diferenciados sendo que suas pesquisas de graduaccedilatildeo e

mestrado giravam em torno de questotildees relacionadas agrave antropologia da religiatildeo com

foco na organizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica O INCRA com uma gestatildeo burocratizada e

impessoal apesar de ter tido acesso a versotildees preliminares do relatoacuterio que iam

abertamente de encontro ao criteacuterio da autoatribuiccedilatildeo natildeo evitou contudo que um

relatoacuterio final - depois considerado pelo proacuteprio INCRA como de ldquobaixa qualidaderdquo ndash

fosse incorporado ao procedimento da comunidade Apenas depois da natildeo aprovaccedilatildeo

da versatildeo final pelo INCRA encaminharam-se as medidas administrativas para

finalizar o convecircnio com a UNIOESTE por meio de um procedimento separado ainda

em tracircmite no qual passou a constar o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo

(Procedimento Administrativo 542000023842008-33) retirado do procedimento de

regularizaccedilatildeo do territoacuterio da comunidade (Procedimento Administrativo

542000010752008-46)

A partir da fala de Joaquim citada acima eacute possiacutevel tambeacutem entender qual o

lugar que a relaccedilatildeo com os antropoacutelogos passa a ocupar no discurso dos quilombolas

sistematizada na indicaccedilatildeo de trecircs momentos centrais O primeiro momento diz

respeito agrave constataccedilatildeo da falta de contato da equipe de pesquisa com o grupo jaacute que

natildeo estavam presentes na comunidade durante um periacuteodo de tempo considerado

satisfatoacuterio pelos quilombolas A permanecircncia em campo eacute tida portanto como um

criteacuterio determinante para a antropologia inclusive na visatildeo das lideranccedilas

quilombolas O segundo momento central apresentado por Joaquim diz respeito agrave

percepccedilatildeo de que haveria um viacutenculo dos pesquisadores com os proprietaacuterios

vizinhos o que lhes causou revolta dada a mobilizaccedilatildeo agressiva desencadeada

contrariamente ao trabalho do INCRA na localidade Assim a leitura que Joaquim faz

em relaccedilatildeo ao resultado do relatoacuterio passa pela percepccedilatildeo de um compromisso direto

dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos O terceiro momento eacute quando

Joaquim destaca a possibilidade de uma reaccedilatildeo bem-sucedida do grupo em uma

reuniatildeo realizada na UNIOESTE Nesta oportunidade eles verbalizaram

publicamente esta insatisfaccedilatildeo com o trabalho produzido e questionaram os

121

antropoacutelogos diretamente sobre o que consideraram ser uma ldquoantropologia de cem

quilocircmetros de distacircnciardquo destacando a importacircncia que datildeo agrave relaccedilatildeo de proximidade

e confianccedila que natildeo se estabeleceu em nenhum momento com esta primeira equipe

A dificuldade de comunicaccedilatildeo foi outro ponto destacado por Joaquim o que

se configura em um problema muito seacuterio e limitador em uma pesquisa antropoloacutegica

ainda mais quando se trata de um estudo sobre a reivindicaccedilatildeo territorial do grupo

Adir E depois laacute em Cascavel dizer pra noacutes assim ldquopelo que noacutes pesquisamos vocecircs durante esse tempo vocecircs eacute uma comunidade igual agrave comunidade de Maracaju natildeo tem diferenccedila nenhuma Vocecircs natildeo satildeo quilombolardquo ()

Joaquim O que os outros plantava noacutes plantava tambeacutem Eu falei assim ldquoOh noacutes planta pimenta noacutes planta taioba noacutes planta inhame Vocecirc viu os italianos se eles tecircm inhame plantado tem taioba tanta coisa se eles temrdquo aiacute ele diz que eacute tarde

Adir Eu mostrei pra eles o que noacutes cultivava eu falei ldquooacute a nossa histoacuteria professor Antocircnio vocecirc pode prestar atenccedilatildeo da nossa histoacuteria Noacutes nossos antepassados vieram da Aacutefrica trazido pra um solo brasileiro trabalharam como escravo cara

Joaquim Eles falaram isso laacute em Cascavel soacute que em Toledo eles mudaram

Adir ldquoAjudar a construir esse paiacutes soacute isso jaacute chega natildeo precisa de mais nada Soacute a nossa cor jaacute nos identifica noacutes mesmo a nossa escravidatildeo no passado Seraacute que pra vocecirc que eacute um professor um doutor vem falar issordquo

O depoimento acima sintetiza a concepccedilatildeo de que o fato de serem da cor

negra jaacute demonstra a descendecircncia de africanos escravizados Esta compreensatildeo

identificada no plano eacutetnico-racial correlaciona parentesco com traccedilos fenotiacutepicos e

expressa ldquoas propriedades primordiais elegidas para a construccedilatildeo de uma memoacuteria

das lsquoorigensrsquo remetida agrave experiecircncia comum do cativeirordquo (RUBERT SILVA 2009 p

269) A fala aponta tambeacutem para a percepccedilatildeo dos sujeitos quilombolas em relaccedilatildeo agrave

valorizaccedilatildeo das diferenccedilas entre eles e os proprietaacuterios vizinhos sendo que os sinais

diacriacuteticos destacados por Joaquim se referem aos tipos de alimentos cultivados pelo

grupo quilombola As diferenccedilas se expressam aleacutem disso no lugar social dos

quilombolas em contraste com o lugar dos antropoacutelogos de um lado a experiecircncia

histoacuterica de opressatildeo a autoidentificaccedilatildeo que comeccedila pela cor da pele a afirmaccedilatildeo

de uma cultura proacutepria e distinta e de uma relaccedilatildeo especiacutefica com uma base territorial

de outro pesquisadores de uma elite (branca) ldquoum doutorrdquo que mesmo antropoacutelogo

desconsiderou a percepccedilatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria quando deveria ter

pelo menos buscado compreendecirc-la

122

O fato de as famiacutelias que se autodefinem como quilombolas natildeo terem um

viacutenculo ancestral com aquele territoacuterio por serem provenientes de outra regiatildeo bem

como o fato de serem donos da aacuterea que ocupam em GuaiacuteraPR foi interpretado pelo

primeiro relatoacuterio como um fator de descaracterizaccedilatildeo de sua ldquoquilombolidaderdquo A

conquista do acesso formal agrave terra por estas famiacutelias superando todo um contexto de

exclusatildeo territorial da populaccedilatildeo negra foi entendida como um criteacuterio para negar o

reconhecimento do direito de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio considerado como condiccedilatildeo

fundamental pelos quilombolas para viabilizar a sobrevivecircncia do grupo Este tipo de

compreensatildeo por parte dos autores do relatoacuterio evidencia uma certa expectativa de

que a condiccedilatildeo de estar agrave margem do sistema formal de propriedade seria um iacutendice

da legitimidade da reivindicaccedilatildeo de direitos territoriais quilombolas

As propriedades adquiridas na comunidade de Maracajuacute dos Gauacutechos pela famiacutelia Santos por meio de Seu Manuel natildeo caracterizam um territoacuterio preacute-existente nem se justifica o pedido pelos membros desta comunidade ou de sua representante coletiva ACONEMA de uma expansatildeo territorial (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1466 [p 56])

Tal perspectiva que parte da ideia de um territoacuterio ancestralmente ocupado

desconsidera o fato de que ldquopor sua mesma estrutura e mobilidade os quilombos natildeo

permitiram uma continuidade da ocupaccedilatildeo da terra e sobretudo natildeo deixaram restos

arqueoloacutegicos ou provas documentaisrdquo (MALIGUETTI 2000 p 102) (traduccedilatildeo minha)

Eacute muito difiacutecil encontrar provas factuais da existecircncia de quilombos histoacutericos e

praticamente impossiacutevel provar que o lugar e a terra onde as comunidades

quilombolas vivem hoje sejam os mesmos em que originariamente se formaram Este

tipo de comprovaccedilatildeo faacutetica natildeo eacute exigido pelo Decreto 48872003 que regulamenta o

procedimento de titulaccedilatildeo atualmente em vigor Em seu artigo 2ordm considera como

ldquoremanescentes das comunidades dos quilombosrdquo os grupos eacutetnico-raciais ldquosegundo

criteacuterios de auto-atribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees

territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a

resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo Em relaccedilatildeo agrave territorialidade afirma no sect2ordm

do mesmo artigo que ldquosatildeo terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos as utilizadas para a garantia de sua reproduccedilatildeo fiacutesica social econocircmica e

culturalrdquo

123

Natildeo haacute na legislaccedilatildeo portanto a imposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo de verdadeiro ou

falso a partir da ideia de prova histoacuterica em relaccedilatildeo agraves narrativas daqueles que se

autodefinem como quilombolas No entanto a utilizaccedilatildeo de argumentos de ordem

histoacuterica se torna o padratildeo de persuasatildeo discursiva de modo mais amplo na

produccedilatildeo de relatoacuterios antropoloacutegicos sobre grupos quilombolas adotando loacutegicas e

linguagem proacuteprias agraves instacircncias do Estado pautadas em criteacuterios de verdade para

ganhar eficaacutecia

() os laudos sobre remanescentes de quilombos satildeo produzidos quase invariavelmente ndash com maior ou menor competecircncia clareza e elaboraccedilatildeo por parte dos seus autores ndash lanccedilando matildeo de argumentos histoacutericos Assim ao ser expulsa pela porta a histoacuteria retorna pela janela numa versatildeo ingecircnua e positivista quando natildeo simplesmente hipoteacutetica (ARRUTI 2005 p 24)

A postura analiacutetica defendida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo

aponta para a supremacia de instacircncias externas de legitimaccedilatildeo e a desconsideraccedilatildeo

do ponto de vista da comunidade o que se expressa por exemplo na busca por

comprovaccedilotildees histoacutericas Deste modo emprestam ldquoagraves identidades sociais substacircncia

e permanecircnciardquo buscando no passado uma continuidade linear com as dinacircmicas do

presente e assim desconsideram as ldquocategorias e praacuteticas nativas da construccedilatildeo

simboacutelica do grupo e de sua atualizaccedilatildeo por meio de accedilotildees sociaisrdquo (OLIVEIRA

FILHO SANTOS 2003 p 116-131) que satildeo o vetor da elaboraccedilatildeo de laudos periciais

antropoloacutegicos Ignorando o processo contiacutenuo de produccedilatildeo de fronteiras sociais o

relatoacuterio em um tom de autoridade afirma que se ldquoconstatourdquo

() com relaccedilatildeo agrave presunccedilatildeo de ancestralidade da Famiacutelia Santos primeiro natildeo haacute nenhuma memoacuteria sobre escravismo na regiatildeo em que vivem hoje segundo que eles mesmos natildeo descrevem essa ancestralidade como sendo do local onde estatildeo pois se dizem filhos de mineiros (e por exemplo o mineirismo a mineiridade satildeo demonstrados pela culinaacuteria que praticam pelo que cultivam em suas hortas dentre outros aspectos (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1528 [p 118])

Este tom objetivista perpassa todo o relatoacuterio e se amplifica no uso de

expressotildees como ldquocomprovaccedilatildeo documentalrdquo ldquoinformaccedilatildeo confirmadardquo

ldquocomprovaccedilatildeo por meio de pesquisa histoacutericardquo assim como o uso dos verbos como

ldquoconstatou-serdquo e ldquoverificou-serdquo entre outras construccedilotildees discursivas este mesmo

padratildeo Aleacutem disso ao longo do texto os autores expressam de maneira reiterada as

124

suas desconfianccedilas em relaccedilatildeo agrave legitimidade das fontes orais107 Estas posturas

estatildeo todas articuladas em uma certa visatildeo do que seria o criteacuterio antropoloacutegico de

pesquisa enquanto conhecimento teacutecnico e cientiacutefico e o papel do antropoacutelogo como

ldquopesquisador-censorrdquo em sua abordagem essencialista da identidade eacutetnica (MELLO

2012 p 44) como fica evidenciado neste trecho do relatoacuterio

Como apontam diversos autores e estudos antropoloacutegicos a antropologia se baseia nas etnografias feitas e estas natildeo satildeo apenas subjetividade dos autores eou um amontoado de dados mas sim uma compreensatildeo objetiva com argumento de objetividade etnograacutefica sobre um problema social posto para estudo Assim natildeo se incorre em um jogo de versotildees sobre um fato eou mera disputa de opiniotildees (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1511 [p 101])

Dentro desta visatildeo de uma pretensa ldquoobjetividade etnograacuteficardquo os autores do

relatoacuterio entendem que tecircm como atribuiccedilatildeo averiguar a existecircncia ou natildeo de uma

comunidade quilombola Apesar de afirmarem reconhecer e operar a partir do conceito

de autoidentificaccedilatildeo que estaacute previsto na legislaccedilatildeo nacional natildeo a incorporam como

premissa teoacuterica e etnograacutefica No iniacutecio do relatoacuterio haacute uma tentativa de justificar a

natildeo adesatildeo completa ao criteacuterio da autodefiniccedilatildeo com o argumento de que este seria

insuficiente para definir a identidade do grupo devendo ser complementado por uma

noccedilatildeo heteroidentidade que torna necessaacuterio o reconhecimento exterior de que se

trata de um grupo percebido como distinto em uma relaccedilatildeo entre ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo

No Decreto 4887 fica claro que os criteacuterios a serem reconhecidos pelo governo federal satildeo o de auto-atribuiccedilatildeo contrastando com a perspectiva antropoloacutegica interacionista relacional pois esta trabalha com o processo de construccedilatildeo da identidade onde a categoria do ldquonoacutesrdquo constroacutei-se na relaccedilatildeo com a categoria do ldquoelesrdquo natildeo existindo uma heacutetero identidade (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1422 [p 12])

Eacute possiacutevel perceber por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica de todo o texto do

relatoacuterio que houve um uso instrumental e distorcido da teoria da identidade

107 Como observa Alessandro Portelli em seu livro ldquoEnsaios de Histoacuteria Oralrdquo os documentos satildeo

envoltos por uma ldquopresunccedilatildeo de verdade que uma certa historiografia atribui agraves fontes escritas consagrando-as com o nome de documentosrdquo Trata-se da historiografia do seacuteculo XIX que tomou o documento como uma realidade sem perceber no entanto que eles estatildeo tambeacutem permeados pela ideologia pelos sonhos e pela subjetividade de quem os escreve Esta corrente historiograacutefica teve forte influecircncia na atribuiccedilatildeo de superioridade das fontes escritas sobre as fontes orais o que se percebe claramente no acircmbito do direito e mais especificamente nos processos judiciais e administrativos (PORTELLI 201068)

125

contrastiva proposta pelo antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth Ao contraacuterio do que

afirmado no trecho acima foi a partir das contribuiccedilotildees deste autor que processos de

autoatribuiccedilatildeo passaram a ser considerados como centrais no estudo dos grupos

eacutetnicos bem como no modo de constituiccedilatildeo dos proacuteprios limites sociais do grupo com

relaccedilatildeo a outros grupos No caso das comunidades quilombolas segundo os

desdobramentos das anaacutelises desta tradiccedilatildeo teoacuterica o reconhecimento destes grupos

natildeo deve partir de ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da

interpretaccedilatildeo historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI

2006 p 39-40) Contraditoriamente eacute a partir de uma tal lista que os autores do

relatoacuterio parecem estabelecer os paracircmetros para embasar a pretensa ldquoobjetividade

etnograacuteficardquo que reivindicam

Esta contradiccedilatildeo fica evidente por exemplo no argumento desenvolvido a

respeito da existecircncia ou natildeo dos ldquosinais diacriacuteticos que deveriam os diferenciar dos

seus vizinhosrdquo e em natildeo os constatando concluem que fica ldquoevidente sim os sinais

diacriacuteticos que os igualam no seu modo de ser dos demais moradores da comunidade

Maracaju dos Gauacutechosrdquo (grifo meu) Esta utilizaccedilatildeo da ideia de fronteira entre ldquonoacutesrdquo e

os ldquoelesrdquo parece ter sido acionada ao longo do texto para justificar a opccedilatildeo pela

realizaccedilatildeo de um trabalho de campo ndash que consideram amplo neutro e mais

aprofundado ndash no qual estabeleceram contato efetivo de pesquisa com pessoas ldquoda

comunidade negra da comunidade de Maracaju dos Gauacutechos e da cidaderdquo108

Com relaccedilatildeo agrave ideia de que a ldquoauto-identidade que eacute definida por si mesmardquo

dependeria de uma ldquohetero-identidade que eacute definida pelos outrosrdquo109 argumentam

Compreende-se que a identidade eacute sempre contrastiva relacional e situacional focando essa fronteira entre o ldquonoacutesrdquo e os ldquooutrosrdquo se procurou dar voz ao entorno da auto denominada comunidade Negra moradores de origem eacutetnica italiana alematilde portuguesa ou entatildeo mineiros gauacutechos paulistas paraiacutebas pois a equipe de pesquisa entendeu que devia observar como os grupos se vecircem e satildeo vistos uns pelos outros (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1518 [p 108])

A despeito novamente de afirmarem que ldquoprivilegiaram a metodologia

participativa a qual prevecirc a incorporaccedilatildeo de saberes e perspectivas locais em todas

as etapas do estudordquo110 em muitos momentos do relatoacuterio a fala dos quilombolas satildeo

108 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1438 [p 28] 109 Idem p 1519 [p 109] 110 Ibidem p 1426 [p 16]

126

questionadas ao passo que agrave versatildeo dos proprietaacuterios vizinhos eacute atribuiacuteda

legitimidade considerando que esta sim poderia ser comprovada documentalmente

Essa adesatildeo ao discurso dos proprietaacuterios do entorno foi utilizada como argumento

comprovatoacuterio da natildeo existecircncia de segregaccedilatildeo racial por parte da ldquoSociedade Agro-

Pecuaacuteria Maracaju LTDArdquo que teria vendido os lotes indistintamente inclusive para

Manoel Ciriaco

Assim esta pretensa ausecircncia de discriminaccedilatildeo formal ganha destaque no

texto enquanto o sentimento de discriminaccedilatildeo vivenciado pela comunidade quilombola

eacute desqualificado Os autores afirmam por exemplo que ldquoa equipe de pesquisa

constatou atraveacutes das falas da famiacutelia Santos a existecircncia de um auto-isolamento

motivado pela pobreza e timidezrdquo111 O fato de ter ocorrido um casamento entre a

enteada de Adir Juliana (que natildeo tem viacutenculo de parentesco com o grupo e que

poderia ser considerada apenas como ldquomorenardquo na classificaccedilatildeo interna112) com um

dos descendentes dos italianos eacute considerado pelos autores como uma prova de que

natildeo haveria preconceito racial por parte dos ldquoitalianosrdquo Por outro lado identificam uma

fala ldquogeneralista e preconceituosardquo da parte de Zeacute Maria

Joseacute Maria Gonccedilalves relata que ldquoos italianos sempre quiseram comprar as nossas terras queriam afastar a gente daqui porque somos pretosrdquo Tal fala chamou a atenccedilatildeo da equipe de pesquisa pois desde o primeiro dia de pesquisa de campo se sabia que Juliana enteada do Adir Santos pertencente a auto denominada comunidade Negra Manoel Ciriaco dos santos eacute casada com Fabio Graciano filho de Paulo Um casamento entre negros e ldquoitalianosrdquo desabona a fala generalista e preconceituosa exposta por Joseacute Maria (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473 [p 63])

Argumentam tambeacutem que puderam observar um preconceito por parte da

proacutepria comunidade Manoel Ciriaco em relaccedilatildeo aos seus vizinhos aos quais

denominariam como ldquoitalianosrdquo ldquoalematildeesrdquo ldquoratos brancosrdquo entre outros termos

Buscam atribuir assim uma equivalecircncia entre os dois lados desconsiderando a

percepccedilatildeo quilombola de uma desigualdade de poder e oportunidades entre brancos

e negros Os quilombolas afirmam neste sentido que sempre trabalharam para esses

proprietaacuterios em relaccedilotildees informais de trabalho como por meio de diaacuterias situaccedilotildees

111 Ibidem p 1520 [p 110] 112 Depois que a enteada de Adir se casou com o filho de um agricultor do Maracaju dos Gauacutechos

descendente de italianos rompeu com a comunidade inclusive tendo agredido verbalmente sua matildee e condenando a reivindicaccedilatildeo do grupo

127

nas quais eles lhes pagavam o quanto desejavam Aleacutem disso sentem-se alvo de

racismo em diversas situaccedilotildees ao longo de anos como jaacute apontamos nas falas

ressaltadas no primeiro capiacutetulo

No acircmbito desta descaracterizaccedilatildeo da comunidade produzida pelo

documento ndash que parece funcionar mais como um contra-laudo ao fundamentar-se na

ldquoheacutetero-identidaderdquo produzida pela visatildeo dos proprietaacuterios vizinhos ndash um dos aspectos

destacados diz respeito agrave suposta natildeo autenticidade da reivindicaccedilatildeo da identidade

quilombola tendo em vista que esta seria decorrente de um contato estreito com

agentes externos

Este processo de construccedilatildeo de identidade eacutetnica estaacute baseado em accedilotildees inicialmente de agentes esternos (sic) a auto denominada (sic) Comunidade Negra e que a partir destes contatos tem buscado em supostas interpretaccedilotildees de origens antepassado que teriam sido escravos (sic) bem como a criaccedilatildeo de uma memoacuteria de exclusatildeo por parte das sociedades onde viveram (Itambeacute do Serro Caiabu e agora Maracaju dos Gauacutechos) () (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473

[p 63]) 113

Ao passo que neste relatoacuterio a inserccedilatildeo do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura

(GTCM) no cenaacuterio poliacutetico de estiacutemulo agrave autodeclaraccedilatildeo e organizaccedilatildeo associativa

quilombola foi considerada como ilegiacutetima por ldquotrazer de forardquo a reivindicaccedilatildeo da

identidade no Relatoacuterio Antropoloacutegico da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna

localizada em CuriuacutevaPR realizado pela antropoacuteloga Liliana Porto a importacircncia

deste trabalho do GTCM eacute destacada como uma ldquoguinada significativardquo para o

reconhecimento das comunidades quilombolas no contexto paranaense A

antropoacuteloga ressalva contudo que tal elaboraccedilatildeo identitaacuteria das comunidades soacute foi

possiacutevel tendo como base elementos preacute-existentes que foram entatildeo mobilizados

pelos grupos ldquoa partir de um contexto poliacutetico-legal novordquo (PORTO 2008 07)

Esta desvalorizaccedilatildeo por parte dos autores do relatoacuterio sobre a comunidade de

GuaiacuteraPR do que consideram ldquoelementos trazidos de forardquo implica em uma

essencializaccedilatildeo da cultura o que contrasta diretamente com a abordagem relacional

da etnicidade que afirmam adotar Dentro desta perspectiva o fato de os quilombolas

terem passado a participar posteriormente agrave certificaccedilatildeo pela Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares de aulas de artesanato e de capoeira indicaria um esforccedilo natildeo autecircntico do

113 Transcriccedilatildeo igual agrave redaccedilatildeo no texto original inclusive com os erros de portuguecircs

128

grupo por praacuteticas que pudessem ldquolembrar haacutebitos de seus antepassadosrdquo114 No

entanto estes autores natildeo levam em conta que ldquoos discursos sobre o passado

apontam a maneira como no presente se lida com este passadordquo (PORTO SALLES

MARQUES 2013 p174) tendo em vista ainda uma certa de expectativa de futuro

Neste sentido segundo Joatildeo Aparecido quilombola que mora na comunidade

e que eacute filho de Manoel Ciriaco a capoeira jaacute era praticada por eles mas natildeo do

mesmo jeito que passaram a jogar com as aulas do Mestre Djalma Este professor foi

contratado pela prefeitura a partir de uma articulaccedilatildeo dos quilombolas Antes segundo

Joatildeo a praacutetica da capoeira era uma brincadeira ensinada pelos primos que moravam

em AssisSP que tinham mais experiecircncia Com as aulas do Mestre Djalma na

comunidade comeccedilaram a aprender de forma sistematizada com troca de cordatildeo115

realizada em Guaiacutera e com uma periodicidade que proporcionou o envolvimento todos

os jovens da comunidade Este enfoque em atividades para os jovens eacute algo sempre

reforccedilado por Adir como uma necessidade de trazecirc-los mais proacuteximos da histoacuteria do

grupo da cultura pois satildeo eles que iratildeo dar continuidade no futuro

A capoeira foi entatildeo mobilizada como um marcador da diferenccedila cultural do

grupo na condiccedilatildeo de siacutembolo de resistecircncia dos escravos ao sistema de opressatildeo e

tornou-se tambeacutem uma espeacutecie de ldquoritual poliacuteticordquo para demarcar fronteiras a partir da

exigecircncia de descontinuidade com os regionais116 Todas as vezes que a comunidade

recebe visita de escolas sobre as quais mencionamos no primeiro capiacutetulo eacute a roda

de capoeira a performance da cultura escolhida para falar sobre as origens do grupo

e sobre a continuidade de sua luta Neste sentido Adir compara a resistecircncia dos

negros do passado com o momento presente do grupo no qual continuam resistindo

aos processos de negaccedilatildeo de direitos impostos a partir da loacutegica do capitalismo em

que as exclusotildees social e racial se reforccedilam mutuamente Joatildeo Aparecido tambeacutem

comentou que escolheram o berimbau como siacutembolo da Associaccedilatildeo Comunidade

Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) porque a capoeira ajudou na histoacuteria

114 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1513 [p 103] 115 Momento no qual o aluno sobe de gradaccedilatildeo e recebe um novo cordatildeo que usa com o uniforme do

grupo de capoeira Para tanto no dia da troca ele tem que colocar em praacutetica o que aprendeu no entanto ldquotem que esquivar mas natildeo pode revidarrdquo 116 No caso analisado por Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho sobre a emergecircncia de identidades indiacutegenas no Nordeste o ritual poliacutetico mobilizado foi o ldquotoreacuterdquo protagonizado ldquosempre que eacute necessaacuterio demarcar as fronteiras entre lsquoiacutendiosrsquo e lsquobrancosrsquo Ele ldquopermite exibir a todos os atores presentes nessa situaccedilatildeo intereacutetnica (regionais indigenistas e os proacuteprios iacutendios) os sinais diacriacuteticos de uma indianidade (Oliveira 1988) peculiar aos iacutendios do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1997 p 60)

129

dos quilombos e se relaciona diretamente com a religiosidade do grupo lembrando-

se de como o seu irmatildeo Zeacute Maria gostava de cantar as ladainhas de capoeira que

satildeo como os pontos do terreiro de Umbanda117

Na anaacutelise dos processos de autoidentificaccedilatildeo eacutetnica segundo Barth e sua

teoria da identidade contrastiva natildeo satildeo as diferenccedilas em si que importam mas como

em determinados contextos elas satildeo acionadas (BARTH 2011) como neste caso do

acionamento da capoeira como um siacutembolo central da comunidade Ademais o

compartilhamento por um grupo de uma mesma cultura e a consequente produccedilatildeo de

diferenccedilas culturais deve ser lido como consequecircncia de processos de interaccedilatildeo e

natildeo como causa primeira (VILLAR 2004 171) Na contramatildeo desta perspectiva os

autores do relatoacuterio antropoloacutegico pareciam estar agrave procura de traccedilos ldquooriginaisrdquo que

correspondessem a um modelo estereotiacutepico de quilombo Tal noccedilatildeo pode ser

remetida ao modo como a histoacuteria oficial se reporta agrave experiecircncia da formaccedilatildeo de

quilombos enquanto fenocircmeno social que ocorreu durante o periacuteodo escravista118

Em relaccedilatildeo agrave anaacutelise da presenccedila de ldquomemoacuterias sobre a escravidatildeordquo na

comunidade os autores do relatoacuterio afirmam que apesar de existirem referecircncias agrave

escravidatildeo natildeo existiriam ldquoreminiscecircncias de um quilombordquo119 Afirmam entatildeo que

ldquoa identidade como algo contrastivo se faz presente desde antes desse pedido de

reconhecimentordquo mas que ldquoa construccedilatildeo de uma identidade quilombola eacute algo

recenterdquo120 Deste modo o relatoacuterio eacute finalizado com a seguinte conclusatildeo

Por fim a equipe de pesquisa esclarece que o que se viu constatou e

verificou foram somente dois lotes rurais de nuacutemeros 186ordf (pertencentes por

heranccedila aos filhos de Seu Manoel C Santos) assim como os lotes rurais dos

seus vizinhos como constatado no mapa da Gleba nordm 4-A colocircnia ldquoCrdquo Serra

Maracajuacute natildeo havendo distinccedilatildeo entre eles portanto natildeo haacute qualquer

territorialidade quilombola possiacutevel na regiatildeo da comunidade de Maracajuacute dos

Gauacutechos Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do

INCRAPR p 1532 [p 122]

117 Por outro lado a religiosidade embora central como vimos no capiacutetulo anterior natildeo eacute mobilizada

pelo grupo como marcador puacuteblico de identidade o que pode estar ligado a uma estrateacutegia de evitar as criacuteticas geradas pela combinaccedilatildeo de preconceito racial e religioso bem como pode decorrer da opccedilatildeo de deixar a esfera do sagrado separada das dinacircmicas de mobilizaccedilatildeo identitaacuterias pelo seu proacuteprio valor especial e superior 118 Deste modo determinadas caracteriacutesticas da experiecircncia do quilombo com mais repercussatildeo histoacuterica o quilombo de Palmares tecircm sido colocadas como regras e condicionantes para o reconhecimento de outros grupos com histoacuterias e caracteriacutesticas diversas (MILANO 2011 31) 119 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1505 [p 95] 120 Idem p 1521 [p 111]

130

Esta insistecircncia em uma classificaccedilatildeo externa por parte dos autores do relatoacuterio

se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos e suas formas de viver

na medida em que natildeo reconhece a possibilidade de autoidentificaccedilatildeo destes grupos

Deste modo

ldquose a situaccedilatildeo se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos populaccedilotildees sobre suas formas de viver na medida pois ldquose a situaccedilatildeo presente eacute de pluralismo do corpo social se natildeo mais subsiste o poder de um grupo sobre os demais natildeo haacute soluccedilatildeo possiacutevel senatildeo que cada qual assuma para si as suas definiccedilotildees identitaacuteriasrdquo (DUPRAT 2014 p 60)

Natildeo eacute pertinente portanto fundamentar a negativa do acesso ao direito

territorial quilombola como faz o relatoacuterio com base no argumento de que haveria

uma manipulaccedilatildeo identitaacuteria por parte do grupo Este ponto de vista decorre de uma

perspectiva superada teoricamente na antropologia que parte de uma

ldquoessencializaccedilatildeo impliacutecita dos conteuacutedos socioculturais que informariam as

identidades eacutetnicasrdquo (SANTOS 1996 p 136)

Muitas perguntas podem ser levantadas com a anaacutelise deste documento Eacute

possiacutevel que a antropologia sirva a interesses antagocircnicos como de quilombolas e de

proprietaacuterios vizinhos Pode a antropologia ser vista como um saber teacutecnico e natildeo

poliacutetico Eacute possiacutevel reconhecer a diversidade sem transformar o Outro em uma

imagem paacutelida de noacutes mesmos Sem pretender esgotar o debate entendo que antes

de mais nada eacute necessaacuterio aceitar que haacute muito o que se avanccedilar nas poliacuteticas

puacuteblicas no Brasil para que natildeo seja a proacutepria imagem do Estado sobre a diversidade

a uacutenica possibilidade de reconhecimento admitida (HARTUNG 2009 p 11)

Para os quilombolas de GuaiacuteraPR as consequecircncias do primeiro relatoacuterio

foram muito graves como veremos a respeito do conflito desencadeado ndash que seraacute

abordado no toacutepico abaixo A necessidade de lidar com a negaccedilatildeo oficial de sua

identidade colocou-os diante de uma encruzilhada ou desistiam do processo em

tracircmite no INCRA de modo que a primeira versatildeo do relatoacuterio se tornaria a uacutenica

interpretaccedilatildeo oficial sobre a trajetoacuteria do grupo ndash mesmo que natildeo aprovada pelo

INCRA e pela comunidade ndash ou optariam por passar por um novo estudo que

recomeccedilaria todo o processo e poderia reacender os conflitos com os proprietaacuterios

vizinhos mas por outro lado tambeacutem seria uma chance de rever e responder aos

questionamentos colocados pela equipe da UNIOESTE e dar seguimento agrave

131

reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial do grupo Decidiram entatildeo continuar a trilhar o

caminho do reconhecimento territorial

23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS

O processo de produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo foi o eixo de

um conflito desencadeado entre a comunidade quilombola e os proprietaacuterios vizinhos

como analisaremos neste momento Quando finalizado este documento natildeo foi

aprovado pela comunidade que natildeo se sentiu nele representada nem tampouco pelo

INCRA que por questotildees de insuficiecircncias teacutecnicas o rejeitou No ano de 2012

ocorreu a produccedilatildeo de um segundo relatoacuterio como uma das respostas institucionais

do INCRA diante da grave situaccedilatildeo em que o grupo quilombola se encontrava e de

cuja responsabilidade tal oacutergatildeo natildeo poderia se furtar

As razotildees do INCRA para ter rejeitado o primeiro relatoacuterio podem ser

sintetizadas nos seguintes pontos conforme Informaccedilatildeo Teacutecnica produzida por um

antropoacutelogo do INCRA da Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios

Quilombolas em Brasiacutelia (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do

INCRAPR p 1576-1579)

a) Argumentaccedilatildeo contraacuteria ao processo de construccedilatildeo identitaacuteria da

comunidade vista como uma tentativa de manipulaccedilatildeo jaacute que afirmam

natildeo existir nenhuma diferenciaccedilatildeo com os proprietaacuterios do entorno

b) Ausecircncia de reflexotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade que daacute

sentido agrave construccedilatildeo da territorialidade bem como sobre os conflitos com

a comunidade envolvente o processo de perda territorial a organizaccedilatildeo

social da comunidade o modo como se relaciona com o territoacuterio e o meio

ambiente

c) Ausecircncia de uma proposta de delimitaccedilatildeo territorial para a comunidade

tendo em vista que os autores mantiveram a posiccedilatildeo de que natildeo existiria

um territoacuterio quilombola a ser indicado natildeo atendendo assim aos

objetivos deste tipo de estudo

132

d) Incompatibilidade do relatoacuterio com os termos da Instruccedilatildeo Normativa em

vigor na eacutepoca IN 492008 bem como com o convecircnio entre o INCRA e a

UNIOESTE

Eacute possiacutevel observar que a avaliaccedilatildeo do INCRA em relaccedilatildeo ao primeiro

relatoacuterio se aproxima da visatildeo da comunidade sobre a atuaccedilatildeo da primeira equipe

expressa na insatisfaccedilatildeo dos quilombolas por considerarem que natildeo houve uma

ldquoescutardquo de suas narrativas memoacuterias pontos de vistas sentimentos e projetos Este

descontentamento da comunidade foi denunciado pela Federaccedilatildeo das Comunidades

Quilombolas do Paranaacute (FECOQUI) agrave 6ordf Cacircmara de Coordenaccedilatildeo e Revisatildeo sobre

Povos Indiacutegenas e Comunidades Tradicionais do Ministeacuterio Puacuteblico Federal e tambeacutem

agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) tendo o antropoacutelogo responsaacutevel pelo

primeiro relatoacuterio sido advertido por falta grave por esta uacuteltima instituiccedilatildeo A despeito

de o INCRA ter rejeitado o estudo e depois ter contratado uma nova equipe de

pesquisadores bem como de seus funcionaacuterios tambeacutem terem sido viacutetimas da reaccedilatildeo

dos proprietaacuterios vizinhos isto natildeo os isentou na avaliaccedilatildeo dos quilombolas da

responsabilidade pelos desdobramentos ocorridos Como afirmou Adir de forma

enfaacutetica ldquoquando veio o impacto do trabalho do INCRA nossa nos devorou

arrebentourdquo

A autodeclaraccedilatildeo deste grupo como quilombola e a reivindicaccedilatildeo de

ampliaccedilatildeo territorial implicou que arcassem com consequecircncias negativas

importantes como a evidenciaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo de conflitos com os grupos locais O

conflito com os proprietaacuterios vizinhos foi considerado pelo governo estadual como um

dos piores do estado do Paranaacute tendo em vista as frequentes ameaccedilas de violecircncia

fiacutesica e uma seacuterie de violecircncias simboacutelicas que atingiram a comunidade Em 2009

enquanto este primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo estava sendo produzido a

mobilizaccedilatildeo do grupo contraacuterio liderada pelo entatildeo presidente do Sindicato Rural

Patronal de Guaiacutera Silvanir Rosseti teve apoio da imprensa local e regional em seus

questionamentos sobre a identidade quilombola e a ampliaccedilatildeo do territoacuterio do grupo

Essa oposiccedilatildeo tatildeo intensa dos proprietaacuterios vizinhos intensificou-se ainda

mais quando tiveram acesso de modo irregular ao mapa preliminar ndash construiacutedo por

meio da orientaccedilatildeo dada pelos antropoacutelogos da primeira equipe aos quilombolas ndash

que supostamente representaria o territoacuterio reivindicado pela comunidade Acontece

133

que o modo como os antropoacutelogos orientaram o grupo sobre os criteacuterios para a

indicaccedilatildeo das aacutereas eacute questionado por Joaquim e Adir que ressaltam a dificuldade

sentida para a compreensatildeo a linguagem dos pesquisadores o que gerou uma falta

de fluidez na comunicaccedilatildeo entre eles Atualmente eles percebem que teriam sido

induzidos a indicar uma aacuterea maior do que pretendiam incluindo todas as

propriedades com as quais tinham tido viacutenculos mesmo que fossem apenas por meio

de trabalho121 Conjugando esta interpretaccedilatildeo com a que fazem em relaccedilatildeo ao

compromisso dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos a elaboraccedilatildeo de um

mapa com pretensotildees muito maiores do que era reivindicado pelo grupo teria servido

natildeo soacute para enfraquecer sua demanda territorial como para justificar a forte reaccedilatildeo

dos donos das aacutereas indicadas

Joaquim Esses outros antropoacutelogos sabe o que eles fizeram com a gente

Dandara Eles jogaram noacutes contra a parede Eles falou de onde eacute que noacutes

tinha viacutenculo com aquela terra aquela propriedade noacutes tinha que indicar Aiacute

noacutes falamos ldquomas naquela propriedade tem essa daqui oacute noacutes tem viacutenculo

essa daqui nem essa daqui noacutes natildeo temrdquo ldquoNatildeo tem que ir levando tudo

Vocecircs pode ir ateacute 10 km cecircs pode ateacute ir daqui em Guaiacuterardquo (fala dos

antropoacutelogos)

Adir Vocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que vocecirc vai conseguir vocecirc vai passar A antropologia do Professor Antocircnio que era o chefe laacute da equipe falar a verdade Um cara que fala vocecirc pode ver o cara fala e duratildeo Fala de uma maneira que natildeo eacute a nossa linguagem Eles natildeo podia fazer isso com noacutes que eles fez

Joaquim Eles vieram trecircs vezes aqui Dandara e eles falou ldquoou vocecircs daacute a resposta hoje ou se natildeo vocecircs vai de aacutegua baixordquo Noacutes tinha que falar eles falou assim ldquomas noacutes tambeacutem noacutes temos contrato que se vocecircs natildeo vai fazer a indicaccedilatildeo entatildeo noacutes mesmo fazrdquo Noacutes podia ter deixado eles fazer

A assimetria na relaccedilatildeo entre os antropoacutelogos e os quilombolas bem como a

dificuldade de diaacutelogo satildeo portanto questotildees centrais na maneira como o grupo

interpreta os fatos ocorridos Em contraste com esta situaccedilatildeo de pesquisa que

consideram malsucedida eu sou entatildeo colocada no diaacutelogo acima entre Adir e

Joaquim quando Adir afirma ldquovocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que

vocecirc vai conseguir vocecirc vai passarrdquo A comparaccedilatildeo entre a minha pesquisa e a

pesquisa do primeiro relatoacuterio natildeo eacute feita por Adir de um modo direto mas eacute possiacutevel

121 No acircmbito do procedimento de reconhecimento territorial o fato de terem trabalhado para os proprietaacuterios vizinhos natildeo eacute criteacuterio para ampliaccedilatildeo da aacuterea que jaacute possuem com base no artigo 2ordm do Decreto Federal 4887 de 2003

134

inferir que por ter sido construiacuteda uma relaccedilatildeo de confianccedila entre mim e os membros

do grupo ndash relaccedilatildeo esta que antecedia a proacutepria pesquisa e que remete a minha antiga

posiccedilatildeo como assessora do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute ndash havia uma

expectativa positiva de que o resultado do meu trabalho iria trazer algum tipo de

contribuiccedilatildeo para a comunidade

Eacute a falta de confianccedila dos quilombolas em relaccedilatildeo ao trabalho da primeira

equipe de pesquisadores que no presente embasa esta percepccedilatildeo de que teriam

sido enganados pelas orientaccedilotildees dos antropoacutelogos quando da elaboraccedilatildeo do mapa

preliminar Uma desconfianccedila que foi se acentuando durante o processo de pesquisa

ateacute que fosse confirmada segundo eles pelo proacuteprio resultado do relatoacuterio final que

era contraacuterio agraves reivindicaccedilotildees da comunidade Com a colocaccedilatildeo de Joaquim no

diaacutelogo acima ndash ldquoNoacutes podia ter deixado eles fazerrdquo ndash percebe-se que ao se sentirem

incomodados com as orientaccedilotildees passadas pelos antropoacutelogos eles poderiam ter

tomado outra atitude ao inveacutes de naquele momento terem aceitado a pressatildeo dos

antropoacutelogos de que o mapa soacute poderia ser produzido daquela maneira

Joaquim me contou entatildeo como ldquoo INCRA deixou eles (os vizinhos)

roubarem o mapardquo jaacute que o oacutergatildeo deveria ao contraacuterio ter zelado por este

documento de importacircncia central para o processo tanto em um niacutevel administrativo

como para as dinacircmicas de relaccedilotildees locais em torno da questatildeo territorial Observa-

se na fala de Joaquim uma ambiguidade na forma como ele avalia a posiccedilatildeo do oacutergatildeo

federal que se de um lado estava atuando na regiatildeo com o objetivo de garantir o

direito do grupo de outro mostra-se imprudente ao contratar pesquisadores

inadequados para realizar o estudo e ainda acaba por perder o mapa preliminar

Joaquim Eacute Dandara eu jaacute desconfiei na hora sabe por quecirc A indicaccedilatildeo que noacutes fez era bem grande aiacute eles ponharam eu e a Claudia do INCRA o Adir natildeo tava aqui eu e a Claacuteudia o motorista e um outro que veio saber onde eacute que a gente tinha indicaccedilatildeo e noacutes andamos tudo em volta com a camionete do INCRA Aiacute quando chegou aqui o cara falou assim ldquoEh a indicaccedilatildeo eacute muito a aacuterea eacute muito granderdquo Ateacute o cara desconfiou da aacuterea aiacute eu falei ldquoquem fez noacutes dar essa indicaccedilatildeo Os antropoacutelogos Que eles falou que noacutes podia ir ateacute 20 30 km e noacutes foi indicandordquo E depois a turma do INCRA deixou eles roubarem o mapa a coacutepia do mapa Eu natildeo sei como eacute que eles fizeram eles tiraram de dentro da camioneta ali embaixo ali Aiacute eles passaram a divulgaccedilatildeo pra todo mundo Eles levaram no Sindicato Patronal levou pra casa de um cara que eu sei onde eacute que eacute laacute pra frente aiacute esconderam porque a poliacutecia podia ir atraacutes neacute Aiacute a poliacutecia natildeo sabia que um passou pro outro foi passando Aiacute aumentaram a aacuterea ponharam uma parte do municiacutepio de Terra Roxa Aiacute eles botaram os dois municiacutepios contra a gente E eu ainda falei com a Juliana assim ldquomas vocecircs tinha uma coisa em segredo eles que tava com essa coacutepia natildeo podia ter deixado as turma

135

roubarrdquo () Aiacute quando eles tinham tomado a chave da camioneta quando eles subiram laacute pra cima no meio da roccedila tava tudo limpo natildeo tinha plantaccedilatildeo nenhuma aiacute eles pegaram terra assim colocaram dentro do tanque da camioneta Eles (funcionaacuterios do INCRA) ficaram detido das oito horas da manhatilde ateacute as trecircs horas da tarde A Poliacutecia Federal que veio soltar eles aliacute E aiacute depois cercaram a camioneta cercaram eles duas vez dentro do Maracaju e natildeo deixaram eles descer aqui embaixo

Esta ocasiatildeo de forte tensatildeo social ocorrida em 30 de setembro de 2009 foi

o primeiro protesto realizado pelos proprietaacuterios vizinhos Os funcionaacuterios do INCRA

sofreram ameaccedilas ndash como a de que o carro da instituiccedilatildeo seria incendiado ndash e foram

impedidos de chegar agrave comunidade tendo sido mantidos como refeacutens por algumas

horas dentro de uma casa nas proximidades da comunidade122 A gravidade do

conflito ganhou repercussatildeo pela presenccedila das emissoras de televisatildeo Tarobaacute e

Record bem como a raacutedio de Guaiacutera

Adir () Quando foi trecircs horas da tarde aiacute a rede Record veio aqui em casa a raacutedio tudo aqui Aiacute disse ldquooacute Adir eu quero saber o que que taacute acontecendo se vocecirc pode dar uma entrevista pra falar dos seus vizinhos pra falar da sua convivecircncia com eles desse trabalho que taacute sendo feito do INCRA Aiacute que eu falei pra eles eu falei assim ldquoeu natildeo vou dar entrevista de nada o que eu vou falar com vocecircs eacute o seguinte esse trabalho natildeo eacute nosso eacute do INCRA esse levantamento que foi feito pra noacutes ser reconhecido aqui natildeo foi noacutes eacute o governo vocecircs tem que conversar com o governo e conversar com o pessoal do INCRA Noacutes tamo aqui haacute tantos anos e vamos continuar o mesmo eles tambeacutem vatildeo continuar noacutes natildeo queremos nada que eacute deles Se o INCRA taacute fazendo um trabalho que ateacute pra noacutes eacute uma surpresa porque noacutes natildeo entende o que taacute acontecendo natildeo queremos confusatildeo com ningueacutem guerra com ningueacutem E noacutes hoje noacutes estamos podendo falar da nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar a gente ficou preso a vida inteira sem poder pronunciar o que que a gente eacute de verdaderdquo Aiacute chamei as crianccedilas todas e falei ldquovamos mostrar pra eles o que Vamos tocar pra eles vamos cantar vamos tocar vamos bater atabaque e eacute issordquo Aiacute chamei as crianccedilas noacutes toquemo cantamos e ldquoEacute isso se vocecircs quiser filmar vocecircs filma isso aqui Pelo menos vamos preservar a nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar Agora essa questatildeo aiacute natildeo eacute nossa Eacute questatildeo do INCRA e vocecircs Do governo federal e do governo estadual natildeo eacute nossardquo

Quando Adir relata sua recusa em dar uma resposta para a emissora ele estaacute

indicando que a responsabilidade pelo trabalho que estava sendo conduzido natildeo era

dos quilombolas e sim do INCRA Pelo modo como ocorreu o contato com a primeira

equipe de pesquisadores os quilombolas acabam se sentindo viacutetimas e natildeo sujeitos

do processo Por outro lado a resposta de Adir reforccedila o aspecto positivo do processo

122 O Ministeacuterio Puacuteblico Federal de Umuarama ofereceu denuacutencia contra os proprietaacuterios que se ldquoopuseram agrave execuccedilatildeo do ato legalrdquo por parte do INCRA que realizaria na oportunidade levantamento agroambiental referente ao procedimento da Comunidade Quilombola A denuacutencia estaacute disponiacutevel em httpwwwprprmpfgovbrpdfs2013umuarama20-20quilombolas20-20denunciapdf Acesso em 241015

136

de reconhecimento como forma de ter a voz do grupo reconhecida no espaccedilo puacuteblico

abrindo a possibilidade de falarem de sua cultura de pronunciarem sua identidade e

por isso conclui dizendo ldquovamos tocar vamos cantarrdquo Contudo se o processo de

regularizaccedilatildeo territorial poderia ter sido este momento de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da

histoacuteria do grupo e de suas reivindicaccedilotildees ele natildeo alcanccedila o resultado esperado jaacute

que por meio da atuaccedilatildeo de agentes autorizados pelo Estado para produzirem o

relatoacuterio antropoloacutegico a legitimidade de suas falas lhe eacute novamente negada

Em um outro episoacutedio de conflito ocorrido em 20 de novembro de 2009 dia

da consciecircncia negra os quilombolas saiacuteam de ocircnibus em direccedilatildeo a Marechal

Cacircndido Rondon municiacutepio da regiatildeo para apresentaccedilatildeo do grupo de capoeira em

duas escolas estaduais No entanto em protesto os proprietaacuterios vizinhos fecharam

a estrada do bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo com ameaccedilas de que iriam incendiar

o ocircnibus Apoacutes horas de negociaccedilatildeo o grupo de quilombolas conseguiu ultrapassar a

barreira de manifestantes Esta situaccedilatildeo de obstruccedilatildeo da estrada ocorreu em outras

ocasiotildees por exemplo com o impedimento de que cestas baacutesicas chegassem agrave

comunidade Houve portanto um processo de inviabilizaccedilatildeo de movimentos e

restriccedilatildeo de circulaccedilatildeo dos quilombolas que eram possiacuteveis antes do iniacutecio dos

estudos para o primeiro relatoacuterio

Um exemplo importante dessas restriccedilotildees ocorreu na articulaccedilatildeo por parte

dos vizinhos por meio do Sindicato Rural Patronal para natildeo mais contratarem

quilombolas para trabalharem em suas propriedades nas quais faziam diversos tipos

de funccedilotildees desde cortar rama carpir plantaccedilatildeo rancaccedilatildeo de mandioca entre outros

e recebiam por diaacuteria Segundo me relataram a situaccedilatildeo econocircmica da comunidade

se agravou pois este tipo de trabalho antes permitia uma complementaccedilatildeo

fundamental da fonte de renda das famiacutelias quilombolas Aleacutem disso os proprietaacuterios

vizinhos tambeacutem influenciaram os donos de comeacutercio para natildeo dar creacutedito para estas

famiacutelias Sem trabalho ou creacutedito dependeram de doaccedilatildeo de cestas baacutesicas por parte

do Estado uacutenico auxiacutelio direto dos oacutergatildeos puacuteblicos que destacam terem recebido

(outros tipos de auxiacutelio estatildeo ligados agrave mediaccedilatildeo de conflitos) Esta situaccedilatildeo de

dependecircncia eacute vista por Adir e Joaquim como algo ateacute vergonhoso pois consideram

digno conquistar as coisas com o proacuteprio trabalho mas para isso teriam que ter

oportunidades por meio de projetos dos oacutergatildeos puacuteblicos para geraccedilatildeo de renda na

comunidade

137

Adir Porque eacute o seguinte se tem editais tem projeto tem tudo e noacutes na situaccedilatildeo que noacutes se encontramos aqui eles (agentes do Estado) viram eles mesmo viram com os proacuteprios olhos e nos auxiliaram em nada nos apoiaram em nada soacute apoiaram com conversa e noacutes aqui precisando ateacute hoje eu fico preocupado com esses jovens fico preocupado com essas mulheres porque noacutes soacute vamos conseguir afirmar aqui com trabalho com geraccedilatildeo de renda O primeiro passo eacute a geraccedilatildeo de renda Aiacute noacutes consegue ter uma comunidade decente natildeo viver de cesta de baacutesica que isso eu natildeo quero

Joaquim E se fosse pra noacutes viver de cesta baacutesica noacutes jaacute tinha morrido de fome Eles fica cinco seis mecircs sem mandar

Adir A cesta baacutesica ela natildeo daacute noacutes assim poder pra noacutes crescer noacutes queremos viver do nosso proacuteprio suor do nosso proacuteprio trabalho

Joaquim Eacute que noacutes nunca vivemos de cesta baacutesica

Adir Pra noacutes conseguir comprar o que eacute nosso ter o prazer de ocecirc chegar e comprar tocirc trabalhando e tenho condiccedilotildees de fazer isso Viver de cesta baacutesica isso natildeo existe noacutes natildeo queremos isso noacutes queremos ter nosso proacuteprio sustento que noacutes sempre vivia trabalhamos nem que for sofrendo e tudo mas nosso sustento Natildeo viver eacute dependendo de cesta baacutesica dependendo de governo natildeo dependendo de noacutes mesmo eacute isso que eu quero escrever pra SEPPIR e pra Fundaccedilatildeo Palmares Que eacute muito bonito nos eventos que eu jaacute fui vaacuterios nossa jaacute perdi a conta de andar nesse Brasil No comeccedilo eu ia com esperanccedila e trazia aquela esperanccedila aquela coisa pra dentro da comunidade falava pra eles que era isso e aquilo outro que ia acontecer que ia acontecer

Assim como observamos no capiacutetulo anterior esta situaccedilatildeo de

vulnerabilidade desencadeada pelos conflitos em torno do primeiro relatoacuterio reforccedilou

o sentimento de sofrimento e humilhaccedilatildeo que estaacute presente na leitura que fazem de

sua trajetoacuteria coletiva Na fala de Adir abaixo em que avalia a poliacutetica puacuteblica para as

comunidades quilombolas ele aponta para a expectativa de que o contato com os

diversos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis jaacute tivesse naquele momento repercutido de

forma positiva para a comunidade123

Adir Eacute e daiacute a gente Dandara trazia uma esperanccedila pra comunidade e aiacute depois eu comecei a trazer uma desesperanccedila pra dentro da comunidade Aiacute como que fica Um presidente da comunidade taacute indo atraacutes laacute o pessoal fica esperando e eu trazer o quecirc pra eles Comecei a natildeo trazer mais nada Comecei nem a falar nada mais pra eles porque eu ia e voltava falar o quecirc Trazer o quecirc Papel Papel Soacute Na praacutetica nada Aiacute eu comecei ateacute eu ter desesperanccedila Eu luto sim porque eu tenho um conhecimento hoje mas eu vou correr atraacutes daquilo que quando eu vejo que eacute certo eu tenho que lutar nem que tenha dificuldade burocracia cecirc sabe que isso existe

123 Uma das principais demandas do grupo eacute a garantia de uma dinacircmica interna de geraccedilatildeo de renda

que crie para os quilombolas autonomia de trabalho e que viabilize a permanecircncia das famiacutelias no territoacuterio

138

Esta posiccedilatildeo de mediador poliacutetico ocupada por Adir teve consequecircncias

graves durante os conflitos em decorrecircncia da pressatildeo dos vizinhos que de certo

modo foi nele personificada Sofreu vaacuterias ameaccedilas de morte e foi incluiacutedo no

Programa de Proteccedilatildeo aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria de

Direitos da Presidecircncia da Repuacuteblica Uma das ameaccedilas que sofreu foi atraveacutes de um

trabalho de magia feito contra ele Foram encontrados nos fundos da aacuterea da

comunidade um pequeno caixatildeo uma galinha morta vela pinga areia e uma cruz

com o nome de Adir e a data em que seria morto 13012010 A relevacircncia desta

ameaccedila estaacute ligada a uma referecircncia expliacutecita agrave religiosidade afro-brasileira do grupo

vinculada agrave Umbanda Adir me contou como foi ateacute o lugar e jogou sal grosso em cima

do trabalho para se proteger O jornal local noticiou o ocorrido trazendo a fala de Adir

em resposta ldquoConhecemos essa arte termos irmatildeos que frequentaram a Mesa

Branca a pessoa que fez isso natildeo sabe com quem estaacute brincandordquo

Geralda irmatilde de Adir me explicou de modo indignado mesmo depois de anos

do ocorrido que ela e seu marido por frequentarem o centro de Umbanda foram

acusados pelos vizinhos de terem feito aquilo para gerar falaccedilatildeo Para ela foram os

proacuteprios vizinhos que fizeram o trabalho e os acusaram com o objetivo de criar uma

crise interna na famiacutelia Segundo Geralda os vizinhos tambeacutem frequentam terreiros

mas de modo velado jaacute que natildeo ldquovatildeo ali na regiatildeo porque natildeo querem que ningueacutem

saiba que eles mexem com issordquo Deste modo os vizinhos natildeo explicitariam o viacutenculo

com terreiros de Umbanda jaacute que tecircm acesso e influecircncia junto ao padre local tendo

inclusive acionado esta influecircncia contra os quilombolas para ldquotirar eles da Igrejardquo

139

FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado FONTE Jornal Paranazatildeo 11 de setembro de 2009

140

A acusaccedilatildeo contra Geralda e seu marido indica como abordamos no capiacutetulo

anterior a percepccedilatildeo dos vizinhos em relaccedilatildeo ao grupo de que eles seriam ldquonegros

feiticeiros ou macumbeirosrdquo atribuindo-lhes natildeo soacute uma inadequaccedilatildeo moral mas

tambeacutem uma representaccedilatildeo como possiacuteveis agressores (PORTO 2014 p 199) Por

um lado se haacute uma condenaccedilatildeo moral na interpretaccedilatildeo das religiotildees afro-brasileiras

parece haver por outro um reconhecimento de sua eficaacutecia pois aleacutem de Geralda

afirmar que eles tambeacutem acionam este circuito religioso de modo velado teriam se

utilizado de um trabalho para tentar agredir seus oponentes neste momento de

exacerbaccedilatildeo do conflito Eficaacutecia esta natildeo reconhecida no acircmbito de uma esfera

religiosa mas como uma praacutetica de ldquomagiardquo o que acaba por reforccedilar a atribuiccedilatildeo de

subalternidade que seria conferida a este tipo de praacutetica miacutestica (BRUMANA

MARTINEZ 1991 p 81) Esta ameaccedila contra Adir ganhou repercussatildeo no jornal local

como mais uma forma de intimidaccedilatildeo contra o liacuteder da comunidade

A tensatildeo entre brancos e negros antes latente transformou-se com a

eclosatildeo do conflito no que Adir denominou de ldquoapartheidrdquo Esta situaccedilatildeo ficou

evidente para ele principalmente na dificuldade de convivecircncia entre as crianccedilas e

adolescentes da comunidade e os filhos dos proprietaacuterios vizinhos que pegavam

juntos o ocircnibus para ir para a escola Jaqueline (19 anos) filha de Joaquim contou

como o preconceito que jaacute sofria na escola por sempre ter sido a uacutenica negra de sua

sala agravou-se durante o conflito Ela tinha que escutar os outros adolescentes

falando que sua comunidade iria roubar a terra dos pais deles No ocircnibus os filhos

dos proprietaacuterios vizinhos natildeo deixavam que as crianccedilas e adolescentes da

comunidade se sentassem juntos deles

Outro fato que marcou muito o grupo no final de 2009 foi a morte do irmatildeo

mais velho e liacuteder interno da comunidade Zeacute Maria que sofria de diabetes Nos

relatos sobre este periacuteodo os seus irmatildeos responsabilizam as ameaccedilas e o conflito

com os vizinhos os quais foram pressionando os quilombolas e teriam assim

contribuiacutedo para fragilizar a sauacutede de Zeacute Maria Ademais eles contam como enquanto

seu corpo estava sendo velado na comunidade indignaram-se ao ouvirem fogos de

artifiacutecios que entenderam como ato de comemoraccedilatildeo provocaccedilatildeo e total desrespeito

por parte dos vizinhos agrave situaccedilatildeo de perda da famiacutelia

Neste contexto de adversidade procuraram apoio junto a vaacuterios oacutergatildeos puacuteblicos

como a Poliacutecia Federal a Poliacutecia Civil a Poliacutecia Militar o Ministeacuterio Puacuteblico Federal

141

o Ministeacuterio Puacuteblico Estadual e os oacutergatildeos do Governo Federal que tratam da temaacutetica

quilombola o proacuteprio INCRA a Fundaccedilatildeo Cultural Palmares FCP) e a Secretaria de

Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da Igualdade Racial da Presidecircncia da Repuacuteblica (SEPPIR)

Somente quando a questatildeo deixou de ficar restrita ao acircmbito regional do INCRA no

Paranaacute e houve uma intervenccedilatildeo direta de agentes do Estado representantes do

governo federal o conflito se acalmou

Joaquim () E noacutes natildeo tinha mais sossego Aiacute depois que veio as turma de Brasiacutelia neacute Adir aiacute que eles obedeceram Que essas turma de Brasiacutelia que botaram o ponto final Falou ldquocecircs natildeo cerca mais ningueacutem que vai laacute hoje na comunidade deles mais ningueacutem A ordem agora vem de Brasiacutelia natildeo eacute daqui de Guaiacutera mais natildeordquo Aiacute eles natildeo mexeram mais porque eles falou ldquoAgora noacutes vamos prender mesmordquo

O Ministeacuterio Puacuteblico Federal (MPF) em Umuarama propocircs em julho de 2012

uma Accedilatildeo Civil Puacuteblica contra o INCRA a Uniatildeo o Estado do Paranaacute e o municiacutepio

de Guaiacutera com objetivo de garantir direitos da comunidade quilombola em Guaiacutera124

Tal accedilatildeo teve como base o Inqueacuterito Civil Puacuteblico instaurado em 2008 no

MPFUmuarama que acompanhou a realizaccedilatildeo do estudo antropoloacutegico e os

desdobramentos conflituosos que foram desencadeados e que tiveram ampla

repercussatildeo nos meios de comunicaccedilatildeo da regiatildeo125 Assim depois de todo impacto

negativo do trabalho do INCRA com a comunidade os quilombolas se questionaram

se valia a pena dar continuidade ao procedimento de regularizaccedilatildeo territorial jaacute que

tinham arcado com muitos prejuiacutezos e humilhaccedilotildees e aleacutem disso o relatoacuterio

antropoloacutegico produzido era contraacuterio aos seus interesses O trabalho tinha sido

iniciado mas o INCRA segundo Joaquim natildeo teve estrutura para conduzi-lo de forma

adequada de modo que as lideranccedilas do grupo passaram a distinguir entatildeo o que

era o trabalho do INCRA e o que era o proacuteprio posicionamento dos quilombolas

124 ldquoNa accedilatildeo o MPF pede liminarmente que a Justiccedila Federal de Guaiacutera fixe um prazo maacuteximo de um ano para que o Incra conclua o procedimento administrativo de identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas pela Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Pedem ainda que Uniatildeo Estado do Paranaacute e municiacutepio de Guaiacutera cumpram com o dever legal de inserir a comunidade em suas respectivas poliacuteticas puacuteblicasrdquo ldquoUmuarama pede que Incra conclua procedimento para garantir direitos de quilombola Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwredesuldenoticiascombrhomeaspid=43708 Acesso em 240215 125 Sobre os conflitos em comunidades quilombolas abordados na imprensa estadual no Paranaacute o caso de Guaiacutera eacute um dos principais ldquonas notiacutecias a respeito desta comunidade destaca-se aleacutem da lideranccedila quilombola ter sido ameaccedilada por supostos rituais de feiticcedilaria o fato dos funcionaacuterios do INCRA terem sido feitos de refeacutens por cerca de 150 agricultores da regiatildeo durante a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do Territoacuterio Quilombolardquo CRUZ Cassius Conjuntura quilombola no Paranaacute Disponiacutevel em httpsetnicowordpresscomcategoryquilombos Acesso em 240215

142

Neste sentido a persistecircncia na luta pelo direito territorial com a decisatildeo de

passarem pela elaboraccedilatildeo de um segundo relatoacuterio antropoloacutegico mesmo diante de

todas as condiccedilotildees adversas que estavam colocadas pelo primeiro parecer contraacuterio

parece demonstrar ldquoa existecircncia de um projeto de futuro suficientemente

compartilhadordquo (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 130) Com a produccedilatildeo de um

segundo relatoacuterio antropoloacutegico renovaram-se as esperanccedilas de que pudessem ter

um territoacuterio suficiente para a reproduccedilatildeo do grupo com a perspectiva de retorno de

familiares que saiacuteram dali e que juntos consigam construir um projeto comum

Ademais aleacutem deste aspecto territorial tal decisatildeo de dar continuidade ao

procedimento no INCRA tambeacutem se relaciona agrave afirmaccedilatildeo da legitimidade da

perspectiva do grupo sobre a sua proacutepria histoacuteria

Mas se antes do iniacutecio do trabalho deste oacutergatildeo federal na comunidade os

quilombolas desconheciam os processos estatais pelos quais iriam passar ateacute a

regularizaccedilatildeo do territoacuterio depois de todos os desdobramentos ocorridos estavam

muito mais informados e ldquocalejadosrdquo com relaccedilatildeo ao funcionamento deste tipo de

poliacutetica puacuteblica territorial Eacute a partir de um novo espaccedilo de experiecircncia que passaram

entatildeo a refletir sobre o que ocorreu desde a certificaccedilatildeo da comunidade pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares em 2006 Tornaram-se assim mais seguros de suas

perspectivas sobre a postura tanto das equipes de pesquisa bem como dos

funcionaacuterios do INCRA e de outros oacutergatildeos federais responsaacuteveis pela temaacutetica A

necessidade de circular por novas esferas de atuaccedilatildeo e diaacutelogo se consolidou como

um novo campo de movimento no qual os membros do grupo interagem questionam

reivindicam e constituem aliados para a busca de seus objetivos

24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO

A decisatildeo de continuar com o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do INCRA

passou pelo desejo de consolidar o reconhecimento puacuteblico da legitimidade da histoacuteria

e da luta do grupo questionadas pelo primeiro relatoacuterio Como apontado em conversa

com Adir e Joaquim eles natildeo queriam desistir do objetivo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio

da comunidade tendo em vista a possibilidade de garantir o retorno dos parentes que

de laacute saiacuteram nas uacuteltimas deacutecadas Para manter este propoacutesito consideram que eacute

143

preciso ter ldquocoragem forccedila e feacute em Deusrdquo acionando o suporte de uma ordem de

moral e de justiccedila superior que lhes ampara

Adir Que o nosso pessoal aqui Dandara natildeo viveu soacute no municiacutepio de Guaiacutera Quando esse pessoal vieram de Minas ocupou os dois municiacutepios

Joaquim E trabalhava de diaacuteria pra todo mundo que era muita gente neacute entatildeo noacutes natildeo tinha terra pra trabalhar soacute pra gente Ia derrubando mato tocava trecircs anos e eles ia passando pra frente

Adir E hoje podia taacute todo mundo aqui Natildeo taacute porque de alguma forma contribuiacuteram (os vizinhos) pra que esse pessoal nosso saiacutesse daqui Ocuparam os espaccedilos e noacutes fiquemos sem nada Por isso que noacutes natildeo podemos deixar de lutar Noacutes tem que lutar mesmo Que nem eu falo pra eles ldquose um morrer a guerra natildeo pode parar tem que continuarrdquo E a gente quer mostrar dentro desse municiacutepio de Guaiacutera mostrar pra eles que noacutes tambeacutem temos ndash oportunidade natildeo temos ndash mas que temos coragem forccedila e feacute em Deus pra lutar e conseguir com nossos braccedilos nossas pernas conseguir mostrar pra eles

No entanto a decisatildeo de retomar o processo do INCRA natildeo foi faacutecil jaacute que

na percepccedilatildeo de Joaquim e Adir o oacutergatildeo os decepcionou quando recuou diante da

reaccedilatildeo dos proprietaacuterios e ldquolargou noacutes aqui abandonadordquo Joaquim ressalta como

deixou claro para a antropoacuteloga do INCRA Juliane que acompanhou o procedimento

da comunidade desde o comeccedilo que o oacutergatildeo tinha responsabilidade pelos

desdobramentos do conflito bem como pela situaccedilatildeo econocircmica precaacuteria em que

ficou a comunidade Todos esses acontecimentos faziam com que se sentissem

temeraacuterios com o reiniacutecio dos trabalhos com a reelaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio

antropoloacutegico

Joaquim E teve um ano que noacutes fiquemos nervoso eu falei com a Juliane mesmo do INCRA Eu falei ldquovocecircs natildeo teve peito pra arcar com o pessoal que noacutes natildeo sabe tambeacutem como eacute que eacute essa lei o direitordquo Porque vocecircs recuaram

Adir Recuaram de alguma forma Tambeacutem eacute muito novo Joaquim Eles abriram esse trabalho e depois largou noacutes aqui abandonado Noacutes tamo abandonado sem serviccedilo sem ningueacutem E vocecircs eacute difiacutecil entrar em comunicaccedilatildeo com a gente noacutes fiquemos aqui oacute foi muito tempo sem eles entrar em comunicaccedilatildeo com noacutes

Atualmente entendem a continuidade do procedimento como positiva jaacute que

a avaliaccedilatildeo que fazem da segunda equipe de pesquisadores eacute muito diferente da

primeira Um dos principais criteacuterios utilizados eacute a permanecircncia do antropoacutelogo com

144

eles na comunidade para presenciar o cotidiano e ldquoentender o que estaacute acontecendordquo

Neste mesmo sentido tambeacutem a minha pesquisa eacute avaliada

Adir () Eles (primeira equipe) estava escrevendo uma coisa de laacute natildeo aqui proacuteximo a noacutes Eacute legal que nem vocecirc taacute aqui agora vocecirc falou que vai vir pra ficar tantos dias depois vocecirc volta de novo pra ficar tantos dias depois vocecirc pode voltar de novo ficar tantos dia Aiacute vocecirc vai conviver com noacutes aqui durante esses dias tudo vocecirc vai ver o que vai acontecer o que taacute acontecendo vocecirc vai presenciar tudo Entatildeo que nem noacutes fala pro pessoal do INCRA pra esses antropoacutelogos pra fazer um relatoacuterio antropoloacutegico tem que conviver laacute dentro tem que viver laacute junto com noacutes tem que ver da nossa cultura da nossa alimentaccedilatildeo da nossa dificuldade da nossa luta de tudo isso tem que conviver com noacutes aqui dentro Natildeo adianta vir meia hora sentar com noacutes ali bater um papo pesquisar noacutes ali e voltar embora Presenciar dia a dia

Dandara Quando veio o Paulo (antropoacutelogo) agora pra esse segundo (relatoacuterio) eles ficaram aqui

Adir Ah o Paulo estava aqui presente todo dia com a gente

Joaquim Totalmente diferente

Adir Totalmente diferente E o Paulo foi buscar nossa histoacuteria laacute em Minas que era ateacute pra mim ter ido junto com o Cassius (historiador) aiacute deu um problema que eu natildeo pude ir mas o Cassius me chamou era pra mim taacute junto com eles laacute

A elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico teve o meacuterito segundo os

quilombolas de ter incluiacutedo a pesquisa realizada por Cassius Cruz historiador da

equipe junto agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de proveniecircncia de Manoel

Ciriaco dos Santos em Minas Gerais Adir na eacutepoca foi convidado para que o

acompanhasse na viagem com o intuito de contribuir para a realizaccedilatildeo desta

pesquisa o que natildeo pode acontecer segundo Cassius em decorrecircncia de o contrato

do INCRA com a empresa Terra Ambiental natildeo disponibilizar recursos suficientes e

de Adir natildeo ter como realizaacute-la com recursos proacuteprios Caso a equipe responsaacutevel

optasse por deslocar recursos para financiar a ida da lideranccedila quilombola natildeo

haveria condiccedilotildees para o pagamento total das diaacuterias de trabalho de campo dos

pesquisadores Muitas contribuiccedilotildees poderiam ter sido geradas para o relatoacuterio

antropoloacutegico se priorizado pelo oacutergatildeo federal como ldquoprocessordquo (de pesquisa de

articulaccedilatildeo de fortalecimento comunitaacuterio) no acircmbito do qual seria muito relevante a

participaccedilatildeo de Adir nesta pesquisa em Minas Gerais No entanto esta possibilidade

natildeo se concretizou dada a incompatibilidade com o orccedilamento disponiacutevel na execuccedilatildeo

145

do relatoacuterio vieacutes pelo qual responde a uma certa dinacircmica administrativa que o

entende afinal de contas como ldquoprodutordquo contratado (FERNANDES 2005)

Mesmo sem a ida de um integrante da comunidade a pesquisa em Minas

Gerais foi fundamental para a argumentaccedilatildeo que o segundo relatoacuterio construiu

As pesquisas de campo realizadas em Minas Gerais possibilitaram localizar elementos comuns entre as narrativas da comunidade de Manoel Ciriaco e a Comunidade de Vila Nova (Serro-MG) aleacutem de constatar a presenccedila material de imagens recorrentemente explicitadas pela memoacuteria dos descendentes de Manoel Ciriaco para se referir agrave origem mineira exemplo disso eacute o fato de utilizarem provisoriamente de lapas de pedra como forma de habitaccedilatildeo e espaccedilo de trabalho (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 735 [p 32])

Neste sentido Adir comenta a importacircncia deste relatoacuterio por ter dado

subsiacutedio e legitimidade para a versatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria muito

diferente da experiecircncia com o primeiro estudo

Adir () E eu faccedilo de tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio antropoloacutegico noacutes vamos contribuir com tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio que no final decirc o que decirc mas pelo menos o trabalho tem que ser feito Demorou pra noacutes porque quase que noacutes natildeo ia aceitar o relatoacuterio antropoloacutegico mais Porque tudo que a gente passou noacutes tivemos muita conversa com o pessoal do INCRA eu mais o Joaquim fomos pra Curitiba umas par de vez pra gente sentar laacute com o Nilton (Superindente do INCRA no Paranaacute) conversamos com o pessoal de Brasiacutelia porque noacutes natildeo ia aceitar mais o relatoacuterio antropoloacutegico noacutes fiquemos muito desgastado desgastado de mais

A pesquisa para o segundo relatoacuterio foi produzida durante o ano de 2012 por

uma equipe multidisciplinar coordenada pelo antropoacutelogo Paulo R Homem de Goacutees

que tinha ampla experiecircncia de trabalho e pesquisa com comunidades indiacutegenas Tal

equipe foi contratada pela Empresa Terra Ambiental que venceu a licitaccedilatildeo puacuteblica

(modelo de pregatildeo eletrocircnico) 126 para a produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no

126 O modelo de convecircnio com universidades em comparaccedilatildeo com o modelo de ldquopregatildeo eletrocircnicordquo

adotado desde 2011 era melhor avaliado pelos antropoacutelogos por sua contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de um campo de debate antropoloacutegico sobre o tema dos quilombos nos espaccedilos acadecircmicos proporcionando um nuacutemero expressivo de trabalhos e grupos de pesquisa em cursos de antropologia todo o paiacutes (ARRUTI 2013) No entanto o modelo de convecircnio foi substituiacutedo pelo chamado ldquoPregatildeo Eletrocircnicordquo que se tornou a ferramenta de contrataccedilatildeo para os relatoacuterios antropoloacutegicos e produccedilatildeo de RTID No caso de Guaiacutera contudo a experiecircncia com a realizaccedilatildeo do pregatildeo apresentou melhores resultados do que com o convecircnio estabelecido com a UNIOESTE localizada na regiatildeo oeste do Paranaacute pois neste convecircnio natildeo havia em seu quadro docente um antropoacutelogo que dispusesse de experiecircncia sobre temas relacionados com identidade e territorialidade e que estivesse assim apto para coordenar o estudo em questatildeo

146

Paranaacute nos municiacutepios de Guaiacutera e Palmas Trata-se precisamente das duas

comunidades quilombolas que haviam passado pela produccedilatildeo de um primeiro

relatoacuterio antropoloacutegico fruto do convecircnio do INCRA com a UNIOESTE cujos

resultados foram recusados tanto pelo oacutergatildeo como pelas comunidades pesquisadas

O histoacuterico de conflitos em Guaiacutera gerou questionamentos quanto aos riscos

a que os pesquisadores envolvidos na elaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico

e os proacuteprios quilombolas poderiam estar expostos Assim foram pensadas

estrateacutegias para evitar novas situaccedilotildees de animosidade Para que aceitassem passar

por um novo momento de pesquisa os quilombolas exigiram que o INCRA garantisse

a seguranccedila dos membros da comunidade jaacute que se sentiram desprotegidos e

vulneraacuteveis no conflito desencadeado pelo primeiro relatoacuterio Uma das estrateacutegias foi

a realizaccedilatildeo de uma audiecircncia puacuteblica convocada pelo Ministeacuterio Puacuteblico Federal de

Guaiacutera na qual participaram os representantes quilombolas os agricultores do

Maracaju dos Gauacutechos da Poliacutecia Federal e Militar do Sindicato Patronal Rural de

Guaiacutera do INCRA da empresa Terra Ambiental da Casa Civil do Estado do Paranaacute

e da Federaccedilatildeo da Agricultura do Estado do Paranaacute De acordo com o segundo

relatoacuterio antropoloacutegico

O objetivo da reuniatildeo foi tornar puacuteblico o reiniacutecio do processo e garantir que fosse realizado de forma paciacutefica explicitando os procedimentos legais que envolvem a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do qual o Relatoacuterio Antropoloacutegico ora apresentado constitui apenas a primeira etapa Avaliamos que natildeo obstante os intensos questionamentos realizados por parte dos agricultores na audiecircncia que durou cerca de 5 horas a mesma teve um resultado extremamente produtivo uma vez que foi possiacutevel agrave equipe teacutecnica realizar suas atividades ao longo dos meses subsequentes sem interferecircncia de agentes externos ou ameaccedila Destacamos apenas que houve dificuldade em dialogar com pessoas vizinhas agrave comunidade sobre o processo pois os conflitos geraram muita desconfianccedila e temor (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 760 [p 67])

Deste modo o segundo estudo natildeo poderia desconsiderar todo este contexto

preacutevio de relaccedilotildees externas e tambeacutem o proacuteprio conteuacutedo levantado pela primeira

pesquisa sobre a qual os autores do segundo relatoacuterio antropoloacutegico avaliam

A forma como o processo foi conduzido pelos pesquisadores da Unioeste foi desaprovada pelas lideranccedilas da comunidade que atribuem parte dos conflitos decorrentes desse primeiro processo de elaboraccedilatildeo do RTID agrave conduccedilatildeo da pesquisa antropoloacutegica A reabertura do processo e a contrataccedilatildeo de nova equipe multidisciplinar foi recebida com alegria pela comunidade poreacutem natildeo sem receio dado a experiecircncia anterior

147

(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701 [p 08])

A repercussatildeo do questionamento sobre a identidade do grupo pode ser

percebida tambeacutem na dissertaccedilatildeo elaborada em 2012 por Claacuteudia Hoffmann que

versa sobre a comunidade quilombola de Guaiacutera no acircmbito do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Sociedade Cultura e Fronteiras da UNIOESTE Mesmo a autora

fazendo criacuteticas ao primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo e agrave situaccedilatildeo de conflito que

se seguiu ela afirma ao longo do texto que optou por natildeo os denominar como

ldquoquilombolasrdquo porque ainda natildeo havia ocorrido a ldquodemarcaccedilatildeo de suas terrasrdquo

preferindo entatildeo referir-se a eles como ldquointegrantes da comunidade negrardquo

(HOFFMANN 2012 p 14-15) Questionou deste modo a autoidentificaccedilatildeo do grupo

como se esta soacute fosse legiacutetima em consequecircncia do reconhecimento territorial oficial

por parte do Estado Interessante observar no entanto que a autora na mesma

dissertaccedilatildeo natildeo hesitou em denominar a comunidade de Joatildeo Suraacute localizada no

municiacutepio de AdrianoacutepolisPR como ldquoComunidade Remanescente de Quilombo Joatildeo

Suraacuterdquo (HOFFMANN 2012 p 40) embora este grupo tambeacutem natildeo tenha sido titulado

como territoacuterio quilombola pelo INCRA Esta diferenccedila de posicionamento pode ser

decorrente de seu desconhecimento do tracircmite do procedimento da comunidade de

Joatildeo Suraacute no INCRA ou talvez ter surgido devido ao fato de este grupo se encaixar

no modelo de ldquoquilombo tiacutepicordquo bem mais do que o grupo de GuaiacuteraPR e natildeo ter tido

a sua identidade questionada oficialmente

Para lidar com os questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e suas

repercussotildees a pesquisa para elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico como

nos referimos acima buscou dar suporte agraves referecircncias da memoacuteria coletiva do grupo

em GuaiacuteraPR sobre a vida de seus antepassados em Minas Gerais e o processo de

migraccedilatildeo ateacute o Paranaacute A versatildeo final do relatoacuterio com cento e trinta e quatro

paacuteginas127 foi estruturada com as seguintes partes

(1) ldquoIntroduccedilatildeo e definiccedilatildeo dos conceitosrdquo fazem uma leitura densa sobre o

desenvolvimento da interpretaccedilatildeo teoacuterica sobre o conceito de quilombo reforccedilando a

importacircncia da ressemantizaccedilatildeo do termo a partir da introduccedilatildeo do artigo 68 do ADCT

na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 para abranger o novo contexto de emergecircncia

127 Interessante observar que ambos os relatoacuterios apresentam o mesmo nuacutemero de paacuteginas

148

identitaacuteria das comunidades quilombolas no presente Destacam tambeacutem a

importacircncia da incorporaccedilatildeo do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo trazido pelo Decreto Federal

48872003 e finalizam com uma anaacutelise criacutetica da efetivaccedilatildeo dos direitos territoriais

das comunidades quilombolas que tem ocorrido em uma velocidade muito aqueacutem da

necessaacuteria

(2) ldquoCaracterizaccedilatildeo do municiacutepiordquo apresentam o histoacuterico de ocupaccedilatildeo e

colonizaccedilatildeo da regiatildeo desde meados do seacuteculo XIX e o contexto de criaccedilatildeo do

municiacutepio de Guaiacutera a partir do empreendimento da empresa Matte Laranjeira no

local Destacam tambeacutem como nas deacutecadas de 1970 e 1980 houve uma inversatildeo na

proporccedilatildeo de habitantes das aacutereas rurais e urbanas do municiacutepio chegando a uma

proporccedilatildeo de 80 da populaccedilatildeo na aacuterea urbana no ano 2000 processo que teve forte

impacto na comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

(3) ldquoHistoacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriacordquo abordam os dados

da pesquisa realizada em MG demonstrando os laccedilos de memoacuteria e indicativos de

possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a comunidade quilombola de GuaiacuteraPR e ldquoas

comunidades quilombolas migrantes do Jequitinhonha ndash MGrdquo assim como uma

anaacutelise mais especiacutefica sobre a trajetoacuteria de migraccedilatildeo de seu Manoel Ciriaco

Destacam tambeacutem o fato de a migraccedilatildeo jaacute estar presente nas dinacircmicas das famiacutelias

negras na regiatildeo de origem do grupo Estes processos migratoacuterios ocorriam em uma

escala local de circulaccedilatildeo das famiacutelias que viviam em lapas (cavernas) de pedra e

mantinham sua autonomia com poucos recursos o que gerava uma significativa

mobilidade territorial Apontam como entre os seacuteculos XIX e XX havia uma

importante produccedilatildeo local de queijo cachaccedila milho carne e outros alimentos que

visava o abastecimento de Diamantina principal centro minerador da regiatildeo As

famiacutelias de ex-escravos aleacutem do trabalho com o garimpo mantinham uma produccedilatildeo

de modo autocircnomo para o autoconsumo e tambeacutem para este abastecimento externo

atraveacutes da atividade tropeira Nas deacutecadas de 1950 e 1960 muitas destas famiacutelias

foram compelidas a migrar por conta do processo de modernizaccedilatildeo e pressatildeo sobre

as terras camponesas na regiatildeo

(4) ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo analisam como o

casamento preferencial a partir de uma loacutegica endogacircmica ndash tabu do lsquooutcestrsquo ou

seja do casamento fora do grupo ndash jaacute era uma caracteriacutestica presente desde MG e

se constituiu como importante dinacircmica para a manutenccedilatildeo e coesatildeo do grupo em

149

GuaiacuteraPR Os autores propotildeem entatildeo uma anaacutelise do processo de migraccedilatildeo como

mecanismo necessaacuterio para a manutenccedilatildeo das famiacutelias em contraste com a anaacutelise

anterior do primeiro relatoacuterio que entendia a migraccedilatildeo como elemento

descaracterizador da identidade quilombola do grupo Descrevem ainda os aspectos

da religiosidade e os procedimentos terapecircuticos utilizados pelos membros da

comunidade finalizando este capiacutetulo com uma anaacutelise do processo de

reconhecimento do direito quilombola e dos conflitos dele decorrentes

(5) ldquoA terra as plantas e a produccedilatildeordquo apresentam uma anaacutelise de aspectos

ambientais e agronocircmicos da comunidade

(6) ldquoProposta de delimitaccedilatildeo da comunidade remanescente de quilombo

Manoel Ciriaco dos Santos em que apresentam uma proposta de territoacuterio quilombola

como base nos dados da pesquisa realizada diversamente do primeiro relatoacuterio que

afirmava natildeo haver territoacuterio quilombola a ser indicado

(7) Referecircncias bibliograacuteficas e anexos

O caminho argumentativo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico estruturou-se

por meio da fundamentaccedilatildeo histoacuterica das ldquomemoacuterias mineirasrdquo do grupo quilombola

em GuaiacuteraPR Apontam assim para os ldquopotenciais elos de parentesco com

comunidades quilombolas de Minas Geraisrdquo bem como para os ldquodados histoacutericos

sobre origens e dispersotildees geograacuteficasrdquo das comunidades quilombolas da regiatildeo

mineira e suas ldquodinacircmicas locais de migraccedilatildeordquo A significativa presenccedila da

argumentaccedilatildeo histoacuterica neste relatoacuterio estaacute relacionada possivelmente ao contexto de

produccedilatildeo da pesquisa realizada na sequecircncia de um outro relatoacuterio antropoloacutegico que

rejeitava a legitimidade da identidade e da reivindicaccedilatildeo territorial do grupo

precisamente por conta da suposta impossibilidade de vinculaacute-los a uma

ancestralidade quilombola Assim os autores do segundo relatoacuterio buscam

demonstrar como o trabalho de campo realizado em MG proporcionou fontes ldquoque

corroboram e possibilitam aprofundar os elementos apontados pelas famiacutelias

quilombolas de Manoel Ciriaco sobre suas origens mineirasrdquo (Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701-702 [p 08-09] 721

[p28])

Esta busca de comprovaccedilatildeo histoacuterica natildeo eacute como jaacute abordamos

anteriormente um requisito legal conforme a definiccedilatildeo atual dada pelo Decreto

Federal 4887 de 2003 que regulamentou o processo de titulaccedilatildeo de territoacuterios

150

quilombolas A opccedilatildeo do decreto em atribuir ao relatoacuterio antropoloacutegico ndash e natildeo a um

ldquorelatoacuterio histoacutericordquo ndash a responsabilidade de ser um dos estudos (o primeiro deles) que

subsidia o tracircmite de acesso a direitos territoriais aponta para um direcionamento que

perceba como o grupo elabora no presente suas narrativas sobre ldquoa resistecircncia agrave

opressatildeo histoacuterica sofridardquo a partir da ldquopresunccedilatildeo da ancestralidade negrardquo nos

termos do referido decreto o que natildeo depende de uma noccedilatildeo restrita de comprovaccedilatildeo

da ascendecircncia do grupo com negros escravizados no passado No entanto apesar

de formalmente este relatoacuterio ter caraacuteter antropoloacutegico as precauccedilotildees adotadas pelo

pesquisador em relaccedilatildeo a possiacuteveis contestaccedilotildees e contralaudos dentro do

procedimento administrativo no INCRA podem fazer com que haja um predomiacutenio de

argumentos de ordem histoacuterica os quais parecem ser mais persuasivos para os

diferentes atores implicados na rede que de dentro do Estado em um dado momento

de estabilizaccedilatildeo iraacute consolidar o territoacuterio do grupo (RIBEIRO CALABRIA 2013)

Dentre estes atores haacute um predomiacutenio da loacutegica juriacutedica a partir da qual o

relatoacuterio antropoloacutegico pode ser interpretado como prova pericial o que cria uma

expectativa da produccedilatildeo por parte da antropologia de um conhecimento cientiacutefico

objetivo (OrsquoDWYER 2009 p 177) Nesta relaccedilatildeo entre direito e antropologia o

conhecimento histoacuterico entendido numa chave positivista e factualista eacute convocado

a oferecer provas comprovatoacuterias que serviriam para atender as expectativas do

campo juriacutedico Opera-se desta maneira a partir de uma certa linguagem de

legalidade que estabelece linhas de interpretaccedilatildeo do passado e de clivagem do social

e do cultural gerando uma racionalizaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade em um todo

coerente com base em significados e registros de comunicaccedilatildeo preacute-estabelecidos

Faz-se necessaacuterio para tanto o silenciamento do fluxo e da indeterminaccedilatildeo do

passado para que seja possiacutevel uma reduccedilatildeo taacutetica e palataacutevel aos instrumentos

juriacutedicos os quais parecem basear sua legitimidade em uma promessa pragmaacutetica de

criar equivalecircncia para a transaccedilatildeo entre interesses contraacuterios e incomensuraacuteveis

(como no caso de disputas por terras) a partir de um denominador comum Nisto em

parte reside sua hegemonia a despeito de que em si mesmos os criteacuterios juriacutedicos

natildeo satildeo garantidores de igualdade (COMAROFF COMAROFF 2011 p 145-151)

Para que fosse possiacutevel a realizaccedilatildeo da pesquisa e do trabalho de campo na

regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash fundamental para a estrutura narrativa

construiacuteda pelo relatoacuterio ndash algumas estrateacutegias foram adotadas A primeira foi a

151

divulgaccedilatildeo junto agraves organizaccedilotildees e instituiccedilotildees que executam trabalhos com as

comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo de uma mensagem

produzida pela comunidade em conjunto com os pesquisadores Esta mensagem

visou estabelecer contato com as comunidades quilombolas da regiatildeo e solicitou em

nome da lideranccedila do grupo em GuaiacuteraPR apoio para a localizaccedilatildeo dos parentes que

permaneceram em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Prezados Me chamo Adir Rodrigues dos Santos lideranccedila da comunidade quilombola Manoel Ciriaco localizada em Guaiacutera - PR Somos uma comunidade certificada pela Fundaccedilatildeo Palmares e estamos no processo de elaboraccedilatildeo do laudo antropoloacutegico para realizaccedilatildeo nasceram (sic) no municiacutepio de Santo Antonio do Itambeacute em Minas Gerais suas terras eram proacuteximas a um fazendeiro chamado Milton Gonccedilalves em Santo Antonio do Itambeacute No ano de 1981 o filho de seu Manoel Joatildeo Louriano dos Santos casado com Maria Conceiccedilatildeo das Dores e seu primo Aniacutesio Dioniacutesio de Paula (irmatildeo de Geraldo de Paula ambos filhos de Sebastiatildeo Vicente) vieram para Guaiacutera Paranaacute Manoel Ciriaco chegou em Guaiacutera em 1962 onde nascemos e vivemos ateacute hoje Fazendo pesquisa na internet encontramos no site httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_lista_comunidadeshtml as comunidades de Mata dos Crioulos Botafogo e Martins localizadas no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute e as comunidades Ausente Bauacute Comunidade do Ocirc Ribeiratildeo dos Porcos e Rua Vila Nova no municiacutepio do Serro meu pai tinha memoacuteria desses dois municiacutepios Acreditamos que nessas comunidades haacute ancestrais nossos encontraacute-los contribuiria muito para nossa luta pelo reconhecimento e titulaccedilatildeo Caso vocecircs tenham maiores informaccedilotildees sobre essas comunidades relatoacuterios jaacute realizados ou qualquer pista que contribua aos nossos estudos pedimos que nos enviem (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 700 [p 07])

A articulaccedilatildeo entre os pesquisadores que elaboravam o relatoacuterio

antropoloacutegico e as comunidades quilombolas da regiatildeo mineira se deu a partir do

contato estabelecido com a equipe de assessoria juriacutedica quilombola que atua dentro

do curso de graduaccedilatildeo em direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Serro (PUC-

Serro) e que realiza haacute mais de cinco anos projetos de extensatildeo com estes grupos128

Este contato possibilitou o acesso de Cassius Cruz historiador da equipe aos

mediadores poliacuteticos das comunidades quilombolas da regiatildeo tornando possiacutevel a

realizaccedilatildeo de trabalho de campo em seis comunidades quilombolas nos municiacutepios

de Serro (ldquoAusentesrdquo ldquoBauacuterdquo ldquoVila Novardquo ldquoQueimadasrdquo e ldquoSanta Cruzrdquo) e de

128 Este campus da PUC estaacute localizado no municiacutepio de Serro que eacute vizinho a Santo Antocircnio do Itambeacute

e funciona como municiacutepio referecircncia por ter um porte maior com 20835 habitantes segundo o censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro Acesso em 230915

152

Diamantina (ldquoMata dos Crioulosrdquo) nos periacuteodos de 05 a 13 de setembro e de 22 a 28

de outubro de 2012 (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do

INCRAPR p 721 [p 28])

Durante a pesquisa de campo foram levantadas possibilidades de viacutenculos de

parentesco entre a comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e o casal

fundador da Comunidade Quilombola Vila Nova Os diagramas de parentesco dos

grupos mineiros bem como fotos e viacutedeos foram enviados para Guaiacutera para que fosse

possiacutevel a identificaccedilatildeo de viacutenculos de parentesco entre as comunidades

No final do mecircs de setembro apresentamos as fotografias viacutedeos e demais informaccedilotildees que conseguimos em Minas Gerais agrave comunidade de Manoel Ciriaco sendo este um momento chave da relaccedilatildeo estabelecida entre os pesquisadores e a comunidade pois se manifestaram muito felizes com os resultados apresentados e por termos conseguido encontrar e registrar informaccedilotildees que eles mesmos conheciam unicamente pela transmissatildeo oral (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 702-703 [p 09-10])

O segundo relatoacuterio argumenta ao longo de todo o capiacutetulo sobre a ldquoHistoacuteria

da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo que a memoacuteria coletiva

existente em Guaiacutera sobre sua regiatildeo de origem pocircde ser respaldada pela pesquisa

realizada em Minas Gerais a partir de elementos comuns ldquoseja com relaccedilatildeo aos

modos de produccedilatildeo habitaccedilatildeo religiosidade quer seja pela descriccedilatildeo de estrateacutegias

matrimoniais dos grupos familiaresrdquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 p 737 [p 44]) Uma das narrativas importantes que compotildee

a memoacuteria do grupo em Guaiacutera diz respeito ao uso provisoacuterio que seus antepassados

fizeram de lapas ou locas de pedra como moradia Como a pesquisa na regiatildeo mineira

pocircde demonstrar esta eacute uma praacutetica cultural mantida ateacute os dias de hoje em

comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo como registrado na atraveacutes

trazida a foto abaixo129 na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos

(DiamantinaMG)

129 A importacircncia da evocaccedilatildeo desta imagem na construccedilatildeo do argumento do segundo relatoacuterio antropoloacutegico parece ser confirmada pela sua utilizaccedilatildeo tambeacutem na capa do documento

153

FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 726 [p 33]

Esta praacutetica parece estar relacionada segundo a anaacutelise do relatoacuterio agrave

situaccedilatildeo de precariedade em que viviam e agrave criatividade necessaacuteria para sobreviver a

partir do que a natureza lhes oferecia no periacuteodo escravagista e poacutes-escravagista Os

autores apontam assim como a utilizaccedilatildeo de lapas se insere em dinacircmicas de busca

por autonomia e liberdade em contraste com a experiecircncia de descendentes de

escravos que permaneceram agregados agraves fazendas formando comunidades

quilombolas que se caracterizam por uma baixa mobilidade A estrateacutegia de

mobilidade em um mesmo contexto regional associada a diferentes modos de

trabalho e ocupaccedilatildeo territorial tambeacutem conformaram comunidades quilombolas na

regiatildeo marcadas ldquoainda hoje por fluxos migratoacuterios internos e externos e uma rede

de parentesco que articula diversas dessas comunidadesrdquo (Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 724-725 [p 31 e 32])

A experiecircncia de mobilidade portanto teria significativa importacircncia na

trajetoacuteria de muitas famiacutelias negras que atualmente se reconhecem como quilombolas

na regiatildeo de Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG Esta seria uma das caracteriacutesticas

154

marcantes da continuidade histoacuterica do grupo do Paranaacute com seus antepassados

dessa regiatildeo

A mobilidade espacial destes grupos jaacute tendia ser maior mesmo antes do iniacutecio do processo migratoacuterio que levaria famiacutelias a sair de Minas Gerais pois mantinham uma relaccedilatildeo mais tecircnue e por isso de mais autonomia frente ao contexto regional de arregimentaccedilatildeo de matildeo-de-obra uma vez que faziam das lapas suas moradias natildeo sendo assim dependentes das estruturas das fazendas (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 743 [p 50])

A continuidade histoacuterica estaria presente tambeacutem nessa busca de autonomia

nas relaccedilotildees de trabalho A pesquisa indicou a existecircncia de um padratildeo seguido por

geraccedilotildees e expresso na estrateacutegia atual dos membros da comunidade em Guaiacutera de

complementarem a renda obtida no proacuteprio territoacuterio com relaccedilotildees de trabalho

estruturadas fora da loacutegica patratildeo-empregado como diaristas arrendataacuterios ou

empreiteiros Esta opccedilatildeo garantiria a manutenccedilatildeo de autonomia ldquouma vez que natildeo

se tornam dependentes de patrotildees especiacuteficosrdquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 745 [p 52])

Dentre as estrateacutegias identificadas pela pesquisa como aquelas que apontam

para a manutenccedilatildeo de referecircncias comuns com as comunidades quilombolas da

regiatildeo mineira estaacute segundo o relatoacuterio a continuidade da tendecircncia endogacircmica

que analisam atraveacutes de vaacuterios excertos genealoacutegicos apresentados no capiacutetulo

ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo A importacircncia desta estrateacutegia

estaria na possibilidade de manutenccedilatildeo do sentimento de pertencimento a uma

origem comum que cria identidade e memoacuteria coletiva permitindo a continuidade das

dinacircmicas de organizaccedilatildeo social do grupo mesmo com a dispersatildeo territorial

Reforccedilada pelo contexto socialmente perifeacuterico e de preconceito racial no qual

o grupo se inseriu na regiatildeo de GuaiacuteraPR esta tendecircncia endogacircmica como

argumentam os autores eacute precedente e contribui para o fortalecimento de alianccedilas

intra-familiares enquanto heranccedila socioloacutegica que reforccedilou as fronteiras e a

capacidade de manutenccedilatildeo da coesatildeo social do grupo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 738 [p 45]) Deste modo esta capacidade

de manutenccedilatildeo de uma coletividade natildeo se baseia apenas na aacuterea que lograram

adquirir e que ocupam haacute sessenta anos mas tambeacutem decorre das relaccedilotildees de

parentesco e das formas proacuteprias de organizaccedilatildeo social (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 736 [p 43])

155

As relaccedilotildees de parentesco atualmente estendem-se por uma rede que

transcende os limites territoriais desta comunidade Esta rede ampliada se expandiu

com os deslocamentos de famiacutelias que deixaram a comunidade em GuaiacuteraPR nas

uacuteltimas deacutecadas em decorrecircncia da diminuiccedilatildeo das aacutereas e das oportunidades de

trabalho na regiatildeo ligadas ao processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura A estrutura do

segundo relatoacuterio aborda assim como aleacutem da importacircncia de uma territorialidade

especiacutefica construiacuteda em GuaiacuteraPR haacute uma visatildeo sobre os viacutenculos de

pertencimento ao grupo que se abre por esta rede de parentes (que estatildeo fora do

territoacuterio e que podem retornar com o processo de titulaccedilatildeo) o que gera uma

percepccedilatildeo de territorialidade mais ampla perpassada por referecircncias de memoacuteria

sobre a regiatildeo de origem do grupo no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Neste sentido a literatura antropoloacutegica recente tem tematizado sobre a natildeo

exclusividade da relaccedilatildeo territorial enquanto criteacuterio de identificaccedilatildeo de grupos

quilombolas jaacute que ldquoo conceito de quilombo natildeo pode ser territorial apenas ou fixado

em um uacutenico lugar geograficamente definido historicamente lsquodocumentadorsquo e

arqueologicamente lsquoescavadorsquordquo (ALMEIDA 2011 p 45) A situaccedilatildeo de deslocamento

caracteriacutestica deste grupo de GuaiacuteraPR mas tambeacutem os outros casos de expulsatildeo e

de reassentamento demonstram como ldquomais do que uma exclusiva dependecircncia da

terra o quilombo faz da terra a metaacutefora que possibilita a continuidade do grupo ()rdquo

(LEITE FERNANDES 2006 p 11)

O segundo relatoacuterio corrobora esta leitura antropoloacutegica que natildeo se limita a

uma noccedilatildeo de territorialidade fixa para reconhecer direitos territoriais agraves comunidades

quilombolas Dessa forma a proposta de delimitaccedilatildeo territorial apresentada e

aprovada pela comunidade atraveacutes de discussatildeo em reuniatildeo especiacutefica indica

a) A recomposiccedilatildeo dos lotes adquiridos por Manoel Ciriaco dos Santos (aacuterea

de 102 alqueires paulistas dos quais 142 alq foi vendido e 45 estatildeo

arrendados atualmente) e por Geraldo dos Santos (51 alq paulistas

vendidos em 1993) a serem titulados enquanto territoacuterio quilombola

b) A aquisiccedilatildeo pelo INCRA de uma aacuterea complementar de aproximadamente

35 alqueires paulistas que eacute justificada devido ldquoagraves formas de relaccedilatildeo de

trabalho tradicionais da comunidade que diminuem com a mecanizaccedilatildeo

agriacutecola aos conflitos gerados pelo processo que inviabilizaram o acesso

156

a trabalhos na regiatildeo e ao consequente crescimento do ecircxodo de

membros da comunidade do territoacuteriordquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 802 [p 109]) Outro motivo para

a aquisiccedilatildeo complementar eacute a possibilidade de retorno de em meacutedia vinte

e seis famiacutelias as quais atualmente estatildeo vivendo em condiccedilotildees precaacuterias

em diferentes cidades Este eacute um dado referente ao nuacutemero aproximado

de famiacutelias que deixaram o territoacuterio em Guaiacutera e que segundo as

lideranccedilas manteacutem viacutenculos com a comunidade e retornariam caso

houvesse possibilidade O nuacutemero de trinta e trecircs famiacutelias (somando as

sete famiacutelias residentes na comunidade na eacutepoca da elaboraccedilatildeo do

relatoacuterio mais as vintes e seis com previsatildeo de retorno) embasou o caacutelculo

desta aacuterea adicional tendo tambeacutem como referecircncia os criteacuterios

agronocircmicos para a estimativa da necessidade de acreacutescimo de aacuterea de

cultivo que possa viabilizar a manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo fiacutesica e econocircmica

da comunidade

De acordo com a avaliaccedilatildeo do INCRA o segundo relatoacuterio antropoloacutegico

cumpriu com seus objetivos e caracterizou a comunidade e o territoacuterio ao qual o grupo

tem direito a partir de dados etnograacuteficos e histoacutericos suficientes segundo a Instruccedilatildeo

Normativa 592007 atualmente em vigor Enquanto a aacuterea do territoacuterio quilombola que

seraacute titulada corresponde aos dois lotes acima referidos a aacuterea complementar seraacute

obtida por meio de desapropriaccedilatildeo por interesse social conforme previsto na Lei

41321962 ficando a comunidade com o usufruto atraveacutes de Contrato de Concessatildeo

de Direito Real de Uso (CCDRU) O tamanho da aacuterea adicional necessaacuteria apesar de

jaacute previamente indicado no relatoacuterio dependeraacute conforme aponta o parecer

conclusivo SR(09)F4Nordm 0012014 do INCRAPR130 do nuacutemero de famiacutelias

cadastradas pelo INCRA que permaneceratildeo no territoacuterio bem como da discussatildeo

sobre os tipos de produccedilatildeo agriacutecola que seratildeo por elas desenvolvidas

Atualmente haacute um importante viacutenculo com as aacutereas adquiridas por Manoel

Ciriaco e Geraldo dos Santos apoacutes deacutecadas de ocupaccedilatildeo que embasa uma

130 De acordo com a ementa do documento trata-se do ldquoParecer conclusivo do Serviccedilo de

Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas do INCRAPR sobre o Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos com base na IN 572009rdquo (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 1062-1067)

157

reivindicaccedilatildeo especiacutefica pelo retorno do territoacuterio ao tamanho da aacuterea inicial a qual

somava quinze alqueires e da qual soacute mantiveram em torno de 50 Aleacutem desta aacuterea

de ocupaccedilatildeo efetiva a possibilidade de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio com a compra pelo

INCRA de uma nova aacuterea ndash com a qual o grupo quilombola natildeo possui uma relaccedilatildeo

preacutevia ndash demonstra a especificidade deste caso e a necessidade portanto de que

houvesse um procedimento diferenciado por parte deste oacutergatildeo federal

A demanda por um procedimento diferenciado de regularizaccedilatildeo territorial no

caso de GuaiacuteraPR foi necessaacuteria tendo em vista que a experiecircncia de ldquoresistecircncia agrave

opressatildeo histoacuterica sofridardquo organizou-se por meio da realizaccedilatildeo de deslocamentos

Tais movimentos visavam a concretizaccedilatildeo da autonomia liberdade e melhores

condiccedilotildees de vida para estas famiacutelias dada a insuficiecircncia das aacutereas na regiatildeo de

origem do grupo em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG por meio do acesso a novos

territoacuterios Deste modo percebe-se que a possibilidade de conquista de territoacuterios estaacute

no acircmago deste processo de resistecircncia social e que se em outros casos de grupos

quilombolas a resistecircncia consiste na permanecircncia em um mesmo territoacuterio

tradicional neste caso ela se constituiu pela experiecircncia de deslocamentos

Deve-se levar em conta ainda que estes deslocamentos iniciados em 1956

por estas famiacutelias negras da aacuterea rural de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo

ao municiacutepio de CaiabuSP implicavam em seacuterios riscos tanto no caminho como no

processo de fixaccedilatildeo em um novo lugar onde teriam que encontrar novas

oportunidades de inserccedilatildeo e de trabalho As referecircncias a existecircncia de mais famiacutelias

relacionadas ao nuacutecleo de parentes do casal Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues

apontam para o fato de que esta linha de migraccedilatildeo da regiatildeo de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ateacute a regiatildeo de Presidente PrudenteSP consistia em um movimento mais

amplo como rede de apoio para a migraccedilatildeo de novas famiacutelias No acircmbito deste fluxo

de deslocamentos a busca por direitos da comunidade de GuaiacuteraPR eacute construiacuteda

atualmente a partir da trajetoacuteria de deslocamentos do casal Manoel e Ana mas natildeo

se restringe a este nuacutecleo familiar Eacute principalmente a partir desta rede preacutevia de apoio

que os desafios da migraccedilatildeo puderam ser por eles enfrentados Como mencionado

no primeiro capiacutetulo a referecircncia de Manoel na regiatildeo paulista era seu primo de

primeiro grau Raimundo Constantino que saiu com esposa e filhos de Santo Antocircnio

do Itambeacute em 1949 sete anos antes de Manoel Tais desafios do processo de

158

migraccedilatildeo satildeo ainda mais significativos tendo em vista a existecircncia de contextos que

podem ser hostis para a inserccedilatildeo da populaccedilatildeo negra

Importante para finalizar este capiacutetulo destacar que foi o processo

conturbado de regularizaccedilatildeo territorial e reconhecimento da legitimidade da

reivindicaccedilatildeo identitaacuteria da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que impulsionou

a realizaccedilatildeo de duas viagens de retorno para a regiatildeo de origem do grupo as quais

iremos abordar no capiacutetulo seguinte Com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir

da pesquisa realizada pelo historiador Cassius Cruz na regiatildeo do SerroMG Adir

enquanto lideranccedila da comunidade de Guaiacutera comeccedila a ter expectativas de conhecer

a regiatildeo de origem de sua famiacutelia buscar os parentes com quem perderam o contato

pesquisar mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria de seus antepassados A realizaccedilatildeo

desta pesquisa de mestrado mostrou-se como oportunidade de aprofundar tal

pesquisa a partir dos caminhos apontados pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico tendo

em vista que jaacute havia um primeiro levantamento de dados e contatos na regiatildeo de

origem do grupo

159

3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo

31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo131

Se no primeiro capiacutetulo destacamos a relevacircncia das dinacircmicas de

movimento para a compreensatildeo da emergecircncia identitaacuteria quilombola em GuaiacuteraPR

eacute fundamental neste momento pontuar que a centralidade dos deslocamentos na

trajetoacuteria do grupo natildeo nos levou a recorrer a uma ideia de ldquomobilidaderdquo132 pois este

conceito poderia sugerir que haacute uma constacircncia ou uma facilidade em se realizar

deslocamentos por parte dos membros do grupo o que de fato natildeo ocorre Para que

se consiga visualizar como a trajetoacuteria do grupo eacute perpassada pelo movimento faz-se

necessaacuteria uma perspectiva de longa duraccedilatildeo considerando que no presente como

observei durante o trabalho de campo haacute uma possibilidade muito limitada de

deslocamentos em decorrecircncia das dificuldades financeiras Viajar para visitar os

parentes eacute sempre um plano mas dificilmente sobram recursos para concretizaacute-lo

A dificuldade de deslocamento comeccedila inclusive dentro do proacuteprio municiacutepio

pois os quilombolas natildeo tecircm acesso a transporte puacuteblico que chegue proacuteximo agrave

comunidade e ateacute 2012 contavam apenas com um carro utilitaacuterio antigo em uma

comunidade com em meacutedia sete famiacutelias Na eacutepoca em que eu atuei como assessora

juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute pude contribuir para o

encaminhamento de um pedido realizado pela Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel

Ciriaco dos Santos (ACONEMA) junto agrave Poliacutecia Federal de Foz do Iguaccedilu133 visando

agrave doaccedilatildeo de um veiacuteculo para a associaccedilatildeo Tal pedido foi embasado na necessidade

da comunidade de dispor de meios para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos

abrangidas pelo contrato do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA)134

131 Tiacutetulo homocircnimo ao trabalho de Oliveira Filho ldquoA Viagem da Volta reelaboraccedilatildeo cultural e horizonte

poliacutetico dos povos indiacutegenas do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1994) 132 Este termo eacute utilizado no segundo relatoacuterio antropoloacutegico para destacar a importacircncia da presenccedila de deslocamentos na trajetoacuteria histoacuterica do grupo 133 As ldquoentidades sem fins lucrativosrdquo podem solicitar doaccedilotildees de mercadorias apreendidas pela Poliacutecia

Federal devendo constar na solicitaccedilatildeo entre outros requisitos formais a justificativa e a finalidade do pedido 134 Dentre as entidades que atualmente recebem a doaccedilatildeo de alimentos conforme o contrato que a

comunidade quilombola eacute responsaacutevel destaca-se como mencionado no primeiro capiacutetulo treze tekohas (aldeias avaacute-guaranis) de Guaiacutera e do municiacutepio vizinho Terra Roxa Esta parceria com os grupos indiacutegenas eacute fruto da articulaccedilatildeo direta entre Adir e os caciques

160

Com o recebimento da doaccedilatildeo de uma camionete ldquosilveradordquo com trecircs

lugares na frente e uma carroceria ampla e fechada a execuccedilatildeo do PAA na

comunidade foi viabilizada em termos concretos com condiccedilotildees para o transporte da

produccedilatildeo agriacutecola o que era uma demanda muito urgente para as famiacutelias

quilombolas Esta poliacutetica puacuteblica de seguranccedila alimentar se constituiu como uma

importante fonte de renda na comunidade nos uacuteltimos anos mesmo tendo em vista a

demora na realizaccedilatildeo dos pagamentos por parte do governo que natildeo lhes garante

uma renda mensal135 Neste contexto os programas de assistecircncia e previdecircncia

social como aposentadoria e Bolsa Famiacutelia136 proporcionam uma complementaccedilatildeo

econocircmica considerada pelos quilombolas como muito necessaacuteria Os quilombolas

realizam tambeacutem a comercializaccedilatildeo de seus produtos como verduras legumes

raiacutezes frutos temperos animais de pequeno porte e tambeacutem milho e soja

Atualmente trecircs pessoas trabalham fora da comunidade a esposa e a enteada de

Adir na lanchonete do posto de gasolina localizado na rodovia em frente agrave entrada

para o bairro rural Maracaju dos Gauacutechos e Luciano ndash casado com Cleusimar filha

de Zeacute Maria ndash que tambeacutem trabalha de auxiliar de limpeza no mesmo posto

O territoacuterio atualmente de 85 alqueires eacute considerado por eles como

insuficiente para as sete famiacutelias que tiram seu sustento da produccedilatildeo agriacutecola

Segundo Adir o ideal seria cinco alqueires por famiacutelia no miacutenimo Uma das principais

demandas somada agrave necessidade de ampliaccedilatildeo do territoacuterio eacute o acesso a poliacuteticas

puacuteblicas que possibilitem uma fonte de renda gerada na proacutepria comunidade

Pleiteiam assim a construccedilatildeo de um barracatildeo onde sonham com a instalaccedilatildeo por

exemplo de uma cozinha comunitaacuteria137 Deve-se levar em conta ainda que a

135 O limite anual do valor de repasse do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social oacutergatildeo responsaacutevel pelo

PAA na modalidade de ldquoDoaccedilatildeo Simultacircneardquo ndash acessada pela comunidade quilombola ndash eacute de ateacute R$ 65 mil por ano por agricultor 136 O ldquoBolsa Famiacuteliardquo segundo a paacutegina virtual do Governo Federal ldquoeacute um programa de transferecircncia

direta de renda direcionado agraves famiacutelias em situaccedilatildeo de pobreza e extrema pobreza em todo o Paiacutes de modo que consigam superar a situaccedilatildeo de vulnerabilidade e pobrezardquo Disponiacutevel em httpwwwcaixagovbrprogramas-sociaisbolsa-familiaPaginas Acesso em 041115 137 A solicitaccedilatildeo da comunidade de que a prefeitura construa este barracatildeo foi questionada pela

administraccedilatildeo municipal em decorrecircncia de a aacuterea da comunidade consistir em uma propriedade privada e natildeo ter sido realizada ainda a titulaccedilatildeo quilombola conforme me relatou Adir No entanto de acordo com a Portaria Interministerial (Ministeacuterio do Planejamento Orccedilamento e Gestatildeo Ministeacuterio da Fazenda e Controladoria Geral da Uniatildeo) nordm 507 de 2011 artigo 39 sect2ordm inciso III aliacutenea ldquoardquo o municiacutepio tem respaldo para a construccedilatildeo de uma benfeitoria ldquopor interesse puacuteblico ou socialrdquo na comunidade que eacute certificada pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares e que estaacute em processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo INCRA A referida portaria estaacute disponiacutevel em httpswwwconveniosgovbrportalarquivos1_Portaria_Interministerial_507_24_11_2011_e_alteracoes_Dezembro_de_2013pdf Acesso em 091015

161

situaccedilatildeo econocircmica da comunidade se agravou muito apoacutes o conflito com os vizinhos

em decorrecircncia do qual natildeo satildeo mais contratados para trabalharem nas propriedades

do entorno atividade que haacute muitos anos realizavam na regiatildeo

Com esta breve descriccedilatildeo das dificuldades de geraccedilatildeo de renda das famiacutelias

quilombolas eacute possiacutevel compreender as limitaccedilotildees que encontram para se

deslocarem mesmo que seja para visitas a parentes que moram proacuteximos De acordo

com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido pela empresa Terra Ambiental

() satildeo no miacutenimo 43 indiviacuteduos que possuem relaccedilatildeo de parentesco direto com os atuais moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo Manoel Ciriaco dos Santos e vivem em cidades localizadas em um raio de no maacuteximo 200 quilocircmetros sendo que desses 35 vivem em um raio inferior a 100 quilocircmetros da comunidade Segue uma relaccedilatildeo dos municiacutepios e nuacutemero de indiviacuteduos cujos viacutenculos de parentesco foram identificados

(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 751[p 58])

Dentro da rede ampliada de parentesco138 dos quilombolas de GuaiacuteraPR um

local muito significativo e mais afastado em relaccedilatildeo agrave comunidade eacute a regiatildeo de

Presidente PrudenteSP por onde as famiacutelias que saiacuteram de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG passaram tendo vivido no municiacutepio de CaiabuSP entre as deacutecadas de

19501960 antes de se fixarem em GuaiacuteraPR e para onde retornaram os irmatildeos mais

velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) O municiacutepio de

Presidente PrudenteSP fica a 448 km de Guaiacutera e o trajeto demanda um investimento

de em meacutedia duzentos reais para passagens rodoviaacuterias de ida e volta por pessoa

Se este trajeto eacute de acesso difiacutecil para os quilombolas de GuaiacuteraPR o que

falar entatildeo do anseio reforccedilado pelos questionamentos colocados pelo conturbado

processo de titulaccedilatildeo em tracircmite no INCRA de ir ateacute Minas Gerais para que

138 Quando nos referimos a parentesco natildeo estamos falando apenas do parentesco genealoacutegico mas

em um sentido mais amplo que inclui relaccedilotildees por exemplo de compadrio (ARANTES 1975)

Municiacutepio Nordm Indiviacuteduos

Terra Roxa- PR 22

Assis Chateaubriand- PR 6

Satildeo Jorge do Patrociacutenio - PR 4

Guaraniaccedilu ndash PR 3

Catanduvas- PR 3

Guaiacutera- PR 2

Eldorado ndash MS 2

Cascavel- PR 1

162

pudessem conhecer suas raiacutezes e reencontrar seus parentes mineiros Somando

apenas os valores das passagens rodoviaacuterias para poder ir e voltar de GuaiacuteraPR a

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de ocircnibus percorrendo em meacutedia 3354 quilocircmetros por

terra (duas vezes o percurso de 1677 km139) o custo gira em torno atualmente de

setecentos reais por pessoa

Assim a contradiccedilatildeo apontada acima entre os deslocamentos que marcaram

a trajetoacuteria do grupo nos uacuteltimos sessenta anos e a condiccedilatildeo de difiacutecil mobilidade das

geraccedilotildees atuais tem uma chave de interpretaccedilatildeo comum a posiccedilatildeo socioeconocircmica

perifeacuterica do grupo A mesma condiccedilatildeo que os imobiliza por natildeo disporem atualmente

de recursos financeiros que permitam a realizaccedilatildeo de viagens eacute parte significativa

das causas que provocaram os movimentos de deslocamento das famiacutelias em busca

de melhores condiccedilotildees de vida no passado

Importante pontuar que se os deslocamentos que marcam a trajetoacuteria histoacuterica

da famiacutelia criaram por um lado uma situaccedilatildeo de inviabilidade do reencontro entre

parentes ndash jaacute que os que foram para GuaiacuteraPR perderam nas uacuteltimas deacutecadas

qualquer contato com os parentes que se mantiveram em MG ndash por outro lado tal

interrupccedilatildeo do contato natildeo significou uma ruptura de viacutenculos (GALIZONI 2002)140

Com base nos encontros proporcionados pelas duas viagens de retorno para Serro e

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG realizadas no acircmbito desta pesquisa em marccedilo e em

junho de 2015 foi possiacutevel perceber que houve uma atualizaccedilatildeo significativa dos laccedilos

e viacutenculos afetivos que estavam antes latentes

Natildeo soacute os viacutenculos foram mantidos mas como analisado pelo segundo

relatoacuterio antropoloacutegico houve um processo de permanecircncia de referecircncias culturais e

de memoacuterias comuns que continuaram mesmo agrave distacircncia e sem contatos

conectando os quilombolas de Guaiacutera a seus parentes em Minas Gerais Neste

sentido importante mencionar a contribuiccedilatildeo de Garcia Jr (1989) em sua pesquisa

com migrantes que saiacuteam da Paraiacuteba para o Sul na qual reflete sobre como tais

deslocamentos natildeo implicaram no abandono de suas formas de organizaccedilatildeo social

139 Este caacutelculo foi feito com base no trajeto que pode ser percorrido de ocircnibus conforme experiecircncia

da viagem realizada em marccedilo de 2015 de GuaiacuteraPR para UmuaramaPR de laacute para Presidente PrudenteSP ateacute Belo HorizonteMG Na capital mineira toma-se um ocircnibus para SerroMG e de onde

enfim chega-se em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG 140 Em seu estudo na regiatildeo do Alto Vale do Jequitinhonha muito proacutexima a regiatildeo aqui em questatildeo

Galizoni aponta como a migraccedilatildeo eacute um processo familiar e soacute muito raramente ocorre as pessoas que saiacuteram de sua regiatildeo de origem ldquorompem de vez com a famiacuteliardquo (GALIZONI 2002 p 569)

163

anteriores mas ao contraacuterio na sua manutenccedilatildeo com o objetivo de retorno para suas

aacutereas de origem no Nordeste141

No acircmbito deste processo de manutenccedilatildeo de viacutenculos ndash e do desejo de uma

reconexatildeo natildeo soacute simboacutelica e mnemocircnica mas tambeacutem fiacutesica com este lugar de

origem e com os parentes que laacute ficaram ndash a possibilidade de organizar a viagem de

volta que percorresse a trajetoacuteria de deslocamentos das famiacutelias surgiu das minhas

conversas com Adir durante o trabalho de campo em GuaiacuteraPR Ele havia

comentado comigo em vaacuterias ocasiotildees como gostaria de ter tido apoio por parte do

INCRA para acompanhar Cassius na pesquisa realizada em Minas Gerais durante a

elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico

Esta busca pelo contato com pessoas que compartilham a mesma

ldquocomunidade de lembranccedilardquo (HALBWACHS 2003) protagonizada por Adir aponta

para dois aspectos complementares do fenocircmeno eacutetnico a ldquoluta por reconhecimentordquo

e a ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo142 (ARRUTI 2006 p 44) No que tange agrave noccedilatildeo de

ldquoluta por reconhecimentordquo o que estaacute em questatildeo eacute a proacutepria autoidentificaccedilatildeo do

grupo como quilombola ldquopor meio da experenciaccedilatildeo comum de um desrespeito tiacutepico

e de sua traduccedilatildeo em uma identidade coletivardquo (ARRUTI 2006) As viagens de retorno

a Minas Gerais trouxeram agrave tona a compreensatildeo de que o caraacuteter coletivo de

desrespeito agraves famiacutelias que marca a reivindicaccedilatildeo do grupo em GuaiacuteraPR como

coletividade especiacutefica reflete-se na situaccedilatildeo de separaccedilatildeo e de dispersatildeo dos

parentes Trata-se de um sofrimento gerado pela impossibilidade de manutenccedilatildeo das

famiacutelias na regiatildeo de origem e de reproduccedilatildeo do modo de vida camponecircs enquanto

populaccedilatildeo negra que natildeo teve seu processo de cidadania garantido de forma plena

Esta ldquocomunidade de lembranccedilardquo abrange portanto uma noccedilatildeo mais ampla de

pertencimento por parte dos membros da comunidade quilombola de Guaiacutera no qual

141 Este tambeacutem eacute o caso do processo de mobilidade do povo indiacutegena Pankararu de Pernambuco

analisado por Arruti no qual grupos de famiacutelias transferiram seu local de morada por tempo indeterminado em especial para a cidade de Satildeo Paulo na favela Real Parque no bairro do Morumbi ldquoonde se desenha uma espeacutecie de reterritorializaccedilatildeo Pankararurdquo Neste caso a mediaccedilatildeo entre territoacuterio e identidade fruto da abstraccedilatildeo dos ldquodireitosrdquo gerada na modulaccedilatildeo com o Estado produz o sentido de um ldquoterritoacuterio imaterialrdquo como um espaccedilo poliacutetico e simboacutelico para os indiacutegenas Se o territoacuterio eacute acionado como referecircncia fundamental natildeo eacute percebido no entanto como moldura e limitaccedilatildeo de modo que pode se abrir ldquopara o vasto exterior da identidade Pankararu onde a dicotomia do ser natildeo ser tem um caraacuteter mais pendular que geomeacutetricordquo (ARRUTI 1996 p 166-159) 142 A noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo eacute retomada a partir das discussotildees de Taylor e de ldquoluta por reconhecimentordquo a partir de Honneth (ARRUTI 2006)

164

estatildeo englobados o local de origem de Manoel Ciriaco e os demais locais de dispersatildeo

do grupo familiar nos processos de deslocamento ao longo das uacuteltimas deacutecadas

O comentaacuterio de Adir em uma conversa com as duas senhoras que

encontramos morando em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash D Regina (77) e D Zulmira

(73) cunhadas de Seu Joatildeo Loriano (71) filho de Manoel Ciriaco ndash eacute muito enfaacutetico

a respeito desta forma de compreensatildeo da histoacuteria familiar Tal conversa ocorreu no

final da primeira viagem realizada em marccedilo de 2015 durante a gravaccedilatildeo de um viacutedeo

no qual Adir conta para elas o que tinha ocorrido em nosso percurso e comenta sobre

o significado da viagem para ele e para a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos

Esse lugar onde a gente mora hoje eacute uma comunidade reconhecida pela Fundaccedilatildeo Cultural dos Palmares Uma comunidade que hoje eu represento que natildeo eacute tatildeo grande porque as pessoas estatildeo espalhadas como se fosse aqui tambeacutem espalhados pra todo canto Por que no passado essas pessoas natildeo teve oportunidade de ficar junto e de viver junto e essa lembranccedila ficasse de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo mas todo mundo tivesse o seu espaccedilo Porque se a gente falar na eacutepoca da escravidatildeo noacutes somos de uma eacutepoca da escravidatildeo uma escravidatildeo passada onde a gente natildeo adquiriu nada nem o nosso nome E isso tudo passava na minha cabeccedila e eu lembrava e falava assim ldquoMeu Deusrdquo

O desejo dos quilombolas de GuaiacuteraPR de encontrarem seus parentes em

sua regiatildeo de origem e de poderem ldquovoltar a paacutegina da nossa vida do comeccedilordquo como

na expressatildeo utilizada por Adir que serve de tiacutetulo a este capiacutetulo inscreve-se em

uma dinacircmica dupla que abrange uma dimensatildeo poliacutetica vinculada ao processo de

regularizaccedilatildeo territorial da comunidade e um significado familiar e afetivo muito

intenso A mobilizaccedilatildeo de Adir em torno da realizaccedilatildeo desta viagem inicia-se pelo

anseio de subsidiar a consolidaccedilatildeo da imagem do grupo na esfera puacuteblica ndash o que

pode ser compreendido por meio da noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo (ARRUTI

2006) ndash jaacute que tal imagem da comunidade foi abertamente questionada pelo primeiro

relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo durante o processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo

INCRA ainda em tracircmite

Na leitura de meus interlocutores(as) sobre tais demandas externas de

legitimaccedilatildeo entendiam que se o segundo relatoacuterio antropoloacutegico havia demonstrado

a continuidade histoacuterica entre a comunidade de GuaiacuteraPR e as comunidades

quilombolas da regiatildeo mineira de um modo mais amplo apenas o retorno dos

proacuteprios quilombolas agrave regiatildeo ndash percorrendo a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia

ndash poderia proporcionar-lhes mais referecircncias sobre a histoacuteria de seus antepassados

165

assim como a retomada das relaccedilotildees com os parentes apoacutes anos sem contato Os

laccedilos da comunidade em GuaiacuteraPR com este passado ldquoprecisam ser produzidos hoje

atraveacutes da seleccedilatildeo e recriaccedilatildeo de elementos da memoacuteriardquo (ARRUTI 1997 p 23)

recriaccedilatildeo esta que passa pela ideia de ldquoorigemrdquo143 e de ldquoretornordquo

Em sua anaacutelise sobre o processo de emergecircncia identitaacuteria dos povos

indiacutegenas no Nordeste144 Oliveira Filho lanccedilou matildeo da metaacutefora da ldquoviagem da voltardquo

que eacute parte de uma poesia de Torquato Neto sobre a narrativa de um migrante

nordestino que deseja retornar agrave terra de origem ldquodesde que saiacute de casa trouxe a

viagem da volta gravada na minha matildeo enterrada no umbigo dentro e fora assim

comigo minha proacutepria condiccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) Com o uso desta

expressatildeo Oliveira Filho destaca as dimensotildees constitutivas da etnicidade no que

tange agrave trajetoacuteria histoacuterica do grupo social que natildeo anula mas ateacute mesmo reforccedila o

sentimento de referecircncia agrave origem (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)

Os quilombolas de GuaiacuteraPR assim como os povos indiacutegenas no

Nordeste145 natildeo se encaixam nas representaccedilotildees difusas da identidade que

reivindicam Tendo em vista esta descontinuidade gerada em grande parte pela

condiccedilatildeo diaspoacuterica da trajetoacuteria coletiva de reterritorializaccedilatildeo destas famiacutelias

quilombolas a necessidade que sentiram de buscar referecircncias histoacutericas para

dialogar com uma demanda de ldquoorigemrdquo somada a um desejo interno ao grupo deram

para a expressatildeo da ldquoviagem da voltardquo um sentido natildeo soacute metafoacuterico de etnogecircnese

como tambeacutem um sentido literal de regresso No contexto conturbado do

procedimento de regularizaccedilatildeo do grupo em tracircmite no INCRA a volta agrave regiatildeo de

origem se tornou necessaacuteria para o reconhecimento de uma identidade negra singular

que os legitimasse como quilombolas Este processo de retorno se iniciou com a

143 Este reinvestimento nas memoacuterias estava tambeacutem referenciado na busca por ldquotraccedilos culturais que

sirvam como os ldquosinais externosrdquo reconhecidos pelos mediadores e o oacutergatildeo que tem a autoridade de nomeaccedilatildeordquo (ARRUTI 1997 p 23) A identificaccedilatildeo destes ldquosinais externosrdquo da etnicidade remontam ao acionamento da ideia de ldquoorigemrdquo que estaacute na base do conceito de ldquoremanescentesrdquo utilizado pela Constituiccedilatildeo Federal para reconhecer direitos territoriais aos ldquoremanescentes das comunidades de quilombosrdquo no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) 144 O conceito de ldquoremanescenterdquo foi utilizado para se referir aos ldquoremanescentes indiacutegenasrdquo na regiatildeo

Nordeste ndash os quais passaram por um processo de retomada de tradiccedilotildees nas uacuteltimas deacutecadas e que satildeo percebidos como tendo pouca distintividade em relaccedilatildeo aos regionais (ARRUTI 1997) 145 Esta comparaccedilatildeo entre quilombolas e povos indiacutegenas no Nordeste estaacute relacionada agrave dificuldade

de ldquoprecisar os contextos sociohistoacutericos em que tais grupos se constituiacuteram e se consolidaram como ldquounidades discretasrdquo portadoras de um forte referencial eacutetnico e assim diferenciadas do contexto social mais amplordquo (BRASILEIRO SAMPAIO 2002 p 83)

166

elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico e se ampliou por meio das viagens

realizadas em marccedilo e junho de 2015 no acircmbito desta pesquisa de mestrado

Diante do exposto acima interessante ressaltar que estas viagens para Santo

Antocircnio do Itambeacute em 2015 foram precedidas por outras viagens de retorno que

segundo meus interlocutores(as) ocorreram na deacutecada de 1980 Eva filha de Geraldo

dos Santos que tambeacutem adquiriu um lote vizinho ao de Manoel relatou como era difiacutecil

juntar dinheiro para visitar os parentes em Minas e manter contato agrave distacircncia Contou-

me como sua matildee Antocircnia Domingues dos Santos que saiu de Minas Gerais para

morar em GuaiacuteraPR ficou mais de dezesseis anos sem ver a matildee dela Alexandrina

Moreira da Silva que permaneceu na regiatildeo mineira

Dandara E nesta eacutepoca mandava carta assim ou nem carta Eva Mandava nada natildeo sabia mais o endereccedilo deles natildeo sabia mais nada Dezesseis anos daiacute foi saber o endereccedilo Soacute uma vez depois que casou depois que ela veio aqui para o Paranaacute soacute essa vez ela foi na casa da matildee dela Dandara Ela contou como que foi Eva Ela falou que laacute era triste menina Laacute tava triste Falou que era tudo manual casinha tudo ruim as casinhas deles trabalho demais sofria demais era muito sofrido minha matildee falava que a terra era fraca lavoura natildeo saiacutea direito e quando ela falava pro pai e a matildee dela vir pra caacute (GuaiacuteraPR) meu vocirc falava que natildeo vinha pra caacute natildeo que ele natildeo ia largar a terra dele laacute natildeo Minha matildee falava ldquooh meu fio se ocecirc for laacute pro Paranaacute se ocecirc saber o tamanho das pranta que noacutes pranta o tamanho que fica a pranta aqui as pranta natildeo sai da terra baixinha assimrdquo ldquoNatildeo eu vou morrer aqui memo daqui eu natildeo saiordquo ele falou pra matildee A matildee falou que laacute era triste Dandara E ela viajou sozinha essa vez Eva Natildeo foi ela meu pai e meu cunhado o irmatildeo do Adir o Antocircnio Meu pai e o finado Antocircnio largou matildee laacute na casa da matildee dela Minha irmatilde tambeacutem foi irmatilde minha mais velha Iracema e foi a Cenira que era a caccedilula Cenira tinha acho que um ano e trecircs mecircs Daiacute meu pai largou matildee laacute e eles foi laacute na titia na Bahia Dandara Tem parente na Bahia tambeacutem Eva Natildeo eles foi laacute numa titia laacute neacute Dandara Quem que eacute titia Eva Assim eacute que benzia neacute titia matildee de santo noacutes falava titia Eles foi na casa dela pegou endereccedilo com a famiacutelia deles laacute Meu pai foi e meu cunhado o Antocircnio irmatildeo do Adir mais velho Dandara E seu pai jaacute tinha mais contato com a Umbanda

167

Eva Sim ele trabalhava tambeacutem em Umbanda O Antocircnio tambeacutem meu pai minha matildee tambeacutem trabalhava Tudo trabalhava na Umbanda

Em 1981 Antocircnia e seu marido Geraldo voltaram a Minas Gerais para

reverem seus parentes e foram acompanhados por Antocircnio filho de Manoel Ciriaco

Se em Guaiacutera passavam dificuldades quando se trata de Minas Gerais as memoacuterias

reforccedilam como a sobrevivecircncia era ainda mais complicada No entanto mesmo com

tamanha adversidade o avocirc de Eva Sebastiatildeo preferiu permanecer em Minas

Gerais reforccedilando a importacircncia do viacutenculo com seu lugar de origem No relato sobre

este retorno a Minas Gerais Eva destacou a viagem de Geraldo e Antocircnio que

aproveitaram a oportunidade e foram para a Bahia onde estaacute localizado o terreiro de

Umbanda em que Antocircnio fez sua iniciaccedilatildeo ritual

Nesta mesma viagem realizada em 1981 Antocircnio conseguiu encontrar seu

irmatildeo Joatildeo Loriano filho do primeiro casamento de seu pai que o havia deixado em

Minas aos cuidados da avoacute Izidora como mencionamos no primeiro capiacutetulo Segundo

nos contou Joatildeo Loriano146 Antocircnio comprou ateacute roupa para ele poder viajar pois ele

passava muita dificuldade na regiatildeo de origem de seu pai Quando chegou no Paranaacute

ele se considerou rico pois em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG soacute comiam coisa do

mato como tatu lagartixa e ateacute garrincha (passarinho bem pequeno) que eles

matavam e davam para os filhos comerem com purecirc de farinha Quando Joatildeo Loriano

encontrou o pai contou que sentiu tanta alegria que ateacute o pegou para danccedilar Entatildeo

o pai falou ldquosai pra laacute meu filhordquo mas Joatildeo se justificou dizendo que era de tanto amor

que sentia pelo pai que natildeo via haacute tantos anos Os demais irmatildeos contaram como o

pai tambeacutem estava feliz que fez uma festa para receber o filho

Depois que trouxe o irmatildeo Joatildeo Loriano Antocircnio voltou no ano seguinte para

Minas Gerais para buscar a mulher de Seu Joatildeo Maria das Dores e seus filhos que

passaram a morar em Guaiacutera no siacutetio de Manoel com os demais parentes Nesta

mesma viagem Antocircnio trouxe para o Paranaacute seu primo Aniacutesio filho de seu tio

paterno Sebastiatildeo Vicente que era irmatildeo de seu pai Em 1983 Antocircnio jaacute com a

experiecircncia adquirida nas viagens anteriores eacute quem leva Maria das Dores para

visitar sua famiacutelia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Quando retornam trazem com

146 Joatildeo Loriano atualmente mora em Presidente Prudente Esta fala foi registrada jaacute durante a viagem

passando por Presidente Prudente ateacute Minas Gerais em marccedilo de 2015

168

eles a esposa de seu primo Aniacutesio Ceciacutelia e seu filhos pois Aniacutesio morava em

GuaiacuteraPR desde 1982

No mesmo ano 1983 Antocircnio volta novamente agrave regiatildeo mineira acompanhado

agora de Joaquim com o intuito de reivindicarem a heranccedila e venderem a parte do

siacutetio de Izidora que cabia a seu pai Manoel e tambeacutem a heranccedila da matildee de Geraldo

Altina Segundo Joaquim relatou as parcelas hereditaacuterias seriam de respectivamente

onze e oito alqueires No entanto quando chegaram no siacutetio de Izidora relatam que

foram recebidos com desconfianccedila ldquoos homensrdquo (parentes) estavam armados e

falaram para eles que soacute passariam o documento da terra para Olegaacuterio o filho mais

velho de Manoel que havia morado laacute A regra local para transmissatildeo de heranccedila

parecia atribuir naquela eacutepoca apenas aos sujeitos que haviam morado no local o

direito de reivindica-la como no caso de Olegaacuterio o que natildeo se estendia aos seus

descendentes ou parentes colaterais como os irmatildeos Antocircnio e Joaquim

Por fim a uacuteltima visita realizada na deacutecada de 1980 ocorreu entre 1985 e 1986

quando Antocircnio acompanhou Ceciacutelia com os filhos de volta a Santo Antocircnio do Itambeacute

pois ela natildeo havia se adaptado agrave regiatildeo de GuaiacuteraPR e natildeo estava vivendo bem junto

a seu marido Aniacutesio segundo me contou Eva A famiacutelia de Ceciacutelia importante

destacar foi a uacutenica dentre os que se mudaram para o Paranaacute que voltou a viver em

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A realizaccedilatildeo destas viagens em um periacuteodo de cinco anos aponta para como

na deacutecada de 1980 a condiccedilatildeo econocircmica da comunidade estava melhor147 As

viagens no entanto depois se interrompem por deacutecadas Com o falecimento de seu

Manoel a comunidade fica em uma situaccedilatildeo muito delicada financeiramente com as

diacutevidas deixadas por ele aleacutem da perda da referecircncia daquele que era o administrador

da economia familiar A mecanizaccedilatildeo da agricultura tambeacutem tem um impacto direto

sobre as dinacircmicas de trabalho da comunidade como jaacute destacado Atualmente

ressaltam como a necessidade de ldquopagar contasrdquo em contraste com um periacuteodo

anterior de maior autossuficiecircncia impactam diretamente sobre a renda familiar

32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS

147 Na eacutepoca produziam e comercializavam o algodatildeo plantado no proacuteprio siacutetio e em aacutereas arrendadas

possuiacuteam um mangueiratildeo de porco e Manoel adquirira um trator para ldquogradearrdquo (arar e sulcar) a terra

169

As anaacutelises de Oliveira Filho indicadas acima enfocam a relaccedilatildeo entre

pertencimento eacutetnico e territorialidade dando um peso central agrave dimensatildeo poliacutetica da

organizaccedilatildeo dos grupos sociais no acircmbito dos paracircmetros colocados pelo Estado e

do processo de territorializaccedilatildeo148 Se as reflexotildees deste autor nos ajudam a pensar

(a) o processo de emergecircncia identitaacuteria (b) a importacircncia atribuiacuteda ao viacutenculo com a

regiatildeo de origem e (c) a dinacircmica que a relaccedilatildeo com o Estado desempenhou nesta

organizaccedilatildeo poliacutetica do grupo a partir da reivindicaccedilatildeo territorial em GuaiacuteraPR

importante pontuar por outro lado que ndash com a realizaccedilatildeo das viagens de volta em

marccedilo e junho de 2015 da qual participaram cinco membros da famiacutelia149 ndash a ecircnfase

dada pelos quilombolas para a estruturaccedilatildeo do pertencimento identitaacuterio pareceu estar

muito mais centrada nas dinacircmicas do parentesco do que na noccedilatildeo de territorialidade

A relaccedilatildeo entre a pessoa e o grupo eacutetnico ndash que implica na sua possibilidade

de autorreconhecimento como quilombola ndash foi acionada por meio da mediaccedilatildeo das

relaccedilotildees de parentesco as quais saiacuteram fortalecidas neste percurso que conectou

parte significativa da rede expandida de famiacutelias Este enfoque no parentesco natildeo

minimiza no entanto a importacircncia da reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial em

GuaiacuteraPR que estaacute baseada inclusive como um dos principais argumentos na

possibilidade do retorno de parentes que estatildeo atualmente fora do territoacuterio e que

pelo viacutenculo familiar podem se autorreconhecer como quilombolas

Esta possibilidade foi estendida a parentes que encontraram na primeira

viagem e que sempre viveram na regiatildeo mineira Este convite para viver no territoacuterio

em GuaiacuteraPR foi apresentado por exemplo a D Ana Raimunda (87) irmatilde de Manoel

Ciriaco que encontramos morando no SerroMG e a Seu Daniel (80) primo de

primeiro grau de Ana Rodrigues (esposa de Manoel) que mora em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG Seu Daniel ficou feliz com o convite pois mora com a filha o genro e o

neto em condiccedilotildees muito precaacuterias mas precisaria de suporte para que pudesse

148 Com o conceito de ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho

afirma buscar se afastar da ideia de qualidade imanente consubstanciada na noccedilatildeo de territorialidade e deste modo critica as premissas de continuidade e de imemorialidade atribuiacutedas ao territoacuterio indiacutegena Destaca dentre os seus argumentos a frequecircncia com a qual os povos indiacutegenas passaram por processos de reterritorializaccedilatildeo no acircmbito do proacuteprio processo de colonizaccedilatildeo e defende que a avaliaccedilatildeo para a criaccedilatildeo de uma terra indiacutegena apresenta uma caracteriacutestica conjuntural (OLIVEIRA FILHO 1994ordf p 134) 149 Na primeira viagem para Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG realizada em marccedilo de 2015 eu e

Cassius acompanhamos Adir e Geralda quilombolas de Guaiacutera aleacutem de Seu Joatildeo Loriano que mora atualmente em Presidente PrudenteSP Na segunda viagem em junho de 2015 eu e Cassius acompanhamos D Jovelina e D Maria das Dores que moram atualmente em Presidente PrudenteSP

170

realizar essa mudanccedila Pareceu-me que neste caso a possibilidade ficou no ar D

Ana como veremos no proacuteximo toacutepico em junho de 2015 foi morar com D Jovelina

em Presidente PrudenteSP a partir da viagem que fizemos para buscaacute-la em

SerroMG

Para que fosse possiacutevel realizar a primeira viagem em marccedilo de 2015 foi

fundamental o contato que eu jaacute possuiacutea com Cassius o historiador que desenvolveu

a pesquisa na regiatildeo durante a produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Eu o

conheci quando trabalhava como assessora juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico e ele

compunha o Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) equipe que realizou o

levantamento das comunidades quilombolas no Paranaacute no periacuteodo de 2005-2010

Atualmente Cassius estaacute cursando doutorado em Ciecircncias Sociais na UNICAMP e

pesquisa justamente o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco

quilombola Um dos processos que passou a analisar em sua pesquisa de doutorado

com a realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais foi o da comunidade quilombola Manoel

Ciriaco dos Santos

Propus para Cassius que organizaacutessemos juntos esta viagem e buscaacutessemos

recursos com as respectivas universidades agraves quais estamos vinculados UFPR e

UNICAMP para financiar a nossa ida em marccedilo de 2015 bem como de mais trecircs

pessoas Adir e Geralda do grupo que mora em GuaiacuteraPR e Joatildeo Loriano que mora

atualmente em Presidente PrudenteSP A importacircncia da ida de Seu Joatildeo Loriano foi

defendida por Adir e Geralda tendo em vista que ele foi o uacutenico filho de Manoel Ciriaco

que ficou em MG ateacute 1981 ano em que se mudou para GuaiacuteraPR Em 1993 Joatildeo

Loriano Olegaacuterio e Eurides se mudaram de GuaiacuteraPR para Presidente PrudenteSP

onde a irmatilde Jovelina jaacute morava desde 1986 Deste modo quando pensamos nosso

trajeto ateacute MG a proposta de Adir e de Geralda que nunca tinham ido ateacute laacute foi que

pudeacutessemos passar por Presidente PrudenteSP para que eles conversassem com

estes irmatildeos mais velhos com o objetivo de buscar mais informaccedilotildees sobre as

memoacuterias mineiras e sobre a histoacuteria da famiacutelia para subsidiar a pesquisa na regiatildeo

Ademais propuseram que Joatildeo Loriano pudesse continuar o caminho ateacute MG

conosco e ser uma espeacutecie de guia para a nossa viagem

A uacuteltima vez que Adir tinha conseguido visitar os parentes em Presidente

PrudenteSP havia sido antes da comunidade de GuaiacuteraPR ser reconhecida como

quilombola haacute nove anos e Geralda natildeo ia a Presidente Prudente haacute vinte anos

171

Deste modo percebe-se que ateacute com os irmatildeos que estatildeo no estado de Satildeo Paulo o

grupo de Guaiacutera tem dificuldade de manter contato presencial mas manteacutem contatos

frequentes por meio de telefone celular Adir comentou que estava sendo muito

oportuna esta visita pois ainda natildeo tinha tido condiccedilotildees de explicar para seus irmatildeos

sobre o momento atual do tracircmite do procedimento do INCRA que em breve realizaraacute

o cadastramento das famiacutelias que compotildee a comunidade quilombola segundo

indicaccedilatildeo a ser feita pelo proacuteprio grupo A viagem tambeacutem proporcionou uma

retomada de memoacuterias e de trocas de experiecircncias que em outras circunstacircncias

poderiam natildeo ser acionadas

Outro ponto importante na organizaccedilatildeo da nossa viagem eacute que a primeira ida

de Cassius agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de origem de Manoel Ciriaco em

2012 viabilizou o contato com os professores do curso de direito da PUC-Serro

(Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica) os quais atuam com estes grupos e se

disponibilizaram a nos dar o apoio logiacutestico durante a nossa estadia Fomos

convidados em contrapartida a fazer parte de um evento realizado na universidade

com o seguinte tema ldquoSeminaacuterio de Introduccedilatildeo aos Direitos Eacutetnicos direito e conflitos

em territoacuterios quilombolasrdquo Eu Cassius e Adir participamos como palestrantes em

mesas do evento sendo que os dois trataram especificamente da histoacuteria da

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

Neste subitem meu objetivo seraacute debater dados levantados a partir nesta

primeira viagem realizada entre os dias 28 de fevereiro a 13 de marccedilo de 2015 e no

subitem seguinte em relaccedilatildeo agrave segunda viagem derivada da primeira e realizada

entre os dias 05 e 08 de junho de 2015 A estrateacutegia por mim e por Cassius adotada

foi que os quilombolas fossem os protagonistas em todo o trajeto e que escolhessem

os caminhos a serem acionados tendo por base uma programaccedilatildeo preacutevia

estabelecida em parceria com nossos apoiadores da PUCSerro

321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos

No momento da chegada agrave rodoviaacuteria de Presidente PrudenteSP em um

saacutebado dia 28 de fevereiro Cassius perguntou para Adir como tinha sido a viagem de

GuaiacuteraPR ateacute ali e ele em resposta referiu-se agrave viagem de um modo mais amplo em

seu objetivo de chegar ateacute Minas Gerais

172

A viagem Cassius pra mim foi taacute sendo muito importante primeiro que eu vou rever todos os meus parentes quanto tempo que eu natildeo vejo mais os meus irmatildeos meus sobrinhos primos e segundo eacute aquela viagem para Minas Gerais que ela vai ser uma viagem muito importante para nossa vida principalmente para mim

A possibilidade de atualizaccedilatildeo das relaccedilotildees de parentesco era um dos

objetivos principais da viagem que estava dividida em duas etapas Presidente

PrudenteSP e a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A passagem por Presidente

PrudenteSP como mencionamos acima tinha como objetivo trocar experiecircncias

sobre as memoacuterias do tempo em que os irmatildeos mais velhos viveram em Minas Gerais

e convidar Seu Joatildeo Loriano para nos acompanhar pois ele foi o uacutenico irmatildeo que laacute

ficou morando ateacute os 37 anos Ao nosso convite seu Joatildeo respondeu ldquopode ficar

tranquilos que noacutes vamos rachar no mundo Falou comigo que eacute pra passear meu

filhordquo 150 A histoacuteria de Seu Joatildeo que foi sendo contada e detalhada durante a viagem

eacute central para compreender esta reconexatildeo da famiacutelia que estaacute no Paranaacute e no estado

de Satildeo Paulo com a regiatildeo de origem em Minas Gerais

Manoel Ciriaco antes de se casar com Ana Rodrigues era viuacutevo de Maria

Olinda com quem teve quatro filhos Luiza (que faleceu aos oito anos) Olegaacuterio

Jovelina e Joatildeo Loriano Maria Olinda foi criada pelo Padre Joviano um padre muito

estimado pela populaccedilatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG que o considera santo

Junto com ela mais trecircs irmatildes de criaccedilatildeo moravam na casa do padre ndash Cecilia

Geralda Estrelina e outra irmatilde de quem Seu Joatildeo natildeo se lembrou o nome Esta casa

ficava beirando o rio bem proacuteximo agrave Igreja Matriz Maria Olinda segundo nos contou

Seu Joatildeo e D Jovelina foi achada no mato pelo padre em um dia que ele ia a cavalo

rezar uma missa e quando ouviu um choro de bebecirc foi ver o que era A menina que

teria acabado de nascer havia sido deixada enrolada em uma coberta A pessoa que

a abandonara natildeo teria deixado pistas da trilha por onde passou

Quando Seu Joatildeo tinha um mecircs e sete dias sua matildee faleceu151 tendo ele

ficado aos cuidados de sua avoacute Izidora matildee de Manoel e de sua tia Ana Raimunda

150 Curioso notar que apesar da seriedade do propoacutesito da viagem ela eacute vista por Seu Joatildeo tambeacutem

como uma chance de diversatildeo atraveacutes do movimento o que se expressa na ideia de ldquopassearrdquo 151 Segundo Geralda Maria Olinda teria morrido por ter sido viacutetima de feiticcedilo Geralda contou que ela

falava demais e Maneacute a avisava para ter cuidado Um dia quando ela estava trabalhando serviram para ela aacutegua com uma folha Ela teria achado estranho mas tomou Depois passou um tempo descobriram por meio das entidades espirituais que era feiticcedilo mas jaacute natildeo tinha mais o que fazer para reverter o efeito ldquoEm Minas tem feiticeiro mesmordquo acrescentou Geralda

173

irmatilde de seu pai Seu Joatildeo ficou morando com avoacute Izidora quando Manoel saiu de

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo ao estado de Satildeo Paulo em 1956 pois seu

pai natildeo teria tido coragem de o separar da avoacute Durante um certo periacuteodo Seu Joatildeo

comentou que eles tiveram contato com seu pai uma ou duas vezes por carta mas

quando foram mandar notiacutecia sobre o falecimento de Izidora natildeo sabiam mais seu

endereccedilo

Quando ocorreu o falecimento de sua avoacute Seu Joatildeo foi morar e trabalhar na

fazenda de Zinho Gonccedilalves e como ele frisou foi mais criado na fazenda do que em

casa Ele trabalhava com tropa levando cachaccedila e outros produtos pela regiatildeo Tinha

dia que ele falava para a esposa que natildeo ia levar marmita para ldquolargar o comecirc pra daacute

pros meus meninordquo Ele casou com 16 anos com D Maria das Dores que tinha a

mesma idade Segundo D Maria das Dores nos contou foi o fazendeiro que os ajudou

financeiramente para que pudessem casar e ldquoos vestiu dos peacutes agrave cabeccedilardquo

No Itambeacute Seu Joatildeo era conhecido como ldquoJoatildeo do Rosaacuteriordquo pois quando foi

fazer seu registro em Minas Gerais ndash como seu pai havia levado seu documento ndash ao

lhe perguntarem no cartoacuterio qual era seu sobrenome ele entatildeo respondeu ldquoAh potildee

Joatildeo do Rosaacuterio de qualquer jeitordquo Seu Joatildeo riu quando terminou de nos relatar esta

lembranccedila que fala de sua experiecircncia difiacutecil como rapaz que cresceu oacuterfatildeo da matildee

falecida e do pai do qual natildeo tinha notiacutecias Seu Joatildeo soacute saiu de Santo Antocircnio do

Itambeacute em 1981 quando tinha 37 anos como mencionamos acima Por toda essa

experiecircncia que Seu Joatildeo teve de anos de vida na regiatildeo a sua participaccedilatildeo na

viagem era de importacircncia central

Apesar de jaacute termos algum planejamento anterior boa parte das decisotildees

foram sendo tomadas ao longo do percurso A princiacutepio haviacuteamos pensado em passar

apenas o final de semana em Presidente PrudenteSP e embarcar jaacute na segunda-feira

para Minas Gerais No entanto Adir e Geralda optaram por estender a visita aos

irmatildeos e demais parentes e resolveram ir para SerroMG apenas na quinta-feira agrave

noite Isso tambeacutem porque Seu Joatildeo precisou de uns dias para se liberar e poder nos

acompanhar na viagem Eu e Cassius entatildeo decidimos ir antes na terccedila-feira agrave noite

para organizar junto aos professores da PUCSerro as questotildees relativas ao evento

que foi composto por duas mesas de palestras na sexta-feira agrave noite (0603) e no

saacutebado pela manhatilde (0703)

174

Para compreender a importacircncia atribuiacuteda por Geralda e Adir agrave estadia junto

aos irmatildeos mais velhos que moram em Presidente PrudenteSP deve-se destacar

que eacute a experiecircncia de ter participado do passado familiar em Minas Gerais que

parece ser um criteacuterio de distinccedilatildeo daqueles que satildeo tidos como capazes de fazer a

conexatildeo narrativa da histoacuteria atual do grupo com seu ldquomito de origemrdquo Trata-se ldquodos

depositaacuterios da histoacuteria mais idosos ldquotronco velhordquo lideranccedilas das parentelas

guardiotildees da histoacuteria da comunidaderdquo (MONBELLI BENTO 2006 p 24)152 Com o

processo de autoidentificaccedilatildeo como quilombolas e a reelaboraccedilatildeo da memoacuteria

coletiva os irmatildeos mais velhos ganham status como ldquoguardadores da memoacuteriardquo os

quais passaram a ldquodesempenhar um papel sem precedentes na vida do grupordquo

(ARRUTI 1997 p 23)

Aleacutem deste aspecto da pesquisa e levantamento das histoacuterias da famiacutelia Adir

e Geralda tinham como objetivo mais imediato rever os irmatildeos(atildes) cunhados(as)

sobrinhos(as) primos(as) que vivem atualmente na regiatildeo do municiacutepio paulista Joatildeo

Aparecido irmatildeo caccedilula de Adir e Geralda tambeacutem foi por mim e Cassius apoiado

financeiramente para que pudesse chegar ateacute Presidente PrudenteSP153 onde

atualmente residem sua ex-mulher Kelly e seus dois filhos Joatildeo Vitor (13) e Tauane

(16) A ex-mulher e os filhos de Joatildeo Aparecido moravam em GuaiacuteraPR ateacute 2011

quando Kelly perdeu seu emprego na escola municipal do Maracaju dos Gauacutechos

onde trabalhava com serviccedilo de limpeza e merenda Ela resolveu entatildeo morar em

Presidente PrudenteSP e ficar proacutexima de sua famiacutelia pois acreditava que teria mais

chances de conseguir um emprego jaacute que na comunidade a situaccedilatildeo de conflito com

os vizinhos aleacutem de gerar inseguranccedila para as famiacutelias fez com que as possibilidades

de trabalho diminuiacutessem Na eacutepoca Kelly chamou Joatildeo Aparecido para que a

acompanhasse na mudanccedila mas ele natildeo foi porque entendia que sua permanecircncia

no siacutetio em GuaiacuteraPR era importante para o projeto coletivo de comunidade que ele

conduz junto com os irmatildeos Adir e Joaquim Esta situaccedilatildeo entatildeo acabou gerando a

152 O par de categorias de parentesco ldquotronco velhordquo e ldquopontas de ramardquo presente na etnografia

realizada por Arruti junto aos Pankararu no estado de Pernambuco traduzem a distacircncia entre o grupo indiacutegena e seus antepassados considerados ldquoiacutendios purosrdquo sendo utilizadas para organizar as relaccedilotildees marcadas pela ideia de ldquomisturardquo de modo a criar um ldquofluxo diferencial de forccedila religiosa e legitimidaderdquo no sentido do ldquotronco velhordquo (ARRUTI 1996 p 64) 153 Soacute Joaquim dentre os irmatildeos que moram em GuaiacuteraPR natildeo foi para Presidente PrudenteSP pois algum deles tinha que ldquoficar cuidando de tudo no siacutetiordquo

175

separaccedilatildeo do casal Haacute dois anos Joatildeo Aparecido natildeo ia para Presidente PrudenteSP

e ficou este periacuteodo sem ver os filhos

O fato de dois filhos de Manoel Ciriaco chamarem-se Joatildeo ocorreu em razatildeo

de o pai ter dado ao seu filho caccedilula nascido em 1972 o nome de Joatildeo Aparecido

para lembrar-se do filho Joatildeo Loriano que havia ficado em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG Segundo Adir nesta eacutepoca o pai natildeo tinha mais esperanccedila de encontraacute-

lo depois de dezesseis anos de separaccedilatildeo O reencontro para aliacutevio de Manoel

ocorreu nove anos depois do nascimento de Joatildeo Aparecido em 1981 quando Joatildeo

Loriano passou a viver com a esposa Maria das Dores e os seis filhos na terra do pai

em GuaiacuteraPR

FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP

Em Presidente PrudenteSP Cassius Adir Joatildeo Aparecido Geralda e eu

ficamos hospedados na casa de D Jovelina e Seu Davi Eles moram em um bairro

perifeacuterico do municiacutepio chamado ldquoAna Jacintardquo que fica a mais ou menos uma hora

de distacircncia do centro da cidade Seu Joatildeo Loriano e D Maria das Dores tambeacutem

moram no mesmo bairro assim como alguns filhos destes dois casais com suas

respectivas famiacutelias o que permite uma convivecircncia constante e uma rede de

176

solidariedade entre eles154 Destaca-se que duas das filhas155 de Seu Joatildeo ndash

Aparecida e Dulce ndash satildeo casadas com os filhos gecircmeos de sua irmatilde D Jovelina ndash

Damasio e Damasceno ndash exemplo da ocorrecircncia de casamento entre primos de

primeiro grau

Haviacuteamos chegado em Presidente PrudenteSP no saacutebado No dia seguinte

foi preparado um almoccedilo com churrasco que reuniu parte da famiacutelia que mora proacuteximo

do bairro ldquoAna Jacintardquo para comemorar a visita dos parentes de GuaiacuteraPR

FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina

Neste almoccedilo celebrativo Cassius ensinou Adir a usar uma das trecircs cacircmeras

de viacutedeo que tiacutenhamos agrave disposiccedilatildeo Adir ficou muito animado em poder registrar seu

olhar sobre os momentos da viagem gravando conversas com os parentes paisagens

do caminho etc Durante todo o percurso boa parte das filmagens foram realizadas

por Adir que interpelava e entrevistava as pessoas conforme seus interesses e

154 Eacute possiacutevel perceber a presenccedila de caracteriacutesticas no cotidiano destas famiacutelias que remontam agrave sua

origem no meio rural e a uma trajetoacuteria que os distingue dos demais vizinhos mesmo morando em um bairro de uma grande cidade Por exemplo Seu Joatildeo Damasio e Damasceno filhos de Jovelina acertam com os proprietaacuterios de terrenos baldios do bairro a possibilidade de utilizarem a aacuterea para plantar garantindo em contrapartida a manutenccedilatildeo do terreno 155 Outra informaccedilatildeo relevante eacute que a filha mais velha de Seu Joatildeo Maria de Faacutetima dos Santos estaacute

haacute mais de quinze anos desaparecida e segundo nos informaram teria sumido em Campinas quando para laacute foi com o entatildeo marido Edison e perderam o contato Atualmente a famiacutelia tenta encontraacute-la

177

prioridades Este material tambeacutem eacute aqui analisado como fonte de pesquisa e registro

do trabalho de campo

Adir em mais de uma oportunidade durante a estadia em Presidente

PrudenteSP mostrou para seus parentes que eles fazem parte da luta quilombola da

comunidade em GuaiacuteraPR e reforccedilou como ele estava feliz em nesta viagem ir

buscar a raiz da histoacuteria da famiacutelia Em conversa na varanda da casa de D Jovelina

comentou sobre a trajetoacuteria do ldquopovo negrordquo desde o traacutefico de africanos ateacute a

experiecircncia do Quilombo dos Palmares Concluiu dizendo a seus primos

Vocecirc deve buscar neacute na internet hoje vocecirc consegue muita coisa os quilombos Quilombo de Palmares ver o tanto de negro que entrava no Brasil E o Cassius ele eacute professor pode explicar melhor do que eu e a Dandara tambeacutem que vocecircs estudam e eu natildeo estudo fico dentro da roccedila laacute Mas tudo o que das viagens dos encontros de tudo que eu jaacute vi na vida ateacute hoje estaacute guardado aqui Mais do que eu escrevi do que eu jaacute vi Aiacute que eu penso assim em buscar a histoacuteria do meu passado por isso que eu luto Que eu vou ateacute o fim Se eles natildeo me matar

Adir ressaltava assim a importacircncia de se mobilizarem para ldquomostrar pras

pessoas que noacutes somos negros e que tem que nos respeitarrdquo Identificava a presenccedila

de tal desrespeito por exemplo na falta de acesso ao estudo para a populaccedilatildeo negra

como no caso de Olegaacuterio Seu Joatildeo e D Maria das Dores que natildeo aprenderam a ler

e a escrever Ao mesmo tempo em que Adir afirmava seu intuito de ir ldquoateacute o fimrdquo com

esta busca era a proacutepria viagem que parecia estar lhe proporcionando um

fortalecimento de convicccedilotildees bem como da vontade de continuar a frente deste

processo de mobilizaccedilatildeo Eacute como se esta viagem ateacute Minas Gerais pudesse ser

comparada a uma peregrinaccedilatildeo na qual Adir estava a visitar os lugares ldquosagradosrdquo

da memoacuteria e da experiecircncia familiar e nesta jornada fosse descobrindo quem ele

mesmo eacute (TURNER 2008)

Outro encontro que ocorreu durante nossa estadia em Presidente

PrudenteSP foi com Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel Atualmente a famiacutelia de

Olegaacuterio mora em um lote de oito alqueires que conquistaram haacute catorze anos no

ldquoAssentamento Palurdquo156 Este assentamento fica localizado na zona rural do municiacutepio

de Presidente BernardesSP no distrito de ldquoNova Paacutetriardquo proacuteximo a Presidente

PrudenteSP Olegaacuterio e Valdeniacutecio um de seus filhos que nos relatou esta histoacuteria

156 A ocupaccedilatildeo desta fazenda se deu pelo movimento ldquoBandeira Brancardquo que na eacutepoca tinha conflito

com o ldquoMovimento dos trabalhadores Rurais Sem Terrardquo (MST)

178

revezaram-se durante dois anos no periacuteodo de acampamento para conseguirem o

acesso agrave terra Os outros filhos de Olegaacuterio lhes ajudavam por exemplo com cestas

baacutesicas Segundo Valdeniacutecio quando Olegaacuterio e os filhos vieram para o estado de

Satildeo Paulo em 1993 seu pai continuou trabalhando com produccedilatildeo de farinha com a

qual jaacute lidava em GuaiacuteraPR No estado de Satildeo Paulo trabalhou com farinha mesmo

quando moravam na cidade mas era complicado segundo Valdeniacutecio por conta dos

vizinhos que se incomodavam com a fumaccedila Quando conseguiram o lote no

assentamento estruturaram a farinheira sendo que parte dela foi Olegaacuterio mesmo

que projetou Valdeniacutecio comentou que antes de mecanizar o processo de produccedilatildeo

era difiacutecil trabalhar com a farinha de mandioca Atualmente produzem em meacutedia

vinte sacos por dia

FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira

O caso de Olegaacuterio atualmente com setenta e sete anos eacute muito significativo

ao apontar para a busca ateacute agora bem-sucedida de se manterem na aacuterea rural e

reproduzirem um modo de vida autocircnomo dentro da tradiccedilatildeo de trabalho familiar

Valdeniacutecio nos mostrou o funcionamento da farinheira e explicou detalhadamente para

Joatildeo Aparecido e Adir os quais estavam muito interessados e admirados com a forma

de trabalho dos seus parentes Durante a conversa Valdeniacutecio se lembrou do tempo

que morava em GuaiacuteraPR e que laacute eles eram ldquomais de cento e poucos negros tudo

casa de coqueirordquo Frisou tambeacutem sua lembranccedila do preconceito racial que sofriam

no ldquoMaracajurdquo afirmando que quando eles passavam todos juntos os vizinhos

provocavam-lhes dizendo que formava uma ldquonuvem pretardquo e ia chover

179

Tivemos uma longa conversa com Olegaacuterio que saiu de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG com aproximadamente vinte anos de idade Ele nos contou que o siacutetio da

avoacute Izidora de dez alqueires fica em um lugar chamado ldquoQueimadasrdquo Na eacutepoca

nessa terra moravam as famiacutelias dos irmatildeos Manoel Ciriaco e Sebastiatildeo Vicente de

Paula Manoel trabalhava de ldquopuxar cana pra fazer rapadura cortava lenha

trabalhava na lavra tirando cristalrdquo Ele saiacutea para trabalhar longe e chegou a ir ateacute

Londrina no norte do Paranaacute em migraccedilatildeo sazonal Olegaacuterio contou que Manoel

quando saiacutea de Santo Antocircnio do Itambeacute para essas viagens a trabalho iaacute primeiro

ateacute Diamantina distante mais de cem quilocircmetros157 sendo que parte do percurso

eles caminhavam cortando o morro durante o dia todo Outra parte era feita no ldquopau

de ararardquo que eacute um tipo de caminhatildeo coberto de lona que transportava pessoas

Depois em Diamantina pegava o trem e continuava a viagem Quando a famiacutelia se

mudou para o estado de Satildeo Paulo e depois para o Paranaacute jaacute foram de ocircnibus

Olegaacuterio tambeacutem nos passou vaacuterias referecircncias de lugares e pessoas que estavam

relacionadas agrave famiacutelia na regiatildeo de origem e afirmou que em uma proacutexima

oportunidade ele tambeacutem gostaria de voltar para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A nossa passagem por Presidente PrudenteSP tambeacutem permitiu que fosse

gravado um viacutedeo de D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo Loriano mandando

uma mensagem para que se noacutes achaacutessemos os seus irmatildeos em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ldquoaqueles que tive vivordquo pudeacutessemos lhes mostrar o seu recado Quem

registrou a conversa com ela foi Adir

Adir E daiacute cumadi Maria o que a senhora manda falar noacutes encontrando os seus parentes em Minas Gerais

D Maria das Dores Oacute eu mando cumpadi Nadir muita lembranccedila um abraccedilatildeo pra cumpadi Erosino pra cumadi Regina pra cumadi Zulmira e com a famia E muitos anos de vida sauacutede pra eles quem tiver vivo

Adir E que mais de seus irmatildeos cumadi que a sra lembra

D Maria das Dores Quero recordaccedilatildeo e notiacutecia da Teresa cumadi Anita minha irmatilde Joaquim meu irmatildeo Geralda natildeo que essa taacute pra caacute e o menino que minha matildee criou eacute o Dudu

Adir Como eacute que era o nome de sua matildee cumadi

D Maria das Dores Luzia Eleoteacuteria da Silva

Adir E seu pai cumadi

157Em sua fala frisou a distacircncia em leacuteguas forma tradicional de mediccedilatildeo da regiatildeo

180

D Maria das Dores Bertolino Gino Domingo

Adir A sra lembra o lugar que a sra morava laacute e tudo

D Maria das Dores Santo Antocircnio do Itambeacute do Serro

Adir Era muito sofrido

D Maria das Dores Era sofrido nossa Senhora meu Deus A gente comia sem nada de gordura natildeo tinha nada de sal a gente fazia gordura desse bucho de boi eacute uma gordura muito ruim A fartura que tinha laacute era mandioca cana e cafeacute Minas Gerais E tambeacutem cheguei no Paranaacute o meu cunhado que Deus daacute bom lugar pra ele chegando no Paranaacute foi benccedila e alegria ()

Adir E eu tenho feacute em Deus cumadi junto com o marido da senhora que eacute meu irmatildeo o cumpadi Joatildeo a gente vai pisar naquele solo de Minas no mesmo lugar que a senhora morou quero que o cumpadi Joatildeo revecirc isso ai a gente vai filmar tudo isso eu tenho feacute em Deus que eu encontro ainda seus irmatildeos suas irmatildes todo esse pessoal que a senhora falou que taacute gravado aqui pra gente achar esse pessoal e a gente filmar tirar foto e trazer pra senhora Ver como eacute que taacute esse pessoal laacute

D Maria das Dores Ver como eacute que taacute laacute se taacute bom

Adir Saber notiacutecia que a gente perdeu notiacutecia de todo mundo

D Maria das Dores Perdemo notiacutecia Ana Raimunda tambeacutem

Adir Pois eacute perdemo tudo essa notiacutecia

Na fala de D Maria a anguacutestia da falta de notiacutecias se expressa na duacutevida de

natildeo saber quem ainda estaria vivo dentre os seus irmatildeos A possibilidade de superar

esta situaccedilatildeo eacute atribuiacuteda por ela a uma intercessatildeo divina pois concluiu a conversa

afirmando ldquoo negoacutecio eacute joelho no chatildeo jejum e oraccedilatildeordquo pois ldquoJesus vai na frenterdquo e eacute

quem pode abrir os caminhos que permitiratildeo este reencontro Como natildeo se

sensibilizar com o drama de uma separaccedilatildeo entre familiares que se estendeu por tanto

tempo por falta segundo eles mesmos afirmam de possibilidades de deslocamento e

manutenccedilatildeo do contato Agravequeles que saiacuteram da regiatildeo de origem eacute a quem caberia

o retorno pois para os que ficaram seria ainda mais difiacutecil saber como procuraacute-los

322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova

Geralda Adir e Seu Joatildeo fizeram o trajeto de Presidente PrudenteSP ateacute Belo

HorizonteMG de ocircnibus Na rodoviaacuteria de Belo Horizonte eu e Cassius combinamos

que o professor Ricardo Ferreira Ribeiro que atua nas aacutereas de antropologia e

sociologia no curso de direito da PUCSerro iria encontra-los e leva-los para Serro

aproveitando o trajeto que Ricardo jaacute faria para ir dar aula Conforme Adir destacou

181

foi muito importante terem conversado com o professor Ricardo durante a viagem ateacute

Serro um trajeto de 330 km que demora em meacutedia cinco horas de carro Neste

caminho como eacute possiacutevel recuperar por meio dos vaacuterios viacutedeos gravados por Adir o

professor Ricardo foi lhes mostrando os elementos do ambiente os rios contando e

tambeacutem ouvindo histoacuterias sobre a regiatildeo

Ele lhes contou por exemplo sobre a comemoraccedilatildeo em 2014 dos cento e

cinquenta anos da articulaccedilatildeo do movimento de revolta dos escravos desde Serro a

Diamantina que se reuniriam no intuito de acabar com a escravidatildeo No entanto

dentro do movimento teve um traidor que denunciou o esquema e a guarda acabou

prendendo as lideranccedilas da revolta Adir em resposta comentou ldquotem histoacuteria esse

Serro heinrdquo Quando laacute chegaram Adir e Geralda que nunca tinham estado ali

puderam se encantar com a arquitetura do municiacutepio caracteriacutestica das vilas

setecentistas mineiras o que lhes remetia ainda mais a este passado familiar e

regional ndash a partir do qual fundamentam a reivindicaccedilatildeo identitaacuteria como quilombolas

em GuaiacuteraPR158

Se no Serro tem histoacuteria ateacute da organizaccedilatildeo de uma revolta de escravos uma

forma de resistecircncia negra direta enquanto motim as memoacuterias familiares sobre a

vida nesta regiatildeo conforme apontou Geralda indicam uma resistecircncia cotidiana e

silenciosa enquanto processo de sobrevivecircncia (FERNANDES BUSTOLIN

TEIREIRA 2006 p134) A moradia em ldquolocardquo ou ldquolapardquo de pedra eacute um importante

siacutembolo dessa resistecircncia onde se abrigavam de modo precaacuterio nos locais oferecidos

pelo ambiente Geralda contou por exemplo que sua avoacute materna Maria Bernarda

sofreu muito pois foi abandonada pelo marido com cinco filhas mulheres dentre elas

Ana Rodrigues sua matildee A famiacutelia soacute de mulheres passou fome Ana contava para

Geralda que cansou de comer um tipo de feijatildeo do mato que elas natildeo sabiam mas

era veneno comeram e adoeceram

Ao chegarem no Serro159 iniciava para Geralda Adir e Joatildeo o processo de

busca pelos parentes Jaacute na primeira tentativa encontraram um neto de D Zulmira

158 O municiacutepio do Serro foi o primeiro municiacutepio brasileiro cujo patrimocircnio arquitetocircnico e urbaniacutestico

foi tombado pelo Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional (IPHAN) ainda em 1938 Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015 159 Serro com 20835 habitantes159 eacute um municiacutepio que fica distante 27 km de Santo Antocircnio do Itambeacute

que tem uma populaccedilatildeo de 4135 habitantes conforme o Censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro

182

cunhada de Seu Joatildeo Loriano e irmatilde de D Maria das Dores Conforme Adir relatou

quando gravamos um viacutedeo dele contando como tinha sido a viagem para D Regina

e D Zulmira as irmatildes de D Maria das Dores que encontramos em Santo Antocircnio do

Itambeacute

Chegando no Serro eu queria andar eu soacute pensava em andar andar Via as pessoas eu mais cumpadi Joatildeo perguntava ldquoseraacute que eacute nosso parente Eacute nosso parenterdquo Eu mais cumpadi Joatildeo corria laacute e perguntava Ele ia na frente porque jaacute conhecia Minas Gerais 34 anos que saiu daqui E a gente ficava nessa eu quero encontrar um parente E ele falava ldquose noacutes encontrar dois encontramo o restordquo E dito e feito Primeira pessoa que noacutes se deparemo quando saiacute do local onde a gente tava num hotel em frente a um posto de gasolina tinha um barzinho Eu falei ldquoCumpadi Joatildeo eu quero tomar uma cachaccedila de Minas Geraisrdquo porque meu pai falava muito nessa cachaccedila e eu queria tomar uma cachaccedila () Comeccedilemo a encontrar uma pessoa que dizia que era parente de vocecircs aqui das senhoras E a gente ficou naquela esperanccedila noacutes tem que encontrar Ele falou ldquoNatildeo vou soacute domingo pra laacuterdquo E noacutes fiquemo naquela

Geralda me contou sobre como ocorreu este encontro pois eu e Cassius

tiacutenhamos ido no evento na PUC enquanto eles tinham ficado descansando no hotel

pois haviam chegado em SerroMG naquele dia sexta-feira 06 de marccedilo depois de

uma longa viagem Geralda ressaltou que o rapaz Julio ndash dono do bar que fica ao

lado do hotel onde estaacutevamos hospedados ndash comentou com eles que quando os viu

jaacute pressentiu que eram parentes Ficaram entatildeo sabendo que D Zulmira e D Regina

ndash irmatildes de D Maria das Dores de quem estavam agrave procura ndash ainda moravam em

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

No outro dia de manhatilde Geralda comentou comigo que natildeo tinha dormido

durante a noite porque ficou se lembrando de sua matildee e de seu pai das coisas que

eles contavam principalmente que andavam por todos aqueles morros carregando

suas coisas em cima da cabeccedila e que era muito sofrido Geralda completou

lamentando todo este tempo que eles almejaram sem poderem retornar pois ficavam

esperando juntar um dinheiro para poder vir caccedilar os parentes Lembrou-se tambeacutem

que Manoel queria ter mandado buscar sua irmatilde Ana Raimunda mas que nunca lhe

sobrava dinheiro

Fomos todos juntos entatildeo ao segundo dia do seminaacuterio na PUC A

participaccedilatildeo de Geralda Adir e Seu Joatildeo foi muito significativa A mesa do saacutebado de

Acesso em 141015 Santo Antocircnio do Itambeacute soacute se tornou um municiacutepio independente de Serro em 1963 sete anos depois que Manoel e demais famiacutelias saiacuteram de laacute

183

manhatilde se chamava ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos

geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova

(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo Como palestrantes estavam o professor Ricardo

Cassius e duas lideranccedilas quilombolas Seu Adatildeo lideranccedila da Comunidade

Quilombola Vila Nova e Adir lideranccedila da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco

dos Santos No tiacutetulo da mesa percebe-se a conexatildeo como apontado pelo segundo

relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade em GuaiacuteraPR entre a trajetoacuteria histoacuterica de

deslocamentos da comunidade em GuaiacuteraPR com os processos de migraccedilatildeo da

Comunidade Vila Nova pois na regiatildeo de origem do grupo esta jaacute era uma

caracteriacutestica marcante

Com base na pesquisa realizada para o segundo relatoacuterio antropoloacutegico

Cassius expocircs um panorama da trajetoacuteria de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues desde

Minas Gerais ateacute o Paranaacute Ao ouvirem a fala de Cassius e verem as fotos de seus

parentes na apresentaccedilatildeo Adir Geralda e Seu Joatildeo que compunham a mesa natildeo

contiveram a emoccedilatildeo Para aleacutem de uma recuperaccedilatildeo histoacuterica da trajetoacuteria da famiacutelia

aquele momento tinha um valor simboacutelico muito marcante para eles pois estavam

sendo recebidos e acolhidos na regiatildeo de origem de sua famiacutelia em um momento de

reconhecimento e valorizaccedilatildeo dentro de uma universidade

Em sua fala Adir iniciou agradecendo a Deus aos Orixaacutes e a todos que

apoiaram a realizaccedilatildeo deste sonho de chegar na regiatildeo de origem de seu pai Contou

um pouco da histoacuteria de migraccedilatildeo e resistecircncia dos seus antepassados que saiacuteram

de Minas Gerais e foram buscar uma oportunidade de vida no estado de Satildeo Paulo e

depois no Paranaacute Refletiu sobre o processo de reconhecimento como quilombolas

das famiacutelias em GuaiacuteraPR os conflitos dele decorrentes e a persistecircncia da

comunidade em lutar pelo acesso agraves poliacuteticas puacuteblicas Concluiu dizendo ldquonossa luta

eacute em memoacuteria daqueles que jaacute foram e nossa luta eacute pela sobrevivecircnciardquo

184

FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova (MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo

A ideia de realizaccedilatildeo do seminaacuterio comeccedilou como forma de dar suporte agrave

nossa estadia na regiatildeo mineira para a qual eu e Cassius tambeacutem contribuiacutemos com

recursos pessoais e algum apoio das universidades agraves quais estaacutevamos vinculados

Por meio da articulaccedilatildeo com o professor do curso de direito da PUCSerro Matheus

de Mendonccedila Gonccedilalves Leite foi viabilizada parte da nossa alimentaccedilatildeo e

hospedagem aleacutem do auxiacutelio para deslocamento na regiatildeo Este evento tomou uma

proporccedilatildeo muito mais significativa do que o sentido pragmaacutetico que o motivou

inicialmente como mencionamos acima Nesta oportunidade tambeacutem ocorreu o

primeiro contato entre os quilombolas de Guaiacutera e da comunidade ldquoVila Novardquo que

fica localizada no distrito do municiacutepio de Serro chamado ldquoSatildeo Gonccedilalo do Rio das

Pedrasrdquo para onde nos deslocamos e permanecemos ateacute segunda-feira dia 09 de

marccedilo de 2015

Como mencionamos no capiacutetulo anterior foi com esta comunidade quilombola

que a pesquisa do segundo relatoacuterio antropoloacutegico indicou possiacuteveis relaccedilotildees de

parentesco A estadia junto agraves famiacutelias desta comunidade propiciou para Adir Seu

Joatildeo e Geralda uma experiecircncia de contato com um modo de vida especiacutefico que lhes

remeteu muito agraves histoacuterias de sua origem familiar Durante os trecircs dias em que laacute

ficamos Adir Geralda e Seu Joatildeo tentaram encontrar relaccedilotildees de parentesco atraveacutes

de nomes comuns da memoacuteria sobre os antepassados Muitos nomes de parentes

eram iguais o que gerou longa conversas ateacute nos darmos conta de que natildeo

185

estaacutevamos falando das mesmas pessoas Apenas no final da viagem com a nossa

estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pudemos entender qual era a ligaccedilatildeo entre

estas famiacutelias Como veremos no proacuteximo subitem o viacutenculo de parentesco ocorre

por meio dos ascendentes da famiacutelia da esposa de Seu Joatildeo D Maria das Dores

pelo lado de sua matildee Luzia Eleoteacuteria da Silva

FIGURA 24 Da esquerda para a direita Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo

O distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras fica a trinta quilocircmetros da sede

do municiacutepio de Serro com acesso por estrada de terra Estaacute situado no alto da Serra

do Espinhaccedilo a 1150 m de altitude e conta com vaacuterias cachoeiras que compotildeem uma

linda paisagem O distrito com em torno de mil e quinhentos habitantes surgiu no

iniacutecio do seacuteculo XVIII em decorrecircncia da intensificaccedilatildeo da exploraccedilatildeo de ouro na

regiatildeo do ldquoSerro Friordquo160 ndash hoje municiacutepio de Serro ndash e manteacutem ainda caracteriacutesticas

arquitetocircnicas do periacuteodo colonial A comunidade quilombola ldquoVila Novardquo localiza-se

na aacuterea urbana do distrito e laacute acessam os serviccedilos puacuteblicos disponiacuteveis como escola

posto de sauacutede telefonia aacutegua tratada energia eleacutetrica entre outros As casas das

famiacutelias quilombolas que compotildeem um mesmo grupo familiar ficam todas proacuteximas

Segundo seus relatos estas famiacutelias antes moravam no entorno do distrito sendo

oriundas da localidade de Aacutegua Santa proacuteximo ao Pico do Itambeacute onde atualmente

160 A antiga ldquoVila do Priacutencipe do Serro Friordquo foi sede de comarca uma das quatro primeiras da ldquoCapitania

das Minas Geraisrdquo Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015

186

se localiza o Parque Estadual do Pico do Itambeacute Mudaram-se para Satildeo Gonccedilalo

ainda na primeira metade do seacuteculo XX161 ldquoVila Novardquo eacute uma das cinco comunidades

quilombolas em Serro junto com as comunidades ldquoAusenterdquo e ldquoBauacuterdquo proacuteximas do

Distrito de Milho Verde e a ldquoComunidade do Oacuterdquo que se localiza neste distrito aleacutem

da comunidade de ldquoRibeiratildeo dos Porcosrdquo162 Eacute possiacutevel falar em um territoacuterio regional

cultural quilombola com forte presenccedila dessas comunidades nos municiacutepios no

entorno de Serro ateacute Diamantina onde uma meacutedia de trinta comunidades jaacute se

autorreconhecem como quilombolas163 A formaccedilatildeo destas comunidades estaacute

vinculada ao processo de exploraccedilatildeo de ouro e diamante com matildeo de obra escrava

sendo que os vastos espaccedilos territoriais desocupados permitiram na eacutepoca a

formaccedilatildeo de vaacuterios quilombos164

FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo conversando e ao

lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona

161 Conforme consta no segundo relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade ldquoManoel Ciriacordquo Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 728-730 [p 35-37] 162 As cinco comunidades de Serro receberam a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento da Fundaccedilatildeo

Cultural Palmares em 2012 Em MG ateacute fevereiro de 2015 duzentos e vinte e seis comunidades contavam com a certidatildeo e mais quarenta e trecircs aguardavam a finalizaccedilatildeo do procedimento A emissatildeo da certidatildeo eacute regulada pela Portaria nordm 98 de 2007 Dados disponiacuteveis em httpwwwpalmaresgovbrpage_id=88ampestado=MG httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploadscrqslista-das-crqs-processos-abertos-ate-23-02-2015pdf e Portaria disponiacutevel em httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploads201011legis21pdf Acesso em 161015 163 Levando em consideraccedilatildeo as comunidades nos seguintes municiacutepios Serro (5) Santo Antocircnio do

Itambeacute (3) Materlacircndia (6) Sabinoacutepolis (7) Senhora do Porto (1) Alvorada de Minas (1) Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (3) Gouveia (1) e Diamantina (1) Os dados satildeo da Comissatildeo Proacute Iacutendio de Satildeo Paulo (CPISP) Disponiacutevel em httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_mapa_zoom2html Acesso em 161015 164 ldquoQuilombos de Minas Gerais no seacuteculo XXI - Norte e nordeste do Estadordquo Disponiacutevel em

httpwwwcedefesorgbrindexphpp=colunistas_detalheampid_pro=2 Acesso em 161015

187

FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado pelo traccedilado vermelho FONTE ndash Google Maps

188

A conexatildeo entre as famiacutelias quilombolas de Manoel Ciriaco e de Vila Nova

para aleacutem das relaccedilotildees de parentesco expressou-se inclusive no fato de Seu Joatildeo

conhecer muitas pessoas em comum com os quilombolas de Vila Nova Quando

morava no Itambeacute ele ia da fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhava ateacute

Satildeo Gonccedilalo pois transportava para laacute cachaccedila que levava amarrada na cangaia do

burro Os moradores quilombolas da comunidade Vila Nova tambeacutem trabalharam para

o fazendeiro Zinho Gonccedilalves que era de uma famiacutelia abastada da regiatildeo com

propriedade em Santo Antocircnio do Itambeacute

Ao chegarmos na vila deixamos nossas coisas na casa de Jovelina que

funciona tambeacutem como ldquohospedagem familiarrdquo uma forma de receber os turistas que

visitam a localidade Nossa recepccedilatildeo pelos membros da comunidade quilombola ldquoVila

Novardquo no entanto natildeo foi como turistas mas como pesquisadores e quilombolas do

Paranaacute que estavam ali com o intuito de conhecer mais sobre a comunidade e

tambeacutem em busca de levantar possiacuteveis laccedilos de parentesco entre eles Jovelina

apesar de ser nossa anfitriatilde conviveu menos conosco por conta de seus afazeres

As tias maternas de Jovelina irmatildes de Margarida ndash D Necila e D Maria

Geralda ndash foram para mim e Geralda as nossas principais anfitriatildes Passamos horas

em conversas visitas a parentes passeios refeiccedilotildees rodas de muacutesica entrevistas e

viacutedeos Seu Joatildeo Adir e Cassius foram recepcionados por Seu Adatildeo e por seu irmatildeo

Jesu e juntos entre os homens fizeram tambeacutem os seus proacuteprios trajetos para

conhecer Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras

Foram muitas trocas de experiecircncias das quais destaco o interesse de

Geralda em aprender com aquelas senhoras bem como com demais moradores

quilombolas da comunidade sobre plantas medicinais oraccedilotildees e benzimentos

Geralda comentou durante uma de nossas conversas ldquoA gente que benze a gente

tem que ter remeacutedio e eu sei que ocecircs saberdquo Ela entatildeo me pediu para que eu

anotasse o nome das ervas medicinais e para o que elas serviam ndash suas formas

terapecircuticas de uso D Necila e D Maria Geralda foram se lembrando das plantas e

eu fui anotando e registrando com o gravador de voz a marcelica (ldquopra dar pra

crianccedilardquo) o marcelicatildeo (dor de barrigadiarreia) o quebra-pedra (rim) a badama (ldquobom

pro cabelordquolavar a cabeccedila) o quitoco (ajuda no periacuteodo de menstruaccedilatildeoldquobom pra

tudordquo tambeacutem eacute usado como tempero)

189

A carqueja o funcho o guineacute baiano o taquarinho do brejo a salsa parreira

o melatildeozinho de Satildeo Caetano entre diversas ervas foram assunto dos nossos

passeios pela comunidade e pelos quintais das casas quilombolas Conhecimentos

portanto que iam sendo compartilhados por meio de um monitoramento e de

engajamento ativos ao longo deste caminhar (INGOLD 2007 p 76) Seu Joatildeo ia

indicando os remeacutedios para Geralda e Adir que estavam sempre atentos buscando

reconhececirc-los e apontaacute-los pelo caminho Geralda comentou que em GuaiacuteraPR tem

remeacutedio que eacute difiacutecil de achar soacute no raizeiro Ela se lembrou que sua matildee havia levado

consigo desde Minas dentre outras sementes de quitoco para plantar e tinha mudas

no siacutetio em GuaiacuteraPR Junto com as pessoas em seus caminhos de migraccedilatildeo

portanto havia tambeacutem um circuito de sementes e plantas para seus quintais e

plantaccedilotildees que cultivariam em outras regiotildees Seu Joatildeo Adir e Geralda quando

retornaram desta viagem tambeacutem fizeram questatildeo de levar na bagagem sementes e

mudas que foram sendo separadas ao longo do percurso Guardadas como

lembranccedilas estabeleceriam novas conexotildees e continuidades entre eles e sua regiatildeo

de origem

Necessaacuterio frisar que Maria Geralda e Necila (ambas com mais de setenta

anos) Margarida (63) Adatildeo (em torno de 60) e Jesu (um pouco mais novo) nossos

principais interlocutores nesta comunidade satildeo filhos do casal Jovelina Calisto dos

Santos e Raimundo Gomes Ambos Jovelina e Raimundo satildeo primos de primeiro

grau filhos dos irmatildeos Ana Pedro da Silva e Clarindo Gomes Gouveia

respectivamente Os irmatildeos Ana e Clarindo por sua vez satildeo filhos do casal ancestral

ao qual se faz referecircncia na comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Francisco Lucindo e

ldquoMatilirdquo ndash Matilde Balbina de Arauacutejo

Seu Joatildeo conheceu por exemplo Raimundo Gomes e seu irmatildeo Elias

Gomes conhecido por ldquotio Iliardquo sobre quem contam em ldquoVila Novardquo histoacuterias de que

foi escravo Nesta famiacutelia tambeacutem haacute vaacuterios casos de parentes que como na histoacuteria

de Manoel Ciriaco saiacuteram da regiatildeo em busca de oportunidades de trabalho no estado

de Satildeo Paulo sendo que nunca mais souberam notiacutecia sobre alguns deles Joseacute

Bernardo filho mais velho de Jovelina e Raimundo por exemplo perdeu contato com

a famiacutelia e soacute muitos anos depois os irmatildeos encontraram seus sobrinhos e souberam

que Joseacute jaacute era falecido como nos contou seu Adatildeo

190

Eu e Cassius ficamos muito satisfeitos em ver a alegria de Adir Geralda e Seu

Joatildeo nos dias que passamos em Satildeo Gonccedilalo Esta alegria parecia decorrente da

sensaccedilatildeo de estarem em um ambiente de iguais em contraste com os relatos sobre

as experiecircncias de discriminaccedilatildeo que sofrem no Maracaju dos Gauacutechos onde se

percebem separados dos demais Seu Joatildeo que natildeo pegava no violatildeo segundo ele

desde que saiu de Minas tocou com o pessoal da comunidade nos trecircs dias que laacute

permanecemos Adir estava muito empolgado com aquele lugar no qual ainda se

preservava tanto as tradiccedilotildees dos antepassados como o uso dos fornos de barro e

de pedra presente em vaacuterias das casas pelas quais passamos Mesmo com todo seu

desejo de chegar em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Adir sofreu para se despedir dos

novos amigos Geralda estava muito feliz em conversar com aquelas senhoras que

lhe remetiam ao melhor das mulheres de sua famiacutelia muita sabedoria conhecimentos

histoacuterias de luta e resistecircncia receptividade religiosidade entre outras qualidades

Estas histoacuterias eram como um mosaico de experiecircncias nas quais podiam projetar o

modo de vida de seus antepassados pois viveram em um mesmo territoacuterio cultural

regional e tiveram contato entre si D Necila e D Maria Geralda por exemplo

conheceram Maria Olinda matildee de Seu Joatildeo e Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de Manoel

FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D Necila

191

323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Na noite de segunda-feira professor Matheus e Tiago foram nos buscar no

distrito de Satildeo Gonccedilalo para nos levarem a Santo Antocircnio do Itambeacute nossa uacuteltima

etapa da viagem Eles jaacute tinham nos informado que haviam combinado com o Instituto

Estadual de Florestas (IEF) que ficariacuteamos hospedados na sede do Parque Estadual

do Pico do Itambeacute Esta sede administrativa eacute uma grande casa colonial que fazia

parte da antiga Fazenda Satildeo Joatildeo adquirida pelo IEF Quando estaacutevamos chegando

na sede do Parque jaacute passava da meia noite Seu Joatildeo reconheceu entatildeo que

aquela era a mesma fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhou muitos anos

Seu Joatildeo jaacute havia nos relatado que ele entregava cachaccedila em Satildeo Gonccedilalo

depois voltava para um lugar chamado Condado e tinha que carregar tambeacutem ateacute o

Itambeacute trabalhando para Zinho Ele levava a cachaccedila em pipa amarrada em cima do

lombo do burro e caminhava longas distacircncias puxando aquele peso sendo que de

trecircs em trecircs dias ele refazia todo o percurso Nos contou que um dia ele percebeu que

estava ldquotrabalhando como escravordquo pois o que recebia natildeo era suficiente nem para a

alimentaccedilatildeo de sua famiacutelia Depois que havia voltado do Itambeacute jantou primeiro e foi

falar para o patratildeo que natildeo ia trabalhar mais para ele Ao relato de Seu Joatildeo Adir

completou ldquoeacute o quilombo invadindo a casa granderdquo

Seu Joatildeo com seu conhecimento sobre a regiatildeo e com sua capacidade de

acionar uma rede social mais ampla de parentesco foi o nosso ldquodescobridor de

caminhordquo durante a primeira viagem a Minas Gerais o que se intensificou enquanto

estivemos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ldquoDescobridor de caminhordquo eacute uma

expressatildeo cunhada pelo antropoacutelogo Tim Ingold cujas reflexotildees servem de base para

a nossa anaacutelise sobre a importacircncia do movimento para o modo de articulaccedilatildeo da

identidade quilombola do grupo Segundo o autor

Os lugares natildeo tecircm posiccedilatildeo e sim histoacuterias Unidos pelos itineraacuterios de seus habitantes os lugares existem natildeo no espaccedilo mas como noacutes em uma matriz de movimento Chamarei essa matriz de ldquoregiatildeordquo Eacute o conhecimento da regiatildeo e com isso a habilidade de uma pessoa situar-se na sua posiccedilatildeo atual dentro do contexto histoacuterico de jornadas efetuadas anteriormente ndash jornada para lugares de lugares e em volta de lugares ndash que distingue o nativo do forasteiro Assim descobrir-caminho consiste em mover-se de um lugar para outro em uma regiatildeo (INGOLD 2005 p 76)

192

A simples posse de um mapa portanto natildeo poderia substituir a presenccedila de

seu Joatildeo como um descobridor de caminhos com sua bagagem de experiecircncias e

com sua percepccedilatildeo do ambiente produzida ao longo dos anos em seus movimentos

que lhe permitiram realizar um mapeamento da regiatildeo a qual consiste em uma ldquorede

mais ampla de idas e vindasrdquo (INGOLD 2005 p 84) Seu Joatildeo foi assim o elo que

pocircde nos conectar e nos inserir nesta rede de lugares e parentes ao reconstituir um

circuito de relaccedilotildees sociais locais

No primeiro dia em Santo Antocircnio Itambeacute pela manhatilde depois que dormimos

a primeira noite na sede do parque terccedila-feira 10 de marccedilo saiacutemos pela estrada de

terra que liga a sede ao pequeno centro de Santo Antocircnio do Itambeacute No caminho

Adir comentou ldquoEacute como se noacutes voltasse a histoacuteria voltasse a paacutegina da nossa vida do

comeccedilo quando nosso pai andava por tudo Eu quero passar por todas as ruas local

onde ele passavardquo Novamente estava sendo reforccedilada a referecircncia ao caminhar

como forma de dar sentido ao modo de vida de seus antepassados naquele lugar ao

sacrifiacutecio que era andar por todos aqueles morros com as coisas que levavam em

cima da cabeccedila por leacuteguas e leacuteguas pois moravam em um siacutetio longe da vila do

Itambeacute Se os caminhos satildeo parte fundamental na construccedilatildeo da memoacuteria coletiva

quilombola na nossa experiecircncia da primeira viagem continuavam sendo referecircncia

central na percepccedilatildeo de Adir Geralda e Seu Joatildeo

Nesta estrada de chatildeo que percorriacuteamos logo avistamos acima uma primeira

casa Ali Seu Joatildeo se lembrou que antigamente morava um parente Quem nos

recebeu foi Zeacute Simatildeo que estava em frente da casa e tambeacutem nos avistou Seu Joatildeo

lhe perguntou se ele lembrava de Sebastiatildeo Vicente o tio dele irmatildeo de Manoel que

ficou morando nas terras da matildee Izidora Zeacute Simatildeo em resposta disse

Zeacute Simatildeo Entatildeo tem um moccedilo aqui que o senhor deve conhecer o Seu

Daniel

Seu Joatildeo Ele eacute filho de quem

Zeacute Simatildeo Ele eacute desse povo mesmo da mesma parentagem desse povo

mesmo de

Adir Sebastiatildeo Vicente

Zeacute Simatildeo Ele eacute filho de uma tal esqueci o nome da matildee dele filho de um

tal de Joatildeo Domingo

193

Seu Joatildeo Joatildeo Domingo Conheci demais Joatildeo Domingo era tio desse aqui

(vira-se para Adir e continua) esse aqui eacute meu irmatildeo da segunda mulher

Adir Irmatildeo de Maria Bernarda Ele taacute ai

Zeacute Simatildeo Taacute ai vou chamar ele

(Seu Daniel aparece na porta da casa um senhor negro de 80 anos de idade

cabelos brancos peacutes descalccedilos calccedila rasgada)

Seu Joatildeo Eacute o senhor mesmo que eu tocirc querendo ver E o senhor como eacute que

taacute O senhor lembra de mim (Estende a matildeo para cumprimentaacute-lo)

Seu Daniel Natildeo tocirc conhecendo natildeo

Seu Joatildeo Noacutes dois natildeo levava milho laacute pro senhor moer pra noacutes

Seu Daniel Onde Eu carregava milho pra Sebastiatildeo Dama

Seu Joatildeo Eu sou filho de Manoel Ciriaco sobrinho de Sebastiatildeo Paulo

Seu Daniel Sobrinho de Sebastiatildeo Paulo Natildeo tocirc lembrado mais

Seu Joatildeo O senhor natildeo lembra de Joatildeo natildeo

Seu Daniel Joatildeo

Seu Joatildeo Joatildeo que eles falavam Joatildeo de Izidora

Seu Daniel Joatildeo de Izidora Lembro Eacute o cecirc eacute o cecirc queacute eacute Joatildeo

Seu Joatildeo Eacute eu sou neto dela

Seu Daniel Oacute quanto tempo

Seu Joatildeo Taacute com trinta e quatro anos que eu saiacute daqui

Seu Daniel Ele eacute filho de Maneacute Paulo

Geralda Aiacute oacute o nome do meu pai aqui eacute Maneacute Paulo

Zeacute Simatildeo Vocecirc que eacute Joatildeo Joatildeo de Izidora

Seu Joatildeo soacute pocircde ser reconhecido na medida em que foi inserido na rede de

parentesco local Com a referecircncia ao seu nome de registro Joatildeo Loriano dos Santos

ningueacutem poderia identificaacute-lo Foi o que ocorreu quando durante a pesquisa para o

segundo relatoacuterio antropoloacutegico Cassius esteve em frente agrave casa das cunhadas de

seu Joatildeo D Regina e D Zulmira perguntando por parentes de Joatildeo Loriano dos

Santos e o casal que o recebeu (filha de Zulmira e seu marido) respondeu que natildeo

conhecia esta pessoa Manoel Ciriaco por sua vez era conhecido como ldquoManeacute Paulordquo

194

ou ldquoManeacute de Paulardquo ou ainda ldquoManeacute de Izidorardquo pois era filho de Joaquim de Paula e

Izidora Nesta forma de nominaccedilatildeo usa-se o nome da pessoa acompanhado de

expressatildeo que aponta a identificaccedilatildeo a partir de um antepassado ou cocircnjuge

Seu Daniel como descobrimos no comeccedilo da conversa eacute primo de primeiro

grau de Ana Rodrigues matildee de Adir e Geralda O pai dele Joatildeo Domingos era irmatildeo

de Maria Bernarda matildee de Ana Rodrigues Ficamos por volta de trecircs horas na casa

em que moram Seu Daniel sua filha seu genro e seu neto com meses de vida Seu

Daniel nos recebeu muito bem e estava muito feliz em rever Seu Joatildeo um velho

amigo e conhecer Adir e Geralda seus primos de segundo grau Conversamos

longamente com ele enquanto eu e Cassius adicionaacutevamos as informaccedilotildees na aacutervore

genealoacutegica da famiacutelia especialmente sobre dados a respeito da famiacutelia de sua tia

paterna Maria Bernarda sobre a qual ele guardava muitas memoacuterias

FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel

3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda

Quando saiacutemos da casa de seu Daniel fomos procurar junto com Zeacute Simatildeo

a casa de D Regina e D Zulmira cunhadas de Seu Joatildeo e irmatildes de D Maria das

Dores que havia enviado por noacutes uma mensagem em viacutedeo para ser mostrada a seus

irmatildeos ldquoos que tive vivordquo No caminho logo encontramos a filha de D Regina

Aparecida que seu Joatildeo reconheceu ao avistaacute-la na rua quando ela e outras

195

mulheres voltavam para casa da roccedila Aparecida muito feliz de reencontrar o tio nos

levou entatildeo direto para a casa de D Zulmira pois sua matildee D Regina estava longe

trabalhando na roccedila Primeiro Aparecida foi na frente e contou para a tia D Zulmira

que Seu Joatildeo o cunhado dela estava chegando e que a irmatilde D Maria das Dores natildeo

tinha vindo mas que deram notiacutecia que ela estava bem D Zulmira jaacute se emocionou

muito com a novidade e agradeceu a Deus a Jesus Cristo louvando a possibilidade

deste reencontro Abraccedilou Seu Joatildeo e depois ele Adir e Geralda foram logo lhe

dando notiacutecias dos familiares que tinham saiacutedo dali para o Paranaacute como Manoel e

Ana que jaacute tinham falecido Olegaacuterio e Jovelina que estatildeo vivos Ela tambeacutem foi

atualizando seu Joatildeo e contando sobre os parentes que continuaram morando na

regiatildeo

Mostramos entatildeo para D Zulmira o viacutedeo com a mensagem enviada por sua

irmatilde D Maria das Dores a qual mencionamos acima D Zulmira falou que natildeo

achava que veria eles mais

D Zulmira O meu Santiacutessimo Sacramento porquecirc que some assim Ai meu nosso Senhor Que benccedilatildeo de Jesus Deus Deus achou

Cassius Eacute sua irmatilde

D Zulmira Eacute minha irmatilde meu fio Ai meu Deus Eacute das mais nova Ela deve ter uns sessenta anos Ela taacute muito bonita Eacute ela mesmo

Adir Eacute ela

D Zulmira Como eacute que eu tocirc gente Que Deus Ocirc minha Nossa Senhora cecirc trouxe o meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer ainda (se abaixa com as matildeos no rosto e comeccedila a chorar) Graccedilas a Deus Faz vinte anos ou vinte e cinco

Adir Eacute muita emoccedilatildeo

D Zulmira Eu perdi tantos irmatildeo

Adir Mas a senhora ainda vai ver ela Se Deus quiser a senhora vai ver

O nosso encontro com D Zulmira (73 anos) e depois com D Regina (78

anos) que logo chegou da roccedila foi uma experiecircncia uacutenica para todos os presentes

Segundo elas receber notiacutecias da irmatilde e rever o cunhado era a concretizaccedilatildeo de uma

intercessatildeo divina pela qual sempre rezavam buscando esperanccedilas para acreditar

que um dia este reencontro poderia acontecer Em seguida pedimos para que elas

196

mandassem uma mensagem que levariacuteamos de volta para D Maria das Dores Dona

Regina que estava mais calma comeccedilou mandando o seu recado

Hoje eu tocirc chegando da roccedila e tive a maior surpresa com a maior satisfaccedilatildeo cumadi Maria de ver o meu cumpadi Joatildeo mais a famiacutelia dele Eu tive muito prazer que eu vivia sempre na cabeccedila achando que nem vivo ocecircs era porque ocecircs tambeacutem natildeo dava nem notiacutecia pra mim E eu perdi o contato com ocecircs porque tomaram o endereccedilo e nunca mais me deram Entatildeo eu fiquei sem jeito de ligar pra vocecircs Agora ocecircs de laacute pra caacute tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacute Entatildeo cumadi Maria hoje eu tocirc no maior prazer na maior riqueza sou veia e pra mim fiquei nova de prazer de saber notiacutecia da minha irmatilde com a famiacutelia dela e meu cumpadi Joatildeo Cumadi Maria breve noacutes vamos encontra se Deus quiser Agora eu natildeo vou natildeo mas eu vou

Dona Zulmira depois tambeacutem deixou sua mensagem

Cumadi Maria eu minha fia graccedilas a Deus tive tanto prazer que eu vi a sua famiacutelia que chegou de laacute a moccedila e o rapaz o cumpadi Joatildeo o irmatildeo dele a irmatilde dele eu fiquei tatildeo emocionada de vecirc essa famiacutelia prazerosa que Jesus mandou pra noacutes nesse horaacuterio certo que chegou devia de ser meio dia Eu fiquei tatildeo emocionada que eu vou falar procecirc que eu natildeo tive ideia de dar pra eles nada a ideia que eu tive foi de chorar Fiquei tatildeo feliz tatildeo satisfeita tatildeo alegre porque sempre eu pensava assim ldquoEacute de vera a minha irmatilde foi embora essa eu natildeo vejo ela maisrdquo Mas Deus abenccediloou que trouxe eles em paz com vida e sauacutede e assim eacute de trazer a senhora tambeacutem E que breve se Deus quiser noacutes vamos encontrar E cecirc vecirc que depois que a senhora foi noacutes perdeu nossa matildee noacutes perdeu nosso pai noacutes perdeu meu irmatildeo Erosino a Benedita e a Margarida entatildeo cecirc sabe Eu fiquei assim pro rumo natildeo sube nem cumprimentar eles como eles merecia de tanta emoccedilatildeo que eu fiquei Mas eu fiava em Deus que eu esperava sempre que Deus ia abenccediloar que um dia que ocecircs tivesse a par ocecircs vinha caacute e noacutes encontrava Eu fiquei tatildeo feliz que soacute cecirc vendo Natildeo soube nem tratar eles como eles merecia E a companhia deles a moccedila mais o rapaz que tava com eles de fora que tambeacutem eacute outros irmatildeo tudo que eu fiquei toda feliz e tudo eu considerei por minha famiacutelia E Deus que te abenccediloa e algum dia noacutes encontra

A experiecircncia de ter um parente perdido era para elas muito angustiante

pois se a pessoa morre eacute porque ldquoDeus levardquo mas no caso de D Maria das Dores a

anguacutestia estava nesta duacutevida que se estendia por anos da ausecircncia de qualquer

notiacutecia Fazia dezenove anos que D Maria das Dores tinha ido pela uacuteltima vez para

Santo Antocircnio do Itambeacute A responsabilidade de fazer o movimento para o reencontro

como pode se depreender do comentaacuterio de D Regina ndash ldquoAgora ocecircs de laacute pra caacute

tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacuterdquo ndash afinal de contas eacute atribuiacuteda agravequeles que

migraram pois sabiam para onde voltar para encontrar os parentes diferente dos que

permaneceram na regiatildeo para quem seria muito mais difiacutecil tal busca

197

FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das Dores

Com o pouco tempo que passamos com D Regina e D Zulmira criamos com

elas uma conexatildeo muito forte Eu e Cassius entatildeo nos comprometemos a ajudar a

levar a D Maria das Dores para reencontraacute-las assim que fosse possiacutevel Com D

Zulmira e D Regina tambeacutem conversamos sobre a aacutervore genealoacutegica com enfoque

nos antepassados e compreendemos entatildeo o viacutenculo de parentesco da famiacutelia de

Manoel Ciriaco com a comunidade quilombola ldquoVila Novardquo165

O viacutenculo de parentesco se daacute por meio de D Maria das Dores que eacute filha de

Luiza Eleoteacuteria da Silva e neta de Virgulino Martins Gomes Virgulino por sua vez era

irmatildeo de Clarindo Gomes e filho de Matili e Francisco Lucindo o casal ancestral

estruturante da comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Clarindo Gomes era pai de

Raimundo Gomes e avocirc de seu Adatildeo D Necila D Maria Geralda e Jesu nossos

anfitriotildees em Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras Portanto Raimundo Gomes filho de

Clarindo eacute primo de primeiro grau de Luzia Eleoteacuteria filha de Virgulino e matildee de D

Maria das Dores

165Aleacutem da importacircncia das relaccedilotildees de parentesco destacadas ateacute aqui eacute necessaacuterio aprofundar a

pesquisa a respeito das relaccedilotildees de compadrio que parecem centrais tambeacutem neste caso para reforccedilar os viacutenculos de parentesco

198

Por meio de dois casamentos a famiacutelia de Luzia Eleoteacuteria da Silva se conecta

com a famiacutelia de Manoel Trata-se do casamento entre D Maria das Dores (filha de

Luzia) e Seu Joatildeo (filho de Manoel) e entre Zeacute (filho de Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de

Manoel Ciriaco) e Benedita (irmatilde de D Maria das Dores) D Maria das Dores nos

falou tambeacutem da possibilidade de uma conexatildeo entre as famiacutelias na geraccedilatildeo

ascendente mais distante agrave qual tivemos referecircncias Ela achava que ldquoVovoacute Matilirdquo

sua bisavoacute era irmatilde de Joseacute Domingos pai de Maria Bernarda e avocirc de Ana

Rodrigues (esposa de Manoel) bisavocirc portanto de Adir e Geralda conforme Excerto

Genealoacutegico apresentado abaixo Em alaranjado destacam-se os trecircs membros da

famiacutelia D Jovelina D Maria das Dores e Seu Joatildeo os quais efetivamente retornaram

a Minas Gerais por meio destas duas viagens pois laacute jaacute haviam morado Em amarelo

destacam-se os parentes com quem eles se encontraram durante as duas viagens

199

FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4

200

Segundo D Zulmira a famiacutelia de ldquovovoacute Matilirdquondash originaacuteria de Aacutegua Santa ndash era

muito pobre Este lugar atualmente estaacute abrangido pelo Parque Estadual do Pico do

Itambeacute uma unidade de conservaccedilatildeo de proteccedilatildeo integral em decorrecircncia da qual os

uacuteltimos moradores foram retirados da aacuterea e reassentados Esta localidade de acordo

com D Zulmira era ldquoterra de ningueacutemrdquo uma ldquoterra de heranccedilardquo onde passaram

muitas dificuldades e por isso de laacute saiacuteram Com tais explicaccedilotildees pudemos comeccedilar

a compreender a conexatildeo entre a famiacutelia de D Maria das Dores e a famiacutelia da

comunidade quilombola ldquoVila Novardquo que tambeacutem originaacuteria de Aacutegua Santa bem como

conhecer um pouco de sua histoacuteria de deslocamentos dentro de uma mesma

regiatildeo166

Depois que saiacutemos da casa de D Zulmira e D Regina naquele dia 10 de

marccedilo voltamos para a casa de Zeacute Simatildeo pois ele tinha dito que sabia o paradeiro

de D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que ajudou a criar Seu Joatildeo junto com

a avoacute Izidora Contratamos uma van escolar para nos levar de Itambeacute ao Serro na

casa que Zeacute Simatildeo indicava como sendo de D Ana Raimunda Natildeo tiacutenhamos certeza

se era a mesma pessoa de quem estaacutevamos falando pois alguns como a proacutepria D

Zulmira achavam que ela jaacute tivesse morrido Mas Zeacute Simatildeo genro de Seu Daniel

que nos contou que tambeacutem foi criado por Ana Raimunda afirmou que tinha ido visitaacute-

la recentemente Quando chegamos em sua casa logo na primeira pergunta que Adir

fez jaacute tivemos a confirmaccedilatildeo ldquoAna Raimunda irmatilde de Sebastiatildeo de Paulardquo Ela

respondeu ldquoEacute eu mesmordquo

Ana Raimunda da Silva nasceu em 19 de fevereiro de 1925 e tem 87 anos

Viuacuteva seu companheiro Joseacute Teoacutefilo dos Reis faleceu em 31 de agosto de 2014

quando ambos estavam hospitalizados Depois da morte de Teoacutefilo e de sua

recuperaccedilatildeo D Ana continuou morando na mesma casa e ldquopor natildeo ter parentes que

moram proacuteximordquo passou a receber cuidados da vizinhanccedila contando com uma

cuidadora chamada ldquoFatinhardquo Passou a receber tambeacutem o auxiacutelio de ldquopensatildeo por

morterdquo ndash com o intermeacutedio de Josiane outra vizinha que lhe auxiliava com as questotildees

financeiras e prestava esclarecimentos ao Centro de Referecircncia Especializado de

Assistecircncia Social (CREAS) ndash segundo consta do relatoacuterio da assistente social que

Josiane e Fatinha fizeram questatildeo de nos mostrar

166 Questatildeo que como jaacute mencionamos foi apontada pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir da pesquisa realizada por Cassius em 2012 a qual merece desdobramento em pesquisa posterior

201

Seu Joatildeo se apresentou ldquoE a senhora lembra de mim Joatildeo de Izidora que a

senhora criourdquo E jaacute foi logo falando que iria levaacute-la embora com ele para Presidente

PrudenteSP Geralda tambeacutem se apresentou como filha de ldquoManeacute de Paulardquo e

perguntou sobre quais filhos de Maneacute que D Ana ainda tinha lembranccedila D Ana se

lembrou primeiro da sobrinha Jovelina e entatildeo Geralda lhe deu o recado de sua irmatilde

ldquoEla disse que vai vir aqui pra buscar a senhorardquo D Jovelina e D Ana Raimunda

puderam conversar por telefone e ficaram muito felizes depois de cinquenta e nove

anos sem se falarem Jovelina estava desde que saiacutemos de Presidente PrudenteSP

esperando notiacutecias se tiacutenhamos conseguido encontrar sua tia que junto com a avoacute

Izidora cuidou dela de Joatildeo e de Olegaacuterio quando eram pequenos e ficaram sem a

matildee Maria Olinda que havia falecido

Noacutes ficamos horas conversando com ela sobre os parentes e ela nos contou

muitas histoacuterias D Ana Raimunda eacute irmatilde de Manoel Ciriaco apenas por parte de pai

ndash Joaquim Guilherme de Paula ndash assim como Sebastiatildeo Vicente de Paula filhos de

matildees diferentes informaccedilatildeo que Adir e Geralda desconheciam O uacutenico dos irmatildeos

que era filho de Izidora era Manoel Ciriaco Ana Raimunda contou que ela eacute filha de

Joaquim de Paula Guilherme com a sobrinha de Izidora Luiza Eufraacutesio da Silva

Quando Ana nasceu sua matildee Luiza tinha a intenccedilatildeo de em seguida matar o bebecirc

pois era fruto de uma gravidez indesejada D Ana contou entatildeo que Izidora mesmo

com a traiccedilatildeo do marido interveio para lhe salvar enrolando-a na saia Depois disso

sua matildee bioloacutegica Luiza foi embora e ela nunca mais a viu Izidora foi quem a criou

e em retribuiccedilatildeo D Ana cuidou dela ateacute sua morte

Uma hora no meio da conversa D Ana comentou com Fatinha ldquoVocecirc viu a

borboleta A borboleta aqui oacute todo mundordquo E D Ana entatildeo nos explicou sobre o

que estava falando

ldquoChegou uma borboleta aqui de tarde ela chegou ai na porta fez assim oacute (fez o gesto da borboleta voando com a matildeo) e sumiu Ai eu falei assim ldquoUai Fatinha a borboleta taacute chegando aqui na porta quarque coisa eacute alguma notiacutecia ela vai dar E laacute em casa no quarto tem uma direto laacuterdquo (risos)

A borboleta veio anunciando para D Ana a chegada dos sobrinhos Ela havia

recebido haacute algum tempo a notiacutecia por outros parentes da parte de seu irmatildeo

Sebastiatildeo Vicente de Paula que moram na regiatildeo de que seus sobrinhos Olegaacuterio e

Joatildeo jaacute haviam falecido Segundo ela a notiacutecia que eles lhe haviam dado visava

202

confirmar o domiacutenio que o filho de Sebastiatildeo Vicente Geraldo tem hoje sobre a terra

que foi de Izidora E D Ana nos contou que desde que recebeu a notiacutecia rezava

para alma de Joatildeo e Olegaacuterio todos os dias

FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda

Ela natildeo podia imaginar que naquele dia Seu Joatildeo iria visitaacute-la trazendo

consigo mais dois sobrinhos para ela conhecer Geralda e Adir que nasceram no

Paranaacute E D Ana agradeceu ldquoGraccedilas a Deus Eacute Deus que trouxe ocecircs Todo mundordquo

D Ana explicou que natildeo poderia ir agora com eles embora de Serro pois ela ainda

precisava ficar por mais um tempo ali para poder resolver algumas questotildees

pendentes sobre a heranccedila de Teoacutefilo seu marido que faleceu Segundo nos contou

com tristeza os parentes que moram na regiatildeo natildeo visitam mais ela quase natildeo tecircm

contato Ressentiu-se de ficar muito sozinha pois estaacute debilitada e precisando de

cuidados Com a diabetes ela ficou com uma ferida que estava aberta no peacute e que a

impedia de caminhar sem apoio

Noacutes entatildeo combinamos que iriacuteamos manter contato para que ela pudesse ir

passar um tempo com eles no estado de Satildeo Paulo e no Paranaacute Voltando para a

sede do parque naquele 10 de marccedilo de 2015 conversaacutevamos sobre como aquele

tinha sido um dia que entrou para a histoacuteria da famiacutelia No mesmo dia haviacuteamos

encontrado as pessoas que eles mais almejavam as irmatildes de D Maria das Dores D

Zulmira e D Regina e a irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda

203

3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda

No outro dia o quinto e uacuteltimo que ficamos na regiatildeo passamos na igreja

matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Geralda reforccedilou vaacuterias vezes como estava

realizada por chegar naquele lugar sagrado pois nunca tinha imaginado que um dia

poderia ir na igreja que foi frequentada por seu pai e sua matildee onde eles tambeacutem se

casaram

FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A ldquoIgreja Matriz de Santo Antocircniordquo eacute a uacutenica igreja catoacutelica do municiacutepio

Construiacuteda no seacuteculo XVIII se tornou paroacutequia no ano de 1868 Apesar do desgaste

da construccedilatildeo com o passar do tempo a imagem de Santo Antocircnio estaacute preservada

e fica em destaque do lado do altar As histoacuterias sobre a imagem do santo remontam

agrave eacutepoca de construccedilatildeo da igreja matriz Conta-se como a imagem eacute viva167 pois havia

167 ldquoOs santos constituem o exemplo mais claacutessico de objetos ndash objetos de barro ou madeira objetos

narrativos objetos sem mais ndash e de ldquofeitichesrdquo que se manifestam como atores que em cada um de seus avatares natildeo se comportam como intermediaacuterios ou como signos transparentes mas como

204

sido construiacuteda uma capela para abrigaacute-la em outro lugar mas a imagem aparecia no

local onde fica atualmente a igreja como um sinal do santo de que era ali o lugar onde

a igreja deveria ser construiacuteda

Esta era a igreja em que Padre Joviano atuava Como comentamos acima

Padre Joviano foi quem criou Maria Olinda matildee de Joatildeo Jovelina e Olegaacuterio Sobre

ele contaram como era muito caridoso e amoroso com todos e por isso eacute ainda hoje

muito estimado pelo povo do lugar que o considera santo168 Ele estaacute enterrado dentro

da igreja onde as pessoas acendem velas e fazem pedidos por sua intercessatildeo

Joviano Alves Diamantino nasceu em 08 de julho de 1874 e faleceu em 10 de maio

de 1965 com 91 anos Como D Maria Geralda e D Necila haviam nos contado ele

era proveniente do distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras tendo ido depois morar

em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Acima de seu tuacutemulo estaacute afixado em uma placa os seguintes dizeres ldquoComo

Pedro foi pedra fundamental dos ensinamentos de Cristo Padre Joviano foi o pilar da

feacute do povo desta terrardquo Natildeo por acaso a data de sua morte eacute celebrada no calendaacuterio

cultural do municiacutepio conforme consta na paacutegina virtual da prefeitura169 Em duas

casas que visitamos de pessoas que foram suas contemporacircneas no municiacutepio de

Santo Antocircnio do Itambeacute ndash de Seu Daniel e de D Regina ndash vimos a imagem do padre

em um porta-retrato afixado na parede

mediadores razoavelmente opacos () Os meus livros estatildeo cheios de exemplos de como as imagens sagradas (essas imagens tatildeo desprezadas por todos os iconoclastas) satildeo muito mais ativas do que parece a sua materialidade natildeo passa despercebida aos fieacuteis que a partir dela elaboram novos relatos a respeitordquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 215) 168 Segundo o antropoacutelogo Calavia Saez os santos satildeo achados e domesticados por meio de um

processo de canonizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica mas natildeo satildeo instituiacutedos pela instituiccedilatildeo pois tem origem na margem como no caso dos cultos a mortos praticamente anocircnimos (CALAVIA SAEZ p 200) 169 Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidadecalendario-de-eventos Acesso em

121015

205

FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel

Padre Joviano eacute portanto personagem destacado da histoacuteria local como

tambeacutem se evidencia no hino municipal

Estribilho ndash I Para alto para frente Com civismo amor e feacute Povo forte nobre gente Santo Antocircnio do Itambeacute II Das bandeiras heroacuteicas e rudes Tu herdastes os anseios e a feacute Guardiatildeo de lendaacuterias virtudes Junto a ti se levanta o Itambeacute III Foste em Minas o berccedilo do prelo Esta gloacuteria tu tens sem rival Com Geraldo Pacheco de Melo170 Desfraudando o pendatildeo liberal IV Joviano chamou-se o teu Santo Outro igual nunca mais tu teraacutes Seja sempre teu nome o teu canto Numa prece de amor e de paz (grifos nossos)171

Por ter criado Maria Olinda o padre ocupa a posiccedilatildeo de avocirc de Olegaacuterio

Jovelina e Joatildeo Seu Joatildeo nos contou que conviveu muito na casa do padre que

passava por laacute e o padre o chamava de ldquominha Maria Olindardquo ao se lembrar da filha

de criaccedilatildeo que jaacute era falecida Nos contou tambeacutem como o padre sempre lhe dava

algo para comer em um gesto de cuidado e consideraccedilatildeo Hoje a casa do padre eacute

uma moradia particular Na frente haacute uma placa talhada em madeira com a

identificaccedilatildeo ldquoSolar do Padrerdquo

170 Outro importante personagem da histoacuteria local foi ourives e jornalista tendo fundado o primeiro jornal

da regiatildeo ldquoLiberal do Serrordquo em 1828 Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiSanto_AntC3B4nio_do_ItambC3A9 Acesso em 1210015 171 Hino do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute Letra composta por Padre Celso de Carvalho e

melodia por Mozart Bicalho Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidade Acesso em 121015

206

Na imagem abaixo esta relaccedilatildeo de parentesco fica simbolizada na disposiccedilatildeo

assumida por Geralda Seu Joatildeo e Adir ndash que estaacute com as matildeos no ombro da estaacutetua

de Padre Joviano ndash que parece apontar para a percepccedilatildeo de uma continuidade entre

passadopresente e mortosvivos como em outros momentos jaacute destaquei neste

trabalho

FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano

3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente

Seu Joatildeo Adir e Geralda natildeo poderiam segundo eles ir embora sem antes

passarem na terra que foi de Izidora onde Manoel Ciriaco viveu ateacute sua saiacuteda da

regiatildeo Seu Joatildeo ateacute 1981 quando foi morar no siacutetio de seu pai em GuaiacuteraPR

tambeacutem viveu na terra que pertencia a sua avoacute Izidora Nela atualmente moram

parentes que pelas informaccedilotildees que tivemos teriam recebido autorizaccedilatildeo de Geraldo

ndash filho de Sebastiatildeo Vicente de Paula que era irmatildeo de Manoel e D Ana Raimunda ndash

que com a morte do pai ldquotomou conta de tudordquo nos termos D Ana Ela tambeacutem nos

207

contou que quando Manoel foi embora Sebastiatildeo Vicente ocupou toda a terra e natildeo

deixou nenhum espaccedilo para ela que passou a viver na cidade do Serro172

Seu Joatildeo jaacute muito contrariado com tudo que havia sido falado sobre as

ldquoarbitrariedadesrdquo173 do falecido Sebastiatildeo Vicente e agora de Geraldo preparou-se

para conversar com seu primo sobre como tinha ficado a questatildeo do documento da

terra Quando chegamos laacute o clima era hostil Geraldo foi muito incisivo em afirmar

que os filhos de Manoel Ciriaco natildeo teriam mais direito nenhum sobre aquela terra

pois toda a aacuterea tinha sido registrada como propriedade de seu pai Sebastiatildeo Vicente

jaacute que Manoel tinha ido embora dali e nunca mais voltado Como apontamos no

primeiro capiacutetulo a migraccedilatildeo consiste em uma estrateacutegia importante precisamente

para excluir da heranccedila membros da famiacutelia visando evitar o fracionamento da terra

a um ponto que inviabilize a reproduccedilatildeo camponesa (WOORTMANN 2009)

Por outro lado esta postura de Geraldo desconsiderava que Seu Joatildeo havia

morado nesta aacuterea ateacute 1981 e que os irmatildeos filhos do segundo casamento de Manoel

ndash Joaquim e Antocircnio ndash haviam ido ateacute laacute na deacutecada de 1980 quando Sebastiatildeo

Vicente ainda era vivo para vender a parcela hereditaacuteria que cabia a Manoel Ciriaco

Na eacutepoca conforme me contou Joaquim tinham sido recebidos tambeacutem com

hostilidade e a resposta do seu tio foi que ldquonatildeo negociava com molequerdquo e que

Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel era quem teria que ir pessoalmente laacute para

que fosse feito qualquer acordo Esta fala de Sebastiatildeo Vicente mostra que soacute o

primogecircnito dentre os filhos de Manoel ndash que ademais nasceu e morou na aacuterea ndash

poderia reivindicar a parte do pai ao passo que Antocircnio ndash que saiu de MG com quatro

anos de idade ndash e Joaquim ndash que nasceu na regiatildeo de Presidente PrudenteSP no

municiacutepio de CaiabuSP ndash ambos filhos do segundo casamento natildeo seriam

172 Pelo que se pocircde observar ateacute o momento haacute uma possibilidade de que as mulheres segundo o

arranjo costumeiro natildeo fossem herdeiras pois no sistema tradicional camponecircs geralmente elas natildeo satildeo incluiacutedas na heranccedila sendo portanto recompensadas por meio do dote pago agrave famiacutelia do marido quando se casam Posteriormente a mulher eacute incluiacuteda na heranccedila do marido (SEYFERTH 1985) Para poder fazer esta afirmaccedilatildeo de modo mais consistente no entanto seraacute necessaacuterio um aprofundamento da pesquisa na regiatildeo Soacute desta forma seraacute possiacutevel compreender as regras locais sobre o direito de heranccedila 173 Os dados levantados indicam que este parece ser um caso de ldquoheranccedila indivisardquo ou ldquoheranccedila

impartiacutevelrdquo camponesa conforme o direito costumeiro tendo em vista que o modelo de heranccedila igualitaacuteria por todos os herdeiros previsto no direito civil natildeo corresponde agraves estrateacutegias acionadas no mundo rural brasileiro Neste modelo de ldquoheranccedila indivisardquo apenas um herdeiro fica com toda a propriedade familiar (SEYFERTH 1985) No caso em questatildeo a heranccedila fica para Sebastiatildeo Vicente ao passo que Manoel migra para o Paranaacute e Ana Raimunda natildeo herda nenhuma parcela

208

reconhecidos pelo tio neste sentido conforme apontariam as regras locais de direito

costumeiro

Deve-se levar em conta ainda que os acordos locais sobre os acertos de

heranccedila podem abranger estrateacutegias variadas conforme as condiccedilotildees de escassez de

terras bem como outros fatores importantes avaliados em um dado momento Aleacutem

desta possibilidade de variaccedilatildeo das proacuteprias regras conforme a situaccedilatildeo eacute possiacutevel

perceber neste caso especiacutefico da famiacutelia de Manoel que haacute uma variaccedilatildeo no modo

de interpretaccedilatildeo das regras a partir da perspectiva especiacutefica dos sujeitos que estatildeo

posicionados de modos diferentes na estrutura familiar Eacute possiacutevel tambeacutem que haja

uma combinaccedilatildeo da estrateacutegia interpretativa local com os argumentos da legislaccedilatildeo

civil nacional

No caso de Seu Joatildeo Adir e Geralda pude observar nas conversas sobre o

tema da heranccedila a presenccedila do entendimento de que os filhos de Manoel que

moraram na terra de sua avoacute Izidora teriam o direito de retorno e de reivindicaccedilatildeo de

uma parte da aacuterea mesmo depois de anos que saiacuteram da regiatildeo Galizoni em estudo

sobre a regiatildeo no Alto Vale do Jequitinhonha muito proacuteximo da aacuterea aqui em questatildeo

apontou como a entrada do herdeiro potencial com seu retorno apoacutes a migraccedilatildeo eacute

uma situaccedilatildeo conflituosa Isso porque se cria sobre a terra ldquocamadas de direitos que

convivem uns com os outros e se sobrepotildeemrdquo (GALIZONI 2002 571)

Idealmente todos os irmatildeos tecircm direitos iguais assim como todos os netos e bisnetos Acontece que no jogo de dados que se estabelece entre filhos (as) no interior da famiacutelia e as conjunturas externas dadas por migraccedilatildeo trabalho casamento processos de acumulaccedilatildeo e ambiente cria-se uma diferenciaccedilatildeo interna na famiacutelia que se refletiraacute nas diversificaccedilotildees de trajetoacuterias e destinos e seraacute fundamental para a construccedilatildeo do herdeiro e do migrante Essas diferenciaccedilotildees podem ocorrer tanto na mesma geraccedilatildeo ndash entre irmatildeos por exemplo ndash quanto entre geraccedilotildees no caso tios e sobrinhos A partilha da terra e a sua passagem entre geraccedilotildees ocorrem atraveacutes de um processo que se desenrola no interior da famiacutelia articulado com processos exteriores (GALIZONI 2002 571)

No jogo entre herdeiros a terra principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos

agricultores eacute valorizada como um recurso valioso de modo que as disputas entre

parentes pela heranccedila camponesa decorrem de sua escassez A interpretaccedilatildeo por

parte de Seu Joatildeo Adir e Geralda acima mencionada de que os filhos de Manoel

Ciriaco que viveram neste siacutetio em Santo Antocircnio do Itambeacute seriam ldquoherdeiros

potenciaisrdquo ndash entendendo a heranccedila como um viacutenculo simboacutelico que natildeo se dilui com

209

o tempo e que garante assim a possibilidade de retorno ou reivindicaccedilatildeo da parcela

hereditaacuteria ndash conjugou-se com a possibilidade discutida naquele momento de que

futuramente decidissem acionar judicialmente o direito agrave reparticcedilatildeo igualitaacuteria entre os

herdeiros previsto na legislaccedilatildeo

Os acircnimos entre Seu Joatildeo e Geraldo poderiam ter se exaltado mas a minha

presenccedila e a do professor Matheus que foi quem nos levou fizeram com que como

Seu Joatildeo comentou ele tivesse se contido de modo que preferiu se retirar a gerar

uma confusatildeo Mesmo sem conseguirem ver uma possibilidade de negociaccedilatildeo sobre

o direito que entendem possuir sobre aquela terra principalmente em referecircncia aos

trecircs irmatildeos mais velhos que laacute viveram para Geralda e Adir soacute o fato de terem ido

conhecer o siacutetio onde seu pai e sua avoacute Izidora moraram jaacute foi muito significativo

Se por um lado a postura de Seu Joatildeo reforccedila um conjunto de relaccedilotildees

comuns ao campesinato como questotildees de honra que estatildeo baseadas na valorizaccedilatildeo

do trabalho e do sofrimento que seu pai passou ali ndash o que sustenta a sua leitura da

atitude da famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente como um ato de expropriaccedilatildeo ndash por outro

lado a postura de Geraldo pode estar embasada em regras de direito costumeiro que

sustentam estrateacutegias sucessorais locais jaacute que como analisamos acima o modo de

lidar com a heranccedila na aacuterea rural natildeo eacute uma praacutetica fixa que obedeccedila a regras gerais

do direito civil (SEYFERTH 1985 p 09)

Ao mesmo tempo reivindicar essa aacuterea seria retirar aqueles que atualmente

constroem suas vidas a partir dela jaacute que se conseguissem retomaacute-la provavelmente

natildeo haveria intenccedilatildeo de as famiacutelias de Jovelina Joatildeo e Olegaacuterio passarem a viver ali

O que mais se apontou foi a intenccedilatildeo de que a parcela hereditaacuteria fosse vendida

visando garantir melhores condiccedilotildees financeiras na localidade onde vivem hoje

Presidente PrudenteSP Com a impossibilidade de negociaccedilatildeo com Geraldo no

entanto esta questatildeo ficou suspensa para refletirem posteriormente se iriam mesmo

tomar qualquer atitude para reaver a aacuterea

Por fim no que toca aos descendentes de Sebastiatildeo Vicente tambeacutem

visitamos a casa da ex-mulher de seu filho Aniacutezio Aniacutezio estaacute haacute muitos anos

morando no Paraguai depois de ter vivido com os parentes em GuaiacuteraPR e natildeo

manteacutem mais contato com seus filhos Juliana ndash filha de Aniacutesio e sua ex-mulher

Ceciacutelia que retornou a morar em Santo Antocircnio do Itambeacute com a matildee em meados da

deacutecada de 1980 depois de terem vivido um periacuteodo na regiatildeo de GuaiacuteraPR com seu

210

pai ndash entregou a Adir entatildeo uma carta para que ele fizesse chegar ateacute Aniacutezio na

qual estava escrito

Meus irmatildeos satildeo Marcelo Erlindo Vardeti Pedro Eva

Uomesan (incompreensiacutevel) e Carlos Quase todos tem

famiacutelias Meu nome eacute Juliana tenho oito filhos um moreu

em asidenti de carro com bicicleta U nome deles satildeo

Karina Wilka Tomaz Francineli Joatildeo Vitor Camila

Igridi e Julia Eu queria encontrar meu pai para ele me

achuda minha casa taacute quase caindo o nome dele eacute Anizio

Dionizio de Paula Quando eu sai de terra rocha eu era

muito pequena Eu agora capino para sobreviver e cuidar

da minha famiacutelia Tudo que eu quero eacute encontrar meu pai

Eu queria que ele me achudace natildeo tem ninguem que me

achuda aleacutem de Deus e Nossa Senhora174

Ceciacutelia e seus filhos foram a uacutenica famiacutelia que depois de terem se mudado para

a regiatildeo de Guaiacutera (na carta Juliana cita que morou em Terra Roxa municiacutepio

vizinho) retornaram para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Este caso de retorno indica

como a modalidade de migraccedilatildeo se temporaacuteria ou definitiva soacute pode ser definida no

fim da vida das pessoas (GALIZONI 2002 p 569) Pelo que Juliana relata na carta e

pelas condiccedilotildees de moradia que vimos na casa de Ceciacutelia atualmente estatildeo

passando por muitas dificuldades financeiras e podem vir a ser uma das famiacutelias com

interesse em retornar para o siacutetio em GuaiacuteraPR a partir da regularizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo

da aacuterea por meio do procedimento em tracircmite no INCRA

324 Novos movimentos

Depois de nossa estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG retornamos para

SerroMG de onde pegamos um ocircnibus para Belo HorizonteMG De laacute eu e Cassius

embarcamos de aviatildeo para CuritibaPR enquanto Adir e Geralda voltaram de aviatildeo

ateacute CascavelPR e de laacute puderam seguir de ocircnibus ateacute GuaiacuteraPR Seu Joatildeo por sua

vez foi de ocircnibus ateacute Presidente PrudenteSP Interessante destacar que em

Cascavel Adir e Geralda pernoitaram na casa de parentes e tambeacutem aproveitaram

para fazer uma visita e ldquocolocar a conversa em diardquo

174 Adotei o uso de um formato de letra que se aproxime da letra cursiva para fazer referecircncia agrave transcriccedilatildeo de textos escritos por meus interlocutores(as)

211

Com o impacto que a primeira viagem teve para Adir Geralda e Seu Joatildeo

bem como para mim e para Cassius a possibilidade de um retorno ndash visando a

conclusatildeo de algumas questotildees prementes que ficaram abertas com esta retomada

do contato ndash fez com que eu e Cassius jaacute iniciaacutessemos o planejamento de uma nova

viagem A intenccedilatildeo agora era que D Maria das Dores fosse ateacute Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG reencontrar suas irmatildes e que D Jovelina encontrasse sua tia D Ana

Raimunda em SerroMG e a trouxesse para morar com ela em Presidente

PrudenteSP Demorou quase trecircs meses ateacute que todo este processo fosse articulado

Em 05 de junho uma sexta-feira eu e Cassius desembarcamos de aviatildeo em Belo

HorizonteMG enquanto D Maria das Dores e D Jovelina viajavam juntas de ocircnibus

desde Presidente PrudenteSP Desta vez tanto D Ana Raimunda como D Zulmira

e D Regina estavam cientes da nossa chegada e nos aguardavam para aquele fim

de semana

Eu e Cassius resolvemos entatildeo alugar um carro em Belo Horizonte para que

pudeacutessemos ter mais autonomia nos deslocamentos entre Serro e Santo Antocircnio do

Itambeacute e tambeacutem para proporcionar mais conforto agraves duas senhoras D Maria das

Dores e D Jovelina que estavam conosco aleacutem da possibilidade de que D Ana

Raimunda tambeacutem retornasse no final da viagem Por outro lado a opccedilatildeo do aluguel

do carro fez com que nos programaacutessemos para ficar apenas o final de semana jaacute

que tiacutenhamos que devolvecirc-lo na segunda-feira dia 08 de junho Apesar de ter sido

uma viagem curta como veremos abaixo este final de semana proporcionou

segundo elas tudo o que D Maria das Dores e D Jovelina almejavam

3241 O reencontro das irmatildes

Quando chegamos na casa de D Zulmira com D Maria das Dores e D

Jovelina jaacute era de madrugada e elas ficaram sem dormir conversando muito felizes

de poderem se atualizar sobre as histoacuterias as experiecircncias de vida os sofrimentos e

as alegrias Aquele reencontro tatildeo esperado tinha se concretizado No outro dia de

manhatilde saacutebado 06 de junho foi que D Maria encontrou entatildeo D Regina que eacute

vizinha de sua irmatilde D Zulmira

Eu e D Zulmira fomos na padaria comprar patildeo para o cafeacute D Zulmira estava

tatildeo eufoacuterica por conta do reencontro com sua irmatilde que foi logo contando para o dono

212

da padaria Alex sobre a vinda de D Maria das Dores que natildeo via haacute muitos anos

Alex que era tambeacutem comentarista nas missas da Igreja de Santo Antocircnio ficou muito

feliz com a notiacutecia de D Zulmira Comentou entatildeo da possibilidade de conversar com

o padre para pedir que eu fizesse um testemunho na missa que ocorreria agraves 19h

contando esta histoacuteria do reencontro entre as irmatildes Este convite se justificava

tambeacutem pelo fato de que aquele dia 06 de junho era o primeiro dia dos festejos para

Santo Antocircnio cuja ldquodata augerdquo da festa seria no saacutebado seguinte dia 13 de junho o

dia do santo Esta sincronia da nossa chegada com o calendaacuterio sagrado daquele

lugar fez com que Alex atribuiacutesse agrave intercessatildeo de Santo Antocircnio aquele

acontecimento que era tatildeo esperado por D Zulmira e D Regina

Os eventos relacionados ao catolicismo como a Festa de Santo Antocircnio o

santo padroeiro do municiacutepio satildeo os grandes eventos da sociabilidade local na regiatildeo

do Vale do Jequitinhonha (PORTO 2007 p 156) Assim que chegou a notiacutecia de que

o padre tinha concordado com a ideia os parentes ficaram muito animados e felizes

principalmente as trecircs irmatildes que consideraram este fato uma importante forma de

reconhecimento e valorizaccedilatildeo local da histoacuteria da famiacutelia bem como uma confirmaccedilatildeo

do caraacuteter sagrado daquele reencontro

Conversei entatildeo com D Maria das Dores que mesmo sendo evangeacutelica

aceitou e ficou feliz com a possibilidade de dar seu testemunho mas fez questatildeo de

apontar que segundo seu ponto de vista natildeo se tratava de milagre do santo mas de

obra de Deus diretamente No primeiro capiacutetulo destaquei neste sentido a

importacircncia das relaccedilotildees de continuidade percebidas pelos meus interlocutores(as)

entre diferentes religiotildees para aleacutem das divergecircncias existentes Podemos nos

lembrar por exemplo da fala de Eva de que ldquoDeus eacute um soacuterdquo compreensatildeo novamente

reforccedilada pela decisatildeo de D Maria das Dores em participar do ritual catoacutelico

Combinamos entatildeo que eu faria uma pequena fala introdutoacuteria e passaria o

microfone para ela relatar sua chegada em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG depois de

muitos anos sem contato com a famiacutelia E assim fizemos Depois da comunhatildeo como

estava acertado Alex que estava fazendo os comentaacuterios da missa fez um gesto

sinalizando que era a hora de subirmos ateacute o altar D Maria das Dores depois de

minha pequena introduccedilatildeo contextualizando a pesquisa e o subsiacutedio que havia sido

dado para aquele reencontro agradeceu a Deus pela oportunidade de seu retorno

que era uma grande benccedilatildeo na sua vida e de seus familiares Contou um pouco de

213

sua trajetoacuteria e fez questatildeo de enfatizar que ela natildeo tinha saiacutedo de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ldquopor orgulhordquo mas porque ldquotinha sido buscadardquo Afirmou que temos

sempre que glorificar a Deus por suas obras e concluiu sua fala de modo um tanto

tiacutemido mas com muita firmeza

No final da missa as trecircs irmatildes foram novamente ateacute o altar para

cumprimentar e agradecer ao padre tirar fotos e neste momento foram aplaudidas

por todos os presentes Apoacutes a missa houve uma confraternizaccedilatildeo em frente agrave Igreja

onde havia uma barraca na qual se podiam comprar comidas e bebidas iniciando as

festas juninas

FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

De alguma forma eu e Cassius fizemos parte daquilo que para elas era

consequecircncia de um milagre e segundo afirmaram vaacuterias vezes tiacutenhamos sido

enviados por Deus para trazer esta benccedilatildeo para a famiacutelia Interessante observar

neste sentido como o catolicismo eacute uma linguagem muito presente que sustenta o

modo de compreensatildeo das pessoas e lhes daacute um horizonte de futuro bem como uma

estabilidade no presente mesmo em situaccedilotildees de adversidade Ao falarem da morte

por exemplo usam a expressatildeo ldquoDeus levourdquo ao comentarem que moram sozinhos

214

ressalvam ldquomoro eu e Deusrdquo ao dizerem que natildeo podem contar com ningueacutem como

na carta de Juliana lembram-se da ajuda ldquode Deus e Nossa Senhorardquo Esta

concepccedilatildeo catoacutelica de mundo eacute tida como a forma legiacutetima de falar dos

acontecimentos e dizer que eacute um milagre natildeo traz necessariamente um sentido de

extraordinaacuterio pois tudo estaacute sobre o domiacutenio da justiccedila divina O sagrado portanto

faz parte do cotidiano e fornece a base dos valores fundamentais a serem seguidos

a partir da religiosidade cristatilde (PORTO 2007 p 157)

Nos dois dias que D Maria passou em Santo Antocircnio do Itambeacute ela pocircde

reencontrar vaacuterios sobrinhos e tambeacutem parentes que ainda natildeo conhecia pois a

maioria foi lhe ver na casa de suas irmatildes Ela foi muito bem recebida e acolhida por

todos que estavam em clima de festa A partir deste reencontro trocaram contatos no

intuito de que natildeo haja mais um lapso de convivecircncia e de comunicaccedilatildeo como ocorrido

anteriormente

FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira (no canto esquerdo) sua

sobrinha com o marido e os filhos

215

Antes de partimos gravamos um viacutedeo com as trecircs irmatildes contando sobre

como tinha sido aquele reencontro D Maria das Dores entatildeo comentou

D Maria Que noacutes foi muito bem recebida E eu tenho trecircs irmatildeos em Belo Horizonte e ateacute isso eu jaacute consegui conversar hoje com uma soacute E amanhatilde eu espero que se Deus quiser ela taacute na rodoviaacuteria pra noacutes se ver Entatildeo eu fiquei muito feliz neacute porque a gente viu meu sobrinho tudo minha sobrinha tocirc muito alegre Gloacuteria a Deus por isso E eu vou falar verdade que eu fui muito bem recebida na casa da cumadi Zulmira minha irmatilde e na casa da cumadi Regina E graccedilas a Deus laacute eu vou levando muita alegria porque tocirc vendo que taacute tudo bem neacute tudo em ordem muita fartura muita alegria e muita uniatildeo Gloacuteria a Deus por isso

Por fim jaacute na rodoviaacuteria de Belo Horizonte mais um reencontro aconteceu

entre D Maria das Dores e suas duas irmatildes que moram na capital mineira Teresa e

Anita Elas haviam combinado por telefone enquanto estaacutevamos em Santo Antocircnio

do Itambeacute que na segunda-feira se encontrariam na rodoviaacuteria da capital O uacutenico

irmatildeo que D Maria natildeo viu foi Joaquim que tambeacutem mora em Belo Horizonte mas

natildeo pocircde encontraacute-la naquele dia Segundo D Maria das Dores ela ficou imaginando

a possibilidade de um novo retorno com mais tempo para um encontro entre todos

os irmatildeos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

FIGURA 37 (Da esquerda para a direita) Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo Horizonte

216

3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda

D Jovelina estava ansiosa pelo reencontro com a tia Ana Raimunda que natildeo

via haacute cinquenta e nove anos desde que saiu de laacute em 1956 quando tinha catorze

anos Nesta segunda viagem depois de termos pousado a primeira noite na casa de

D Zulmira em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG no saacutebado pela manhatilde eu e Cassius

levamos D Jovelina na casa de D Ana Raimunda que morava em Serro Quando

chegamos D Ana Raimunda nos aguardava tambeacutem ansiosa pois haviacuteamos dito que

chegariacuteamos na noite anterior o que natildeo havia sido possiacutevel O encontro entre as

duas foi de muita alegria

Dandara Bom dia pra senhora

D Ana Bom dia tudo bem

Dandara Tudo bom Graccedilas a Deus

D Jovelina Ei minha matildeezinha do ceacuteu sua benccedilatildeo

D Ana Oi minha fia tem anos que eu natildeo vejo pelo amor de Deus Que tempo Jaacute tem uns quarenta anos ou mais

D Jovelina Eu natildeo to acreditando meu Deus do Ceacuteu

D Ana Jaacute tem uns quarenta anos ou mais Hein

D Jovelina Acho que eacute sessenta anos

D Ana Sessenta anos Noacute pelo amor de Deus Sumiu

D Jovelina A senhora vai comigo agora dessa vez

D Ana Que dia que vocecirc vai

D Jovelina Segunda-feira

D Ana Graccedilas a Deus Eu tocirc arrumando Que eacute eu sozinha com Deus aqui oacuteh (junta as matildeos como em oraccedilatildeo)

D Jovelina Agora eu vou te levar pra laacute vou ponhar papinha na sua boca

D Ana Eu sei boba

D Jovelina Vou te dar banho vou te carregar ponha na cama pra dormir

D Ana (risos) Ograve minha companheira

D Jovelina O que eu puder fazer eu vou fazer

D Ana Se Deus quiser Vai dar um pouquinho de confusatildeo mas vai dar certo Eu gostei que vocecirc vai segunda que segunda vai daacute tempo de noacutes arrumar tudo Vamo entrar pra dentro

217

FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos

D Ana Raimunda jaacute estava se preparando para ir para a casa de D Jovelina

em Presidente PrudenteSP e contou com a ajuda da sobrinha que passou com ela

o final de semana para organizar e levar o maacuteximo de coisas possiacuteveis Ela disse que

natildeo estava se mudando definitivamente pois ainda teria que voltar para Serro com o

intuito de vender a casa que era de seu falecido marido Teacuteofilo e ver questotildees

relacionadas agrave heranccedila entre ela e os dois filhos dele

D Ana estava muito feliz pois agora teria sempre companhia cuidados amor

de familiares e natildeo ficaria mais tatildeo sozinha e desamparada como se sentia ali Na

segunda-feira pela manhatilde conseguimos despachar as vaacuterias sacolas e bagagens de

D Ana pelo ocircnibus e seguimos de carro ateacute a rodoviaacuteria de Belo Horizonte D Ana

estava muito tranquila durante todo o percurso e assim foi ateacute chegar em Presidente

PrudenteSP acompanhada de D Jovelina e D Maria das Dores que seguiram

viagem juntas D Ana estaacute haacute cinco meses morando com D Jovelina e se sente muito

bem junto da famiacutelia como pude observar em agosto de 2015 quando fui visitaacute-la na

casa de D Jovelina

218

FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa da sobrinha Jovelina

Eacute possiacutevel perceber deste modo como estes reencontros apontaram para

dinacircmicas que operam entre relaccedilotildees de proximidade e de distacircncia em famiacutelias

como esta marcadas por situaccedilotildees de deslocamento natildeo haacute rupturas definitivas mas

potencialidades que podem dinamizar ou colocar as relaccedilotildees em letargia A facilidade

e a intensidade da retomada do contato por meio das viagens realizadas nas quais

foram refeitos partes dos caminhos de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100)

confirmaram a forccedila do sentimento de viacutenculo com os parentes e de continuidade com

este passado comum

Da situaccedilatildeo de isolamento que se reportavam em relaccedilatildeo agrave experiecircncia do

grupo em GuaiacuteraPR antes do autorreconhecimento como quilombolas foi possiacutevel

chegar a um novo momento em que houve um acionamento significativo da ampla

rede social de parentesco Ademais estas relaccedilotildees de parentesco entre as famiacutelias

que se deslocaram para o estado de Satildeo Paulo e para o Paranaacute e as famiacutelias

quilombolas da regiatildeo de origem tende a operar como um iacutendice da ldquoquilombolidaderdquo

do grupo Eacute possiacutevel assim identificar trecircs momentos centrais de institucionalizaccedilatildeo

da alteridade da ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

219

(a) no primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo natildeo foi reconhecido pelos

pesquisadores nenhum ldquograurdquo de alteridade

(b) no segundo relatoacuterio antropoloacutegico foi fundamentada a existecircncia de

alteridade em continuidade com o passado mineiro do grupo com base na pesquisa

realizada na regiatildeo de SerroMG e

(c) com as duas viagens de volta realizadas em marccedilo e junho de 2015 houve

por fim um significativo fortalecimento do sentimento de continuidade dos quilombolas

com sua origem comum bem como maiores subsiacutedios para sustentar a legitimidade

histoacuterica e a possibilidade de reivindicaccedilatildeo de direitos do grupo no presente

De algum modo como jaacute mencionamos foi esta demanda por coesatildeo e

coerecircncia das narrativas do grupo que impulsionou o retorno dos proacuteprios quilombolas

agrave regiatildeo de origem como um aprofundamento do processo de ldquoauto-organizaccedilatildeo em

termos poliacuteticosrdquo e concomitantemente de ldquoarticulaccedilatildeo dos antigos costumes e

formas de relacionamento social com as novas regras a que estatildeo submetidosrdquo

(ARRUTI 1997 23-24) Para aleacutem desta dimensatildeo pragmaacutetica houve uma

transformaccedilatildeo natildeo soacute na identidade quilombola com a multiplicaccedilatildeo dos espaccedilos

pelos quais eacute validada (ARRUTI 1996) mas tambeacutem na vida e nas trajetoacuterias dos

sujeitos envolvidos com estas experiecircncias de retorno

A realizaccedilatildeo destas duas viagens agrave Minas Gerais em marccedilo e junho de 2015

criou um entrelaccedilamento do movimento dos meus interlocutores(as) e do processo de

pesquisa que gerou esta dissertaccedilatildeo Este diaacutelogo aberto decorre da proximidade e

da relaccedilatildeo de confianccedila que jaacute possuiacuteamos criada por meio de um contato que se

estende desde 2011 Foi portanto a circulaccedilatildeo por espaccedilos institucionais a partir do

autorreconhecimento como quilombolas que os conectou com agentes do estado e

com pesquisadores como eu e Cassius que criou um contexto favoraacutevel para a

realizaccedilatildeo dessas viagens de volta

Neste percurso sinuoso da trajetoacuteria histoacuterica destas famiacutelias quilombolas

marcada por continuidades e descontinuidades busquei compreender o grupo ldquopor

meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenocircmenos distribuiacutedos

por diferentes locais escalas e temposrdquo (ARRUTI 2006 p 35) Foi possiacutevel perceber

deste modo como a histoacuteria da comunidade eacute construiacuteda como resultado de um

processo de negociaccedilatildeo Como jaacute mencionado a adoccedilatildeo da identidade implica na

proacutepria produccedilatildeo dessa realidade em uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre o herdado e o

220

projetado (ARRUTI 1997 p 28) a partir da categoria geneacuterica de ldquoquilombolardquo cujo

caraacuteter juriacutedico-administrativo eacute o caminho pelo qual as coletividades organizadas

podem se auto-objetivar (ARRUTI 2006 44)

A ldquoplasticidade identitaacuteriardquo formadora desses grupos permite efetivamente que eles ldquoresgatemrdquo ldquorecuperemrdquo elementos substantivos de identidade que passam a integrar seus processos de emergecircncia mas como ldquomateacuterias-primasrdquo que precisam ser manufaturadas pelas forccedilas mobilizadas no seu interior na forma de desejos coletivos (ARRUTI 1997 p 28)

Este passado pensado em comum estaacute portanto sendo elaborado a partir

do momento presente (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 24) o que destaca o

lugar central que estas viagens a Minas Gerais passaram a ocupar em tal processo

de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria Imagino ter sido suficientemente exposto ao longo

deste trabalho a centralidade para estas famiacutelias quilombolas do que podemos

compreender por meio da expressatildeo ldquodever de memoacuteriardquo entendido ldquocomo um ldquodireito

agrave reparaccedilatildeo em funccedilatildeo do esquecimento e guetificaccedilatildeo a que foram submetidas suas

histoacuterias ao longo do seacuteculo XXrdquo (MATTOS ABREU 2011 p 150) Com as viagens

realizadas em marccedilo e junho de 2015 este ldquodever de memoacuteriardquo se transformou em

algo acessiacutevel para os proacuteprios quilombolas de GuaiacuteraPR ao retraccedilarem o caminho

de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) Por meio destas viagens foi possiacutevel

compreender na praacutetica a necessidade de dessubstancializaccedilatildeo da identidade no

sentido de perceber como esta eacute construiacuteda pela tomada de consciecircncia sobre as

diferenccedilas e natildeo pelas diferenccedilas em si (SCHWARCZ 1999 p 296)

221

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Eu vou contar um pouco da minha histoacuteria pra vocecircs

Dandara e alguns mais importante com esse assunto Em

primeiro lugar o assunto eacute esse eu era companheiro de

minha matildee aos 4 anos e meio de idade eu completei 5 anos

na estrada muito sofrido ateacute que um senhor passou por ela

e chegou ateacute falar ldquodona a senhora vai matar esse menino

por favor natildeo faccedila isso natildeordquo Mais com todos sofrimentos ela

foi pelejando com a vida e noacutes continuamos mais tem aquele

ditado ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo Era muito difiacutecil porque

tudo era com o sofrimento ateacute para agente estudar tinha

que andar 4 km para ir e mais 4 km de voltar tinha que ir

a peacute as vez ateacute discalccedilo nem sapato noacutes natildeo tinha tempo de

frio com bluza uma calccedila todos dias sempre furava o fundo

era costurado toda vez tinha hora que natildeo tava nem

aceitando remendo mais natildeo tinha onde remendar mais

Quando a gente ganhava alguma peccedila de roupa agente

nem sabia o que fazia de tanta alegria Tinha que ir a aula

e voltar de pressa para poder ganhar uns troco ainda porque

meu pai era doente natildeo podia trabalhar que ele sentia um

bronquite forte e ficava muito canccedilado coitado ele viveu ateacute

43 anos com muito sofrimento e agente natildeo podia deixar

sem o remeacutedio porque agente tinha doacute que noacutes natildeo queria

ver ele naquele sofrimento era muito triste o estado que ele

ficou mais fazer o que todos noacutes tem que passar por isso A

gente comeccedilou a trabalhar muito cedo mais a gente soacute

ajudou os outros arrumar a vida deles e noacutes ficou Eu tive

uma chance no quartel eles queria que servisse mais por

motivo do falecimento do meu pai eu natildeo pude servi outra

chance eu tive tambeacutem foi no accedilougue para trabalhar natildeo

pude tambeacutem porque noacutes tinha lavoura de algodatildeo mais

natildeo dava muito porque era as meias tudo dividido pela

metade e assim noacutes continuamos Mais graccedila a Deus estamos

ai mais natildeo pode perder a esperanccedila cada um de noacutes temos

a nossa cruz para carregar ningueacutem passa por ela a num

ser a gente Hoje graccedilas meu Bom Deus eu tenho um lugar

para agente amparar uma motinha natildeo eacute nova mais da

para agente quebrar um galho temos roupas temos

alimentos para noacutes poder alimentar temos lugar para poder

plantar alguma coisa O que noacutes queremos eacute um apoio do

Governo Federal e temos que trabalhar reunidos com paz e

amor e concentrar naquilo que estamos fazendo Fazemos

um projeto para termos um sombrite para organizar melhor

a horta para sair uns bons lucros o sombrite ajuda e proteja

do sol e o tempo da geada Escrevido por Antocircnio Aparecido

dos Santos

222

Este texto trazido como epiacutegrafe destas consideraccedilotildees finais foi escrito por

Antocircnio Aparecido dos Santos marido de Geralda e entregue a mim enquanto estive

hospedada em sua casa na vila Eletrosul durante o trabalho de campo realizado em

GuaiacuteraPR Antocircnio conhecido pelo seu apelido Guaraacute eacute filho de Maria Madalena

Rocha dos Santos e Joseacute dos Santos175 casal que tambeacutem era proveniente de Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG e viveram em GuaiacuteraPR ateacute falecerem O texto de Antocircnio eacute

aqui destacado por ser significativo para pensar a importacircncia de aspectos analisados

ao longo desta dissertaccedilatildeo sobre este grupo quilombola Desta histoacuteria que Antocircnio

nos conta a mim e ldquoalguns mais importante com esse assuntordquo gostaria de analisar

alguns elementos

Antocircnio deixa expliacutecito logo no iniacutecio de sua narrativa sua expectativa de que

ela pudesse chegar ateacute pessoas que tenham interesse e atuaccedilatildeo com a temaacutetica

quilombola de modo que haja publicidade para suas memoacuterias para sua trajetoacuteria de

luta e feacute bem como para seus anseios de que haja uma melhor condiccedilatildeo de vida para

as famiacutelias Articula suas reflexotildees assim de modo a destacar elementos desta

memoacuteria que satildeo definidos por ele como significativos a partir do momento presente

de sua vida e da sua percepccedilatildeo sobre a trajetoacuteria coletiva do grupo quilombola

Ele ressalta em primeiro lugar como completou cinco anos ldquona estradardquo Filho

uacutenico era o companheiro de sua matildee jaacute que seu pai estava doente Ao acompanhaacute-

la em suas tarefas diaacuterias ele narra como ainda muito novo tinha que enfrentar

extensos trajetos de caminhada Para estudar novamente a experiecircncia do sofrimento

trazido por este caminhar mas acrescenta ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo e assim

sugere a importacircncia que atribui agrave religiosidade para a superaccedilatildeo das adversidades

da vida e da cruz que cada um tem que carregar Como vimos no primeiro capiacutetulo

este modo de elaborar a experiecircncia do sofrimento na interface com a feacute constroacutei um

saber sobre o mundo Saber pautado pela religiosidade cristatilde que vista pela lente de

um catolicismo negro eacute permeada pela religiosidade umbandista da qual Antocircnio eacute

adepto junto com sua esposa Geralda

Quando ainda crianccedilas voltavam da escola depois de oito quilocircmetros de

caminhada percorrida Antocircnio conta como tinham ainda que enfrentar uma jornada

de trabalho na roccedila que no caso dele era ainda mais necessaacuterio pelo fato de que ele

175 Joseacute dos Santos era irmatildeo de Geraldo do Santos que adquiriu um dos lotes da aacuterea original da

famiacutelia em GuaiacuteraPR

223

e a matildee tinham que cuidar de seu pai adoentado O trabalho que os membros da

comunidade realizaram desde muito novos para sobreviver contribuiu segundo ele

ldquoparra arrumar a vida delesrdquo se referindo agrave melhoria da situaccedilatildeo econocircmica dos

proprietaacuterios vizinhos e em contraste ldquonoacutes ficourdquo mostrando que natildeo foi possiacutevel

reverter os benefiacutecios deste trabalho para as proacuteprias famiacutelias da comunidade Este

contexto de interaccedilatildeo com os proprietaacuterios vizinhos a experiecircncia de ldquotrabalhar para

os outrosrdquo permeia a histoacuteria do grupo e eacute interpretada pelos quilombolas como uma

reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo de preconceito e exclusatildeo ndash um dos fatores que motivou o

movimento de saiacuteda das famiacutelias de Minas Gerais Se o deslocamento era uma

estrateacutegia de busca por autonomia e liberdade visando a superaccedilatildeo dos processos

de exclusatildeo nos quais estavam inseridos o processo de fixaccedilatildeo em um novo contexto

acaba por reproduzir as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo

Antocircnio faz referecircncias entatildeo a oportunidades de profissionalizaccedilatildeo que teve

quando jovem fora da aacuterea rural e complementa explicando os motivos pelos quais

natildeo foi possiacutevel investir nestas carreiras A alternativa de inserccedilatildeo no mercado de

trabalho urbano natildeo se consolida como um caminho de fato viaacutevel de modo que a

estruturaccedilatildeo de sua vida continua passando pelo trabalho na aacuterea rural mesmo

quando vai residir em uma vila da periferia de GuaiacuteraPR E novamente reforccedila a

importacircncia da feacute da esperanccedila e da gratidatildeo a Deus na melhoria de suas condiccedilotildees

de vida pois atualmente ele e sua esposa tecircm moradia proacutepria um meio de transporte

(motinha) roupas alimentos Aleacutem disso a permanecircncia da famiacutelia no territoacuterio em

GuaiacuteraPR permite a reproduccedilatildeo do trabalho familiar um certo niacutevel de autonomia

alimentar um modo de vida especiacutefico

Este ldquolugar para poder plantar alguma coisardquo ao qual Antocircnio se refere foi

deixado por seus pais e parentes mais velhos que empreenderam este processo de

chegada e conquista do territoacuterio em Guaiacutera Assim apesar de sempre ter sido

considerada uma aacuterea insuficiente para o nuacutemero de famiacutelias que nela viviam era a

garantia que poderiam deixar para seus filhos e descendentes ndash um lugar para morar

para plantar trabalhar e viverem unidos Por isso Manoel deixou como conselho que

seus filhos nunca vendessem este patrimocircnio familiar que ele lhes deixaria como

heranccedila Como Joatildeo Aparecido filho de Manoel me contou durante uma entrevista

Manoel sofreu muito para poder comprar esse ldquopedacinho de terrardquo pois quando

chegou em GuaiacuteraPE era soacute mato ldquoele natildeo tinha nem comida nem roupa nem nadardquo

224

Ficou anos trabalhando roccedilando aacutereas derrubando a mata e plantando milho e feijatildeo

para conseguir pagar parcelado o valor da terra Segundo Joatildeo ele colhia o milho

debulhava e levava para vender ateacute GuaiacuteraPR ndash caminhava carregando aquele peso

nas costas pelas picadas estreitas por dentro do mato e gastava o dia inteiro para ir

e voltar Todo este sofrimento de Manoel dos pais de Antocircnio e demais familiares

cria assim um compromisso moral dos seus descendentes de seguirem o exemplo

deixado e tambeacutem lutarem sempre lsquotrabalhando na honestidaderdquo

Assim em contraste com o ldquotrabalho para os outrosrdquo que remete na narrativa

de Antocircnio agrave experiecircncia de exploraccedilatildeo e estagnaccedilatildeo ele ressalta ao final de seu

texto o que vislumbra para o futuro o projeto coletivo de autonomia por meio da

geraccedilatildeo de renda para as famiacutelias no proacuteprio territoacuterio com o ldquoapoio do Governo

Federalrdquo para que possam ldquotrabalhar reunidos com paz e amor e concentrar naquilo

que estamos fazendordquo Um lugar portanto que antes mais nada sustenta a

possibilidade de uma vivecircncia coletiva

De um modo mais amplo como vimos um dos aspectos centrais do projeto de

futuro da comunidade eacute a possibilidade natildeo soacute de as famiacutelias que laacute vivem atualmente

permanecerem neste territoacuterio como tambeacutem garantir o aumento do nuacutemero de

famiacutelias da comunidade Esta ampliaccedilatildeo que esperam seja garantida com a conclusatildeo

do procedimento de regularizaccedilatildeo territorial do INCRA proporcionaraacute o aumento do

nuacutemero de famiacutelias da comunidade a partir do retorno de parentes que estatildeo sofrendo

em vaacuterias cidades os quais assim eacute esperado teratildeo condiccedilotildees entatildeo para geraccedilatildeo

de renda no proacuteprio territoacuterio com o acesso a poliacuteticas puacuteblicas necessaacuterias

Satildeo as dinacircmicas de parentesco que justificam a ampliaccedilatildeo do territoacuterio visto

como referecircncia mas natildeo como limite para o pertencimento identitaacuterio o qual se abre

para uma rede expandida de famiacutelias que se encontram espalhadas por todo o canto

como comentado por Adir em depoimento durante a primeira viagem para Minas

Gerais apresentado no terceiro capiacutetulo Este caso nos permite assim relativizar a

ideia de territorialidade como qualidade imanente e percebecirc-la a partir de uma busca

pela conquista de locais em que fosse possiacutevel a reproduccedilatildeo do modo de vida

especiacutefico ndash por meio de movimentos de deslocamento que desenham uma linha de

continuidade em uma longa trajetoacuteria Movimentos que satildeo eles mesmos iacutendices da

resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida e do desrespeito coletivo ao qual se sentem

submetidos

225

A relaccedilatildeo naturalizada entre identidade e territorialidade como apontamos

tem sido pressuposta pela poliacutetica puacuteblica de regularizaccedilatildeo territorial das

comunidades quilombolas no Brasil Trata-se de uma projeccedilatildeo da ideia de

enraizamento que necessita ser revisada e contextualizada historicamente ndash como

nos aponta este caso especiacutefico da experiecircncia quilombola em GuaiacuteraPR ndash para que

natildeo atue como fator limitador da possibilidade de reconhecimento de direitos a grupos

que natildeo se encaixem no padratildeo estabelecido como modelo Neste sentido a

percepccedilatildeo de continuidade natildeo necessariamente se enquadra nas expectativas da

poliacutetica de reconhecimento que tendem a desconsiderar a complexidade desta

conexatildeo com o passado enquanto dinacircmica de ldquorecuperaccedilatildeo do processo histoacuterico

vivido por tal grupordquo bem como de ldquorefabricaccedilatildeo constante de sua unidade e diferenccedila

em face de outros grupos com os quais esteve em interaccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO

1994a p123) ndash presente mesmo em casos de comunidades que incluem em suas

trajetoacuterias a experiecircncia do deslocamento entre territoacuterios

O retorno agrave regiatildeo de origem foi impulsionado como vimos a partir do

processo conturbado de reconhecimento do grupo como quilombolas que gerou a

produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do procedimento que ainda

tramita no INCRA Este regresso no entanto como apontei na introduccedilatildeo natildeo faz

desta linha de movimento um ciacuterculo que se fecha mas uma dinacircmica em espiral que

se abre para novos movimentos em busca de um futuro norteado pelo pertencimento

a um passado comum e pelos valores compartilhados por esta identidade coletiva Tal

abertura para novos movimentos se fez presente de um modo muito significativo na

mudanccedila de D Ana Raimunda com 87 anos de idade que deixou sua casa em Serro

e se mudou para Presidente PrudenteSP onde atualmente mora com sua sobrinha

Jovelina

A defesa de um deslocamento conceitual da ideia de quilombo tido como

sobrevivecircncia para a ressemantizaccedilatildeo do termo tendo em vista os sujeitos que se

reconhecem como quilombolas no presente (ALMEIDA 2002 p 64) pode ser ainda

ampliada com base nesta experiecircncia de pesquisa Refiro-me assim a um

deslocamento conceitual que inclua tambeacutem o reconhecimento dos proacuteprios

movimentos e deslocamentos dos grupos quilombolas como processo que natildeo retira

a legitimidade de suas reivindicaccedilotildees identitaacuterias e territoriais Este reconhecimento

tem suporte historiograacutefico nas pesquisas que apontam para a intensa movimentaccedilatildeo

226

da populaccedilatildeo negra no contexto do poacutes-aboliccedilatildeo (LIMA 2000) movimento que tinha

como sentido a saiacuteda de aacutereas de colonizaccedilatildeo histoacuterica como a regiatildeo de Minas

Gerais para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente como eacute a regiatildeo de GuaiacuteraPR no caso

em questatildeo

Minha interaccedilatildeo com estas famiacutelias quilombolas eacute fruto da circulaccedilatildeo da

comunidade representada por suas lideranccedilas em espaccedilos institucionais aos quais

passaram a acessar com o autorreconhecimento como quilombolas e a inserccedilatildeo no

movimento poliacutetico estadual em articulaccedilatildeo com demais comunidades Enquanto

relaccedilatildeo estabelecida com o grupo primeiro em uma posiccedilatildeo de agente do Estado

como assessora no Ministeacuterio Puacuteblico do Paranaacute depois como mestranda em

antropologia tive que lidar com esta posiccedilatildeo ambiacutegua que explicita meu duplo

pertencimento acadecircmico que transita entre o direito e antropologia

Acredito que com a convivecircncia cotidiana e a possibilidade de

aprofundamento dos viacutenculos a relaccedilatildeo que antes era de intermediadora de suas

demandas dentro do oacutergatildeo ministerial passou a ser a posiccedilatildeo de algueacutem com quem

pudessem compartilhar suas histoacuterias experiecircncias e sonhos dentro dos quais me vi

imersa Esta imersatildeo possibilitou que pudeacutessemos trilhar juntos o caminho de volta

ateacute Minas Gerais e sem perceber de iniacutecio eu estava tambeacutem sendo levada por esta

linha de movimento dos seus antepassados ndash que se tornou norteadora das

estrateacutegias de pesquisa e da redaccedilatildeo deste trabalho bem como o objeto de reflexatildeo

central fruto da relaccedilatildeo entre pesquisador e sujeitos de pesquisa

Ao concluirmos a segunda viagem de volta em junho de 2015 eu estava

entatildeo inserida em suas leituras permeadas pela compreensatildeo sagrada dos

acontecimentos vivenciados Os modos de compreensatildeo dos meus interlocutores(as)

apontavam para uma leitura de que a relaccedilatildeo entre noacutes assim como entre eles e

Cassius tinham sido acionadas por meio de oraccedilotildees e preces que nos colocaram

como instrumentos na concretizaccedilatildeo destes reencontros Natildeo pude conter a emoccedilatildeo

quando por exemplo D Zulmira agradecia ldquoocirc minha Nossa Senhora ocecirc trouxe o

meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer aindardquo

quando da nossa chegada em sua casa naquela terccedila-feira 10 de marccedilo de 2015 O

desafio colocado pela escrita antropoloacutegica ndash de construccedilatildeo de uma objetividade

perspectiva parcial e situada ndash deste modo natildeo deve ser orientado pela noccedilatildeo de

crenccedila mas pela reflexatildeo sobre como estas pessoas constroem o mundo com base

227

na articulaccedilatildeo destes conceitos Trata-se afinal de um saber sobre o mundo

(GOLDMAN 2003 p 461)

Outro desafio foi o de encontrar uma certa estabilidade que seria produzida

no registro da experiecircncia na forma de texto no que tange a processos percebidos

pelos meus interlocutores(as) como accedilatildeo e transformaccedilatildeo no mundo vivido Busquei

criar uma reflexatildeo analiacutetica a partir destas experiecircncias que foram perpassadas por

emoccedilotildees intensas e que me faziam refletir sobre a trajetoacuteria dos meus proacuteprios

antepassados como meus avoacutes paternos que tambeacutem saiacuteram do estado de Minas

Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute na deacutecada de 1940 em busca de melhores

condiccedilotildees de vida Nossos caminhos haviam se entrelaccedilado e como diria Ingold a

partir dali um noacute havia sido criado unindo nossas trajetoacuterias (INGOLD 2011 p 148)

o que espero possa se desdobrar na continuidade desta pesquisa com a intenccedilatildeo de

aprofundar a reflexatildeo sobre muitos pontos que demandam maior investimento de

anaacutelise

Como indagaccedilatildeo final proposta por este trabalho fica a questatildeo de ateacute que

ponto a autoidentificaccedilatildeo e a reconfiguraccedilatildeo do conceito de quilombo estatildeo

consolidadas para os atores que lidam com os procedimentos estatais sobre esta

temaacutetica Eacute necessaacuterio neste processo que se reconheccedila a historicidade e a

diversidade de trajetoacuterias que constitui tais grupos sociais suas dinacircmicas e agecircncias

de modo que se possa garantir direitos sem que se parta de uma fundamentaccedilatildeo

cristalizada decorrente da ideia de territorialidade fixa ou mesmo de imobilidade

Quando pensamos no conceito de ldquotradicionalrdquo natildeo devemos deste modo buscar

uma continuidade direta e substancializadora da identidade (como na perspectiva

produzida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) mas um tipo de relaccedilatildeo especial

com este passado coletivo que permite a manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social que estaacute

ela mesma sempre em transformaccedilatildeo (como analisado pelo segundo relatoacuterio)

No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos estamos

falando da diferenccedila entre por um lado partir da ideia de uma origem a ser

comprovada enquanto requisito para o reconhecimento da identidade quilombola e a

compreensatildeo por outro de como essa origem eacute acionada como importante elemento

identitaacuterio ndash pelos proacuteprios atores sociais enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo

(HALBWACHS 2003 p 94) ndash na forma pela qual se relacionam e se reinventam

como trajetoacuteria compartilhada Este viacutenculo com a origem se expressa na fala de Adir

228

ndash ao comentar sobre a nossa viagem e agradecer a recepccedilatildeo que recebemos de D

Regina e D Zulmira ndash com a qual encerro essas reflexotildees

Eu quero aqui agradecer em nome de toda a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que a senhora conheceu que noacutes demos o nome dessa comunidade em memoacuteria dele em Guaiacutera Paranaacute Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos onde a gente comeccedilou Meu sonho era buscar a histoacuteria da famiacutelia () E enquanto eu natildeo conseguir a histoacuteria da nossa famiacutelia que somos famiacutelia mas eu quero buscar desde o passado ateacute o presente eu natildeo vou descansar Se um dia eu morrer vou morrer feliz mas conhecer a nossa histoacuteria a histoacuteria de todos noacutes () Essa passagem taacute sendo experiecircncia pra mim porque como um filho de mineiro um filho dessa terra de pisar aqui nessa terra Que a minha vontade era andar descalccedilo soacute andar andar andar O que eu pensava era soacute andar

229

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Page 3: COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS

uNivgRSiCAoe feoeR A t d o Pa r a n a

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIEcircNCIAS HUMANASPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ANTROPOLOGIA RUA GENERAL CARNEIRO 460 6o ANDAR CEP 80060-150 - CURITIBA-PR Telefone (41) 3360-5272

PARECER DA BANCA EXAMINADORA

Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute

(PPGA) para realizar a arguiccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo de Mestrado de Dandara dos Santos

Damas Ribeiro intitulada ldquoCOMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS

SANTOS IDENTIDADE E FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTOrdquo apoacutes terem

inquirido a aluna e realizado a avaliaccedilatildeo do trabalho satildeo de parecer pela

s u a j^ ^ ^Ccedil s f^ completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas

desta Instituiccedilatildeo para a obtenccedilatildeo do Grau de Mestre em Antropologia Social

Consideraccedilotildees adicionais da Banca Examinadora

K CAtilde-~ ikjOu

ampJSraquo V3 51X ^V CUacuteUumlSS^sSi bull

Curitiba 23 de novembro de 2015

Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto Orientadora r

Prof Dr Andreacute Dumaifjs Guedes 1o Examinador

laacuteampgyCjProf Dr Ricardo Cid Fernandes

2a Examinador

Dedico este trabalho ao meu pai Antocircnio e agrave minha matildee Elisabete O apoio a

paciecircncia a generosidade e o amor que recebi de vocecircs foram o oxigecircnio para este

mergulho bem como para o recomeccedilo que se anuncia

AGRADECIMENTOS

Entendo essa pesquisa como uma primeira tentativa de organizaccedilatildeo de um

rico material de campo como a possibilidade de aprofundamento do viacutenculo que jaacute

possuiacutea e que pretendo manter com as famiacutelias quilombolas de GuaiacuteraPR e espero

o iniacutecio de uma longa caminhada de dedicaccedilatildeo agrave Antropologia Agradeccedilo muitiacutessimo

pela receptividade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em todos os lugares que percorri

durante o trabalho de campo GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG e SerroMG Agraves famiacutelias da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos o meu agradecimento pela hospitalidade confianccedila atenccedilatildeo e aprendizados

Sou grata a Deus por nossos caminhos terem confluiacutedo para a oportunidade deste

conviacutevio que foi repleto de experiecircncias incomensuraacuteveis

Agradeccedilo pela possibilidade de mergulho na Antropologia um novo caminho

que comecei a trilhar na minha graduaccedilatildeo no curso de Direito da UFPR Esta

curiosidade se ampliou com a oportunidade de trabalhar no Ministeacuterio Puacuteblico do

Paranaacute que me proporcionou o contato com vaacuterias comunidades quilombolas no

estado oportunidade pela qual agradeccedilo ao procurador de justiccedila e amigo Dr Marcos

Fowler Percebo como finalizo essa pesquisa com a convicccedilatildeo de que o que eu

precisava mesmo era de uma experiecircncia de trabalho de campo que fizesse do

conviacutevio a base para uma proposta de conhecimento que busca a horizontalidade o

diaacutelogo e a sensibilidade ndash o que gera uma transformaccedilatildeo dentro e fora de noacutes Natildeo

poderia ter realizado esta pesquisa sem o apoio da minha famiacutelia que diante das

inseguranccedilas e desafios do caminho confortaram-me com a inestimaacutevel sensaccedilatildeo e

certeza de ser amada incondicionalmente Pela simplicidade e grandiosidade deste

amor sem preacute-condiccedilotildees sou grata eternamente em especial aos meus avoacutes Doca

e Ruy Joatildeo aos meus pais Antocircnio e Elisabete agraves minhas irmatildes Tatiara Naiara e

Janaina ao meu cunhado Marcelo e agrave minha sobrinha Olga Agrave Naiara um

agradecimento todo especial pelas contribuiccedilotildees no processo de revisatildeo deste texto

em sua versatildeo final com seu amparo atenccedilatildeo e amor Aos meus avoacutes Joaquim e

Maria Julia em memoacuteria agradeccedilo e os homenageio lembrando de suas trajetoacuterias

como migrantes os quais assim como meus interlocutores(as) tambeacutem saiacuteram de

Minas Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute em busca de melhores condiccedilotildees de

vida Durante o periacuteodo do trabalho de campo em Santo Antocircnio do Itambeacute e

SerroMG lembrei-me dos dois e no coraccedilatildeo os senti tatildeo proacuteximos

Se de longe recebi o incentivo dos meus familiares de perto agradeccedilo e

honro o conforto da presenccedila de meu companheiro de jornada Jean Luis com seu

apoio cotidiano confianccedila carinho atenccedilatildeo amor e magia Agrave grande famiacutelia que nos

tornamos junto com os amigos Simone e Julio Ceacutesar Angeacutelica e Gustavo com suas

crianccedilas abenccediloadas Brisa Mareacute Otto e Joatildeo eu agradeccedilo por terem preenchido

meu cotidiano de amor alegria e uniatildeo Aos meus colegas de mestrado agradeccedilo

pela convivecircncia proacutespera Em especial agrave Gabi ao ldquoTucanordquo e agrave Karina dos quais

recebi toda a ajuda necessaacuteria para o ingresso no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em

Antropologia da UFPR Agradeccedilo tambeacutem o incentivo ao longo de todo o curso e a

confianccedila que depositaram em mim Com vocecircs compartilho memoacuterias muito

especiais de um periacuteodo uacutenico de minha vida Ao meu querido amigo Leonardo Bora

minha gratidatildeo e alegria por poder contar com sua generosidade na revisatildeo do texto

Agrave minha orientadora Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto agradeccedilo pelo

acompanhamento gentil e consistente pela delicadeza sensibilidade e estiacutemulos

contiacutenuos em nossas conversas por seu exemplo de antropoacuteloga e de pessoa que

seratildeo sempre referecircncias para mim A todos os professores e teacutecnicos do Curso de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute agradeccedilo pela

dedicaccedilatildeo e pelos ensinamentos compartilhados Em especial aos Professores Dr

Ricardo Cid Fernandes e Dr Joatildeo Rickli pelas contribuiccedilotildees e sugestotildees ao trabalho

na banca de qualificaccedilatildeo

Ao pesquisador Cassius Cruz sou muito grata pela oportunidade da parceria

de pesquisa na realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais Tambeacutem ao professor Dr

Matheus de Mendonccedila Gonccedilalves Leite e ao pesquisador Tiago Geisler ambos da

PUCSerro agradeccedilo pelo apoio e solicitude com que nos receberam no municiacutepio do

SerroMG Sem a disponibilidade de vocecircs nossa pesquisa na regiatildeo teria sido muito

difiacutecil ou mesmo inviaacutevel O significado dessa experiecircncia na minha vida e na de meus

interlocutores(as) transcende em muito as reflexotildees desta dissertaccedilatildeo

Preciso me encontrar

ldquoDeixe-me ir

Preciso andar

Vou por aiacute a procurar

Rir pra natildeo chorarrdquo

Cartola

Agraves vezes me chamam de negro

Agraves vezes me chamam de negro

Pensando que vatildeo me humilhar

Mas o que eles natildeo sabem

Eacute que soacute me faz relembrar

Que eu venho daquela raccedila

Que lutou pra se libertar

Que eu venho daquela raccedila

Que lutou pra se libertar

Que criou o maculelecirc

E acredita no candombleacute

E que tem o sorriso no rosto

Oi a ginga no corpo e o samba no peacute

O que eacute que tem

E que tem o sorriso no rosto

Oi a ginga no corpo e o samba no peacute

(Ladainha de Capoeira)

RESUMO

Esta dissertaccedilatildeo baseada na etnografia realizada junto agrave ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em GuaiacuteraPR problematiza a vinculaccedilatildeo direta entre a legitimidade da reivindicaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas e a ideia de territorialidade fixa que tem sido presumida pela poliacutetica de garantia de direitos territoriais quilombolas no Brasil Esta pesquisa indicou como a construccedilatildeo da identidade quilombola eacute perpassada pelos processos de deslocamentos constitutivos da trajetoacuteria das famiacutelias que vivem atualmente em GuaiacuteraPR mas satildeo provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A reivindicaccedilatildeo da identidade quilombola eacute elaborada pelos meus interlocutores(as) com base na origem e na ancestralidade comuns com antepassados negros que foram escravizados nesta regiatildeo de Minas Gerais a partir da qual ocorre a saiacuteda das famiacutelias em busca de melhores condiccedilotildees de vida passando pelo estado de Satildeo Paulo ateacute a mudanccedila para GuaiacuteraPR onde adquirem aacuterea proacutepria Nas narrativas dos membros da comunidade percebe-se como o movimento natildeo dissolve mas ao contraacuterio sustenta o pertencimento coletivo Este caso exemplifica como a ideia de territorialidade fixa desconsidera experiecircncias de ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo ndash criteacuterio trazido pelo Decreto Federal 48872003 ao regulamentar o processo de titulaccedilatildeo quilombola ndash constituiacutedas por meio de estrateacutegias de deslocamento e natildeo pela permanecircncia em um mesmo territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional Estas dinacircmicas de movimento foram em um primeiro momento do processo de regularizaccedilatildeo territorial que ainda tramita no Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) entendidas como um elemento de descaracterizaccedilatildeo da legitimidade da reivindicaccedilatildeo do grupo pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido sobre a comunidade Com a natildeo aprovaccedilatildeo deste estudo por parte do INCRA um novo relatoacuterio foi contratado tendo este investido no argumento de que haacute uma continuidade entre as dinacircmicas socioculturais do grupo de GuaiacuteraPR e as comunidades quilombolas de sua regiatildeo origem a partir de pesquisa realizada no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio ItambeacuteMG Esta pesquisa realizada pelo segundo relatoacuterio criou o interesse por parte da comunidade de que eles mesmos pudessem visitar a regiatildeo Tais viagens de retorno foram realizadas no acircmbito desta dissertaccedilatildeo para buscarmos mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica das famiacutelias o que gerou um entrelaccedilamento entre a minha pesquisa e a trajetoacuteria do grupo O (re)encontro entre parentes perdidos e a possibilidade de acesso agraves histoacuterias dos antepassados proporcionados por estas viagens sugerem que a busca pela reconstituiccedilatildeo de histoacuterias e viacutenculos com a regiatildeo de origem por parte dos quilombolas de GuaiacuteraPR natildeo se restringe ao acircmbito instrumental e administrativo mas tem tambeacutem uma importante dimensatildeo afetiva A articulaccedilatildeo destas dimensotildees aponta para o anseio dos quilombolas pelo reconhecimento da legitimidade de sua versatildeo sobre sua histoacuteria do valor de sua origem e trajetoacuteria bem como do direito de se construiacuterem como sujeitos e como coletividade especiacutefica

Palavras-chave comunidade quilombola relatoacuterios antropoloacutegicos movimento memoacuteria

ABSTRACT

The present thesis based on ethnography with the Quilombola Community Manoel Ciriaco dos Santos a black community located in Guaiacutera Paranaacute State (PR) Brazil questions the direct link between the legitimacy of the territorial claims of quilombola communities and the fixed territoriality idea that has been assumed by the quilombola land rights guarantee policy in Brazil This research indicated how the construction of a quilombola identity includes process of movement that are present in the trajectory of displacements of a group of families who although originally from Santo Antocircnio do Itambeacute in Minas Gerais State live nowadays in GuaiacuteraPR Their claim over a quilombola identity is elaborated on the bases of a common origin and ancestrality of black enslaved ancestors from the Center-Northeast region of Minas Gerais which unfolds in a journey for better life conditions leaving the place crossing Satildeo Paulo State and finally arriving at GuaiacuteraPR where they acquired their own land In the narratives of community members it is noticeable that the movement does not dissolve but rather sustains the collective pertaining This case exemplifies how the fixed territoriality idea disregards experiences of resistance to historical oppression- feature brought by the Federal Decree 48872003 that regulates the process of quilombola titling - that are based on shifting strategies and not by staying in one traditionally occupied territory These movement dynamics were regarded in the first instance of the land regularization process which is still pending in the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA) as a distortion element of the legitimacy of the groups identity claim by the first anthropological report on the community With the rejection of this study by the INCRA a new report was hired From research held in the surrounding area of the municipality of Santo Antocircnio do ItambeacuteMG the repory argument that there is a continuity between the socio-cultural dynamics of the Guaira group and the quilombola communities of their region of origin This research by the second anthropological report has created the interest from the community that they themselves could visit the region Such return trips were undertaken in this thesis to seek more information on the historical trajectory of these families which generated an entanglement between my research and the trajectory of the group The re-gathering among long unseen relatives and the possibility of access to the stories of ancestors provided by these trips suggest that the search for the reconstitution of stories and links with the region of origin by the quilombolas of GuaiacuteraPR is not restricted by mere instrumental or administrative aim but also it has an important affective dimension The articulation of these dimensions points to the quilombolarsquos desire for recognition of the legitimacy of the communityrsquos version of their own history of the value of their origin and trajectory of their right to shape themselves as subjects and as an specific collectivity

Key-words quilombola community anthropological reports movement memory

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o estado

Mato Grosso do Sul32

FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel

Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa34

FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute39

FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 143

FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2 44

FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 348

FIGURA 7 ndash Documentos de identidade de Manoel Ciriaco dos Santos nascido em

16031920 e Ana Rodrigues nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)50

FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia53

FIGURA 9 Fluxo migratoacuterio54

FIGURA 10 Divisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos57

FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia65

FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildeem o seu altar79

FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil80

FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria81

FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da

ldquoGirardquo85

FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana92

FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP93

FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado139

FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na

comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo153

FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP175

FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina176

FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira178

FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos

geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova

(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo184

FIGURA 24 Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria

Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo185

FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo

conversando e ao lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona186

FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado

pelo traccedilado vermelho187

FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D

Necila190

FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel194

FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das

Dores197

FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4199

FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda202

FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz203

FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel205

FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano206

FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do Itambeacute213

FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira sua

sobrinha com o marido e os filhos214

FIGURA 37 Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo

Horizonte215

FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos217

FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa

da sobrinha Jovelina218

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

i ndash Estrutura dos Capiacutetulos19

ii ndash Notas sobre a pesquisa26

1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO 31

11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacuteMG E GUAIacuteRAPR DOIS PONTOS DE UMA

LINHA 31

12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA59

13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE74

2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS96

21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS109

22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo116

23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS131

24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO142

3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo159

31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo159

32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS 168

321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos171

322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova180

323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG191

3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda194

3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda203

3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente206

324 Novos movimentos210

3241 O reencontro das irmatildes211

3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda216

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS221

12

INTRODUCcedilAtildeO

As narrativas das famiacutelias negras a respeito do periacuteodo posterior agrave aboliccedilatildeo

formal da escravidatildeo no Brasil em 1888 tecircm vindo agrave tona nas uacuteltimas trecircs deacutecadas

por meio da emergecircncia da reivindicaccedilatildeo identitaacuteria das ldquocomunidades quilombolasrdquo

Este florescimento de narrativas foi estimulado pela inserccedilatildeo do direito agrave propriedade

coletiva dos territoacuterios sociais tradicionalmente ocupados conforme previsto na

Constituiccedilatildeo Federal (CF) de 1988 no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees

Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) que versa ldquoaos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a

propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivosrdquo Com este

ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo1 (OLIVEIRA FILHO 1998) e a consequente

reelaboraccedilatildeo da relaccedilatildeo com o passado como novos sujeitos poliacuteticos tem ocorrido

a ldquorecuperaccedilatildeo e reenquadramento da memoacuteria ateacute entatildeo recalcadardquo (ARRUTI 2006

p 28)

O ldquoprocesso de nominaccedilatildeordquo dos ldquoremanescentes das comunidades dos

quilombosrdquo na CF instituiu assim uma categoria juriacutedica e administrativa para

identificar sujeitos de direitos coletivos como objeto de accedilatildeo do Estado (ARRUTI

2006 p 45) No entanto o artigo constitucional permaneceu sem aplicaccedilatildeo ateacute 1995

(tricentenaacuterio da morte de Zumbi) sendo que soacute foi complementado por uma

regulamentaccedilatildeo que previa a criaccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica com condiccedilotildees miacutenimas

para realizar a titulaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas em 2003 Trata-se

do Decreto Federal 4887 que revogou o Decreto Federal anterior 3912 de 2001 Para

esta regularizaccedilatildeo territorial eacute exigida a elaboraccedilatildeo de um relatoacuterio antropoloacutegico ndash

que figura como a primeira peccedila teacutecnica produzida no acircmbito do processo de titulaccedilatildeo

quilombola ndash responsabilidade do Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio por meio

1 Segundo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo consiste no

processo por meio do qual os grupos sociais (no caso da discussatildeo especiacutefica do autor o foco satildeo povos indiacutegenas mas este mesmo raciociacutenio pode ser estendido para as comunidades quilombolas) tornam-se coletividades organizadas enquanto objeto poliacutetico-administrativo de modo que formulam uma identidade proacutepria estabelecem mecanismos de decisatildeo e de representaccedilatildeo e reestruturam as suas formas culturais Assim ldquoas afinidades culturais ou linguiacutesticas bem como os viacutenculos afetivos e histoacutericos porventura existentes entre os membros dessa unidade poliacutetico-administrativa (arbitraacuteria e circunstancial) seratildeo retrabalhados pelos proacuteprios sujeitos em um contexto histoacuterico determinado e contrastados com caracteriacutesticas atribuiacutedas aos membros de outras unidades deflagrando um processo de reorganizaccedilatildeo sociocultural de amplas proporccedilotildeesrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 56)

13

do Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) atraveacutes de suas

superintendecircncias estaduais2

Esta dissertaccedilatildeo busca analisar o processo de reconstituiccedilatildeo das memoacuterias e

da histoacuteria coletiva fruto da emergecircncia identitaacuteria da comunidade negra

autodenominada ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em

Guaiacutera no estado do Paranaacute (PR) Esta comunidade desde 2008 haacute sete anos

iniciou o processo de titulaccedilatildeo de seu territoacuterio junto agrave Superintendecircncia do INCRA no

Paranaacute Este procedimento administrativo que tramita com o nordm 542000010752008-

46 foi marcado pelo desencadeamento de conflitos e incompreensotildees resultando na

produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos em decorrecircncia da anulaccedilatildeo do primeiro

A trajetoacuteria de reconhecimento desta comunidade apresentou desafios especiacuteficos

tendo em vista que sua histoacuteria destoa do imaginaacuterio redutivo e preacute-concebido

comumente atribuiacutedo agraves comunidades quilombolas3 que parte de uma ideia de

fixaccedilatildeo territorial e de uma relaccedilatildeo ancestral e contiacutenua com um mesmo territoacuterio

tradicionalmente ocupado Este grupo quilombola no Paranaacute constroacutei sua identidade

coletiva como iremos analisar ao longo deste trabalho a partir de processos de

deslocamentos geograacuteficos no qual GuaiacuteraPR eacute o ponto de chegada para algumas

famiacutelias e ponto de passagem para outras

O municiacutepio de Guaiacutera estaacute na regiatildeo de fronteira internacional entre o Brasil

e o Paraguai definida pelos contornos do Rio Paranaacute no extremo oeste do estado

Nesta regiatildeo tais famiacutelias chegaram como gostam de narrar no comeccedilo da deacutecada

de 60 a partir de um movimento iniciado no estado de Minas Gerais (MG) passando

2 Esta atribuiccedilatildeo de titulaccedilatildeo dos territoacuterios quilombolas nas Superintendecircncias Regionais do INCRA

eacute executada pelo ldquoServiccedilo de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolasrdquo que integra a ldquoDivisatildeo de Ordenamento da Estrutura Fundiaacuteriardquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrincra-nos-estados Acesso em 291015 3 Um exemplo da forte presenccedila desta loacutegica reducionista no campo juriacutedico eacute o voto do entatildeo Ministro

do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso que foi o relator em 18 de abril de 2012 da Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade 3239 proposta pelo Partido Democratas questionando a constitucionalidade do Decreto Federal 4887 de 2003 O voto do Ministro Relator que abriu o julgamento baseou-se na acepccedilatildeo histoacuterica de quilombo para interpretar o sentido e a abrangecircncia da aplicaccedilatildeo do artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias Caso o julgamento venha a confirmar este mesmo entendimento do Ministro Peluso haveraacute um enorme retrocesso na poliacutetica quilombola com a retirada do Decreto 4887 de 2003 do ordenamento juriacutedico e com a necessidade de que tal direito seja regulamentado por lei a ser aprovada pelo Congresso Nacional no qual a bancada ruralista eacute muito expressiva Endereccedilo eletrocircnico do viacutedeo da sessatildeo de julgamento httpwwwyoutubecomwatchv=ZV94XhbFV6s Acesso em 08012015 Para uma anaacutelise do voto do ministro ver artigo que desenvolvi neste sentido (RIBEIRO 2015)

14

pela regiatildeo oeste do estado de Satildeo Paulo (SP) no municiacutepio de Caiabu4 ndash distante

quarenta quilocircmetros de Presidente Prudente5 que eacute o municiacutepio polo da regiatildeo ndash

onde chegaram em 1956 As narrativas quilombolas destacam que Manoel trabalhou

com a famiacutelia em CaiabuSP na colheita de algodatildeo e amendoim ateacute que ele e mais

alguns parentes resolvem se mudar com o objetivo de comprar terras no extremo

oeste do Paranaacute na regiatildeo dos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa

Em Minas6 viviam no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute considerado o

local de origem do grupo localizado proacuteximo ao iniacutecio da regiatildeo conhecida como ldquoVale

do Jequitinhonhardquo Satildeo as memoacuterias dos mais velhos sobre esta regiatildeo de origem que

constituem a base da histoacuteria deste grupo conforme eacute mobilizada pelas famiacutelias que

vivem atualmente em Guaiacutera e cujos membros importante destacar jaacute nasceram no

estado de Satildeo Paulo ou no Paranaacute ou seja depois do iniacutecio do processo de

descolamento das famiacutelias

Nas narrativas sobre o passado mineiro da comunidade haacute referecircncias a

ancestrais que foram escravizados no garimpo e em fazendas da regiatildeo cujo

povoamento ainda no seacuteculo XVIII surgiu com a exploraccedilatildeo de ouro vinculada agrave

expansatildeo bandeirante paulista com forte presenccedila da escravidatildeo africana (PORTO

2007 p 66) No entanto as memoacuterias da escravidatildeo deste grupo natildeo estatildeo

circunscritas em suas narrativas ao tempo da escravidatildeo jaacute que haacute uma extensatildeo

temporal que expressa uma percepccedilatildeo de continuidade desta experiecircncia por meio

da situaccedilatildeo de viver como escravo (MELLO 2012 p 214)

4 O municiacutepio de CaiabuSP antes distrito de Regente Feijoacute foi criado pela Lei Estadual nordm 2456 de

1953 Nesta localidade desde 1935 com o iniacutecio do povoamento havia plantaccedilotildees de algodatildeo e outras culturas na qual a famiacutelia de Manoel se inseriu a partir de 1956 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio tem uma populaccedilatildeo de 4072 habitantes Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350890ampsearch=||infogrE1ficos-informaE7F5es-completas Acesso em 041115 5 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio de Presidente PrudenteSP tem uma

populaccedilatildeo de 207610 habitantes Seu povoamento foi iniciado ainda no seacuteculo XIX a partir dos deslocamentos de mineiros para a regiatildeo que com o esgotamento das minas de ouro estavam ldquoem busca de terras boas para a lavourardquo Foi elevado agrave categoria de municiacutepio pela Lei nordm 1798 de 1921 desmembrado do municiacutepio de Campos Novos e Conceiccedilatildeo de Monte Alegre Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=354140ampsearch=sao-paulo|presidente-prudente|infograficos-historico Acesso em 041115 Presidente PrudenteSP exerce assim influecircncia sobre os municiacutepios menores do entorno Iremos destacar ao longo do trabalho a passagem das famiacutelias provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pelo estado de Satildeo Paulo por meio da referecircncia agrave ldquoregiatildeo de Presidente Prudenterdquo pois natildeo tive acesso a muitas referecircncias especiacuteficas em relaccedilatildeo agrave forma e ao histoacuterico de ocupaccedilatildeo das famiacutelias nesta regiatildeo embora se indique que Manoel viveu em CaiabuSP 6 Uso a grafia em itaacutelico para a sinalizaccedilatildeo de expressotildees nativas e aspas duplas para as falas dos meus interlocutores e citaccedilotildees bibliograacuteficas

15

Nestes deslocamentos de Minas Gerais ao Paranaacute o movimento destas

famiacutelias negras foi traccedilado em direccedilatildeo primeiro agrave regiatildeo de Presidente PrudenteSP

onde se estabeleceram por alguns anos trabalhando na aacuterea rural em terras

arrendadas No comeccedilo da deacutecada de 60 vislumbraram entatildeo a possibilidade de

adquirirem aacutereas proacuteprias nos loteamentos rurais na regiatildeo de GuaiacuteraPR em contato

com pessoas que trabalhavam como ldquocorretoresrdquo e buscavam pessoas interessadas

no estado de Satildeo Paulo Novamente resolvem se deslocar agora em direccedilatildeo ao

extremo oeste paranaense onde adquirirem aacuterea no loteamento rural de iniciativa da

Sociedade Agropecuaacuteria Industrial e Comercial Maracaju LTDA que tinha sede em

Caxias do Sul Este loteamento eacute atualmente denominado como bairro rural ldquoMaracaju

dos Gauacutechosrdquo distante vinte quilocircmetros do centro comercial do municiacutepio de

GuaiacuteraPR

Estes deslocamentos constitutivos da experiecircncia do grupo satildeo articulados

por meio da atribuiccedilatildeo de uma dimensatildeo moral em relaccedilatildeo ao desrespeito coletivo ao

qual percebem terem sido submetidos e que constitui um aspecto central da

elaboraccedilatildeo de sua identidade coletiva A identificaccedilatildeo deste desrespeito7 ndash percebido

na situaccedilatildeo de precariedade de condiccedilotildees de vida e no preconceito racial sofrido por

estas famiacutelias negras enquanto fator determinante para tais movimentos com o alto

custo emocional gerado pela separaccedilatildeo entre parentes ndash veio agrave tona com o processo

de reconhecimento do grupo como quilombolas Como procuraremos apontar eacute a

trajetoacuteria coletiva de movimento e a relaccedilatildeo com esta origem mineira que constitui a

fonte de pertencimento identitaacuterio que estrutura o processo de etnogecircnese no caso do

quilombo de GuaiacuteraPR8

No entanto esta trajetoacuteria natildeo foi tida como legiacutetima em muitas situaccedilotildees de

contato do grupo com agentes externos inclusive no acircmbito do procedimento de

regularizaccedilatildeo territorial que tramita no INCRA Em contraste com este modo de

elaboraccedilatildeo da identidade que eacute reivindicada a partir da trajetoacuteria de movimento a

interpretaccedilatildeo corrente com base na previsatildeo normativa tem tomado a territorialidade

7 Ao que Arruti denomina ldquoprocesso de identificaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 46) 8 A relaccedilatildeo entre trajetoacuteria e origem segundo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho pode ser compreendida

como dinacircmica constitutiva da etnicidade pois esta supotildee necessariamente uma trajetoacuteria histoacuterica ldquodeterminada por muacuteltiplos fatoresrdquo e uma origem enquanto experiecircncia primaacuteria ldquotraduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplarrdquo Deste modo ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedila Eacute da resoluccedilatildeo simboacutelica e coletiva dessa contradiccedilatildeo que decorre a forccedila poliacutetica e emocional da etnicidaderdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)

16

como epicentro da identidade bem como da mobilizaccedilatildeo por direitos no processo de

reconhecimento puacuteblico dos grupos quilombolas no Brasil Tendo como referecircncia a

previsatildeo constitucional do artigo 68 do ADCT referida acima tem sido pressuposta

uma equivalecircncia entre a ancestralidadecontinuidade da ocupaccedilatildeo do territoacuterio

tradicional e a legitimidade da emergecircncia eacutetnica

A relaccedilatildeo entre ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo tambeacutem tem sido enfocada no debate

atual mais amplo sobre as comunidades tradicionais o que se daacute por meio da

construccedilatildeo de ldquouma articulaccedilatildeo especiacutefica entre certas dimensotildees lsquoespaciaisrsquo e outras

lsquoculturaisrsquordquo Poreacutem eacute necessaacuterio pensar as praacuteticas espaciais desses grupos sociais

sem pressupor ndash como parece mais palataacutevel e administraacutevel pela loacutegica estatal ndash que

eles estejam ldquoa priori (ou a posteriori) destinados ou lsquocondenadosrsquo a se enraizar num

pedaccedilo de solo qualquerrdquo (GUEDES 2013b p 53-56) Portanto

Faz-se necessaacuterio entatildeo contextualizar historicamente as ideias de ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo bem como destacar a contingecircncia da associaccedilatildeo existente entre elas em razatildeo da crescente popularidade de certas narrativas que certamente imbuiacutedas de propoacutesitos criacuteticos e poliacuteticos simpaacuteticos agrave causa das comunidades tradicionais inadvertidamente naturalizam o ldquoenraizamentordquo de tais grupos (GUEDES 2013b p 54)

A naturalizaccedilatildeo do enraizamento dos grupos quilombolas consiste em uma

ldquoidealizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ldquopreacute-desterritorializaccedilatildeordquo esta uacuteltima implicitamente

sugerindo uma estabilidade ldquoterritorializadardquo destes grupos na terra que no contexto

brasileiro eacute antes a exceccedilatildeo do que a regrardquo (GUEDES 2013b p 55) Tal

interpretaccedilatildeo desconsidera no caso da formaccedilatildeo de grupos quilombolas o histoacuterico

de intensa movimentaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra nas deacutecadas poacutes-aboliccedilatildeo em busca

de terras para sua reproduccedilatildeo como campesinato autocircnomo Deste modo o

deslocamento de famiacutelias negras para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente ndash como

GuaiacuteraPR ndash aparece como estrateacutegia de garantia de liberdade sempre ameaccediladas

pelo padratildeo de relaccedilotildees entre brancos e negros em regiotildees com um histoacuterico antigo

e consolidado de escravidatildeo (LIMA 2000) ndash caso de Minas Gerais Sem essa

consideraccedilatildeo mais ampla e complexa restringe-se a possibilidade de abarcar a

pluralidade de formas e contextos nos quais ocorreram a constituiccedilatildeo de territoacuterios

negros e as articulaccedilotildees identitaacuterias quilombolas no Brasil

A ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo por exemplo leva o

nome do patriarca da famiacutelia que liderou o processo de saiacuteda de Minas Gerais

17

chegada e consolidaccedilatildeo do grupo no Paranaacute Esta histoacuteria de deslocamentos implicou

em dificuldades natildeo soacute para a manutenccedilatildeo do contato entre parentes que se

dispersaram como tambeacutem para a reproduccedilatildeo intergeracional da memoacuteria coletiva

Um dos principais desafios dos membros da comunidade passava pela necessidade

de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria coletiva que precisava ser reinterpretada agrave luz da

autoidentificaccedilatildeo como quilombolas O aumento do ciacuterculo de interaccedilatildeo do grupo com

agentes externos e a consequente influecircncia que este processo passou a ter em sua

autoimagem tornava necessaacuteria a construccedilatildeo de um novo lugar de legitimidade para

a sua histoacuteria na medida em que esta se transformava em ldquoprinciacutepio de justificaccedilatildeo

das demandas do presenterdquo (MELLO 2012 p 20) A construccedilatildeo de uma imagem de

si como quilombolas fez surgir entatildeo a necessidade de organizar ldquouma memoacuteria

linear e coerente sobre suas lsquoorigensrsquordquo (ARRUTI 2001 p 243) o que antes natildeo

aparecia como uma questatildeo a ser elaborada de forma sistemaacutetica por essas famiacutelias

No entanto a resposta a esta demanda esbarrou na ausecircncia dos parentes mais

velhos que viveram em Minas pois jaacute haviam falecido ou saiacutedo de GuaiacuteraPR

Esta necessidade de acessar a memoacuteria atraveacutes dos mais velhos e assim

subsidiar as suas narrativas em acircmbito oficial reconhecida pelos(as) proacuteprios(as)

quilombolas intensificou-se diante do questionamento levantado pelo primeiro

relatoacuterio antropoloacutegico9 publicado em 2010 e produzido no acircmbito do procedimento

do INCRA A trajetoacuteria de movimento do grupo foi em um primeiro momento lida

como obstaacuteculo para o reconhecimento puacuteblico de sua autoidentificaccedilatildeo Com o

transcorrer do processo de reconhecimento cada vez mais a busca pela nossa

histoacuteria e o desejo de retomar o contato com os parentes que permaneceram em MG

passam a ser um objetivo principalmente da lideranccedila do grupo Adir e tambeacutem uma

demanda de legitimaccedilatildeo identitaacuteria no contexto mais amplo Isso porque as memoacuterias

do grupo sobre a regiatildeo de origem e os processos de deslocamento que constituiacuteram

sua trajetoacuteria no seacuteculo XX mesmo que acessadas de modo indireto pelos que vivem

9 Como mencionado acima foram realizados dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do Procedimento

Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos que tramita na Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro relatoacuterio realizado levantou questionamentos ao negar a legitimidade da autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombola e de sua trajetoacuteria histoacuterica especiacutefica tendo em vista a natildeo ancestralidade de ocupaccedilatildeo do territoacuterio e a inexistecircncia de registros de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR Este primeiro relatoacuterio foi anulado pelo INCRA bem como foi rejeitado pelos quilombolas Estas questotildees referentes agrave produccedilatildeo dos relatoacuterios seratildeo aprofundadas no capiacutetulo 2

18

hoje na comunidade em Guaiacutera constituiacuteam o eixo da reivindicaccedilatildeo de uma

identidade quilombola

Tendo em vista a natildeo aprovaccedilatildeo do primeiro relatoacuterio eacute soacute a partir do

segundo estudo publicado em 2012 que a identidade quilombola do grupo seraacute

reconhecida e sustentada teoacuterica e etnograficamente Com este estudo a anaacutelise natildeo

seraacute mais baseada em interpretaccedilotildees substancializadas por meio de estereoacutetipos e

substratos culturais Neste debate travado dentro do procedimento administrativo do

INCRA a especificidade da experiecircncia histoacuterica da trajetoacuteria de movimento destas

famiacutelias negras foi uma questatildeo central para ambos os relatoacuterios antropoloacutegicos No

entanto as anaacutelises foram opostas o primeiro entendeu que a identidade do grupo

quilombola natildeo era legiacutetima e estava sendo forjada enquanto o segundo afirmou que

o processo de migraccedilatildeo consistia em mecanismo de resistecircncia agrave experiecircncia de

opressatildeo histoacuterica sofrida

A reivindicaccedilatildeo territorial do grupo no acircmbito deste procedimento

administrativo eacute a ampliaccedilatildeo do que restou da aacuterea que adquiriram em GuaiacuteraPR

por meio de anos de trabalho 85 alqueires onde vivem atualmente em meacutedia vinte

e cinco pessoas (sete famiacutelias)10 A conquista desta aacuterea possibilitou a manutenccedilatildeo

da coesatildeo e da identidade dos grupos familiares que haviam se deslocado de Minas

Gerais Importante ressaltar neste sentido que o acesso agrave terra eacute um instrumento

fundamental para a reproduccedilatildeo fiacutesica econocircmica social e cultural do grupo de modo

que seja viaacutevel a manutenccedilatildeo de uma forma de vida especiacutefica Apesar de poucos

moradores efetivos atualmente na aacuterea a reinvindicaccedilatildeo pela ampliaccedilatildeo territorial eacute

estimada a partir da amplitude de moradores potenciais pois contempla

principalmente a expectativa de retorno de familiares que moraram em GuaiacuteraPR

mas que em algum momento tiveram que se deslocar novamente

Tomando o tema do movimento como eixo desta dissertaccedilatildeo a histoacuteria do

grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos seraacute pensada atraveacutes de uma linha que

desenha o caminhar constitutivo da identidade do grupo (INGOLD 2007) Esta linha

os conecta segundo suas narrativas apontam desde Minas Gerais no tempo da

escravidatildeo ateacute Guaiacutera no presente e segue se ramificando no movimento das

famiacutelias que continuaram se deslocando A opccedilatildeo deste recorte temaacutetico eacute fruto de

10 Este nuacutemero variou durante o periacuteodo de trabalho de campo apontando para a continuidade das dinacircmicas de movimento

19

uma sistematizaccedilatildeo que se demonstrou coerente com base na etnografia realizada e

que retrata uma escolha de anaacutelise como autora mas que principalmente emerge

no processo dialoacutegico com os sujeitos de pesquisa

i ndash Estrutura dos capiacutetulos

No primeiro capiacutetulo ldquoIdentidade em movimentordquo busco analisar como os

processos de deslocamento vivenciados por essas famiacutelias no sentido MG↦SP↦PR

satildeo por elas articulados em termos de dinacircmicas constitutivas da resistecircncia

quilombola uma vez que as experiecircncias de fixaccedilatildeo remetem sobretudo agrave exclusatildeo

social e a relaccedilotildees de preconceito racial Busco refletir sobre como os membros do

grupo de Guaiacutera sentem-se fortemente vinculados e unidos por meio das memoacuterias

construiacutedas sobre a origem mineira e sobre a trajetoacuteria de deslocamentos O sentido

de unidade criado por estas famiacutelias eacute tambeacutem consequecircncia de sua inserccedilatildeo em

Guaiacutera em um contexto considerado por eles como adverso tendo em vista que o

municiacutepio foi colonizado por descendentes de europeus a partir de um vieacutes

modernizador sendo atualmente marcado pelos interesses do agronegoacutecio

Situaccedilotildees de discriminaccedilatildeo racial satildeo constantemente relatadas pelos quilombolas na

interaccedilatildeo com os italianos e alematildees proprietaacuterios vizinhos no bairro rural onde se

localiza a comunidade

O acionamento da identidade quilombola os faz reforccedilar a importacircncia das

narrativas de memoacuteria sobre a regiatildeo de origem do grupo em Minas Gerais o

municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute bem como sobre a chegada das famiacutelias em

GuaiacuteraPR Satildeo memoacuterias elaboradas a partir de um sentimento de continuidade

expresso na ecircnfase atribuiacuteda agraves dificuldades de sobrevivecircncia e agrave busca pela

superaccedilatildeo do sofrimento Esta experiecircncia de estigmatizaccedilatildeo social e racial passa a

ser positivada internamente atraveacutes do autorreconhecimento como quilombolas o

qual cria uma ruptura com a experiecircncia de silenciamento anterior A inserccedilatildeo no

movimento quilombola fez com que o grupo se colocasse em uma nova rede de

relaccedilotildees com agentes externos Adir na posiccedilatildeo de presidente da Associaccedilatildeo

Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) passou a realizar

viagens para encontros e debates sobre a temaacutetica quilombola o que o construiu

como lideranccedila e abriu espaccedilo para o pronunciamento puacuteblico sobre a proacutepria histoacuteria

20

e identidade A possibilidade destas viagens como a que foi realizada por Adir para

Brasiacutelia no Distrito Federal em novembro de 2014 na qual o acompanhei coloca-os

novamente em movimento agora de circulaccedilatildeo em acircmbito poliacutetico

A religiosidade do grupo tambeacutem seraacute abordada no primeiro capiacutetulo na

medida em que eacute permeada por dinacircmicas de movimento (a) deslocamentos

concretos como as viagens religiosas de pagamentos de promessas a saiacuteda de

Manoel Ciriaco de Minas Gerais depois de ter sido viacutetima de agressatildeo maacutegica e a

saiacuteda do filho de Manoel Ciriaco Antocircnio do siacutetio em GuaiacuteraPR para ir morar na

cidade por conta do preconceito religioso que sofriam no bairro rural ldquoMaracaju dos

Gauacutechosrdquo e (b) movimentos natildeo concretos como praacuteticas de devoccedilatildeo cotidianas que

os colocam em relaccedilatildeo com santos Orixaacutes entidades espiacuteritos almas abrindo

assim a possibilidade de se deslocarem entre mundos conectando tempos espaccedilos

linguagens possibilitando curas e orientaccedilotildees etc Aleacutem disso a religiosidade aponta

para dinacircmicas de continuidade marcadas pelas imbricaccedilotildees entre um catolicismo

negro e experiecircncias proacuteprias do universo da umbanda Nas narrativas sobre este

tema tambeacutem eacute possiacutevel perceber a convergecircncia entre as dimensotildees religiosa racial

e social considerando que as praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras satildeo natildeo soacute

desvalorizadas mas socialmente condenadas Esta dimensatildeo cultural religiosa ndash que

os conecta com sua origem mineira ndash tende a natildeo ser enfatizada publicamente pelos

membros da comunidade como um sinal diacriacutetico opccedilatildeo que parece permeada pelo

receio de que isso possa ser usado para reforccedilar um lugar de marginalidade e

estigmatizaccedilatildeo para o grupo

No segundo capiacutetulo ldquoIdentidade quilombola e relatoacuterios antropoloacutegicosrdquo

analiso o novo voacutertice de movimento presente na trajetoacuteria coletiva do grupo que se

consolidou a partir de sua inserccedilatildeo no acircmbito poliacutetico como sujeito de direitos coletivo

o autorreconhecimento como quilombolas A inserccedilatildeo no campo de reivindicaccedilatildeo

como quilombolas colocou-os novamente nos termos de Adir diante de uma longa

caminhada Muitos percalccedilos foram enfrentados no processo de regularizaccedilatildeo

quilombola pelo INCRA ainda em tracircmite tendo em vista os questionamentos

levantados pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido em 2010 Eacute muito faacutecil

iniciar uma conversa de horas com Adir e Joaquim presidente e vice da ACONEMA

a respeito de suas criacuteticas e decepccedilotildees em relaccedilatildeo aos conflitos gerados a partir do

iniacutecio das atividades do INCRA junto agrave comunidade Apesar dos descontentamentos

21

e frustraccedilotildees continuam a alimentar a esperanccedila de uma resoluccedilatildeo futura que lhes

garanta a regularizaccedilatildeo territorial

A pesquisa para elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico ainda em

2009 havia sido liderada pelo professor da Universidade Estadual do Oeste do

Paranaacute (UNIOSTE) Antocircnio Pimentel Pontes Filho o qual questionou a legitimidade

das narrativas quilombolas tomando-as como oportunistas11 O fato de o grupo natildeo

ter uma relaccedilatildeo ancestral com o territoacuterio atual natildeo apresentar informaccedilotildees

consideradas consistentes sobre a existecircncia de ancestrais escravizados e natildeo se

adequar ao modelo de quilombo tiacutepico foi considerado como criteacuterio para negar a

legitimidade da identidade quilombola de modo que foram entendidos ldquoapenasrdquo como

um grupo de trabalhadores rurais negros O primeiro relatoacuterio ndash apoacutes pedidos de

alteraccedilotildees solicitados pelo INCRA mas desconsiderados pelo antropoacutelogo

responsaacutevel ndash foi rejeitado tanto pelos quilombolas quanto pelo INCRA O

desencadeamento de conflitos com os gauacutechos proprietaacuterios vizinhos agrave comunidade

quilombola a situaccedilatildeo de isolamento e a perda de relaccedilotildees de trabalho que

mantinham nas propriedades do entorno foram algumas das consequecircncias geradas

pelo iniacutecio do trabalho do INCRA com o grupo a partir da atuaccedilatildeo da primeira equipe

de pesquisadores

Um segundo relatoacuterio foi entatildeo realizado por uma nova equipe em 2012 a

partir da contrataccedilatildeo pelo INCRA via sistema de licitaccedilatildeo puacuteblica (pregatildeo eletrocircnico)

da empresa Terra Ambiental Com a possibilidade de reelaboraccedilatildeo da pesquisa

antropoloacutegica o historiador da segunda equipe de pesquisadores Cassius Cruz

deslocou-se ateacute Minas Gerais a fim de pesquisar sobre as comunidades quilombolas

da regiatildeo de origem do grupo A partir da memoacuteria coletiva indicada pelo grupo em

Guaiacutera12 muitos pontos em comum com as narrativas dos quilombolas da regiatildeo

mineira foram identificados as referecircncias a personagens histoacutericos comuns a

memoacuteria da estrateacutegia de habitaccedilatildeo em lapas de pedra (tipo de moradia construiacuteda

dentro de cavernascasa de pedra) a mobilidade espacial como processo de

formaccedilatildeo de algumas das comunidades quilombolas mineiras a tendecircncia

11 Este mesmo antropoacutelogo em 2014 foi contratado pelos produtores rurais da regiatildeo para fazer um contralaudo em contestaccedilatildeo ao relatoacuterio antropoloacutegico da FUNAI para a demarcaccedilatildeo de uma terra indiacutegena Avaacute-Guarani em GuaiacuteraPR 12 Conforme me esclareceu Cassius Cruz nenhum quilombola pocircde acompanha-lo nesta oportunidade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em Minas Gerais em decorrecircncia de falta de recursos previstos no contrato com o INCRA

22

endogacircmica dos casamentos bem como possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e a Comunidade Quilombola Vila

Nova localizada no municiacutepio de SerroMG O segundo relatoacuterio fundamentou-se

entatildeo na capacidade de manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social do grupo em continuidade

com sua regiatildeo de origem que entre outros fatores geram o sentimento de

pertencimento comum e identificaccedilatildeo como quilombolas Com a aprovaccedilatildeo do 2ordm

relatoacuterio o reconhecimento da legitimidade da identidade do grupo finalmente ganhou

mais forccedila

Por fim esta possibilidade de buscar mais conhecimento sobre a histoacuteria dos

antepassados articulada por meio da pesquisa produzida pelo segundo relatoacuterio

antropoloacutegico impulsionou aos quilombolas de Guaiacutera e a mim junto com Cassius

Cruz ndash que foi por noacutes convidado para essa empreitada ndash a ir ateacute Minas Gerais com

o objetivo de seguir o caminho de volta da trajetoacuteria de deslocamentos dos

antepassados do grupo A pesquisa por noacutes realizada em Minas Gerais eacute o tema

central do terceiro capiacutetulo denominado ldquoEacute como se noacutes voltasse a paacutegina da nossa

vida do comeccedilordquo Foram duas viagens ateacute a regiatildeo mineira realizadas em marccedilo e

em junho de 2015 A pesquisa acabou entatildeo tornando-se uma etnografia nocircmade e

entrelaccedilando-se com a histoacuteria do grupo A linha de movimento deste grupo ateacute

Guaiacutera somada a sua inserccedilatildeo no movimento quilombola gerou assim um impulso

de reaproximaccedilatildeo no qual tambeacutem nos inserimos que pode ser interpretado na chave

tripla de (a) saiacuteda (b) afirmaccedilatildeo identitaacuteria e (c) retorno Esta linha no entanto natildeo

deve ser entendida como se fechando em um movimento circular mas se constituindo

como uma espiral jaacute que natildeo eacute possiacutevel retornar mais ao mesmo lugar de onde se

saiu tendo em vista que este lugar para o qual se quer voltar jaacute se transformou bem

como os sujeitos envolvidos

Assim o esforccedilo de pesquisa natildeo esteve focado na anaacutelise do grupo

quilombola como totalidade autocontida pois buscou compreender os fluxos e

relaccedilotildees que perpassam esta trajetoacuteria de movimento conectando pessoas e

experiecircncias espalhadas por diferentes locais (ARRUTI 2006 p 35) O trabalho de

campo ritual central na antropologia e parte constitutiva do arqueacutetipo do etnoacutegrafo

ganhou dessa forma contornos especiais Permitiu uma abordagem realizada com

23

os sujeitos de pesquisa a partir de sua historicidade13 de modo que a continuidade

dos movimentos empreendidos pelos quilombolas parece demonstrar a presenccedila de

dinacircmicas de distanciamentos e aproximaccedilotildees com a potencialidade de atualizaccedilatildeo

dos viacutenculos e relaccedilotildees mesmo apoacutes muito tempo de interrupccedilatildeo

Para que a viagem ateacute Minas Gerais pudesse atender os propoacutesitos dos

quilombolas de GuaiacuteraPR inclusive de fortalecimento identitaacuterio os irmatildeos Adir (46)

e Geralda (53) filhos de Manoel Ciriaco e tambeacutem lideranccedilas locais sugeriram que

antes de irmos ateacute Santo Antocircnio do ItambeacuteMG deveriacuteamos passar por Presidente

PrudenteSP Este municiacutepio faz parte da regiatildeo para onde desde a deacutecada de 1980

retornaram os seus irmatildeos mais velhos que jaacute haviam morado com seus pais no

municiacutepio proacuteximo em CaiabuSP Com a inclusatildeo de Presidente PrudenteSP em

nosso roteiro de viagem ateacute Minas Gerais iriam assim retraccedilar o caminho de seus

ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) atraveacutes de seu trajeto de deslocamento

realizado nas deacutecadas de 19501960 agora no sentido inverso de GuaiacuteraPR ateacute

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Em Presidente PrudenteSP moram atualmente os quatro irmatildeos mais

velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) que nasceram

em Minas Gerais e acompanharam seu pai na trajetoacuteria de deslocamento ateacute

GuaiacuteraPR e depois nas deacutecadas de 19801990 estabeleceram-se no estado de Satildeo

Paulo regiatildeo na qual jaacute haviam morado entre a deacutecada de 19501960 antes

chegarem no estado do Paranaacute Dentre os irmatildeos Joatildeo Loriano seria a pessoa mais

indicada para nos acompanhar ateacute Minas Gerais conforme me explicaram Adir e

Geralda

Joatildeo Loriano nascido em 1944 foi o uacutenico filho que Manoel Ciriaco havia

deixado em Minas Gerais quando de laacute saiu em 1956 histoacuteria que conheceremos

mais a fundo no terceiro capiacutetulo O menino ficou aos cuidados de sua avoacute Izidora

(matildee de Manoel) que foi quem o criou desde quando tinha um mecircs e sete dias de

vida pois a matildee da crianccedila Maria Olinda primeira esposa de Manoel havia falecido

na sequecircncia de seu nascimento Manoel segundo relatam natildeo teria tido coragem

de levar o menino junto com ele para natildeo o separar de sua avoacute Izidora Em 1981

quando Joatildeo Loriano jaacute tinha 37 anos seu irmatildeo Antocircnio foi ateacute Santo Antocircnio do

13 ldquoAssim a etnografia histoacuterica converge com a chamada microhistoacuteria justamente ao adotar como

procedimento acompanhar o fio de um destino particular e com ele a multiplicidade de espaccedilos de tempos e de relaccedilotildees em que se inscreverdquo (ARRUTI 2006 p 36)

24

ItambeacuteMG e conseguiu lhe achar convidando-o para ir com ele embora para o

Paranaacute Antocircnio entatildeo levou Joatildeo e sua famiacutelia esposa e filhos para GuaiacuteraPR

regiatildeo em que viveram ateacute 1992 quando decidem residir em Presidente PrudenteSP

Sendo Joatildeo o filho de Manoel que mais tempo viveu em MG ele seria afinal de

contas a pessoa que poderia ter mais facilidade para caccedilar os parentes que

permaneceram na regiatildeo mineira e com os quais perderam contato nas uacuteltimas

deacutecadas Seu Joatildeo quando por noacutes interpelado aceitou o convite para nos

acompanhar na viagem com muito entusiasmo depois de trinta e quatro anos que de

laacute havia saiacutedo sem nunca mais ter conseguido retornar

A intensidade das emoccedilotildees despertadas pelos encontros entre parentes que

jaacute natildeo se sabiam mais vivos ou que ainda natildeo se conheciam contagiou a todos

durante nossa estadia em Santo Antocircnio do Itambeacute e no municiacutepio vizinho SerroMG

Isso permitiu conversas e entrevistas que soacute poderiam ter sido geradas neste

entrelaccedilamento de lugares tempos e pessoas instaurando um regime de

temporalidade especial no qual o presente o passado e o futuro destas famiacutelias

ganhavam novos sentidos ndash concomitantemente As circunstacircncias nas quais estes

depoimentos foram produzidos e colhidos permitiam que a cacircmera de viacutedeo ligada a

maior parte do tempo ou mesmo o gravador de voz natildeo causassem estranhamento

agraves pessoas ndash quando tudo o que se passava estava contido em um momento uacutenico

que deveria ser registrado ndash nestes encontros que marcaram a histoacuteria de vida dessas

pessoas bem como a minha e a de Cassius

De alguma forma o futuro da comunidade quilombola em GuaiacuteraPR era o

retorno a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG a esse passado depois de deacutecadas de

interrupccedilatildeo do contato efetivo Este anseio pelo retorno agrave origem que remete a uma

certa busca pela ldquocomprovaccedilatildeordquo do viacutenculo da comunidade com sua ancestralidade

mineira partiu da proacutepria comunidade no bojo de um processo controverso de

regularizaccedilatildeo territorial mas natildeo de uma demanda ou de uma opccedilatildeo teoacuterica da minha

pesquisa Deve-se levar em conta que a autoidentificaccedilatildeo de grupos como

quilombolas natildeo demanda a demonstraccedilatildeo de viacutenculos genealoacutegicos com ancestrais

escravizados como veremos com calma no segundo capiacutetulo Este modo de

25

compreensatildeo construiria um sentido de origem histoacuterica muito limitado que natildeo estaacute

refletido na regulamentaccedilatildeo do Decreto Federal 48872003 em vigor14

A primeira viagem de quinze dias em marccedilo de 2015 oportunizou que os

quilombolas se tornassem pesquisadores e agentes da construccedilatildeo da sua proacutepria

narrativa histoacuterica Enfim o passado pocircde ocupar o importante papel que jaacute lhe era

conferido como quando os quilombolas de Guaiacutera reforccedilam a continuidade e natildeo a

ruptura em suas construccedilotildees discursivas mesmo que tal continuidade fosse

constituiacuteda por meio de dinacircmicas de movimento e mudanccedila Haacute linearidade portanto

mas natildeo aquela da linha reta

Com as oportunidades promovidas pelas viagens novos caminhos se

abriram A irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda que encontramos morando no

municiacutepio de SerroMG aos cuidados de vizinhos decidiu que queria morar perto da

famiacutelia a convite de sua sobrinha filha de Manoel Ciriaco Jovelina que mora

atualmente em Presidente PrudenteSP Esta decisatildeo de Dona Ana Raimunda

mesmo aos oitenta e sete anos eacute significativa para apontar que o movimento das

famiacutelias natildeo implicou em rompimentos definitivos dos viacutenculos como eacute comum na

regiatildeo mineira do ldquoAlto Vale do Jequitinhonhardquo (GALIZONI 2002)15 mesmo cinquenta

e nove anos depois que Manoel saiu de Minas com parte de sua famiacutelia

Eu e Cassius fomos entatildeo em junho trecircs meses depois da primeira viagem

a Minas Gerais em uma raacutepida aventura de quatro dias Nosso objetivo foi

acompanhar D Jovelina (73) para que buscasse sua tia Ana Raimunda no SerroMG

e D Maria das Dores (70) ndash esposa de Seu Joatildeo Loriano que saiu de Santo Antocircnio

do ItambeacuteMG para acompanha-lo em 1982 ndash para rever suas duas irmatildes ndash D

Zulmira (73) e D Regina (77) ndash que tambeacutem encontramos e fizemos contato na

primeira viagem em marccedilo de 2015 A elas eu e Cassius haviacuteamos prometido que

ajudariacuteamos a organizar estes reencontros Por fim realizei mais uma uacuteltima viagem

de campo para Presidente PrudenteSP em agosto de 2015 para entrevistar D Ana

Raimunda depois de dois meses que jaacute estava morando com sua sobrinha D

Jovelina

14 Segundo seu artigo 2o ldquoconsideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos para os

fins deste Decreto os grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo 15 Regiatildeo muito proacutexima a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

26

ii ndash Notas sobre a pesquisa

Importante neste momento finalizada a siacutentese dos temas principais dos

capiacutetulos desta dissertaccedilatildeo refletir sobre como foi a minha entrada em campo as

condiccedilotildees e as escolhas da pesquisa O meu contato com o grupo se iniciou pelo

nuacutecleo de famiacutelias em Guaiacutera trecircs anos antes da presente pesquisa realizada entre

2014 e 2015 Nos anos de 2011 e 2012 atuei como assessora juriacutedica em um setor

especializado em direitos humanos do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute

(MPPR) em decorrecircncia da minha formaccedilatildeo como bacharel em direito Tal setor tinha

como parte de suas atividades a articulaccedilatildeo com as comunidades quilombolas do

estado visando mediar as suas demandas por acesso a direitos junto aos oacutergatildeos

puacuteblicos Tornando-me uma referecircncia enquanto pessoa que trabalha dentro do

Estado junto ao grupo busquei com a pesquisa de mestrado um reposicionamento

em campo saindo da figura de agente estatal que traz a resposta para construir

relaccedilotildees de horizontalidade no conviacutevio cotidiano

Para mim o reposicionamento tambeacutem tinha uma dimensatildeo pessoal jaacute que

eu ainda vivo essa experiecircncia de transiccedilatildeo profissional entre o direito e a

antropologia Um novo caminho que em muito tem enriquecido e desafiado a minha

formaccedilatildeo inicial a qual tambeacutem influenciou na direccedilatildeo dos meus interesses de

pesquisa Tal interesse aparece por exemplo na anaacutelise do processo de

regularizaccedilatildeo territorial quilombola em suas relaccedilotildees com o universo juriacutedico

problematizado especialmente no capiacutetulo 2 Interessante observar neste sentido

que se a identidade do grupo natildeo eacute produzida a partir do Estado por outro lado ela

teraacute que ser modulada com o Estado no processo de reconhecimento enquanto

sujeito poliacutetico e cultural especiacutefico (MARCUS 1991)

Sobre o tema do processo no INCRA as entrevistas selecionadas foram na

maioria realizadas com os homens mais envolvidos com a poliacutetica e a representaccedilatildeo

puacuteblica do grupo A predominacircncia da voz masculina no segundo capiacutetulo natildeo reflete

no entanto a caracteriacutestica da pesquisa em geral Em todos os lugares que a pesquisa

percorreu seja em GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP e Santo Antocircnio do Itambeacute ou

SerroMG enquanto pesquisadora mulher minha inserccedilatildeo se deu pelo universo

feminino o que me possibilitou uma reflexividade muacutetua com essas mulheres

27

quilombolas Por elas fui recebida de modo muito hospitaleiro e natildeo demorei a criar

viacutenculos

Ao fazer da subjetividade um meio de conhecimento a antropologia evidencia

como os ldquodadosrdquo estatildeo prenhes de representaccedilotildees e satildeo a proacutepria anaacutelise

construiacutedos no corte possiacutevel do etnoacutegrafo A reflexatildeo etnograacutefica constroacutei portanto

aquilo que descreve bem como constroacutei o modo de relacionamento que produz o

conhecimento pois natildeo haacute um real que jaacute estaacute laacute no campo O tema e os recortes do

trabalho se delinearam como resultado da construccedilatildeo da proacutepria etnografia por isso

soacute puderam ser definidos no final da pesquisa o que prova que sair a campo vale a

pena (CALAVIA SAEZ 2001 597-599) Essas experiecircncias etnograacuteficas satildeo antes

de tudo experiecircncias de vida perpassadas por relaccedilotildees de afetividade e mediadas

pela compreensatildeo de que a expressatildeo da identidade ganha contornos especiacuteficos

conforme os contextos com os quais o grupo interage (MELLO 2012 p 117)

Em Guaiacutera realizei trabalho de campo por periacuteodos equivalentes em dois locais

(siacutetio e Vila Eletrosul) somando quarenta dias No periacuteodo em que estive no ldquosiacutetiordquo

(como eles mesmos denominam o local onde fica a ldquocomunidaderdquo16) foi importante eu

ter sido hospedada na casa de Joaquim e Eva e natildeo na casa de Adir presidente da

associaccedilatildeo pois isso me possibilitou expandir e aprofundar o contato com outras

pessoas aleacutem da lideranccedila com quem jaacute tinha mais proximidade desde a eacutepoca da

minha atuaccedilatildeo no Ministeacuterio Puacuteblico Eva minha anfitriatilde e suas duas filhas moccedilas

Jaqueline (20) e Janaina (14) foram as minhas principais referecircncias de conviacutevio

Quando natildeo estive no siacutetio fiquei hospedada na casa do casal Geralda e

Guaraacute (apelido de Antocircnio) em uma vila localizada na periferia de Guaiacutera

denominada Vila Eletrosul A casa de Geralda tem um importante papel para seus

irmatildeos que moram no siacutetio quando eles precisam resolver questotildees na cidade Deste

modo minha estadia na Vila Eletrosul me permitiu visualizar as dinacircmicas de

interaccedilatildeo entre urbano e rural o contexto perifeacuterico do municiacutepio de Guaiacutera aleacutem de

me aprofundar na religiosidade umbandista jaacute que Geralda e Guaraacute satildeo os dois

membros do grupo que efetivamente participam de um terreiro de Umbanda

localizado no municiacutepio vizinho Terra Roxa Ademais Geralda eacute benzedeira e

16 Deve-se levar em conta a criacutetica em relaccedilatildeo ao fato de que o termo aciona ldquoum estereoacutetipo de comunidade relativamente igualitaacuteria harmocircnica coesa solidaacuteria com projetos poliacuteticos comuns (em siacutentese uma visatildeo romacircntica ndash e pode-se dizer cristatilde ndash de comunidade)rdquo (PORTO 2012 41) Atualmente este termo se tornou um conceito ecircmico

28

mobiliza uma forte rede de reciprocidade com seus vizinhos sendo um referencial

local de sabedoria conselhos e cura

Joaquim (55) Geralda (52) Adir (45) e Joatildeo Aparecido (42) satildeo irmatildeos filhos

de Manoel Ciriaco dos Santos e sua segunda esposa Ana Rodrigues dos Santos o

casal fundador da comunidade em Guaiacutera hoje jaacute falecidos Estes quatro irmatildeos tecircm

um importante papel na manutenccedilatildeo do grupo quilombola atualmente satildeo os dentre

os herdeiros do ldquoVelho Maneacuterdquo os que permaneceram na propriedade que foi

comprada por ele (e no caso de Geralda moradora da periferia do mesmo municiacutepio

que permanece com viacutenculos cotidianos com a famiacutelia) Destes quatro irmatildeos os trecircs

homens moram no siacutetio e tocam a produccedilatildeo da horta e outros plantios aleacutem da criaccedilatildeo

de pequenos animais estando diretamente engajados no projeto de manutenccedilatildeo da

comunidade quilombola com a geraccedilatildeo de renda no proacuteprio territoacuterio e com o

processo de titulaccedilatildeo no INCRA Outro nuacutecleo familiar que permanece na comunidade

satildeo os trecircs filhos (com seus cocircnjuges e filhos) e a viuacuteva de Joseacute Maria (irmatildeo mais

velho de Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido) que faleceu em 2009 durante os

conflitos da comunidade com os vizinhos gauacutechos Mais duas famiacutelias durante o

periacuteodo que estive fazendo trabalho de campo na comunidade eram de agregados

ao nuacutecleo familiar por meio do casamento entre Adir e Solange Jaqueline ndash enteada

de Adir que mora com seus trecircs filhos pequenos ndash e D Luzia sogra de Adir com o

marido e um de seus netos

Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula por exemplo preferiu se separar da esposa

que se mudou para Presidente PrudenteSP Kelly com os dois filhos do casal em

busca de trabalho do que ir com ela e deixar a comunidade Sobre esta possibilidade

Joatildeo Aparecido comentou o seguinte

Esta luta aqui natildeo daacute pra deixar o Adir e o Joaquim Essa luta que noacutes viemos hoje abandonar assim tambeacutem natildeo daacute neacute Dandara Falei ldquodeixar eles Natildeo natildeo vira natildeo noacutes comeccedilamos noacutes temos que ir ateacute o final e meu pai sofreu muito pra comprar esse pedacinho de chatildeo aquirdquo Aiacute eu falei assim ldquocomeccedila a sair um sair o outro daqui uns dias aiacute acabou a comunidaderdquo

Estes quatro irmatildeos filhos de Manoel Ciriaco ndash que continuaram morando na

comunidade em GuaiacuteraPR ndash mantecircm contato por telefone celular aleacutem de algumas

visitas esparsas com seus quatro irmatildeos mais velhos que moram em Presidente

PrudenteSP como citado acima Laacute eles tecircm mais uma irmatilde tambeacutem filha de Manoel

e Ana Eurides (64) e aleacutem dos trecircs irmatildeos que satildeo filhos do primeiro casamento de

29

Manoel Ciriaco dos Santos com Maria Olinda Olegaacuterio (79) Jovelina (74) e Joatildeo

Loriano (71) Os quatro irmatildeos que moram no municiacutepio paulista satildeo nascidos em

Minas Gerais Santo Antocircnio do Itambeacute antes de seu pai decidir sair de sua terra natal

e iniciar uma trajetoacuteria de deslocamentos

Para aleacutem do trabalho de campo em Guaiacutera o processo de mapeamento

desta rede de parentesco realizado por meio de duas viagens a Minas Gerais foi fruto

da minha parceria de pesquisa com Cassius Cruz Ele doutorando em ciecircncias sociais

na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ndash aleacutem de ter participado da

produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico publicado em 2012 ndash neste momento

pesquisa em sua tese o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco

quilombola Com a confluecircncia dos temas de pesquisa e o seu compromisso pessoal

de se aprofundar no estudo por ele realizado anteriormente em Minas Gerais sobre a

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Cassius se interessou em somar

esforccedilos para viabilizar que os proacuteprios quilombolas pudessem ir em busca de seus

parentes e assim realizar o objetivo do grupo de compreender melhor a trajetoacuteria de

seus antepassados

O fato no entanto das viagens para Minas Gerais soacute terem se concretizado

em marccedilo e junho de 2015 apoacutes a minha banca de qualificaccedilatildeo fez com que natildeo

fosse possiacutevel o aprofundamento necessaacuterio diante da riqueza do material de

pesquisa coletado e da intensidade das experiecircncias que este trabalho de campo me

proporcionou o que tambeacutem demanda uma maturaccedilatildeo para a posterior reflexatildeo

atraveacutes da escrita Assim de um uacuteltimo capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo acredito que este

material possa vir a se transformar no iniacutecio de uma nova pesquisa que poderaacute ser

desdobrada posteriormente e que me permitiraacute a atenccedilatildeo e o cuidado que esta

experiecircncia de trabalho de campo merece

Enfim a escrita desta dissertaccedilatildeo colocou-me diante do desafio de lidar com

o intervalo entre a pesquisa etnograacutefica e o texto antropoloacutegico o que confirma a

dimensatildeo parcial da anaacutelise e o caraacuteter inesgotaacutevel da experiecircncia Importante

ressaltar neste sentido a desconstruccedilatildeo de um lugar de objetividade na teoria

antropoloacutegica para reconhecer o texto como uma anaacutelise perspectiva relacional e

contextual17 A partir da experiecircncia deste grupo quilombola busco analisar nas

17 A criacutetica de Geertz por exemplo direciona-se a certas estrateacutegias de escrita em que o antropoacutelogo

natildeo se coloca no texto ndash ao construiacute-lo como se sua experiecircncia pudesse ser transposta em uma ldquojanela de cristalrdquo revelando supostamente o mundo laacute fora como ele ldquorealmente eacuterdquo Tal estrateacutegia buscaria

30

paacuteginas que seguem como a construccedilatildeo de um ldquonoacutes quilombolasrdquo neste caso

especiacutefico aponta para dinacircmicas de movimento que natildeo dissolvem mas ao

contraacuterio sustentam o pertencimento coletivo

credibilidade em relaccedilatildeo a questionamentos fundados em paracircmetros objetivistas pautados em criteacuterios das ciecircncias exatas mas para Geertz a antropologia estaria muito mais proacutexima dos ldquodiscursos literaacuteriosrdquo do que dos ldquocientiacuteficosrdquo (GEERTZ 2009)

31

1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO

11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacute E GUAIacuteRA DOIS PONTOS DE UMA LINHA

O percurso de deslocamento das famiacutelias negras em questatildeo pode ser

pensado como uma linha que conecta Santo Antocircnio do ItambeacuteMG agrave GuaiacuteraPR

distantes aproximadamente mil e seiscentos quilocircmetros O conceito de ldquolinhardquo aqui

trazido tem inspiraccedilatildeo nas contribuiccedilotildees do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold como

seraacute melhor abordado no item 12 O que eacute importante retermos por enquanto eacute que

a ideia de linha aqui natildeo remete a uma reta mas a uma trajetoacuteria de movimento que

tem uma dinacircmica e um traccedilado especiacuteficos

Em seu livro Lines a brief history o autor se propotildee a realizar uma

ldquoantropologia comparativa da linhardquo e delinear um campo de reflexatildeo que aglutina

aspectos das atividades humanas cotidianas como falar gesticular e caminhar ndash

subsumidos pela caracteriacutestica comum de geraccedilatildeo de linhas (INGOLD 2007) A partir

do caminhar o deslocamento constitui uma linha que pode ser tanto aquela que

descobre o seu percurso enquanto o caminho eacute percorrido ndash ou seja uma jornada que

natildeo tem um comeccedilo ou um fim oacutebvios ndash em contraste com um outro tipo de linha a

linha reta ndash que faz a conexatildeo entre pontos e que estaacute fragmentada em destinaccedilotildees

sucessivas preacute-determinadas como uma sequecircncia de compromissos

assemelhando-se a um mapa de rota onde se vecirc tudo de uma vez (2007 p 72-103)

No caso do grupo em questatildeo a trajetoacuteria de deslocamento estaacute muito mais proacutexima

da primeira caracterizaccedilatildeo de linha como jornada na qual o movimento se desenvolve

como processo de descoberta e de interaccedilatildeo como no caminho de Minas Gerais ateacute

o Paranaacute passando antes pelo estado de Satildeo Paulo

Eacute em GuaiacuteraPR que parte de um grupo maior de parentes ndash composto por

unidades familiares que estatildeo espalhadas por todo canto ndash passou a se reconhecer

como quilombola e a refletir sobre sua proacutepria trajetoacuteria histoacuterica Alguns dados

estatiacutesticos nos ajudam a compreender o perfil atual de GuaiacuteraPR e a histoacuteria da

inserccedilatildeo do grupo quilombola neste municiacutepio De acordo com o uacuteltimo censo de 2010

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Guaiacutera tem uma populaccedilatildeo

32

de 30704 pessoas18 Do total 28206 habitantes estatildeo na aacuterea urbana ou seja 92

da populaccedilatildeo e apenas 2498 8 na aacuterea rural (IPARDES 2013 p10) Em termos

raciais19 apenas 269 (828 pessoas) da populaccedilatildeo se declarou como ldquopretardquo

3658 (11233 pessoas) como ldquopardardquo 166 (512 pessoas) como ldquoindiacutegenardquo e

217 (669 pessoas) como ldquoamarelardquo A predominacircncia da populaccedilatildeo que se declarou

ldquobrancardquo que representa quase 57 do total (17462 pessoas) aponta para a poliacutetica

de colonizaccedilatildeo e povoamento ocorrido no iniacutecio do seacuteculo XX marcado pelo estiacutemulo

agrave vinda de colonos da regiatildeo sul principalmente descendentes de italianos e alematildees

FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o Mato Grosso do Sul FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 718 [p 25]

A expansatildeo dos colonos e das colonizadoras gauacutechas em direccedilatildeo agrave Guaiacutera

ocorreu a partir da deacutecada de 1930 ndash viabilizada como poliacutetica de Estado ndash sob o

slogan de ldquoMarcha para o Oesterdquo Este estiacutemulo estatal veio com o entatildeo Presidente

da Repuacuteblica Getuacutelio Vargas que tomou como base a ideia de ldquovazio demograacuteficordquo e

a referecircncia ao ldquoespiacuterito do bandeiranterdquo Tal poliacutetica tinha como um de seus objetivos

a nacionalizaccedilatildeo da chamada ldquofronteira guaranirdquo (regiatildeo fronteiriccedila entre Brasil

Paraguai e Argentina) que estava ainda dominada pelos interesses estrangeiros por

18 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 140115 19 Dados sobre Populaccedilatildeo Censitaacuteria - Cor Raccedila disponiacuteveis em httpwwwipardesprgovbrimpindexphp Acesso em 140115 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=410880ampidtema=91ampsearch=parana|guaira|censo-demografico-2010-resultados-da-amostra-religiao- Acesso em 20022015

33

meio do sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate desenvolvido na regiatildeo entre o final do

seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX20

Esta poliacutetica de colonizaccedilatildeo significou o avanccedilo sobre o territoacuterio da

populaccedilatildeo nativa da etnia Guarani que jaacute tinha sido submetida desde o seacuteculo XVI

agraves reduccedilotildees jesuiacuteticas21 ao processo de miscigenaccedilatildeo e ao trabalho escravo nas

obrages O povoamento da regiatildeo no seacuteculo XX reforccedilou assim o processo de

desterritorializaccedilatildeo desta populaccedilatildeo cujos desdobramentos se refletem nos conflitos

entre os proprietaacuterios do municiacutepio e o povo indiacutegena autodenominado ldquoAvaacute-guaranirdquo22

que vieram agrave tona no iniacutecio do seacuteculo XXI Nos uacuteltimos anos houve um processo de

forte mobilizaccedilatildeo e retorno desta populaccedilatildeo agrave Guaiacutera e ao municiacutepio vizinho Terra

Roxa com o objetivo de reivindicar a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio guarani na regiatildeo

Como eacute possiacutevel observar no censo de 2010 ao qual fizemos referecircncia

acima 166 da populaccedilatildeo guairense (512 pessoas) se declarou ldquoindiacutegenardquo o que

aponta para este processo de reorganizaccedilatildeo das famiacutelias ldquoavaacute-guaranirdquo Desde o final

dos anos 1980 tais famiacutelias passam a ldquose reagrupar e organizar novamente em

aldeamentos os tekoha em busca de reconstituir o espaccedilo onde eacute possiacutevel viver

segundo o modo de ser guaranirdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)23

20 As obrages foram um sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate e madeira tiacutepico da regiatildeo entatildeo

dominada por interesses hispano-platinos que utilizou o trabalho escravo da populaccedilatildeo nativa guarani Tais empreendimentos se beneficiavam do isolamento estrateacutegico da regiatildeo o que evitava a possibilidade de questionamento da violecircncia na qual se dava o modo de exploraccedilatildeo do trabalho Neste contexto a Companhia Mate Laranjeira exercia importante papel econocircmico e eacute considerada como a fundadora do distrito de Guaiacutera em 1902 que se torna sua sede Neste distrito a empresa construiu um porto por meio do qual escoava os sacos de erva-mate e as toras de madeira extraiacutedas (WACHOWICZ 1987 p 52 141) 21 O histoacuterico de colonizaccedilatildeo do municiacutepio de Guaiacutera remonta ao seacuteculo XVI quando a regiatildeo do antigo

ldquoGuairaacuterdquo jaacute era alvo do interesse dos colonizadores Entre 1608 e 1767 foram fundadas na regiatildeo mais de uma dezena de reduccedilotildees jesuiacuteticas sendo uma das mais importantes a ldquoCiudad Real del Guayraacuterdquo criada em 1554 Em 1600 ldquoas autoridades administrativas espanholas sediadas em Assunccedilatildeo acham por bem transformar a Ciudad Real em sede da Proviacutencia de Guairaacute () Eacute atraveacutes da Proviacutencia del Guairaacute e pela atividade missioneira dos jesuiacutetas que a Coroa espanhola amplia a sua presenccedila e o seu campo de atuaccedilatildeo no atual Oeste paranaenserdquo (COLODEL 2008 p 38) Nesta localidade atualmente estaacute localizado o municiacutepio de Terra Roxa vizinho ao municiacutepio de Guaiacutera 22 A estimativa atual da lideranccedila Guarani cacique Ilson Soares conforme me relatou eacute que em torno

de mil guaranis residem na regiatildeo de Guaiacutera e Terra Roxa 23 ldquoDesta forma no final dos anos 1990 intensifica-se o processo de judicializaccedilatildeo das ocupaccedilotildees

indiacutegenas inicialmente com accedilotildees movidas pela Itaipu seguida de inuacutemeros pleitos movidos por particulares que passam a reivindicar a posse das aacutereas indiacutegenas as quais possuem tiacutetulos registrados nos cartoacuterios municipais A intervenccedilatildeo intensa do Ministeacuterio Puacuteblico Federal para a promoccedilatildeo dos direitos coletivos dos iacutendios acaba por repercutir em decisotildees judiciais favoraacuteveis agrave permanecircncia dos aldeamentos indiacutegenas em algumas aacutereas Aleacutem disso as sentenccedilas determinaram agrave Uniatildeo e agrave FUNAI que promovessem os estudos necessaacuterios para identificaccedilatildeo e delimitaccedilatildeo das terras de ocupaccedilatildeo tradicional Avaacute-Guarani na regiatildeo deflagrando processos que ainda se encontram em tracircmite no acircmbito da Fundaccedilatildeordquo rdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)

34

FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa FONTE Projeto de pesquisa ldquoA questatildeo indiacutegena no oeste do Paranaacute e a reconstruccedilatildeo do territoacuterio Avaacute-Guaranirdquo24 (2014) (Grifos meus)

24 O Projeto eacute apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPQ) e desenvolvido no curso de Direito da PUC-PR O mapa foi elaborado com base nos dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Violaccedilotildees dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paranaacute (1946-1988) Subsiacutedios para a Comissatildeo Nacional da Verdade Ver httpbdtrabalhoindigenistaorgbrdocumentoviolaC3A7C3B5es-dos-direitos-humanos-e-territoriais-dos-guarani-no-oeste-do-paranC3A1-1946-1988-sub Acesso em 07 de janeiro de 2015

35

No mapa apresentado estatildeo identificadas as localizaccedilotildees das tekoha

existentes nos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa bem como a presenccedila da

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos destacada no canto esquerdo

inferior do mapa No atual contexto de reivindicaccedilatildeo territorial tanto por indiacutegenas

como por quilombolas em Guaiacutera os proprietaacuterios rurais da regiatildeo tecircm se articulado

e promovido fortes reaccedilotildees em forma de protestos e de articulaccedilotildees poliacuteticas para se

oporem a essas reivindicaccedilotildees Deve-se ter em conta para compreender esta

mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais25 que ldquoa demarcaccedilatildeo de territoacuterios e o

reconhecimento de identidades tradicionais satildeo uma forma de resistecircncia mais eficaz

e imediata agraves lsquoagroestrateacutegiasrsquo do que outras modalidades de luta e reivindicaccedilatildeo

fundiaacuteriasrdquo (GUEDES 2013b p 43)

A forccedila destes atores organizados localmente tambeacutem por meio do Sindicato

Rural patronal deve-se ao perfil econocircmico do municiacutepio estruturado na produccedilatildeo de

ldquocommoditiesrdquo para exportaccedilatildeo A topografia plana e a boas condiccedilotildees de fertilidade

do solo possibilitaram o forte desenvolvimento do agronegoacutecio na regiatildeo com o

processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura26 Deste modo a regiatildeo oeste do Paranaacute

apresenta atualmente intensa atividade do agronegoacutecio o que fez com que o preccedilo

da terra aumentasse muito nos uacuteltimos anos um alqueire na regiatildeo jaacute estaacute valendo

em meacutedia cem mil reais Esta valorizaccedilatildeo do preccedilo da terra eacute percebida de forma

expressiva pelos membros da comunidade quilombola Em 2003 depois de dez anos

que os trecircs irmatildeos mais velhos Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano saiacuteram da

comunidade para morar em Presidente PrudenteSP quando resolveram vender 15

alqueires da aacuterea adquirida por seu pai conseguiram o valor equivalente a dezoito mil

reais por alqueire Conforme relato do filho caccedilula do segundo casamento de Manoel

Joatildeo Aparecido em seis meses o preccedilo do alqueire jaacute tinha subido para o equivalente

a cinquenta mil reais de modo que seus irmatildeos demonstram arrependimento por

terem vendido a aacuterea que lhes cabia da heranccedila por um valor tatildeo baixo

Segundo dados do IBGE referentes agrave produccedilatildeo agriacutecola municipal de Guaiacutera

em 2013 as trecircs principais culturas foram o milho (182470 toneladas) depois a soja

25 Esta articulaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais tem ocorrido em Guaiacutera e no estado do Mato Grosso do

Sul por exemplo por meio da ldquoOrganizaccedilatildeo Nacional de Garantia do Direito de Propriedaderdquo 26 Conforme informaccedilotildees trazidas pelo antropoacutelogo da FUNAI Diogo Oliveira no I Congresso ldquoA questatildeo indiacutegena no Oeste do Paranaacute e a Reconstruccedilatildeo do Territoacuterio Guaranirdquo realizado em novembro de 2014 em Foz do Iguaccedilu 80 das terras de Guaiacutera em extensatildeo (natildeo em nuacutemero) pertencem a grandes proprietaacuterios rurais e em 90 das terras agricultaacuteveis planta-se milho e soja

36

(110425 toneladas) e por uacuteltimo o trigo (990 toneladas)27 Por outro lado diante deste

cenaacuterio adverso agrave efetivaccedilatildeo de direitos territoriais Avaacutes-Guarani e quilombolas tecircm

se fortalecido de modo articulado por meio do contato gerado entre as lideranccedilas no

acircmbito do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA) 28 com visitas frequentes dos

quilombolas nas aldeias indiacutegenas para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos Neste

cenaacuterio tais grupos sociais tentam colocar na agenda puacuteblica dominada pelos

interesses hegemocircnicos do agronegoacutecio importantes debates e disputas a partir de

outras loacutegicas de uso e de relaccedilatildeo com a terra29

O contexto de Guaiacutera eacute visto como adverso pelos quilombolas ao reforccedilar um

discurso regional predominante que vecirc o agronegoacutecio como expressatildeo do

desenvolvimentordquo e da ldquoevoluccedilatildeordquo e que desloca por conseguinte indiacutegenas e

quilombolas para o passado por meio do que pode ser qualificado como um

ldquorebaixamento diacrocircnico do outrordquo estabelecendo uma sinoniacutemia entre diferenccedila e

distacircncia temporal (FABIAN 2013) Vaacuterias vezes comentaram que na regiatildeo Sul do

Brasil existe muito mais discriminaccedilatildeo contra negros do que na regiatildeo de onde satildeo

provenientes jaacute que laacute a expressividade da populaccedilatildeo negra eacute muito maior Esta

perspectiva por eles articulada pode ser entendida em relaccedilatildeo ao processo de

consolidaccedilatildeo da imagem de um Paranaacute eminentemente europeu pelas diversas

esferas do poder e da sociedade paranaense que tende a negar o reconhecimento

27 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 20022015 Outra comunidade quilombola que enfrenta um contexto de grande impacto do agronegoacutecio no Paranaacute (centro-sul) eacute a Comunidade Paiol de Telha (HARTUNG 2004) 28 O PAA consiste em um programa do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social (MDS) criado em 2003 a partir do Programa Fome Zero Por meio desta poliacutetica puacuteblica oacutergatildeos estatais puderam adquirir com dispensa de licitaccedilatildeo produtos da agricultura familiar e doaacute-los para grupos em situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar No caso de Guaiacutera os quilombolas por meio de contrato com a Secretaria de Trabalho e Economia Solidaacuteria (SETS) atuam como produtores dos alimentos e entregam essas doaccedilotildees diretamente agraves aldeias indiacutegenas de Guaiacutera e Terra Roxa 29 Este estreito contato parece ser decorrente do ldquoefeito provaacutevel de certos mecanismos histoacutericos

comuns de repressatildeo controle e territorializaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 32) Ademais tanto no caso dos indiacutegenas da etnia Guarani como no caso dos quilombolas de Guaiacutera a presenccedila do histoacuterico de deslocamentos na trajetoacuteria destes grupos aparece como argumento mobilizado pelos articuladores do movimento contraacuterio agrave demarcaccedilatildeo territorial enquanto elemento deslegitimador das reivindicaccedilotildees destas comunidades No caso dos Guaranis a partir da deacutecada de 70 com a mecanizaccedilatildeo da agricultura sua matildeo-de-obra passou a ser desprezada e aquelas famiacutelias que resistiram ao processo de colonizaccedilatildeo foram se estabelecendo apenas nas margens do Rio Paranaacute pela pressatildeo e esbulho territorial que sofreram A maior parte foram afugentadas para o leste paraguaio sob grande violecircncia dos oacutergatildeos do Estado processo no qual o Estado ditatorial brasileiro participou ativamente Trata-se portanto de um processo de migraccedilatildeo forccedilada que ocorreu nas uacuteltimas deacutecadas e que contrasta com a dinacircmica de deslocamentos proacuteprios da etnia ligados a perspectivas e significados cosmoloacutegicos (CARVALHO 2013)

37

agraves demais alteridades e grupos eacutetnicos no estado Neste sentido afirma a antropoacuteloga

Mirian Hartung

A invisibilidade tornou-se um dos aspectos mais relevantes da identidade social dos afrodescendentes no sul do Brasil O projeto de colonizaccedilatildeo com europeus implantado entre meados do seacuteculo XIX e o XX foi a sua contraface Em um seacuteculo foram concedidos aos colonos europeus todas as primazias sobre as terras os capitais as oportunidades de trabalho e o crescimento econocircmico Este modelo seletivo e excludente orientou as poliacuteticas puacuteblicas as accedilotildees particulares e a voz dos cientistas (2004 p 7)

Em relaccedilatildeo aos desdobramentos deste modelo de colonizaccedilatildeo regional por

descentes de europeus implantado em Guaiacutera a partir da deacutecada de 1930 Joaquim

(55 anos) tambeacutem filho de Manoel Ciriaco do segundo casamento eacute pessimista no

tocante agraves mudanccedilas em curso no mundo rural O que seus vizinhos enxergam como

progresso segundo ele me relatou eacute a produccedilatildeo de transgecircnicos na base de

veneno30 o uso de sementes esteacutereis fabricadas em laboratoacuterio que implicam no

pagamento de lsquordquoroyaltiesrdquo para as empresas multinacionais Muitas plantas agriacutecolas

satildeo resistentes ao veneno que acaba por sua vez com o mato natildeo havendo

necessidade capinar Assim natildeo tem mais emprego nas plantaccedilotildees Eacute a maacutequina que

planta a semente uma por uma Denunciou entatildeo o fato de que quando os vizinhos

passam o veneno (e eles acompanham estes ciclos praticamente todos juntos) soacute

com o cheiro do veneno as folhas das plantas que estatildeo na aacuterea do grupo quilombola

tambeacutem se enrolam em consequecircncia

Estes satildeo exemplos entre outros que Joaquim citou como modificaccedilotildees

alarmantes de modo que os mais jovens ressente-se natildeo chegam sequer a

conhecer como era antes quando a regiatildeo de Guaiacutera era tomada pela mata fechada

e a produccedilatildeo era manual familiar pautada em uma loacutegica de valorizaccedilatildeo do trabalho

na terra do alimento da solidariedade Ao olhar para o passado Joaquim apontou

que na eacutepoca que Seu Manoel comprou aquela terra no iniacutecio da deacutecada de 1960 o

preccedilo era muito barato e aleacutem disso pagava-se como podia ao longo dos anos Na

eacutepoca Manoel natildeo teria comprado uma aacuterea maior porque natildeo teriam como tocar

aquele tanto de terra o que indica que a loacutegica do grupo era de ocupaccedilatildeo efetiva da

30 A imagem de Guaiacutera estaacute muito associada ao contrabando de produtos do Paraguai Um dos

produtos que satildeo contrabandeados e afetam diretamente a comunidade quilombola satildeo os defensivos agriacutecolas comercializados no Paraguai e proibidos no Brasil para uso em plantaccedilotildees como no caso do MPK 40 que foi a mim denunciado pelos quilombolas e por mais dois servidores puacuteblicos que trabalham no municiacutepio

38

aacuterea para produccedilatildeo familiar Em relaccedilatildeo ao futuro Joaquim afirmou que soacute Deus para

colocar um limite nesta ambiccedilatildeo nas alteraccedilotildees feitas na Sua criaccedilatildeo

No contexto das dificuldades que enfrentam no municiacutepio ainda mais

significativa eacute a relevacircncia atribuiacuteda pelos quilombolas agrave memoacuteria coletiva e aos laccedilos

sociais e histoacutericos principalmente no que se refere aos mais velhos que tentam

direcionar os mais novos neste mesmo sentido Este sentimento de um pertencimento

comum embasa a autoidentificaccedilatildeo e a mobilizaccedilatildeo do grupo pelo reconhecimento

como quilombolas A emergecircncia desta identidade estaacute inserida em um contexto de

relaccedilotildees de tensatildeo antes velada e que aponta para dinacircmicas de fronteira entre

brancos e negros no bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo onde residem31

A reproduccedilatildeo da coesatildeo do grupo estaacute presente na leitura que fazem dos

processos de deslocamento que natildeo passa pela ideia de ruptura como mencionamos

na introduccedilatildeo Pelo contraacuterio desenha-se a partir da continuidade do movimento

como mecanismo de reproduccedilatildeo do grupo o que reforccedila os viacutenculos com o local de

proveniecircncia (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) A regiatildeo do municiacutepio de Santo Antocircnio

do Itambeacute sobre a qual traremos abaixo uma breve apresentaccedilatildeo eacute o lugar de

sustentaccedilatildeo do ldquomito de origemrdquo do grupo e remonta agrave vivecircncia dos mais velhos que

laacute residiram

Apesar de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG estar abrangido pela divisatildeo

institucional da ldquomesorregiatildeo metropolitana de Belo Horizonterdquo o municiacutepio estaacute muito

mais proacuteximo em termos sociais e culturais da ldquomesorregiatildeo do Vale do

Jequitinhonhardquo situada no nordeste do estado No que tange agraves bacias hidrograacuteficas

o municiacutepio localiza-se entre a bacia do Alto Jequitinhonha e a bacia do Rio Doce e

como sugerem os moradores da regiatildeo ldquoeacute o comeccedilo do Valerdquo

31 Segundo Barth ldquoos elementos da cultura presente em um grupo eacutetnico natildeo surgem por conseguinte

do conjunto particular que constituiu a cultura do grupo em um periacuteodo anterior embora o grupo tenha uma existecircncia organizacional contiacutenua com fronteiras (criteacuterios de pertenccedila) que apesar das modificaccedilotildees nunca deixaram de delimitar uma unidade contiacutenuardquo (BARTH 2011 p 227) Tais reflexotildees deste autor continuam sendo segundo Joseacute Mauriacutecio Arruti ldquoas melhores orientaccedilotildees para a anaacutelise de grupos autodefinidos com base na origem ou em atributos de formaccedilatildeordquo e embasam a noccedilatildeo de etnicidade na reflexatildeo antropoloacutegica contemporacircnea (ARRUTI 2006 p 39)

39

FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute FONTE Autora (2015)

Atualmente o municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG possui 4121

habitantes conforme estimativa do IBGE para 201432 Segundo o Censo de 2010

1230 pessoas moravam na zona urbana o equivalente a 2984 e mais de 70 da

populaccedilatildeo continua habitando a zona rural um total de 2905 pessoas Em termos

raciais em Santo Antocircnio do Itambeacute apenas 863 da populaccedilatildeo (357 pessoas) se

declarou como ldquobrancardquo Jaacute a autoidentificaccedilatildeo como sendo da cor ldquopretardquo somou

1947 (805 pessoas) e ldquopardardquo 6972 (2883 pessoas) A diferenccedila no que tange

ao percentual de brancos e negros com relaccedilatildeo agrave GuaiacuteraPR33 eacute significativa jaacute que laacute

a populaccedilatildeo que se declarou branca eacute a maioria 57 em contraste com os apenas

863 de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Dito isto voltemos agraves narrativas quilombolas que destacam principalmente a

capacidade de resistecircncia dos antepassados em condiccedilotildees adversas de muito

sofrimento vivenciadas na regiatildeo mineira Em Guaiacutera me contaram sobre os relatos

32 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316020 Acesso em 22062015 33 Praticamente todos os dados que seratildeo apresentados para a comparaccedilatildeo entre as duas regiotildees satildeo

fortemente contrastantes

40

que ouviram dos pais avoacutes tios irmatildeos mais velhos sobre experiecircncias de fome

trabalho aacuterduo e precariedade das moradias que tinham que ser feitas dentro de lapas

ou locas de pedra (cavernas) Por outro lado Minas eacute valorizada por sua cultura local

narrada pelas histoacuterias sobre os antepassados

Importante levar em conta que na narrativa sobre o passado certos traccedilos se

esvanecem e outros satildeo reforccedilados conforme o momento presente daqueles que

compotildeem uma mesma ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo (HALBWACHS 2003 p 94) O

relato de Jovelina filha mulher mais velha de Manoel Ciriaco atualmente com 73

anos que morou em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ateacute seus quinze anos e atualmente

reside em Presidente PrudenteSP34 destaca a fome como uma memoacuteria central nos

tempos de sua infacircncia

Dandara Dona Jo a senhora repete entatildeo pra gente o que comentou laacute das memoacuterias do pessoal mais antigo de Minas

D Jovelina Laacute no siacutetio do meu pai tinha tinha natildeo que deve ter ateacute hoje que aquilo ali natildeo foi tampado aquele valo Aliacute era cerca pros bois natildeo passar pra roccedila pra comer a roccedila Ali tinha aqueles buracatildeo os boi chegava laacute e olhava assim via aquele buraco laacute e saiacutea E se ele quebrasse a perna ali dentro aiacute entatildeo o dono dele dava pra aquelas pessoas repartir Aiacute a gente pegava e ia laacute buscar e eles repartiam tudo pra aquelas pessoas e a nossa turma ia alegre pra casa porque tava tudo morrendo de fome Ai entatildeo ia naquele lugar onde aquele boi tentou cair ali aiacute escavava mais pra baixo ainda E tinha uns ainda que tinham minha voacute sempre falava que tinha ateacute corrente no peacute que aquele ali que natildeo trabalhasse era preguiccediloso ia ser amarrado laacute no tronco da aacutervore laacute E laacute ficava

Eacute possiacutevel observar que quando Dona Jovelina fala de sua infacircncia relembra

as histoacuterias contadas pela avoacute Izidora sobre o tempo da escravidatildeo35 Interessante

refletir que na forma como a narradora conta esta lembranccedila natildeo aparece um corte

temporal entre o periacuteodo em que a famiacutelia se alimentava da carne do boi que caiacutea no

valo utilizado como cerca entre as propriedades e a eacutepoca em que as pessoas

trabalhavam acorrentadas e eram castigadas no tronco da aacutervore como a avoacute sempre

falava Haacute deste modo uma continuidade sugestiva na narrativa que faz um

34 Esta entrevista ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de 2015

quando passamos por Presidente PrudenteSP justamente para conversar com os irmatildeos mais velhos Jovelina Olegaacuterio e Joatildeo Loriano sobre suas lembranccedilas da vida em Santo Antocircnio do Itambeacute 35 Com os pais provavelmente ocupados em atividades laborais os avoacutes conforme problematizado por

Connerton ocupam uma posiccedilatildeo central no processo de transmissatildeo de conhecimentos sobre o passado diretamente agrave geraccedilatildeo mais nova (CONNERTON 1999 p 43-44) No caso de Jovelina ela ficou sem a matildee que faleceu quando ela tinha dois anos de idade tendo sido cuidada por sua avoacute Izidora e sua tia Ana Raimunda junto com seu pai Manoel Ciriaco

41

entrecruzamento de temporalidades em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da escravidatildeo

apontando para uma forte conexatildeo entre periacuteodos cronoloacutegicos experiecircncias e

vivecircncias ateacute o momento de sua infacircncia na deacutecada de 1940 (MELLO 2012 p 170)

D Jovelina lembrou-se tambeacutem de que quando crianccedila ela e seu irmatildeo Joatildeo ainda

muito pequenos recorriam agrave alternativa de encontrar no rio utilizando uma bateia

algum ouro que entregavam para a tia Ana Raimunda para fazer um pouco de dinheiro

e comprar algo para a famiacutelia36

D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo (filho de Manoel Ciriaco do primeiro

casamento) que atualmente tambeacutem mora em Presidente PrudenteSP37 comentou

sobre seu sofrimento em Minas Gerais38

Cassius A sra falou que comeccedilou a trabalhar desde pequena laacute em Santo Antocircnio

D Maria Desde pequenininha lavando mandioca no rio de manhatilde cedo com frio eacute eu sofri muito Depois cresci trabalhando pras casas dos outros Eu nunca tive vida forgada Eu criei meus filhos tudo sofrendo O menino que natildeo foi sofrido foi esse aiacute que nasceu no Paranaacute mas os outros laacute de Minas tudo () Nem roupa pra vestir a gente natildeo tinha chinelo pra pocircr no peacute era uma vida cruel A gente natildeo comia nem um arroz nem nada Nem oacuteleo pra pocircr na comida natildeo tinha

Dandara A terra era fraca neacute

D Maria Terra natildeo ia nada soacute o que eu plantava laacute era soacute cafeacute cana e mandioca soacute a fartura que vocecirc via laacute era isso eacute natildeo tinha nada natildeo

A baixa qualidade da terra e a escassez de aacutereas para plantio podem ter

impulsionado a estrateacutegia de Manoel Ciriaco de sair rumo a regiatildeo de Satildeo Paulo e

depois norte do Paranaacute acompanhado de demais parentes o que era uma praacutetica

recorrente nesta regiatildeo mineira De acordo com Flaacutevia Galizoni a regiatildeo nordeste de

Minas Gerais tem uma caracteriacutestica proacutepria em relaccedilatildeo ao modo de aquisiccedilatildeo do

direito agrave terra que se daacute principalmente por heranccedila Este eacute o caso da famiacutelia de

36 Esta forma de garimpo eacute muito comum entre mulheres e crianccedilas (GUEDES 2013a p 126) Em sua

etnografia no norte de Goiaacutes Guedes destaca como o garimpo eacute visto como uma alternativa precisamente a situaccedilotildees entendidas como cativeiro eou escravidatildeo Segundo o autor ldquotratamos aqui da continuidade ndash ou para ser mais preciso da eterna expectativa pelo retorno ou volta ndash de uma escravidatildeo cuja aboliccedilatildeo lsquoformalrsquo por vezes eacute tratada como objeto de escaacuternio natildeo passando de uma iniciativa hipoacutecrita dos ricosrdquo Garimpeiros e quilombolas ldquocompartilham assim interstiacutecios e margens e sempre estiveram a se fundir e confundir uns com os outrosrdquo (GUEDES 2013a p 118-119) 37 Esta entrevista tambeacutem realizada durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo

de 2015 38 Esta entrevista tambeacutem ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de

2015

42

Manoel cuja herdeira era sua matildee Izidora pois o siacutetio havia sido comprado pelo pai

dela como me relata Jovelina

As pessoas foram morrendo e deixando pros filhos agora aqueles filhos que morriam ficava pros outros netos deles e era assim ia ficando () Era tudo negro que tinha por aiacute Quando um tava meio apurado de serviccedilo ia laacute ah fulano vocecirc vai trabalhar pra mim que eu te pagordquo () Entatildeo chamava ia aquela turma de gente ali ajudava quando era o outro dia ia laacute na casa do outro trabalhar pro outro pagar aquele dia Que eles trabalhavam natildeo era pra receber dinheiro porque natildeo tinha Entatildeo trabalhava o dia trocado Hoje vocecirc vinha aqui e ajudava eu a fazer aquele serviccedilo aiacute amanhatilde eu ia e te ajudava tambeacutem era trocado

A terra eacute um patrimocircnio familiar transmitida pela heranccedila no acircmbito de uma

ordem moral camponesa que natildeo a restringe ao valor de mercadoria mas que a

concebe a partir de valoraccedilotildees eacuteticas Aquele que se torna dono o faz mediante o

trabalho que eacute ademais um trabalho familiar no qual as relaccedilotildees de reciprocidade

satildeo centrais (WOORTMANN 1990) em um modelo relacional que fica niacutetido na fala

de Dona Jovelina Nesta dinacircmica a migraccedilatildeo39 eacute um dos elementos importantes para

manter a terra em um tamanho necessaacuterio para as futuras geraccedilotildees jaacute que seu

fracionamento extremo pode ldquoinviabilizar a continuidade da famiacutelia como grupo de

agricultores independentesrdquo

A terra eacute o principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos agricultores mas em decorrecircncia da pressatildeo demograacutefica e da exaustatildeo do ambiente torna-se ao longo do tempo um limite para a sua reproduccedilatildeo social Quando o nuacutemero de membros excede a capacidade de suporte da terra surge o imperativo de se decidir no interior da famiacutelia como seraacute resolvida essa questatildeo e nesse contexto a heranccedila constitui um ponto nodal para compreender as estrateacutegias de permanecircncia dos agricultores familiares na terra (GALIZONI2007 p 564)

Para que parte da famiacutelia fique na terra como herdeiros torna-se imperativo

que outra saia enquanto excedente familiar no que tange o uso da terra A migraccedilatildeo

ocorre como processo familiar pois acontece em grupo a partir de estrateacutegias de

contatos nos locais de destino com o objetivo de reconstruir as unidades familiares

No caso em questatildeo Manoel antes de sair definitivamente praticava a migraccedilatildeo

39 Importante ressaltar a criacutetica ao conceito de migraccedilatildeo jaacute que esta concepccedilatildeo esta permeada

frequentemente por uma visatildeo de que o ldquomovimento natildeo teria um valor em si mesmo constituindo-se basicamente como a passagem entre dois pontosrdquo Assim o deslocamento eacute visto como acontecimento excepcional e a sedentariedade como regra Deste modo o movimento e natildeo a permanecircncia eacute o que tem que ser explicado (GUEDES 2013a p 31-36)

43

sazonal movimento recorrente nesta regiatildeo no periacuteodo da seca quando saiacutea para

trabalhar como peatildeo mundo afora Um dos seus destinos de trabalho era a regiatildeo de

Londrina norte do Paranaacute para onde se deslocava de trem Foi atraveacutes desta

experiecircncia preacutevia que traccedilou a estrateacutegia de saiacuteda definitiva com demais parentes

para a regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde morou no municiacutepio de CaiabuSP Eacute

importante salientar que nesta regiatildeo paulista Manoel Ciriaco e demais parentes

puderam contar com o suporte da famiacutelia de seu primo de primeiro grau Raimundo

Constantino ndash filho de sua tia materna Joana ndash que laacute jaacute se encontrava Raimundo

que havia saiacutedo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG com esposa e filhos em 1949 jaacute

havia falecido quando Manoel chegou em CaiabuSP

Na eacutepoca em que Manoel deixou sua regiatildeo de origem ele jaacute havia ficado

viuacutevo de Maria Olinda sua primeira esposa com quem teve quatro filhos Luiza ndash que

faleceu aos 8 anos de idade ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano

FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 1

Como afirmei anteriormente quando Maria Olinda faleceu Joatildeo Loriano tinha

apenas um mecircs de vida tendo sido criado pela avoacute Izidora e pela irmatilde de seu pai

Ana Raimunda Depois Manoel casou-se com Ana Rodrigues com quem teve mais

quatro filhos ainda em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Eurides Sebastiana (falecida)

Antocircnio (falecido) e Joseacute Maria (falecido) Os outros filhos deste casal jaacute nasceram

no processo de deslocamentos da famiacutelia ndash dos quais apenas Paulo faleceu quando

tinha 15 anos ndash e os quatro irmatildeos mais novos satildeo os que atualmente continuam

morando em GuaiacuteraPR e atuam de forma direta no projeto de estruturaccedilatildeo da

comunidade quilombola Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido

44

FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2

45

Para compreender o contexto da saiacuteda dessas famiacutelias em 1956 deve-se ter

em conta que a deacutecada de 1950 eacute o periacuteodo de decliacutenio da produccedilatildeo camponesa na

regiatildeo mineira em decorrecircncia da abertura de estradas bem como do

desenvolvimento e da urbanizaccedilatildeo do entorno De 1950 a 1970 a regiatildeo do ldquoVale do

Jequitinhonhardquo40 vivenciou um importante marco histoacuterico de integraccedilatildeo na economia

nacional por meio da possibilidade de acesso a produtos industrializados o que como

consequecircncia provocou a desvalorizaccedilatildeo dos produtos regionais Este periacuteodo eacute

marcado pela expansatildeo do capitalismo e pela expropriaccedilatildeo do campesinato com o

aumento significativo do deslocamento da populaccedilatildeo local (PORTO 2007 p 79)

A produccedilatildeo e o comeacutercio de alimentos e artigos artesanais eram justamente

o trabalho realizado pelas famiacutelias negras em questatildeo principalmente na lavoura de

cana-de-accediluacutecar com a qual se fazia a cachaccedila o melado e a rapadura e no

transporte destes produtos em lombo de burro para sua comercializaccedilatildeo aleacutem da

lavoura de cafeacute do trabalho no garimpo de ouro e da agricultura de subsistecircncia

Deste modo a saiacuteda dos camponeses decorre da pressatildeo das ldquoformas empresariais

e capitalistasrdquo em direccedilatildeo agrave regiatildeo ldquoos primeiros continuamente deslocados pela

marcha dos segundosrdquo (GUEDES 2013b p 53) Dentre tais empreendimentos

destaca-se a produccedilatildeo em moldes capitalistas de eucalipto de gado e de cafeacute Deste

modo eacute possiacutevel perceber como a memoacuteria e a experiecircncia do grupo quilombola vai

tomar como um marco os efeitos do histoacuterico de modernizaccedilatildeo regional e do decliacutenio

da produccedilatildeo camponesa no acircmbito de um processo mais amplo de pressatildeo

migratoacuteria (PORTO 2007 p 60) Olegaacuterio (77 anos) filho de Manoel Ciriaco que saiu

de MG com o pai contou que ele e seus parentes foram de Santo Antocircnio do Itambeacute

ateacute Diamantina no pau de arara caminhatildeo coberto de lona e de Diamantina ao estado

de Satildeo Paulo de ocircnibus

Recuando um pouco mais na histoacuteria no que tange ao comeccedilo do seacuteculo XX

os estudos historiograacuteficos demonstram como a migraccedilatildeo jaacute aparecia como uma

estrateacutegia importante para a populaccedilatildeo negra que vivia em regiotildees de colonizaccedilatildeo

antiga como eacute o caso de Minas Gerais Estes estudos tecircm analisado como os negros

40 Esta divisatildeo regional que a partir da deacutecada de 1960 cria de uma forma unificada o ldquoVale do

Jequitinhonhardquo eacute fruto de uma articulaccedilatildeo da esfera poliacutetica que tomou como criteacuterio a carecircncia e a pobreza enquanto argumentos dos poliacuteticos regionais para acessar recursos para uma aacuterea definida como ldquobolsatildeo da pobrezardquo O ldquoprogressordquo por meio desenvolvimento capitalista seraacute entatildeo apresentado como o caminho de redenccedilatildeo para a populaccedilatildeo localrdquo (PORTO 2007 p 61)

46

libertos e seus descendentes traccedilaram estrateacutegias para buscar caminhos de

autonomia e de subsistecircncia tendo em vista as dinacircmicas de disponibilidade de terra

e trabalho no poacutes-aboliccedilatildeo (1888) Esta populaccedilatildeo tinha que lidar com a permanecircncia

das categorizaccedilotildees sociais como a de ldquoex-senhores libertos e homens nascidos

livresrdquo enquanto uma das principais limitaccedilotildees para sua capacidade de negociaccedilatildeo

nas regiotildees de colonizaccedilatildeo mais antigas (MATTOS RIOS 2004 p 180) Eacute sabido

que o fim do regime escravocrata natildeo concretizou a presunccedilatildeo legal de igualdade e

cidadania para esta populaccedilatildeo que ficou sujeita agrave manutenccedilatildeo das hierarquias locais

jaacute que ser negro ainda era visto em alguma medida como sinoniacutemia de ter sido

escravo Eacute necessaacuterio neste sentido refletir sobre o projeto dos libertos no periacuteodo

do poacutes-aboliccedilatildeo ldquosua lsquovisatildeorsquo do que seria liberdade os significados deste conceito

para a populaccedilatildeo que iria finalmente vivenciaacute-la ()rdquo Uma das expressotildees destes

projetos foi a ldquomobilidade espacialrdquo a partir do direito que passaram a ter sobre os

proacuteprios corpos de ir e vir livremente (MATTOS RIOS 2004 p 171-178)

Muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos negros nas regiotildees onde a

escravidatildeo tinha sido significativa como a localidade de Santo Antocircnio do Itambeacute que

faz parte do ldquoCaminho dos Diamantesrdquo e da ldquoEstrada Realrdquo vinculada agrave colonizaccedilatildeo

mineradora A movimentaccedilatildeo geograacutefica dos ldquonatildeo-brancos livresrdquo para aacutereas de

colonizaccedilatildeo mais recente como eacute o caso de Guaiacutera na regiatildeo noroeste do Paranaacute

onde poderiam se organizar como ldquocampesinato reconstituiacutedordquo foi uma opccedilatildeo muito

utilizada Carlos Lima denominou este processo de ldquopequena diaacutesporardquo apontando

para a ldquoforte tendecircncia emigratoacuteriardquo que partia ldquodas aacutereas centrais onde haviam sido

gerados para localidades onde o acesso agrave terra fosse mais plausiacutevelrdquo (LIMA 2000 p

109)41 Deste modo destaca em suas pesquisas sobre o poacutes-aboliccedilatildeo a inserccedilatildeo de

libertos em processos de povoamento e a tendecircncia ao deslocamento de seus

descendentes de aacutereas de colonizaccedilatildeo antiga para regiotildees mais novas ndash como no

caso em questatildeo da regiatildeo de DiamantinaMG ateacute GuaiacuteraPR O autor observou na

documentaccedilatildeo um alto grau de natildeo brancos livres no estado do Paranaacute no seacuteculo

XIX e em relaccedilatildeo inversa um nuacutemero relativamente baixo de natildeo-brancos livres nas

aacutereas de escravidatildeo mais antiga (LIMA 2000)

41 No entanto nem todos os deslocamentos eram bem-sucedidos e como aponta o estudo das historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Rios tambeacutem implicaram em certos casos em ldquohistoacuterias de privaccedilotildees extremas e desestruturaccedilatildeo da vida familiarrdquo (MATTOS RIOS 2004 p 171)

47

Com esta estrateacutegia de movimento o grupo familiar proveniente de MG

conseguiu adquirir terras em GuaiacuteraPR depois de quase uma deacutecada em que

moraram e trabalharam principalmente na colheita de algodatildeo e de amendoim na

regiatildeo de Presidente PrudenteSP em aacutereas arrendadas no municiacutepio de CaiabuSP

A partir do contato com Seu Olindo que era corretor foram para o Paranaacute porque

tinham interesse de comprar terras principalmente porque lhes falaram que a terra laacute

era muito boa Em Guaiacutera estabeleceram-se no iniacutecio da deacutecada de 1960 e adquiriram

quatro pequenos lotes rurais todos proacuteximos os quais demoraram anos para quitar

atraveacutes de muito trabalho modo de pagamento inaceitaacutevel nos padrotildees atuais Com

o estabelecimento de Manoel e de sua esposa Ana Rodrigues com demais parentes

em Guaiacutera outras famiacutelias tambeacutem foram se deslocando para laacute tanto provenientes

do estado de Satildeo Paulo como da regiatildeo mineira Destacam-se nas narrativas sobre

a chegada em uma aacuterea que estava comeccedilando a ser colonizada as dificuldades que

enfrentaram acampando embaixo de lona no meio do mato de onde passaram a

retirar toda a sua sobrevivecircncia por meio da caccedila e da coleta aleacutem da derrubada da

mata para limpar o terreno e para iniciar o plantio agriacutecola

Os quatro homens chefes de famiacutelia que se tornaram proprietaacuterios no Paranaacute

tinham viacutenculos de parentesco entre si e com o casal ancestral Joseacute e Joana

ascendentes mais antigos sobre o qual o grupo tinha referecircncias (antes da pesquisa

realizada em Minas Gerais) inclusive de terem trabalhado como escravos em Minas

Gerais Assim aleacutem de Manoel Ciriaco e Geraldo Domingos dos Santos os quais

adquiriram respectivamente dez e cinco alqueires contiacuteguos da Sociedade

Agropecuaacuteria Comercial e Industrial Maracaju LTDA (lotes 186 e 186-A 187 e 187-A)

tambeacutem adquiriram lotes o ldquotio Raimundatildeordquo que era tio de Ana Rodrigues e Joatildeo

Ferreira cunhado de Ana Nestes siacutetios moravam mais parentes aleacutem daqueles que

tambeacutem residiam em propriedades da regiatildeo e tocavam arrendado No caso de

Raimundo e Joatildeo Ferreira natildeo tive acesso a informaccedilotildees sobre a histoacuteria de aquisiccedilatildeo

e perda dessas aacutereas Imagino que este silenciamento seja decorrente dos conflitos

territoriais que antecederam esta pesquisa com a grupo conforme abordaremos no

segundo capiacutetulo Apesar disso membros da comunidade comentam saudosos sobre

a relevacircncia da dinacircmica de tracircnsito dos parentes entre estas aacutereas periacuteodo no qual

havia em torno de oitenta pessoas da famiacutelia morando na regiatildeo de Guaiacutera e de Terra

RoxaPR

48

FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 3

49

As aacutereas do ldquotio Raimundatildeordquo e de Joatildeo Ferreira atualmente natildeo constam no

processo de reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio que tramita no INCRA A natildeo

indicaccedilatildeo dessas duas aacutereas parece ter sido uma estrateacutegia da comunidade na

produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Esta estrateacutegia como pude

compreender estaacute relacionada aos conflitos gerados pela produccedilatildeo do primeiro

relatoacuterio sobre a comunidade Assim os quilombolas entenderam que era mais

seguro neste segundo relatoacuterio natildeo indicar as duas aacutereas que natildeo satildeo contiacuteguas ao

territoacuterio atual o que poderia reestabelecer a animosidade entre a comunidade e os

proprietaacuterios vizinhos Atualmente o procedimento do INCRA utiliza como base

territorial as aacutereas indicadas pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foram

adquiridas por Manoel Ciriaco e Geraldo dos Santos as quais somavam 15 alqueires

contiacuteguos dos quais soacute restam atualmente 85 alqueires O relatoacuterio indica tambeacutem a

aquisiccedilatildeo de uma aacuterea complementar para que possa haver meios de reproduccedilatildeo

social cultural e econocircmica das famiacutelias que atualmente permanecem na

comunidade42

Em 1992 Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano ndash filhos de Manoel Ciriaco do

primeiro casamento ndash migram de GuaiacuteraPR com suas famiacutelias As famiacutelias de

Olegaacuterio e Joatildeo Loriano foram para a TarabaiSP proacuteximo a Presidente PrudenteSP

e Jovelina foi com a famiacutelia para ColiacutederMS O ldquoVelho Maneacuterdquo havia falecido em 1989

Em 1993 Geraldo dos Santos primo de Manoel que havia comprado lote limiacutetrofe ao

seu vende seus cinco alqueires e migra com sua famiacutelia para Satildeo Jorge do

PatrociacutenioPR municiacutepio proacuteximo onde adquiriu aacuterea maior mas de menor qualidade

pois a terra mais arenosa Eva me contou o motivo de seu pai Geraldo ter preferido

sair de Guaiacutera em 1993 e vender seus cinco alqueires

Dandara Eu queria perguntar tambeacutem para a Sra sobre a saiacuteda do seu pai daqui ele foi muito pressionado pra sair pra vender

Eva Ele quis sair Dandara ele natildeo quis ficar aqui mais pouca terra muito pouco com raiva tambeacutem quando os vizinhos ia limpar a estrada rancava tudo as coisas que ele plantava na beira da estrada ele ficava muito nervoso Ele pegou e natildeo quis viver aqui mais natildeo foi embora caccedilou um outro lugar pra ele morar que um lugar que era tudo gente pobre natildeo queria morar perto

42 Esta aacuterea natildeo necessita de acordo com o procedimento ser limiacutetrofe agrave comunidade e seraacute adquirida

atraveacutes do instrumento de desapropriaccedilatildeo por interesse social pelo INCRA Aleacutem das famiacutelias que atualmente moram na comunidade haacute a previsatildeo de que vaacuterias dentre as que migraram de GuaiacuteraPR poderatildeo caso haja esta ampliaccedilatildeo do territoacuterio retornar e se juntar ao grupo Esta previsatildeo de retorno eacute utilizada para calcular o tamanho da aacuterea adicional conforme abordo no segundo capiacutetulo

50

de gente rica (risos) Daiacute ele pegou e foi embora e chegou laacute e falou que era tudo pobre tambeacutem Soacute que sofreu muito tambeacutem laacute hein

Foram muitas as dificuldades que superaram conforme narram para

permanecerem em uma regiatildeo na qual se sentem discriminados racial e socialmente

Dentro deste processo histoacuterico de deslocamento e estruturaccedilatildeo das famiacutelias no

Paranaacute o casal Manoel Ciriaco dos Santos e Ana Rodrigues dos Santos ocupa o lugar

de casal fundador e aglutinador das relaccedilotildees de parentesco da comunidade

quilombola organizada a partir de GuaiacuteraPR mas que abrange famiacutelias que estatildeo

fora do territoacuterio Esta estruturaccedilatildeo das famiacutelias na regiatildeo de GuaiacuteraPR tambeacutem

portanto foi passageira para alguns nuacutecleos familiares e mais prolongada para outros

Atualmente as famiacutelias que continuaram no territoacuterio em GuaiacuteraPR lutam para

garantirem o direito de laacute permanecerem e para que seja ampliada a aacuterea da

comunidade a qual foi sendo reduzida ao longo das uacuteltimas deacutecadas com o processo

de mecanizaccedilatildeo da agricultura da perda dos meios de trabalho da valorizaccedilatildeo

comercial da terra na regiatildeo e da saiacuteda dos ldquoparentesrdquo

Manoel e Ana o casal que estrutura o modo de elaboraccedilatildeo da narrativa

histoacuterica e da reivindicaccedilatildeo de direitos pela comunidade atualmente eram primos de

segundo grau jaacute que Joana avoacute de Ana Rodrigues era irmatilde de Izidora matildee de

Manoel

FIGURA 7 Documentos de identidade de Manoel nascido em 16031920 e Ana nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)

51

Sobre as dificuldades vivenciadas quando as famiacutelias se estabeleceram em

GuaiacuteraPR e do aperto que viveram Eva filha de Geraldo Domingos dos Santos

destacou

Eva Nossa Senhora Noacutes passou um aperto aqui Aqui o que noacutes passemo aqui Eu acho mesmo o que noacutes comia era peixinho assado no fogo A muieacute que morava assim vizinha aqui quando ela colhia milho e levava milho na casa dela pra moer fazer fubaacute que noacutes comia polenta com radiche do mato serraia nem a gordura pra comer natildeo tinha Tinha dia que noacutes natildeo tinha um gratildeo de accediluacutecar Quando eles trabalhava assim que colhia as coisa pra vender daiacute jaacute comprava aproveitava que o dinheirinho era pouco mesmo depois o dinheiro natildeo dava entatildeo jaacute aproveitava e comprava de uma vez Comprava meio saco de accediluacutecar aiacute entrava pura abeia dentro de casa pura abeia (risos) Quando acabava daiacute meu pai socava poacute no pilatildeo pra noacutes fazer cafeacute de manhatilde cedo Eu falei assim ldquoeacute minha fia hoje natildeo ensina mais nada disso vocecircs nem conhece o que que eacute issordquo

Nos termos de Geralda filha de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues que saiu

dos siacutetios haacute muitos anos e atualmente mora na periferia de Guaiacutera (Vila Eletrosul)43

eles sempre trabalharam para enriquecer os coroneacuteis mas para os negros natildeo

sobrava nada A histoacuteria de seu marido Antocircnio conhecido por Guaraacute44 segundo ela

eacute um exemplo disso ldquopara mim o meu marido foi igual escravo para sofrer o que ele

sofreu As crianccedilas hoje tecircm liberdade Noacutes natildeo noacutes tinha que trabalhar e ningueacutem

tinha doacute E se fosse negro mais aindardquo A experiecircncia da escravidatildeo natildeo fica restrita

portanto a um passado longiacutenquo pois se perpetuou para aleacutem de sua instituiccedilatildeo

oficial por meio da reproduccedilatildeo de um sistema baseado na exploraccedilatildeo continuada e

na discriminaccedilatildeo racial Haacute uma perspectiva bem proacutexima na comunidade quilombola

Aacutegua Morna no estado do Paranaacute registrada no relatoacuterio antropoloacutegico da

comunidade

() Natildeo vinculam a escravidatildeo somente ao periacuteodo preacute-aboliccedilatildeo mas a percebem em tempo muito mais recente Ela estaacute relacionada ao trabalho para os ldquode forardquo e agrave experiecircncia da negritude que os colocaria constantemente em uma situaccedilatildeo de poder desprivilegiada () Nas falas dos moradores locais a escravidatildeo se confunde com a discriminaccedilatildeo relacionada ao racismo e agrave pobreza Muito mais que uma oposiccedilatildeo entre o tempo da escravidatildeo e o tempo da liberdade com uma delimitaccedilatildeo clara entre ambos

43 Outra importante caracteriacutestica sobre a caracterizaccedilatildeo negativa de Guaiacutera eacute que mesmo sendo um

municiacutepio de porte pequeno apresenta um dos maiores iacutendices de homiciacutedio do paiacutes (WAISELFISZ 2013) A Vila Eletrosul eacute tida como um dos bairros mais perigosos de Guaiacutera com vaacuterios casos de

homiciacutedios e apreensotildees Localizada nas proximidades do Rio Paranaacute eacute por laacute que entra parte da droga e do contrabando jaacute que por meio deste desvio evita-se a entrada principal saindo de Salto del Guairaacute no Paraguai para Guaiacutera onde se concentra a fiscalizaccedilatildeo 44 Irei utilizar o apelido de Guaraacute para o distinguir de ldquofinado Antocircniordquo irmatildeo de Geralda

52

dada pela assinatura da Lei Aacuteurea em Aacutegua Morna encontramos a escravidatildeo simultaneamente percebida como una e como tripartida haacute a experiecircncia dos antepassados trazida principalmente atraveacutes do relato de Benedita e da qual a caminhada ndash e a accedilatildeo da Princesa Isabel ndash os libertou haacute a opressatildeo mais recente dos antigos jaacute no proacuteprio territoacuterio mas sujeitos agrave desigualdade que marca as relaccedilotildees com os ldquobrancosricosrdquo e por fim a vivecircncia da discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo no trabalho que permanece na atualidade em que escravidatildeo se aproxima de racismo (PORTO 2008 p 71-72)

A lembranccedila da ausecircncia de acesso a recursos baacutesicos estaacute sempre presente

nas falas da Geralda

Geralda Noacutes tocava um banhado de um homi laacute e eu de a peacute pra leva comida pro Zeacute Maria e aiacute ele falou que tinha dia que ele olhava ateacute na terra pra comer de tanta fome que natildeo comia nada de manhatilde que natildeo tinha nada pra comer Aiacute eu chegava correndo minha matildee pegava um pedacinho de carne eu pegava na matildeo e iacutea correndo leva a marmita comigo longe Ele falava que natildeo tava aguentando mais de fome Ixi minha filha noacutes cheguemo pra aqui ele amarrava roupa de cipoacute num tinha roupa menina () Aiacute a minha sogra ela falava assim quando ele corria da minha sogra ela falava ldquoparece que ocecirc taacute que nem o capeta correndo da cruzrdquo correndo que natildeo tinha roupa Era tudo amarrado de cipoacute

Uma vez quando Geralda estava esquentando fogo quando era moccedila

ocorreu um acidente

Geralda Ah a gente era pobre meu pai comprava aquele paninho bem fininho que a gente falava ldquocarne secardquo aiacute sobrou o resto que minha matildee fez o colchatildeo pegou e mandou meu irmatildeo fazer uma calccedila pra mim Eles ainda ficaram tirando sarro que a calccedila pantalona aiacute as minhas irmatildes tavam ralando uma mandioca pra fazer farinha pra passar Satildeo Joatildeo e eu fiquei esquentando fogo quando eu vi o fogo pegou na minha perna aiacute a minha irmatilde correu e pegou um balde drsquoaacutegua e jogou

Haacute tambeacutem uma outra histoacuteria a da fogueira do dia de Satildeo Joatildeo que me foi

contada por Adir logo que nos encontramos na minha primeira ida a campo ainda na

rodoviaacuteria em sua famiacutelia haacute pessoas como seu irmatildeo Zeacute Maria que jaacute eacute falecido e

tambeacutem tios e tias que eram capazes de andar descalccedilos em cima da brasa da

fogueira de Satildeo Joatildeo Para isso acrescentou Adir eacute preciso ter feacute Assim se a

fogueira aparece nas narrativas de uma situaccedilatildeo de extrema falta de recursos ela

tambeacutem retorna nas memoacuterias de uma famiacutelia que tem tanta feacute que permite que

ocorram milagres como caminhar na brasa ardente sem se queimar

Ao mesmo tempo em que destacam as agruras de um passado difiacutecil um

tempo em que o frio entrava pelas frestas das casas feitas de coqueiro tambeacutem

53

aparece em seus relatos no entanto o sentimento de que havia muito mais uniatildeo no

grupo de parentes A comemoraccedilatildeo do dia de Satildeo Joatildeo por exemplo envolvia o

preparo coletivo da farinha de mandioca e do beiju45 Tambeacutem do manuseio da

mandioca se retirava o polvilho que era utilizado para o preparo de biscoitos46 No

siacutetio em Guaiacutera ressaltam que se hoje moram apenas vinte e tantas pessoas

somavam na deacutecada de 1970 mais de 80 parentes

O iniacutecio da fixaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera eacute ressaltado em todas as falas dos

adultos como um tempo de trabalho duro para homens e mulheres Infacircncia difiacutecil

onde produziam quase tudo que consumiam natildeo tinham nem um cobertor nem um

chinelo roupa era produto de luxo Viviam da agricultura de subsistecircncia produccedilatildeo e

criaccedilatildeo de animais para comercializaccedilatildeo arrendamento de terras para derrubada e

plantio atividades que ampliavam o espaccedilo de trabalho para aleacutem das aacutereas

adquiridas Por outro lado destacam a uniatildeo e a solidariedade entre parentes O lote

de Manoel Ciriaco era o ponto de referecircncia para os demais entre os quais havia uma

forte sociabilidade relaccedilotildees de ajuda muacutetua e momentos de diversatildeo do grupo ao

som de vaacuterios instrumentos produzidos por eles mesmos

FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia tirada na cidade em um ldquoestuacutediordquo (da direita para a esquerda) Seu Davi (esposo de Jovelina) sanfoneiro da famiacutelia com um casal de vizinhos e a esposa de seu primo Maria Madalena com seu filho Antocircnio (marido de Geralda)

45 O beiju eacute ldquouma espeacutecie de patildeo de mandiocardquo Para descriccedilatildeo do modo de preparo tradicional ver a

dissertaccedilatildeo de Andreacuteia Cambuy (CAMBUY 2011 103-105) 46 Estes satildeo alimentos que remetem ao jeito de viver do passado e que satildeo feitos agraves vezes Eles me

foram apresentados pelo meu interesse nas preparaccedilotildees tradicionais mas atualmente envolvem a compra dos ingredientes jaacute prontos do mercado As peccedilas da antiga farinheira estatildeo ainda guardadas mas atualmente natildeo possuem um espaccedilo fiacutesico onde possam reativaacute-la como desejam

54

O grupo de parentes em Guaiacutera engajou-se tambeacutem no plantio e

beneficiamento de hortelatilde (oacuteleo) produccedilatildeo de milho mandioca algodatildeo arroz e o

trabalho como diaristas para os vizinhos-empregadores Tais leques de atividades

contribuiacuteram para um certo grau de autonomia para os membros da comunidade

Poreacutem contam como houve uma grande mudanccedila local com o processo de

mecanizaccedilatildeo da agricultura de modo que os proprietaacuterios vizinhos passaram a natildeo

se interessar pelo arrendamento jaacute que toda a aacuterea de suas propriedades poderia ser

explorada A reduccedilatildeo da aacuterea de trabalho disponiacutevel implicou em grande dificuldade

para a manutenccedilatildeo das famiacutelias que passaram a se deslocar novamente a partir da

deacutecada de 1990

FIGURA 9 Fluxo Migratoacuterio47 FONTE A autora (2015)

Em 1989 ocorre tambeacutem o falecimento de Manoel Ciriaco que era uma

lideranccedila na articulaccedilatildeo das famiacutelias provenientes de Minas Gerais na regiatildeo de

GuaiacuteraPR Ele desempenhava ainda a sua autoridade paterna na condiccedilatildeo de

proprietaacuterio legal da aacuterea de sua famiacutelia (SEYFERTH 1985) coordenando o trabalho

47 A representaccedilatildeo cartograacutefica atraveacutes de linhas de migraccedilatildeo tem um objetivo didaacutetico neste momento

do texto Como veremos no proacuteximo subitem as discussotildees do antropoacutelogo Tim Ingold (2007) problematizam este tipo de representaccedilatildeo do deslocamento atraveacutes da linha reta A representaccedilatildeo com base no autor estaria muito mais proacutexima de um emaranhado de linhas representando o processo do movimento por meio do qual se descobre o proacuteprio caminho

55

familiar e centralizando o contato com pessoas externas Com sua morte deixou

diacutevidas para os filhos que ficaram em uma situaccedilatildeo econocircmica difiacutecil aleacutem de terem

perdido este papel de referecircncia exercido pelo pai48

Este processo de saiacuteda dos parentes de Guaiacutera eacute lembrado como um

momento muito difiacutecil e marcante por aqueles que ficaram Segundo Joaquim noacutes

fiquemo aqui abandonado Atualmente soacute restou destes quatro lotes 85 alqueires do

lote de Manoel Ciriaco sendo que os demais foram vendidos Satildeo vaacuterios os destinos

apontados em relaccedilatildeo aos parentes que migraram na deacutecada de 1990 De Guaiacutera

parentes foram para Salto del Guayra (Paraguai) Satildeo Jorge do PatrociacutenioPR

AssisPR para a regiatildeo Presidente PrudenteSP e uma famiacutelia retornou para Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG De volta para regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde jaacute

haviam morado na deacutecada de 1960 foram os irmatildeos mais velhos filhos do primeiro

casamento de Manoel Ciriaco com Maria Olinda ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano

ndash aleacutem de Eurides filha de Manoel com Ana Rodrigues

O siacutetio onde residem atualmente fica distante 20 km da sede do municiacutepio de

Guaiacutera e mais proacuteximo da divisa com o municiacutepio vizinho Terra Roxa Segundo me

contaram a permanecircncia ali soacute foi possiacutevel porque resistiram agraves pressotildees dos

proprietaacuterios vizinhos os quais satildeo na maioria gauacutechos descendentes de imigrantes

italianos e alematildees que queriam comprar suas terras e retiraacute-los do bairro rural O

nuacutemero de moradores variou no periacuteodo que estive em campo e a perspectiva do

grupo eacute que aumente com a possibilidade de retorno dos parentes em decorrecircncia da

possiacutevel ampliaccedilatildeo do territoacuterio prevista no processo de titulaccedilatildeo quilombola pelo

INCRA (Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria)49

Segundo Geralda haacute uma divisatildeo natildeo verbalizada entre um ldquoMaracaju dos

Pretosrdquo e um ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo nome pelo qual eacute conhecido o bairro rural onde

vivem A convivecircncia (ou a falta dela) com os gauacutechos eacute um elemento importante para

compreender a manutenccedilatildeo das fronteiras do grupo a partir de uma perspectiva

48 Desde sua morte e de sua esposa Ana Rodrigues em 1994 o inventaacuterio da propriedade ainda natildeo

foi realizado havendo a observaccedilatildeo por parte dos herdeiros inclusive dos que natildeo moram mais no siacutetio em GuaiacuteraPR de um acordo interno para a organizaccedilatildeo do uso da terra entre eles Importante ressaltar que a natildeo realizaccedilatildeo do inventaacuterio eacute uma estrateacutegia importante na organizaccedilatildeo camponesa para evitar a fragmentaccedilatildeo do lote original (SEYFERTH 1985) 49 A questatildeo de quem pode requerer o direito a morar no territoacuterio a partir de relaccedilotildees de pertencimento comeccedila a ser trabalhada pelas lideranccedilas do grupo jaacute que a fase de cadastramento das famiacutelias pelo INCRA eacute a proacutexima etapa do procedimento apoacutes a publicaccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) prevista para 2015

56

poliacutetica e relacional de grupos eacutetnicos50 As relaccedilotildees com seus vizinhos foram

estabelecidas majoritariamente pela mediaccedilatildeo de relaccedilotildees de trabalho informais

Antes do conflito desencadeado com o processo no INCRA mantinham relaccedilotildees

proacuteximas apesar de os quilombolas sempre terem percebido as manifestaccedilotildees de

preconceito racial

Geralda Eu natildeo gosto do Maracaju natildeo gosto daquelas turma Menina porque o que noacutes viveu ali Vocecirc chega na igreja noacutes natildeo vai na Igreja que eacute pra rezar Natildeo eacute pra pessoa pensar olhar laacute no padre Eles ficava olhando se vocecirc tava bem vestido se vocecirc tava limpo Hum negro Negro pra eles natildeo presta Eles fazia amizade com noacutes assim de frente mas eles nenhum gostava de noacutes a gente via na cara a gente natildeo eacute besta Noacutes convivia desde pequeno junto com eles ali Eu natildeo tenho saudade natildeo () Porque eu gosto de morar no lugar que eacute humilde neacute que a gente sente bem Vocecirc mora no lugar pro resto da vida se vocecirc morrer ali vocecirc se sente bem Aqui eacute assim (Vila Eletrosul) tem gente metido mas aqui tem gente legal E a amizade que eu tenho aqui dentro dessa Eletrosul Aqui tem muita coisa mas tanta amizade que eu tenho aqui com crianccedila com gente velho com gente novo eacute rapaz eacute moccedila eacute tudo Laacute no Maracaju natildeo eu natildeo tinha amizade Noacutes ia no baile vocecirc taacute pensando que os rapaz de laacute danccedilava com noacutes Eu posso conta procecirc que eu natildeo dancei com um rapaz laacute dentro do Maracaju Nenhum Eles natildeo danccedilava com noacutes que era preto Aiacute vocecirc vai viver num lugar desse e vocecirc vai ficar feliz

O mapa abaixo mostra a porccedilatildeo de terra da comunidade cercada pelas

propriedades vizinhas De acordo com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido na

comunidade (TERRA AMBIENTAL 2013) pode-se dividir a aacuterea atual em quatro

setores O setor 1 e o setor 2 na parte superior do mapa em verde claro

correspondem agrave aacuterea onde se concentram as casas dos moradores o accedilude a

criaccedilatildeo de pequenos animais e a plantaccedilatildeo de verduras para consumo e comeacutercio

Os setores 3 e 4 satildeo de plantaccedilotildees dos proacuteprios quilombolas de mandioca milho

aveia soja entre outros Depois do setor 4 haacute um pequeno pedaccedilo de 15 alqueires

que foi vendido para o vizinho Jacomine em 1992 (quando da saiacuteda dos trecircs irmatildeos

mais velhos que foram para Presidente PrudenteSP) e por fim a aacuterea de reserva

legal da propriedade

50 O enfoque nas fronteiras nos mecanismos necessaacuterios para criaacute-las e mantecirc-las e na diferenciaccedilatildeo estrutural dos grupos em interaccedilatildeo tornam-se elementos centrais para as anaacutelises que tomam a autoatribuiccedilatildeo como traccedilo fundamental da etnicidade conforme reflexatildeo proposta por Barth acerca do modo de constituiccedilatildeo dos limites sociais dos grupos eacutetnicos (BARTH 2011)

57

FIGURA 10 ldquoDivisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriacordquo FONTE Terra Ambiental Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos Guaiacutera ndash PR (p88)

58

Se o grupo familiar saiu de Minas Gerais ateacute o Paranaacute visando a reinserccedilatildeo

social em melhores condiccedilotildees de vida e fugindo do racismo e da marginalizaccedilatildeo

percebe-se que as estruturas de opressatildeo se reproduziram novamente Nestas cinco

deacutecadas em que estatildeo vivendo no Paranaacute natildeo houve a criaccedilatildeo de laccedilos de

parentesco com os vizinhos e a tendecircncia endogacircmica deste grupo familiar que jaacute

ocorria em Minas Gerais acentuou-se Geralda por exemplo eacute casada com Antocircnio

cujo pai Joseacute dos Santos eacute seu primo de 2ordm grau O casamento entre parentes

aparece entatildeo como fator constitutivo da manutenccedilatildeo da coesatildeo do grupo e do

territoacuterio tendo em vista o histoacuterico de deslocamentos (MELLO 2012 p 24) No

entanto para aleacutem de caracteriacutestica proacutepria da organizaccedilatildeo social o racismo e a

discriminaccedilatildeo do entorno reforccedilaram a fronteira do casamento entre brancos e negros

A partir de 2005 com a possibilidade de reivindicarem a identidade

quilombola o estigma do racismo que enfrentaram e ainda enfrentam pocircde ser

recolocado como uma afirmaccedilatildeo positiva de ser negro e uma releitura da proacutepria

trajetoacuteria do grupo Neste sentido

O ato de aquilombar-se ou seja de organizar-se contra qualquer atitude ou sistema opressivo passa a ser portanto nos dias atuais a chama reacesa para na condiccedilatildeo contemporacircnea dar sentido estimular fortalecer a luta contra a discriminaccedilatildeo e seus efeitos Vem agora iluminar parte do passado aquele que salta aos olhos pela enfaacutetica referecircncia contida nas estatiacutesticas onde os negros satildeo maioria dos socialmente excluiacutedos Quilombo vem a ser portanto o mote principal para se discutir parte da cidadania negada (LEITE 2000 p 349)

Tal categoria natildeo correspondia a como os proacuteprios grupos se

autodenominavam de modo que essa identidade quilombola passa a ser politicamente

construiacuteda com base na mobilizaccedilatildeo de elementos histoacutericos e culturais preacute-

existentes em cada caso especiacutefico Ao inveacutes de querer estabelecer portanto uma

ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da interpretaccedilatildeo

historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI 2006 p 39-

40)51 deve-se buscar perceber quem satildeo os grupos que se mobilizam a partir desta

51 Tais criteacuterios riacutegidos baseados em estereoacutetipos satildeo defendidos pelos que se opotildeem aos direitos destes grupos sociais e tecircm a despeito do reconhecimento legal do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo uma repercussatildeo significativa no imaginaacuterio geral impactando nas expectativas colocadas em relaccedilatildeo por exemplo ao teor dos relatoacuterios antropoloacutegicos

59

identidade tomando como base o criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo como reconhecido pelo

ordenamento juriacutedico brasileiro52

Com a inserccedilatildeo do artigo 68 no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais

Transitoacuterias no acircmbito da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 a literatura antropoloacutegica

sobre quilombos vem destacando a diversidade de estrateacutegias e saiacutedas produzidas

pelos grupos sociais que passaram a se mobilizar politicamente e a se reconhecerem

a partir da ldquometaacutefora do quilombordquo (OrsquoDWYER 2011 p 120) Esta diversidade de

experiecircncias sociais dos quilombos implica na necessidade de ressemantizar o

conceito histoacuterico e compreender processos especiacuteficos como o caso da Comunidade

Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

Nesta experiecircncia social a identidade quilombola eacute pensada a partir de uma

origem comum que se desdobra por meio do movimento de deslocamento do grupo

em uma trajetoacuteria de resistecircncia Para o reconhecimento de trajetoacuterias histoacutericas

coletivas como esta como aponta o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho eacute

muito importante o processo de amadurecimento teoacuterico que sai da abordagem da

ldquoantropologia das perdasrdquo para anaacutelises dos processos de emergecircncia eacutetnica jaacute que

ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo

anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedilardquo (OLIVEIRA

FILHO 1998 p 64) Assim eacute necessaacuterio olhar para o processo que gerou a

territorialidade reconhecendo a historicidade a dinamicidade bem como a variedade

de estrateacutegias dos grupos quilombolas

12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA

ldquoA histoacuteria de nosso bisavocirc escravo chamado negro Joseacute Joatildeo Paulo

casado com a negra Maria Joana O lugar que eles moravam no

Estado de Minas Gerais era a cidade de Santo Antocircnio Itambeacute do

Serro aonde eles eram escravizados pelo sinhocirc na eacutepoca da

escravidatildeo Eles eram escravizados no garimpo tirano ouro e pedras

preciosas Ele e sua esposa naquela eacutepoca trabalhavam junto no

52 O criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo atualmente estaacute consagrado em acircmbito internacional e nacional por uma seacuterie de dispositivos normativos Neste sentido destaca-se a convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho sobre Povos Indiacutegenas e Tribais que estabelece em seu artigo 1ordm ldquoA consciecircncia de sua identidade indiacutegena ou tribal deveraacute ser considerada como criteacuterio fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposiccedilotildees da presente Convenccedilatildeordquo Esta convenccedilatildeo foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nordm 143 de 2062002 e entrou em vigor em 2003 No que tange agrave questatildeo especificamente quilombola o Decreto Federal 4887 de 2003 em seu artigo 2ordm sect 1ordm estabelece que ldquoPara os fins deste Decreto a caracterizaccedilatildeo dos remanescentes das comunidades dos quilombos seraacute atestada mediante autodefiniccedilatildeo da proacutepria comunidaderdquo

60

garimpo e tiveram filhos e filhas Seus filhos eram negra Maria

Eduarda negra Dolarina Domingos dos Santos negra Jorgina

Domingos dos Santos negro Joaquim Domingos dos Santos negro

Sebastiatildeo Dama Domingos dos Santos e negro Raimundo Domingos

dos Santos Eles criavam seus filhos com restos que seu sinhocirc dava e

agraves vezes ficavam ateacute sem comer para render mais porque a comida

era pouca ateacute aacutegua era retirada da mina eles tinham que beber aacutegua

suja para poder ateacute cozinhar Aiacute se um negro chegasse perto dessa

mina eles era amarrado e chicotiado e ficavam preso numa das parte

da senzala e ficavam muitos dias ateacute sem comer e doentes por causa

das chicotiadas Seu lugar de descanso eram chamados de lapa

chamado de caverna ou casa de pedra Ali se abrigavam em muitos

para poder aquecer do frio porque natildeo tinham roupa nem sapatos

andavam descalccedilos e assim criavam os seus filhos como meu avocirc

Joaquim Paulo dos Santos que se casou com Maria Zidora dos

Santos que tiveram seus filhos chamados Manoel Ciriaco dos Santos

Sebastiatildeo Vicente dos Santos Ana Raimunda dos Santos Na eacutepoca

que eles se casaram eles natildeo eram mais escravos jaacute eram alforriados

e trabalhavam para os senhores do retiro nos garimpo e na lavoura de

cana e cafeacute A cana para poder fazer a cachaccedila a rapadura e o

melado Eles vivia disso mais trabalhava mais natildeo tinha valor o seu

serviccedilo e moravam tambeacutem na lapa (casa de pedra) que nem foram

criados nos seus costumes porque natildeo era valorizado e ali criavam

seus trecircs filhos junto no trabalho da lavoura e alimentavam Aiacute casou

um dos seus filhos o que era meu pai Manoel Ciriaco dos Santos que

casou com Maria Olina do primeiro casamento que teve quatro filhos

com sua primeira esposa Os filhos Jovelina Ciriaco dos Santos Luiza

Ciriaco dos Santos Olegario da Silva e Joatildeo Loriano dos Santos E aiacute

foi trabalhar para poder criar seus quatro filhos no Estado de Minas

Gerais em Santo Antonio do Itambeacute do Serro O meu pai trabalhava

no retiro dos fazendeiros com carpi lavoura de mandioca retirando

carvatildeo no garimpo do ouro Transportava cachaccedila o queijo rapadura

carne secada no sol farinha de mandioca milho O transporte era feito

na cangaia no lombo de burro que era o trabalho que meu pai fazia

Era pra quem trabalhava que ele chamava de seus fulanos que eram

os fazendeiros para sustentar a sua primeira famiacutelia Com o passar do

tempo o meu pai perdeu a minha irmatilde que faleceu com 8 anos laacute em

Minas Gerais Ela se chamava Luiza Ciriaco dos Santos Meu pai ficou

viuacutevo ai ele ficou sozinho para poder cuidar dos filhos aiacute resolveu

casar de novo com a minha matildee Ana Rodrigues dos Santos aiacute tiveram

quatro filhos laacute no Estado de Minas Gerais Eurides dos Santos

Sebastiana Feliciana dos Santos Antocircnio Gregoacuterio dos Santos e Joseacute

Maria Gonccedilalves Aiacute eu sai dali com minha matildee e meu pai e meus

irmatildeos eu tinha seis meses de vida Aiacute naquela eacutepoca meu pai deixou

o meu irmatildeo com sete anos o Joatildeo Loriano dos Santos Aiacute nos fomos

para o Estado de Satildeo Paulo na cidade de Caiabuacute perto de Presidente

Prudente no ano de 1956 municiacutepio de Martinoacutepolis Meus pais

tiveram mais dois filhos Joaquim dos Santos e Geralda dos Santos Laacute

meu pai trabalhava torrando farinha para meu tio aiacute ele foi pra uma

fazenda arrendocirc uma terra de fazendeiro aiacute prantocirc amendoim

algodatildeo feijatildeo aiacute depois de oito anos noacutes saiacutemos de laacute e vinhemos

para o Paranaacute em 1964 na cidade de Guairaacute no Patrimocircnio do

Maracaju dos Gauacutechos aonde noacuteis residimos ateacute hoje Mais na

chegada aqui era tudo mato aiacute eu meu pai e meus irmatildeos mais velhos

ajudamos meu pai a caccedilar e derrubar a mata Fizemos uma barraca de

lona e acampamos no meio do mato Aiacute com o tempo fizemos um

rancho com taubinha de cedro e cercado de coqueiro e no chatildeo

61

passava argila misturada com esterco de vaca Noacuteis dormia no chatildeo e

minha matildee cozinhava no fogatildeo de barro mais mesmo assim noacutes

passava necessidade tinha dia que noacutes natildeo tinha nem o angu para

comer nem feijatildeo Caccedilava caccedila do mato pescava assava e comia

porque a gordura noacuteis natildeo tinha Minha matildee lavava nossa roupa No

lugar do sabatildeo porque natildeo tinha usava cinza de madeira e lavava na

mina Aiacute com o tempo noacuteis fomo roccedilando fomo preparando a terra e

aiacute saiu a lavoura que noacuteis comecemos a plantar Com o tempo tivemos

mais trecircs irmatildeos Paulo dos Santos Adir Rodrigo dos Santos e Joatildeo

Aparecido dos Santos Com o tempo o meu irmatildeo Paulo ele era

deficiente mental aiacute veio a falecer com 15 anos Aiacute depois faleceu

Manoel Ciriaco dos Santos com 69 anos Aiacute depois faleceu Antocircnio

Gregoacuterio dos Santos faleceu com 35 anos depois faleceu Sebastiana

Feliciana dos Santos depois faleceu Ana Rodrigues dos Santos aiacute

depois que meus pais e meus irmatildeos faleceram ficamos soacute nois os

filhos Continuamos lidando com a terra mais com muita dificuldade

Passamos fome e humilhaccedilatildeo pelos grande fazendeiro porque na

eacutepoca que meu pai faleceu deixou muita diacutevida por causa da lavoura

aiacute comeccedilamos a trabaiaacute por dia para poder sustentar nossas famiacutelia e

assim mesmo tinha muita dificuldade para pode pagar as contas Por

causa disso noacutes nunca pudemos ir pra frente soacute ficamos pra trais aqui

nesse lugar passamos a trabaiaacute mais por dia pros outros nas lavoura

de mandioca para pequeno e grande agricultor para podecirc pagar as

nossas contas e mesmo assim natildeo conseguimos porque se pagasse

as contas ficava sem comer Trabalhamos no rancadatildeo de mandioca

para poder se alimentar Com muita dificuldade trabalhamos dias

mecircs anos e ateacute hoje continuamos no mesmo serviccedilo sem futuro pra

noacutes e nossos filhos Isto eacute um pouco da nossa histoacuteria da nossa

comunidade e o contador da histoacuteria eacute o negro Joseacute Maria Gonccedilalves

filho do Manoel Ciriaco dos Santosrdquo (Joeacute Maria Gonccedilalves) (GRUPO

DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 p 149-151)

A fala apresentada acima eacute central para este trabalho por ser a primeira

narrativa do grupo para agentes do Estado que foi registrada53 O finado Zeacute Maria eacute o

narrador perante os membros do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM)54 e resume

a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade Ele era na eacutepoca o mais velho dentre os irmatildeos

que permaneceram no siacutetio em GuaiacuteraPR depois da saiacuteda da maior parte das

famiacutelias a partir da deacutecada de 1990 Com este decreacutescimo de famiacutelias e com a morte

dos mais velhos que vieram de Minas (tendo como referecircncia principal os pais Manoel

Ciriaco falecido em 1989 e Ana Rodrigues em 1994) os adultos que ficaram na

comunidade se tornaram os portadores das lembranccedilas daqueles que vivenciaram

esta histoacuteria familiar de movimento Zeacute Maria por exemplo saiu de Minas Gerais com

53 Este relato foi gravado em 15 de janeiro de 2007 Disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 54 Grupo Intersecretarial criado pelo governo do estado do Paranaacute em 2005 para realizar levantamento de comunidades quilombolas no estado Foi extinto em 2010

62

apenas seis meses de vida Dentre os irmatildeos mais novos que satildeo os que

permanecem em Guaiacutera atualmente Joaquim (55) e Geralda (53) nasceram no estado

de Satildeo Paulo proacuteximo a Presidente Prudente ndash no municiacutepio de CaiabuSP ndash

enquanto Adir (46) e Joatildeo Aparecido (43) nasceram no Pararaacute em Guaiacutera55

Na narrativa acima observa-se que a organizaccedilatildeo dos fatos se daacute de modo

cronoloacutegico e tem iniacutecio com o marco fundamental dos seus bisavocircs casal ancestral

que foi escravizado em Santo Antocircnio Itambeacute do SerroMG Suas lembranccedilas falam

da situaccedilatildeo de pobreza e sofrimento dos antepassados associada a elementos como

o trabalho escravo no garimpo a moradia na senzala a submissatildeo agrave violecircncia fiacutesica

a fome a falta de acesso a roupa e recursos baacutesicos O nascimento de seu pai

Manoel Ciriaco dos Santos em 1920 eacute um acontecimento destacado eacute ele o

personagem central do processo de deslocamento do grupo para o Paranaacute Durante

toda a narrativa destaca os viacutenculos de parentesco nascimentos casamentos e

mortes em uma percepccedilatildeo do tempo baseada na sequecircncia de geraccedilotildees Zeacute Maria

reforccedila que mesmo com o fim da escravidatildeo seus avoacutes continuaram a trabalhar para

os senhores no garimpo e na lavoura de cana e cafeacute tendo se mantido a

desvalorizaccedilatildeo de seu trabalho e a dificuldade de sobrevivecircncia da famiacutelia Indica que

a alforria natildeo trouxe portanto uma mudanccedila significativa para as suas condiccedilotildees de

vida e as relaccedilotildees de trabalho O movimento em etapas eacute iniciado pelas famiacutelias ateacute

chegarem em Guaiacutera onde conquistam novas aacutereas de terra atraveacutes do trabalho duro

em uma histoacuteria de ldquoluta e humilhaccedilatildeordquo O narrador finaliza sua histoacuteria demonstrando

os motivos pelos quais os membros da comunidade natildeo tecircm perspectivas de futuro

pois tal reconfiguraccedilatildeo acaba novamente reproduzindo a opressatildeo

Esta narrativa como todo ato de recordaccedilatildeo deve ser entendida como uma

interpretaccedilatildeo e natildeo como recordaccedilatildeo literal Trata-se da ldquoconstruccedilatildeo de um

lsquoesquemarsquo de uma codificaccedilatildeo que nos permite discernir e por isso recordarrdquo

(CONNERTON 1999 p 30) A autoidentificaccedilatildeo final do narrador como negro bem

como sua insistecircncia em destacar tal caracteriacutestica em relaccedilatildeo aos parentes parece

55 No plano narrativo uma situaccedilatildeo rememorada natildeo seraacute contada a partir de um narrador onisciente

que daacute um testemunho autecircntico e estaacute ldquoacima do desenvolvimento dos fatos mas a partir de um narrador parcial e imerso em seu interiorrdquo permeado portanto pela rede de relaccedilotildees em que se insere o narrador Eacute o processo de visatildeo decorrente do caraacuteter parcial do ponto de vista em sua subjetividade e natildeo os fatos que satildeo vistos o que eacute mais relevante na anaacutelise das narrativas de memoacuterias o que aponta para as condiccedilotildees sociais de sua produccedilatildeo bem como suas articulaccedilotildees com o momento presente (PORTELLI 1996 p 64)

63

apontar a percepccedilatildeo do lugar que cabe ao negro nos contextos descritos O aspecto

da resistecircncia do grupo natildeo eacute lido pelo narrador como confronto aberto em relaccedilatildeo agrave

ordem instituiacuteda Resistir eacute de certa forma persistir na reproduccedilatildeo da ldquocampesinidade

como ordem moralrdquo (WOORTMANN 1990) na luta contiacutenua por estar na terra

condiccedilatildeo de sua existecircncia material afetiva e simboacutelica o que aponta para uma

amaacutelgama entre resistecircncia racial e resistecircncia camponesa (RUBERT SILVA 2009)

Na histoacuteria desta famiacutelia portanto o foco do deslocamento natildeo era o urbano

como comum na deacutecada de 1960 mas a possibilidade de reinserccedilatildeo do grupo por

meio da reproduccedilatildeo do trabalho rural Este anseio do grupo pode ser inserido como

desdobramentos de um panorama histoacuterico mais amplo no qual a resistecircncia dos ex-

escravos passou pela consolidaccedilatildeo de uma alternativa camponesa que

() possibilite a autonomia produtiva direcionada tanto para o autoconsumo quanto para diversos circuitos do mercado Essa autonomia produtiva soacute eacute possiacutevel por sua vez mediante a consolidaccedilatildeo de um espaccedilo em que instacircncias de socializaccedilatildeo que no caso satildeo fundamentadas em uma gramaacutetica do parentesco operam a passagem por parte de escravos e ex-escravos da condiccedilatildeo de coisa agrave condiccedilatildeo de pessoa (RUBERT SILVA 2009 p 267)

A busca pela reproduccedilatildeo camponesa destas famiacutelias negras implicou entatildeo

na decisatildeo de saiacuterem de sua regiatildeo origem com o alto custo emocional e econocircmico

que tal escolha gera O antropoacutelogo Klaas Woortmann com importante contribuiccedilatildeo

para os estudos do campesinato demonstrou como a migraccedilatildeo eacute uma praacutetica de

reproduccedilatildeo dos camponeses enquanto condiccedilatildeo para a permanecircncia de parte da

famiacutelia na aacuterea rural Isso porque a migraccedilatildeo definitiva tem como um dos principais

motivos minimizar ou impedir o fracionamento da terra pela heranccedila56 tendo em vista

o processo histoacuterico de reduccedilatildeo da aacuterea do campesinato pelo avanccedilo capitalista

Outro mecanismo para preservar o patrimocircnio familiar eacute o ldquopadratildeo de preferecircncias

matrimoniaisrdquo pelo casamento endogacircmico (WOORTMANN 2009 p 229-230)

praacutetica que era comum nestas famiacutelias negras desde Minas e que se mantiveram no

processo de migraccedilatildeo A definiccedilatildeo de quem dentro da famiacutelia se tornaraacute migrante

passa por praacuteticas como a valorizaccedilatildeo da primogenitura que define a condiccedilatildeo de

ldquoherdeiro preferencialrdquo No caso de Manoel Ciriaco ao passo que Manoel migrou o

irmatildeo mais velho Sebastiatildeo Vicente tornou-se herdeiro da terra da famiacutelia

56 Assim tambeacutem demonstrou o estudo de Galizoni sobre a regiatildeo especiacutefica do Alto Jequitinhonha (MG) como citado na Introduccedilatildeo (GALIZONI 2002)

64

Devem migrar todos os filhos de determinada famiacutelia menos o herdeiro Para

os membros de um conjunto de irmatildeos haacute portanto como que duas temporalidades

a continuidade para uns e a descontinuidade para outros Para que uns continuem

sitiantes outros devem deixar de secirc-lo (WOORTMANN 2009 p 233) A migraccedilatildeo

ocorre por meio da rede de parentesco os que migram de uma mesma localidade

tendem a buscar um destino comum Laacute iratildeo constituir redes onde se replica o

casamento entre primos e forma-se um sistema de apoio para novos migrantes

(WOORTMANN 2009 p 234) Conforme expliacutecito no cartaz que seraacute apresentado

abaixo exposto no barracatildeo da comunidade o movimento destas famiacutelias negras eacute

compreendido na memoacuteria do grupo como parte fundamental do processo de

emergecircncia eacutetnica

O iniacutecio da trajetoacuteria de deslocamento da comunidade eacute identificado no

cartaz57 abaixo em referecircncia ao traacutefico de africanos para serem comercializados

como escravos no Brasil mais especificamente no estado de Minas Gerais O paiacutes de

origem na Aacutefrica de onde imaginam serem provavelmente descendentes eacute Angola

mas natildeo haacute informaccedilotildees sobre este passado mais remoto A relaccedilatildeo com a regiatildeo de

origem africana surgiu a partir da identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas comuns a

alguns membros da comunidade Segundo Adir lideranccedila quilombola em Guaiacutera

Nosso pessoal natildeo veio de um lugar soacute da Aacutefrica porque tem uns que satildeo alto e magro canela fina que o senhor do engenho usava mais no serviccedilo da roccedila Outros que satildeo mais baixo e forte satildeo mais lento usava mais no trabalho em casa As mulheres mais fortes mais baixa mais troncuda eacute que serviria para dar de mamar para as crianccedilas do senhor de engenho

57 O cartaz foi elaborado pelos membros da comunidade junto com uma teacutecnica da EMATER com quem tecircm forte proximidade quando da inauguraccedilatildeo em 2008 do Telecentro (sala com computadores com acesso a internet) instalado na comunidade pela empresa ELETROSUL Nesta oportunidade foi feita uma festa no barracatildeo da comunidade para receber as pessoas da regiatildeo (inclusive Adir destacou que os vizinhos do Maracaju estiveram presentes pois ainda natildeo havia ocorrido o conflito desencadeado pela elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico no acircmbito do procedimento do INCRA) Para divulgar a histoacuteria da comunidade nesta oportunidade resolveram entatildeo fazer um cartaz em que contassem os momentos principais da sua trajetoacuteria marcada pelo deslocamento Atualmente o cartaz fica exposto no barracatildeo da comunidade ndash espaccedilo onde fazem reuniotildees ocorrem as aulas de educaccedilatildeo de jovens e adultos jogam capoeira recebem visitas de escolas e agentes diversos

65

FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia

66

Em Minas Gerais onde os antepassados dessas famiacutelias criaram raiacutezes

ldquocomeccedila a saga da famiacutelia dos Remanescentes dos Quilombos com a histoacuteria do

patriarca Manoel Ciriaco dos Santos A famiacutelia morava em uma lsquolaparsquo de pedra A vida

era feita de fome e muito trabalhordquo como legendado no cartaz A palavra saga aponta

para o caraacuteter heroico que eacute atribuiacutedo a esta histoacuteria dos antepassados pois de Minas

Gerais tiveram que sair rumo ao desconhecido com bebecircs crianccedilas idosos com

poucos recursos para a viagem enfrentando inuacutemeras dificuldades e desafios para

buscarem oportunidades no estado de Satildeo Paulo Foi a ldquomudanccedila de vida rumo a Satildeo

Paulo com destino a Caiabu O trabalho colheita de algodatildeo e amendoimrdquo Por fim

o terceiro momento descrito no cartaz eacute marcado pelo deslocamento em direccedilatildeo ao

Paranaacute e eacute identificado como sendo a ldquoconquista da liberdade Manoel Ciriaco compra

terras em Guaiacutera no Estado do Paranaacute em 1962 A famiacutelia do patriarca chega ao

patrimocircnio do Maracaju dos Gauacutechos em suas terras no ano de 1964rdquo A liberdade

real significa entatildeo a autonomia e a possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo viabilizada

pela conquista de um pedaccedilo de terra em Guaiacutera um ldquoterritoacuterio quilombolardquo a partir

do qual novas conquistas seratildeo alcanccediladas pela comunidade

Ao comparar a fala de Zeacute Maria com a trajetoacuteria descrita no cartaz eacute possiacutevel

perceber que ele na articulaccedilatildeo de suas memoacuterias ainda natildeo apontava o caminho

do reconhecimento como quilombolas enquanto uma possibilidade de alteraccedilatildeo do

percurso histoacuterico de exclusatildeo que narra jaacute que conclui sua fala apontando para a

falta de perspectiva de futuro para ele e seus parentes No caso do cartaz ao

contraacuterio a perspectiva de futuro aparece com a conquista do territoacuterio e

posteriormente com o conhecimento de uma seacuterie de direitos dos quais se

consideram detentores e em busca dos quais passam a se organizar em torno da

identidade quilombola Isto mostra como a memoacuteria eacute dinacircmica enquanto fruto do

trabalho coletivo realizado com base no ldquorepertoacuterio de narrativas de uma comunidade

afetivardquo Tal repertoacuterio estaacute ldquoem permanente relaccedilatildeo com o oral apresentando-se

sempre como versatildeo aberta permanentemente reconstruiacuteda pelas trocas sociais e

constantemente reestabelecida pela repeticcedilatildeo e pela negociaccedilatildeo de versotildeesrdquo

(ARRUTI1996 p 32-33)

Considerando que a fala de Zeacute Maria foi registrada nos primeiros contatos dos

representantes do grupo com agentes externos em janeiro de 2007 eacute interessante

observar que o eixo narrativo do deslocamento do sofrimento e da discriminaccedilatildeo

67

provavelmente natildeo foi elaborado com a intenccedilatildeo de adequar a histoacuteria do grupo como

uma resposta agrave demanda pela construccedilatildeo identitaacuteria enquanto quilombolas pois esta

questatildeo natildeo aparece em sua reflexatildeo Por outro lado em termos de sistematizaccedilatildeo

histoacuterica da trajetoacuteria do grupo que lhe foi demandada naquele momento os

elementos que estruturaram o seu relato continuaratildeo a subsidiar este processo de

construccedilatildeo identitaacuteria quilombola da comunidade em GuaiacuteraPR

O cartaz por sua vez elaborado pelos membros da comunidade junto com

uma teacutecnica da EMATER com quem consideram ter uma relaccedilatildeo de bastante

confianccedila e proximidade tambeacutem tinha o intuito de contar visualmente a histoacuteria da

comunidade Isto ocorreu em 2008 apoacutes a autoidentificaccedilatildeo do grupo como

quilombolas de modo que eacute possiacutevel observar como o cartaz aponta para a afirmaccedilatildeo

desta identidade como o comeccedilo de um novo ciclo na histoacuteria dessas famiacutelias desde

seus antepassados Se no seacuteculo XIX foram escravizados em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG e laacute resistiram ateacute a deacutecada de 50 do seacuteculo XX com os deslocamentos e

a reorganizaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera novas perspectivas de futuro se apresentam

pelo caminho da identidade quilombola no iniacutecio do seacuteculo XXI Deste modo ldquoa

identidade contrastiva constituiacuteda sob a eacutegide do estigmardquo seraacute invertida como uma

afirmaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a si mesmos (RUBERT SILVA 2009 p 252-258)

A elaboraccedilatildeo da identidade quilombola conforme eacute possiacutevel perceber na fala

de Adir passa a ser construiacuteda a partir da temaacutetica da resistecircncia frente a contextos

contiacutenuos de adversidade desde nossos antepassados da luta e da busca pela

efetivaccedilatildeo dos nossos direitos A categoria de autoidentificaccedilatildeo como ldquoquilombolasrdquo

seraacute mobilizada portanto a partir de elementos preacute-existentes da histoacuteria e da

memoacuteria do grupo Esta fala foi realizada para um puacuteblico de alunos de uma escola

da regiatildeo que visitaram a comunidade na semana da comemoraccedilatildeo da aboliccedilatildeo da

escravatura (13 de maio) em 20 de maio de 201458

Adir () Vou contar pra vocecircs as nossas dificuldades a nossa luta no dia a dia a nossa trajetoacuteria desde os nossos antepassados na Aacutefrica trajetoacuteria da Aacutefrica em navio negreiro de laacute pra caacute e tambeacutem da onde o nosso pessoal foi

58 Esta foi uma de muitas visitas que recebem (segundo Adir recebem mais de mil pessoas durante o

ano todo enfatizando a intensidade dos agendamentos) quando satildeo procurados principalmente por professores da regiatildeo que querem levar os alunos para conhecer a histoacuteria dos quilombolas Aleacutem do 13 de maio as visitas ocorrem com maior frequecircncia proacuteximo ao dia 20 de novembro dia da consciecircncia negra A professora que acompanhou este grupo especiacutefico em 20 de maio de 2014 contou ao final da apresentaccedilatildeo de Adir como jaacute incorporou a visita agrave comunidade como uma proposta de levar todo ano seus alunos para conhecer o ldquoquilombo de Guaiacuterardquo

68

centralizado no estado em Minas Gerais onde o trabalho desde o trabalho escravo e depois o trabalho nas mesmas fazendas garimpo de ouro cana-de-accediluacutecar cafeacute Entatildeo todo aquele trabalho que eles faziam em Minas Gerais desde os mais velhos que sofreram na eacutepoca da escravidatildeo Eu sei que o local onde eles morava laacute era um local de difiacutecil acesso em loca de pedra muito difiacutecil o trabalho deles o sofrimento fome sem identidade sem nenhum tipo de direito e isso fez com que eles saiacutessem de laacute e procuramos um local melhor procurando sobreviver melhor e aconteceu que hoje noacutes estamos aqui Eles fizeram a trajetoacuteria de Minas ateacute o Estado de Satildeo Paulo e do estado de Satildeo Paulo nessa regiatildeo aqui em Guaiacutera Eacute uma regiatildeo de muito preconceito o local onde a gente taacute centralizado aqui Me lembro que na idade de vocecircs que a gente estudava no coleacutegio a gente era chamado de macaco de filho do capeta natildeo tinham respeito com a gente jaacute dizia que por causa da cor da pele jaacute significava tudo pra eles a separaccedilatildeo de negro e de branco Entatildeo noacutes sobrevivemos a tudo isso o maior preconceito e mesmo assim noacutes trabalhamos pra eles Depois que a gente cresceu os nossos mais velhos dependiam do trabalho porque quando nosso pai chegou era tudo o mato natildeo tinha nada a sobrevivecircncia era tirar o sustento tambeacutem da mata aproveitar ao maacuteximo possiacutevel pra sobrevivecircncia e poder criar a famiacutelia Aqui noacutes aprendemos a nossa religiatildeo aqui noacutes aprendemos a trabalhar e respeitar as pessoas aqui noacutes aprendemos a sobreviver de forma difiacutecil de forma sofrida E por isso a gente taacute aqui hoje mesmo com esse sofrimento todo toda a pressatildeo opressatildeo de latifundiaacuterio opressatildeo que queria tomar as nossas terras opressatildeo de toda forma E noacutes a nossa resistecircncia pra noacutes taacute aqui ateacute hoje aqui nessa luta sem sonho sem poder sem direito E noacutes a partir de 2005 e 2006 foi aonde que a gente criou essa esperanccedila de que a gente podia conhecer os nossos direitos lutar se organizar construir uma associaccedilatildeo e aonde a gente aprendeu e ainda estamos aprendendo muitas coisas para noacutes requerer nossos direitos Natildeo digo soacute direito da terra mas direito tambeacutem das poliacuteticas puacuteblicas direito de conviver com a naccedilatildeo direito de sobreviver com dignidade e que as pessoas possam nos respeitar E de vocecirc olhar pra um negro e dizer que esse negro natildeo deve andar no meio da sociedade natildeo possa ter as suas poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode ter nada de garantia nem sobrevivecircncia Mas a nossa mentalidade hoje a gente pensa diferente de antes Antes a gente ficava calado a gente natildeo falava numa religiatildeo a gente natildeo falava na nossa culinaacuteria e a gente natildeo podia falar em nada tudo que a gente aprendeu e aprendia isso era guardado soacute na mente E hoje natildeo hoje a gente possa pronunciar que a gente vecirc o direito que tecircm E natildeo soacute por causa do direito porque eu acho que nem precisaria a gente ficar correndo atraacutes de algum direito Se eacute que o negro trabalhou nesse paiacutes de forma injusta e quantos derramaram o seu sangue nesse solo brasileiro pra construir esse paiacutes que natildeo precisava a gente taacute aiacute nessa correria pra recorrer aos nossos direitos recorrer a algumas coisas e ateacute mesmo agrave nossa sobrevivecircncia

Nesta construccedilatildeo identitaacuteria raccedila eacute um conceito ecircmico fundamental no

cotidiano das pessoas que influenciou de modo determinante os significados

atribuiacutedos agrave identidade quilombola neste grupo (MELLO 2012 p 50) A importacircncia

da noccedilatildeo de raccedila no contexto local remete ao processo de ldquooutrificaccedilatildeordquo a que a

populaccedilatildeo negra foi submetida no Brasil conforme analisado por Rita Segato ldquoser

negro significa exibir traccedilos que lembram e remetem agrave derrota histoacuterica dos povos

africanos perante os exeacutercitos coloniais e sua posterior escravizaccedilatildeordquo Enquanto

ldquoalteridade histoacutericardquo a experiecircncia de ldquoser outro no contexto da naccedilatildeo e da regiatildeordquo

69

(SEGATO 2005) eacute ainda mais sentida pelos membros do grupo em sua inserccedilatildeo na

regiatildeo Sul do Brasil onde a segregaccedilatildeo racial remonta ao projeto estatal de

branqueamento da populaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX Mas se antes natildeo se sabiam

ldquoquilombolasrdquo e ficavam calados como aponta Adir passaram entatildeo a se pronunciar

a partir do processo de autoidentificaccedilatildeo identitaacuteria que toma os deslocamentos como

marcos de uma histoacuteria de resistecircncia contiacutenua

Assim o ldquocaminhar quilombolardquo que orienta as narrativas locais no acircmbito do

processo de emergecircncia do grupo como sujeito poliacutetico tema deste capiacutetulo

questiona o cerne dos estereoacutetipos constituintes dos discursos colonial e poacutes-colonial

sobre a construccedilatildeo da alteridade nos termos de sua ldquodependecircncia em relaccedilatildeo ao

conceito de lsquofixidezrsquo Fixidez implica repeticcedilatildeo rigidez e uma ordem imutaacutevelrdquo como

observou o autor indiano Homi Bhabha (BHABHA 1998 p 70-104) Este discurso de

fixidez tem grande reverberaccedilatildeo dentre os agentes do Estado que satildeo aqueles que

instituem categorias para identificaccedilatildeo de sujeitos de direitos coletivos que passam

desta forma a ser objeto da accedilatildeo estatal o que Arruti entende por ldquoprocesso de

nominaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 45-46)

Tomando por base tal ideia de ldquofixidezrdquo a ldquopoliacutetica das identidadesrdquo tende a

captar e reduzir as expressotildees de ldquoidentidades poliacuteticasrdquo que foram engendradas

como resposta dos grupos sociais ao processo hegemocircnico e verticalizante de

produccedilatildeo de ldquoalteridades histoacutericasrdquo A autoidentificaccedilatildeo dos grupos de saiacuteda estaacute

sobredeterminada pela ldquopoliacutetica das identidadesrdquo que eacute institucionalizada legal e

administrativamente em torno da perspectiva de enraizamento territorial o que pode

implicar na perda da profundidade histoacuterica da complexidade de origem da riqueza e

da densidade ldquodas outredades localmente modeladasrdquo (SEGATO 2005) como no

caso de uma comunidade quilombola que se constroacutei a partir do movimento e natildeo na

relaccedilatildeo ancestral com um mesmo territoacuterio Identidade quilombola esta reivindicada

vale destacar pelo grupo que saiu da regiatildeo de origem

A partir destas narrativas e reflexotildees dos quilombolas em Guaiacutera os debates

do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold em seu livro Lines a brief history ganharam

relevacircncia para as anaacutelises desta dissertaccedilatildeo O autor traz exemplos de cosmologias

de grupos para os quais o movimento consiste em um modo de ser Este eacute o caso do

povo Inuit habitantes da regiatildeo do Aacutertico para os quais o ato de viajar define quem o

viajante eacute Neste sentido o viajante e a linha de seu movimento sua trilha satildeo o

70

mesmo Outro exemplo eacute do povo Walbiri estudado por Roy Wagner para os quais a

vida de uma pessoa eacute a soma de seus caminhos e a inscriccedilatildeo de seus movimentos

algo que pode ser traccedilado atraveacutes do chatildeo (INGOLD 2007 p 75-79)

Por mais efecircmeras que sejam essas trilhas permanecem na memoacuteria pois o

trajeto eacute mais do que a distacircncia de um ponto ao outro Implica em atividades

permanentes de interaccedilatildeo e de monitoramento perceptivo do ambiente visando a

sustentaccedilatildeo daquele que o percorre (INGOLD 2007 p 76) Observando uma estreita

ligaccedilatildeo entre locomoccedilatildeo e percepccedilatildeo Ingold define movimento como

(hellip) Not a casting about the hard surfaces of a word in which everything is already laid out but an issuing along with things in the very process of their generation not the trans-port (carrying across) of completed being but the pro-duction (bringing forth) of perpetual becoming (INGOLD 2011 p 12)

A partir dessa compreensatildeo de movimento Ingold elabora sua perspectiva do

habitar que perpassa a imersatildeo dos seres nas correntes do mundo da vida atraveacutes

da atenccedilatildeo e do engajamento com o ambiente em um movimento ao longo de um

caminho no qual as vidas satildeo vividas os talentos desenvolvidos as observaccedilotildees satildeo

feitas e as compreensotildees crescem Observaccedilatildeo implica movimento todos os seres

observadores satildeo animais e todos os animais satildeo moacuteveis O caminho deste modo eacute

a condiccedilatildeo primeira de ser ou melhor de se tornar jaacute que ldquowayfaring is the

fundamental mode by which living beings inhabit the earthrdquo (INGOLD 2011 p 09-12)

O autor reforccedila a prioridade dos processos contiacutenuos sobre a forma final na constante

coproduccedilatildeo do ambiente e de seus habitantes humanos e natildeo humanos Questiona

assim as premissas de uma antropologia sincrocircnica jaacute que esta desconsidera a

historicidade dos grupos sociais em suas trajetoacuterias A questatildeo poreacutem eacute mais ampla

pois tambeacutem eacute possiacutevel abordar a histoacuteria atraveacutes de lugares e eventos circunscritos

A ecircnfase seria em Ingold principalmente em dinacircmicas e processos os quais natildeo se

fixam em momentos ou locais especiacuteficos A anaacutelise de tais movimentos portanto

demandaraacute em sua abordagem uma perspectiva necessariamente diacrocircnica

Ingold dialoga com outras propostas teoacutericas da antropologia que buscam

superar o paradigma da fixidez em prol de anaacutelises que trabalhem com a fluidez59 O

59 Esta anaacutelise proposta por Ingold estaacute conectada com a influecircncia trazida para as discussotildees

contemporacircneas da Antropologia por meio do livro Mil Platocircs dos filoacutesofos franceses Deleuze e Guattari cuja primeira ediccedilatildeo eacute de 1980 Com o enfoque analiacutetico na complexidade na heterogeneidade na coexistecircncia nos processos os autores apontam para a importacircncia das

71

autor entende que a vida se desenvolve natildeo dentro dos lugares mas atraveacutes em

torno e a partir deles para outros lugares ao longo dos caminhos em trajetoacuterias de

movimento A ideia do que se pode tentar traduzir como ldquoviagem a peacuterdquo (wayfaring) eacute

utilizada entatildeo para descrever a experiecircncia corporal deste movimento

perambulatoacuterio pois eacute como ldquocaminhantesrdquo que os humanos habitam a terra O autor

prefere entatildeo conceituar as pessoas como ldquohabitantesrdquo e natildeo como ldquolocaisrdquo pois

seria equivocado supor que estas pessoas estivessem confinadas dentro de um lugar

particular ou que sua experiecircncia ficasse circunscrita pelo restrito horizonte de uma

vida vivida apenas ali Trata-se ao contraacuterio da ligaccedilatildeo entre lugares que ocorre por

meio das trilhas deixadas Onde as pessoas se encontram neste caminhar as trilhas

se entrelaccedilam formando um noacute O lugar portanto eacute como um noacute mais ou menos

denso de acordo com a quantidade de linhas de vida entrelaccediladas (INGOLD 2011

p 148)

Dentro deste modo de anaacutelise o siacutetio onde vivem os quilombolas de

GuaiacuteraPR pode ser entendido como um noacute de trilhas entrelaccediladas cuja origem

descreve uma linha de conexatildeo com o noacute originaacuterio Santo Antocircnio do ItambeacuteMG60 e

um outro noacute tambeacutem relevante na regiatildeo de Presidente PrudenteSP Natildeo uma

territorialidade fechada e circunscrita em Guaiacutera mas uma base territorial que

diferentes linhas que compotildeem uma multiplicidade Apesar de sua relevacircncia e profundidade teoacuterica iremos apenas mencionar que no que tange aos processos de territorializaccedilatildeo tema que se relaciona diretamente com a anaacutelise desta dissertaccedilatildeo a partir da ecircnfase no movimento haveraacute sempre um potencial de desterritorializaccedilatildeo e de reterritorializaccedilatildeo conforme as respostas agenciadas diante de elementos cuja interferecircncia gera novos contextos de modo que as configuraccedilotildees nunca satildeo fechadas Por outro lado ponderam que o aparelho do Estado enquanto ldquoo logos o filoacutesofo-rei a transcendecircncia da Ideia a interioridade do conceito a repuacuteblica dos espiacuteritos o tribunal da razatildeo os funcionaacuterios do pensamento o homem legislador e sujeitordquo natildeo compreende em sua atuaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo este tipo de dinacircmica presente por exemplo em praacuteticas como a do nomadismo (DELEUZE GUATTARI 2000 [1997] p 35) Neste sentido importante mencionar que a proacutepria descriccedilatildeo do funcionamento do rizoma modelo epistemoloacutegico nesta teoria filosoacutefica aponta para dinacircmicas de territorializaccedilatildeo e desterritorializaccedilatildeo e reterritorializaccedilatildeo Por um lado as linhas de segmentaridade que compotildeem o rizoma iratildeo estratificaacute-lo de modo a territorializaacute-lo e organizaacute-lo mas por outro o rizoma tambeacutem eacute composto por linhas de desterritorializaccedilatildeo linhas de fuga as quais podem reencontrar ldquoorganizaccedilotildees que reestratificam o conjuntordquo Resumidamente podemos entender o rizoma a partir da seguinte citaccedilatildeo ldquooposto a uma estrutura que se define por um conjunto de pontos e posiccedilotildees por correlaccedilotildees binaacuterias entre estes pontos e relaccedilotildees biuniacutevocas entre estas posiccedilotildeesrdquo O rizoma eacute feito somente de linhas ldquolinhas de segmentaridade de estratificaccedilatildeo como dimensotildees mas tambeacutem linha de fuga ou de desterritorializaccedilatildeo como dimensatildeo maacutexima segundo a qual em seguindo-a a multiplicidade se metamorfoseia mudando de naturezardquo (DELEUZE GUATTARI 2000 p 31) 60 Antes das viagens realizadas para Santo Antocircnio do Itambeacute e Serro em Minas Gerais no final da

pesquisa em marccedilo e junho de 2015 estas conexotildees permaneciam no plano da memoacuteria posteriormente o viacutenculo estaacute sendo reconstruiacutedo com os parentes que foram (re)encontrados

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possibilitou a reproduccedilatildeo de uma comunidade61 que se entende aberta em uma

articulaccedilatildeo entre identidade parentesco e origem comum Importante destacar que

um elemento importante na construccedilatildeo desta identidade tambeacutem passa pela

possibilidade de movimento que surge atraveacutes de viagens que se tornaram frequentes

na vida da lideranccedila do grupo Adir em contato com agentes externos em encontros

reuniotildees audiecircncias etc Para seguir nas trilhas abertas pelos habitantes da

comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo se pode portanto

desconsiderar a importacircncia dessas relaccedilotildees externas inclusive para ldquoproduzir natildeo soacute

o a imagem do grupo mas o proacuteprio grupordquo

Nesta produccedilatildeo o exerciacutecio de representaccedilatildeo das ldquolideranccedilas peregrinasrdquo

em seu papel de porta-voz eacute fundamental ao ldquose fazerem conhecer por autoridades

extra-locaisrdquo atraveacutes do circuito das viagens e do paulatino domiacutenio da loacutegica de

mediaccedilatildeo (ARRUTI 1996 p 57) A busca por reconhecimento contatos acesso a

direitos projetos de futuro atraveacutes das lideranccedilas em constantes viagens podem ser

entendidas portanto como ldquoverdadeiras romarias poliacuteticasrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998

p 65) Pude acompanhar uma dessas viagens da lideranccedila do grupo Adir para a

participaccedilatildeo como delegado representando o estado do Paranaacute na Conferecircncia

Nacional de Educaccedilatildeo (CONAE)62 em novembro de 2014 que ocorreu em

BrasiacuteliaDF Durante o evento Adir me falou em uma entrevista sobre sua experiecircncia

com viagens para diversos encontros que destaca como um dos pontos mais

61 Se em relaccedilatildeo aos parentes que estatildeo fora a comunidade quilombola natildeo pode ser vista como

unidade fechada em relaccedilatildeo aos que estatildeo morando no territoacuterio vale ressaltar isso tambeacutem natildeo se sustenta O papel de lideranccedila de Adir apesar de natildeo haver candidato disposto agrave substituiacute-lo mesmo depois de sete anos na presidecircncia da ACONEMA colocaria segundo outros parentes me falaram seu nuacutecleo familiar numa posiccedilatildeo privilegiada Por outro lado Adir entende que sua atuaccedilatildeo como lideranccedila as constantes viagens para outras cidades ou mesmos os deslocamentos entre a comunidade e a sede do municiacutepio em Guaiacutera (distante vinte quilocircmetros do siacutetio) prejudica seu trabalho como agricultor e a possibilidade de dedicaccedilatildeo agrave sua ldquovida particularrdquo o que os outros parentes natildeo reconheceriam Haacute tambeacutem fissuras internas em relaccedilatildeo ao modo adequado de gerir a associaccedilatildeo e de lidar com os projetos e programas do governo que a comunidade acessa o que fica restrito a conversas indiretas e natildeo eacute explicitado em contextos mais amplos tendo em vista que mais do que um grupo poliacutetico trata-se de relaccedilotildees de convivecircncias diaacuterias de uma comunidade estruturada nos viacutenculos de parentesco Haacute tambeacutem visotildees dissonantes de projetos de futuro entre as geraccedilotildees sendo que os jovens satildeo criticados pelos mais velhos por natildeo valorizarem as ldquofacilidadesrdquo que eles teriam se comparado com a infacircncia e juventude de precariedade material que os adultos viveram Os jovens satildeo vistos como seduzidos por padrotildees de consumo por exemplo e distantes de Deus Apesar da relevacircncia das dinacircmicas internas natildeo me aprofundarei neste tema No entanto se enfatizo a dimensatildeo do grupo em distinccedilatildeo ao contexto local natildeo desconsidero essas fissuras internas e a criacutetica necessaacuteria a uma idealizaccedilatildeo do conceito de comunidade como unidade harmocircnica 62 Adir foi delegado com direito a voz e voto na Conferecircncia por indicaccedilatildeo estadual enquanto representante ldquodos movimentos de afirmaccedilatildeo da diversidaderdquo Dentro deste conceito estavam abarcados os seguintes movimentos ldquoLGBT movimento feminista movimento negro representaccedilatildeo quilombola representaccedilatildeo social dos povos indiacutegenasrdquo conforme regulamento da conferecircncia

73

positivos em relaccedilatildeo agrave inserccedilatildeo da comunidade no movimento quilombola O grupo

passou a ter contato com os oacutergatildeos puacuteblicos estaduais de modo que ele chegou a

fazer treze viagens em um mesmo ano para Curitiba capital do Paranaacute distante mais

de setecentos quilocircmetros de Guaiacutera

Tais viagens como reforccedilou Adir o transformaram profundamente e o

construiacuteram enquanto lideranccedila Nesta viagem para Brasiacutelia em novembro de 2014

jaacute era a quarta vez que Adir estava na capital nacional Segundo ele a primeira vez

que laacute esteve foi a viagem mais marcante pois as lideranccedilas quilombolas foram

recebidas no dia 20 de novembro o ldquoDia da Consciecircncia Negrardquo pelo entatildeo

presidente da repuacuteblica Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que estava comeccedilando a abrir a

porta para as comunidades quilombolas no governo federal Adir relata como por

meio desta participaccedilatildeo em encontros eventos reuniotildees foi aos poucos perdendo a

timidez que considera caracteriacutestica dos membros do grupo quando em contato com

pessoas de fora

Adir Comecei a se soltar um pouco mas na hora que eu falava eu tremia porque totalmente uma realidade diferente da que noacutes veve a nossa vida ali foi uma vida inteira soacute ali entre noacutes mesmos No mais as pessoas ali da cidade que a gente as vezes no comeccedilo a gente nem ia soacute vivia entre noacutes aiacute depois ter o conhecimento na cidade mas a vida pacata mesmo aquela vidinha laacute escondida Ai de repente acontece o reconhecimento da nossa comunidade aiacute eu comeccedilo a sair em busca de objetivo melhoria em vaacuterias aacutereas poliacuteticas puacuteblicas Ai comecei a conhecer pessoas de dentro do estado comecei a conhecer pessoas fora do estado e hoje eu tenho contato no RS SC MS BA um monte contato com outras comunidades quilombolas e aldeia indiacutegena

A caracteriacutestica de movimento como algo que empodera as lideranccedilas

tambeacutem estaacute presente na anaacutelise de Yara Alves em seu artigo Como etnografar um

mundo em que tudo gira gera e mexe sobre a comunidade quilombola de Pinheiro

no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais A relaccedilatildeo entre ldquoandanccedilasrdquo e ldquosabedoriardquo

eacute acionada pelos membros do grupo no contexto de sua inserccedilatildeo no movimento

quilombola a partir das experiecircncias das viagens a eventos realizadas pelas

lideranccedilas ao representarem a associaccedilatildeo63 (ALVES 2015 p 85) Deste modo as

63 A centralidade do movimento abrange tambeacutem outras formas e escalas de socialidade do grupo As

ldquosaiacutedas para trabalharrdquo que os conectam com a regiatildeo do interior de Satildeo Paulo municiacutepio de Barreirinha eacute um dos elementos que compotildeem movimentos muacuteltiplos ldquoencarados de maneiras diversas e altamente valorizados - um motor existencial muito mais do que um recurso econocircmicordquo

(ALVES 2015)

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viagens feitas pelas lideranccedilas poliacuteticas adquirem uma dimensatildeo fundamental no

processo de emergecircncia eacutetnica dos grupos sociais

No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos portanto a

possibilidade de deslocamento constituiu a experiecircncia dos antepassados enquanto

estrateacutegia de conquista de condiccedilotildees melhores de vida para as famiacutelias e continua se

desdobrando na ativa atuaccedilatildeo da lideranccedila do grupo em viagens fora de Guaiacutera Eacute a

partir do processo de elaboraccedilatildeo identitaacuteria que ocorre a passagem de uma

experiecircncia de silenciamento para a possibilidade de se pronunciarem sobre a proacutepria

identidade e buscarem novos caminhos de reproduccedilatildeo social do grupo

13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE

A importacircncia das dinacircmicas de movimento para a Comunidade Quilombola

Manoel Ciriaco dos Santos que buscamos demonstrar ateacute aqui tambeacutem estaacute

presente na dimensatildeo da religiosidade dos membros do grupo tema que iremos tratar

neste subitem Na minha uacuteltima viagem a campo para Presidente PrudenteSP

realizada no iniacutecio de agosto de 2015 pude perceber como as relaccedilotildees entre

movimento e religiosidade estavam presentes na histoacuteria do grupo de um modo

marcante na proacutepria motivaccedilatildeo da saiacuteda de Manoel Ciriaco de Minas O intuito desta

viagem de campo foi visitar D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que haviacuteamos

encontrado em marccedilo morando em SerroMG e que em junho ajudamos a trazecirc-la

de mudanccedila para morar com a sobrinha D Jovelina em Presidente PrudenteSP

Nas outras duas viagens anteriores em que estive com D Ana em marccedilo e

em junho de 2015 natildeo havia tido oportunidade de conversar com ela sobre os motivos

que impulsionaram a saiacuteda de seu irmatildeo Manoel Ciriaco de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG em 1956 quando foi embora e nunca mais voltou Imaginando que ela

iria me falar das dificuldades de sobrevivecircncia de toda a famiacutelia na terra que era

heranccedila da matildee deles Izidora sou surpreendida com sua resposta ela conta que o

que desencadeou a saiacuteda de Manoel foi que ele ficou muito doente e assim que

melhorou resolveu ir embora O movimento inicial de deslocamento do grupo familiar

segundo me contou tinha sido impulsionado por causas maacutegico-religiosas

D Ana Raimunda Ele ficou doente depois a cabeccedila esquentou e saiu de laacute que laacute era bom e era ruim ficou doente demais doenccedila quase matou ele laacute mas Deus ajudou que

75

Dandara Mas era coisa feita pra ele

D Ana Raimunda Era ele oh (fez sinal com as matildeos)

Dandara Tinha tambeacutem desentendimento entre os parentes

D Ana Raimunda Tinha cascou fora foi bom ter vindo embora se natildeo ia mais de pressa neacute Entatildeo eles vieram e a gente ficou laacute rezando se apegando com Deus pra eles Demorou dar notiacutecia nossa ela (Izidora matildee de D Ana e Manoel) ficava chorando dia e noite eu falei natildeo chora natildeo que eles daacute notiacutecia e como deu neacute deu notiacutecia que tava bem graccedilas a Deus

Se ateacute agora analisamos os fatores sociais e econocircmicos que contribuiacuteram

para a decisatildeo de deslocamento destas famiacutelias neste momento da conversa com D

Ana vieram agrave tona informaccedilotildees sobre como dentro deste quadro social mais amplo

as tensotildees sociais internas foram decisivas e atuaram para o impulso de saiacuteda

Importante observar neste sentido que natildeo haacute uma reaccedilatildeo mecacircnica ao

desenvolvimento regional mas sim uma combinaccedilatildeo de fatores externos e internos

ao grupo familiar

A fala de D Ana aponta para uma acusaccedilatildeo de que Manoel teria sido alvo de

uma agressatildeo maacutegica com consequecircncias muito seacuterias pois quase o levou agrave morte

e que quando ele se recuperou dos efeitos deste enfeiticcedilamento64 deu na cabeccedila de

vir embora As dimensotildees maacutegico-religiosas nesta visatildeo de mundo especiacutefica

portanto podem gerar deslocamentos concretos

Neste momento do texto apresento alguns exemplos sinteacuteticos65 do modo

como a religiosidade implica em movimento concretos na trajetoacuteria de vida dessas

pessoas e tambeacutem estaacute permeada por movimentos natildeo concretos em seu cotidiano

Estes movimentos sutis se apresentam por exemplo no acircmbito das relaccedilotildees que satildeo

estabelecidas entre o humano e o divino como quando acionam a capacidade de se

64 Importante considerar que a histoacuteria sobre a morte de Manoel em GuaiacuteraPR tambeacutem eacute narrada como

resultado de um feiticcedilo Geralda me contou que foi uma pessoa bem proacutexima da famiacutelia que tinha muita inveja de Manoel porque eles tinham progredido ele era respeitado e querido na cidade Relatou que Manoel estava trabalhando na roccedila e foram buscar uma aacutegua para ele a seu pedido Soacute que o pessoal que estava na roccedila comeccedilou a achar estranho que estava demorando demais para voltarem e parecia ateacute que tinham ido furar o poccedilo D Ana falou com Manoel que ela estava esganado por aacutegua e por quecirc natildeo esperava chegar em casa A pessoa que fez o feiticcedilo entatildeo pegou um sapo raspou o couro dele e pocircs na aacutegua Daiacute Manoel bebeu mas os outros natildeo quiseram porque tinham cisma Com o passar do tempo ele comeccedilou a se sentir mal natildeo conseguia comer porque sentia gosto de areia a pressatildeo subia foi piorando sofreu muito ateacute que morreu Ressalta-se que estas natildeo foram as uacutenicas histoacuterias sobre feiticcedilo que me foram relatadas durante o trabalho de campo no entanto natildeo irei me deter neste assunto pois isso geraria uma dispersatildeo no texto 65 Natildeo eacute possiacutevel levando em conta o enfoque analiacutetico da dissertaccedilatildeo abordar as questotildees relativas

agrave religiosidade do grupo com a profundidade necessaacuteria em apenas um subitem Por isso iremos analisar sobre a religiosidade apenas alguns aspectos que satildeo relevantes para o conjunto do argumento do texto no que tange ao tema do movimento

76

deslocar entre mundos e conectar subjetividades temporalidades e espacialidades

distintas Os mortos os espiacuteritos as entidades os santos em suas diversas formas

de manifestaccedilatildeo satildeo agentes importantes e presentes no dia-a-dia dos quilombolas

As formas como suas praacuteticas de devoccedilatildeo satildeo interpretadas pelos vizinhos

consideradas como preconceituosas pelos quilombolas eacute tambeacutem uma dimensatildeo

importante Este preconceito que combina dimensotildees raciais e religiosas como

iremos analisar impulsionou a saiacuteda de Antocircnio filho de Manoel Ciriaco que realizava

trabalhos mediuacutenicos na comunidade Ele teve que ir morar na periferia de Guaiacutera

pois sua praacutetica espiritual como curador e meacutedium natildeo era aceita no bairro rural

ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo

A religiosidade importante destacar eacute uma esfera significativa de reproduccedilatildeo

da memoacuteria comunitaacuteria e do viacutenculo que o grupo manteacutem com a regiatildeo de origem

Aleacutem de narrativa (cognitiva) como analisamos no subitem anterior a memoacuteria eacute

tambeacutem performativa e corporal O reencenamento do passado na conduta presente

constitui uma ldquomnemocircnica do corpordquo66 muito caracteriacutestica nas culturas orais67

conforme analisado no livro Como as sociedades recordam do antropoacutelogo Paul

Connerton (CONNERTON 1999 p 86) Um dos aspectos interessantes desta

mnemocircnica corporal quilombola foi indicado por Geralda que trabalha como meacutedium

em um terreiro de Umbanda haacute mais de sete anos a experiecircncia da incorporaccedilatildeo de

entidades como os pretos-velhos permite a reativaccedilatildeo de memoacuterias dos espiacuteritos de

escravos

Tais espiacuteritos satildeo investidos de eficaacutecia e de autoridade para fornecer

conselhos de cura para os vivos quando incorporados nos meacutediuns Estas entidades

espirituais se apresentam no terreiro de Umbanda para lidar com todos os tipos de

problemas pessoais da clientela que frequenta o terreiro Enquanto ldquoculto de

possessatildeordquo a Umbanda eacute composta por um panteatildeo que integra ldquoalgumas entidades

do candombleacute aleacutem de novos estereoacutetipos como iacutendios preto-velhos tropeiros

66 Para aleacutem das histoacuterias narrativas nos interessam tambeacutem o processo de permanecircncia social

enfocado atraveacutes da noccedilatildeo de ldquomemoacuteria-haacutebitordquo enquanto capacidade de reproduzir determinada accedilatildeo que dentro da dimensatildeo social eacute ldquoingrediente essencial para o desempenho bem-sucedido dos coacutedigos e normasrdquo Haacute outras formas de lembrar por exemplo por meio de ldquoatos de transferecircncia que tornam possiacutevel recordar em conjuntordquo Trata-se de ldquotipos particulares de repeticcedilatildeordquo que ocorrem no acircmbito da ldquomemoacuteria comunalrdquo como vivenciado nas cerimocircnias comemorativas e nas praacuteticas corporais (CONNERTON 1999 p 44) 67 Em contraste com a cultura escrita caracterizada pela ldquopraacutetica de inscriccedilatildeordquo por meio da qual a

memoacuteria se reproduz atraveacutes dos ldquodispositivos de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilatildeordquo (CONNERTON 1999 p 84-87)

77

baianosrdquo Com profunda influecircncia do Espiritismo e do Catolicismo popular e derivada

em boa parte do Candombleacute a Umbanda deu cobertura para uma seacuterie de ldquopraacuteticas

miacutesticas populares altamente estigmatizadasrdquo Eacute a proacutepria marginalidade desses

espiacuteritos no que tange aos valores estabelecidos pelo sistema social hegemocircnico a

fonte da forccedila e da capacidade que possuem para resolver as afliccedilotildees humanas

(BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64-86)

A manifestaccedilatildeo dos pretos-velhos ou as pretas-velha espiacuteritos de velhos(as)

escravos(as) traz agrave tona temas da memoacuteria coletiva brasileira e da ideologia religiosa

que resiste agraves hierarquias alienantes do colonialismo e do capitalismo (MATORY

2007 p 405) A representaccedilatildeo sobre estes espiacuteritos enquanto importante siacutembolo da

identidade nacional abrange desde a submissatildeo resignada agrave resistecircncia heroica do

escravo (HALE 1997 p 393)

These spirits constitute sign vehicles through which Umbandistas interpret and explore themes of racism national identity domination suffering and redemption within a moral framework broadly informed by the values and motifs of popular Catholicism At the same time pretos velhos work a reciprocal semiotic movement through them these cultural discourses and collective memories constitute bodily experience by way of spirit possession and spirit performance (HALE 1997 p 393)

Eacute por meio dessa experiecircncia corporal vivenciada por Geralda

quinzenalmente como meacutedium na ldquoAssociaccedilatildeo Espiacuterita Reino de Baluaecircrdquo que ela faz

a associaccedilatildeo dos pretos-velhos com sua trajetoacuteria pessoal e familiar Enquanto

quilombolas agricultores ela compara o desgaste fiacutesico que tiveram em decorrecircncia

dessas atividades rurais com a experiecircncia dos pretos(as) velhos(as) quando viveram

na terra e trabalharam como escravos(as) Esta memoacuteria corporal se manifesta na

forma de incorporaccedilatildeo do meacutedium quando ldquoo controle social do corpo natildeo eacute

simplesmente abolido no transe mas substituiacutedo por outro controle o dos estereoacutetipos

corporais da incorporaccedilatildeo de cada entidade miacutesticardquo (BRUMANA MARTINEZ 1991

p 84) A maioria destas entidades exibem sinais caracteriacutesticos de idade e debilidade

fiacutesica caminham debruccediladas sobre suas bengalas com rigidez articular movimentos

trabalhados e pausados Ao incorporarem no meacutedium portanto apresentam um

ldquodesempenho corporalrdquo que passa por uma certa codificaccedilatildeo estereotiacutepica que as

identificam entre si e as distinguem das demais entidades atraveacutes de atributos

materiais como o cachimbo e o vinho doce podendo usar chapeacuteu de palha e lenccedilos

(BRUMANA MARTINEZ 1991 p 240)

78

Podemos pensar nas entidades da Umbanda enquanto mediadores entre

temas culturais mais abrangentes e a experiecircncia corporal Ademais aleacutem desta

codificaccedilatildeo a performance da possessatildeo espiritual vai ocorrer tambeacutem a partir de

uma ldquogramaacutetica da accedilatildeo socialrdquo a partir do contexto do proacuteprio meacutedium (HALE 1997

P 393) Assim os pretos-velhos podem ser analisados como veiacuteculos atraveacutes dos

quais

Umbandistas speak to and embody Brazilian dramas of race and power () Their bodies are worn-out from hard labor torture hunger and accident This is understood most of the time the physical signs stand as a mute reproach for the suffering inflicted by the allegedly benevolent system of Brazilian slavery (HALE 1997 p 395 397)

Geralda entende que eacute a partir dessa experiecircncia comum que ela ganha forccedila

como meacutedium para trabalhar com os(as) pretos-velhos(as) Segundo ela me contou

sobre as histoacuterias dessas entidades eles(as) cantavam para aliviar a dor de tanto que

apanhavam amarrados com a matildeo para traacutes e com os cantos louvavam a Nossa

Senhora Aparecida para que os ajudassem E completou ldquoera soacute no chicote ficavam

presos comendo aquele angu os restos quando a princesa Isabel libertou os

negros eles louvaram a Deusrdquo Ela se lembrou tambeacutem de como ouvia seus pais

contarem sobre os parentes que tinham trabalhado como escravos em Minas Gerais

e da avoacute Maria Bernarda que chorava e falava que eles natildeo tinham liberdade

O acionamento dos espiacuteritos dos antepassados dos negros representado de

um modo abrangente por estas entidades espirituais deste modo faz com que se

tornem mediadores da elaboraccedilatildeo identitaacuteria o que reforccedila a forccedila poliacutetica da

memoacuteria revivida nos rituais da Umbanda Este paralelismo construiacutedo na fala de

Geralda sobre a experiecircncia de trabalho racismo pobreza escravidatildeo em relaccedilatildeo agraves

entidades dos pretos-velhos foi se explicitando ao longo do trabalho etnograacutefico

Segundo ela como trabalhou muito catando algodatildeo sabe bem o que eacute o trabalho

duro e o porquecirc de os pretos-velhos serem encurvados pois era de tanto trabalhar na

roccedila no sol quente Eacute por causa da lembranccedila deste corpo torturado sujeito a um

sofrimento ilegiacutetimo que quando o preto-velho sai do corpo do meacutedium e

desincorpora eles te mata ocecirc de tatildeo sofrido que eles eram

79

FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildee o seu altar

Esta memoacuteria do sofrimento ilegiacutetimo do tempo da escravidatildeo se desdobra

em uma infeliz continuidade que se estende ao tempo presente Neste sentido haacute

uma reflexatildeo feita pelos quilombolas sobre como a pobreza assim como o racismo

institui uma realidade contraacuteria agrave vontade divina jaacute que foi Deus que nos deu esta cor

e todos somos irmatildeos perante a Ele Nesse sentido a cunhada de Geralda casada

com seu irmatildeo Joaquim Eva que eacute a principal referecircncia da praacutetica do catolicismo na

comunidade de Guaiacutera comenta sobre como passou a ter orgulho de sua cor

Eva Eu tenho o maior orgulho que eu sou preta eu natildeo tenho problema que eu sou preta natildeo Deus me deu esta cor e eu natildeo ligo natildeo () De primeiro eu tinha vergonha que eu era preta eu natildeo ligo que eu sou preta natildeo Deus fez eu assim eu tenho que ficar assim vou fazer o quecirc Natildeo tem como a pessoa mudar mais Eacute a vontade de Deus assim a cor da pessoa com sauacutede

A ideia de que haveria uma maior sacralidade dos negros eacute recorrente neste

grupo quilombola Liliana Porto encontrou uma concepccedilatildeo proacutexima nas suas

pesquisas no Vale do Jequitinhonha e aponta que ldquosatildeo os negros e pobres os

80

legiacutetimos representantes do divinordquo (PORTO 2007 p 143) Estas duas experiecircncias

de subalternidade a pobreza e o racismo muito presentes na histoacuteria do grupo

quilombola em Guaiacutera satildeo vistas por eles como recompensadas por Deus por outro

lado atraveacutes da presenccedila de dons mediuacutenicos e espirituais em vaacuterios membros da

famiacutelia como meacutediuns benzedores e adivinho Desde os meus primeiros contatos

com a comunidade ainda em 2011 quando eu era assessora do Ministeacuterio Puacuteblico

Geralda jaacute se identificara como umbandista e nos mostrou sua carteirinha do Conselho

Mediuacutenico do Brasil (CEBRAS)

FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil

As histoacuterias da manifestaccedilatildeo da mediunidade e dons de benzimento cura e

adivinhaccedilatildeo satildeo muito valorizadas internamente como um dom Seria como uma

missatildeo recebida do plano superior que coloca em movimento o acesso agraves fontes do

sagrado democratizando-o e provocando uma ldquorotinizaccedilatildeo dos milagresrdquo (BRUMANA

MARTINEZ 1991 p 23-25) A histoacuteria do finado Zeacute Maria eacute muito interessante

neste sentido Como me contou Geralda quando ele nasceu ele veio dentro de uma

espeacutecie de capa um envoltoacuterio que era um iacutendice reconhecido pelos adultos de sua

capacidade de adivinhaccedilatildeo um dom que ele jaacute veio trazendo porque Deus deu a ele

A parteira (Maria Inaacutecia das Dores matildee de Antocircnio e sogra de Geralda) que conhecia

o significado desta peculiaridade perguntou para D Ana matildee de Zeacute Maria se ela

81

queria guardar a capa mas a matildee disse que natildeo e esta foi enterrada Se tivesse sido

guardada quando ele completasse sete anos poderia ser confirmado seu dom

adivinhatoacuterio atraveacutes do seguinte desafio pegariam a roupa que ele usou quando

nasceu e colocariam no meio de outras Se ele adivinhasse qual era a que tinha usado

na ocasiatildeo de seu nascimento o seu dom estaria confirmado Mesmo este processo

natildeo tendo sido feito Geralda reforccedilou como ele era sabido e natildeo falava nada errado

ou seja o dom estaacute presente independente de um processo ritual de confirmaccedilatildeo

Haacute entre os membros do grupo a referecircncia mais forte dos seguintes

benzedoresbenzedeiras que jaacute faleceram e vieram de Minas Gerais morar em Guaiacutera

Ana Rodrigues (esposa de Manoel Ciriaco) Altina (tia de Ana Rodrigues irmatilde de sua

matildee Maria Bernarda) Maria Madalena (nora de Altina e sogra de Geralda) Geraldo

(filho de Altina e pai de Eva) Sobre Geralda sua matildee Ana Rodrigues benzeu muita

gente no ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo e depois falavam que a gente natildeo prestava

FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria68

68 Ela faleceu com 108 anos e segundo acreditam essa era sua idade miacutenima jaacute que ela foi registrada

em Minas Gerais e antigamente se demorava para fazer o registro da crianccedila

82

Segundo Geralda nascida em 1962 e criada em Guaiacutera no siacutetio os meus pais

criaram noacutes assim iam buscar remeacutedio na casa dos benzedor o que destaca o

aspecto maacutegico das concepccedilotildees de sauacutede e doenccedila na comunidade Os remeacutedios

eram predominantemente caseiros produzidos a partir da proacutepria mata como as

garrafadas os chaacutes o uso terapecircutico de uma diversidade de plantas medicinais A

restauraccedilatildeo da sauacutede neste contexto eacute permeada por uma concepccedilatildeo ampla que

natildeo se restringe a males com origens fiacutesicas mas perpassam uma seacuterie de ameaccedilas

miacutesticas como o mau-olhado o quebrante ateacute a feiticcedilaria que soacute podem ser revertidos

por meio de benzeccedilotildees simpatias curas recebidas espiritualmente ou no caso do

feiticcedilo com accedilotildees de defesa que anulem seus efeitos69 Um contexto semelhante eacute

analisado por Porto a partir da etnografia realizada proacuteximo da regiatildeo de origem do

grupo no Alto Jequitinhonha

No universo acima delineado a percepccedilatildeo do processo sauacutede e doenccedila eacute bastante complexa envolvendo uma seacuterie de avaliaccedilotildees em torno de questotildees religiosas maacutegicas e orgacircnicas e natildeo sendo evidente a separaccedilatildeo entre estas esferas () natildeo se baseia em uma distinccedilatildeo clara entre natural e sobrenatural Mesmo a distinccedilatildeo entre ldquodoenccedila de meacutedicordquo e ldquodoenccedila de curadorrdquo hoje existente me parece muito mais o resultado de um processo de especializaccedilatildeo dos serviccedilos de cura e a classificaccedilatildeo natildeo eacute necessariamente excludente (PORTO 2005)

Geralda ressaltou vaacuterias vezes em conversas comigo e tambeacutem pude

observar na minha estadia em sua casa a quantidade de pessoas que ela benze

neste caso ldquosozinhardquo aleacutem do benzimento que ela faz como meacutedium no terreiro Haacute

para ela um sentido de obrigaccedilatildeo como benzedeira em atender a todos que lhe

pedem ajuda Desde pequena relatou jaacute pediam para que ela benzesse mas ela natildeo

queria e fugia Quando comeccedilou a trabalhar na Umbanda a demanda de benzimento

69 Atualmente satildeo muito mais dependentes da aquisiccedilatildeo de remeacutedios e alguns frequentam meacutedicos

regularmente tanto no postinho do Maracaju onde haacute uma tarde disponibilizada na semana exclusivamente para os quilombolas Haacute tambeacutem casos que dependem dos deslocamentos promovidos pelo municiacutepio principalmente a Cascavel para tratamentos especializados agendados pelo SUS (principalmente Joaquim que tem problema na perna Eva e Geralda que tecircm problemas nos olhos) Adir e Joaquim fazem questatildeo de frisar que natildeo tomam remeacutedio de farmaacutecia e Nilza viuacuteva de Zeacute Maria me relatou que foi pouquiacutessimas vezes no meacutedico durante toda a sua vida Se por um lado a medicina busca se impor como discurso hegemocircnico por outro os especialistas populares de cura natildeo desaparecem bem como haacute manifestaccedilotildees de resistecircncia de algumas pessoas da comunidade em aderir a ida aos meacutedicos ou o uso de remeacutedios como tratamento (PORTO 2013a p 73)

83

aumentou bastante e as entidades lhe orientaram no sentido de que ela tinha que

benzer sem restriccedilatildeo para que pudesse ter a felicidade em sua vida70

Em relaccedilatildeo aos dons mediuacutenicos entre os membros da comunidade de

Guaiacutera satildeo mais citados os irmatildeos de Geralda ldquofinado Antocircniordquo ldquofinado Zeacute Mariardquo e

Joaquim Geralda e seu marido Antocircnio conhecido como Guaraacute Os pais de Geralda

seu Manoel e dona Ana segundo ela comentou jaacute frequentavam centro de umbanda

desde Minas Gerais mas natildeo trabalhavam O finado Antocircnio assassinado no comeccedilo

da deacutecada de 90 eacute a principal referecircncia de trabalhos mediuacutenicos tendo manifestado

seus dons desde crianccedila enquanto ldquouma capacidade inata para encontrar e incorporar

espiacuteritosrdquo sem necessidade de iniciaccedilatildeo para tanto (SANSI 2009 p 141)

Segundo Sansi as religiotildees afro-brasileiras incorporam a histoacuteria em suas

praacuteticas rituais atraveacutes da relaccedilatildeo dialeacutetica entre a iniciaccedilatildeo pela reproduccedilatildeo das

dinacircmicas da tradiccedilatildeo e o dom expresso na capacidade dos meacutediuns de

incorporarem novos espiacuteritos (SANSI 2009) A presenccedila de manifestaccedilotildees de

mediunidade entre os membros da comunidade quilombola em questatildeo abrange

essas duas possibilidades pois em alguns casos ela parte de um dom de

mediunidade que a pessoa jaacute trouxe desde a infacircncia e desenvolveu de modo

autocircnomo como no caso de Antocircnio e em outros casos esta capacidade de

incorporaccedilatildeo mediuacutenica dependeu de um processo de iniciaccedilatildeo na Umbanda como

na histoacuteria de Geralda

Esta matriz de religiosidade afro-brasileira71 natildeo eacute portanto dependente

unicamente da relaccedilatildeo com terreiros de Umbanda mas tambeacutem eacute resultado de uma

experiecircncia histoacuterica e cultural proacutepria da trajetoacuteria familiar Nesta trajetoacuteria familiar o

que poderia ser compreendido em outros contextos como catolicismo e umbanda

enquanto esferas distintas manifestam-se em um mesmo continuum de dinamicidade

70 Quando as pessoas vatildeo em sua casa pedir benzimento geralmente mulheres moccedilas e crianccedilas ela

pega o nome completo acende uma vela para o anjo da guarda daquela pessoa e pede para que os orixaacutes intercedam por ela Entatildeo benze com um ramo de arruda o que pode se repetir por trecircs dias consecutivos caso necessaacuterio Geralda entende que a proacutepria pessoa deve trazer a vela para que o pedido seja feito em sua intenccedilatildeo mas muitas vezes as pessoas natildeo trazem e ela se sente sobrecarregada pois acaba oferecendo a vela com seus proacuteprios e escassos recursos Natildeo haacute nestes casos uma reciprocidade pela ajuda realizada o que fere a proacutepria dinacircmica de oferecimento e recompensa que permeia a relaccedilatildeo com o sagrado em sua visatildeo 71 Segundo GOLDMAN uma definiccedilatildeo inicial sobre as ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo aponta para ldquoum

conjunto algo heteroacuteclito mas certamente articulado de praacuteticas e concepccedilotildees religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que ao longo da sua histoacuteria incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e praacuteticas indiacutegenas assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeiardquo (2009 p 106)

84

Nas histoacuterias sobre o finado Antocircnio seus irmatildeos contam como ele comeccedilou a se

desenvolver mediunicamente em casa sozinho e passou a realizar trabalhos em uma

casinha de coqueiro e tambeacutem dentro da mata do siacutetio com o apoio dos demais

irmatildeos que tambeacutem tinham o dom Geralda e Guaraacute lembraram que ele trabalhava

com baiano (baiano Juvenal) caboclo exu penacho boiadeiro Zeacute Pilintra preto-

velho pomba-gira e outros

Por motivo do preconceito religioso que sofreram da parte dos vizinhos que

os acusavam de macumbeiros feiticeiros coisa do capeta entre outros Antocircnio

resolveu se mudar do siacutetio deixar o conviacutevio cotidiano com sua famiacutelia para poder

trabalhar como curador e cumprir sua missatildeo primeiro em Terra Roxa e depois se

fixou na Vila Guarani periferia de Guaiacutera Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula me contou

sobre este processo

Joatildeo Soacute que eu sei que na vila Guarani Dandara oacuteia ele recebia muita gente Aqui nessa regiatildeo ele tirava em primeiro lugar ele que atingia mais gente nessa regiatildeo aqui Dandara Mais ateacute que esse terreiro hoje que a Geralda vai Joatildeo Mais porque ela (a matildee de santo D Penha) natildeo tinha aquilo ali antigamente O dela era bem mais pequeno Soacute que ela natildeo recebia o tanto de gente que meu irmatildeo recebia natildeo Ele recebia muita gente por dia Tinha dia que a gente chegava laacute e ele falava assim ldquooh eu tocirc ateacute agora natildeo almocei tomei um cafezinho aacutegua soacuterdquo Era gente do Mato Grosso Paraguai Cascavel toda regiatildeo Dandara vinha Esses dias atraacutes o Joaquim recebeu um cara aqui o cara vinha a procura dele Aiacute o Joaquim falou com ele ldquoOh infelizmente o meu irmatildeo faleceurdquo O cara saiu daqui de cabeccedila baixa Entatildeo tem muita gente ainda que natildeo sabe e sempre na cidade eles pergunta noacutes o que aconteceu que meu irmatildeo natildeo recebe mais ningueacutem aiacute noacutes falamos ldquonatildeo ele faleceurdquo Eu tenho tudinho guardado na lembranccedila tudinho tem o local laacute em cima na mata onde ele fazia os trabalhos dele Entatildeo tenho ateacute hoje e foi uma desde pequeno que a gente vem nessa religiatildeo da Umbanda soacute que a gente assim Dandara natildeo vecirc assim tem gente que vecirc a Umbanda como se fosse assim ah a religiatildeo do democircnio outros natildeo vecirc como uma boa coisa mas a gente vecirc assim que vocecirc mesmo vocecirc pode assistir laacute natildeo sei se vocecirc pocircde assistir um trabalho Natildeo eacute coisa do outro mundo Que tem muitos que vecirc aquilo ali e meu deus do ceacuteu eacute coisa que que vai acabar com tudo Natildeo eacute Sempre a gente fala mesmo assim pra jogar pedra eacute faacutecil mas vocecirc tem que ver primeiro as coisas pra depois vocecirc estar criticando Porque essa religiatildeo a gente foi muito criticado por causa disso ai mesmo Quando ele (Antocircnio) trabalhava aqui teve uma eacutepoca que a gente teve que trabalhar escondido porque os pessoal natildeo podia saber que natildeo eles ia falava ldquoaqueles ali tatildeo mexendo tudo eles satildeo macumbeiro eles satildeo feiticeirordquo Soacute que a gente natildeo trabalhava pro mal porque foi um dom que ele recebeu neacute mas eles via aquilo ali e nossa Aiacute ele falava assim ldquoNatildeo eu sou obrigado a trabalhar escondido pra ningueacutem ficar sabendordquo

85

Geralda eacute a irmatilde que daacute continuidade como meacutedium para os trabalhos de seu

irmatildeo Antocircnio atualmente Um siacutembolo desta vinculaccedilatildeo de forccedila e missatildeo eacute uma

guia (colar) com as sete linhas da Umbanda que ela recebeu de Antocircnio e que natildeo

tira do pescoccedilo haacute mais de vinte anos Geralda me disse que vai fazer um terreiro

ainda que isso eacute um desejo que ela vai realizar Ela (52 anos) e seu marido que

tambeacutem se chama Antocircnio (49 anos) frequentam a Associaccedilatildeo Espiacuterita Reino de

Baluaecirc72 localizada no Municiacutepio de Terra RoxaPR (vizinho agrave Guaiacutera)73

FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da ldquogirardquo

72 Disponiacutevel em wwwreinodebaluaecombr Acesso em 20082014 73 As ldquogirasrdquo nome dado ao ritual central da Umbanda aberto para que as pessoas se consultem

diretamente com as entidades (principalmente preto-velho caboclo e vaacuterias formas de Exu) ocorrem aos saacutebados duas vezes no mecircs Geralda eacute meacutedium de incorporaccedilatildeo e Guaraacute estaacute girando ainda ou seja estaacute sendo preparado para que possa incorporar Enquanto isso ele daacute suporte agrave muacutesica por meio do pandeiro ou tambor que satildeo muito importantes nas chamadas que satildeo feitas para que as

entidades baixem no terreiro

86

Geralda fala do desenvolvimento de sua mediunidade como um mandato

espiritual pois se fosse por ela natildeo queria ter desenvolvido este trabalho o qual

implica em muitas obrigaccedilotildees e restriccedilotildees pois jaacute estava cansada pelo tanto que

trabalhara na roccedila em serviccedilo pesado a vida inteira Antes de comeccedilar a trabalhar

ela jaacute frequentava o terreiro para buscar atendimento e ficava na assistecircncia de onde

as pessoas que natildeo fazem parte do corpo de trabalho da casa observam a sessatildeo e

satildeo beneficiadas por ela Chegou um tempo em que ela comeccedilou a sentir muita

fraqueza colocava a panela no fogo e tinha que deitar Quando foi consultar no terreiro

para ver o que era a Matildee de Santo que eacute o cargo mais alto da hierarquia da Umbanda

(eacute quem tem e manteacutem o terreiro) lhe disse que teria que trabalhar como meacutedium

caso contraacuterio ela soacute iria piorar e ldquodava seis meses tava morta porque tinha que ter

algueacutem pra substituirrdquo O diagnoacutestico da doenccedila portanto como eacute muito comum nas

histoacuterias dos meacutediuns indicou a interferecircncia de um espirito no sentido da

necessidade do desenvolvimento da mediunidade da pessoa com seu consequente

ingresso na Umbanda (BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64)

Geralda e seu marido Antocircnio (Guaraacute) fazem pedidos e oferecem retribuiccedilotildees

agraves entidades recorrentemente em um quarto de sua casa que aliaacutes era o quarto que

eu dormia quando fiquei hospedada com eles Quando eu ia me deitar geralmente

esperava a vela apagar o cigarro acabar e eles retiravam as oferendas para que eu

pudesse me deitar Essa experiecircncia me provocava sensaccedilotildees diferentes e

impactantes quando eu pensava que aquele quarto estava povoado por relaccedilotildees e

seres invisiacuteveis Esse processo de comunicaccedilatildeo entre pessoas e entidades e qual

entidade estava sendo acionada em determinado dia natildeo me era relatado apenas

algumas informaccedilotildees eram mencionadas mas sempre encobertas por um ar de

misteacuterio enquanto conhecimento iniciaacutetico Importante eacute perceber apesar de eu natildeo

poder me aprofundar neste tema agora que a Umbanda nesta dinacircmica de interaccedilatildeo

recupera a reciprocidade como valor de modo que o dar-e-receber atua ldquocomo um

princiacutepio moral fundamental que une todos os homens entre si e toda a humanidade

viva com uma humanidade morta este mundo com o outro e os homens com os

Orixaacutesrdquo (BRUMANA MARTINEZ 1991 p 25)

Geralda questionou em conversas comigo o porquecirc de algumas pessoas

terem inveja dela no terreiro como uma outra meacutedium com quem teve um seacuterio

desentendimento Na avaliaccedilatildeo de Geralda uma mulher branca de classe meacutedia que

87

tem um carro e sabe dirigir tem muito mais reconhecimento na sociedade do que ela

que sendo ldquopreta e pobrerdquo em seus proacuteprios termos sabe que ocupa na classificaccedilatildeo

social hegemocircnica o lugar menos privilegiado No entanto por outro lado Geralda

reconhece que possui uma forccedila que esta sua mesma origem lhe confere uma forccedila

que eacute miacutestica podemos dizer e que estaacute ligada agrave feacute e agrave proteccedilatildeo que recebe dos seus

Orixaacutes74 o que tambeacutem eacute valorizado pelo Pai de Santo do terreiro que ela frequenta

Pude perceber que o reconhecimento em relaccedilatildeo ao papel de Geralda que lhe

eacute conferido pelos seus vizinhos da ldquoEletrosulrdquo enquanto benzedeira meacutedium de um

terreiro com sabedoria e capacidade de orientaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo valorizado no acircmbito

de sua proacutepria famiacutelia Se Adir eacute quem tem o manejo como mediador com os agentes

externos para realizar as articulaccedilotildees poliacuteticas ela desde o comeccedilo da minha

estadia estava me dizendo nas entrelinhas que era quem possuiacutea o manejo como

mediadora junto aos espiacuteritos e agraves forccedilas miacutesticas Ela eacute quem domina atualmente a

esfera da religiosidade afro-brasileira a qual embora seja em algumas situaccedilotildees

acionada como um siacutembolo para a afirmaccedilatildeo da identidade negra e quilombola do

grupo natildeo aparece de modo tatildeo expliacutecito como por exemplo a capoeira praacutetica que

tambeacutem remete a esta ldquomnemocircnica do corpordquo (CONNERTON 999 p 86)

Deve-se levar em conta que o tema da religiosidade afro-brasileira eacute ainda

muito delicado pois vinculado a um forte preconceito racialreligioso presente na

sociedade brasileira Jaacute a capoeira eacute um marcador negro muito menos polecircmico e cuja

performance da roda se consolidou como modo de apresentaccedilatildeo da comunidade

quilombola nas visitas feitas pelas escolas Este natildeo acionamento da Umbanda como

elemento diacriacutetico enquanto quilombolas remete ao fato de esta religiatildeo que

apresenta aspectos de influecircncia africana e que remete agrave experiecircncia negra no Brasil

eacute tambeacutem um motivo de estigmatizaccedilatildeo para o grupo como explicitado na fala acima

de Joatildeo sobre a saiacuteda de Antocircnio do siacutetio pelas acusaccedilotildees que recebia tendo que

desenvolver seu trabalho como meacutedium na periferia de Guaiacutera

Neste sentido interessante refletir sobre a dinacircmica que se estabeleceu no

Brasil entre religiosidade magia e preconceito racial jaacute que ldquoa visatildeo construiacuteda do

negro e de sua religiatildeo os vincula a caracteriacutesticas natildeo soacute desvalorizadas mas

74 Ela estaacute sempre dizendo que se natildeo fossem os seus Orixaacutes lhe ajudando ela natildeo sabe como

conseguiria dar conta de todas as suas atribuiccedilotildees cotidianas jaacute que tem a sauacutede fraca desde pequena o que se agravou de tanto trabalhar aleacutem de um problema especiacutefico nos olhos

88

tambeacutem socialmente condenadasrdquo75 Construiu-se assim um sistema classificatoacuterio

elaborado a partir da perspectiva dicotocircmica entre bem e mal no qual as religiotildees

cristatildes figuram no polo do bem e enquanto modelo branco satildeo vistas precisamente

como religiotildees Jaacute as religiotildees afro-brasileiras aparecem no polo oposto entendidas

ao contraacuterio como feiticcedilaria ou ldquomacumbariardquo ou seja em alusatildeo ao mal (PORTO

2014187-190) Deste modo este viacutenculo entre preconceito racial e preconceito

religioso somado agrave ldquocondenaccedilatildeo moral da magiardquo a partir da identificaccedilatildeo feita com

ldquoo uso da magia maleacutefica ndash feiticcedilaria ou lsquomagia negrarsquordquo remonta a processos histoacutericos

do periacuteodo colonial Eacute ainda no Brasil colocircnia que se consolida o medo do feiticcedilo no

Brasil direcionado por meio de acusaccedilotildees feitas pelos sujeitos legitimados do sistema

dominante branco e catoacutelico aos natildeo brancos indiacutegenas e negros ou seja aos que

constituiacuteam as alteridades deste modelo (PORTO 2014 191) A imagem do negro

portanto eacute elaborada pela elite a partir de estereoacutetipos negativos que se reforccedilam e

que constroem seu lugar marginal na sociedade Evidencia-se assim a importacircncia

do preconceito para a manutenccedilatildeo da ordem vigente por atribuir argumentos que

legitimariam a exclusatildeo e exploraccedilatildeo desta camada da populaccedilatildeo

O caso do grupo quilombola em questatildeo eacute relevante notar articula estas

referecircncias de religiotildees de matriz afro-brasileiras com expressotildees do catolicismo

popular ou mesmo com o que podemos chamar de ldquocatolicismo negrordquo Esta

articulaccedilatildeo eacute muito presente na religiosidade de Eva quilombola de 50 anos que eacute

detentora de vasta memoacuteria da histoacuteria do grupo76 Ela mora no siacutetio desde seus dois

anos de idade quando seus pais Geraldo e Antocircnia migraram de Satildeo Paulo para o

Paranaacute junto com as demais famiacutelias Eacute casada com Joaquim filho de Manoel Ciriaco

com quem possui certo grau de parentesco consanguiacuteneo (primos de terceiro grau)

Sua devoccedilatildeo eacute reconhecida pelas demais pessoas simbolicamente no fato de ela

cumprir seu ritual cotidiano de rezar o terccedilo de joelhos todos os dias agrave noite depois

de jaacute ter rezado de manhatilde vinte ave-marias (por isso os dois joelhos dela estatildeo

75 A reafirmaccedilatildeo do preconceito teve papel fundamental no momento em que foi abolida a escravidatildeo

no paiacutes sendo que a religiosidade negra eacute um dos pilares que o sustenta Como se pode observar na associaccedilatildeo estrateacutegica realizada por meio da criminalizaccedilatildeo de praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras no Coacutedigo Penal de 1890 Interessante notar neste sentido que apesar de os elementos maacutegico-religiosos marcarem toda a religiosidade nacional sua identificaccedilatildeo ficou restrita aos sujeitos natildeo brancos (PORTO 2014 200-201) 76 Lembrando inclusive o ano em que os fatos preteacuteritos aconteceram data de aniversaacuterio de muitos

parentes Eva conversa tranquilamente sobre a genealogia da famiacutelia sabendo contaacute-la a partir da histoacuteria de fixaccedilatildeo do grupo no Paranaacute

89

marcados com uma espeacutecie de calo como lembrou sua filha Jaqueline enquanto

conversaacutevamos sobre este assunto)77

Ademais ela frequenta com seu marido Joaquim (55) e suas duas filhas

Jaqueline (20) e Janaina (14) as missas em Guaiacutera apenas uma vez por mecircs apesar

de que gostaria de poder ir mais frequentemente Isso se torna difiacutecil devido ao

dispecircndio com o combustiacutevel necessaacuterio para percorrer o trecho entre o bairro rural

Maracaju dos Gauacutechos e a sede do Municiacutepio distante 20 km Por muitas vezes natildeo

poder se deslocar ela utiliza aleacutem do raacutedio a televisatildeo que transmite missas e

terccedilos78 Antes do conflito ocorrido entre o grupo e os proprietaacuterios vizinhos79 o qual

foi desencadeado pelo processo administrativo de regularizaccedilatildeo quilombola eles

frequentavam a igreja do ldquoMaracajurdquo o que se tornou insustentaacutevel para o grupo Eva

me explicou como ldquoficava sem jeito de ir para a igrejardquo

Dandara Como que foi essa saiacuteda Eva Isso aiacute porque as turma ficou com raiva de noacuteis por causa do negoacutecio do INCRA aiacute cara feia pra noacutes sei laacute eu ficava sem jeito pra ir na Igreja neacute as turma falava assim ldquoah pode ir eles natildeo pode toca ocecircs da igreja a igreja eacute puacuteblica a igreja eacute pra todo mundordquo ningueacutem pode tocar a gente da igreja mas a pessoa fica com vergonha de ir neacute porque eles natildeo conversa com a pessoa nem nada como eacute que a gente vai na igreja Dandara E o padre assim vocecirc sentiu alguma coisa da parte do padre Eva Ah o padre acho que puxava mais pras turma ele veio uma vez na comunidade aqui ele rezou a missa nem conversou muito com noacutes conversou pouco e quando noacutes puxou no assunto aqui das turma ele escapou fora foi embora e natildeo vortocirc mais Dandara A Sra imagina de ter uma igreja aqui Eva Meu sonho menina eacute ter uma Igreja aqui eu falo pro Adir direto eacute meu sonho que tivesse uma igreja perto direto eu tava na igreja

77 Tambeacutem ouve diariamente pelo raacutedio o programa ldquoExperiecircncia de Deusrdquo apresentado pelo Padre

Reginaldo Manzotti enquanto organiza a cozinha em seu ritmo hoje mais lento devido a seu problema de visatildeo Este programa tem uma hora de duraccedilatildeo e conta com a participaccedilatildeo de ouvintes leitura biacuteblica que Eva acompanha com sua biacuteblia em matildeos aleacutem da realizaccedilatildeo de novena 78 Eva contou que na sexta-feira santa como ela natildeo pocircde ir na ldquoprocissatildeo do Senhor Mortordquo ela

benzeu pela tv um ramo de aacutervore Esta procissatildeo antigamente era acompanhada por muitas pessoas do grupo e ldquouma renca de gente aqui da comunidade ia a peacute ateacute Terra Roxardquo municiacutepio vizinho agrave Guaiacutera cuja sede fica mais proacutexima ao siacutetio Os meios de comunicaccedilatildeo de massa portanto satildeo utilizados como em outras comunidades tradicionais com presenccedila de catoacutelicos para que se possa ter acesso a ritos religiosos e praacuteticas em certa medida maacutegicas como a benzeccedilatildeo de aacutegua 79 O tema do conflito ocorrido em 2009 e 2010 com os proprietaacuterios vizinhos seraacute abordado no proacuteximo

capiacutetulo

90

Apesar de natildeo poder mais frequentar a igreja com a frequecircncia que gostaria

isso natildeo diminui a vivecircncia cotidiana que ela tem de sua feacute Por outro lado as pessoas

do Maracaju dos Gauacutechos que estatildeo indo na igreja na visatildeo de Eva natildeo tecircm uma

atitude cristatilde Isso porque mesmo dentro da missa satildeo movidos por sentimentos de

discriminaccedilatildeo e de orgulho o que acabou fazendo com que os membros da

comunidade natildeo se sentissem mais confortaacuteveis para continuar frequentando tal

igreja

Em relaccedilatildeo ao preconceito racial que ateacute hoje sofrem no ldquoMaracaju dos

Gauacutechos ele se estende inclusive a Nossa Senhora Aparecida santa negra de quem

a comunidade eacute devota Neste sentido Joaquim me contou uma histoacuteria sobre uma

senhora que havia se mudado para bairro rural e que tinha feito uma promessa para

Nossa Senhora Aparecida Ela foi de ocircnibus com a famiacutelia agrave Basiacutelica em AparecidaSP

e de laacute trouxe uma imagem e tinha o desejo de colocaacute-la na igreja do Maracaju Mas

como a maioria dos moradores satildeo descendentes de imigrantes europeus com

atitudes consideradas racistas pelos quilombolas eles natildeo aceitaram a santa

alegando que ela era a ldquoNossa Senhora dos Morcegosrdquo em referecircncia a ser uma santa

negra Joaquim concluiu afirmando que se eles tinham raiva da santa que natildeo lhes

poderia fazer nenhum mal ele imaginava entatildeo o quanto tinham raiva das pessoas

da comunidade Mas ele acrescentou que posteriormente houve outra pessoa que

fez uma promessa e que entatildeo eles acabaram tendo que aceitar colocar a santa na

igreja do Maracaju Nossa Senhora Aparecida eacute natildeo somente negra mas tambeacutem a

padroeira do Brasil A devoccedilatildeo a ela eacute muito grande em todo o paiacutes (sendo um

exemplo a relevacircncia das romarias a Aparecida do Norte inclusive entre os membros

do grupo) A recusa agrave santa negra eacute sentida de uma forma particular pela comunidade

mas a resistecircncia dos vizinhos europeus natildeo pode se sustentar embora natildeo tenha

sido vencida por um membro da comunidade mas por uma pessoa natildeo identificada

Importante neste momento pontuar que uma anaacutelise aprofundada das

concepccedilotildees e praacuteticas religiosas da comunidade demandaria um capiacutetulo inteiro desta

dissertaccedilatildeo No entanto objetivo analisar neste subitem alguns aspectos dentro

deste universo religioso que sobressaem atraveacutes das dinacircmicas de movimento

(concretas e natildeo-concretas) e de comunicaccedilatildeo entre expressotildees religiosas Durante

o trabalho de campo fui me tornando mais atenta para situaccedilotildees e narrativas que

apontavam como as percepccedilotildees quilombolas sobre diferentes praacuteticas religiosas natildeo

91

eram descontiacutenuas ou antagocircnicas mas permeadas por diaacutelogos permanentes e

proacuteximos o que eacute comum observar em contextos de religiosidade popular80 O

movimento tambeacutem permeia a accedilatildeo religiosa dos membros da comunidade por meio

da praxe dedicada agrave circulaccedilatildeo entre pessoas e santos (permeada por promessas)

bem como em relaccedilatildeo agraves entidades da umbanda (por meio de pedidos oferendas e

obrigaccedilotildees) Esta dimensatildeo relacional vai tecendo uma socialidade comum entre

sujeitos que embora hieraacuterquica natildeo eacute irrevogaacutevel Em contraposiccedilatildeo a dinacircmica

estabelecida entre Deus e fiel eacute constituiacuteda pela distacircncia equivalente agrave relaccedilatildeo entre

sujeito e objeto (CALAVIA SAEZ 2009 p 204-205) As viagens rituais para o

pagamento de promessas para o santuaacuterio de Nossa Senhora Aparecida localizado

no municiacutepio de AparecidaSP tambeacutem apontam para a importacircncia do movimento no

contato com o sagrado como nas experiecircncias de peregrinaccedilatildeo e romaria (TURNER

2008 p 155-214)

Haacute muitas histoacuterias no grupo de promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida

que foram atendidas Uma delas a primeira que Eva me contou foi feita por sua sogra

Ana Rodrigues esposa de Manoel Ciriaco Interessante notar que quando Eva foi me

contar como a promessa veio a se cumprir ou seja quando Joaquim enfim conseguiu

parar de beber o contexto passou a trazer elementos e entidades da Umbanda

demonstrando a continuidade a que nos referimos acima D Ana pediu agrave santa que

seu filho Joaquim marido de Eva parasse com o viacutecio com bebidas alcoacuteolicas

Mandou entatildeo fazer uma capelinha para a imagem da santa e quando Eva e Joaquim

se casaram ela lhes deu de presente A cura de Joaquim do viacutecio no entanto veio

de um modo inesperado e assustador Tudo aconteceu quando Joaquim tinha parado

de fazer suas obrigaccedilotildees com os Orixaacutes pois costumava ascender vela e defumar a

casa Um dia ele incorporou ldquoSeu Tranca Ruardquo (Exu) que chegou e falou para Eva

que iria jogar seu ldquopeacute-de-calccedilardquo81 embaixo de quatro rodas Neste momento a

entidade estava se referindo ao fato de que ela iria provocar um acidente com o seu

cavalo (o meacutedium) ou seja Joaquim E o que a entidade falou acabou acontecendo

80 Segundo a criacutetica do antropoacutelogo Calavia Saez ldquoa religiatildeo popular eacute a religiatildeo normal natildeo uma

versatildeo empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiecircncia ndash algo que boa parte dos estudos sobre religiatildeo subalterna manifesta agrave revelia do paradigma em que se desenvolvemrdquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 201) 81 Essa expressatildeo ldquopeacute-de-calccedilardquo eacute utilizada no terreiro de Umbanda para se referir aos homens como me explicou Geralda Depois que eu assisti uma gira no seu terreiro e me consultei com a Preta-Velha que ela tinha incorporado Geralda me esclareceu a duacutevida sobre o significado dessa expressatildeo que a entidade tinha falado para mim

92

Eva me contou que um dia quando Joaquim estava becircbado ele e seu irmatildeo Adir

estavam lidando com o trator quando Joaquim caiu e o trator acabou passando em

cima da perna dele Ele soacute natildeo perdeu a perna neste acidente porque estava com

uma calccedila jeans nova que resistiu e protegeu a perna que ficou pendurada Eva

sonhou com Nossa Senhora Aparecida que lhe disse que natildeo seria necessaacuterio

amputar a perna dele Joaquim ficou vaacuterios dias no hospital e depois por meses em

recuperaccedilatildeo em casa Soacute assim com o susto provocado pelo acidente com o trator

que Joaquim parou de beber e a promessa da sua matildee foi entatildeo atendida

FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana

Pode-se observar portanto que haacute uma comunicaccedilatildeo total entre estes seres

no universo maacutegico-religioso do grupo em uma histoacuteria em que a entidade da

Umbanda um Exu aparece como mediadora para o cumprimento de uma promessa

feita para Nossa Senhora Aparecida o que aponta um marcador de identidade

significativo em contraponto com um ldquooutro catolicismordquo dos vizinhos

O pai de Eva Geraldo tambeacutem foi um dos beneficiados com as graccedilas de

uma promessa atendida por Nossa Senhora Aparecida em mais uma relaccedilatildeo pessoal

bem-sucedida entre santos e fieacuteis Segundo Eva me contou ele pediu agrave santa para

que fosse capaz de aprender a ler e a escrever e que conseguisse comprar um pedaccedilo

93

de terra Aleacutem de ter aprendido o que pediu esse pedaccedilo de terra conquistado foram

os cinco alqueires que ele comprou no Maracaju dos Gauacutechos Deste modo esta

promessa aparece como um mito de origem da comunidade que fortalece a devoccedilatildeo

a Nossa Senhora Aparecida jaacute confirmada por outras promessas atendidas que me

foram narradas

FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP

Eva me contou tambeacutem sobre quando ela e Joaquim foram em romaria a

Basiacutelica de Nossa Senhora Aparecida em AparecidaSP82 para pagar a promessa que

ele tambeacutem tinha feito para que ele conseguisse parar de beber Ela percebeu

sensaccedilotildees fiacutesicas diferentes ao chegar laacute o que reforccedila o sentimento de que se estaacute

diante de um local sagrado o corpo fica leve e a pessoa natildeo tem pensamentos

82 O Santuaacuterio Nacional eacute o ldquomaior santuaacuterio mariano do mundordquo construiacutedo em 1955 ldquoPreocupados

em providenciar o jantar para o poderoso Conde de Assumar de passagem pela Vila de Guaratinguetaacute trecircs pescadores retiraram com suas redes do Rio Paraiacuteba do Sul uma imagem de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo A imagem ficou abrigada durante anos na casa de um dos pescadores ateacute que em 1745 foi construiacuteda uma capela no Morro dos Coqueirosrdquo Disponiacutevel em httpaparecidaspgovbrhistoria-da-cidade Acesso em 01092014

94

Contou que era preciso pagar trecircs reais para subir ateacute o local onde fica a imagem da

santa que foi encontrada no rio onde tambeacutem ficam expostas as correntes dos

escravos Eva assim como Joaquim entende que eacute possiacutevel circular entre as religiotildees

e que se deve respeitar a todas Faz tempo que ela natildeo vai no terreiro de Umbanda

mas jaacute frequentou e sabe contar em quais dias satildeo realizadas as festas das entidades

como Preto Velho Cosme e Damiatildeo e Zeacute Pilintra Em sua casa possui uma imagem

de Satildeo Cosme e Damiatildeo os santos gecircmeos sincretizados com os orixaacutes ibejis

divindade gecircmea na mitologia yorubaacute (PRANDI 2001366-377)

Quando fui ao terreiro de Umbanda com a Geralda como estava ficando na

casa de Eva e Joaquim no siacutetio conversamos sobre este assunto quando voltei

Joaquim entatildeo contou-me sobre uma mulher de Terra Roxa municiacutepio vizinho que

antes de plantar oferecia as ervas para cada santo e entatildeo a muda dava ldquoTudo tem

um misteacuteriordquo e aquelas pessoas que tecircm matildeo boa sabem disso portanto quando vai

fazer o plantio do milho por exemplo eacute importante ter feacute para ter uma boa colheita Eacute

necessaacuterio ter matildeo boa tambeacutem para fazer o patildeo crescer para fazer vinagre de

mamona e para fazer sabatildeo83 reforccedilando como a intenccedilatildeo da pessoa que prepara

interfere no resultado obtido Eva tambeacutem eacute conhecedora da preparaccedilatildeo de

garrafadas que satildeo remeacutedios caseiros ensinados pelos antigos Mesmo entre aqueles

que natildeo frequentam atualmente terreiro de Umbanda percebe-se como a

religiosidade eacute maacutegica e eacute permeada por ritos de proteccedilatildeo relacionados com um

ldquocatolicismo negrordquo brasileiro

Ao olhar para o futuro Eva fala de uma mudanccedila que ocorreraacute na percepccedilatildeo

sobre as religiotildees pois segundo me contou no Apocalipse o fim do mundo estaacute

anunciado que todas as religiotildees seratildeo uma soacute jaacute que Deus eacute um soacute Este Deus uacutenico

aponta como sua a concepccedilatildeo de religiatildeo tem por base o cristianismo

Eva Eu Dandara natildeo desfaccedilo de nenhum tem gente que natildeo gosta assim de esprito assim os evangeacutelico tem gente que natildeo gosta Eu natildeo pra mim tudo eacute um soacute Tem gente que fala ldquoah eu natildeo gosto de crenterdquo Eu natildeo eu natildeo falo Porque quando no fim do mundo ateacute o pastor falou isso a igreja vai ser tudo uma soacute vai unir todo mundo junto Deus natildeo separou ningueacutem neacute Deus eacute um soacute Tem gente que natildeo acredita Eu natildeo eu natildeo desfaccedilo de nenhuma eu gosto tudo igual

83 Nesse sentido interessante que na pesquisa realizada por Cambuy na comunidade quilombola Joatildeo

Suraacute em AdrianoacutepolisPR o sabatildeo eacute tido como um preparo que eacute louco de reineiro pois entre todos eacute o mais faacutecil de reinar ou seja natildeo daacute certo se a pessoa que fizer ldquonatildeo tiver o coraccedilatildeo bomrdquo ou se for alvo de olho gordo sendo necessaacuterio para o sucesso do sabatildeo que seja feito em um contexto harmocircnico (CAMBUY 2011 250-252)

95

No entanto quando um pastor que agraves vezes realizava cultos na comunidade

(que mesmo com a forte presenccedila de praacuteticas afro-brasileiras natildeo tem dificuldade de

dialogar com os crentes) quis batizaacute-la ela contou que se negou ldquoAh eu natildeo batizo

na religiatildeo nisso aiacute natildeo Ele queria que eu batizasse na lei de crente mas eu natildeo jaacute

sou batizada desde pequena vou batizar outro batismo pra quecirc rdquo Haacute portanto uma

perspectiva da religiatildeo como abrangente natildeo havendo neste caso contradiccedilatildeo entre

denominaccedilotildees e frequecircncias a espaccedilos diversos No entanto haacute tambeacutem a

necessidade de uma escolha oficial que no caso de Eva se daacute pela religiatildeo catoacutelica

A religiosidade do grupo aponta assim para uma perspectiva proacutepria de um

universo negro que natildeo estabelece fronteiras claras entre as religiotildees mas uma

interdependecircncia constante Como tentamos demonstrar ao longo deste subitem

estas experiecircncias falam de dinacircmicas de movimento natildeo soacute no diaacutelogo entre esferas

religiosas mas de movimentos concretos como nas viagens realizadas para

pagamentos de promessas movimentos estabelecidos na relaccedilatildeo entre devoto e

santo entre meacutedium e entidades espirituais Estas praacuteticas falam de uma memoacuteria

corporal performaacutetica e ritual que constitui parte essencial da relaccedilatildeo que

estabelecem com o passado e da forma de atualizaacute-lo no presente Religiosidade que

marca a relaccedilatildeo entre negritude opressatildeo e santidade significativa nos discursos de

grupos quilombolas sobre sua relaccedilatildeo com o sagrado (PORTO 2007)

96

2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS

Quando os funcionaacuterios do governo do Paranaacute chegaram ateacute as famiacutelias em

questatildeo em GuaiacuteraPR e lhes apresentaram a possibilidade de reivindicaccedilatildeo da

identidade quilombola nunca tinham ouvido falar neste termo ou sequer imaginavam

que poderiam reivindicar algum direito de um Estado que segundo afirmam nunca

lhes enxergou ou lhes protegeu pelo contraacuterio Esta situaccedilatildeo inesperada causou

muita duacutevida e inseguranccedila sobre acionar ou natildeo a autodeclaraccedilatildeo como quilombolas

tendo em vista os riscos e as consequecircncias da opccedilatildeo por este caminho Quando

optaram por trilhaacute-lo entraram aos poucos em mais uma trajetoacuteria de movimento

agora de inserccedilatildeo e circulaccedilatildeo em novas esferas sociais tanto concretas quanto

simboacutelicas

Passaram entatildeo a ter que lidar com uma linguagem estatal e burocraacutetica que

desconheciam com uma organizaccedilatildeo em termos poliacuteticos por meio de uma

associaccedilatildeo juriacutedica ndash que os integrou formalmente como sujeito coletivo ndash e neste

processo Adir como lideranccedila da comunidade desde entatildeo foi convidado a realizar

vaacuterias viagens como representante quilombola tanto no Paranaacute como em outros

estados Com a pauta de reivindicaccedilatildeo territorial foi desencadeada uma redefiniccedilatildeo

das relaccedilotildees locais vindo agrave tona de forma impactante processos de tensatildeo antes

latentes na convivecircncia com os proprietaacuterios vizinhos Por outro lado houve tambeacutem

uma ampliaccedilatildeo significativa de relaccedilotildees para aleacutem das dinacircmicas locais ndash um aspecto

considerado pelos quilombolas como muito positivo ndash pois a inserccedilatildeo no movimento

quilombola os colocou em contato com outras comunidades e inclusive proporcionou

uma retomada de viacutenculos dentro da proacutepria famiacutelia reconectando-os com sua regiatildeo

de origem em Minas Gerais por meio da realizaccedilatildeo das viagens de volta que seratildeo

abordadas no terceiro capiacutetulo

No entanto a peculiaridade de um grupo marcado por dinacircmicas de

movimento e que se reconhece como quilombola a partir de um viacutenculo com uma

regiatildeo de origem na qual natildeo mais habitam ndash pois de laacute saiacuteram em trajetoacuterias seguidas

de deslocamentos como vimos no capiacutetulo anterior ndash colocou um grande desafio e

quase um empecilho para o tracircmite do processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do grupo

junto ao oacutergatildeo responsaacutevel o Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria

97

(INCRA) O caso da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos como

veremos nos permite o aprofundamento de uma reflexatildeo muito importante sobre ateacute

que ponto o reconhecimento da diversidade sociocultural estaacute de fato presente nos

processos e procedimentos administrativos bem como na compreensatildeo dos agentes

que atuam em nome do Estado nesta temaacutetica Sobre esta delicada questatildeo a

antropoacuteloga Miriam Chagas argumenta que

() a sociedade moderna admitiria uma uacutenica foacutermula minimizada de reconhecimento das diferenccedilas ou seja a mera conversatildeo da igualdade em identidade Essa consideraccedilatildeo aponta para uma questatildeo de difiacutecil tratamento pois o proacuteprio conceito de identidade ndash tambeacutem cultural ndash seria fruto da configuraccedilatildeo ideonormativa do sistema de valores da sociedade moderna (CHAGAS 2001 p 232)

Deve-se levar em conta que antes da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o

ordenamento juriacutedico nacional negava a diversidade cultural da populaccedilatildeo brasileira

procurando homogeneizaacute-la A partir da consolidaccedilatildeo em 1988 de ldquodireitos eacutetnicosrdquo

enquanto garantias constitucionais iniciou-se um novo momento de reconhecimento

formal e consolidaccedilatildeo do acesso a tais direitos Os agentes do Estado daiacute em diante

ao classificarem em legislaccedilotildees categorias como ldquoquilombolasrdquo ldquoindiacutegenasrdquo ldquopovos e

comunidades tradicionaisrdquo precisam considerar que natildeo estatildeo apenas a nomear e a

reconhecer tais grupos mas tambeacutem estatildeo produzindo alteridades Marcadas ldquopela

qualidade de lsquoprimitivorsquo lsquotradicionalrsquo e correlatosrdquo estas categorias criam e

caracterizam o que nomeiam ao oporem um quadro classificatoacuterio de definiccedilatildeo e

redefiniccedilatildeo da alteridade com desdobramentos na emergecircncia de novos sujeitos

poliacuteticos organizados (ARRUTI 2006 51-53) Eacute a partir da sobrecodificaccedilatildeo e

normatizaccedilatildeo estatal portanto que tais grupos estaratildeo categorizados e seu

reconhecimento territorial seraacute regulado em procedimentos administrativos atraveacutes de

regulamentaccedilatildeo infraconstitucional

Estes sujeitos coletivos se mobilizam em unidades sociais a partir de um

pertencimento comum que funda uma identidade coletiva em processos de

autodefiniccedilatildeo referenciados nas categorias juridicamente reconhecidas Esta

mobilizaccedilatildeo poliacutetica que se desenrola principalmente em torno da luta pela garantia

dos territoacuterios ocupados tradicionalmente tambeacutem gera efeitos por meio de pressotildees

de movimentos sociais articulados ao tensionar o centro de poder do Estado Neste

processo estes grupos sociais vatildeo atribuindo seus proacuteprios sentidos aos conceitos

98

geneacutericos de reconhecimento como ldquoquilombolasrdquo os quais satildeo acionados em uma

vasta gama de situaccedilotildees para expressar diversos significados

Uma multiplicidade de metaacuteforas eacute portanto atribuiacuteda aos signos eacutetnicos no

processo social da etnicidade pelos grupos sociais que reivindicam ldquodireitos de uma

cidadania diferenciada ao Estado brasileirordquo (OrsquoDWYER 2009 p 175) Este processo

de reivindicaccedilatildeo vai gerando uma maximizaccedilatildeo da alteridade ndash por meio da

diferenciaccedilatildeo de sentidos ndash mesmo no acircmbito instituiacutedo de padronizaccedilatildeo estatal Esta

maximizaccedilatildeo eacute necessaacuteria porque ldquoas unidades de descriccedilatildeo das populaccedilotildees

submetidas respondem ao custo de uma brutal reduccedilatildeo de sua alteridade agraves

necessidades de produccedilatildeo de unidades geneacutericas de intervenccedilatildeo e controle socialrdquo

(ARRUTI 1997 p 20) Haacute que se refletir sobre ateacute que ponto

() quilombo expressa a dimensatildeo poliacutetica da identidade negra no Brasil ou ele eacute uma nova reduccedilatildeo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este prisma teriam que se adequar a um conceito geneacuterico para novos propoacutesitos de intervenccedilatildeo e controle social (LEITE 2000 p 343)

De forma anaacuteloga ao que ocorreu com os povos indiacutegenas com o

estabelecimento de um certo padratildeo de ldquoindianidaderdquo ndash imposto pelo oacutergatildeo estatal e

que acaba sendo assumido como padratildeo de comportamento dos grupos em questatildeo

ndash podemos observar a existecircncia tambeacutem de um modelo de ldquoquilombolidaderdquo com

uma determinada forma de compreender quem satildeo os ldquoquilombolasrdquo a partir da qual

se estabelece procedimentos padronizados para lidar com esta diversidade (ARRUTI

1997 p 41) Esta necessidade de limitar a complexidade social para definir de modo

impositivo quem seriam os destinataacuterios do direito territorial reconhecido

constitucionalmente mostra marcas de um colonialismo interno que em muito ainda

manteacutem ldquouma praacutetica de dominaccedilatildeo intimamente ligada agrave ideologia da concentraccedilatildeo

fundiaacuteria como sinocircnimo de progresso numa economia agroexportadorardquo (ALMEIDA

2011 p 07-13)

No caso do direito territorial das comunidades quilombolas o primeiro marco

normativo foi estabelecido na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mas natildeo em seu corpo

permanente e sim no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) pelo

artigo 68 ldquoaos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras eacute reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-

99

lhes os tiacutetulos respectivosrdquo84 A partir de 2003 com o Decreto Federal 4887 assinado

no primeiro ano de mandato do entatildeo Presidente Lula a questatildeo quilombola ganha

forccedila e passa por uma estruturaccedilatildeo paulatina no Governo Federal A competecircncia

para titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas eacute atribuiacuteda ao INCRA no acircmbito do Ministeacuterio

do Desenvolvimento Agraacuterio o qual passa a incidir diretamente na questatildeo fundiaacuteria

das comunidades quilombolas em todo o Brasil

O conceito de quilombo imposto arbitrariamente no periacuteodo colonial enquanto

tipo penal para reprimir escravos fugidos85 demandou novos procedimentos

interpretativos ao se tornar uma categoria para reconhecimento de sujeitos de direitos

no presente Deve haver assim um deslocamento conceitual sobre as ideias de

quilombo como sobrevivecircncia e reminiscecircncia para que se possa compreender o que

satildeo as comunidades que se reconhecem como quilombolas hoje e como construiacuteram

sua autonomia historicamente (ALMEIDA 2011 p 64) Para tal reconfiguraccedilatildeo

conceitual a perspectiva antropoloacutegica tem contribuiccedilatildeo fundamental e se contrapocircs

por exemplo agraves limitaccedilotildees trazidas pelo Decreto Federal 3912 de 2001 obra do

governo do entatildeo presidente Fernando Henrique Cardoso

Nesta regulamentaccedilatildeo em forma de decreto do artigo 68 do ADCT realizada

em 2001 natildeo se reconhecia a autoatribuiccedilatildeo identitaacuteria pelos proacuteprios grupos sociais

Ao partir de um criteacuterio de heteroidentidade o decreto reproduzia a recusa da titulaccedilatildeo

definitiva das comunidades quilombolas sendo que durante a vigecircncia deste

instrumento no periacuteodo de dois anos nenhuma titulaccedilatildeo foi realizada Foram

estabelecidas condiccedilotildees restritivas como

(a) a manutenccedilatildeo da competecircncia da Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) para

titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas o que limitava o direito territorial unicamente agrave

dimensatildeo cultural Esta atribuiccedilatildeo de competecircncia a FCP impossibilitava a efetivaccedilatildeo

da desapropriaccedilatildeo fundiaacuteria necessaacuteria

84 Esta parte da Constituiccedilatildeo na qual foi inserido o artigo 68 o ADCT consiste em um ato para regulaccedilatildeo da transiccedilatildeo entre regimes constitucionais o que revela a dificuldade em pautar esta temaacutetica que natildeo constou no corpo do texto principal da Constituiccedilatildeo No entanto segundo os juristas que se utilizam do modo de interpretaccedilatildeo sistemaacutetica da Constituiccedilatildeo este fato natildeo minimiza a eficaacutecia da norma enquanto garantidora de um direito fundamental Sobre o debate doutrinaacuterio e jurisprudencial acerca da temaacutetica ver SOUZA 2013 85 O Conselho Ultramarino Portuguecircs de 1740 definia quilombo como ldquotoda habitaccedilatildeo de negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida ainda que natildeo tenham ranchos levantados ou se achem pilotildees nelesrdquo (LEITE 2000 p 336)

100

(b) a aplicaccedilatildeo do direito apenas para o caso das terras que jaacute estavam

ocupadas por quilombos em 1888 data da aboliccedilatildeo da escravidatildeo e que

continuassem ocupadas por ldquoremanescentesrdquo em 1988 quando da promulgaccedilatildeo da

Constituiccedilatildeo Federal Trata-se no entanto de duas datas arbitraacuterias do calendaacuterio do

Estado que por si soacute natildeo produziram ldquoa instituiccedilatildeo de um novo estado de coisas na

sociedaderdquo e que somadas estabeleceram um requisito temporal arbitraacuterio

colocando a necessidade de comprovaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo por cem anos para a

aquisiccedilatildeo do direito (MILANO 2011 p 97)

Em um contexto em que eacute o Estado no exerciacutecio de um poder tutelar que

define se um grupo eacute ou natildeo quilombola dentro desta perspectiva da heteroidentidade

estabelecida no decreto federal de 2001 a interlocuccedilatildeo do fazer antropoloacutegico dentro

do procedimento administrativo de titulaccedilatildeo seria direcionada para a produccedilatildeo de

laudos que teriam uma funccedilatildeo dupla de investigaccedilatildeo primeiro do da legitimidade do

reconhecimento eacutetnico da identidade reivindicada pelo grupo para entatildeo analisar o

reconhecimento territorial

Um novo cenaacuterio vem agrave tona com a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 sobre Povos

Indiacutegenas e Tribais da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) por meio do

Decreto Legislativo nordm 143 de 200286 de modo que passa a ser incorporado no

ordenamento juriacutedico nacional o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo na identificaccedilatildeo de grupos

eacutetnicos Este criteacuterio foi previsto entatildeo no Decreto Federal 4887 de 2003 ndash tendo

revogado o decreto anterior 3912 de 2001 ndash o qual estaacute atualmente em vigor e

regulamenta os procedimentos para a titulaccedilatildeo territorial quilombola de

responsabilidade do INCRA

Com o Decreto 4883 de 2003 ndash que precedeu o Decreto 4887 tambeacutem de

2003 ndash a competecircncia para titulaccedilatildeo quilombola havia sido transferida da Fundaccedilatildeo

Cultural Palmares (FCP) para o INCRA Esta mudanccedila teve uma repercussatildeo positiva

pois este oacutergatildeo federal eacute o que possui atribuiccedilatildeo para ordenaccedilatildeo da estrutura fundiaacuteria

nacional podendo realizar assim desapropriaccedilotildees com o intuito de efetivar as

titulaccedilotildees quilombolas Entretanto o INCRA natildeo possuiacutea estrutura institucional para

lidar com demandas de caraacuteter eacutetnico ndash em contraste com a Fundaccedilatildeo Cultural

86 Aleacutem do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 trouxe outras inovaccedilotildees significativas para o ordenamento juriacutedico nacional sobre as quais natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho Sobre este tema ver MILANO 2011

101

Palmares (FCP) e a Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI) oacutergatildeos federais que jaacute

contavam com ampla experiecircncia de trabalho com demandas eacutetnicas

Com uma nova conjuntura estabelecida pela incorporaccedilatildeo do criteacuterio de

autoatribuiccedilatildeo nos processos de regularizaccedilatildeo territorial os laudos antropoloacutegicos

deixam de exercer a funccedilatildeo de ldquoreconhecimento eacutetnico-territorialrdquo para assumir a

funccedilatildeo apenas de ldquoreconhecimento territorialrdquo (ARRUTI 2006 p 27-32) pois o

reconhecimento eacutetnico passou a ser definido pela autoidentificaccedilatildeo dos proacuteprios

grupos sociais A questatildeo deixa de ser a quem se aplica o direito para quais satildeo os

grupos que dirigem suas reivindicaccedilotildees a estes direitos ou ainda quem satildeo os sujeitos

que orientam suas accedilotildees a partir do sentimento de pertencer a um grupo especiacutefico

quilombola O criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo estaacute de acordo com a perspectiva

antropoloacutegico de que os grupos eacutetnicos satildeo entidades autodefinidas e de que ldquoas

etnicidades demandam uma visatildeo construiacuteda de dentro e elas natildeo tecircm relaccedilotildees

imperativas com qualquer criteacuterio objetivordquo (OrsquoDWYER 2011 p 113)87

Eacute por meio dos processos de emergecircncia de novas identidades sociais que o

passado e as narrativas histoacutericas da memoacuteria coletiva vatildeo ser articulados de modo

ldquopoliacutetica e socialmente operacionaisrdquo no sentido de subsidiar as reivindicaccedilotildees

identitaacuterias (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 22) Assim como natildeo haacute criteacuterios

objetivos para a definiccedilatildeo da etnicidade natildeo haacute tambeacutem um passado pronto que

vecircm agrave tona Ademais eacute por meio destes novos contextos de interaccedilatildeo que as

diferenccedilas culturais seratildeo percebidas pelos proacuteprios sujeitos como socialmente

significativas (BARTH 2011)

Neste cenaacuterio de reconhecimento de direitos eacutetnicos a interlocuccedilatildeo do saber

antropoloacutegico com o juriacutedico tem se potencializado mas natildeo sem ambivalecircncias A

participaccedilatildeo de antropoacutelogos como peritos em procedimentos de reconhecimento

territorial tem sido fundamental para a realizaccedilatildeo de ldquoestudo in loco dos processos

pelos quais emergem os grupos negrosrdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) A

antropologia tem contribuiacutedo portanto com seu acuacutemulo teoacuterico que passa a ser

colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees puacuteblicas o que torna necessaacuteria por conseguinte

a ldquobusca por paracircmetros de avaliaccedilatildeo e execuccedilatildeo para a antropologia e antropoacutelogosrdquo

em um novo acircmbito de profissionalizaccedilatildeo

87 Este eacute um aspecto central discutido pela tradiccedilatildeo teoacuterica da antropologia cuja referecircncia fundamental

eacute o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth com seu texto Grupos eacutetnicos e suas fronteiras publicado inicialmente em 1969 (BARTH 2011)

102

Para a elaboraccedilatildeo de tais paracircmetros eacute preciso que haja ampla discussatildeo

divulgaccedilatildeo e debate acerca dos trabalhos de periacutecia criando assim um espaccedilo de

reflexatildeo criacutetica dentro da disciplina antropoloacutegica capaz de responder a tais demandas

geradas na interface entre o saber juriacutedico e antropoloacutegico visando que ldquoo campo se

consolide e este instrumento (o relatoacuterio antropoloacutegico) seja cada vez mais eficaz no

contexto e objetivos a que se propotildeerdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) Este eacute

o principal objetivo deste segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo no qual pretendo analisar

comparativamente os dois relatoacuterios antropoloacutegicos produzidos sobre a ldquoComunidade

Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

Ambos os relatoacuterios foram produzidos no acircmbito do Procedimento

Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria que tramita na

Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro

relatoacuterio foi produzido por meio do convecircnio do INCRA com a Universidade Estadual

do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) tendo a versatildeo final sido encaminhada a este oacutergatildeo

federal em 29 de outubro de 2010 Os argumentos levantados iam de encontro agraves

premissas da autoatribuiccedilatildeo questionando assim a legitimidade da reivindicaccedilatildeo

identitaacuteria e territorial da comunidade Este relatoacuterio foi recusado pelo INCRA com

base em vaacuterios argumentos dentre os quais destaco o fato de os autores terem

apresentado ldquobaixa qualidade teacutecnica e antropoloacutegicardquo e natildeo terem cumprido ldquocom os

termos do convecircnio e da IN 492008rdquo 88

Este primeiro relatoacuterio que seraacute a partir de agora denominado de ldquorelatoacuterio

anti-antropoloacutegicordquo nesta dissertaccedilatildeo foi posteriormente retirado do procedimento de

regularizaccedilatildeo territorial do grupo passando a constar apenas no procedimento

referente agrave finalizaccedilatildeo e tomada de contas do convecircnio com a UNIOESTE

(Procedimento Administrativo nordm 542000023842008-33) Dentre os argumentos

levantados questionando a legitimidade da reivindicaccedilatildeo da comunidade destaca-se

o entendimento de que natildeo havia ancestralidade de ocupaccedilatildeo de um mesmo territoacuterio

e que aquele natildeo era um territoacuterio quilombola tendo em vista por exemplo a

inexistecircncia de registros histoacutericos de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR

Em decorrecircncia do trabalho do INCRA com a comunidade houve o

desencadeamento de um seacuterio conflito causado pela mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios

88 Instruccedilatildeo Normativa que regia o procedimento de titulaccedilatildeo quilombola no INCRA na eacutepoca da

produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico

103

vizinhos contraacuterios agraves reivindicaccedilotildees quilombolas sendo que a lideranccedila do grupo foi

ameaccedilada de morte vaacuterias vezes em um clima de forte tensatildeo e animosidade Em

resposta a esta situaccedilatildeo de inseguranccedila e agrave recusa do primeiro relatoacuterio o INCRA

contratou um segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foi produzido pela empresa Terra

Ambiental Esta empresa foi a vencedora do pregatildeo eletrocircnico realizado pela

Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas (DFQ) da sede do

INCRA em Brasiacutelia tendo em vista a urgecircncia deste processo de regularizaccedilatildeo

territorial em GuaiacuteraPR A versatildeo final do segundo relatoacuterio foi encaminhada em 15

de julho de 2013 E avaliado em sua consonacircncia com a instruccedilatildeo normativa em vigor

572009 o relatoacuterio antropoloacutegico foi aprovado e incorporado ao Relatoacuterio Teacutecnico de

Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID)89 da comunidade

A pesquisa para produccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico teve que lidar

com as questotildees provocadas pelo primeiro estudo e sua recusa em reconhecer a

autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombolas Como resposta a equipe de

pesquisadores contratados pela empresa Terra Ambiental realizou um levantamento

acerca das memoacuterias coletivas do grupo sobre sua origem mineira deslocando o

historiador Cassius Cruz ateacute a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de onde as

famiacutelias satildeo provenientes Atraveacutes deste levantamento de informaccedilotildees em Minas

Gerais foi possiacutevel apontar os viacutenculos e as referecircncias comuns de memoacuteria entre a

comunidade de Guaiacutera e comunidades quilombolas desta regiatildeo mineira bem como

levantar possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco com a Comunidade Quilombola Vila Nova

localizada em SerroMG especificamente

89 O RTID eacute um conjunto de peccedilas teacutecnicas que eacute produzido pelo INCRA no acircmbito do procedimento administrativo para regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas O relatoacuterio antropoloacutegico eacute a primeira peccedila teacutecnica do RTID (o qual eacute composto por outros estudos) e tem como objetivo ldquocaracterizarrdquo a comunidade quilombola e o territoacuterio reivindicado conforme a Instruccedilatildeo Normativa 57 de 2009 que regulamenta o procedimento De um modo mais geral sobre as etapas que compotildeem o processo de titulaccedilatildeo tem-se que ldquoa primeira parte dos trabalhos do Incra consiste na elaboraccedilatildeo de um estudo da aacuterea destinado agrave confecccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) do territoacuterio Uma segunda etapa eacute a de recepccedilatildeo anaacutelise e julgamento de eventuais contestaccedilotildees Aprovado em definitivo esse relatoacuterio o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do territoacuterio quilombola A fase seguinte do processo administrativo corresponde agrave regularizaccedilatildeo fundiaacuteria com desintrusatildeo de ocupantes natildeo quilombolas mediante desapropriaccedilatildeo eou pagamento de indenizaccedilatildeo e demarcaccedilatildeo do territoacuterio O processo culmina com a concessatildeo do tiacutetulo de propriedade agrave comunidaderdquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrestrutura-fundiariaquilombolas Acesso em 180915

104

Para entender a complexidade da produccedilatildeo destes dois relatoacuterios eacute

importante levar em conta que a produccedilatildeo de tal tipo de documento no acircmbito de um

procedimento do INCRA consiste em uma forma especiacutefica de pesquisa

antropoloacutegica Trata-se de um processo dirigido de interaccedilatildeo entre o antropoacutelogo e os

sujeitos de pesquisa a partir de paracircmetros legais e administrativos O territoacuterio a ser

delimitado como proposta final do estudo seraacute neste contexto resultado de uma

fabricaccedilatildeo mediada por atores que interagem em uma rede configurada tambeacutem como

um forte campo de disputas Em jogo estatildeo natildeo soacute as tensotildees entre estes campos

de conhecimento mas tambeacutem entre interesses antagocircnicos sobre a questatildeo eacutetnica

e territorial principalmente no que tange agrave resistecircncia dos setores conservadores da

sociedade em relaccedilatildeo agraves possibilidades de alteraccedilatildeo e democratizaccedilatildeo da estrutura

agraacuteria nacional

Um dos efeitos em relaccedilatildeo a essa disputa que cria entraves para a efetivaccedilatildeo

de titulaccedilotildees de territoacuterios quilombolas foi o aumento na burocratizaccedilatildeo dos

procedimentos exigidos pelo INCRA por meio da alteraccedilatildeo das instruccedilotildees normativas

(IN) que regem este processo ateacute a atual IN 57 de 2009 Ainda em 2008 a Associaccedilatildeo

Brasileira de Antropologia (ABA) se posicionou sobre o debate acerca da reforma da

IN 20 anterior agrave mais exigente IN 5790 por meio da ldquoCarta de Porto Segurordquo criticando

o estabelecimento de um roteiro com itens descritivos a serem seguidos pelo

antropoacutelogo responsaacutevel pela realizaccedilatildeo de relatoacuterios de identificaccedilatildeo territorial

() Diferentemente de outras periacutecias teacutecnicas o relatoacuterio antropoloacutegico natildeo trabalha sob o suposto de uma verdade absoluta e externa aos atores mas desempenha o papel de apreender e interpretar o ponto de vista nativo sobre sua histoacuteria sociedade e ambiente de forma a traduzi-lo nas linguagens externas a ele Como corolaacuterio deste papel principal a Antropologia tambeacutem tem o papel de relativizar e enriquecer tais saberes e linguagens do Estado ao confrontaacute-lo com concepccedilotildees e conceitos que lhe satildeo externos A recusa de qualquer destes objetivos deve ser assumida pelas agecircncias de Estado como fruto de decisatildeo poliacutetica expliacutecita e natildeo transferida para o exerciacutecio antropoloacutegico por meio de constrangimentos legais ou normativos Diante destas consideraccedilotildees repudiamos a pretensatildeo do Estado Brasileiro em interferir sobre o saber e o fazer antropoloacutegicos tendo em vista interesses

90 Segundo Arruti as alteraccedilotildees da Instruccedilatildeo Normativa 202005 para a 572009 foram decorrentes da

mediaccedilatildeo do Governo Federal frente agrave pressatildeo poliacutetica que os opositores ao tema provocaram com a proposta de Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3239 encaminhada pelo partido Democratas ao Supremo Tribunal Federal Esta ADIn questiona o Decreto 48872003 que regulamenta o procedimento de titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas Arruti afirma que ldquo() o governo federal assumiu o ocircnus de incorporar o contraditoacuterio imposto pela oposiccedilatildeo ao tema na forma de uma nova proposta de reformulaccedilatildeo da Instruccedilatildeo Normativa interna ao Incra abrindo um novo campo de disputas que agora o opotildee ele mesmo ao movimento quilombolardquo (ARRUTI 2009 p 120)

105

conjunturais e externos ao legiacutetimo debate puacuteblico em torno dos objetivos que formalmente sustentam o diaacutelogo entre antropoacutelogos e agecircncias de Estado91

O contato do campo juriacutedico com os antropoacutelogos ndash tanto na esfera

administrativa como na judicial ndash nas quais o relatoacuterio antropoloacutegico pode ser

interpretado como prova pericial ndash cria uma expectativa por parte dos operadores do

direito da produccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico objetivo pensado a partir de fatos

como elementos externos e preacute-existentes bem como a partir da dicotomia entre

representaccedilatildeo e realidade (OrsquoDWYER 2009 p 177) Esta aproximaccedilatildeo entre campos

de conhecimento tem sido permeada portanto de desentendimentos muacutetuos

Haacute o poder e a autoridade do juiz de dizer de quem eacute ou natildeo eacute o direito quem pode ou natildeo pode quem vai ou natildeo vai ter direito agrave condiccedilatildeo pleiteada ou neste exemplo agrave terra reivindicada O mesmo natildeo pode ser esperado do antropoacutelogo embora sua voz seja importante na decisatildeo do juiz () Haacute muitas vezes durante esse processo uma dificuldade de entendimento sobre o lugar efetivo do antropoacutelogo Entatildeo lhe recaem responsabilidades que parecem criar uma confusatildeo entre saberes poderes e responsabilidades a ponto de ser atribuiacutedo ao antropoacutelogo um lugar de juiz isto eacute o papel de julgar e definir quem seraacute beneficiado (LEITE 2004 67)

Os criteacuterios juriacutedicos natildeo deveriam desta forma desconsiderar os paracircmetros

de execuccedilatildeo e de avaliaccedilatildeo da proacutepria antropologia jaacute que eacute a esta tradiccedilatildeo teoacuterica

que se estaacute recorrendo em funccedilatildeo de seu campo interpretativo para subsidiar a

compreensatildeo das dinacircmicas sociais em questatildeo A relevacircncia do meacutetodo etnograacutefico

para a antropologia coloca em questatildeo as dificuldades impostas em contextos de

pesquisa em que a temporalidade do processo natildeo eacute a mesma da etnografia para

estudos acadecircmicos Eacute importante que este meacutetodo de pesquisa possa ser

incorporado nos procedimentos desta poliacutetica de reconhecimento em condiccedilotildees de

efetivo respeito agrave alteridade Nesse sentido para que a etnografia possa se realizar a

partir do criteacuterio da produccedilatildeo de um conhecimento dialoacutegico e operar como um

instrumento adequado antropologicamente seria necessaacuterio que a poliacutetica de

reconhecimento do Estado incorporasse outros saberes e linguagens capazes de

enriquecer e problematizar a questatildeo da diversidade cultural

Ademais se por um lado o direito cria um filtro para lidar com a antropologia

a antropologia por outro eacute ela mesma um filtro Importante destacar que o problema

91 ldquoCarta de Porto Seguro sobre as posturas estatais diante das consultas formais aos antropoacutelogosrdquo

Disponiacutevel em httpwwwabantorgbrconteudoANAISCD_Virtual_26_RBAcartadeportoseguropdf Acesso em 180915

106

do poder e do silenciamento na produccedilatildeo de textos antropoloacutegicos estaacute teoricamente

elaborado desde a deacutecada de 1970 com a virada poacutes-moderna O etnoacutegrafo natildeo pode

mais escapar imune dessa ldquocrise teoacuterico-poliacuteticardquo Necessaacuterio retomar desta maneira

a criacutetica aos modos de escrita antropoloacutegica que instauram regimes de verdade em

relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo do nativo a partir de padrotildees de disciplinamento e controle

que escamoteiam a presenccedila do antropoacutelogo como autor e que podem reforccedilar uma

ldquounidade cognoscenterdquo92 em relaccedilotildees de poder sobre os grupos estudados

(CARVALHO 2002 p 06)

Ao passo que este debate sobre a representaccedilatildeo etnograacutefica estaacute colocado

para a antropologia em situaccedilotildees de diaacutelogo com esferas como o direito que trabalha

com a busca de provas a partir da elaboraccedilatildeo de periacutecias torna-se muito mais

complexo (mas natildeo menos necessaacuterio) problematizar o lugar do antropoacutelogo na

relaccedilatildeo de pesquisa e na forma de escrita Nesta intersecccedilatildeo de aacutereas de saber o

que vem agrave tona muitas vezes em primeiro plano eacute a possibilidade pragmaacutetica dos

antropoacutelogos participarem dos processos de garantia de direitos para os grupos aos

quais tecircm dedicado longa tradiccedilatildeo de estudos e neste processo debates importantes

da antropologia podem acabar negligenciados em prol de estrateacutegias de persuasatildeo

argumentativa dos relatoacuterios antropoloacutegicos

Neste contexto de traduccedilotildees e incompreensotildees eacute necessaacuterio reafirmar

conforme pautado pelo documento produzido pela Associaccedilatildeo Brasileira de

Antropologia (ABA) ndash a Carta de Ponta das Canas93 ndash que agrave antropologia cabe a

produccedilatildeo de inteligibilidade e natildeo de julgamentos a construccedilatildeo de interpretaccedilotildees e

natildeo de ldquoverdadesrdquo natildeo tendo o relatoacuterio antropoloacutegico um caraacuteter de atestado (ABA

2001) A diferenccedila deste tipo de trabalho com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo acadecircmica estaria

em uma certa economia a que o antropoacutelogo deve responder restringindo na medida

do possiacutevel a riqueza etnograacutefica aos limites da demanda Essa tensatildeo entre

antropologia e direito no entanto natildeo deve ser eliminada pois isso soacute ocorreria por

meio da submissatildeo de um saber ao outro Assim recomenda-se que o antropoacutelogo

92 O antropoacutelogo Joseacute Jorge de Carvalho problematiza o fato de que a comunidade antropoloacutegica eacute

avassaladoramente branca e que se de um lado a antropologia estaacute interessada na diversidade nativa natildeo conseguiu ainda superar a homogeneidade social racial e de classe dos proacuteprios antropoacutelogos profissionais (CARVALHO 2002 p 08) 93 Documento produzido na ldquoOficina sobre Laudos Antropoloacutegicosrdquo realizada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) e organizada pelo Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ver ABA Laudos Antropoloacutegicos - Carta de Ponta das Canas Textos e Debates n 9 Florianoacutepolis NUERUFSC 2001

107

seja minucioso e sistemaacutetico na explicitaccedilatildeo das razotildees que o levaram agrave apresentaccedilatildeo

das informaccedilotildees selecionadas tendo em vista os objetivos especiacuteficos deste tipo de

documento (ABA 2001 p 04- 05)

Eacute sabido que diferentes situaccedilotildees etnograacuteficas iratildeo gerar diferentes respostas

dos grupos sociais em termos da possibilidade de estabelecimento de relaccedilotildees de

confianccedila compreensibilidade e diaacutelogo (OLIVEIRA FILHO 2003 141-180) Para

aleacutem do caraacuteter juriacutedico que assume o relatoacuterio antropoloacutegico haacute uma importante

dimensatildeo de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da legitimidade e dos conhecimentos dos

grupos que passam por tal tipo de estudo o que iraacute depender do posicionamento eacutetico

dos profissionais envolvidos e das relaccedilotildees estabelecidas com seus interlocutores

Com um relatoacuterio antropoloacutegico que possa embasar teoricamente esta experiecircncia

histoacuterica e coletiva especiacutefica abre-se a possibilidade inclusive de uma confrontaccedilatildeo

de historicidades tendo em vista que a histoacuteria oficial em sua linearidade

uniformizadora natildeo incorpora esta diversidade de experiecircncias histoacutericas (CHAGAS

2005 p 75)

Neste capiacutetulo busco analisar de que forma o processo de reconhecimento

da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos ndash por meio da atuaccedilatildeo de diferentes atores

externos e especialmente no que tange agrave produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos

ndash foi percebido pelos membros do grupo quilombola e ao mesmo tempo em um certo

sentido produziu o proacuteprio grupo94 em um acircmbito institucional Assim como afirmou

Homi Bhabha importante teoacuterico dos estudos poacutes-coloniais eacute preciso reconhecer a

forccedila da escrita e de seu discurso retoacuterico ldquocomo matriz produtiva que define o lsquosocialrsquo

A textualidade natildeo eacute simplesmente uma expressatildeo ideoloacutegica de segunda ordem ou

um sintoma verbal de um sujeito poliacutetico preacute-dadordquo (BHABHA 1988 p 48) Assim

deve-se ter em vista o potencial transformador contido no processo que se pretende

de ldquoreconhecimentordquo e que muitas vezes incorre no equiacutevoco de buscar uma

identidade e um territoacuterio preacute-existentes

94 Se no primeiro relatoacuterio os autores afirmaram que natildeo se tratava de um grupo quilombola mas sim

de famiacutelias negras de trabalhadores rurais no segundo relatoacuterio reconheceu-se a autoindentificaccedilatildeo como grupo quilombola e fundamentou-se sua reivindicaccedilatildeo identitaacuteria a partir das referecircncias sobre a regiatildeo de origem do grupo Com base na pesquisa feita pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico impulsionou-se o retorno de quilombolas para Minas Gerais em busca de seus parentes e de mais informaccedilotildees sobre seus antepassados Isto demonstra como os processos de escrita sobre o grupo repercutiram em sua proacutepria dinacircmica interna de modo significativo tendo em vista que a memoacuteria coletiva estava passando por uma adequaccedilatildeo a este tipo de avaliaccedilatildeo externa

108

O que natildeo pode ser deixado de lado eacute o caraacuteter criativo e transformador deste processo que tende a ser obscurecido quando se supotildee que o ldquoterritoacuteriordquo remete necessariamente a sentidos e usos do espaccedilo preexistentes a ele A proacutepria noccedilatildeo de ldquoreconhecimentordquo tende a favorecer tal interpretaccedilatildeo sugerindo que o que estaacute em jogo eacute apenas a ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo de um estado de coisas jaacute existente Ainda que fosse esse o caso eacute preciso destacar tambeacutem que tal ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo implica em substanciais mudanccedilas na dinacircmica vital e social dos grupos envolvidos Sem qualquer pretensatildeo agrave exaustividade poderiacuteamos a esse respeito evocar apenas a intensificaccedilatildeo da presenccedila dos ldquomediadoresrdquo (lideranccedilas de movimentos sociais e sindicatos universitaacuterios pesquisadores funcionaacuterios do Estado e de ONGs) na vida cotidiana destas pessoas No contexto da luta poliacutetica elas satildeo obrigadas a se ver agraves voltas com dinacircmicas que se por um lado satildeo positivamente avaliadas como indicadores da ldquopolitizaccedilatildeordquo ou ldquoresistecircnciardquo da ldquocomunidaderdquo por outro satildeo por elas mesmas contrapostas ao ldquosossegordquo ou ldquotranquilidaderdquo que usufruiacuteam nos momentos em que podiam manter uma maior autonomia perante as exigecircncias e pressotildees do mundo ldquourbanordquo eou ldquoletradordquo Note-se que nesse uacuteltimo caso estamos nos referindo tanto aos ldquoinimigosrdquo destes grupos como aos seus aliados as ameaccedilas oriundas dos primeiros muitas vezes tornando imperativo o estabelecimento e consolidaccedilatildeo de relacionamentos com os segundos ndash frequentemente a partir de formas praacuteticas e linguagens que satildeo mais familiares a estes mediadores do que agravequeles que por eles ldquomediadosrdquo Que as dificuldades decorrentes desses relacionamentos sejam desconsideradas em prol das vantagens deles originadas soacute confirma o que pretendemos argumentar aqui para o bem ou para o mal natildeo se vive impunemente a luta poliacutetica e as alianccedilas vinculadas a ela as marcas decorrentes de tal processo frequentemente se convertendo em marcos na histoacuteria e memoacuteria dos grupos que optaram por ndash ou foram compelidos a ndash ldquose engajarrdquo (GUEDES 2013b p 56-57)

Entre inimigos e aliados o grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo

viveu impunemente a sua opccedilatildeo pelo engajamento poliacutetico Parece que a primeira

impressatildeo de que o reconhecimento como quilombolas poderia representar um risco

como veremos abaixo veio a se confirmar para eles com os desdobramentos

conflituosos que se seguiram agrave presenccedila do INCRA na comunidade (a partir da

atuaccedilatildeo da equipe que realizou o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) resultando na

perda de empregos nas propriedades vizinhas no isolamento das famiacutelias e na

necessidade de receberem cestas baacutesicas por falta de meios de sobrevivecircncia Com

o segundo relatoacuterio antropoloacutegico uma nova perspectiva se apresentou atraveacutes da

busca por informaccedilotildees que demonstrassem o viacutenculo da comunidade em Guaiacutera com

sua regiatildeo de origem em Minas Gerais Essa pesquisa trouxe repercussotildees

significativas natildeo soacute no acircmbito do procedimento do INCRA pois ganhou dimensotildees

profundas em termos emocionais simboacutelicos e poliacuteticos para o grupo Eacute a partir dos

questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e desta conflituosidade do

processo de reconhecimento que os quilombolas em GuaiacuteraPR impulsionam-se

para a busca de maiores informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica de seus

109

antepassados e reacionam os viacutenculos com a regiatildeo de origem bem como com seus

parentes em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG como analisaremos no uacuteltimo capiacutetulo

21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS

O autorreconhecimento como quilombolas remete ao contato que as famiacutelias

tiveram com agentes do Estado que lhes apresentaram esta via de direitos no ano de

2005 a partir da visita de Clemilda Santiago Neto professora de histoacuteria e militante

do movimento negro que na eacutepoca trabalhava na Secretaria de Educaccedilatildeo do Estado

do Paranaacute (SEED) e no Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) O chamado ldquoGT

Cloacutevis Mourardquo foi criado por iniciativa do governo estadual95 tendo atuado entre os

anos de 2005 e 2010 enquanto uma equipe intersecretarial com o objetivo de realizar

um ldquoLevantamento Baacutesico de Comunidades Negras do Paranaacuterdquo96 o qual teve

importacircncia fundamental no estiacutemulo agrave certificaccedilatildeo de grupos quilombolas no estado

Poreacutem como iremos analisar o contato com agentes estatais no caso da comunidade

quilombola em questatildeo desde o primeiro momento envolveu tensotildees e foi marcado

pela desconfianccedila por parte dos quilombolas

Os grupos sociais que foram identificados no levantamento do governo do

estado tendo em vista o objetivo de ldquodescobrir o Paranaacute Negrordquo poderiam ser

classificados segundo os membros do GTCM em trecircs categorias Remanescente de

Quilombo Negros Tradicionais ou Comunidade Negra (LEWANDOWISKI 2009 p

42 50) Tais comunidades foram vistas pelo GTCM como ldquohistoricamente e ateacute agora

invisibilizadas eou suprimidas pelas diversas esferas do poder e da sociedade civilrdquo

e para superar tal situaccedilatildeo o levantamento visava ldquoatingir objetivos mais imediatos

tornaacute-las alvo de poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo disponibilizadas a outras

comunidades e segmentos sociais em accedilatildeo de inclusatildeo socialrdquo97

O resultado da pesquisa apontava em 2010 quando o grupo de trabalho foi

extinto para um quadro de trinta e seis comunidades quilombolas certificadas pela

95 Resoluccedilatildeo conjunta nordm 012005 que inclui a Secretaria do Estado da Educaccedilatildeo Assuntos Estrateacutegicos Cultura Comunicaccedilatildeo Social e Meio Ambiente 96 O relatoacuterio final elaborado pelo GTCM estaacute disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 97 Texto de apresentaccedilatildeo que consta no site institucional do GTCM Disponiacutevel em

httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=16 Acesso em 170215

110

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) vinte ldquocomunidades negras tradicionaisrdquo ainda

natildeo certificadas e 32 (trinta e dois) indicativos da existecircncia de outras comunidades

no estado do Paranaacute (GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 17-21)

Atualmente a Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute possui 37 procedimentos de

regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas abertos Deste total dez estatildeo em andamento

e cinco estatildeo em processo de elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e

Delimitaccedilatildeo (RTID) dentre os quais o da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos

Santos98

Durante o governo estadual de Roberto Requiatildeo (PMDB2003-2010) levando

em consideraccedilatildeo o alinhamento com o governo federal de Luis Inaacutecio Lula da Silva

(PT2003-2010) foi gerado portanto um momento propiacutecio para pautar a agenda

puacuteblica com as questotildees relativas agraves minorias eacutetnicas com base em leis e decretos

que inovaram no tratamento destas questotildees99 Buscou-se assim sensibilizar os

administradores em relaccedilatildeo agraves demandas das comunidades quilombolas e dar apoio

para que os proacuteprios segmentos pudessem acionar com a mediaccedilatildeo do GTCM as

diversas secretarias de estado bem como os oacutergatildeos federais

Quando a comunidade se auto-reconhecia como remanescente de quilombo o grupo de trabalho prestava uma assessoria para organizaccedilatildeo das associaccedilotildees de moradores condiccedilatildeo fundamental para abertura dos processos junto ao Incra na construccedilatildeo dos estatutos e na eleiccedilatildeo de uma diretoria Quando escolhidas as novas lideranccedilas comunitaacuterias passavam a ter contato intenso com a equipe do GT A orientaccedilatildeo era para que diante de qualquer duacutevida ou problema o GT pudesse ser acionado para resolver (LEWANDOWSKI 2009 p 51)

Em relaccedilatildeo agrave chegada de Clemilda ndash uma das principais protagonistas do

processo de levantamento das comunidades pelo GTCM ndash e a como ocorreu o

reconhecimento do grupo em GuaiacuteraPR Eva (50) esposa de Joaquim (55) (portanto

98 As outras comunidades em processo de elaboraccedilatildeo do RTID satildeo Adelaide Maria Trindade Batista em Palmas Varzeatildeo em Doutor Ulysses Serra do Apon em Castro e Mamatildes em Cerro Azul Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwincragovbrnoticiasmesa-de-acompanhamento-da-politica-de-regularizacao-quilombola-e-instalada-no-parana Acesso em 24022015 99 Dentre as principais normatizaccedilotildees estatildeo a Lei 106392003 (que inclui ldquono curriacuteculo oficial da Rede

de Ensino a obrigatoriedade da temaacutetica Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira) o Decreto Federal 48872003 (que regulamenta o processo de titulaccedilatildeo ldquodas terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos) e o Decreto Federal 60402007 (que ldquoinstitui a Poliacutetica Nacional de Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionaisrdquo) dentre outras regulamentaccedilotildees federais neste sentido

111

nora de Manoel Ciriaco) contou-me sobre como ficaram surpresos com a visita de

uma funcionaacuteria puacuteblica interessada na histoacuteria do grupo

Dandara Como seraacute que ela ficou sabendo de vocecircs mesmo

D Eva Porque eu estudava aqui na escola com a Lucia daiacute ela tambeacutem trabaiava no negoacutecio que a Clemilda trabaia laacute Daiacute entatildeo ela falou que aqui ni Guaiacutera tinha ela achava que era descendente de escravo era remanescente de quilombo Daiacute ela mandou vim aqui daiacute a Clemilda veio Ela veio primeiro falar daiacute depois a Clemilda veio Acho que ela (Lucia) veio aqui se era dois mil ih fazia tempo nem lembrava disso mais Daiacute foi a Clemilda chegou aqui Ningueacutem acreditava E o Zeacute Maria falava assim ldquonatildeo eles vatildeo roubar de noacutesrdquo Eacute (risos) ldquoNoacutes nunca foi conhecido nesse lugar Noacutes nunca foi reconhecido nesse lugar aqui Noacutes sempre desprezado aqui Como eacute que domingo ainda Ah natildeo acredito ah natildeo acreditordquo (risos) Pegou a muletinha dele e foi embora pra casa Natildeo quis nada de jeito nenhum

Dandara E antes da Clemilda vocecircs natildeo imaginavam que teriam direito

D Eva Natildeo noacutes natildeo imaginava natildeo que noacutes natildeo sabia de nada eacute natildeo falava nem nada disso aiacute

As pessoas da comunidade natildeo soacute ficaram surpresas com a chegada de

Clemilda como tambeacutem desconfiaram de suas intenccedilotildees ainda mais porque ela

chegou em um dia de domingo Me contaram como desconfiaram ateacute se ela era do

governo principalmente o ldquofinado Zeacute Mariardquo que na eacutepoca era a referecircncia e a

lideranccedila da famiacutelia sendo o filho mais velho dentre os que permaneceram na

comunidade Ele resistiu muito ateacute concordar em assinar os papeacuteis que solicitariam o

reconhecimento da comunidade como quilombola Joaquim destacou como a postura

do irmatildeo foi enfaacutetica e estava legitimada na sua posiccedilatildeo de autoridade

Joaquim Ai uma hora ele falou com ela ldquoeacute eu fico muito emocionado noacutes aqui nesse fim de mundo e vocecircs que eacute pessoal do governo veio procurar a gente que nunca aconteceu issordquo Ele falou pra ela (risos) Aiacute a hora que ela caccedilou ele falou ldquoMelhor ficar que eu vou embora agora que o que meu pai deixou pra noacutes eacute mixaria e eu natildeo quero perder e ningueacutem me faz eu assinarrdquo

A fala de Joaquim em referecircncia ao comentaacuterio de Zeacute Maria indica uma

sensaccedilatildeo de invisibilidade e abandono por parte do Estado para com estas famiacutelias

o que eacute reforccedilado na leitura dos membros do grupo pela condiccedilatildeo histoacuterica de

exclusatildeo e opressatildeo do negro no Brasil Se esta percepccedilatildeo poderia ter sido alterada

com o processo de reconhecimento do grupo como quilombola percebe-se no

entanto que o Estado entendido como figura abstrata dissociada de seus agentes

112

especiacuteficos ndash com os quais em alguns casos eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees de

confianccedila e amizade ndash continua apresentando posicionamentos duacutebios e natildeo dignos

de confianccedila O Estado de alguma forma segundo Adir se isentaria diante do fato

de que os quilombolas tecircm ainda que correr atraacutes de direitos que deveriam lhes ser

garantidos prontamente tendo em vista a histoacuteria de opressatildeo a que vem sendo

submetidos Para conquistar algum direito com muita luta e paciecircncia sentem-se

refeacutens dos labirintos burocraacuteticos e hieraacuterquicos de procedimentos instruccedilotildees

normativas leis e barganhas poliacuteticas

Joaquim Eva e Adir me relataram como foi conturbado este contato inicial

com agentes do Estado Zeacute Maria pediu inclusive para que Adir solicitasse agrave Clemilda

o seu crachaacute comprovando que ela era funcionaacuteria puacuteblica Esta desconfianccedila em

assinar os papeacuteis que solicitariam o reconhecimento da comunidade como quilombola

parece decorrente do risco de expropriaccedilatildeo por eles percebido bem como aponta

para a dificuldade de domiacutenio do mundo documental pelos membros do grupo100 Fala

tambeacutem sobre o processo de exclusatildeo e sobre como o grupo o percebe jaacute que se

estar invisiacutevel era algo que confirmava a situaccedilatildeo perifeacuterica em que viviam por outro

lado a visibilidade tambeacutem eacute percebida como um risco101 No entanto Zeacute Maria foi

depois convencido e assinou o documento que subsidiou a elaboraccedilatildeo da ldquoCertidatildeo

de Auto-Reconhecimentordquo expedida em 02 de outubro de 2006 Em 2007 o grupo

funda com auxiacutelio do GTCM a Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos

Santos (ACONEMA)

Antes disso eles desconheciam que esta identidade era reconhecida e

guarnecida pelo Estado bem como desconheciam as nominaccedilotildees de ldquoquilombolasrdquo

ou ldquoremanescente de quilombosrdquo agraves quais iratildeo paulatinamente conferir significado

com base na releitura de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido

A noccedilatildeo de ldquoremanescenterdquo como algo que jaacute natildeo existe ou em processo de desaparecimento e tambeacutem a de ldquoquilombordquo como unidade fechada igualitaacuteria e coesa tornou-se extremamente restritiva Mas foi principalmente porque a expressatildeo natildeo correspondia agrave autodenominaccedilatildeo destes mesmos

100 No caso da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna localizada em CuriuacutevaPR por exemplo o relatoacuterio antropoloacutegico relata como eles foram enganados por parente proacuteximo que pediu que assinassem documento que foi posteriormente utilizado para a expropriaccedilatildeo de uma aacuterea do grupo (PORTO 2012 p 61-62) 101 O fato tambeacutem de se tratar de um grupo com niacutevel baixo de acesso agrave educaccedilatildeo formal reforccedila esta dificuldade em lidar com a documentaccedilatildeo principalmente concernente agrave terra Este quadro estaacute sendo modificado na geraccedilatildeo de jovens hoje os quais tecircm condiccedilotildees de terminar o ensino meacutedio e ateacute o ensino superior comeccedila a ser acessado

113

grupos e por tratar-se de uma identidade ainda a ser politicamente construiacuteda que suscitou tantos questionamentos De saiacuteda exigiu-se nada mais que um esforccedilo interpretativo do processo como um todo por parte dos intelectuais e militantes bem como das proacuteprias comunidades envolventes e sem o qual seria impossiacutevel a aplicabilidade juriacutedica do artigo (LEITE 2000 p 341)

A experiecircncia que meus interlocurores(as) possuiacuteam de uma ldquotrajetoacuteria

histoacuterica proacutepriardquo vinculada agrave ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo conceitos da

definiccedilatildeo de quilombo trazida pelo Decreto 44872003 (que regulamenta o processo

de titulaccedilatildeo quilombola) ficava restrita enquanto objeto de introspecccedilatildeo interna ao

grupo Isto porque tal afirmaccedilatildeo segundo eles seria percebida como motivo de

escaacuternio e de discriminaccedilatildeo por parte das outras pessoas da regiatildeo102 Eacute atraveacutes de

uma rede de mediadores como o GTCM organizaccedilotildees governamentais natildeo

governamentais e movimento negro que o ldquoprocesso de reconhecimentordquo eacute

estimulado no Paranaacute e neste caso especiacutefico

Na fala dos irmatildeos Adir e Joaquim atualmente presidente e vice-presidente

da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) aparece

este sentimento de que se comentassem sobre sua histoacuteria antes do processo de

reconhecimento como quilombolas ningueacutem iria acreditar neles e seriam alvo de

ridicularizaccedilatildeo

Dandara Mas essa histoacuteria da origem do Manoel Ciriaco laacute de Minas que tinha descendecircncia de ex-escravos isso tudo era todo mundo que conhecia ou era soacute alguns que sabiam dessa histoacuteria

Adir Vocecirc fala a populaccedilatildeo

Dandara Natildeo vocecircs da famiacutelia mesmo

Adir Noacutes jaacute sabia

Joaquim E muitos aqui sabia tambeacutem que meu pai falava neacute com os italiano aqui que eles Mas eles natildeo ligava

Adir Mas era coisa que nem eles mais falava assim ldquoque vatildeo buscar nada de histoacuteria deles nada atraacutes nadardquo Chegaram contaram o que eles passaram quando chegaram aqui que teve dificuldade que vieram de um lugar laacute onde teve escravo isso e aquilo outro Mas quem que ia ligar nisso Nem noacutes mesmos Noacutes aprendemos com nossos pais nossos avoacutes nossa matildee sim nossa histoacuteria que noacutes natildeo podia pronunciar pra ningueacutem Ia falar pra quem Dizer pra quem isso aiacute E quando surge isso nos pega tambeacutem de surpresa E ai vocecirc vai falar o quecirc Vai divulgar o quecirc Quem que vai acreditar em vocecirc Natildeo eacute difiacutecil E eacute isso aiacute

102 Sobre o tema da introspecccedilatildeo acerca da identidade ver o caso do grupo indiacutegena Caxixoacute de Minas Gerais (SANTOS OLIVEIRA 2003 p 22)

114

Nesta fala de Adir e Joaquim eacute relevante notar a diferenccedila entre o que eacute

entendido como um silenciamento sobre o passado em contraste com um processo

de esquecimento (PORTO 2013b p 175) Eacute a partir do momento em que se encontra

uma possibilidade de escuta que a memoacuteria passa a ser pronunciada publicamente

Ateacute entatildeo estava contida como algo indiziacutevel pois soacute fazia sentido enquanto processo

de transmissatildeo de memoacuteria interno agrave famiacutelia (POLLAK 1989 p 09) Haacute uma

polarizaccedilatildeo portanto entre um passado de silenciamento e um presente de

pronunciamento que aparece como um princiacutepio de operaccedilatildeo na forma como

percebem a relaccedilatildeo deles com o contexto mais amplo no qual se inserem Poderem

ser ouvidos como narradores legiacutetimos de sua proacutepria histoacuteria por meio deste novo

contexto de reconhecimento pelo Estado eacute um ganho que transcende as questotildees

juriacutedicas e poliacuteticas na medida em que representa para eles uma valorizaccedilatildeo e um

reconhecimento da necessidade de reparaccedilatildeo da opressatildeo sofrida

Esta fala tambeacutem aponta para a expectativa que a comunidade tinha frente agrave

produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio de que sua histoacuteria seria registrada e reconhecida aleacutem

de significar um marco para a possibilidade de conquista de direitos que os

empoderaria diante do contexto local adverso Como veremos adiante foram muitas

as dificuldades que tiveram para lidar com o fato de sua identidade ter sido negada

oficialmente por um antropoacutelogo bem como com os conflitos gerados a partir dos

desdobramentos do procedimento que tramita no INCRA103

O registro da histoacuteria comum dos membros da comunidade deu um novo

status agrave memoacuteria coletiva e agravequeles que satildeo vistos internamente como os guardiotildees

destas histoacuterias Os elementos preacute-existentes da memoacuteria passam a ser mobilizados

de formas especiacuteficas tendo em vista que eacute o Estado quem estabelece os criteacuterios

normativos que funcionaratildeo como modelos a partir do qual a populaccedilatildeo passa a se

pensar em termos de identidade objetivada conceitualmente o que se faraacute por meio

de mediaccedilotildees e modulaccedilotildees (MARCUS 1991)104

103 Este impasse vivido pelo grupo aponta para a ldquodificuldade de identificar os sujeitos do direito e suas

complexas demandasrdquo bem como ldquoas tensotildees entre as conceituaccedilotildees histoacuterica antropoloacutegica e juriacutedica de quilombordquo (LEITE FERNANDES 2006 p 12) sobre as quais no entanto natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho 104 Interessante observar o deslocamento semacircntico no que tange estas modulaccedilotildees do Estado que foi ocorrendo ldquorealizado tanto por agentes estatais quanto por membros do movimento social e representantes do meio acadecircmico - em que os remanescentes de comunidades de quilombos passam a ser definidos como comunidades remanescentes de quilombos e no momento seguinte

115

O claacutessico estudo de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva demonstra como

apesar da aparecircncia de experiecircncia individual a memoacuteria soacute eacute possiacutevel por meio das

relaccedilotildees sociais de interaccedilatildeo enquanto fenocircmeno coletivo Assim a duraccedilatildeo de uma

memoacuteria estaria limitada agrave duraccedilatildeo do grupo no acircmbito do qual tais lembranccedilas foram

geradas e enquanto fenocircmeno construiacutedo coletivamente tambeacutem estaacute sujeita a

transformaccedilotildees Dentro destas dinacircmicas o autor ressalta a existecircncia de pontos de

referecircncias comuns que formam um nuacutecleo resistente relativamente invariaacutevel um fio

condutor de acontecimentos-chaves (HALBWACHS 2003 p 35)

No caso do quilombo de Guaiacutera enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo

(HALBWACHS 2003) que gera o sentimento de pertencimento de identificaccedilatildeo e

aglutinaccedilatildeo entre seus membros este fio condutor passa pelo compartilhamento da

memoacuteria das dinacircmicas de movimento e fixaccedilatildeo das famiacutelias Este movimento inicia-

se a partir do que podemos chamar de um ldquolugar formador de memoacuteriardquo (POLLAK

1992 p 203) a regiatildeo de origem do grupo Mesmo fora do espaccedilo-tempo da vida da

comunidade no Paranaacute esta referecircncia eacute fundamental para a identidade do grupo a

partir da qual se contextualiza a memoacuteria herdada dos antepassados em continuidade

com a construccedilatildeo da autoimagem do grupo no presente A origem mineira assume

entatildeo uma dimensatildeo miacutetica pois seu significado eacute ampliado e formalizado de modo

simboacutelico como autorrepresentaccedilatildeo partilhada pelo grupo (PORTELLI 1998 p 120)

A memoacuteria coletiva do grupo quilombola como vimos no primeiro capiacutetulo foi

reorganizada discursivamente a partir do autorreconhecimento identitaacuterio de modo

que pudessem se tornar testemunhas contra o ldquoesquecimento compulsivordquo da sua

proacutepria trajetoacuteria histoacuterica (CONNERTON 1999 p 17) A organizaccedilatildeo poliacutetica do

grupo como quilombolas foi fundamental para a preservaccedilatildeo do que podemos chamar

de ldquomemoacuterias subterracircneasrdquo as quais satildeo majoritariamente reproduzidas pela

oralidade e ldquocomo parte integrante das culturas minoritaacuterias e dominadas se opotildeem

agrave lsquoMemoacuteria Oficialrsquo no caso a memoacuteria nacionalrdquo (POLLAK 1989 p 05)

A percepccedilatildeo de um passado comum em relaccedilatildeo ao qual se destacam as

histoacuterias contadas pelos mais velhos sobre o sofrimento que viveram em Minas

Gerais com a memoacuteria de ascendentes que foram escravizados integra-se agrave busca

por uma nova possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo por meio dos deslocamentos a

comunidades quilombolas apontando para a modificaccedilatildeo conceitual ocorrida ()rdquo (PORTO KAISS COFREacute 2012 p 41)

116

percepccedilatildeo da distintividade cultural enquanto grupo negro rural viacutetima de preconceito

racial e religioso em GuaiacuteraPR bem como a perspectiva da reelaboraccedilatildeo de um

futuro comum com acesso a direitos historicamente negados mobilizam dentre outros

fatores este processo de etnogecircnese

22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo

Quatro anos depois do iniacutecio do processo de contato com agentes externos e

do autorreconhecimento da comunidade como quilombola em 2009 e 2010 foi

realizado o primeiro relatoacuterio de cunho antropoloacutegico dentro do procedimento de

titulaccedilatildeo territorial da comunidade quilombola em Guaiacutera de responsabilidade do

INCRA105 O posicionamento dos autores defendido no documento no entanto negou

que esta comunidade em GuaiacuteraPR seria um grupo quilombola entendendo que se

tratava de uma famiacutelia negra de trabalhadores rurais e que o grupo estava construindo

recentemente esta identidade de modo vinculado com o interesse de garantia de

direitos concluindo que

ldquoO que se percebeu por intermeacutedio da pesquisa eacute que a identidade quilombola eacute algo novo entre as pessoas e que ainda esta (sic) em processo de formaccedilatildeo natildeo estando presente no pensamento coletivo eacute como se os membros da auto denominada (sic) comunidade Negra estivessem aprendendo a ser quilombolasrdquo (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1521 [p 111])

Como jaacute citado o primeiro relatoacuterio foi fruto de um convecircnio entre o INCRA e

a UNIOESTE Conforme a legislaccedilatildeo quando natildeo dispuser de profissional em seu

quadro para a realizaccedilatildeo do relatoacuterio antropoloacutegico o INCRA poderaacute realizar

contrataccedilotildees Junto com Antocircnio Pimentel Pontes Filho antropoacutelogo responsaacutevel pela

equipe tambeacutem participaram da pesquisa mais um mestre em antropologia Roberto

Biscoli e duas auxiliares de pesquisa graduandas da UNIOESTE106 A uacuteltima versatildeo

do relatoacuterio apresentada pelo antropoacutelogo responsaacutevel ndash depois dos pedidos de

105 Percebe-se como o desdobramento do procedimento no INCRA demonstra como este oacutergatildeo natildeo

tinha ainda uma compreensatildeo amadurecida sobre como lidar com as questotildees antropoloacutegicas tendo deixado que o primeiro relatoacuterio fosse concluiacutedo com suas graves consequecircncias para o grupo quilombola para apenas depois de sua finalizaccedilatildeo o avaliar como insuficiente tecnicamente e o retirar do procedimento de titulaccedilatildeo da comunidade 106 Neste convecircnio com a UNIOESTE foi produzido mais um relatoacuterio antropoloacutegico de responsabilidade do mesmo antropoacutelogo na Comunidade Quilombola Maria Adelaide Trindade Batista localizada no Municiacutepio de PalmasPR o qual tambeacutem natildeo foi aprovado

117

adequaccedilatildeo solicitados pelo INCRA os quais foram em grande parte desconsiderados

ndash era composta de centro e trinta e quatro paacuteginas organizadas nas seguintes partes

sobre as quais destacamos alguns pontos principais

(1) Introduccedilatildeo os autores do relatoacuterio trazem um debate sobre o conceito de

quilombo e se posicionam no sentido de que o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo

natildeo eacute compatiacutevel com a perspectiva relacional de etnicidade a qual

entenderia os grupos eacutetnicos como constituiacutedos em relaccedilatildeo por meio das

fronteiras O relatoacuterio afirma que esta abordagem pressupotildee que deva

haver o reconhecimento tambeacutem pelos ldquooutrosrdquo de que o grupo que se

autoidentifica apresenta uma identidade diferenciada em um processo de

ldquohetero-identidaderdquo Eacute segundo esta perspectiva reconhecida por eles

mesmos como incompatiacutevel com o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo que estatildeo

embasadas suas anaacutelises no relatoacuterio Trazem tambeacutem uma seacuterie de

informaccedilotildees sobre o processo de elaboraccedilatildeo da pesquisa elencando ao

longo de quinze paacuteginas cada uma das entrevistas realizadas bem como

demais atividades da equipe desde ofiacutecios e-mails visitas destacando

inclusive os contatos externos aos membros do grupo que foram

realizados Comentam sobre o conflito desencadeado durante a pesquisa

mas se isentam de qualquer responsabilidade em relaccedilatildeo aos

acontecimentos

(2) ldquoA auto denominada (sic) comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

pelo proacuteprio tiacutetulo atribuiacutedo ao segundo capiacutetulo do relatoacuterio recusam a

denominaccedilatildeo de ldquoquilombolasrdquo e parecem estar denunciando em uma

negaccedilatildeo dupla o processo de autorreconhecimento da comunidade como

ilegiacutetimo Apresentam uma anaacutelise sobre os membros da comunidade

como se este pertencimento estivesse restrito agraves pessoas que estatildeo

indicadas no estatuto da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco

dos Santos (ACONEMA) Trazem tambeacutem uma descriccedilatildeo das famiacutelias

que moravam na aacuterea na eacutepoca

(3) ldquoGuaiacutera ndash Paranaacute descriccedilatildeo sobre a regiatildeordquo retomam o processo histoacuterico

de colonizaccedilatildeo da regiatildeo Depois analisam o histoacuterico de constituiccedilatildeo do

que chamam ldquoComunidade de Maracaju dos Gauacutechosrdquo atribuindo ao

bairro rural tambeacutem um sentido de grupo e de relaccedilotildees de pertencimento

118

em equiparaccedilatildeo com a autodenominaccedilatildeo como comunidade por parte dos

quilombolas Afirmam que as aacutereas adquiridas pela ldquofamiacutelia Santosrdquo natildeo

constituem um territoacuterio quilombola preacute-existente e que o levantamento

realizado pelo Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) careceu de

ldquocriteacuterios antropoloacutegicosrdquo

(4) ldquoTrajetoacuteria histoacuterica da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel

Ciriaco dos Santosrdquo analisam os relatos dos membros da comunidade

sobre sua trajetoacuteria histoacuterica de fixaccedilatildeo em GuaiacuteraPR mas o fazem de

modo a desvalorizar a memoacuteria e as informaccedilotildees trazidas que satildeo

entendidas pelos autores como insuficientes ou improcedentes ao serem

por exemplo cotejadas com dados repassados pelos vizinhos Afirmam

que natildeo houve segregaccedilatildeo racial na constituiccedilatildeo do bairro rural e que natildeo

existiria preconceito por parte dos vizinhos acusando ao contraacuterio os

membros da comunidade de serem preconceituosos em relaccedilatildeo aos

ldquoitalianosrdquo

(5) ldquoCaracterizaccedilatildeo atual da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel

Ciriaco dos Santos sua organizaccedilatildeo espacial e socialrdquo apresentam uma

descriccedilatildeo da comunidade destacando as poliacuteticas puacuteblicas e os cursos a

que passaram a ter acesso bem como as atividades de cultivo e criaccedilatildeo

de animais Afirmam haver um sentimento de propriedade e de posse

particular por parte dos membros da comunidade que natildeo se organizaria

por dinacircmicas propriamente comunitaacuterias Concluem que os moradores da

comunidade natildeo se diferenciam em suas praacuteticas de seus vizinhos

Trazem informaccedilotildees geneacutericas sobre ldquopapeacuteis sociaisrdquo entre os seus

membros e tambeacutem sobre religiatildeo

(6) ldquoRe-construccedilatildeo (sic) de uma memoacuteria e de uma identidade socioculturalrdquo

defendem a perspectiva de que deve ser alcanccedilada uma objetividade

etnograacutefica e afirmam neste sentido que o processo de construccedilatildeo da

identidade eacutetnica do grupo seria recente e giraria em torno de uma

finalidade poliacutetica a partir do contato do grupo com agentes externos com

o objetivo de criar uma distinccedilatildeo ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo Os autores afirmam que tal

identidade estaacute baseada em suposiccedilotildees de uma origem e de

antepassados que teriam sido escravos Defendem que se haacute preconceito

119

no acircmbito da relaccedilatildeo com os vizinhos eacute um preconceito muacutetuo e concluem

dizendo que a ldquoauto denominada comunidade negrardquo (sic) natildeo apresenta

os sinais diacriacuteticos que ldquodeveriamrdquo os diferenciar

(7) ldquoResultado da periacuteciardquo por fim asseveram que apesar de terem partido da

categoria do autorreconhecimento entendem que natildeo haacute territoacuterio

quilombola a ser indicado pois a equipe de pesquisa ldquoconstatourdquo que eles

seriam apenas herdeiros de uma propriedade e que portanto ldquopossuem

relaccedilotildees comuns ao mundo ruralrdquo natildeo havendo um territoacuterio quilombola

preacute-existente

(8) Bibliografia e anexos

Para analisar os argumentos apresentados por este relatoacuterio ldquoanti-

antropoloacutegicordquo eacute importante primeiramente trazer algumas reflexotildees dos quilombolas

em relaccedilatildeo agrave forma como foram conduzidos os trabalhos pela primeira equipe de

pesquisadores

Joaquim Os antropoacutelogos que eles arrumaram Dandara eu falei assim ldquovocecircs tinha que arrumar uns antropoacutelogo que sabia fazer antropologia Os antropoacutelogos natildeo ficavam com noacutes aqui Era duas horas trecircs horas por dia soacute vinha e voltava raacutepido noacutes desconfiou dos antropoacutelogo Aiacute noacutes tava laacute dentro de Guaiacutera e eles trataram com o Adir que era pra noacutes encontrar que eles ia pegar coacutepia do certificado da comunidade Noacutes taacute esperando e ldquonoacutes tamo chegando tamo chegandordquo e natildeo chegava Aiacute tinha esse advogado que eacute vizinho nosso aqui que mora laacute em Guaiacutera Daqui a pouco ele vem e vem os dois antropoacutelogos de laacute pra caacute no escritoacuterio dele e noacutes tava em frente a prefeitura que eacute pertinho Aiacute eles chegaram ldquoeacute mas noacutes natildeo pode ficar aqui que a turma taacute de zoacuteio em noacutes que natildeo sei que laacuterdquo Pegou a coacutepia da nossa matildeo e despediu de noacutes ldquoNoacutes tem que vazar emborardquo ldquoentatildeo taacute bomrdquo Mas a gente natildeo eacute tanto besta neacute aiacute noacutes pensamos ldquosabe de uma coisa vou dar uma volta na rua aqui pra ver se eles foram embora mesmordquo Noacutes damo a volta na rua eles laacute no advogado e tinha ido embora Aiacute tudo que eles falavam no raacutedio o advogado tava sabendo que era representando os agricultor neacute Ele tava sabendo tudinho Mas quem taacute passando informaccedilatildeo eacute os antropoacutelogos Menina noacutes teve raiva laacute em Toledo na Universidade eles chamaram pra noacutes pra ter uma reuniatildeo () Quando esse antropoacutelogo comeccedilou a falar eu falei com eles assim ldquovocecircs pensa que noacutes eacute tatildeo besta Tatildeo besta natildeo eacute noacutes eacute da roccedila natildeo temo estudo natildeo temo a linguagem que vocecircs fala mas vocecirc lembra aquele dia que vocecircs tava em Guaiacutera Vocecircs dando noacute em noacutes falando que ia embora se vocecircs tava laacute junto com o advogado e tudo ele taacute sabendo o que vocecircs tava fazendordquo E eu falei ldquoa antropologia de vocecircs eacute fraca Eu natildeo entendo de antropologia a antropologia de vocecircs eacute fracardquo Eu falei ldquovocecircs fica sabendordquo - e tava gravando e filmando ndash ldquovocecircs tatildeo fazendo antropologia de cem quilocircmetros de distacircncia cem quilocircmetrordquo Aiacute o reitor da universidade abanou a cabeccedila Aiacute eu falei ldquovocecircs natildeo fizeram nada vocecircs natildeo fizeram nada nadardquo

120

Percebe-se que a criacutetica que Joaquim faz inicia-se com uma

responsabilizaccedilatildeo do INCRA pois foram eles que ldquoarrumaramrdquo estes antropoacutelogos

para fazer o estudo Interessante observar neste sentido que Antocircnio Pimentel

Pontes Filho o pesquisador responsaacutevel pelo estudo natildeo tinha experiecircncia com

grupos etnicamente diferenciados sendo que suas pesquisas de graduaccedilatildeo e

mestrado giravam em torno de questotildees relacionadas agrave antropologia da religiatildeo com

foco na organizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica O INCRA com uma gestatildeo burocratizada e

impessoal apesar de ter tido acesso a versotildees preliminares do relatoacuterio que iam

abertamente de encontro ao criteacuterio da autoatribuiccedilatildeo natildeo evitou contudo que um

relatoacuterio final - depois considerado pelo proacuteprio INCRA como de ldquobaixa qualidaderdquo ndash

fosse incorporado ao procedimento da comunidade Apenas depois da natildeo aprovaccedilatildeo

da versatildeo final pelo INCRA encaminharam-se as medidas administrativas para

finalizar o convecircnio com a UNIOESTE por meio de um procedimento separado ainda

em tracircmite no qual passou a constar o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo

(Procedimento Administrativo 542000023842008-33) retirado do procedimento de

regularizaccedilatildeo do territoacuterio da comunidade (Procedimento Administrativo

542000010752008-46)

A partir da fala de Joaquim citada acima eacute possiacutevel tambeacutem entender qual o

lugar que a relaccedilatildeo com os antropoacutelogos passa a ocupar no discurso dos quilombolas

sistematizada na indicaccedilatildeo de trecircs momentos centrais O primeiro momento diz

respeito agrave constataccedilatildeo da falta de contato da equipe de pesquisa com o grupo jaacute que

natildeo estavam presentes na comunidade durante um periacuteodo de tempo considerado

satisfatoacuterio pelos quilombolas A permanecircncia em campo eacute tida portanto como um

criteacuterio determinante para a antropologia inclusive na visatildeo das lideranccedilas

quilombolas O segundo momento central apresentado por Joaquim diz respeito agrave

percepccedilatildeo de que haveria um viacutenculo dos pesquisadores com os proprietaacuterios

vizinhos o que lhes causou revolta dada a mobilizaccedilatildeo agressiva desencadeada

contrariamente ao trabalho do INCRA na localidade Assim a leitura que Joaquim faz

em relaccedilatildeo ao resultado do relatoacuterio passa pela percepccedilatildeo de um compromisso direto

dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos O terceiro momento eacute quando

Joaquim destaca a possibilidade de uma reaccedilatildeo bem-sucedida do grupo em uma

reuniatildeo realizada na UNIOESTE Nesta oportunidade eles verbalizaram

publicamente esta insatisfaccedilatildeo com o trabalho produzido e questionaram os

121

antropoacutelogos diretamente sobre o que consideraram ser uma ldquoantropologia de cem

quilocircmetros de distacircnciardquo destacando a importacircncia que datildeo agrave relaccedilatildeo de proximidade

e confianccedila que natildeo se estabeleceu em nenhum momento com esta primeira equipe

A dificuldade de comunicaccedilatildeo foi outro ponto destacado por Joaquim o que

se configura em um problema muito seacuterio e limitador em uma pesquisa antropoloacutegica

ainda mais quando se trata de um estudo sobre a reivindicaccedilatildeo territorial do grupo

Adir E depois laacute em Cascavel dizer pra noacutes assim ldquopelo que noacutes pesquisamos vocecircs durante esse tempo vocecircs eacute uma comunidade igual agrave comunidade de Maracaju natildeo tem diferenccedila nenhuma Vocecircs natildeo satildeo quilombolardquo ()

Joaquim O que os outros plantava noacutes plantava tambeacutem Eu falei assim ldquoOh noacutes planta pimenta noacutes planta taioba noacutes planta inhame Vocecirc viu os italianos se eles tecircm inhame plantado tem taioba tanta coisa se eles temrdquo aiacute ele diz que eacute tarde

Adir Eu mostrei pra eles o que noacutes cultivava eu falei ldquooacute a nossa histoacuteria professor Antocircnio vocecirc pode prestar atenccedilatildeo da nossa histoacuteria Noacutes nossos antepassados vieram da Aacutefrica trazido pra um solo brasileiro trabalharam como escravo cara

Joaquim Eles falaram isso laacute em Cascavel soacute que em Toledo eles mudaram

Adir ldquoAjudar a construir esse paiacutes soacute isso jaacute chega natildeo precisa de mais nada Soacute a nossa cor jaacute nos identifica noacutes mesmo a nossa escravidatildeo no passado Seraacute que pra vocecirc que eacute um professor um doutor vem falar issordquo

O depoimento acima sintetiza a concepccedilatildeo de que o fato de serem da cor

negra jaacute demonstra a descendecircncia de africanos escravizados Esta compreensatildeo

identificada no plano eacutetnico-racial correlaciona parentesco com traccedilos fenotiacutepicos e

expressa ldquoas propriedades primordiais elegidas para a construccedilatildeo de uma memoacuteria

das lsquoorigensrsquo remetida agrave experiecircncia comum do cativeirordquo (RUBERT SILVA 2009 p

269) A fala aponta tambeacutem para a percepccedilatildeo dos sujeitos quilombolas em relaccedilatildeo agrave

valorizaccedilatildeo das diferenccedilas entre eles e os proprietaacuterios vizinhos sendo que os sinais

diacriacuteticos destacados por Joaquim se referem aos tipos de alimentos cultivados pelo

grupo quilombola As diferenccedilas se expressam aleacutem disso no lugar social dos

quilombolas em contraste com o lugar dos antropoacutelogos de um lado a experiecircncia

histoacuterica de opressatildeo a autoidentificaccedilatildeo que comeccedila pela cor da pele a afirmaccedilatildeo

de uma cultura proacutepria e distinta e de uma relaccedilatildeo especiacutefica com uma base territorial

de outro pesquisadores de uma elite (branca) ldquoum doutorrdquo que mesmo antropoacutelogo

desconsiderou a percepccedilatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria quando deveria ter

pelo menos buscado compreendecirc-la

122

O fato de as famiacutelias que se autodefinem como quilombolas natildeo terem um

viacutenculo ancestral com aquele territoacuterio por serem provenientes de outra regiatildeo bem

como o fato de serem donos da aacuterea que ocupam em GuaiacuteraPR foi interpretado pelo

primeiro relatoacuterio como um fator de descaracterizaccedilatildeo de sua ldquoquilombolidaderdquo A

conquista do acesso formal agrave terra por estas famiacutelias superando todo um contexto de

exclusatildeo territorial da populaccedilatildeo negra foi entendida como um criteacuterio para negar o

reconhecimento do direito de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio considerado como condiccedilatildeo

fundamental pelos quilombolas para viabilizar a sobrevivecircncia do grupo Este tipo de

compreensatildeo por parte dos autores do relatoacuterio evidencia uma certa expectativa de

que a condiccedilatildeo de estar agrave margem do sistema formal de propriedade seria um iacutendice

da legitimidade da reivindicaccedilatildeo de direitos territoriais quilombolas

As propriedades adquiridas na comunidade de Maracajuacute dos Gauacutechos pela famiacutelia Santos por meio de Seu Manuel natildeo caracterizam um territoacuterio preacute-existente nem se justifica o pedido pelos membros desta comunidade ou de sua representante coletiva ACONEMA de uma expansatildeo territorial (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1466 [p 56])

Tal perspectiva que parte da ideia de um territoacuterio ancestralmente ocupado

desconsidera o fato de que ldquopor sua mesma estrutura e mobilidade os quilombos natildeo

permitiram uma continuidade da ocupaccedilatildeo da terra e sobretudo natildeo deixaram restos

arqueoloacutegicos ou provas documentaisrdquo (MALIGUETTI 2000 p 102) (traduccedilatildeo minha)

Eacute muito difiacutecil encontrar provas factuais da existecircncia de quilombos histoacutericos e

praticamente impossiacutevel provar que o lugar e a terra onde as comunidades

quilombolas vivem hoje sejam os mesmos em que originariamente se formaram Este

tipo de comprovaccedilatildeo faacutetica natildeo eacute exigido pelo Decreto 48872003 que regulamenta o

procedimento de titulaccedilatildeo atualmente em vigor Em seu artigo 2ordm considera como

ldquoremanescentes das comunidades dos quilombosrdquo os grupos eacutetnico-raciais ldquosegundo

criteacuterios de auto-atribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees

territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a

resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo Em relaccedilatildeo agrave territorialidade afirma no sect2ordm

do mesmo artigo que ldquosatildeo terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos as utilizadas para a garantia de sua reproduccedilatildeo fiacutesica social econocircmica e

culturalrdquo

123

Natildeo haacute na legislaccedilatildeo portanto a imposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo de verdadeiro ou

falso a partir da ideia de prova histoacuterica em relaccedilatildeo agraves narrativas daqueles que se

autodefinem como quilombolas No entanto a utilizaccedilatildeo de argumentos de ordem

histoacuterica se torna o padratildeo de persuasatildeo discursiva de modo mais amplo na

produccedilatildeo de relatoacuterios antropoloacutegicos sobre grupos quilombolas adotando loacutegicas e

linguagem proacuteprias agraves instacircncias do Estado pautadas em criteacuterios de verdade para

ganhar eficaacutecia

() os laudos sobre remanescentes de quilombos satildeo produzidos quase invariavelmente ndash com maior ou menor competecircncia clareza e elaboraccedilatildeo por parte dos seus autores ndash lanccedilando matildeo de argumentos histoacutericos Assim ao ser expulsa pela porta a histoacuteria retorna pela janela numa versatildeo ingecircnua e positivista quando natildeo simplesmente hipoteacutetica (ARRUTI 2005 p 24)

A postura analiacutetica defendida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo

aponta para a supremacia de instacircncias externas de legitimaccedilatildeo e a desconsideraccedilatildeo

do ponto de vista da comunidade o que se expressa por exemplo na busca por

comprovaccedilotildees histoacutericas Deste modo emprestam ldquoagraves identidades sociais substacircncia

e permanecircnciardquo buscando no passado uma continuidade linear com as dinacircmicas do

presente e assim desconsideram as ldquocategorias e praacuteticas nativas da construccedilatildeo

simboacutelica do grupo e de sua atualizaccedilatildeo por meio de accedilotildees sociaisrdquo (OLIVEIRA

FILHO SANTOS 2003 p 116-131) que satildeo o vetor da elaboraccedilatildeo de laudos periciais

antropoloacutegicos Ignorando o processo contiacutenuo de produccedilatildeo de fronteiras sociais o

relatoacuterio em um tom de autoridade afirma que se ldquoconstatourdquo

() com relaccedilatildeo agrave presunccedilatildeo de ancestralidade da Famiacutelia Santos primeiro natildeo haacute nenhuma memoacuteria sobre escravismo na regiatildeo em que vivem hoje segundo que eles mesmos natildeo descrevem essa ancestralidade como sendo do local onde estatildeo pois se dizem filhos de mineiros (e por exemplo o mineirismo a mineiridade satildeo demonstrados pela culinaacuteria que praticam pelo que cultivam em suas hortas dentre outros aspectos (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1528 [p 118])

Este tom objetivista perpassa todo o relatoacuterio e se amplifica no uso de

expressotildees como ldquocomprovaccedilatildeo documentalrdquo ldquoinformaccedilatildeo confirmadardquo

ldquocomprovaccedilatildeo por meio de pesquisa histoacutericardquo assim como o uso dos verbos como

ldquoconstatou-serdquo e ldquoverificou-serdquo entre outras construccedilotildees discursivas este mesmo

padratildeo Aleacutem disso ao longo do texto os autores expressam de maneira reiterada as

124

suas desconfianccedilas em relaccedilatildeo agrave legitimidade das fontes orais107 Estas posturas

estatildeo todas articuladas em uma certa visatildeo do que seria o criteacuterio antropoloacutegico de

pesquisa enquanto conhecimento teacutecnico e cientiacutefico e o papel do antropoacutelogo como

ldquopesquisador-censorrdquo em sua abordagem essencialista da identidade eacutetnica (MELLO

2012 p 44) como fica evidenciado neste trecho do relatoacuterio

Como apontam diversos autores e estudos antropoloacutegicos a antropologia se baseia nas etnografias feitas e estas natildeo satildeo apenas subjetividade dos autores eou um amontoado de dados mas sim uma compreensatildeo objetiva com argumento de objetividade etnograacutefica sobre um problema social posto para estudo Assim natildeo se incorre em um jogo de versotildees sobre um fato eou mera disputa de opiniotildees (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1511 [p 101])

Dentro desta visatildeo de uma pretensa ldquoobjetividade etnograacuteficardquo os autores do

relatoacuterio entendem que tecircm como atribuiccedilatildeo averiguar a existecircncia ou natildeo de uma

comunidade quilombola Apesar de afirmarem reconhecer e operar a partir do conceito

de autoidentificaccedilatildeo que estaacute previsto na legislaccedilatildeo nacional natildeo a incorporam como

premissa teoacuterica e etnograacutefica No iniacutecio do relatoacuterio haacute uma tentativa de justificar a

natildeo adesatildeo completa ao criteacuterio da autodefiniccedilatildeo com o argumento de que este seria

insuficiente para definir a identidade do grupo devendo ser complementado por uma

noccedilatildeo heteroidentidade que torna necessaacuterio o reconhecimento exterior de que se

trata de um grupo percebido como distinto em uma relaccedilatildeo entre ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo

No Decreto 4887 fica claro que os criteacuterios a serem reconhecidos pelo governo federal satildeo o de auto-atribuiccedilatildeo contrastando com a perspectiva antropoloacutegica interacionista relacional pois esta trabalha com o processo de construccedilatildeo da identidade onde a categoria do ldquonoacutesrdquo constroacutei-se na relaccedilatildeo com a categoria do ldquoelesrdquo natildeo existindo uma heacutetero identidade (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1422 [p 12])

Eacute possiacutevel perceber por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica de todo o texto do

relatoacuterio que houve um uso instrumental e distorcido da teoria da identidade

107 Como observa Alessandro Portelli em seu livro ldquoEnsaios de Histoacuteria Oralrdquo os documentos satildeo

envoltos por uma ldquopresunccedilatildeo de verdade que uma certa historiografia atribui agraves fontes escritas consagrando-as com o nome de documentosrdquo Trata-se da historiografia do seacuteculo XIX que tomou o documento como uma realidade sem perceber no entanto que eles estatildeo tambeacutem permeados pela ideologia pelos sonhos e pela subjetividade de quem os escreve Esta corrente historiograacutefica teve forte influecircncia na atribuiccedilatildeo de superioridade das fontes escritas sobre as fontes orais o que se percebe claramente no acircmbito do direito e mais especificamente nos processos judiciais e administrativos (PORTELLI 201068)

125

contrastiva proposta pelo antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth Ao contraacuterio do que

afirmado no trecho acima foi a partir das contribuiccedilotildees deste autor que processos de

autoatribuiccedilatildeo passaram a ser considerados como centrais no estudo dos grupos

eacutetnicos bem como no modo de constituiccedilatildeo dos proacuteprios limites sociais do grupo com

relaccedilatildeo a outros grupos No caso das comunidades quilombolas segundo os

desdobramentos das anaacutelises desta tradiccedilatildeo teoacuterica o reconhecimento destes grupos

natildeo deve partir de ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da

interpretaccedilatildeo historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI

2006 p 39-40) Contraditoriamente eacute a partir de uma tal lista que os autores do

relatoacuterio parecem estabelecer os paracircmetros para embasar a pretensa ldquoobjetividade

etnograacuteficardquo que reivindicam

Esta contradiccedilatildeo fica evidente por exemplo no argumento desenvolvido a

respeito da existecircncia ou natildeo dos ldquosinais diacriacuteticos que deveriam os diferenciar dos

seus vizinhosrdquo e em natildeo os constatando concluem que fica ldquoevidente sim os sinais

diacriacuteticos que os igualam no seu modo de ser dos demais moradores da comunidade

Maracaju dos Gauacutechosrdquo (grifo meu) Esta utilizaccedilatildeo da ideia de fronteira entre ldquonoacutesrdquo e

os ldquoelesrdquo parece ter sido acionada ao longo do texto para justificar a opccedilatildeo pela

realizaccedilatildeo de um trabalho de campo ndash que consideram amplo neutro e mais

aprofundado ndash no qual estabeleceram contato efetivo de pesquisa com pessoas ldquoda

comunidade negra da comunidade de Maracaju dos Gauacutechos e da cidaderdquo108

Com relaccedilatildeo agrave ideia de que a ldquoauto-identidade que eacute definida por si mesmardquo

dependeria de uma ldquohetero-identidade que eacute definida pelos outrosrdquo109 argumentam

Compreende-se que a identidade eacute sempre contrastiva relacional e situacional focando essa fronteira entre o ldquonoacutesrdquo e os ldquooutrosrdquo se procurou dar voz ao entorno da auto denominada comunidade Negra moradores de origem eacutetnica italiana alematilde portuguesa ou entatildeo mineiros gauacutechos paulistas paraiacutebas pois a equipe de pesquisa entendeu que devia observar como os grupos se vecircem e satildeo vistos uns pelos outros (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1518 [p 108])

A despeito novamente de afirmarem que ldquoprivilegiaram a metodologia

participativa a qual prevecirc a incorporaccedilatildeo de saberes e perspectivas locais em todas

as etapas do estudordquo110 em muitos momentos do relatoacuterio a fala dos quilombolas satildeo

108 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1438 [p 28] 109 Idem p 1519 [p 109] 110 Ibidem p 1426 [p 16]

126

questionadas ao passo que agrave versatildeo dos proprietaacuterios vizinhos eacute atribuiacuteda

legitimidade considerando que esta sim poderia ser comprovada documentalmente

Essa adesatildeo ao discurso dos proprietaacuterios do entorno foi utilizada como argumento

comprovatoacuterio da natildeo existecircncia de segregaccedilatildeo racial por parte da ldquoSociedade Agro-

Pecuaacuteria Maracaju LTDArdquo que teria vendido os lotes indistintamente inclusive para

Manoel Ciriaco

Assim esta pretensa ausecircncia de discriminaccedilatildeo formal ganha destaque no

texto enquanto o sentimento de discriminaccedilatildeo vivenciado pela comunidade quilombola

eacute desqualificado Os autores afirmam por exemplo que ldquoa equipe de pesquisa

constatou atraveacutes das falas da famiacutelia Santos a existecircncia de um auto-isolamento

motivado pela pobreza e timidezrdquo111 O fato de ter ocorrido um casamento entre a

enteada de Adir Juliana (que natildeo tem viacutenculo de parentesco com o grupo e que

poderia ser considerada apenas como ldquomorenardquo na classificaccedilatildeo interna112) com um

dos descendentes dos italianos eacute considerado pelos autores como uma prova de que

natildeo haveria preconceito racial por parte dos ldquoitalianosrdquo Por outro lado identificam uma

fala ldquogeneralista e preconceituosardquo da parte de Zeacute Maria

Joseacute Maria Gonccedilalves relata que ldquoos italianos sempre quiseram comprar as nossas terras queriam afastar a gente daqui porque somos pretosrdquo Tal fala chamou a atenccedilatildeo da equipe de pesquisa pois desde o primeiro dia de pesquisa de campo se sabia que Juliana enteada do Adir Santos pertencente a auto denominada comunidade Negra Manoel Ciriaco dos santos eacute casada com Fabio Graciano filho de Paulo Um casamento entre negros e ldquoitalianosrdquo desabona a fala generalista e preconceituosa exposta por Joseacute Maria (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473 [p 63])

Argumentam tambeacutem que puderam observar um preconceito por parte da

proacutepria comunidade Manoel Ciriaco em relaccedilatildeo aos seus vizinhos aos quais

denominariam como ldquoitalianosrdquo ldquoalematildeesrdquo ldquoratos brancosrdquo entre outros termos

Buscam atribuir assim uma equivalecircncia entre os dois lados desconsiderando a

percepccedilatildeo quilombola de uma desigualdade de poder e oportunidades entre brancos

e negros Os quilombolas afirmam neste sentido que sempre trabalharam para esses

proprietaacuterios em relaccedilotildees informais de trabalho como por meio de diaacuterias situaccedilotildees

111 Ibidem p 1520 [p 110] 112 Depois que a enteada de Adir se casou com o filho de um agricultor do Maracaju dos Gauacutechos

descendente de italianos rompeu com a comunidade inclusive tendo agredido verbalmente sua matildee e condenando a reivindicaccedilatildeo do grupo

127

nas quais eles lhes pagavam o quanto desejavam Aleacutem disso sentem-se alvo de

racismo em diversas situaccedilotildees ao longo de anos como jaacute apontamos nas falas

ressaltadas no primeiro capiacutetulo

No acircmbito desta descaracterizaccedilatildeo da comunidade produzida pelo

documento ndash que parece funcionar mais como um contra-laudo ao fundamentar-se na

ldquoheacutetero-identidaderdquo produzida pela visatildeo dos proprietaacuterios vizinhos ndash um dos aspectos

destacados diz respeito agrave suposta natildeo autenticidade da reivindicaccedilatildeo da identidade

quilombola tendo em vista que esta seria decorrente de um contato estreito com

agentes externos

Este processo de construccedilatildeo de identidade eacutetnica estaacute baseado em accedilotildees inicialmente de agentes esternos (sic) a auto denominada (sic) Comunidade Negra e que a partir destes contatos tem buscado em supostas interpretaccedilotildees de origens antepassado que teriam sido escravos (sic) bem como a criaccedilatildeo de uma memoacuteria de exclusatildeo por parte das sociedades onde viveram (Itambeacute do Serro Caiabu e agora Maracaju dos Gauacutechos) () (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473

[p 63]) 113

Ao passo que neste relatoacuterio a inserccedilatildeo do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura

(GTCM) no cenaacuterio poliacutetico de estiacutemulo agrave autodeclaraccedilatildeo e organizaccedilatildeo associativa

quilombola foi considerada como ilegiacutetima por ldquotrazer de forardquo a reivindicaccedilatildeo da

identidade no Relatoacuterio Antropoloacutegico da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna

localizada em CuriuacutevaPR realizado pela antropoacuteloga Liliana Porto a importacircncia

deste trabalho do GTCM eacute destacada como uma ldquoguinada significativardquo para o

reconhecimento das comunidades quilombolas no contexto paranaense A

antropoacuteloga ressalva contudo que tal elaboraccedilatildeo identitaacuteria das comunidades soacute foi

possiacutevel tendo como base elementos preacute-existentes que foram entatildeo mobilizados

pelos grupos ldquoa partir de um contexto poliacutetico-legal novordquo (PORTO 2008 07)

Esta desvalorizaccedilatildeo por parte dos autores do relatoacuterio sobre a comunidade de

GuaiacuteraPR do que consideram ldquoelementos trazidos de forardquo implica em uma

essencializaccedilatildeo da cultura o que contrasta diretamente com a abordagem relacional

da etnicidade que afirmam adotar Dentro desta perspectiva o fato de os quilombolas

terem passado a participar posteriormente agrave certificaccedilatildeo pela Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares de aulas de artesanato e de capoeira indicaria um esforccedilo natildeo autecircntico do

113 Transcriccedilatildeo igual agrave redaccedilatildeo no texto original inclusive com os erros de portuguecircs

128

grupo por praacuteticas que pudessem ldquolembrar haacutebitos de seus antepassadosrdquo114 No

entanto estes autores natildeo levam em conta que ldquoos discursos sobre o passado

apontam a maneira como no presente se lida com este passadordquo (PORTO SALLES

MARQUES 2013 p174) tendo em vista ainda uma certa de expectativa de futuro

Neste sentido segundo Joatildeo Aparecido quilombola que mora na comunidade

e que eacute filho de Manoel Ciriaco a capoeira jaacute era praticada por eles mas natildeo do

mesmo jeito que passaram a jogar com as aulas do Mestre Djalma Este professor foi

contratado pela prefeitura a partir de uma articulaccedilatildeo dos quilombolas Antes segundo

Joatildeo a praacutetica da capoeira era uma brincadeira ensinada pelos primos que moravam

em AssisSP que tinham mais experiecircncia Com as aulas do Mestre Djalma na

comunidade comeccedilaram a aprender de forma sistematizada com troca de cordatildeo115

realizada em Guaiacutera e com uma periodicidade que proporcionou o envolvimento todos

os jovens da comunidade Este enfoque em atividades para os jovens eacute algo sempre

reforccedilado por Adir como uma necessidade de trazecirc-los mais proacuteximos da histoacuteria do

grupo da cultura pois satildeo eles que iratildeo dar continuidade no futuro

A capoeira foi entatildeo mobilizada como um marcador da diferenccedila cultural do

grupo na condiccedilatildeo de siacutembolo de resistecircncia dos escravos ao sistema de opressatildeo e

tornou-se tambeacutem uma espeacutecie de ldquoritual poliacuteticordquo para demarcar fronteiras a partir da

exigecircncia de descontinuidade com os regionais116 Todas as vezes que a comunidade

recebe visita de escolas sobre as quais mencionamos no primeiro capiacutetulo eacute a roda

de capoeira a performance da cultura escolhida para falar sobre as origens do grupo

e sobre a continuidade de sua luta Neste sentido Adir compara a resistecircncia dos

negros do passado com o momento presente do grupo no qual continuam resistindo

aos processos de negaccedilatildeo de direitos impostos a partir da loacutegica do capitalismo em

que as exclusotildees social e racial se reforccedilam mutuamente Joatildeo Aparecido tambeacutem

comentou que escolheram o berimbau como siacutembolo da Associaccedilatildeo Comunidade

Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) porque a capoeira ajudou na histoacuteria

114 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1513 [p 103] 115 Momento no qual o aluno sobe de gradaccedilatildeo e recebe um novo cordatildeo que usa com o uniforme do

grupo de capoeira Para tanto no dia da troca ele tem que colocar em praacutetica o que aprendeu no entanto ldquotem que esquivar mas natildeo pode revidarrdquo 116 No caso analisado por Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho sobre a emergecircncia de identidades indiacutegenas no Nordeste o ritual poliacutetico mobilizado foi o ldquotoreacuterdquo protagonizado ldquosempre que eacute necessaacuterio demarcar as fronteiras entre lsquoiacutendiosrsquo e lsquobrancosrsquo Ele ldquopermite exibir a todos os atores presentes nessa situaccedilatildeo intereacutetnica (regionais indigenistas e os proacuteprios iacutendios) os sinais diacriacuteticos de uma indianidade (Oliveira 1988) peculiar aos iacutendios do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1997 p 60)

129

dos quilombos e se relaciona diretamente com a religiosidade do grupo lembrando-

se de como o seu irmatildeo Zeacute Maria gostava de cantar as ladainhas de capoeira que

satildeo como os pontos do terreiro de Umbanda117

Na anaacutelise dos processos de autoidentificaccedilatildeo eacutetnica segundo Barth e sua

teoria da identidade contrastiva natildeo satildeo as diferenccedilas em si que importam mas como

em determinados contextos elas satildeo acionadas (BARTH 2011) como neste caso do

acionamento da capoeira como um siacutembolo central da comunidade Ademais o

compartilhamento por um grupo de uma mesma cultura e a consequente produccedilatildeo de

diferenccedilas culturais deve ser lido como consequecircncia de processos de interaccedilatildeo e

natildeo como causa primeira (VILLAR 2004 171) Na contramatildeo desta perspectiva os

autores do relatoacuterio antropoloacutegico pareciam estar agrave procura de traccedilos ldquooriginaisrdquo que

correspondessem a um modelo estereotiacutepico de quilombo Tal noccedilatildeo pode ser

remetida ao modo como a histoacuteria oficial se reporta agrave experiecircncia da formaccedilatildeo de

quilombos enquanto fenocircmeno social que ocorreu durante o periacuteodo escravista118

Em relaccedilatildeo agrave anaacutelise da presenccedila de ldquomemoacuterias sobre a escravidatildeordquo na

comunidade os autores do relatoacuterio afirmam que apesar de existirem referecircncias agrave

escravidatildeo natildeo existiriam ldquoreminiscecircncias de um quilombordquo119 Afirmam entatildeo que

ldquoa identidade como algo contrastivo se faz presente desde antes desse pedido de

reconhecimentordquo mas que ldquoa construccedilatildeo de uma identidade quilombola eacute algo

recenterdquo120 Deste modo o relatoacuterio eacute finalizado com a seguinte conclusatildeo

Por fim a equipe de pesquisa esclarece que o que se viu constatou e

verificou foram somente dois lotes rurais de nuacutemeros 186ordf (pertencentes por

heranccedila aos filhos de Seu Manoel C Santos) assim como os lotes rurais dos

seus vizinhos como constatado no mapa da Gleba nordm 4-A colocircnia ldquoCrdquo Serra

Maracajuacute natildeo havendo distinccedilatildeo entre eles portanto natildeo haacute qualquer

territorialidade quilombola possiacutevel na regiatildeo da comunidade de Maracajuacute dos

Gauacutechos Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do

INCRAPR p 1532 [p 122]

117 Por outro lado a religiosidade embora central como vimos no capiacutetulo anterior natildeo eacute mobilizada

pelo grupo como marcador puacuteblico de identidade o que pode estar ligado a uma estrateacutegia de evitar as criacuteticas geradas pela combinaccedilatildeo de preconceito racial e religioso bem como pode decorrer da opccedilatildeo de deixar a esfera do sagrado separada das dinacircmicas de mobilizaccedilatildeo identitaacuterias pelo seu proacuteprio valor especial e superior 118 Deste modo determinadas caracteriacutesticas da experiecircncia do quilombo com mais repercussatildeo histoacuterica o quilombo de Palmares tecircm sido colocadas como regras e condicionantes para o reconhecimento de outros grupos com histoacuterias e caracteriacutesticas diversas (MILANO 2011 31) 119 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1505 [p 95] 120 Idem p 1521 [p 111]

130

Esta insistecircncia em uma classificaccedilatildeo externa por parte dos autores do relatoacuterio

se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos e suas formas de viver

na medida em que natildeo reconhece a possibilidade de autoidentificaccedilatildeo destes grupos

Deste modo

ldquose a situaccedilatildeo se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos populaccedilotildees sobre suas formas de viver na medida pois ldquose a situaccedilatildeo presente eacute de pluralismo do corpo social se natildeo mais subsiste o poder de um grupo sobre os demais natildeo haacute soluccedilatildeo possiacutevel senatildeo que cada qual assuma para si as suas definiccedilotildees identitaacuteriasrdquo (DUPRAT 2014 p 60)

Natildeo eacute pertinente portanto fundamentar a negativa do acesso ao direito

territorial quilombola como faz o relatoacuterio com base no argumento de que haveria

uma manipulaccedilatildeo identitaacuteria por parte do grupo Este ponto de vista decorre de uma

perspectiva superada teoricamente na antropologia que parte de uma

ldquoessencializaccedilatildeo impliacutecita dos conteuacutedos socioculturais que informariam as

identidades eacutetnicasrdquo (SANTOS 1996 p 136)

Muitas perguntas podem ser levantadas com a anaacutelise deste documento Eacute

possiacutevel que a antropologia sirva a interesses antagocircnicos como de quilombolas e de

proprietaacuterios vizinhos Pode a antropologia ser vista como um saber teacutecnico e natildeo

poliacutetico Eacute possiacutevel reconhecer a diversidade sem transformar o Outro em uma

imagem paacutelida de noacutes mesmos Sem pretender esgotar o debate entendo que antes

de mais nada eacute necessaacuterio aceitar que haacute muito o que se avanccedilar nas poliacuteticas

puacuteblicas no Brasil para que natildeo seja a proacutepria imagem do Estado sobre a diversidade

a uacutenica possibilidade de reconhecimento admitida (HARTUNG 2009 p 11)

Para os quilombolas de GuaiacuteraPR as consequecircncias do primeiro relatoacuterio

foram muito graves como veremos a respeito do conflito desencadeado ndash que seraacute

abordado no toacutepico abaixo A necessidade de lidar com a negaccedilatildeo oficial de sua

identidade colocou-os diante de uma encruzilhada ou desistiam do processo em

tracircmite no INCRA de modo que a primeira versatildeo do relatoacuterio se tornaria a uacutenica

interpretaccedilatildeo oficial sobre a trajetoacuteria do grupo ndash mesmo que natildeo aprovada pelo

INCRA e pela comunidade ndash ou optariam por passar por um novo estudo que

recomeccedilaria todo o processo e poderia reacender os conflitos com os proprietaacuterios

vizinhos mas por outro lado tambeacutem seria uma chance de rever e responder aos

questionamentos colocados pela equipe da UNIOESTE e dar seguimento agrave

131

reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial do grupo Decidiram entatildeo continuar a trilhar o

caminho do reconhecimento territorial

23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS

O processo de produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo foi o eixo de

um conflito desencadeado entre a comunidade quilombola e os proprietaacuterios vizinhos

como analisaremos neste momento Quando finalizado este documento natildeo foi

aprovado pela comunidade que natildeo se sentiu nele representada nem tampouco pelo

INCRA que por questotildees de insuficiecircncias teacutecnicas o rejeitou No ano de 2012

ocorreu a produccedilatildeo de um segundo relatoacuterio como uma das respostas institucionais

do INCRA diante da grave situaccedilatildeo em que o grupo quilombola se encontrava e de

cuja responsabilidade tal oacutergatildeo natildeo poderia se furtar

As razotildees do INCRA para ter rejeitado o primeiro relatoacuterio podem ser

sintetizadas nos seguintes pontos conforme Informaccedilatildeo Teacutecnica produzida por um

antropoacutelogo do INCRA da Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios

Quilombolas em Brasiacutelia (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do

INCRAPR p 1576-1579)

a) Argumentaccedilatildeo contraacuteria ao processo de construccedilatildeo identitaacuteria da

comunidade vista como uma tentativa de manipulaccedilatildeo jaacute que afirmam

natildeo existir nenhuma diferenciaccedilatildeo com os proprietaacuterios do entorno

b) Ausecircncia de reflexotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade que daacute

sentido agrave construccedilatildeo da territorialidade bem como sobre os conflitos com

a comunidade envolvente o processo de perda territorial a organizaccedilatildeo

social da comunidade o modo como se relaciona com o territoacuterio e o meio

ambiente

c) Ausecircncia de uma proposta de delimitaccedilatildeo territorial para a comunidade

tendo em vista que os autores mantiveram a posiccedilatildeo de que natildeo existiria

um territoacuterio quilombola a ser indicado natildeo atendendo assim aos

objetivos deste tipo de estudo

132

d) Incompatibilidade do relatoacuterio com os termos da Instruccedilatildeo Normativa em

vigor na eacutepoca IN 492008 bem como com o convecircnio entre o INCRA e a

UNIOESTE

Eacute possiacutevel observar que a avaliaccedilatildeo do INCRA em relaccedilatildeo ao primeiro

relatoacuterio se aproxima da visatildeo da comunidade sobre a atuaccedilatildeo da primeira equipe

expressa na insatisfaccedilatildeo dos quilombolas por considerarem que natildeo houve uma

ldquoescutardquo de suas narrativas memoacuterias pontos de vistas sentimentos e projetos Este

descontentamento da comunidade foi denunciado pela Federaccedilatildeo das Comunidades

Quilombolas do Paranaacute (FECOQUI) agrave 6ordf Cacircmara de Coordenaccedilatildeo e Revisatildeo sobre

Povos Indiacutegenas e Comunidades Tradicionais do Ministeacuterio Puacuteblico Federal e tambeacutem

agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) tendo o antropoacutelogo responsaacutevel pelo

primeiro relatoacuterio sido advertido por falta grave por esta uacuteltima instituiccedilatildeo A despeito

de o INCRA ter rejeitado o estudo e depois ter contratado uma nova equipe de

pesquisadores bem como de seus funcionaacuterios tambeacutem terem sido viacutetimas da reaccedilatildeo

dos proprietaacuterios vizinhos isto natildeo os isentou na avaliaccedilatildeo dos quilombolas da

responsabilidade pelos desdobramentos ocorridos Como afirmou Adir de forma

enfaacutetica ldquoquando veio o impacto do trabalho do INCRA nossa nos devorou

arrebentourdquo

A autodeclaraccedilatildeo deste grupo como quilombola e a reivindicaccedilatildeo de

ampliaccedilatildeo territorial implicou que arcassem com consequecircncias negativas

importantes como a evidenciaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo de conflitos com os grupos locais O

conflito com os proprietaacuterios vizinhos foi considerado pelo governo estadual como um

dos piores do estado do Paranaacute tendo em vista as frequentes ameaccedilas de violecircncia

fiacutesica e uma seacuterie de violecircncias simboacutelicas que atingiram a comunidade Em 2009

enquanto este primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo estava sendo produzido a

mobilizaccedilatildeo do grupo contraacuterio liderada pelo entatildeo presidente do Sindicato Rural

Patronal de Guaiacutera Silvanir Rosseti teve apoio da imprensa local e regional em seus

questionamentos sobre a identidade quilombola e a ampliaccedilatildeo do territoacuterio do grupo

Essa oposiccedilatildeo tatildeo intensa dos proprietaacuterios vizinhos intensificou-se ainda

mais quando tiveram acesso de modo irregular ao mapa preliminar ndash construiacutedo por

meio da orientaccedilatildeo dada pelos antropoacutelogos da primeira equipe aos quilombolas ndash

que supostamente representaria o territoacuterio reivindicado pela comunidade Acontece

133

que o modo como os antropoacutelogos orientaram o grupo sobre os criteacuterios para a

indicaccedilatildeo das aacutereas eacute questionado por Joaquim e Adir que ressaltam a dificuldade

sentida para a compreensatildeo a linguagem dos pesquisadores o que gerou uma falta

de fluidez na comunicaccedilatildeo entre eles Atualmente eles percebem que teriam sido

induzidos a indicar uma aacuterea maior do que pretendiam incluindo todas as

propriedades com as quais tinham tido viacutenculos mesmo que fossem apenas por meio

de trabalho121 Conjugando esta interpretaccedilatildeo com a que fazem em relaccedilatildeo ao

compromisso dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos a elaboraccedilatildeo de um

mapa com pretensotildees muito maiores do que era reivindicado pelo grupo teria servido

natildeo soacute para enfraquecer sua demanda territorial como para justificar a forte reaccedilatildeo

dos donos das aacutereas indicadas

Joaquim Esses outros antropoacutelogos sabe o que eles fizeram com a gente

Dandara Eles jogaram noacutes contra a parede Eles falou de onde eacute que noacutes

tinha viacutenculo com aquela terra aquela propriedade noacutes tinha que indicar Aiacute

noacutes falamos ldquomas naquela propriedade tem essa daqui oacute noacutes tem viacutenculo

essa daqui nem essa daqui noacutes natildeo temrdquo ldquoNatildeo tem que ir levando tudo

Vocecircs pode ir ateacute 10 km cecircs pode ateacute ir daqui em Guaiacuterardquo (fala dos

antropoacutelogos)

Adir Vocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que vocecirc vai conseguir vocecirc vai passar A antropologia do Professor Antocircnio que era o chefe laacute da equipe falar a verdade Um cara que fala vocecirc pode ver o cara fala e duratildeo Fala de uma maneira que natildeo eacute a nossa linguagem Eles natildeo podia fazer isso com noacutes que eles fez

Joaquim Eles vieram trecircs vezes aqui Dandara e eles falou ldquoou vocecircs daacute a resposta hoje ou se natildeo vocecircs vai de aacutegua baixordquo Noacutes tinha que falar eles falou assim ldquomas noacutes tambeacutem noacutes temos contrato que se vocecircs natildeo vai fazer a indicaccedilatildeo entatildeo noacutes mesmo fazrdquo Noacutes podia ter deixado eles fazer

A assimetria na relaccedilatildeo entre os antropoacutelogos e os quilombolas bem como a

dificuldade de diaacutelogo satildeo portanto questotildees centrais na maneira como o grupo

interpreta os fatos ocorridos Em contraste com esta situaccedilatildeo de pesquisa que

consideram malsucedida eu sou entatildeo colocada no diaacutelogo acima entre Adir e

Joaquim quando Adir afirma ldquovocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que

vocecirc vai conseguir vocecirc vai passarrdquo A comparaccedilatildeo entre a minha pesquisa e a

pesquisa do primeiro relatoacuterio natildeo eacute feita por Adir de um modo direto mas eacute possiacutevel

121 No acircmbito do procedimento de reconhecimento territorial o fato de terem trabalhado para os proprietaacuterios vizinhos natildeo eacute criteacuterio para ampliaccedilatildeo da aacuterea que jaacute possuem com base no artigo 2ordm do Decreto Federal 4887 de 2003

134

inferir que por ter sido construiacuteda uma relaccedilatildeo de confianccedila entre mim e os membros

do grupo ndash relaccedilatildeo esta que antecedia a proacutepria pesquisa e que remete a minha antiga

posiccedilatildeo como assessora do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute ndash havia uma

expectativa positiva de que o resultado do meu trabalho iria trazer algum tipo de

contribuiccedilatildeo para a comunidade

Eacute a falta de confianccedila dos quilombolas em relaccedilatildeo ao trabalho da primeira

equipe de pesquisadores que no presente embasa esta percepccedilatildeo de que teriam

sido enganados pelas orientaccedilotildees dos antropoacutelogos quando da elaboraccedilatildeo do mapa

preliminar Uma desconfianccedila que foi se acentuando durante o processo de pesquisa

ateacute que fosse confirmada segundo eles pelo proacuteprio resultado do relatoacuterio final que

era contraacuterio agraves reivindicaccedilotildees da comunidade Com a colocaccedilatildeo de Joaquim no

diaacutelogo acima ndash ldquoNoacutes podia ter deixado eles fazerrdquo ndash percebe-se que ao se sentirem

incomodados com as orientaccedilotildees passadas pelos antropoacutelogos eles poderiam ter

tomado outra atitude ao inveacutes de naquele momento terem aceitado a pressatildeo dos

antropoacutelogos de que o mapa soacute poderia ser produzido daquela maneira

Joaquim me contou entatildeo como ldquoo INCRA deixou eles (os vizinhos)

roubarem o mapardquo jaacute que o oacutergatildeo deveria ao contraacuterio ter zelado por este

documento de importacircncia central para o processo tanto em um niacutevel administrativo

como para as dinacircmicas de relaccedilotildees locais em torno da questatildeo territorial Observa-

se na fala de Joaquim uma ambiguidade na forma como ele avalia a posiccedilatildeo do oacutergatildeo

federal que se de um lado estava atuando na regiatildeo com o objetivo de garantir o

direito do grupo de outro mostra-se imprudente ao contratar pesquisadores

inadequados para realizar o estudo e ainda acaba por perder o mapa preliminar

Joaquim Eacute Dandara eu jaacute desconfiei na hora sabe por quecirc A indicaccedilatildeo que noacutes fez era bem grande aiacute eles ponharam eu e a Claudia do INCRA o Adir natildeo tava aqui eu e a Claacuteudia o motorista e um outro que veio saber onde eacute que a gente tinha indicaccedilatildeo e noacutes andamos tudo em volta com a camionete do INCRA Aiacute quando chegou aqui o cara falou assim ldquoEh a indicaccedilatildeo eacute muito a aacuterea eacute muito granderdquo Ateacute o cara desconfiou da aacuterea aiacute eu falei ldquoquem fez noacutes dar essa indicaccedilatildeo Os antropoacutelogos Que eles falou que noacutes podia ir ateacute 20 30 km e noacutes foi indicandordquo E depois a turma do INCRA deixou eles roubarem o mapa a coacutepia do mapa Eu natildeo sei como eacute que eles fizeram eles tiraram de dentro da camioneta ali embaixo ali Aiacute eles passaram a divulgaccedilatildeo pra todo mundo Eles levaram no Sindicato Patronal levou pra casa de um cara que eu sei onde eacute que eacute laacute pra frente aiacute esconderam porque a poliacutecia podia ir atraacutes neacute Aiacute a poliacutecia natildeo sabia que um passou pro outro foi passando Aiacute aumentaram a aacuterea ponharam uma parte do municiacutepio de Terra Roxa Aiacute eles botaram os dois municiacutepios contra a gente E eu ainda falei com a Juliana assim ldquomas vocecircs tinha uma coisa em segredo eles que tava com essa coacutepia natildeo podia ter deixado as turma

135

roubarrdquo () Aiacute quando eles tinham tomado a chave da camioneta quando eles subiram laacute pra cima no meio da roccedila tava tudo limpo natildeo tinha plantaccedilatildeo nenhuma aiacute eles pegaram terra assim colocaram dentro do tanque da camioneta Eles (funcionaacuterios do INCRA) ficaram detido das oito horas da manhatilde ateacute as trecircs horas da tarde A Poliacutecia Federal que veio soltar eles aliacute E aiacute depois cercaram a camioneta cercaram eles duas vez dentro do Maracaju e natildeo deixaram eles descer aqui embaixo

Esta ocasiatildeo de forte tensatildeo social ocorrida em 30 de setembro de 2009 foi

o primeiro protesto realizado pelos proprietaacuterios vizinhos Os funcionaacuterios do INCRA

sofreram ameaccedilas ndash como a de que o carro da instituiccedilatildeo seria incendiado ndash e foram

impedidos de chegar agrave comunidade tendo sido mantidos como refeacutens por algumas

horas dentro de uma casa nas proximidades da comunidade122 A gravidade do

conflito ganhou repercussatildeo pela presenccedila das emissoras de televisatildeo Tarobaacute e

Record bem como a raacutedio de Guaiacutera

Adir () Quando foi trecircs horas da tarde aiacute a rede Record veio aqui em casa a raacutedio tudo aqui Aiacute disse ldquooacute Adir eu quero saber o que que taacute acontecendo se vocecirc pode dar uma entrevista pra falar dos seus vizinhos pra falar da sua convivecircncia com eles desse trabalho que taacute sendo feito do INCRA Aiacute que eu falei pra eles eu falei assim ldquoeu natildeo vou dar entrevista de nada o que eu vou falar com vocecircs eacute o seguinte esse trabalho natildeo eacute nosso eacute do INCRA esse levantamento que foi feito pra noacutes ser reconhecido aqui natildeo foi noacutes eacute o governo vocecircs tem que conversar com o governo e conversar com o pessoal do INCRA Noacutes tamo aqui haacute tantos anos e vamos continuar o mesmo eles tambeacutem vatildeo continuar noacutes natildeo queremos nada que eacute deles Se o INCRA taacute fazendo um trabalho que ateacute pra noacutes eacute uma surpresa porque noacutes natildeo entende o que taacute acontecendo natildeo queremos confusatildeo com ningueacutem guerra com ningueacutem E noacutes hoje noacutes estamos podendo falar da nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar a gente ficou preso a vida inteira sem poder pronunciar o que que a gente eacute de verdaderdquo Aiacute chamei as crianccedilas todas e falei ldquovamos mostrar pra eles o que Vamos tocar pra eles vamos cantar vamos tocar vamos bater atabaque e eacute issordquo Aiacute chamei as crianccedilas noacutes toquemo cantamos e ldquoEacute isso se vocecircs quiser filmar vocecircs filma isso aqui Pelo menos vamos preservar a nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar Agora essa questatildeo aiacute natildeo eacute nossa Eacute questatildeo do INCRA e vocecircs Do governo federal e do governo estadual natildeo eacute nossardquo

Quando Adir relata sua recusa em dar uma resposta para a emissora ele estaacute

indicando que a responsabilidade pelo trabalho que estava sendo conduzido natildeo era

dos quilombolas e sim do INCRA Pelo modo como ocorreu o contato com a primeira

equipe de pesquisadores os quilombolas acabam se sentindo viacutetimas e natildeo sujeitos

do processo Por outro lado a resposta de Adir reforccedila o aspecto positivo do processo

122 O Ministeacuterio Puacuteblico Federal de Umuarama ofereceu denuacutencia contra os proprietaacuterios que se ldquoopuseram agrave execuccedilatildeo do ato legalrdquo por parte do INCRA que realizaria na oportunidade levantamento agroambiental referente ao procedimento da Comunidade Quilombola A denuacutencia estaacute disponiacutevel em httpwwwprprmpfgovbrpdfs2013umuarama20-20quilombolas20-20denunciapdf Acesso em 241015

136

de reconhecimento como forma de ter a voz do grupo reconhecida no espaccedilo puacuteblico

abrindo a possibilidade de falarem de sua cultura de pronunciarem sua identidade e

por isso conclui dizendo ldquovamos tocar vamos cantarrdquo Contudo se o processo de

regularizaccedilatildeo territorial poderia ter sido este momento de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da

histoacuteria do grupo e de suas reivindicaccedilotildees ele natildeo alcanccedila o resultado esperado jaacute

que por meio da atuaccedilatildeo de agentes autorizados pelo Estado para produzirem o

relatoacuterio antropoloacutegico a legitimidade de suas falas lhe eacute novamente negada

Em um outro episoacutedio de conflito ocorrido em 20 de novembro de 2009 dia

da consciecircncia negra os quilombolas saiacuteam de ocircnibus em direccedilatildeo a Marechal

Cacircndido Rondon municiacutepio da regiatildeo para apresentaccedilatildeo do grupo de capoeira em

duas escolas estaduais No entanto em protesto os proprietaacuterios vizinhos fecharam

a estrada do bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo com ameaccedilas de que iriam incendiar

o ocircnibus Apoacutes horas de negociaccedilatildeo o grupo de quilombolas conseguiu ultrapassar a

barreira de manifestantes Esta situaccedilatildeo de obstruccedilatildeo da estrada ocorreu em outras

ocasiotildees por exemplo com o impedimento de que cestas baacutesicas chegassem agrave

comunidade Houve portanto um processo de inviabilizaccedilatildeo de movimentos e

restriccedilatildeo de circulaccedilatildeo dos quilombolas que eram possiacuteveis antes do iniacutecio dos

estudos para o primeiro relatoacuterio

Um exemplo importante dessas restriccedilotildees ocorreu na articulaccedilatildeo por parte

dos vizinhos por meio do Sindicato Rural Patronal para natildeo mais contratarem

quilombolas para trabalharem em suas propriedades nas quais faziam diversos tipos

de funccedilotildees desde cortar rama carpir plantaccedilatildeo rancaccedilatildeo de mandioca entre outros

e recebiam por diaacuteria Segundo me relataram a situaccedilatildeo econocircmica da comunidade

se agravou pois este tipo de trabalho antes permitia uma complementaccedilatildeo

fundamental da fonte de renda das famiacutelias quilombolas Aleacutem disso os proprietaacuterios

vizinhos tambeacutem influenciaram os donos de comeacutercio para natildeo dar creacutedito para estas

famiacutelias Sem trabalho ou creacutedito dependeram de doaccedilatildeo de cestas baacutesicas por parte

do Estado uacutenico auxiacutelio direto dos oacutergatildeos puacuteblicos que destacam terem recebido

(outros tipos de auxiacutelio estatildeo ligados agrave mediaccedilatildeo de conflitos) Esta situaccedilatildeo de

dependecircncia eacute vista por Adir e Joaquim como algo ateacute vergonhoso pois consideram

digno conquistar as coisas com o proacuteprio trabalho mas para isso teriam que ter

oportunidades por meio de projetos dos oacutergatildeos puacuteblicos para geraccedilatildeo de renda na

comunidade

137

Adir Porque eacute o seguinte se tem editais tem projeto tem tudo e noacutes na situaccedilatildeo que noacutes se encontramos aqui eles (agentes do Estado) viram eles mesmo viram com os proacuteprios olhos e nos auxiliaram em nada nos apoiaram em nada soacute apoiaram com conversa e noacutes aqui precisando ateacute hoje eu fico preocupado com esses jovens fico preocupado com essas mulheres porque noacutes soacute vamos conseguir afirmar aqui com trabalho com geraccedilatildeo de renda O primeiro passo eacute a geraccedilatildeo de renda Aiacute noacutes consegue ter uma comunidade decente natildeo viver de cesta de baacutesica que isso eu natildeo quero

Joaquim E se fosse pra noacutes viver de cesta baacutesica noacutes jaacute tinha morrido de fome Eles fica cinco seis mecircs sem mandar

Adir A cesta baacutesica ela natildeo daacute noacutes assim poder pra noacutes crescer noacutes queremos viver do nosso proacuteprio suor do nosso proacuteprio trabalho

Joaquim Eacute que noacutes nunca vivemos de cesta baacutesica

Adir Pra noacutes conseguir comprar o que eacute nosso ter o prazer de ocecirc chegar e comprar tocirc trabalhando e tenho condiccedilotildees de fazer isso Viver de cesta baacutesica isso natildeo existe noacutes natildeo queremos isso noacutes queremos ter nosso proacuteprio sustento que noacutes sempre vivia trabalhamos nem que for sofrendo e tudo mas nosso sustento Natildeo viver eacute dependendo de cesta baacutesica dependendo de governo natildeo dependendo de noacutes mesmo eacute isso que eu quero escrever pra SEPPIR e pra Fundaccedilatildeo Palmares Que eacute muito bonito nos eventos que eu jaacute fui vaacuterios nossa jaacute perdi a conta de andar nesse Brasil No comeccedilo eu ia com esperanccedila e trazia aquela esperanccedila aquela coisa pra dentro da comunidade falava pra eles que era isso e aquilo outro que ia acontecer que ia acontecer

Assim como observamos no capiacutetulo anterior esta situaccedilatildeo de

vulnerabilidade desencadeada pelos conflitos em torno do primeiro relatoacuterio reforccedilou

o sentimento de sofrimento e humilhaccedilatildeo que estaacute presente na leitura que fazem de

sua trajetoacuteria coletiva Na fala de Adir abaixo em que avalia a poliacutetica puacuteblica para as

comunidades quilombolas ele aponta para a expectativa de que o contato com os

diversos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis jaacute tivesse naquele momento repercutido de

forma positiva para a comunidade123

Adir Eacute e daiacute a gente Dandara trazia uma esperanccedila pra comunidade e aiacute depois eu comecei a trazer uma desesperanccedila pra dentro da comunidade Aiacute como que fica Um presidente da comunidade taacute indo atraacutes laacute o pessoal fica esperando e eu trazer o quecirc pra eles Comecei a natildeo trazer mais nada Comecei nem a falar nada mais pra eles porque eu ia e voltava falar o quecirc Trazer o quecirc Papel Papel Soacute Na praacutetica nada Aiacute eu comecei ateacute eu ter desesperanccedila Eu luto sim porque eu tenho um conhecimento hoje mas eu vou correr atraacutes daquilo que quando eu vejo que eacute certo eu tenho que lutar nem que tenha dificuldade burocracia cecirc sabe que isso existe

123 Uma das principais demandas do grupo eacute a garantia de uma dinacircmica interna de geraccedilatildeo de renda

que crie para os quilombolas autonomia de trabalho e que viabilize a permanecircncia das famiacutelias no territoacuterio

138

Esta posiccedilatildeo de mediador poliacutetico ocupada por Adir teve consequecircncias

graves durante os conflitos em decorrecircncia da pressatildeo dos vizinhos que de certo

modo foi nele personificada Sofreu vaacuterias ameaccedilas de morte e foi incluiacutedo no

Programa de Proteccedilatildeo aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria de

Direitos da Presidecircncia da Repuacuteblica Uma das ameaccedilas que sofreu foi atraveacutes de um

trabalho de magia feito contra ele Foram encontrados nos fundos da aacuterea da

comunidade um pequeno caixatildeo uma galinha morta vela pinga areia e uma cruz

com o nome de Adir e a data em que seria morto 13012010 A relevacircncia desta

ameaccedila estaacute ligada a uma referecircncia expliacutecita agrave religiosidade afro-brasileira do grupo

vinculada agrave Umbanda Adir me contou como foi ateacute o lugar e jogou sal grosso em cima

do trabalho para se proteger O jornal local noticiou o ocorrido trazendo a fala de Adir

em resposta ldquoConhecemos essa arte termos irmatildeos que frequentaram a Mesa

Branca a pessoa que fez isso natildeo sabe com quem estaacute brincandordquo

Geralda irmatilde de Adir me explicou de modo indignado mesmo depois de anos

do ocorrido que ela e seu marido por frequentarem o centro de Umbanda foram

acusados pelos vizinhos de terem feito aquilo para gerar falaccedilatildeo Para ela foram os

proacuteprios vizinhos que fizeram o trabalho e os acusaram com o objetivo de criar uma

crise interna na famiacutelia Segundo Geralda os vizinhos tambeacutem frequentam terreiros

mas de modo velado jaacute que natildeo ldquovatildeo ali na regiatildeo porque natildeo querem que ningueacutem

saiba que eles mexem com issordquo Deste modo os vizinhos natildeo explicitariam o viacutenculo

com terreiros de Umbanda jaacute que tecircm acesso e influecircncia junto ao padre local tendo

inclusive acionado esta influecircncia contra os quilombolas para ldquotirar eles da Igrejardquo

139

FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado FONTE Jornal Paranazatildeo 11 de setembro de 2009

140

A acusaccedilatildeo contra Geralda e seu marido indica como abordamos no capiacutetulo

anterior a percepccedilatildeo dos vizinhos em relaccedilatildeo ao grupo de que eles seriam ldquonegros

feiticeiros ou macumbeirosrdquo atribuindo-lhes natildeo soacute uma inadequaccedilatildeo moral mas

tambeacutem uma representaccedilatildeo como possiacuteveis agressores (PORTO 2014 p 199) Por

um lado se haacute uma condenaccedilatildeo moral na interpretaccedilatildeo das religiotildees afro-brasileiras

parece haver por outro um reconhecimento de sua eficaacutecia pois aleacutem de Geralda

afirmar que eles tambeacutem acionam este circuito religioso de modo velado teriam se

utilizado de um trabalho para tentar agredir seus oponentes neste momento de

exacerbaccedilatildeo do conflito Eficaacutecia esta natildeo reconhecida no acircmbito de uma esfera

religiosa mas como uma praacutetica de ldquomagiardquo o que acaba por reforccedilar a atribuiccedilatildeo de

subalternidade que seria conferida a este tipo de praacutetica miacutestica (BRUMANA

MARTINEZ 1991 p 81) Esta ameaccedila contra Adir ganhou repercussatildeo no jornal local

como mais uma forma de intimidaccedilatildeo contra o liacuteder da comunidade

A tensatildeo entre brancos e negros antes latente transformou-se com a

eclosatildeo do conflito no que Adir denominou de ldquoapartheidrdquo Esta situaccedilatildeo ficou

evidente para ele principalmente na dificuldade de convivecircncia entre as crianccedilas e

adolescentes da comunidade e os filhos dos proprietaacuterios vizinhos que pegavam

juntos o ocircnibus para ir para a escola Jaqueline (19 anos) filha de Joaquim contou

como o preconceito que jaacute sofria na escola por sempre ter sido a uacutenica negra de sua

sala agravou-se durante o conflito Ela tinha que escutar os outros adolescentes

falando que sua comunidade iria roubar a terra dos pais deles No ocircnibus os filhos

dos proprietaacuterios vizinhos natildeo deixavam que as crianccedilas e adolescentes da

comunidade se sentassem juntos deles

Outro fato que marcou muito o grupo no final de 2009 foi a morte do irmatildeo

mais velho e liacuteder interno da comunidade Zeacute Maria que sofria de diabetes Nos

relatos sobre este periacuteodo os seus irmatildeos responsabilizam as ameaccedilas e o conflito

com os vizinhos os quais foram pressionando os quilombolas e teriam assim

contribuiacutedo para fragilizar a sauacutede de Zeacute Maria Ademais eles contam como enquanto

seu corpo estava sendo velado na comunidade indignaram-se ao ouvirem fogos de

artifiacutecios que entenderam como ato de comemoraccedilatildeo provocaccedilatildeo e total desrespeito

por parte dos vizinhos agrave situaccedilatildeo de perda da famiacutelia

Neste contexto de adversidade procuraram apoio junto a vaacuterios oacutergatildeos puacuteblicos

como a Poliacutecia Federal a Poliacutecia Civil a Poliacutecia Militar o Ministeacuterio Puacuteblico Federal

141

o Ministeacuterio Puacuteblico Estadual e os oacutergatildeos do Governo Federal que tratam da temaacutetica

quilombola o proacuteprio INCRA a Fundaccedilatildeo Cultural Palmares FCP) e a Secretaria de

Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da Igualdade Racial da Presidecircncia da Repuacuteblica (SEPPIR)

Somente quando a questatildeo deixou de ficar restrita ao acircmbito regional do INCRA no

Paranaacute e houve uma intervenccedilatildeo direta de agentes do Estado representantes do

governo federal o conflito se acalmou

Joaquim () E noacutes natildeo tinha mais sossego Aiacute depois que veio as turma de Brasiacutelia neacute Adir aiacute que eles obedeceram Que essas turma de Brasiacutelia que botaram o ponto final Falou ldquocecircs natildeo cerca mais ningueacutem que vai laacute hoje na comunidade deles mais ningueacutem A ordem agora vem de Brasiacutelia natildeo eacute daqui de Guaiacutera mais natildeordquo Aiacute eles natildeo mexeram mais porque eles falou ldquoAgora noacutes vamos prender mesmordquo

O Ministeacuterio Puacuteblico Federal (MPF) em Umuarama propocircs em julho de 2012

uma Accedilatildeo Civil Puacuteblica contra o INCRA a Uniatildeo o Estado do Paranaacute e o municiacutepio

de Guaiacutera com objetivo de garantir direitos da comunidade quilombola em Guaiacutera124

Tal accedilatildeo teve como base o Inqueacuterito Civil Puacuteblico instaurado em 2008 no

MPFUmuarama que acompanhou a realizaccedilatildeo do estudo antropoloacutegico e os

desdobramentos conflituosos que foram desencadeados e que tiveram ampla

repercussatildeo nos meios de comunicaccedilatildeo da regiatildeo125 Assim depois de todo impacto

negativo do trabalho do INCRA com a comunidade os quilombolas se questionaram

se valia a pena dar continuidade ao procedimento de regularizaccedilatildeo territorial jaacute que

tinham arcado com muitos prejuiacutezos e humilhaccedilotildees e aleacutem disso o relatoacuterio

antropoloacutegico produzido era contraacuterio aos seus interesses O trabalho tinha sido

iniciado mas o INCRA segundo Joaquim natildeo teve estrutura para conduzi-lo de forma

adequada de modo que as lideranccedilas do grupo passaram a distinguir entatildeo o que

era o trabalho do INCRA e o que era o proacuteprio posicionamento dos quilombolas

124 ldquoNa accedilatildeo o MPF pede liminarmente que a Justiccedila Federal de Guaiacutera fixe um prazo maacuteximo de um ano para que o Incra conclua o procedimento administrativo de identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas pela Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Pedem ainda que Uniatildeo Estado do Paranaacute e municiacutepio de Guaiacutera cumpram com o dever legal de inserir a comunidade em suas respectivas poliacuteticas puacuteblicasrdquo ldquoUmuarama pede que Incra conclua procedimento para garantir direitos de quilombola Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwredesuldenoticiascombrhomeaspid=43708 Acesso em 240215 125 Sobre os conflitos em comunidades quilombolas abordados na imprensa estadual no Paranaacute o caso de Guaiacutera eacute um dos principais ldquonas notiacutecias a respeito desta comunidade destaca-se aleacutem da lideranccedila quilombola ter sido ameaccedilada por supostos rituais de feiticcedilaria o fato dos funcionaacuterios do INCRA terem sido feitos de refeacutens por cerca de 150 agricultores da regiatildeo durante a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do Territoacuterio Quilombolardquo CRUZ Cassius Conjuntura quilombola no Paranaacute Disponiacutevel em httpsetnicowordpresscomcategoryquilombos Acesso em 240215

142

Neste sentido a persistecircncia na luta pelo direito territorial com a decisatildeo de

passarem pela elaboraccedilatildeo de um segundo relatoacuterio antropoloacutegico mesmo diante de

todas as condiccedilotildees adversas que estavam colocadas pelo primeiro parecer contraacuterio

parece demonstrar ldquoa existecircncia de um projeto de futuro suficientemente

compartilhadordquo (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 130) Com a produccedilatildeo de um

segundo relatoacuterio antropoloacutegico renovaram-se as esperanccedilas de que pudessem ter

um territoacuterio suficiente para a reproduccedilatildeo do grupo com a perspectiva de retorno de

familiares que saiacuteram dali e que juntos consigam construir um projeto comum

Ademais aleacutem deste aspecto territorial tal decisatildeo de dar continuidade ao

procedimento no INCRA tambeacutem se relaciona agrave afirmaccedilatildeo da legitimidade da

perspectiva do grupo sobre a sua proacutepria histoacuteria

Mas se antes do iniacutecio do trabalho deste oacutergatildeo federal na comunidade os

quilombolas desconheciam os processos estatais pelos quais iriam passar ateacute a

regularizaccedilatildeo do territoacuterio depois de todos os desdobramentos ocorridos estavam

muito mais informados e ldquocalejadosrdquo com relaccedilatildeo ao funcionamento deste tipo de

poliacutetica puacuteblica territorial Eacute a partir de um novo espaccedilo de experiecircncia que passaram

entatildeo a refletir sobre o que ocorreu desde a certificaccedilatildeo da comunidade pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares em 2006 Tornaram-se assim mais seguros de suas

perspectivas sobre a postura tanto das equipes de pesquisa bem como dos

funcionaacuterios do INCRA e de outros oacutergatildeos federais responsaacuteveis pela temaacutetica A

necessidade de circular por novas esferas de atuaccedilatildeo e diaacutelogo se consolidou como

um novo campo de movimento no qual os membros do grupo interagem questionam

reivindicam e constituem aliados para a busca de seus objetivos

24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO

A decisatildeo de continuar com o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do INCRA

passou pelo desejo de consolidar o reconhecimento puacuteblico da legitimidade da histoacuteria

e da luta do grupo questionadas pelo primeiro relatoacuterio Como apontado em conversa

com Adir e Joaquim eles natildeo queriam desistir do objetivo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio

da comunidade tendo em vista a possibilidade de garantir o retorno dos parentes que

de laacute saiacuteram nas uacuteltimas deacutecadas Para manter este propoacutesito consideram que eacute

143

preciso ter ldquocoragem forccedila e feacute em Deusrdquo acionando o suporte de uma ordem de

moral e de justiccedila superior que lhes ampara

Adir Que o nosso pessoal aqui Dandara natildeo viveu soacute no municiacutepio de Guaiacutera Quando esse pessoal vieram de Minas ocupou os dois municiacutepios

Joaquim E trabalhava de diaacuteria pra todo mundo que era muita gente neacute entatildeo noacutes natildeo tinha terra pra trabalhar soacute pra gente Ia derrubando mato tocava trecircs anos e eles ia passando pra frente

Adir E hoje podia taacute todo mundo aqui Natildeo taacute porque de alguma forma contribuiacuteram (os vizinhos) pra que esse pessoal nosso saiacutesse daqui Ocuparam os espaccedilos e noacutes fiquemos sem nada Por isso que noacutes natildeo podemos deixar de lutar Noacutes tem que lutar mesmo Que nem eu falo pra eles ldquose um morrer a guerra natildeo pode parar tem que continuarrdquo E a gente quer mostrar dentro desse municiacutepio de Guaiacutera mostrar pra eles que noacutes tambeacutem temos ndash oportunidade natildeo temos ndash mas que temos coragem forccedila e feacute em Deus pra lutar e conseguir com nossos braccedilos nossas pernas conseguir mostrar pra eles

No entanto a decisatildeo de retomar o processo do INCRA natildeo foi faacutecil jaacute que

na percepccedilatildeo de Joaquim e Adir o oacutergatildeo os decepcionou quando recuou diante da

reaccedilatildeo dos proprietaacuterios e ldquolargou noacutes aqui abandonadordquo Joaquim ressalta como

deixou claro para a antropoacuteloga do INCRA Juliane que acompanhou o procedimento

da comunidade desde o comeccedilo que o oacutergatildeo tinha responsabilidade pelos

desdobramentos do conflito bem como pela situaccedilatildeo econocircmica precaacuteria em que

ficou a comunidade Todos esses acontecimentos faziam com que se sentissem

temeraacuterios com o reiniacutecio dos trabalhos com a reelaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio

antropoloacutegico

Joaquim E teve um ano que noacutes fiquemos nervoso eu falei com a Juliane mesmo do INCRA Eu falei ldquovocecircs natildeo teve peito pra arcar com o pessoal que noacutes natildeo sabe tambeacutem como eacute que eacute essa lei o direitordquo Porque vocecircs recuaram

Adir Recuaram de alguma forma Tambeacutem eacute muito novo Joaquim Eles abriram esse trabalho e depois largou noacutes aqui abandonado Noacutes tamo abandonado sem serviccedilo sem ningueacutem E vocecircs eacute difiacutecil entrar em comunicaccedilatildeo com a gente noacutes fiquemos aqui oacute foi muito tempo sem eles entrar em comunicaccedilatildeo com noacutes

Atualmente entendem a continuidade do procedimento como positiva jaacute que

a avaliaccedilatildeo que fazem da segunda equipe de pesquisadores eacute muito diferente da

primeira Um dos principais criteacuterios utilizados eacute a permanecircncia do antropoacutelogo com

144

eles na comunidade para presenciar o cotidiano e ldquoentender o que estaacute acontecendordquo

Neste mesmo sentido tambeacutem a minha pesquisa eacute avaliada

Adir () Eles (primeira equipe) estava escrevendo uma coisa de laacute natildeo aqui proacuteximo a noacutes Eacute legal que nem vocecirc taacute aqui agora vocecirc falou que vai vir pra ficar tantos dias depois vocecirc volta de novo pra ficar tantos dias depois vocecirc pode voltar de novo ficar tantos dia Aiacute vocecirc vai conviver com noacutes aqui durante esses dias tudo vocecirc vai ver o que vai acontecer o que taacute acontecendo vocecirc vai presenciar tudo Entatildeo que nem noacutes fala pro pessoal do INCRA pra esses antropoacutelogos pra fazer um relatoacuterio antropoloacutegico tem que conviver laacute dentro tem que viver laacute junto com noacutes tem que ver da nossa cultura da nossa alimentaccedilatildeo da nossa dificuldade da nossa luta de tudo isso tem que conviver com noacutes aqui dentro Natildeo adianta vir meia hora sentar com noacutes ali bater um papo pesquisar noacutes ali e voltar embora Presenciar dia a dia

Dandara Quando veio o Paulo (antropoacutelogo) agora pra esse segundo (relatoacuterio) eles ficaram aqui

Adir Ah o Paulo estava aqui presente todo dia com a gente

Joaquim Totalmente diferente

Adir Totalmente diferente E o Paulo foi buscar nossa histoacuteria laacute em Minas que era ateacute pra mim ter ido junto com o Cassius (historiador) aiacute deu um problema que eu natildeo pude ir mas o Cassius me chamou era pra mim taacute junto com eles laacute

A elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico teve o meacuterito segundo os

quilombolas de ter incluiacutedo a pesquisa realizada por Cassius Cruz historiador da

equipe junto agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de proveniecircncia de Manoel

Ciriaco dos Santos em Minas Gerais Adir na eacutepoca foi convidado para que o

acompanhasse na viagem com o intuito de contribuir para a realizaccedilatildeo desta

pesquisa o que natildeo pode acontecer segundo Cassius em decorrecircncia de o contrato

do INCRA com a empresa Terra Ambiental natildeo disponibilizar recursos suficientes e

de Adir natildeo ter como realizaacute-la com recursos proacuteprios Caso a equipe responsaacutevel

optasse por deslocar recursos para financiar a ida da lideranccedila quilombola natildeo

haveria condiccedilotildees para o pagamento total das diaacuterias de trabalho de campo dos

pesquisadores Muitas contribuiccedilotildees poderiam ter sido geradas para o relatoacuterio

antropoloacutegico se priorizado pelo oacutergatildeo federal como ldquoprocessordquo (de pesquisa de

articulaccedilatildeo de fortalecimento comunitaacuterio) no acircmbito do qual seria muito relevante a

participaccedilatildeo de Adir nesta pesquisa em Minas Gerais No entanto esta possibilidade

natildeo se concretizou dada a incompatibilidade com o orccedilamento disponiacutevel na execuccedilatildeo

145

do relatoacuterio vieacutes pelo qual responde a uma certa dinacircmica administrativa que o

entende afinal de contas como ldquoprodutordquo contratado (FERNANDES 2005)

Mesmo sem a ida de um integrante da comunidade a pesquisa em Minas

Gerais foi fundamental para a argumentaccedilatildeo que o segundo relatoacuterio construiu

As pesquisas de campo realizadas em Minas Gerais possibilitaram localizar elementos comuns entre as narrativas da comunidade de Manoel Ciriaco e a Comunidade de Vila Nova (Serro-MG) aleacutem de constatar a presenccedila material de imagens recorrentemente explicitadas pela memoacuteria dos descendentes de Manoel Ciriaco para se referir agrave origem mineira exemplo disso eacute o fato de utilizarem provisoriamente de lapas de pedra como forma de habitaccedilatildeo e espaccedilo de trabalho (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 735 [p 32])

Neste sentido Adir comenta a importacircncia deste relatoacuterio por ter dado

subsiacutedio e legitimidade para a versatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria muito

diferente da experiecircncia com o primeiro estudo

Adir () E eu faccedilo de tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio antropoloacutegico noacutes vamos contribuir com tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio que no final decirc o que decirc mas pelo menos o trabalho tem que ser feito Demorou pra noacutes porque quase que noacutes natildeo ia aceitar o relatoacuterio antropoloacutegico mais Porque tudo que a gente passou noacutes tivemos muita conversa com o pessoal do INCRA eu mais o Joaquim fomos pra Curitiba umas par de vez pra gente sentar laacute com o Nilton (Superindente do INCRA no Paranaacute) conversamos com o pessoal de Brasiacutelia porque noacutes natildeo ia aceitar mais o relatoacuterio antropoloacutegico noacutes fiquemos muito desgastado desgastado de mais

A pesquisa para o segundo relatoacuterio foi produzida durante o ano de 2012 por

uma equipe multidisciplinar coordenada pelo antropoacutelogo Paulo R Homem de Goacutees

que tinha ampla experiecircncia de trabalho e pesquisa com comunidades indiacutegenas Tal

equipe foi contratada pela Empresa Terra Ambiental que venceu a licitaccedilatildeo puacuteblica

(modelo de pregatildeo eletrocircnico) 126 para a produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no

126 O modelo de convecircnio com universidades em comparaccedilatildeo com o modelo de ldquopregatildeo eletrocircnicordquo

adotado desde 2011 era melhor avaliado pelos antropoacutelogos por sua contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de um campo de debate antropoloacutegico sobre o tema dos quilombos nos espaccedilos acadecircmicos proporcionando um nuacutemero expressivo de trabalhos e grupos de pesquisa em cursos de antropologia todo o paiacutes (ARRUTI 2013) No entanto o modelo de convecircnio foi substituiacutedo pelo chamado ldquoPregatildeo Eletrocircnicordquo que se tornou a ferramenta de contrataccedilatildeo para os relatoacuterios antropoloacutegicos e produccedilatildeo de RTID No caso de Guaiacutera contudo a experiecircncia com a realizaccedilatildeo do pregatildeo apresentou melhores resultados do que com o convecircnio estabelecido com a UNIOESTE localizada na regiatildeo oeste do Paranaacute pois neste convecircnio natildeo havia em seu quadro docente um antropoacutelogo que dispusesse de experiecircncia sobre temas relacionados com identidade e territorialidade e que estivesse assim apto para coordenar o estudo em questatildeo

146

Paranaacute nos municiacutepios de Guaiacutera e Palmas Trata-se precisamente das duas

comunidades quilombolas que haviam passado pela produccedilatildeo de um primeiro

relatoacuterio antropoloacutegico fruto do convecircnio do INCRA com a UNIOESTE cujos

resultados foram recusados tanto pelo oacutergatildeo como pelas comunidades pesquisadas

O histoacuterico de conflitos em Guaiacutera gerou questionamentos quanto aos riscos

a que os pesquisadores envolvidos na elaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico

e os proacuteprios quilombolas poderiam estar expostos Assim foram pensadas

estrateacutegias para evitar novas situaccedilotildees de animosidade Para que aceitassem passar

por um novo momento de pesquisa os quilombolas exigiram que o INCRA garantisse

a seguranccedila dos membros da comunidade jaacute que se sentiram desprotegidos e

vulneraacuteveis no conflito desencadeado pelo primeiro relatoacuterio Uma das estrateacutegias foi

a realizaccedilatildeo de uma audiecircncia puacuteblica convocada pelo Ministeacuterio Puacuteblico Federal de

Guaiacutera na qual participaram os representantes quilombolas os agricultores do

Maracaju dos Gauacutechos da Poliacutecia Federal e Militar do Sindicato Patronal Rural de

Guaiacutera do INCRA da empresa Terra Ambiental da Casa Civil do Estado do Paranaacute

e da Federaccedilatildeo da Agricultura do Estado do Paranaacute De acordo com o segundo

relatoacuterio antropoloacutegico

O objetivo da reuniatildeo foi tornar puacuteblico o reiniacutecio do processo e garantir que fosse realizado de forma paciacutefica explicitando os procedimentos legais que envolvem a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do qual o Relatoacuterio Antropoloacutegico ora apresentado constitui apenas a primeira etapa Avaliamos que natildeo obstante os intensos questionamentos realizados por parte dos agricultores na audiecircncia que durou cerca de 5 horas a mesma teve um resultado extremamente produtivo uma vez que foi possiacutevel agrave equipe teacutecnica realizar suas atividades ao longo dos meses subsequentes sem interferecircncia de agentes externos ou ameaccedila Destacamos apenas que houve dificuldade em dialogar com pessoas vizinhas agrave comunidade sobre o processo pois os conflitos geraram muita desconfianccedila e temor (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 760 [p 67])

Deste modo o segundo estudo natildeo poderia desconsiderar todo este contexto

preacutevio de relaccedilotildees externas e tambeacutem o proacuteprio conteuacutedo levantado pela primeira

pesquisa sobre a qual os autores do segundo relatoacuterio antropoloacutegico avaliam

A forma como o processo foi conduzido pelos pesquisadores da Unioeste foi desaprovada pelas lideranccedilas da comunidade que atribuem parte dos conflitos decorrentes desse primeiro processo de elaboraccedilatildeo do RTID agrave conduccedilatildeo da pesquisa antropoloacutegica A reabertura do processo e a contrataccedilatildeo de nova equipe multidisciplinar foi recebida com alegria pela comunidade poreacutem natildeo sem receio dado a experiecircncia anterior

147

(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701 [p 08])

A repercussatildeo do questionamento sobre a identidade do grupo pode ser

percebida tambeacutem na dissertaccedilatildeo elaborada em 2012 por Claacuteudia Hoffmann que

versa sobre a comunidade quilombola de Guaiacutera no acircmbito do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Sociedade Cultura e Fronteiras da UNIOESTE Mesmo a autora

fazendo criacuteticas ao primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo e agrave situaccedilatildeo de conflito que

se seguiu ela afirma ao longo do texto que optou por natildeo os denominar como

ldquoquilombolasrdquo porque ainda natildeo havia ocorrido a ldquodemarcaccedilatildeo de suas terrasrdquo

preferindo entatildeo referir-se a eles como ldquointegrantes da comunidade negrardquo

(HOFFMANN 2012 p 14-15) Questionou deste modo a autoidentificaccedilatildeo do grupo

como se esta soacute fosse legiacutetima em consequecircncia do reconhecimento territorial oficial

por parte do Estado Interessante observar no entanto que a autora na mesma

dissertaccedilatildeo natildeo hesitou em denominar a comunidade de Joatildeo Suraacute localizada no

municiacutepio de AdrianoacutepolisPR como ldquoComunidade Remanescente de Quilombo Joatildeo

Suraacuterdquo (HOFFMANN 2012 p 40) embora este grupo tambeacutem natildeo tenha sido titulado

como territoacuterio quilombola pelo INCRA Esta diferenccedila de posicionamento pode ser

decorrente de seu desconhecimento do tracircmite do procedimento da comunidade de

Joatildeo Suraacute no INCRA ou talvez ter surgido devido ao fato de este grupo se encaixar

no modelo de ldquoquilombo tiacutepicordquo bem mais do que o grupo de GuaiacuteraPR e natildeo ter tido

a sua identidade questionada oficialmente

Para lidar com os questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e suas

repercussotildees a pesquisa para elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico como

nos referimos acima buscou dar suporte agraves referecircncias da memoacuteria coletiva do grupo

em GuaiacuteraPR sobre a vida de seus antepassados em Minas Gerais e o processo de

migraccedilatildeo ateacute o Paranaacute A versatildeo final do relatoacuterio com cento e trinta e quatro

paacuteginas127 foi estruturada com as seguintes partes

(1) ldquoIntroduccedilatildeo e definiccedilatildeo dos conceitosrdquo fazem uma leitura densa sobre o

desenvolvimento da interpretaccedilatildeo teoacuterica sobre o conceito de quilombo reforccedilando a

importacircncia da ressemantizaccedilatildeo do termo a partir da introduccedilatildeo do artigo 68 do ADCT

na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 para abranger o novo contexto de emergecircncia

127 Interessante observar que ambos os relatoacuterios apresentam o mesmo nuacutemero de paacuteginas

148

identitaacuteria das comunidades quilombolas no presente Destacam tambeacutem a

importacircncia da incorporaccedilatildeo do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo trazido pelo Decreto Federal

48872003 e finalizam com uma anaacutelise criacutetica da efetivaccedilatildeo dos direitos territoriais

das comunidades quilombolas que tem ocorrido em uma velocidade muito aqueacutem da

necessaacuteria

(2) ldquoCaracterizaccedilatildeo do municiacutepiordquo apresentam o histoacuterico de ocupaccedilatildeo e

colonizaccedilatildeo da regiatildeo desde meados do seacuteculo XIX e o contexto de criaccedilatildeo do

municiacutepio de Guaiacutera a partir do empreendimento da empresa Matte Laranjeira no

local Destacam tambeacutem como nas deacutecadas de 1970 e 1980 houve uma inversatildeo na

proporccedilatildeo de habitantes das aacutereas rurais e urbanas do municiacutepio chegando a uma

proporccedilatildeo de 80 da populaccedilatildeo na aacuterea urbana no ano 2000 processo que teve forte

impacto na comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

(3) ldquoHistoacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriacordquo abordam os dados

da pesquisa realizada em MG demonstrando os laccedilos de memoacuteria e indicativos de

possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a comunidade quilombola de GuaiacuteraPR e ldquoas

comunidades quilombolas migrantes do Jequitinhonha ndash MGrdquo assim como uma

anaacutelise mais especiacutefica sobre a trajetoacuteria de migraccedilatildeo de seu Manoel Ciriaco

Destacam tambeacutem o fato de a migraccedilatildeo jaacute estar presente nas dinacircmicas das famiacutelias

negras na regiatildeo de origem do grupo Estes processos migratoacuterios ocorriam em uma

escala local de circulaccedilatildeo das famiacutelias que viviam em lapas (cavernas) de pedra e

mantinham sua autonomia com poucos recursos o que gerava uma significativa

mobilidade territorial Apontam como entre os seacuteculos XIX e XX havia uma

importante produccedilatildeo local de queijo cachaccedila milho carne e outros alimentos que

visava o abastecimento de Diamantina principal centro minerador da regiatildeo As

famiacutelias de ex-escravos aleacutem do trabalho com o garimpo mantinham uma produccedilatildeo

de modo autocircnomo para o autoconsumo e tambeacutem para este abastecimento externo

atraveacutes da atividade tropeira Nas deacutecadas de 1950 e 1960 muitas destas famiacutelias

foram compelidas a migrar por conta do processo de modernizaccedilatildeo e pressatildeo sobre

as terras camponesas na regiatildeo

(4) ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo analisam como o

casamento preferencial a partir de uma loacutegica endogacircmica ndash tabu do lsquooutcestrsquo ou

seja do casamento fora do grupo ndash jaacute era uma caracteriacutestica presente desde MG e

se constituiu como importante dinacircmica para a manutenccedilatildeo e coesatildeo do grupo em

149

GuaiacuteraPR Os autores propotildeem entatildeo uma anaacutelise do processo de migraccedilatildeo como

mecanismo necessaacuterio para a manutenccedilatildeo das famiacutelias em contraste com a anaacutelise

anterior do primeiro relatoacuterio que entendia a migraccedilatildeo como elemento

descaracterizador da identidade quilombola do grupo Descrevem ainda os aspectos

da religiosidade e os procedimentos terapecircuticos utilizados pelos membros da

comunidade finalizando este capiacutetulo com uma anaacutelise do processo de

reconhecimento do direito quilombola e dos conflitos dele decorrentes

(5) ldquoA terra as plantas e a produccedilatildeordquo apresentam uma anaacutelise de aspectos

ambientais e agronocircmicos da comunidade

(6) ldquoProposta de delimitaccedilatildeo da comunidade remanescente de quilombo

Manoel Ciriaco dos Santos em que apresentam uma proposta de territoacuterio quilombola

como base nos dados da pesquisa realizada diversamente do primeiro relatoacuterio que

afirmava natildeo haver territoacuterio quilombola a ser indicado

(7) Referecircncias bibliograacuteficas e anexos

O caminho argumentativo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico estruturou-se

por meio da fundamentaccedilatildeo histoacuterica das ldquomemoacuterias mineirasrdquo do grupo quilombola

em GuaiacuteraPR Apontam assim para os ldquopotenciais elos de parentesco com

comunidades quilombolas de Minas Geraisrdquo bem como para os ldquodados histoacutericos

sobre origens e dispersotildees geograacuteficasrdquo das comunidades quilombolas da regiatildeo

mineira e suas ldquodinacircmicas locais de migraccedilatildeordquo A significativa presenccedila da

argumentaccedilatildeo histoacuterica neste relatoacuterio estaacute relacionada possivelmente ao contexto de

produccedilatildeo da pesquisa realizada na sequecircncia de um outro relatoacuterio antropoloacutegico que

rejeitava a legitimidade da identidade e da reivindicaccedilatildeo territorial do grupo

precisamente por conta da suposta impossibilidade de vinculaacute-los a uma

ancestralidade quilombola Assim os autores do segundo relatoacuterio buscam

demonstrar como o trabalho de campo realizado em MG proporcionou fontes ldquoque

corroboram e possibilitam aprofundar os elementos apontados pelas famiacutelias

quilombolas de Manoel Ciriaco sobre suas origens mineirasrdquo (Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701-702 [p 08-09] 721

[p28])

Esta busca de comprovaccedilatildeo histoacuterica natildeo eacute como jaacute abordamos

anteriormente um requisito legal conforme a definiccedilatildeo atual dada pelo Decreto

Federal 4887 de 2003 que regulamentou o processo de titulaccedilatildeo de territoacuterios

150

quilombolas A opccedilatildeo do decreto em atribuir ao relatoacuterio antropoloacutegico ndash e natildeo a um

ldquorelatoacuterio histoacutericordquo ndash a responsabilidade de ser um dos estudos (o primeiro deles) que

subsidia o tracircmite de acesso a direitos territoriais aponta para um direcionamento que

perceba como o grupo elabora no presente suas narrativas sobre ldquoa resistecircncia agrave

opressatildeo histoacuterica sofridardquo a partir da ldquopresunccedilatildeo da ancestralidade negrardquo nos

termos do referido decreto o que natildeo depende de uma noccedilatildeo restrita de comprovaccedilatildeo

da ascendecircncia do grupo com negros escravizados no passado No entanto apesar

de formalmente este relatoacuterio ter caraacuteter antropoloacutegico as precauccedilotildees adotadas pelo

pesquisador em relaccedilatildeo a possiacuteveis contestaccedilotildees e contralaudos dentro do

procedimento administrativo no INCRA podem fazer com que haja um predomiacutenio de

argumentos de ordem histoacuterica os quais parecem ser mais persuasivos para os

diferentes atores implicados na rede que de dentro do Estado em um dado momento

de estabilizaccedilatildeo iraacute consolidar o territoacuterio do grupo (RIBEIRO CALABRIA 2013)

Dentre estes atores haacute um predomiacutenio da loacutegica juriacutedica a partir da qual o

relatoacuterio antropoloacutegico pode ser interpretado como prova pericial o que cria uma

expectativa da produccedilatildeo por parte da antropologia de um conhecimento cientiacutefico

objetivo (OrsquoDWYER 2009 p 177) Nesta relaccedilatildeo entre direito e antropologia o

conhecimento histoacuterico entendido numa chave positivista e factualista eacute convocado

a oferecer provas comprovatoacuterias que serviriam para atender as expectativas do

campo juriacutedico Opera-se desta maneira a partir de uma certa linguagem de

legalidade que estabelece linhas de interpretaccedilatildeo do passado e de clivagem do social

e do cultural gerando uma racionalizaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade em um todo

coerente com base em significados e registros de comunicaccedilatildeo preacute-estabelecidos

Faz-se necessaacuterio para tanto o silenciamento do fluxo e da indeterminaccedilatildeo do

passado para que seja possiacutevel uma reduccedilatildeo taacutetica e palataacutevel aos instrumentos

juriacutedicos os quais parecem basear sua legitimidade em uma promessa pragmaacutetica de

criar equivalecircncia para a transaccedilatildeo entre interesses contraacuterios e incomensuraacuteveis

(como no caso de disputas por terras) a partir de um denominador comum Nisto em

parte reside sua hegemonia a despeito de que em si mesmos os criteacuterios juriacutedicos

natildeo satildeo garantidores de igualdade (COMAROFF COMAROFF 2011 p 145-151)

Para que fosse possiacutevel a realizaccedilatildeo da pesquisa e do trabalho de campo na

regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash fundamental para a estrutura narrativa

construiacuteda pelo relatoacuterio ndash algumas estrateacutegias foram adotadas A primeira foi a

151

divulgaccedilatildeo junto agraves organizaccedilotildees e instituiccedilotildees que executam trabalhos com as

comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo de uma mensagem

produzida pela comunidade em conjunto com os pesquisadores Esta mensagem

visou estabelecer contato com as comunidades quilombolas da regiatildeo e solicitou em

nome da lideranccedila do grupo em GuaiacuteraPR apoio para a localizaccedilatildeo dos parentes que

permaneceram em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Prezados Me chamo Adir Rodrigues dos Santos lideranccedila da comunidade quilombola Manoel Ciriaco localizada em Guaiacutera - PR Somos uma comunidade certificada pela Fundaccedilatildeo Palmares e estamos no processo de elaboraccedilatildeo do laudo antropoloacutegico para realizaccedilatildeo nasceram (sic) no municiacutepio de Santo Antonio do Itambeacute em Minas Gerais suas terras eram proacuteximas a um fazendeiro chamado Milton Gonccedilalves em Santo Antonio do Itambeacute No ano de 1981 o filho de seu Manoel Joatildeo Louriano dos Santos casado com Maria Conceiccedilatildeo das Dores e seu primo Aniacutesio Dioniacutesio de Paula (irmatildeo de Geraldo de Paula ambos filhos de Sebastiatildeo Vicente) vieram para Guaiacutera Paranaacute Manoel Ciriaco chegou em Guaiacutera em 1962 onde nascemos e vivemos ateacute hoje Fazendo pesquisa na internet encontramos no site httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_lista_comunidadeshtml as comunidades de Mata dos Crioulos Botafogo e Martins localizadas no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute e as comunidades Ausente Bauacute Comunidade do Ocirc Ribeiratildeo dos Porcos e Rua Vila Nova no municiacutepio do Serro meu pai tinha memoacuteria desses dois municiacutepios Acreditamos que nessas comunidades haacute ancestrais nossos encontraacute-los contribuiria muito para nossa luta pelo reconhecimento e titulaccedilatildeo Caso vocecircs tenham maiores informaccedilotildees sobre essas comunidades relatoacuterios jaacute realizados ou qualquer pista que contribua aos nossos estudos pedimos que nos enviem (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 700 [p 07])

A articulaccedilatildeo entre os pesquisadores que elaboravam o relatoacuterio

antropoloacutegico e as comunidades quilombolas da regiatildeo mineira se deu a partir do

contato estabelecido com a equipe de assessoria juriacutedica quilombola que atua dentro

do curso de graduaccedilatildeo em direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Serro (PUC-

Serro) e que realiza haacute mais de cinco anos projetos de extensatildeo com estes grupos128

Este contato possibilitou o acesso de Cassius Cruz historiador da equipe aos

mediadores poliacuteticos das comunidades quilombolas da regiatildeo tornando possiacutevel a

realizaccedilatildeo de trabalho de campo em seis comunidades quilombolas nos municiacutepios

de Serro (ldquoAusentesrdquo ldquoBauacuterdquo ldquoVila Novardquo ldquoQueimadasrdquo e ldquoSanta Cruzrdquo) e de

128 Este campus da PUC estaacute localizado no municiacutepio de Serro que eacute vizinho a Santo Antocircnio do Itambeacute

e funciona como municiacutepio referecircncia por ter um porte maior com 20835 habitantes segundo o censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro Acesso em 230915

152

Diamantina (ldquoMata dos Crioulosrdquo) nos periacuteodos de 05 a 13 de setembro e de 22 a 28

de outubro de 2012 (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do

INCRAPR p 721 [p 28])

Durante a pesquisa de campo foram levantadas possibilidades de viacutenculos de

parentesco entre a comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e o casal

fundador da Comunidade Quilombola Vila Nova Os diagramas de parentesco dos

grupos mineiros bem como fotos e viacutedeos foram enviados para Guaiacutera para que fosse

possiacutevel a identificaccedilatildeo de viacutenculos de parentesco entre as comunidades

No final do mecircs de setembro apresentamos as fotografias viacutedeos e demais informaccedilotildees que conseguimos em Minas Gerais agrave comunidade de Manoel Ciriaco sendo este um momento chave da relaccedilatildeo estabelecida entre os pesquisadores e a comunidade pois se manifestaram muito felizes com os resultados apresentados e por termos conseguido encontrar e registrar informaccedilotildees que eles mesmos conheciam unicamente pela transmissatildeo oral (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 702-703 [p 09-10])

O segundo relatoacuterio argumenta ao longo de todo o capiacutetulo sobre a ldquoHistoacuteria

da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo que a memoacuteria coletiva

existente em Guaiacutera sobre sua regiatildeo de origem pocircde ser respaldada pela pesquisa

realizada em Minas Gerais a partir de elementos comuns ldquoseja com relaccedilatildeo aos

modos de produccedilatildeo habitaccedilatildeo religiosidade quer seja pela descriccedilatildeo de estrateacutegias

matrimoniais dos grupos familiaresrdquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 p 737 [p 44]) Uma das narrativas importantes que compotildee

a memoacuteria do grupo em Guaiacutera diz respeito ao uso provisoacuterio que seus antepassados

fizeram de lapas ou locas de pedra como moradia Como a pesquisa na regiatildeo mineira

pocircde demonstrar esta eacute uma praacutetica cultural mantida ateacute os dias de hoje em

comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo como registrado na atraveacutes

trazida a foto abaixo129 na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos

(DiamantinaMG)

129 A importacircncia da evocaccedilatildeo desta imagem na construccedilatildeo do argumento do segundo relatoacuterio antropoloacutegico parece ser confirmada pela sua utilizaccedilatildeo tambeacutem na capa do documento

153

FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 726 [p 33]

Esta praacutetica parece estar relacionada segundo a anaacutelise do relatoacuterio agrave

situaccedilatildeo de precariedade em que viviam e agrave criatividade necessaacuteria para sobreviver a

partir do que a natureza lhes oferecia no periacuteodo escravagista e poacutes-escravagista Os

autores apontam assim como a utilizaccedilatildeo de lapas se insere em dinacircmicas de busca

por autonomia e liberdade em contraste com a experiecircncia de descendentes de

escravos que permaneceram agregados agraves fazendas formando comunidades

quilombolas que se caracterizam por uma baixa mobilidade A estrateacutegia de

mobilidade em um mesmo contexto regional associada a diferentes modos de

trabalho e ocupaccedilatildeo territorial tambeacutem conformaram comunidades quilombolas na

regiatildeo marcadas ldquoainda hoje por fluxos migratoacuterios internos e externos e uma rede

de parentesco que articula diversas dessas comunidadesrdquo (Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 724-725 [p 31 e 32])

A experiecircncia de mobilidade portanto teria significativa importacircncia na

trajetoacuteria de muitas famiacutelias negras que atualmente se reconhecem como quilombolas

na regiatildeo de Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG Esta seria uma das caracteriacutesticas

154

marcantes da continuidade histoacuterica do grupo do Paranaacute com seus antepassados

dessa regiatildeo

A mobilidade espacial destes grupos jaacute tendia ser maior mesmo antes do iniacutecio do processo migratoacuterio que levaria famiacutelias a sair de Minas Gerais pois mantinham uma relaccedilatildeo mais tecircnue e por isso de mais autonomia frente ao contexto regional de arregimentaccedilatildeo de matildeo-de-obra uma vez que faziam das lapas suas moradias natildeo sendo assim dependentes das estruturas das fazendas (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 743 [p 50])

A continuidade histoacuterica estaria presente tambeacutem nessa busca de autonomia

nas relaccedilotildees de trabalho A pesquisa indicou a existecircncia de um padratildeo seguido por

geraccedilotildees e expresso na estrateacutegia atual dos membros da comunidade em Guaiacutera de

complementarem a renda obtida no proacuteprio territoacuterio com relaccedilotildees de trabalho

estruturadas fora da loacutegica patratildeo-empregado como diaristas arrendataacuterios ou

empreiteiros Esta opccedilatildeo garantiria a manutenccedilatildeo de autonomia ldquouma vez que natildeo

se tornam dependentes de patrotildees especiacuteficosrdquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 745 [p 52])

Dentre as estrateacutegias identificadas pela pesquisa como aquelas que apontam

para a manutenccedilatildeo de referecircncias comuns com as comunidades quilombolas da

regiatildeo mineira estaacute segundo o relatoacuterio a continuidade da tendecircncia endogacircmica

que analisam atraveacutes de vaacuterios excertos genealoacutegicos apresentados no capiacutetulo

ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo A importacircncia desta estrateacutegia

estaria na possibilidade de manutenccedilatildeo do sentimento de pertencimento a uma

origem comum que cria identidade e memoacuteria coletiva permitindo a continuidade das

dinacircmicas de organizaccedilatildeo social do grupo mesmo com a dispersatildeo territorial

Reforccedilada pelo contexto socialmente perifeacuterico e de preconceito racial no qual

o grupo se inseriu na regiatildeo de GuaiacuteraPR esta tendecircncia endogacircmica como

argumentam os autores eacute precedente e contribui para o fortalecimento de alianccedilas

intra-familiares enquanto heranccedila socioloacutegica que reforccedilou as fronteiras e a

capacidade de manutenccedilatildeo da coesatildeo social do grupo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 738 [p 45]) Deste modo esta capacidade

de manutenccedilatildeo de uma coletividade natildeo se baseia apenas na aacuterea que lograram

adquirir e que ocupam haacute sessenta anos mas tambeacutem decorre das relaccedilotildees de

parentesco e das formas proacuteprias de organizaccedilatildeo social (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 736 [p 43])

155

As relaccedilotildees de parentesco atualmente estendem-se por uma rede que

transcende os limites territoriais desta comunidade Esta rede ampliada se expandiu

com os deslocamentos de famiacutelias que deixaram a comunidade em GuaiacuteraPR nas

uacuteltimas deacutecadas em decorrecircncia da diminuiccedilatildeo das aacutereas e das oportunidades de

trabalho na regiatildeo ligadas ao processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura A estrutura do

segundo relatoacuterio aborda assim como aleacutem da importacircncia de uma territorialidade

especiacutefica construiacuteda em GuaiacuteraPR haacute uma visatildeo sobre os viacutenculos de

pertencimento ao grupo que se abre por esta rede de parentes (que estatildeo fora do

territoacuterio e que podem retornar com o processo de titulaccedilatildeo) o que gera uma

percepccedilatildeo de territorialidade mais ampla perpassada por referecircncias de memoacuteria

sobre a regiatildeo de origem do grupo no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Neste sentido a literatura antropoloacutegica recente tem tematizado sobre a natildeo

exclusividade da relaccedilatildeo territorial enquanto criteacuterio de identificaccedilatildeo de grupos

quilombolas jaacute que ldquoo conceito de quilombo natildeo pode ser territorial apenas ou fixado

em um uacutenico lugar geograficamente definido historicamente lsquodocumentadorsquo e

arqueologicamente lsquoescavadorsquordquo (ALMEIDA 2011 p 45) A situaccedilatildeo de deslocamento

caracteriacutestica deste grupo de GuaiacuteraPR mas tambeacutem os outros casos de expulsatildeo e

de reassentamento demonstram como ldquomais do que uma exclusiva dependecircncia da

terra o quilombo faz da terra a metaacutefora que possibilita a continuidade do grupo ()rdquo

(LEITE FERNANDES 2006 p 11)

O segundo relatoacuterio corrobora esta leitura antropoloacutegica que natildeo se limita a

uma noccedilatildeo de territorialidade fixa para reconhecer direitos territoriais agraves comunidades

quilombolas Dessa forma a proposta de delimitaccedilatildeo territorial apresentada e

aprovada pela comunidade atraveacutes de discussatildeo em reuniatildeo especiacutefica indica

a) A recomposiccedilatildeo dos lotes adquiridos por Manoel Ciriaco dos Santos (aacuterea

de 102 alqueires paulistas dos quais 142 alq foi vendido e 45 estatildeo

arrendados atualmente) e por Geraldo dos Santos (51 alq paulistas

vendidos em 1993) a serem titulados enquanto territoacuterio quilombola

b) A aquisiccedilatildeo pelo INCRA de uma aacuterea complementar de aproximadamente

35 alqueires paulistas que eacute justificada devido ldquoagraves formas de relaccedilatildeo de

trabalho tradicionais da comunidade que diminuem com a mecanizaccedilatildeo

agriacutecola aos conflitos gerados pelo processo que inviabilizaram o acesso

156

a trabalhos na regiatildeo e ao consequente crescimento do ecircxodo de

membros da comunidade do territoacuteriordquo (Procedimento Administrativo

542000010752008-46 do INCRAPR p 802 [p 109]) Outro motivo para

a aquisiccedilatildeo complementar eacute a possibilidade de retorno de em meacutedia vinte

e seis famiacutelias as quais atualmente estatildeo vivendo em condiccedilotildees precaacuterias

em diferentes cidades Este eacute um dado referente ao nuacutemero aproximado

de famiacutelias que deixaram o territoacuterio em Guaiacutera e que segundo as

lideranccedilas manteacutem viacutenculos com a comunidade e retornariam caso

houvesse possibilidade O nuacutemero de trinta e trecircs famiacutelias (somando as

sete famiacutelias residentes na comunidade na eacutepoca da elaboraccedilatildeo do

relatoacuterio mais as vintes e seis com previsatildeo de retorno) embasou o caacutelculo

desta aacuterea adicional tendo tambeacutem como referecircncia os criteacuterios

agronocircmicos para a estimativa da necessidade de acreacutescimo de aacuterea de

cultivo que possa viabilizar a manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo fiacutesica e econocircmica

da comunidade

De acordo com a avaliaccedilatildeo do INCRA o segundo relatoacuterio antropoloacutegico

cumpriu com seus objetivos e caracterizou a comunidade e o territoacuterio ao qual o grupo

tem direito a partir de dados etnograacuteficos e histoacutericos suficientes segundo a Instruccedilatildeo

Normativa 592007 atualmente em vigor Enquanto a aacuterea do territoacuterio quilombola que

seraacute titulada corresponde aos dois lotes acima referidos a aacuterea complementar seraacute

obtida por meio de desapropriaccedilatildeo por interesse social conforme previsto na Lei

41321962 ficando a comunidade com o usufruto atraveacutes de Contrato de Concessatildeo

de Direito Real de Uso (CCDRU) O tamanho da aacuterea adicional necessaacuteria apesar de

jaacute previamente indicado no relatoacuterio dependeraacute conforme aponta o parecer

conclusivo SR(09)F4Nordm 0012014 do INCRAPR130 do nuacutemero de famiacutelias

cadastradas pelo INCRA que permaneceratildeo no territoacuterio bem como da discussatildeo

sobre os tipos de produccedilatildeo agriacutecola que seratildeo por elas desenvolvidas

Atualmente haacute um importante viacutenculo com as aacutereas adquiridas por Manoel

Ciriaco e Geraldo dos Santos apoacutes deacutecadas de ocupaccedilatildeo que embasa uma

130 De acordo com a ementa do documento trata-se do ldquoParecer conclusivo do Serviccedilo de

Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas do INCRAPR sobre o Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos com base na IN 572009rdquo (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 1062-1067)

157

reivindicaccedilatildeo especiacutefica pelo retorno do territoacuterio ao tamanho da aacuterea inicial a qual

somava quinze alqueires e da qual soacute mantiveram em torno de 50 Aleacutem desta aacuterea

de ocupaccedilatildeo efetiva a possibilidade de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio com a compra pelo

INCRA de uma nova aacuterea ndash com a qual o grupo quilombola natildeo possui uma relaccedilatildeo

preacutevia ndash demonstra a especificidade deste caso e a necessidade portanto de que

houvesse um procedimento diferenciado por parte deste oacutergatildeo federal

A demanda por um procedimento diferenciado de regularizaccedilatildeo territorial no

caso de GuaiacuteraPR foi necessaacuteria tendo em vista que a experiecircncia de ldquoresistecircncia agrave

opressatildeo histoacuterica sofridardquo organizou-se por meio da realizaccedilatildeo de deslocamentos

Tais movimentos visavam a concretizaccedilatildeo da autonomia liberdade e melhores

condiccedilotildees de vida para estas famiacutelias dada a insuficiecircncia das aacutereas na regiatildeo de

origem do grupo em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG por meio do acesso a novos

territoacuterios Deste modo percebe-se que a possibilidade de conquista de territoacuterios estaacute

no acircmago deste processo de resistecircncia social e que se em outros casos de grupos

quilombolas a resistecircncia consiste na permanecircncia em um mesmo territoacuterio

tradicional neste caso ela se constituiu pela experiecircncia de deslocamentos

Deve-se levar em conta ainda que estes deslocamentos iniciados em 1956

por estas famiacutelias negras da aacuterea rural de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo

ao municiacutepio de CaiabuSP implicavam em seacuterios riscos tanto no caminho como no

processo de fixaccedilatildeo em um novo lugar onde teriam que encontrar novas

oportunidades de inserccedilatildeo e de trabalho As referecircncias a existecircncia de mais famiacutelias

relacionadas ao nuacutecleo de parentes do casal Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues

apontam para o fato de que esta linha de migraccedilatildeo da regiatildeo de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ateacute a regiatildeo de Presidente PrudenteSP consistia em um movimento mais

amplo como rede de apoio para a migraccedilatildeo de novas famiacutelias No acircmbito deste fluxo

de deslocamentos a busca por direitos da comunidade de GuaiacuteraPR eacute construiacuteda

atualmente a partir da trajetoacuteria de deslocamentos do casal Manoel e Ana mas natildeo

se restringe a este nuacutecleo familiar Eacute principalmente a partir desta rede preacutevia de apoio

que os desafios da migraccedilatildeo puderam ser por eles enfrentados Como mencionado

no primeiro capiacutetulo a referecircncia de Manoel na regiatildeo paulista era seu primo de

primeiro grau Raimundo Constantino que saiu com esposa e filhos de Santo Antocircnio

do Itambeacute em 1949 sete anos antes de Manoel Tais desafios do processo de

158

migraccedilatildeo satildeo ainda mais significativos tendo em vista a existecircncia de contextos que

podem ser hostis para a inserccedilatildeo da populaccedilatildeo negra

Importante para finalizar este capiacutetulo destacar que foi o processo

conturbado de regularizaccedilatildeo territorial e reconhecimento da legitimidade da

reivindicaccedilatildeo identitaacuteria da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que impulsionou

a realizaccedilatildeo de duas viagens de retorno para a regiatildeo de origem do grupo as quais

iremos abordar no capiacutetulo seguinte Com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir

da pesquisa realizada pelo historiador Cassius Cruz na regiatildeo do SerroMG Adir

enquanto lideranccedila da comunidade de Guaiacutera comeccedila a ter expectativas de conhecer

a regiatildeo de origem de sua famiacutelia buscar os parentes com quem perderam o contato

pesquisar mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria de seus antepassados A realizaccedilatildeo

desta pesquisa de mestrado mostrou-se como oportunidade de aprofundar tal

pesquisa a partir dos caminhos apontados pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico tendo

em vista que jaacute havia um primeiro levantamento de dados e contatos na regiatildeo de

origem do grupo

159

3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo

31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo131

Se no primeiro capiacutetulo destacamos a relevacircncia das dinacircmicas de

movimento para a compreensatildeo da emergecircncia identitaacuteria quilombola em GuaiacuteraPR

eacute fundamental neste momento pontuar que a centralidade dos deslocamentos na

trajetoacuteria do grupo natildeo nos levou a recorrer a uma ideia de ldquomobilidaderdquo132 pois este

conceito poderia sugerir que haacute uma constacircncia ou uma facilidade em se realizar

deslocamentos por parte dos membros do grupo o que de fato natildeo ocorre Para que

se consiga visualizar como a trajetoacuteria do grupo eacute perpassada pelo movimento faz-se

necessaacuteria uma perspectiva de longa duraccedilatildeo considerando que no presente como

observei durante o trabalho de campo haacute uma possibilidade muito limitada de

deslocamentos em decorrecircncia das dificuldades financeiras Viajar para visitar os

parentes eacute sempre um plano mas dificilmente sobram recursos para concretizaacute-lo

A dificuldade de deslocamento comeccedila inclusive dentro do proacuteprio municiacutepio

pois os quilombolas natildeo tecircm acesso a transporte puacuteblico que chegue proacuteximo agrave

comunidade e ateacute 2012 contavam apenas com um carro utilitaacuterio antigo em uma

comunidade com em meacutedia sete famiacutelias Na eacutepoca em que eu atuei como assessora

juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute pude contribuir para o

encaminhamento de um pedido realizado pela Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel

Ciriaco dos Santos (ACONEMA) junto agrave Poliacutecia Federal de Foz do Iguaccedilu133 visando

agrave doaccedilatildeo de um veiacuteculo para a associaccedilatildeo Tal pedido foi embasado na necessidade

da comunidade de dispor de meios para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos

abrangidas pelo contrato do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA)134

131 Tiacutetulo homocircnimo ao trabalho de Oliveira Filho ldquoA Viagem da Volta reelaboraccedilatildeo cultural e horizonte

poliacutetico dos povos indiacutegenas do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1994) 132 Este termo eacute utilizado no segundo relatoacuterio antropoloacutegico para destacar a importacircncia da presenccedila de deslocamentos na trajetoacuteria histoacuterica do grupo 133 As ldquoentidades sem fins lucrativosrdquo podem solicitar doaccedilotildees de mercadorias apreendidas pela Poliacutecia

Federal devendo constar na solicitaccedilatildeo entre outros requisitos formais a justificativa e a finalidade do pedido 134 Dentre as entidades que atualmente recebem a doaccedilatildeo de alimentos conforme o contrato que a

comunidade quilombola eacute responsaacutevel destaca-se como mencionado no primeiro capiacutetulo treze tekohas (aldeias avaacute-guaranis) de Guaiacutera e do municiacutepio vizinho Terra Roxa Esta parceria com os grupos indiacutegenas eacute fruto da articulaccedilatildeo direta entre Adir e os caciques

160

Com o recebimento da doaccedilatildeo de uma camionete ldquosilveradordquo com trecircs

lugares na frente e uma carroceria ampla e fechada a execuccedilatildeo do PAA na

comunidade foi viabilizada em termos concretos com condiccedilotildees para o transporte da

produccedilatildeo agriacutecola o que era uma demanda muito urgente para as famiacutelias

quilombolas Esta poliacutetica puacuteblica de seguranccedila alimentar se constituiu como uma

importante fonte de renda na comunidade nos uacuteltimos anos mesmo tendo em vista a

demora na realizaccedilatildeo dos pagamentos por parte do governo que natildeo lhes garante

uma renda mensal135 Neste contexto os programas de assistecircncia e previdecircncia

social como aposentadoria e Bolsa Famiacutelia136 proporcionam uma complementaccedilatildeo

econocircmica considerada pelos quilombolas como muito necessaacuteria Os quilombolas

realizam tambeacutem a comercializaccedilatildeo de seus produtos como verduras legumes

raiacutezes frutos temperos animais de pequeno porte e tambeacutem milho e soja

Atualmente trecircs pessoas trabalham fora da comunidade a esposa e a enteada de

Adir na lanchonete do posto de gasolina localizado na rodovia em frente agrave entrada

para o bairro rural Maracaju dos Gauacutechos e Luciano ndash casado com Cleusimar filha

de Zeacute Maria ndash que tambeacutem trabalha de auxiliar de limpeza no mesmo posto

O territoacuterio atualmente de 85 alqueires eacute considerado por eles como

insuficiente para as sete famiacutelias que tiram seu sustento da produccedilatildeo agriacutecola

Segundo Adir o ideal seria cinco alqueires por famiacutelia no miacutenimo Uma das principais

demandas somada agrave necessidade de ampliaccedilatildeo do territoacuterio eacute o acesso a poliacuteticas

puacuteblicas que possibilitem uma fonte de renda gerada na proacutepria comunidade

Pleiteiam assim a construccedilatildeo de um barracatildeo onde sonham com a instalaccedilatildeo por

exemplo de uma cozinha comunitaacuteria137 Deve-se levar em conta ainda que a

135 O limite anual do valor de repasse do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social oacutergatildeo responsaacutevel pelo

PAA na modalidade de ldquoDoaccedilatildeo Simultacircneardquo ndash acessada pela comunidade quilombola ndash eacute de ateacute R$ 65 mil por ano por agricultor 136 O ldquoBolsa Famiacuteliardquo segundo a paacutegina virtual do Governo Federal ldquoeacute um programa de transferecircncia

direta de renda direcionado agraves famiacutelias em situaccedilatildeo de pobreza e extrema pobreza em todo o Paiacutes de modo que consigam superar a situaccedilatildeo de vulnerabilidade e pobrezardquo Disponiacutevel em httpwwwcaixagovbrprogramas-sociaisbolsa-familiaPaginas Acesso em 041115 137 A solicitaccedilatildeo da comunidade de que a prefeitura construa este barracatildeo foi questionada pela

administraccedilatildeo municipal em decorrecircncia de a aacuterea da comunidade consistir em uma propriedade privada e natildeo ter sido realizada ainda a titulaccedilatildeo quilombola conforme me relatou Adir No entanto de acordo com a Portaria Interministerial (Ministeacuterio do Planejamento Orccedilamento e Gestatildeo Ministeacuterio da Fazenda e Controladoria Geral da Uniatildeo) nordm 507 de 2011 artigo 39 sect2ordm inciso III aliacutenea ldquoardquo o municiacutepio tem respaldo para a construccedilatildeo de uma benfeitoria ldquopor interesse puacuteblico ou socialrdquo na comunidade que eacute certificada pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares e que estaacute em processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo INCRA A referida portaria estaacute disponiacutevel em httpswwwconveniosgovbrportalarquivos1_Portaria_Interministerial_507_24_11_2011_e_alteracoes_Dezembro_de_2013pdf Acesso em 091015

161

situaccedilatildeo econocircmica da comunidade se agravou muito apoacutes o conflito com os vizinhos

em decorrecircncia do qual natildeo satildeo mais contratados para trabalharem nas propriedades

do entorno atividade que haacute muitos anos realizavam na regiatildeo

Com esta breve descriccedilatildeo das dificuldades de geraccedilatildeo de renda das famiacutelias

quilombolas eacute possiacutevel compreender as limitaccedilotildees que encontram para se

deslocarem mesmo que seja para visitas a parentes que moram proacuteximos De acordo

com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido pela empresa Terra Ambiental

() satildeo no miacutenimo 43 indiviacuteduos que possuem relaccedilatildeo de parentesco direto com os atuais moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo Manoel Ciriaco dos Santos e vivem em cidades localizadas em um raio de no maacuteximo 200 quilocircmetros sendo que desses 35 vivem em um raio inferior a 100 quilocircmetros da comunidade Segue uma relaccedilatildeo dos municiacutepios e nuacutemero de indiviacuteduos cujos viacutenculos de parentesco foram identificados

(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 751[p 58])

Dentro da rede ampliada de parentesco138 dos quilombolas de GuaiacuteraPR um

local muito significativo e mais afastado em relaccedilatildeo agrave comunidade eacute a regiatildeo de

Presidente PrudenteSP por onde as famiacutelias que saiacuteram de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG passaram tendo vivido no municiacutepio de CaiabuSP entre as deacutecadas de

19501960 antes de se fixarem em GuaiacuteraPR e para onde retornaram os irmatildeos mais

velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) O municiacutepio de

Presidente PrudenteSP fica a 448 km de Guaiacutera e o trajeto demanda um investimento

de em meacutedia duzentos reais para passagens rodoviaacuterias de ida e volta por pessoa

Se este trajeto eacute de acesso difiacutecil para os quilombolas de GuaiacuteraPR o que

falar entatildeo do anseio reforccedilado pelos questionamentos colocados pelo conturbado

processo de titulaccedilatildeo em tracircmite no INCRA de ir ateacute Minas Gerais para que

138 Quando nos referimos a parentesco natildeo estamos falando apenas do parentesco genealoacutegico mas

em um sentido mais amplo que inclui relaccedilotildees por exemplo de compadrio (ARANTES 1975)

Municiacutepio Nordm Indiviacuteduos

Terra Roxa- PR 22

Assis Chateaubriand- PR 6

Satildeo Jorge do Patrociacutenio - PR 4

Guaraniaccedilu ndash PR 3

Catanduvas- PR 3

Guaiacutera- PR 2

Eldorado ndash MS 2

Cascavel- PR 1

162

pudessem conhecer suas raiacutezes e reencontrar seus parentes mineiros Somando

apenas os valores das passagens rodoviaacuterias para poder ir e voltar de GuaiacuteraPR a

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de ocircnibus percorrendo em meacutedia 3354 quilocircmetros por

terra (duas vezes o percurso de 1677 km139) o custo gira em torno atualmente de

setecentos reais por pessoa

Assim a contradiccedilatildeo apontada acima entre os deslocamentos que marcaram

a trajetoacuteria do grupo nos uacuteltimos sessenta anos e a condiccedilatildeo de difiacutecil mobilidade das

geraccedilotildees atuais tem uma chave de interpretaccedilatildeo comum a posiccedilatildeo socioeconocircmica

perifeacuterica do grupo A mesma condiccedilatildeo que os imobiliza por natildeo disporem atualmente

de recursos financeiros que permitam a realizaccedilatildeo de viagens eacute parte significativa

das causas que provocaram os movimentos de deslocamento das famiacutelias em busca

de melhores condiccedilotildees de vida no passado

Importante pontuar que se os deslocamentos que marcam a trajetoacuteria histoacuterica

da famiacutelia criaram por um lado uma situaccedilatildeo de inviabilidade do reencontro entre

parentes ndash jaacute que os que foram para GuaiacuteraPR perderam nas uacuteltimas deacutecadas

qualquer contato com os parentes que se mantiveram em MG ndash por outro lado tal

interrupccedilatildeo do contato natildeo significou uma ruptura de viacutenculos (GALIZONI 2002)140

Com base nos encontros proporcionados pelas duas viagens de retorno para Serro e

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG realizadas no acircmbito desta pesquisa em marccedilo e em

junho de 2015 foi possiacutevel perceber que houve uma atualizaccedilatildeo significativa dos laccedilos

e viacutenculos afetivos que estavam antes latentes

Natildeo soacute os viacutenculos foram mantidos mas como analisado pelo segundo

relatoacuterio antropoloacutegico houve um processo de permanecircncia de referecircncias culturais e

de memoacuterias comuns que continuaram mesmo agrave distacircncia e sem contatos

conectando os quilombolas de Guaiacutera a seus parentes em Minas Gerais Neste

sentido importante mencionar a contribuiccedilatildeo de Garcia Jr (1989) em sua pesquisa

com migrantes que saiacuteam da Paraiacuteba para o Sul na qual reflete sobre como tais

deslocamentos natildeo implicaram no abandono de suas formas de organizaccedilatildeo social

139 Este caacutelculo foi feito com base no trajeto que pode ser percorrido de ocircnibus conforme experiecircncia

da viagem realizada em marccedilo de 2015 de GuaiacuteraPR para UmuaramaPR de laacute para Presidente PrudenteSP ateacute Belo HorizonteMG Na capital mineira toma-se um ocircnibus para SerroMG e de onde

enfim chega-se em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG 140 Em seu estudo na regiatildeo do Alto Vale do Jequitinhonha muito proacutexima a regiatildeo aqui em questatildeo

Galizoni aponta como a migraccedilatildeo eacute um processo familiar e soacute muito raramente ocorre as pessoas que saiacuteram de sua regiatildeo de origem ldquorompem de vez com a famiacuteliardquo (GALIZONI 2002 p 569)

163

anteriores mas ao contraacuterio na sua manutenccedilatildeo com o objetivo de retorno para suas

aacutereas de origem no Nordeste141

No acircmbito deste processo de manutenccedilatildeo de viacutenculos ndash e do desejo de uma

reconexatildeo natildeo soacute simboacutelica e mnemocircnica mas tambeacutem fiacutesica com este lugar de

origem e com os parentes que laacute ficaram ndash a possibilidade de organizar a viagem de

volta que percorresse a trajetoacuteria de deslocamentos das famiacutelias surgiu das minhas

conversas com Adir durante o trabalho de campo em GuaiacuteraPR Ele havia

comentado comigo em vaacuterias ocasiotildees como gostaria de ter tido apoio por parte do

INCRA para acompanhar Cassius na pesquisa realizada em Minas Gerais durante a

elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico

Esta busca pelo contato com pessoas que compartilham a mesma

ldquocomunidade de lembranccedilardquo (HALBWACHS 2003) protagonizada por Adir aponta

para dois aspectos complementares do fenocircmeno eacutetnico a ldquoluta por reconhecimentordquo

e a ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo142 (ARRUTI 2006 p 44) No que tange agrave noccedilatildeo de

ldquoluta por reconhecimentordquo o que estaacute em questatildeo eacute a proacutepria autoidentificaccedilatildeo do

grupo como quilombola ldquopor meio da experenciaccedilatildeo comum de um desrespeito tiacutepico

e de sua traduccedilatildeo em uma identidade coletivardquo (ARRUTI 2006) As viagens de retorno

a Minas Gerais trouxeram agrave tona a compreensatildeo de que o caraacuteter coletivo de

desrespeito agraves famiacutelias que marca a reivindicaccedilatildeo do grupo em GuaiacuteraPR como

coletividade especiacutefica reflete-se na situaccedilatildeo de separaccedilatildeo e de dispersatildeo dos

parentes Trata-se de um sofrimento gerado pela impossibilidade de manutenccedilatildeo das

famiacutelias na regiatildeo de origem e de reproduccedilatildeo do modo de vida camponecircs enquanto

populaccedilatildeo negra que natildeo teve seu processo de cidadania garantido de forma plena

Esta ldquocomunidade de lembranccedilardquo abrange portanto uma noccedilatildeo mais ampla de

pertencimento por parte dos membros da comunidade quilombola de Guaiacutera no qual

141 Este tambeacutem eacute o caso do processo de mobilidade do povo indiacutegena Pankararu de Pernambuco

analisado por Arruti no qual grupos de famiacutelias transferiram seu local de morada por tempo indeterminado em especial para a cidade de Satildeo Paulo na favela Real Parque no bairro do Morumbi ldquoonde se desenha uma espeacutecie de reterritorializaccedilatildeo Pankararurdquo Neste caso a mediaccedilatildeo entre territoacuterio e identidade fruto da abstraccedilatildeo dos ldquodireitosrdquo gerada na modulaccedilatildeo com o Estado produz o sentido de um ldquoterritoacuterio imaterialrdquo como um espaccedilo poliacutetico e simboacutelico para os indiacutegenas Se o territoacuterio eacute acionado como referecircncia fundamental natildeo eacute percebido no entanto como moldura e limitaccedilatildeo de modo que pode se abrir ldquopara o vasto exterior da identidade Pankararu onde a dicotomia do ser natildeo ser tem um caraacuteter mais pendular que geomeacutetricordquo (ARRUTI 1996 p 166-159) 142 A noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo eacute retomada a partir das discussotildees de Taylor e de ldquoluta por reconhecimentordquo a partir de Honneth (ARRUTI 2006)

164

estatildeo englobados o local de origem de Manoel Ciriaco e os demais locais de dispersatildeo

do grupo familiar nos processos de deslocamento ao longo das uacuteltimas deacutecadas

O comentaacuterio de Adir em uma conversa com as duas senhoras que

encontramos morando em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash D Regina (77) e D Zulmira

(73) cunhadas de Seu Joatildeo Loriano (71) filho de Manoel Ciriaco ndash eacute muito enfaacutetico

a respeito desta forma de compreensatildeo da histoacuteria familiar Tal conversa ocorreu no

final da primeira viagem realizada em marccedilo de 2015 durante a gravaccedilatildeo de um viacutedeo

no qual Adir conta para elas o que tinha ocorrido em nosso percurso e comenta sobre

o significado da viagem para ele e para a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos

Esse lugar onde a gente mora hoje eacute uma comunidade reconhecida pela Fundaccedilatildeo Cultural dos Palmares Uma comunidade que hoje eu represento que natildeo eacute tatildeo grande porque as pessoas estatildeo espalhadas como se fosse aqui tambeacutem espalhados pra todo canto Por que no passado essas pessoas natildeo teve oportunidade de ficar junto e de viver junto e essa lembranccedila ficasse de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo mas todo mundo tivesse o seu espaccedilo Porque se a gente falar na eacutepoca da escravidatildeo noacutes somos de uma eacutepoca da escravidatildeo uma escravidatildeo passada onde a gente natildeo adquiriu nada nem o nosso nome E isso tudo passava na minha cabeccedila e eu lembrava e falava assim ldquoMeu Deusrdquo

O desejo dos quilombolas de GuaiacuteraPR de encontrarem seus parentes em

sua regiatildeo de origem e de poderem ldquovoltar a paacutegina da nossa vida do comeccedilordquo como

na expressatildeo utilizada por Adir que serve de tiacutetulo a este capiacutetulo inscreve-se em

uma dinacircmica dupla que abrange uma dimensatildeo poliacutetica vinculada ao processo de

regularizaccedilatildeo territorial da comunidade e um significado familiar e afetivo muito

intenso A mobilizaccedilatildeo de Adir em torno da realizaccedilatildeo desta viagem inicia-se pelo

anseio de subsidiar a consolidaccedilatildeo da imagem do grupo na esfera puacuteblica ndash o que

pode ser compreendido por meio da noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo (ARRUTI

2006) ndash jaacute que tal imagem da comunidade foi abertamente questionada pelo primeiro

relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo durante o processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo

INCRA ainda em tracircmite

Na leitura de meus interlocutores(as) sobre tais demandas externas de

legitimaccedilatildeo entendiam que se o segundo relatoacuterio antropoloacutegico havia demonstrado

a continuidade histoacuterica entre a comunidade de GuaiacuteraPR e as comunidades

quilombolas da regiatildeo mineira de um modo mais amplo apenas o retorno dos

proacuteprios quilombolas agrave regiatildeo ndash percorrendo a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia

ndash poderia proporcionar-lhes mais referecircncias sobre a histoacuteria de seus antepassados

165

assim como a retomada das relaccedilotildees com os parentes apoacutes anos sem contato Os

laccedilos da comunidade em GuaiacuteraPR com este passado ldquoprecisam ser produzidos hoje

atraveacutes da seleccedilatildeo e recriaccedilatildeo de elementos da memoacuteriardquo (ARRUTI 1997 p 23)

recriaccedilatildeo esta que passa pela ideia de ldquoorigemrdquo143 e de ldquoretornordquo

Em sua anaacutelise sobre o processo de emergecircncia identitaacuteria dos povos

indiacutegenas no Nordeste144 Oliveira Filho lanccedilou matildeo da metaacutefora da ldquoviagem da voltardquo

que eacute parte de uma poesia de Torquato Neto sobre a narrativa de um migrante

nordestino que deseja retornar agrave terra de origem ldquodesde que saiacute de casa trouxe a

viagem da volta gravada na minha matildeo enterrada no umbigo dentro e fora assim

comigo minha proacutepria condiccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) Com o uso desta

expressatildeo Oliveira Filho destaca as dimensotildees constitutivas da etnicidade no que

tange agrave trajetoacuteria histoacuterica do grupo social que natildeo anula mas ateacute mesmo reforccedila o

sentimento de referecircncia agrave origem (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)

Os quilombolas de GuaiacuteraPR assim como os povos indiacutegenas no

Nordeste145 natildeo se encaixam nas representaccedilotildees difusas da identidade que

reivindicam Tendo em vista esta descontinuidade gerada em grande parte pela

condiccedilatildeo diaspoacuterica da trajetoacuteria coletiva de reterritorializaccedilatildeo destas famiacutelias

quilombolas a necessidade que sentiram de buscar referecircncias histoacutericas para

dialogar com uma demanda de ldquoorigemrdquo somada a um desejo interno ao grupo deram

para a expressatildeo da ldquoviagem da voltardquo um sentido natildeo soacute metafoacuterico de etnogecircnese

como tambeacutem um sentido literal de regresso No contexto conturbado do

procedimento de regularizaccedilatildeo do grupo em tracircmite no INCRA a volta agrave regiatildeo de

origem se tornou necessaacuteria para o reconhecimento de uma identidade negra singular

que os legitimasse como quilombolas Este processo de retorno se iniciou com a

143 Este reinvestimento nas memoacuterias estava tambeacutem referenciado na busca por ldquotraccedilos culturais que

sirvam como os ldquosinais externosrdquo reconhecidos pelos mediadores e o oacutergatildeo que tem a autoridade de nomeaccedilatildeordquo (ARRUTI 1997 p 23) A identificaccedilatildeo destes ldquosinais externosrdquo da etnicidade remontam ao acionamento da ideia de ldquoorigemrdquo que estaacute na base do conceito de ldquoremanescentesrdquo utilizado pela Constituiccedilatildeo Federal para reconhecer direitos territoriais aos ldquoremanescentes das comunidades de quilombosrdquo no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) 144 O conceito de ldquoremanescenterdquo foi utilizado para se referir aos ldquoremanescentes indiacutegenasrdquo na regiatildeo

Nordeste ndash os quais passaram por um processo de retomada de tradiccedilotildees nas uacuteltimas deacutecadas e que satildeo percebidos como tendo pouca distintividade em relaccedilatildeo aos regionais (ARRUTI 1997) 145 Esta comparaccedilatildeo entre quilombolas e povos indiacutegenas no Nordeste estaacute relacionada agrave dificuldade

de ldquoprecisar os contextos sociohistoacutericos em que tais grupos se constituiacuteram e se consolidaram como ldquounidades discretasrdquo portadoras de um forte referencial eacutetnico e assim diferenciadas do contexto social mais amplordquo (BRASILEIRO SAMPAIO 2002 p 83)

166

elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico e se ampliou por meio das viagens

realizadas em marccedilo e junho de 2015 no acircmbito desta pesquisa de mestrado

Diante do exposto acima interessante ressaltar que estas viagens para Santo

Antocircnio do Itambeacute em 2015 foram precedidas por outras viagens de retorno que

segundo meus interlocutores(as) ocorreram na deacutecada de 1980 Eva filha de Geraldo

dos Santos que tambeacutem adquiriu um lote vizinho ao de Manoel relatou como era difiacutecil

juntar dinheiro para visitar os parentes em Minas e manter contato agrave distacircncia Contou-

me como sua matildee Antocircnia Domingues dos Santos que saiu de Minas Gerais para

morar em GuaiacuteraPR ficou mais de dezesseis anos sem ver a matildee dela Alexandrina

Moreira da Silva que permaneceu na regiatildeo mineira

Dandara E nesta eacutepoca mandava carta assim ou nem carta Eva Mandava nada natildeo sabia mais o endereccedilo deles natildeo sabia mais nada Dezesseis anos daiacute foi saber o endereccedilo Soacute uma vez depois que casou depois que ela veio aqui para o Paranaacute soacute essa vez ela foi na casa da matildee dela Dandara Ela contou como que foi Eva Ela falou que laacute era triste menina Laacute tava triste Falou que era tudo manual casinha tudo ruim as casinhas deles trabalho demais sofria demais era muito sofrido minha matildee falava que a terra era fraca lavoura natildeo saiacutea direito e quando ela falava pro pai e a matildee dela vir pra caacute (GuaiacuteraPR) meu vocirc falava que natildeo vinha pra caacute natildeo que ele natildeo ia largar a terra dele laacute natildeo Minha matildee falava ldquooh meu fio se ocecirc for laacute pro Paranaacute se ocecirc saber o tamanho das pranta que noacutes pranta o tamanho que fica a pranta aqui as pranta natildeo sai da terra baixinha assimrdquo ldquoNatildeo eu vou morrer aqui memo daqui eu natildeo saiordquo ele falou pra matildee A matildee falou que laacute era triste Dandara E ela viajou sozinha essa vez Eva Natildeo foi ela meu pai e meu cunhado o irmatildeo do Adir o Antocircnio Meu pai e o finado Antocircnio largou matildee laacute na casa da matildee dela Minha irmatilde tambeacutem foi irmatilde minha mais velha Iracema e foi a Cenira que era a caccedilula Cenira tinha acho que um ano e trecircs mecircs Daiacute meu pai largou matildee laacute e eles foi laacute na titia na Bahia Dandara Tem parente na Bahia tambeacutem Eva Natildeo eles foi laacute numa titia laacute neacute Dandara Quem que eacute titia Eva Assim eacute que benzia neacute titia matildee de santo noacutes falava titia Eles foi na casa dela pegou endereccedilo com a famiacutelia deles laacute Meu pai foi e meu cunhado o Antocircnio irmatildeo do Adir mais velho Dandara E seu pai jaacute tinha mais contato com a Umbanda

167

Eva Sim ele trabalhava tambeacutem em Umbanda O Antocircnio tambeacutem meu pai minha matildee tambeacutem trabalhava Tudo trabalhava na Umbanda

Em 1981 Antocircnia e seu marido Geraldo voltaram a Minas Gerais para

reverem seus parentes e foram acompanhados por Antocircnio filho de Manoel Ciriaco

Se em Guaiacutera passavam dificuldades quando se trata de Minas Gerais as memoacuterias

reforccedilam como a sobrevivecircncia era ainda mais complicada No entanto mesmo com

tamanha adversidade o avocirc de Eva Sebastiatildeo preferiu permanecer em Minas

Gerais reforccedilando a importacircncia do viacutenculo com seu lugar de origem No relato sobre

este retorno a Minas Gerais Eva destacou a viagem de Geraldo e Antocircnio que

aproveitaram a oportunidade e foram para a Bahia onde estaacute localizado o terreiro de

Umbanda em que Antocircnio fez sua iniciaccedilatildeo ritual

Nesta mesma viagem realizada em 1981 Antocircnio conseguiu encontrar seu

irmatildeo Joatildeo Loriano filho do primeiro casamento de seu pai que o havia deixado em

Minas aos cuidados da avoacute Izidora como mencionamos no primeiro capiacutetulo Segundo

nos contou Joatildeo Loriano146 Antocircnio comprou ateacute roupa para ele poder viajar pois ele

passava muita dificuldade na regiatildeo de origem de seu pai Quando chegou no Paranaacute

ele se considerou rico pois em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG soacute comiam coisa do

mato como tatu lagartixa e ateacute garrincha (passarinho bem pequeno) que eles

matavam e davam para os filhos comerem com purecirc de farinha Quando Joatildeo Loriano

encontrou o pai contou que sentiu tanta alegria que ateacute o pegou para danccedilar Entatildeo

o pai falou ldquosai pra laacute meu filhordquo mas Joatildeo se justificou dizendo que era de tanto amor

que sentia pelo pai que natildeo via haacute tantos anos Os demais irmatildeos contaram como o

pai tambeacutem estava feliz que fez uma festa para receber o filho

Depois que trouxe o irmatildeo Joatildeo Loriano Antocircnio voltou no ano seguinte para

Minas Gerais para buscar a mulher de Seu Joatildeo Maria das Dores e seus filhos que

passaram a morar em Guaiacutera no siacutetio de Manoel com os demais parentes Nesta

mesma viagem Antocircnio trouxe para o Paranaacute seu primo Aniacutesio filho de seu tio

paterno Sebastiatildeo Vicente que era irmatildeo de seu pai Em 1983 Antocircnio jaacute com a

experiecircncia adquirida nas viagens anteriores eacute quem leva Maria das Dores para

visitar sua famiacutelia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Quando retornam trazem com

146 Joatildeo Loriano atualmente mora em Presidente Prudente Esta fala foi registrada jaacute durante a viagem

passando por Presidente Prudente ateacute Minas Gerais em marccedilo de 2015

168

eles a esposa de seu primo Aniacutesio Ceciacutelia e seu filhos pois Aniacutesio morava em

GuaiacuteraPR desde 1982

No mesmo ano 1983 Antocircnio volta novamente agrave regiatildeo mineira acompanhado

agora de Joaquim com o intuito de reivindicarem a heranccedila e venderem a parte do

siacutetio de Izidora que cabia a seu pai Manoel e tambeacutem a heranccedila da matildee de Geraldo

Altina Segundo Joaquim relatou as parcelas hereditaacuterias seriam de respectivamente

onze e oito alqueires No entanto quando chegaram no siacutetio de Izidora relatam que

foram recebidos com desconfianccedila ldquoos homensrdquo (parentes) estavam armados e

falaram para eles que soacute passariam o documento da terra para Olegaacuterio o filho mais

velho de Manoel que havia morado laacute A regra local para transmissatildeo de heranccedila

parecia atribuir naquela eacutepoca apenas aos sujeitos que haviam morado no local o

direito de reivindica-la como no caso de Olegaacuterio o que natildeo se estendia aos seus

descendentes ou parentes colaterais como os irmatildeos Antocircnio e Joaquim

Por fim a uacuteltima visita realizada na deacutecada de 1980 ocorreu entre 1985 e 1986

quando Antocircnio acompanhou Ceciacutelia com os filhos de volta a Santo Antocircnio do Itambeacute

pois ela natildeo havia se adaptado agrave regiatildeo de GuaiacuteraPR e natildeo estava vivendo bem junto

a seu marido Aniacutesio segundo me contou Eva A famiacutelia de Ceciacutelia importante

destacar foi a uacutenica dentre os que se mudaram para o Paranaacute que voltou a viver em

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A realizaccedilatildeo destas viagens em um periacuteodo de cinco anos aponta para como

na deacutecada de 1980 a condiccedilatildeo econocircmica da comunidade estava melhor147 As

viagens no entanto depois se interrompem por deacutecadas Com o falecimento de seu

Manoel a comunidade fica em uma situaccedilatildeo muito delicada financeiramente com as

diacutevidas deixadas por ele aleacutem da perda da referecircncia daquele que era o administrador

da economia familiar A mecanizaccedilatildeo da agricultura tambeacutem tem um impacto direto

sobre as dinacircmicas de trabalho da comunidade como jaacute destacado Atualmente

ressaltam como a necessidade de ldquopagar contasrdquo em contraste com um periacuteodo

anterior de maior autossuficiecircncia impactam diretamente sobre a renda familiar

32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS

147 Na eacutepoca produziam e comercializavam o algodatildeo plantado no proacuteprio siacutetio e em aacutereas arrendadas

possuiacuteam um mangueiratildeo de porco e Manoel adquirira um trator para ldquogradearrdquo (arar e sulcar) a terra

169

As anaacutelises de Oliveira Filho indicadas acima enfocam a relaccedilatildeo entre

pertencimento eacutetnico e territorialidade dando um peso central agrave dimensatildeo poliacutetica da

organizaccedilatildeo dos grupos sociais no acircmbito dos paracircmetros colocados pelo Estado e

do processo de territorializaccedilatildeo148 Se as reflexotildees deste autor nos ajudam a pensar

(a) o processo de emergecircncia identitaacuteria (b) a importacircncia atribuiacuteda ao viacutenculo com a

regiatildeo de origem e (c) a dinacircmica que a relaccedilatildeo com o Estado desempenhou nesta

organizaccedilatildeo poliacutetica do grupo a partir da reivindicaccedilatildeo territorial em GuaiacuteraPR

importante pontuar por outro lado que ndash com a realizaccedilatildeo das viagens de volta em

marccedilo e junho de 2015 da qual participaram cinco membros da famiacutelia149 ndash a ecircnfase

dada pelos quilombolas para a estruturaccedilatildeo do pertencimento identitaacuterio pareceu estar

muito mais centrada nas dinacircmicas do parentesco do que na noccedilatildeo de territorialidade

A relaccedilatildeo entre a pessoa e o grupo eacutetnico ndash que implica na sua possibilidade

de autorreconhecimento como quilombola ndash foi acionada por meio da mediaccedilatildeo das

relaccedilotildees de parentesco as quais saiacuteram fortalecidas neste percurso que conectou

parte significativa da rede expandida de famiacutelias Este enfoque no parentesco natildeo

minimiza no entanto a importacircncia da reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial em

GuaiacuteraPR que estaacute baseada inclusive como um dos principais argumentos na

possibilidade do retorno de parentes que estatildeo atualmente fora do territoacuterio e que

pelo viacutenculo familiar podem se autorreconhecer como quilombolas

Esta possibilidade foi estendida a parentes que encontraram na primeira

viagem e que sempre viveram na regiatildeo mineira Este convite para viver no territoacuterio

em GuaiacuteraPR foi apresentado por exemplo a D Ana Raimunda (87) irmatilde de Manoel

Ciriaco que encontramos morando no SerroMG e a Seu Daniel (80) primo de

primeiro grau de Ana Rodrigues (esposa de Manoel) que mora em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG Seu Daniel ficou feliz com o convite pois mora com a filha o genro e o

neto em condiccedilotildees muito precaacuterias mas precisaria de suporte para que pudesse

148 Com o conceito de ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho

afirma buscar se afastar da ideia de qualidade imanente consubstanciada na noccedilatildeo de territorialidade e deste modo critica as premissas de continuidade e de imemorialidade atribuiacutedas ao territoacuterio indiacutegena Destaca dentre os seus argumentos a frequecircncia com a qual os povos indiacutegenas passaram por processos de reterritorializaccedilatildeo no acircmbito do proacuteprio processo de colonizaccedilatildeo e defende que a avaliaccedilatildeo para a criaccedilatildeo de uma terra indiacutegena apresenta uma caracteriacutestica conjuntural (OLIVEIRA FILHO 1994ordf p 134) 149 Na primeira viagem para Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG realizada em marccedilo de 2015 eu e

Cassius acompanhamos Adir e Geralda quilombolas de Guaiacutera aleacutem de Seu Joatildeo Loriano que mora atualmente em Presidente PrudenteSP Na segunda viagem em junho de 2015 eu e Cassius acompanhamos D Jovelina e D Maria das Dores que moram atualmente em Presidente PrudenteSP

170

realizar essa mudanccedila Pareceu-me que neste caso a possibilidade ficou no ar D

Ana como veremos no proacuteximo toacutepico em junho de 2015 foi morar com D Jovelina

em Presidente PrudenteSP a partir da viagem que fizemos para buscaacute-la em

SerroMG

Para que fosse possiacutevel realizar a primeira viagem em marccedilo de 2015 foi

fundamental o contato que eu jaacute possuiacutea com Cassius o historiador que desenvolveu

a pesquisa na regiatildeo durante a produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Eu o

conheci quando trabalhava como assessora juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico e ele

compunha o Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) equipe que realizou o

levantamento das comunidades quilombolas no Paranaacute no periacuteodo de 2005-2010

Atualmente Cassius estaacute cursando doutorado em Ciecircncias Sociais na UNICAMP e

pesquisa justamente o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco

quilombola Um dos processos que passou a analisar em sua pesquisa de doutorado

com a realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais foi o da comunidade quilombola Manoel

Ciriaco dos Santos

Propus para Cassius que organizaacutessemos juntos esta viagem e buscaacutessemos

recursos com as respectivas universidades agraves quais estamos vinculados UFPR e

UNICAMP para financiar a nossa ida em marccedilo de 2015 bem como de mais trecircs

pessoas Adir e Geralda do grupo que mora em GuaiacuteraPR e Joatildeo Loriano que mora

atualmente em Presidente PrudenteSP A importacircncia da ida de Seu Joatildeo Loriano foi

defendida por Adir e Geralda tendo em vista que ele foi o uacutenico filho de Manoel Ciriaco

que ficou em MG ateacute 1981 ano em que se mudou para GuaiacuteraPR Em 1993 Joatildeo

Loriano Olegaacuterio e Eurides se mudaram de GuaiacuteraPR para Presidente PrudenteSP

onde a irmatilde Jovelina jaacute morava desde 1986 Deste modo quando pensamos nosso

trajeto ateacute MG a proposta de Adir e de Geralda que nunca tinham ido ateacute laacute foi que

pudeacutessemos passar por Presidente PrudenteSP para que eles conversassem com

estes irmatildeos mais velhos com o objetivo de buscar mais informaccedilotildees sobre as

memoacuterias mineiras e sobre a histoacuteria da famiacutelia para subsidiar a pesquisa na regiatildeo

Ademais propuseram que Joatildeo Loriano pudesse continuar o caminho ateacute MG

conosco e ser uma espeacutecie de guia para a nossa viagem

A uacuteltima vez que Adir tinha conseguido visitar os parentes em Presidente

PrudenteSP havia sido antes da comunidade de GuaiacuteraPR ser reconhecida como

quilombola haacute nove anos e Geralda natildeo ia a Presidente Prudente haacute vinte anos

171

Deste modo percebe-se que ateacute com os irmatildeos que estatildeo no estado de Satildeo Paulo o

grupo de Guaiacutera tem dificuldade de manter contato presencial mas manteacutem contatos

frequentes por meio de telefone celular Adir comentou que estava sendo muito

oportuna esta visita pois ainda natildeo tinha tido condiccedilotildees de explicar para seus irmatildeos

sobre o momento atual do tracircmite do procedimento do INCRA que em breve realizaraacute

o cadastramento das famiacutelias que compotildee a comunidade quilombola segundo

indicaccedilatildeo a ser feita pelo proacuteprio grupo A viagem tambeacutem proporcionou uma

retomada de memoacuterias e de trocas de experiecircncias que em outras circunstacircncias

poderiam natildeo ser acionadas

Outro ponto importante na organizaccedilatildeo da nossa viagem eacute que a primeira ida

de Cassius agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de origem de Manoel Ciriaco em

2012 viabilizou o contato com os professores do curso de direito da PUC-Serro

(Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica) os quais atuam com estes grupos e se

disponibilizaram a nos dar o apoio logiacutestico durante a nossa estadia Fomos

convidados em contrapartida a fazer parte de um evento realizado na universidade

com o seguinte tema ldquoSeminaacuterio de Introduccedilatildeo aos Direitos Eacutetnicos direito e conflitos

em territoacuterios quilombolasrdquo Eu Cassius e Adir participamos como palestrantes em

mesas do evento sendo que os dois trataram especificamente da histoacuteria da

Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos

Neste subitem meu objetivo seraacute debater dados levantados a partir nesta

primeira viagem realizada entre os dias 28 de fevereiro a 13 de marccedilo de 2015 e no

subitem seguinte em relaccedilatildeo agrave segunda viagem derivada da primeira e realizada

entre os dias 05 e 08 de junho de 2015 A estrateacutegia por mim e por Cassius adotada

foi que os quilombolas fossem os protagonistas em todo o trajeto e que escolhessem

os caminhos a serem acionados tendo por base uma programaccedilatildeo preacutevia

estabelecida em parceria com nossos apoiadores da PUCSerro

321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos

No momento da chegada agrave rodoviaacuteria de Presidente PrudenteSP em um

saacutebado dia 28 de fevereiro Cassius perguntou para Adir como tinha sido a viagem de

GuaiacuteraPR ateacute ali e ele em resposta referiu-se agrave viagem de um modo mais amplo em

seu objetivo de chegar ateacute Minas Gerais

172

A viagem Cassius pra mim foi taacute sendo muito importante primeiro que eu vou rever todos os meus parentes quanto tempo que eu natildeo vejo mais os meus irmatildeos meus sobrinhos primos e segundo eacute aquela viagem para Minas Gerais que ela vai ser uma viagem muito importante para nossa vida principalmente para mim

A possibilidade de atualizaccedilatildeo das relaccedilotildees de parentesco era um dos

objetivos principais da viagem que estava dividida em duas etapas Presidente

PrudenteSP e a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A passagem por Presidente

PrudenteSP como mencionamos acima tinha como objetivo trocar experiecircncias

sobre as memoacuterias do tempo em que os irmatildeos mais velhos viveram em Minas Gerais

e convidar Seu Joatildeo Loriano para nos acompanhar pois ele foi o uacutenico irmatildeo que laacute

ficou morando ateacute os 37 anos Ao nosso convite seu Joatildeo respondeu ldquopode ficar

tranquilos que noacutes vamos rachar no mundo Falou comigo que eacute pra passear meu

filhordquo 150 A histoacuteria de Seu Joatildeo que foi sendo contada e detalhada durante a viagem

eacute central para compreender esta reconexatildeo da famiacutelia que estaacute no Paranaacute e no estado

de Satildeo Paulo com a regiatildeo de origem em Minas Gerais

Manoel Ciriaco antes de se casar com Ana Rodrigues era viuacutevo de Maria

Olinda com quem teve quatro filhos Luiza (que faleceu aos oito anos) Olegaacuterio

Jovelina e Joatildeo Loriano Maria Olinda foi criada pelo Padre Joviano um padre muito

estimado pela populaccedilatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG que o considera santo

Junto com ela mais trecircs irmatildes de criaccedilatildeo moravam na casa do padre ndash Cecilia

Geralda Estrelina e outra irmatilde de quem Seu Joatildeo natildeo se lembrou o nome Esta casa

ficava beirando o rio bem proacuteximo agrave Igreja Matriz Maria Olinda segundo nos contou

Seu Joatildeo e D Jovelina foi achada no mato pelo padre em um dia que ele ia a cavalo

rezar uma missa e quando ouviu um choro de bebecirc foi ver o que era A menina que

teria acabado de nascer havia sido deixada enrolada em uma coberta A pessoa que

a abandonara natildeo teria deixado pistas da trilha por onde passou

Quando Seu Joatildeo tinha um mecircs e sete dias sua matildee faleceu151 tendo ele

ficado aos cuidados de sua avoacute Izidora matildee de Manoel e de sua tia Ana Raimunda

150 Curioso notar que apesar da seriedade do propoacutesito da viagem ela eacute vista por Seu Joatildeo tambeacutem

como uma chance de diversatildeo atraveacutes do movimento o que se expressa na ideia de ldquopassearrdquo 151 Segundo Geralda Maria Olinda teria morrido por ter sido viacutetima de feiticcedilo Geralda contou que ela

falava demais e Maneacute a avisava para ter cuidado Um dia quando ela estava trabalhando serviram para ela aacutegua com uma folha Ela teria achado estranho mas tomou Depois passou um tempo descobriram por meio das entidades espirituais que era feiticcedilo mas jaacute natildeo tinha mais o que fazer para reverter o efeito ldquoEm Minas tem feiticeiro mesmordquo acrescentou Geralda

173

irmatilde de seu pai Seu Joatildeo ficou morando com avoacute Izidora quando Manoel saiu de

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo ao estado de Satildeo Paulo em 1956 pois seu

pai natildeo teria tido coragem de o separar da avoacute Durante um certo periacuteodo Seu Joatildeo

comentou que eles tiveram contato com seu pai uma ou duas vezes por carta mas

quando foram mandar notiacutecia sobre o falecimento de Izidora natildeo sabiam mais seu

endereccedilo

Quando ocorreu o falecimento de sua avoacute Seu Joatildeo foi morar e trabalhar na

fazenda de Zinho Gonccedilalves e como ele frisou foi mais criado na fazenda do que em

casa Ele trabalhava com tropa levando cachaccedila e outros produtos pela regiatildeo Tinha

dia que ele falava para a esposa que natildeo ia levar marmita para ldquolargar o comecirc pra daacute

pros meus meninordquo Ele casou com 16 anos com D Maria das Dores que tinha a

mesma idade Segundo D Maria das Dores nos contou foi o fazendeiro que os ajudou

financeiramente para que pudessem casar e ldquoos vestiu dos peacutes agrave cabeccedilardquo

No Itambeacute Seu Joatildeo era conhecido como ldquoJoatildeo do Rosaacuteriordquo pois quando foi

fazer seu registro em Minas Gerais ndash como seu pai havia levado seu documento ndash ao

lhe perguntarem no cartoacuterio qual era seu sobrenome ele entatildeo respondeu ldquoAh potildee

Joatildeo do Rosaacuterio de qualquer jeitordquo Seu Joatildeo riu quando terminou de nos relatar esta

lembranccedila que fala de sua experiecircncia difiacutecil como rapaz que cresceu oacuterfatildeo da matildee

falecida e do pai do qual natildeo tinha notiacutecias Seu Joatildeo soacute saiu de Santo Antocircnio do

Itambeacute em 1981 quando tinha 37 anos como mencionamos acima Por toda essa

experiecircncia que Seu Joatildeo teve de anos de vida na regiatildeo a sua participaccedilatildeo na

viagem era de importacircncia central

Apesar de jaacute termos algum planejamento anterior boa parte das decisotildees

foram sendo tomadas ao longo do percurso A princiacutepio haviacuteamos pensado em passar

apenas o final de semana em Presidente PrudenteSP e embarcar jaacute na segunda-feira

para Minas Gerais No entanto Adir e Geralda optaram por estender a visita aos

irmatildeos e demais parentes e resolveram ir para SerroMG apenas na quinta-feira agrave

noite Isso tambeacutem porque Seu Joatildeo precisou de uns dias para se liberar e poder nos

acompanhar na viagem Eu e Cassius entatildeo decidimos ir antes na terccedila-feira agrave noite

para organizar junto aos professores da PUCSerro as questotildees relativas ao evento

que foi composto por duas mesas de palestras na sexta-feira agrave noite (0603) e no

saacutebado pela manhatilde (0703)

174

Para compreender a importacircncia atribuiacuteda por Geralda e Adir agrave estadia junto

aos irmatildeos mais velhos que moram em Presidente PrudenteSP deve-se destacar

que eacute a experiecircncia de ter participado do passado familiar em Minas Gerais que

parece ser um criteacuterio de distinccedilatildeo daqueles que satildeo tidos como capazes de fazer a

conexatildeo narrativa da histoacuteria atual do grupo com seu ldquomito de origemrdquo Trata-se ldquodos

depositaacuterios da histoacuteria mais idosos ldquotronco velhordquo lideranccedilas das parentelas

guardiotildees da histoacuteria da comunidaderdquo (MONBELLI BENTO 2006 p 24)152 Com o

processo de autoidentificaccedilatildeo como quilombolas e a reelaboraccedilatildeo da memoacuteria

coletiva os irmatildeos mais velhos ganham status como ldquoguardadores da memoacuteriardquo os

quais passaram a ldquodesempenhar um papel sem precedentes na vida do grupordquo

(ARRUTI 1997 p 23)

Aleacutem deste aspecto da pesquisa e levantamento das histoacuterias da famiacutelia Adir

e Geralda tinham como objetivo mais imediato rever os irmatildeos(atildes) cunhados(as)

sobrinhos(as) primos(as) que vivem atualmente na regiatildeo do municiacutepio paulista Joatildeo

Aparecido irmatildeo caccedilula de Adir e Geralda tambeacutem foi por mim e Cassius apoiado

financeiramente para que pudesse chegar ateacute Presidente PrudenteSP153 onde

atualmente residem sua ex-mulher Kelly e seus dois filhos Joatildeo Vitor (13) e Tauane

(16) A ex-mulher e os filhos de Joatildeo Aparecido moravam em GuaiacuteraPR ateacute 2011

quando Kelly perdeu seu emprego na escola municipal do Maracaju dos Gauacutechos

onde trabalhava com serviccedilo de limpeza e merenda Ela resolveu entatildeo morar em

Presidente PrudenteSP e ficar proacutexima de sua famiacutelia pois acreditava que teria mais

chances de conseguir um emprego jaacute que na comunidade a situaccedilatildeo de conflito com

os vizinhos aleacutem de gerar inseguranccedila para as famiacutelias fez com que as possibilidades

de trabalho diminuiacutessem Na eacutepoca Kelly chamou Joatildeo Aparecido para que a

acompanhasse na mudanccedila mas ele natildeo foi porque entendia que sua permanecircncia

no siacutetio em GuaiacuteraPR era importante para o projeto coletivo de comunidade que ele

conduz junto com os irmatildeos Adir e Joaquim Esta situaccedilatildeo entatildeo acabou gerando a

152 O par de categorias de parentesco ldquotronco velhordquo e ldquopontas de ramardquo presente na etnografia

realizada por Arruti junto aos Pankararu no estado de Pernambuco traduzem a distacircncia entre o grupo indiacutegena e seus antepassados considerados ldquoiacutendios purosrdquo sendo utilizadas para organizar as relaccedilotildees marcadas pela ideia de ldquomisturardquo de modo a criar um ldquofluxo diferencial de forccedila religiosa e legitimidaderdquo no sentido do ldquotronco velhordquo (ARRUTI 1996 p 64) 153 Soacute Joaquim dentre os irmatildeos que moram em GuaiacuteraPR natildeo foi para Presidente PrudenteSP pois algum deles tinha que ldquoficar cuidando de tudo no siacutetiordquo

175

separaccedilatildeo do casal Haacute dois anos Joatildeo Aparecido natildeo ia para Presidente PrudenteSP

e ficou este periacuteodo sem ver os filhos

O fato de dois filhos de Manoel Ciriaco chamarem-se Joatildeo ocorreu em razatildeo

de o pai ter dado ao seu filho caccedilula nascido em 1972 o nome de Joatildeo Aparecido

para lembrar-se do filho Joatildeo Loriano que havia ficado em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG Segundo Adir nesta eacutepoca o pai natildeo tinha mais esperanccedila de encontraacute-

lo depois de dezesseis anos de separaccedilatildeo O reencontro para aliacutevio de Manoel

ocorreu nove anos depois do nascimento de Joatildeo Aparecido em 1981 quando Joatildeo

Loriano passou a viver com a esposa Maria das Dores e os seis filhos na terra do pai

em GuaiacuteraPR

FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP

Em Presidente PrudenteSP Cassius Adir Joatildeo Aparecido Geralda e eu

ficamos hospedados na casa de D Jovelina e Seu Davi Eles moram em um bairro

perifeacuterico do municiacutepio chamado ldquoAna Jacintardquo que fica a mais ou menos uma hora

de distacircncia do centro da cidade Seu Joatildeo Loriano e D Maria das Dores tambeacutem

moram no mesmo bairro assim como alguns filhos destes dois casais com suas

respectivas famiacutelias o que permite uma convivecircncia constante e uma rede de

176

solidariedade entre eles154 Destaca-se que duas das filhas155 de Seu Joatildeo ndash

Aparecida e Dulce ndash satildeo casadas com os filhos gecircmeos de sua irmatilde D Jovelina ndash

Damasio e Damasceno ndash exemplo da ocorrecircncia de casamento entre primos de

primeiro grau

Haviacuteamos chegado em Presidente PrudenteSP no saacutebado No dia seguinte

foi preparado um almoccedilo com churrasco que reuniu parte da famiacutelia que mora proacuteximo

do bairro ldquoAna Jacintardquo para comemorar a visita dos parentes de GuaiacuteraPR

FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina

Neste almoccedilo celebrativo Cassius ensinou Adir a usar uma das trecircs cacircmeras

de viacutedeo que tiacutenhamos agrave disposiccedilatildeo Adir ficou muito animado em poder registrar seu

olhar sobre os momentos da viagem gravando conversas com os parentes paisagens

do caminho etc Durante todo o percurso boa parte das filmagens foram realizadas

por Adir que interpelava e entrevistava as pessoas conforme seus interesses e

154 Eacute possiacutevel perceber a presenccedila de caracteriacutesticas no cotidiano destas famiacutelias que remontam agrave sua

origem no meio rural e a uma trajetoacuteria que os distingue dos demais vizinhos mesmo morando em um bairro de uma grande cidade Por exemplo Seu Joatildeo Damasio e Damasceno filhos de Jovelina acertam com os proprietaacuterios de terrenos baldios do bairro a possibilidade de utilizarem a aacuterea para plantar garantindo em contrapartida a manutenccedilatildeo do terreno 155 Outra informaccedilatildeo relevante eacute que a filha mais velha de Seu Joatildeo Maria de Faacutetima dos Santos estaacute

haacute mais de quinze anos desaparecida e segundo nos informaram teria sumido em Campinas quando para laacute foi com o entatildeo marido Edison e perderam o contato Atualmente a famiacutelia tenta encontraacute-la

177

prioridades Este material tambeacutem eacute aqui analisado como fonte de pesquisa e registro

do trabalho de campo

Adir em mais de uma oportunidade durante a estadia em Presidente

PrudenteSP mostrou para seus parentes que eles fazem parte da luta quilombola da

comunidade em GuaiacuteraPR e reforccedilou como ele estava feliz em nesta viagem ir

buscar a raiz da histoacuteria da famiacutelia Em conversa na varanda da casa de D Jovelina

comentou sobre a trajetoacuteria do ldquopovo negrordquo desde o traacutefico de africanos ateacute a

experiecircncia do Quilombo dos Palmares Concluiu dizendo a seus primos

Vocecirc deve buscar neacute na internet hoje vocecirc consegue muita coisa os quilombos Quilombo de Palmares ver o tanto de negro que entrava no Brasil E o Cassius ele eacute professor pode explicar melhor do que eu e a Dandara tambeacutem que vocecircs estudam e eu natildeo estudo fico dentro da roccedila laacute Mas tudo o que das viagens dos encontros de tudo que eu jaacute vi na vida ateacute hoje estaacute guardado aqui Mais do que eu escrevi do que eu jaacute vi Aiacute que eu penso assim em buscar a histoacuteria do meu passado por isso que eu luto Que eu vou ateacute o fim Se eles natildeo me matar

Adir ressaltava assim a importacircncia de se mobilizarem para ldquomostrar pras

pessoas que noacutes somos negros e que tem que nos respeitarrdquo Identificava a presenccedila

de tal desrespeito por exemplo na falta de acesso ao estudo para a populaccedilatildeo negra

como no caso de Olegaacuterio Seu Joatildeo e D Maria das Dores que natildeo aprenderam a ler

e a escrever Ao mesmo tempo em que Adir afirmava seu intuito de ir ldquoateacute o fimrdquo com

esta busca era a proacutepria viagem que parecia estar lhe proporcionando um

fortalecimento de convicccedilotildees bem como da vontade de continuar a frente deste

processo de mobilizaccedilatildeo Eacute como se esta viagem ateacute Minas Gerais pudesse ser

comparada a uma peregrinaccedilatildeo na qual Adir estava a visitar os lugares ldquosagradosrdquo

da memoacuteria e da experiecircncia familiar e nesta jornada fosse descobrindo quem ele

mesmo eacute (TURNER 2008)

Outro encontro que ocorreu durante nossa estadia em Presidente

PrudenteSP foi com Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel Atualmente a famiacutelia de

Olegaacuterio mora em um lote de oito alqueires que conquistaram haacute catorze anos no

ldquoAssentamento Palurdquo156 Este assentamento fica localizado na zona rural do municiacutepio

de Presidente BernardesSP no distrito de ldquoNova Paacutetriardquo proacuteximo a Presidente

PrudenteSP Olegaacuterio e Valdeniacutecio um de seus filhos que nos relatou esta histoacuteria

156 A ocupaccedilatildeo desta fazenda se deu pelo movimento ldquoBandeira Brancardquo que na eacutepoca tinha conflito

com o ldquoMovimento dos trabalhadores Rurais Sem Terrardquo (MST)

178

revezaram-se durante dois anos no periacuteodo de acampamento para conseguirem o

acesso agrave terra Os outros filhos de Olegaacuterio lhes ajudavam por exemplo com cestas

baacutesicas Segundo Valdeniacutecio quando Olegaacuterio e os filhos vieram para o estado de

Satildeo Paulo em 1993 seu pai continuou trabalhando com produccedilatildeo de farinha com a

qual jaacute lidava em GuaiacuteraPR No estado de Satildeo Paulo trabalhou com farinha mesmo

quando moravam na cidade mas era complicado segundo Valdeniacutecio por conta dos

vizinhos que se incomodavam com a fumaccedila Quando conseguiram o lote no

assentamento estruturaram a farinheira sendo que parte dela foi Olegaacuterio mesmo

que projetou Valdeniacutecio comentou que antes de mecanizar o processo de produccedilatildeo

era difiacutecil trabalhar com a farinha de mandioca Atualmente produzem em meacutedia

vinte sacos por dia

FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira

O caso de Olegaacuterio atualmente com setenta e sete anos eacute muito significativo

ao apontar para a busca ateacute agora bem-sucedida de se manterem na aacuterea rural e

reproduzirem um modo de vida autocircnomo dentro da tradiccedilatildeo de trabalho familiar

Valdeniacutecio nos mostrou o funcionamento da farinheira e explicou detalhadamente para

Joatildeo Aparecido e Adir os quais estavam muito interessados e admirados com a forma

de trabalho dos seus parentes Durante a conversa Valdeniacutecio se lembrou do tempo

que morava em GuaiacuteraPR e que laacute eles eram ldquomais de cento e poucos negros tudo

casa de coqueirordquo Frisou tambeacutem sua lembranccedila do preconceito racial que sofriam

no ldquoMaracajurdquo afirmando que quando eles passavam todos juntos os vizinhos

provocavam-lhes dizendo que formava uma ldquonuvem pretardquo e ia chover

179

Tivemos uma longa conversa com Olegaacuterio que saiu de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG com aproximadamente vinte anos de idade Ele nos contou que o siacutetio da

avoacute Izidora de dez alqueires fica em um lugar chamado ldquoQueimadasrdquo Na eacutepoca

nessa terra moravam as famiacutelias dos irmatildeos Manoel Ciriaco e Sebastiatildeo Vicente de

Paula Manoel trabalhava de ldquopuxar cana pra fazer rapadura cortava lenha

trabalhava na lavra tirando cristalrdquo Ele saiacutea para trabalhar longe e chegou a ir ateacute

Londrina no norte do Paranaacute em migraccedilatildeo sazonal Olegaacuterio contou que Manoel

quando saiacutea de Santo Antocircnio do Itambeacute para essas viagens a trabalho iaacute primeiro

ateacute Diamantina distante mais de cem quilocircmetros157 sendo que parte do percurso

eles caminhavam cortando o morro durante o dia todo Outra parte era feita no ldquopau

de ararardquo que eacute um tipo de caminhatildeo coberto de lona que transportava pessoas

Depois em Diamantina pegava o trem e continuava a viagem Quando a famiacutelia se

mudou para o estado de Satildeo Paulo e depois para o Paranaacute jaacute foram de ocircnibus

Olegaacuterio tambeacutem nos passou vaacuterias referecircncias de lugares e pessoas que estavam

relacionadas agrave famiacutelia na regiatildeo de origem e afirmou que em uma proacutexima

oportunidade ele tambeacutem gostaria de voltar para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A nossa passagem por Presidente PrudenteSP tambeacutem permitiu que fosse

gravado um viacutedeo de D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo Loriano mandando

uma mensagem para que se noacutes achaacutessemos os seus irmatildeos em Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ldquoaqueles que tive vivordquo pudeacutessemos lhes mostrar o seu recado Quem

registrou a conversa com ela foi Adir

Adir E daiacute cumadi Maria o que a senhora manda falar noacutes encontrando os seus parentes em Minas Gerais

D Maria das Dores Oacute eu mando cumpadi Nadir muita lembranccedila um abraccedilatildeo pra cumpadi Erosino pra cumadi Regina pra cumadi Zulmira e com a famia E muitos anos de vida sauacutede pra eles quem tiver vivo

Adir E que mais de seus irmatildeos cumadi que a sra lembra

D Maria das Dores Quero recordaccedilatildeo e notiacutecia da Teresa cumadi Anita minha irmatilde Joaquim meu irmatildeo Geralda natildeo que essa taacute pra caacute e o menino que minha matildee criou eacute o Dudu

Adir Como eacute que era o nome de sua matildee cumadi

D Maria das Dores Luzia Eleoteacuteria da Silva

Adir E seu pai cumadi

157Em sua fala frisou a distacircncia em leacuteguas forma tradicional de mediccedilatildeo da regiatildeo

180

D Maria das Dores Bertolino Gino Domingo

Adir A sra lembra o lugar que a sra morava laacute e tudo

D Maria das Dores Santo Antocircnio do Itambeacute do Serro

Adir Era muito sofrido

D Maria das Dores Era sofrido nossa Senhora meu Deus A gente comia sem nada de gordura natildeo tinha nada de sal a gente fazia gordura desse bucho de boi eacute uma gordura muito ruim A fartura que tinha laacute era mandioca cana e cafeacute Minas Gerais E tambeacutem cheguei no Paranaacute o meu cunhado que Deus daacute bom lugar pra ele chegando no Paranaacute foi benccedila e alegria ()

Adir E eu tenho feacute em Deus cumadi junto com o marido da senhora que eacute meu irmatildeo o cumpadi Joatildeo a gente vai pisar naquele solo de Minas no mesmo lugar que a senhora morou quero que o cumpadi Joatildeo revecirc isso ai a gente vai filmar tudo isso eu tenho feacute em Deus que eu encontro ainda seus irmatildeos suas irmatildes todo esse pessoal que a senhora falou que taacute gravado aqui pra gente achar esse pessoal e a gente filmar tirar foto e trazer pra senhora Ver como eacute que taacute esse pessoal laacute

D Maria das Dores Ver como eacute que taacute laacute se taacute bom

Adir Saber notiacutecia que a gente perdeu notiacutecia de todo mundo

D Maria das Dores Perdemo notiacutecia Ana Raimunda tambeacutem

Adir Pois eacute perdemo tudo essa notiacutecia

Na fala de D Maria a anguacutestia da falta de notiacutecias se expressa na duacutevida de

natildeo saber quem ainda estaria vivo dentre os seus irmatildeos A possibilidade de superar

esta situaccedilatildeo eacute atribuiacuteda por ela a uma intercessatildeo divina pois concluiu a conversa

afirmando ldquoo negoacutecio eacute joelho no chatildeo jejum e oraccedilatildeordquo pois ldquoJesus vai na frenterdquo e eacute

quem pode abrir os caminhos que permitiratildeo este reencontro Como natildeo se

sensibilizar com o drama de uma separaccedilatildeo entre familiares que se estendeu por tanto

tempo por falta segundo eles mesmos afirmam de possibilidades de deslocamento e

manutenccedilatildeo do contato Agravequeles que saiacuteram da regiatildeo de origem eacute a quem caberia

o retorno pois para os que ficaram seria ainda mais difiacutecil saber como procuraacute-los

322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova

Geralda Adir e Seu Joatildeo fizeram o trajeto de Presidente PrudenteSP ateacute Belo

HorizonteMG de ocircnibus Na rodoviaacuteria de Belo Horizonte eu e Cassius combinamos

que o professor Ricardo Ferreira Ribeiro que atua nas aacutereas de antropologia e

sociologia no curso de direito da PUCSerro iria encontra-los e leva-los para Serro

aproveitando o trajeto que Ricardo jaacute faria para ir dar aula Conforme Adir destacou

181

foi muito importante terem conversado com o professor Ricardo durante a viagem ateacute

Serro um trajeto de 330 km que demora em meacutedia cinco horas de carro Neste

caminho como eacute possiacutevel recuperar por meio dos vaacuterios viacutedeos gravados por Adir o

professor Ricardo foi lhes mostrando os elementos do ambiente os rios contando e

tambeacutem ouvindo histoacuterias sobre a regiatildeo

Ele lhes contou por exemplo sobre a comemoraccedilatildeo em 2014 dos cento e

cinquenta anos da articulaccedilatildeo do movimento de revolta dos escravos desde Serro a

Diamantina que se reuniriam no intuito de acabar com a escravidatildeo No entanto

dentro do movimento teve um traidor que denunciou o esquema e a guarda acabou

prendendo as lideranccedilas da revolta Adir em resposta comentou ldquotem histoacuteria esse

Serro heinrdquo Quando laacute chegaram Adir e Geralda que nunca tinham estado ali

puderam se encantar com a arquitetura do municiacutepio caracteriacutestica das vilas

setecentistas mineiras o que lhes remetia ainda mais a este passado familiar e

regional ndash a partir do qual fundamentam a reivindicaccedilatildeo identitaacuteria como quilombolas

em GuaiacuteraPR158

Se no Serro tem histoacuteria ateacute da organizaccedilatildeo de uma revolta de escravos uma

forma de resistecircncia negra direta enquanto motim as memoacuterias familiares sobre a

vida nesta regiatildeo conforme apontou Geralda indicam uma resistecircncia cotidiana e

silenciosa enquanto processo de sobrevivecircncia (FERNANDES BUSTOLIN

TEIREIRA 2006 p134) A moradia em ldquolocardquo ou ldquolapardquo de pedra eacute um importante

siacutembolo dessa resistecircncia onde se abrigavam de modo precaacuterio nos locais oferecidos

pelo ambiente Geralda contou por exemplo que sua avoacute materna Maria Bernarda

sofreu muito pois foi abandonada pelo marido com cinco filhas mulheres dentre elas

Ana Rodrigues sua matildee A famiacutelia soacute de mulheres passou fome Ana contava para

Geralda que cansou de comer um tipo de feijatildeo do mato que elas natildeo sabiam mas

era veneno comeram e adoeceram

Ao chegarem no Serro159 iniciava para Geralda Adir e Joatildeo o processo de

busca pelos parentes Jaacute na primeira tentativa encontraram um neto de D Zulmira

158 O municiacutepio do Serro foi o primeiro municiacutepio brasileiro cujo patrimocircnio arquitetocircnico e urbaniacutestico

foi tombado pelo Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional (IPHAN) ainda em 1938 Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015 159 Serro com 20835 habitantes159 eacute um municiacutepio que fica distante 27 km de Santo Antocircnio do Itambeacute

que tem uma populaccedilatildeo de 4135 habitantes conforme o Censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro

182

cunhada de Seu Joatildeo Loriano e irmatilde de D Maria das Dores Conforme Adir relatou

quando gravamos um viacutedeo dele contando como tinha sido a viagem para D Regina

e D Zulmira as irmatildes de D Maria das Dores que encontramos em Santo Antocircnio do

Itambeacute

Chegando no Serro eu queria andar eu soacute pensava em andar andar Via as pessoas eu mais cumpadi Joatildeo perguntava ldquoseraacute que eacute nosso parente Eacute nosso parenterdquo Eu mais cumpadi Joatildeo corria laacute e perguntava Ele ia na frente porque jaacute conhecia Minas Gerais 34 anos que saiu daqui E a gente ficava nessa eu quero encontrar um parente E ele falava ldquose noacutes encontrar dois encontramo o restordquo E dito e feito Primeira pessoa que noacutes se deparemo quando saiacute do local onde a gente tava num hotel em frente a um posto de gasolina tinha um barzinho Eu falei ldquoCumpadi Joatildeo eu quero tomar uma cachaccedila de Minas Geraisrdquo porque meu pai falava muito nessa cachaccedila e eu queria tomar uma cachaccedila () Comeccedilemo a encontrar uma pessoa que dizia que era parente de vocecircs aqui das senhoras E a gente ficou naquela esperanccedila noacutes tem que encontrar Ele falou ldquoNatildeo vou soacute domingo pra laacuterdquo E noacutes fiquemo naquela

Geralda me contou sobre como ocorreu este encontro pois eu e Cassius

tiacutenhamos ido no evento na PUC enquanto eles tinham ficado descansando no hotel

pois haviam chegado em SerroMG naquele dia sexta-feira 06 de marccedilo depois de

uma longa viagem Geralda ressaltou que o rapaz Julio ndash dono do bar que fica ao

lado do hotel onde estaacutevamos hospedados ndash comentou com eles que quando os viu

jaacute pressentiu que eram parentes Ficaram entatildeo sabendo que D Zulmira e D Regina

ndash irmatildes de D Maria das Dores de quem estavam agrave procura ndash ainda moravam em

Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

No outro dia de manhatilde Geralda comentou comigo que natildeo tinha dormido

durante a noite porque ficou se lembrando de sua matildee e de seu pai das coisas que

eles contavam principalmente que andavam por todos aqueles morros carregando

suas coisas em cima da cabeccedila e que era muito sofrido Geralda completou

lamentando todo este tempo que eles almejaram sem poderem retornar pois ficavam

esperando juntar um dinheiro para poder vir caccedilar os parentes Lembrou-se tambeacutem

que Manoel queria ter mandado buscar sua irmatilde Ana Raimunda mas que nunca lhe

sobrava dinheiro

Fomos todos juntos entatildeo ao segundo dia do seminaacuterio na PUC A

participaccedilatildeo de Geralda Adir e Seu Joatildeo foi muito significativa A mesa do saacutebado de

Acesso em 141015 Santo Antocircnio do Itambeacute soacute se tornou um municiacutepio independente de Serro em 1963 sete anos depois que Manoel e demais famiacutelias saiacuteram de laacute

183

manhatilde se chamava ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos

geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova

(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo Como palestrantes estavam o professor Ricardo

Cassius e duas lideranccedilas quilombolas Seu Adatildeo lideranccedila da Comunidade

Quilombola Vila Nova e Adir lideranccedila da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco

dos Santos No tiacutetulo da mesa percebe-se a conexatildeo como apontado pelo segundo

relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade em GuaiacuteraPR entre a trajetoacuteria histoacuterica de

deslocamentos da comunidade em GuaiacuteraPR com os processos de migraccedilatildeo da

Comunidade Vila Nova pois na regiatildeo de origem do grupo esta jaacute era uma

caracteriacutestica marcante

Com base na pesquisa realizada para o segundo relatoacuterio antropoloacutegico

Cassius expocircs um panorama da trajetoacuteria de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues desde

Minas Gerais ateacute o Paranaacute Ao ouvirem a fala de Cassius e verem as fotos de seus

parentes na apresentaccedilatildeo Adir Geralda e Seu Joatildeo que compunham a mesa natildeo

contiveram a emoccedilatildeo Para aleacutem de uma recuperaccedilatildeo histoacuterica da trajetoacuteria da famiacutelia

aquele momento tinha um valor simboacutelico muito marcante para eles pois estavam

sendo recebidos e acolhidos na regiatildeo de origem de sua famiacutelia em um momento de

reconhecimento e valorizaccedilatildeo dentro de uma universidade

Em sua fala Adir iniciou agradecendo a Deus aos Orixaacutes e a todos que

apoiaram a realizaccedilatildeo deste sonho de chegar na regiatildeo de origem de seu pai Contou

um pouco da histoacuteria de migraccedilatildeo e resistecircncia dos seus antepassados que saiacuteram

de Minas Gerais e foram buscar uma oportunidade de vida no estado de Satildeo Paulo e

depois no Paranaacute Refletiu sobre o processo de reconhecimento como quilombolas

das famiacutelias em GuaiacuteraPR os conflitos dele decorrentes e a persistecircncia da

comunidade em lutar pelo acesso agraves poliacuteticas puacuteblicas Concluiu dizendo ldquonossa luta

eacute em memoacuteria daqueles que jaacute foram e nossa luta eacute pela sobrevivecircnciardquo

184

FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova (MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo

A ideia de realizaccedilatildeo do seminaacuterio comeccedilou como forma de dar suporte agrave

nossa estadia na regiatildeo mineira para a qual eu e Cassius tambeacutem contribuiacutemos com

recursos pessoais e algum apoio das universidades agraves quais estaacutevamos vinculados

Por meio da articulaccedilatildeo com o professor do curso de direito da PUCSerro Matheus

de Mendonccedila Gonccedilalves Leite foi viabilizada parte da nossa alimentaccedilatildeo e

hospedagem aleacutem do auxiacutelio para deslocamento na regiatildeo Este evento tomou uma

proporccedilatildeo muito mais significativa do que o sentido pragmaacutetico que o motivou

inicialmente como mencionamos acima Nesta oportunidade tambeacutem ocorreu o

primeiro contato entre os quilombolas de Guaiacutera e da comunidade ldquoVila Novardquo que

fica localizada no distrito do municiacutepio de Serro chamado ldquoSatildeo Gonccedilalo do Rio das

Pedrasrdquo para onde nos deslocamos e permanecemos ateacute segunda-feira dia 09 de

marccedilo de 2015

Como mencionamos no capiacutetulo anterior foi com esta comunidade quilombola

que a pesquisa do segundo relatoacuterio antropoloacutegico indicou possiacuteveis relaccedilotildees de

parentesco A estadia junto agraves famiacutelias desta comunidade propiciou para Adir Seu

Joatildeo e Geralda uma experiecircncia de contato com um modo de vida especiacutefico que lhes

remeteu muito agraves histoacuterias de sua origem familiar Durante os trecircs dias em que laacute

ficamos Adir Geralda e Seu Joatildeo tentaram encontrar relaccedilotildees de parentesco atraveacutes

de nomes comuns da memoacuteria sobre os antepassados Muitos nomes de parentes

eram iguais o que gerou longa conversas ateacute nos darmos conta de que natildeo

185

estaacutevamos falando das mesmas pessoas Apenas no final da viagem com a nossa

estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pudemos entender qual era a ligaccedilatildeo entre

estas famiacutelias Como veremos no proacuteximo subitem o viacutenculo de parentesco ocorre

por meio dos ascendentes da famiacutelia da esposa de Seu Joatildeo D Maria das Dores

pelo lado de sua matildee Luzia Eleoteacuteria da Silva

FIGURA 24 Da esquerda para a direita Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo

O distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras fica a trinta quilocircmetros da sede

do municiacutepio de Serro com acesso por estrada de terra Estaacute situado no alto da Serra

do Espinhaccedilo a 1150 m de altitude e conta com vaacuterias cachoeiras que compotildeem uma

linda paisagem O distrito com em torno de mil e quinhentos habitantes surgiu no

iniacutecio do seacuteculo XVIII em decorrecircncia da intensificaccedilatildeo da exploraccedilatildeo de ouro na

regiatildeo do ldquoSerro Friordquo160 ndash hoje municiacutepio de Serro ndash e manteacutem ainda caracteriacutesticas

arquitetocircnicas do periacuteodo colonial A comunidade quilombola ldquoVila Novardquo localiza-se

na aacuterea urbana do distrito e laacute acessam os serviccedilos puacuteblicos disponiacuteveis como escola

posto de sauacutede telefonia aacutegua tratada energia eleacutetrica entre outros As casas das

famiacutelias quilombolas que compotildeem um mesmo grupo familiar ficam todas proacuteximas

Segundo seus relatos estas famiacutelias antes moravam no entorno do distrito sendo

oriundas da localidade de Aacutegua Santa proacuteximo ao Pico do Itambeacute onde atualmente

160 A antiga ldquoVila do Priacutencipe do Serro Friordquo foi sede de comarca uma das quatro primeiras da ldquoCapitania

das Minas Geraisrdquo Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015

186

se localiza o Parque Estadual do Pico do Itambeacute Mudaram-se para Satildeo Gonccedilalo

ainda na primeira metade do seacuteculo XX161 ldquoVila Novardquo eacute uma das cinco comunidades

quilombolas em Serro junto com as comunidades ldquoAusenterdquo e ldquoBauacuterdquo proacuteximas do

Distrito de Milho Verde e a ldquoComunidade do Oacuterdquo que se localiza neste distrito aleacutem

da comunidade de ldquoRibeiratildeo dos Porcosrdquo162 Eacute possiacutevel falar em um territoacuterio regional

cultural quilombola com forte presenccedila dessas comunidades nos municiacutepios no

entorno de Serro ateacute Diamantina onde uma meacutedia de trinta comunidades jaacute se

autorreconhecem como quilombolas163 A formaccedilatildeo destas comunidades estaacute

vinculada ao processo de exploraccedilatildeo de ouro e diamante com matildeo de obra escrava

sendo que os vastos espaccedilos territoriais desocupados permitiram na eacutepoca a

formaccedilatildeo de vaacuterios quilombos164

FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo conversando e ao

lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona

161 Conforme consta no segundo relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade ldquoManoel Ciriacordquo Procedimento

Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 728-730 [p 35-37] 162 As cinco comunidades de Serro receberam a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento da Fundaccedilatildeo

Cultural Palmares em 2012 Em MG ateacute fevereiro de 2015 duzentos e vinte e seis comunidades contavam com a certidatildeo e mais quarenta e trecircs aguardavam a finalizaccedilatildeo do procedimento A emissatildeo da certidatildeo eacute regulada pela Portaria nordm 98 de 2007 Dados disponiacuteveis em httpwwwpalmaresgovbrpage_id=88ampestado=MG httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploadscrqslista-das-crqs-processos-abertos-ate-23-02-2015pdf e Portaria disponiacutevel em httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploads201011legis21pdf Acesso em 161015 163 Levando em consideraccedilatildeo as comunidades nos seguintes municiacutepios Serro (5) Santo Antocircnio do

Itambeacute (3) Materlacircndia (6) Sabinoacutepolis (7) Senhora do Porto (1) Alvorada de Minas (1) Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (3) Gouveia (1) e Diamantina (1) Os dados satildeo da Comissatildeo Proacute Iacutendio de Satildeo Paulo (CPISP) Disponiacutevel em httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_mapa_zoom2html Acesso em 161015 164 ldquoQuilombos de Minas Gerais no seacuteculo XXI - Norte e nordeste do Estadordquo Disponiacutevel em

httpwwwcedefesorgbrindexphpp=colunistas_detalheampid_pro=2 Acesso em 161015

187

FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado pelo traccedilado vermelho FONTE ndash Google Maps

188

A conexatildeo entre as famiacutelias quilombolas de Manoel Ciriaco e de Vila Nova

para aleacutem das relaccedilotildees de parentesco expressou-se inclusive no fato de Seu Joatildeo

conhecer muitas pessoas em comum com os quilombolas de Vila Nova Quando

morava no Itambeacute ele ia da fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhava ateacute

Satildeo Gonccedilalo pois transportava para laacute cachaccedila que levava amarrada na cangaia do

burro Os moradores quilombolas da comunidade Vila Nova tambeacutem trabalharam para

o fazendeiro Zinho Gonccedilalves que era de uma famiacutelia abastada da regiatildeo com

propriedade em Santo Antocircnio do Itambeacute

Ao chegarmos na vila deixamos nossas coisas na casa de Jovelina que

funciona tambeacutem como ldquohospedagem familiarrdquo uma forma de receber os turistas que

visitam a localidade Nossa recepccedilatildeo pelos membros da comunidade quilombola ldquoVila

Novardquo no entanto natildeo foi como turistas mas como pesquisadores e quilombolas do

Paranaacute que estavam ali com o intuito de conhecer mais sobre a comunidade e

tambeacutem em busca de levantar possiacuteveis laccedilos de parentesco entre eles Jovelina

apesar de ser nossa anfitriatilde conviveu menos conosco por conta de seus afazeres

As tias maternas de Jovelina irmatildes de Margarida ndash D Necila e D Maria

Geralda ndash foram para mim e Geralda as nossas principais anfitriatildes Passamos horas

em conversas visitas a parentes passeios refeiccedilotildees rodas de muacutesica entrevistas e

viacutedeos Seu Joatildeo Adir e Cassius foram recepcionados por Seu Adatildeo e por seu irmatildeo

Jesu e juntos entre os homens fizeram tambeacutem os seus proacuteprios trajetos para

conhecer Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras

Foram muitas trocas de experiecircncias das quais destaco o interesse de

Geralda em aprender com aquelas senhoras bem como com demais moradores

quilombolas da comunidade sobre plantas medicinais oraccedilotildees e benzimentos

Geralda comentou durante uma de nossas conversas ldquoA gente que benze a gente

tem que ter remeacutedio e eu sei que ocecircs saberdquo Ela entatildeo me pediu para que eu

anotasse o nome das ervas medicinais e para o que elas serviam ndash suas formas

terapecircuticas de uso D Necila e D Maria Geralda foram se lembrando das plantas e

eu fui anotando e registrando com o gravador de voz a marcelica (ldquopra dar pra

crianccedilardquo) o marcelicatildeo (dor de barrigadiarreia) o quebra-pedra (rim) a badama (ldquobom

pro cabelordquolavar a cabeccedila) o quitoco (ajuda no periacuteodo de menstruaccedilatildeoldquobom pra

tudordquo tambeacutem eacute usado como tempero)

189

A carqueja o funcho o guineacute baiano o taquarinho do brejo a salsa parreira

o melatildeozinho de Satildeo Caetano entre diversas ervas foram assunto dos nossos

passeios pela comunidade e pelos quintais das casas quilombolas Conhecimentos

portanto que iam sendo compartilhados por meio de um monitoramento e de

engajamento ativos ao longo deste caminhar (INGOLD 2007 p 76) Seu Joatildeo ia

indicando os remeacutedios para Geralda e Adir que estavam sempre atentos buscando

reconhececirc-los e apontaacute-los pelo caminho Geralda comentou que em GuaiacuteraPR tem

remeacutedio que eacute difiacutecil de achar soacute no raizeiro Ela se lembrou que sua matildee havia levado

consigo desde Minas dentre outras sementes de quitoco para plantar e tinha mudas

no siacutetio em GuaiacuteraPR Junto com as pessoas em seus caminhos de migraccedilatildeo

portanto havia tambeacutem um circuito de sementes e plantas para seus quintais e

plantaccedilotildees que cultivariam em outras regiotildees Seu Joatildeo Adir e Geralda quando

retornaram desta viagem tambeacutem fizeram questatildeo de levar na bagagem sementes e

mudas que foram sendo separadas ao longo do percurso Guardadas como

lembranccedilas estabeleceriam novas conexotildees e continuidades entre eles e sua regiatildeo

de origem

Necessaacuterio frisar que Maria Geralda e Necila (ambas com mais de setenta

anos) Margarida (63) Adatildeo (em torno de 60) e Jesu (um pouco mais novo) nossos

principais interlocutores nesta comunidade satildeo filhos do casal Jovelina Calisto dos

Santos e Raimundo Gomes Ambos Jovelina e Raimundo satildeo primos de primeiro

grau filhos dos irmatildeos Ana Pedro da Silva e Clarindo Gomes Gouveia

respectivamente Os irmatildeos Ana e Clarindo por sua vez satildeo filhos do casal ancestral

ao qual se faz referecircncia na comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Francisco Lucindo e

ldquoMatilirdquo ndash Matilde Balbina de Arauacutejo

Seu Joatildeo conheceu por exemplo Raimundo Gomes e seu irmatildeo Elias

Gomes conhecido por ldquotio Iliardquo sobre quem contam em ldquoVila Novardquo histoacuterias de que

foi escravo Nesta famiacutelia tambeacutem haacute vaacuterios casos de parentes que como na histoacuteria

de Manoel Ciriaco saiacuteram da regiatildeo em busca de oportunidades de trabalho no estado

de Satildeo Paulo sendo que nunca mais souberam notiacutecia sobre alguns deles Joseacute

Bernardo filho mais velho de Jovelina e Raimundo por exemplo perdeu contato com

a famiacutelia e soacute muitos anos depois os irmatildeos encontraram seus sobrinhos e souberam

que Joseacute jaacute era falecido como nos contou seu Adatildeo

190

Eu e Cassius ficamos muito satisfeitos em ver a alegria de Adir Geralda e Seu

Joatildeo nos dias que passamos em Satildeo Gonccedilalo Esta alegria parecia decorrente da

sensaccedilatildeo de estarem em um ambiente de iguais em contraste com os relatos sobre

as experiecircncias de discriminaccedilatildeo que sofrem no Maracaju dos Gauacutechos onde se

percebem separados dos demais Seu Joatildeo que natildeo pegava no violatildeo segundo ele

desde que saiu de Minas tocou com o pessoal da comunidade nos trecircs dias que laacute

permanecemos Adir estava muito empolgado com aquele lugar no qual ainda se

preservava tanto as tradiccedilotildees dos antepassados como o uso dos fornos de barro e

de pedra presente em vaacuterias das casas pelas quais passamos Mesmo com todo seu

desejo de chegar em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Adir sofreu para se despedir dos

novos amigos Geralda estava muito feliz em conversar com aquelas senhoras que

lhe remetiam ao melhor das mulheres de sua famiacutelia muita sabedoria conhecimentos

histoacuterias de luta e resistecircncia receptividade religiosidade entre outras qualidades

Estas histoacuterias eram como um mosaico de experiecircncias nas quais podiam projetar o

modo de vida de seus antepassados pois viveram em um mesmo territoacuterio cultural

regional e tiveram contato entre si D Necila e D Maria Geralda por exemplo

conheceram Maria Olinda matildee de Seu Joatildeo e Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de Manoel

FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D Necila

191

323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Na noite de segunda-feira professor Matheus e Tiago foram nos buscar no

distrito de Satildeo Gonccedilalo para nos levarem a Santo Antocircnio do Itambeacute nossa uacuteltima

etapa da viagem Eles jaacute tinham nos informado que haviam combinado com o Instituto

Estadual de Florestas (IEF) que ficariacuteamos hospedados na sede do Parque Estadual

do Pico do Itambeacute Esta sede administrativa eacute uma grande casa colonial que fazia

parte da antiga Fazenda Satildeo Joatildeo adquirida pelo IEF Quando estaacutevamos chegando

na sede do Parque jaacute passava da meia noite Seu Joatildeo reconheceu entatildeo que

aquela era a mesma fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhou muitos anos

Seu Joatildeo jaacute havia nos relatado que ele entregava cachaccedila em Satildeo Gonccedilalo

depois voltava para um lugar chamado Condado e tinha que carregar tambeacutem ateacute o

Itambeacute trabalhando para Zinho Ele levava a cachaccedila em pipa amarrada em cima do

lombo do burro e caminhava longas distacircncias puxando aquele peso sendo que de

trecircs em trecircs dias ele refazia todo o percurso Nos contou que um dia ele percebeu que

estava ldquotrabalhando como escravordquo pois o que recebia natildeo era suficiente nem para a

alimentaccedilatildeo de sua famiacutelia Depois que havia voltado do Itambeacute jantou primeiro e foi

falar para o patratildeo que natildeo ia trabalhar mais para ele Ao relato de Seu Joatildeo Adir

completou ldquoeacute o quilombo invadindo a casa granderdquo

Seu Joatildeo com seu conhecimento sobre a regiatildeo e com sua capacidade de

acionar uma rede social mais ampla de parentesco foi o nosso ldquodescobridor de

caminhordquo durante a primeira viagem a Minas Gerais o que se intensificou enquanto

estivemos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ldquoDescobridor de caminhordquo eacute uma

expressatildeo cunhada pelo antropoacutelogo Tim Ingold cujas reflexotildees servem de base para

a nossa anaacutelise sobre a importacircncia do movimento para o modo de articulaccedilatildeo da

identidade quilombola do grupo Segundo o autor

Os lugares natildeo tecircm posiccedilatildeo e sim histoacuterias Unidos pelos itineraacuterios de seus habitantes os lugares existem natildeo no espaccedilo mas como noacutes em uma matriz de movimento Chamarei essa matriz de ldquoregiatildeordquo Eacute o conhecimento da regiatildeo e com isso a habilidade de uma pessoa situar-se na sua posiccedilatildeo atual dentro do contexto histoacuterico de jornadas efetuadas anteriormente ndash jornada para lugares de lugares e em volta de lugares ndash que distingue o nativo do forasteiro Assim descobrir-caminho consiste em mover-se de um lugar para outro em uma regiatildeo (INGOLD 2005 p 76)

192

A simples posse de um mapa portanto natildeo poderia substituir a presenccedila de

seu Joatildeo como um descobridor de caminhos com sua bagagem de experiecircncias e

com sua percepccedilatildeo do ambiente produzida ao longo dos anos em seus movimentos

que lhe permitiram realizar um mapeamento da regiatildeo a qual consiste em uma ldquorede

mais ampla de idas e vindasrdquo (INGOLD 2005 p 84) Seu Joatildeo foi assim o elo que

pocircde nos conectar e nos inserir nesta rede de lugares e parentes ao reconstituir um

circuito de relaccedilotildees sociais locais

No primeiro dia em Santo Antocircnio Itambeacute pela manhatilde depois que dormimos

a primeira noite na sede do parque terccedila-feira 10 de marccedilo saiacutemos pela estrada de

terra que liga a sede ao pequeno centro de Santo Antocircnio do Itambeacute No caminho

Adir comentou ldquoEacute como se noacutes voltasse a histoacuteria voltasse a paacutegina da nossa vida do

comeccedilo quando nosso pai andava por tudo Eu quero passar por todas as ruas local

onde ele passavardquo Novamente estava sendo reforccedilada a referecircncia ao caminhar

como forma de dar sentido ao modo de vida de seus antepassados naquele lugar ao

sacrifiacutecio que era andar por todos aqueles morros com as coisas que levavam em

cima da cabeccedila por leacuteguas e leacuteguas pois moravam em um siacutetio longe da vila do

Itambeacute Se os caminhos satildeo parte fundamental na construccedilatildeo da memoacuteria coletiva

quilombola na nossa experiecircncia da primeira viagem continuavam sendo referecircncia

central na percepccedilatildeo de Adir Geralda e Seu Joatildeo

Nesta estrada de chatildeo que percorriacuteamos logo avistamos acima uma primeira

casa Ali Seu Joatildeo se lembrou que antigamente morava um parente Quem nos

recebeu foi Zeacute Simatildeo que estava em frente da casa e tambeacutem nos avistou Seu Joatildeo

lhe perguntou se ele lembrava de Sebastiatildeo Vicente o tio dele irmatildeo de Manoel que

ficou morando nas terras da matildee Izidora Zeacute Simatildeo em resposta disse

Zeacute Simatildeo Entatildeo tem um moccedilo aqui que o senhor deve conhecer o Seu

Daniel

Seu Joatildeo Ele eacute filho de quem

Zeacute Simatildeo Ele eacute desse povo mesmo da mesma parentagem desse povo

mesmo de

Adir Sebastiatildeo Vicente

Zeacute Simatildeo Ele eacute filho de uma tal esqueci o nome da matildee dele filho de um

tal de Joatildeo Domingo

193

Seu Joatildeo Joatildeo Domingo Conheci demais Joatildeo Domingo era tio desse aqui

(vira-se para Adir e continua) esse aqui eacute meu irmatildeo da segunda mulher

Adir Irmatildeo de Maria Bernarda Ele taacute ai

Zeacute Simatildeo Taacute ai vou chamar ele

(Seu Daniel aparece na porta da casa um senhor negro de 80 anos de idade

cabelos brancos peacutes descalccedilos calccedila rasgada)

Seu Joatildeo Eacute o senhor mesmo que eu tocirc querendo ver E o senhor como eacute que

taacute O senhor lembra de mim (Estende a matildeo para cumprimentaacute-lo)

Seu Daniel Natildeo tocirc conhecendo natildeo

Seu Joatildeo Noacutes dois natildeo levava milho laacute pro senhor moer pra noacutes

Seu Daniel Onde Eu carregava milho pra Sebastiatildeo Dama

Seu Joatildeo Eu sou filho de Manoel Ciriaco sobrinho de Sebastiatildeo Paulo

Seu Daniel Sobrinho de Sebastiatildeo Paulo Natildeo tocirc lembrado mais

Seu Joatildeo O senhor natildeo lembra de Joatildeo natildeo

Seu Daniel Joatildeo

Seu Joatildeo Joatildeo que eles falavam Joatildeo de Izidora

Seu Daniel Joatildeo de Izidora Lembro Eacute o cecirc eacute o cecirc queacute eacute Joatildeo

Seu Joatildeo Eacute eu sou neto dela

Seu Daniel Oacute quanto tempo

Seu Joatildeo Taacute com trinta e quatro anos que eu saiacute daqui

Seu Daniel Ele eacute filho de Maneacute Paulo

Geralda Aiacute oacute o nome do meu pai aqui eacute Maneacute Paulo

Zeacute Simatildeo Vocecirc que eacute Joatildeo Joatildeo de Izidora

Seu Joatildeo soacute pocircde ser reconhecido na medida em que foi inserido na rede de

parentesco local Com a referecircncia ao seu nome de registro Joatildeo Loriano dos Santos

ningueacutem poderia identificaacute-lo Foi o que ocorreu quando durante a pesquisa para o

segundo relatoacuterio antropoloacutegico Cassius esteve em frente agrave casa das cunhadas de

seu Joatildeo D Regina e D Zulmira perguntando por parentes de Joatildeo Loriano dos

Santos e o casal que o recebeu (filha de Zulmira e seu marido) respondeu que natildeo

conhecia esta pessoa Manoel Ciriaco por sua vez era conhecido como ldquoManeacute Paulordquo

194

ou ldquoManeacute de Paulardquo ou ainda ldquoManeacute de Izidorardquo pois era filho de Joaquim de Paula e

Izidora Nesta forma de nominaccedilatildeo usa-se o nome da pessoa acompanhado de

expressatildeo que aponta a identificaccedilatildeo a partir de um antepassado ou cocircnjuge

Seu Daniel como descobrimos no comeccedilo da conversa eacute primo de primeiro

grau de Ana Rodrigues matildee de Adir e Geralda O pai dele Joatildeo Domingos era irmatildeo

de Maria Bernarda matildee de Ana Rodrigues Ficamos por volta de trecircs horas na casa

em que moram Seu Daniel sua filha seu genro e seu neto com meses de vida Seu

Daniel nos recebeu muito bem e estava muito feliz em rever Seu Joatildeo um velho

amigo e conhecer Adir e Geralda seus primos de segundo grau Conversamos

longamente com ele enquanto eu e Cassius adicionaacutevamos as informaccedilotildees na aacutervore

genealoacutegica da famiacutelia especialmente sobre dados a respeito da famiacutelia de sua tia

paterna Maria Bernarda sobre a qual ele guardava muitas memoacuterias

FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel

3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda

Quando saiacutemos da casa de seu Daniel fomos procurar junto com Zeacute Simatildeo

a casa de D Regina e D Zulmira cunhadas de Seu Joatildeo e irmatildes de D Maria das

Dores que havia enviado por noacutes uma mensagem em viacutedeo para ser mostrada a seus

irmatildeos ldquoos que tive vivordquo No caminho logo encontramos a filha de D Regina

Aparecida que seu Joatildeo reconheceu ao avistaacute-la na rua quando ela e outras

195

mulheres voltavam para casa da roccedila Aparecida muito feliz de reencontrar o tio nos

levou entatildeo direto para a casa de D Zulmira pois sua matildee D Regina estava longe

trabalhando na roccedila Primeiro Aparecida foi na frente e contou para a tia D Zulmira

que Seu Joatildeo o cunhado dela estava chegando e que a irmatilde D Maria das Dores natildeo

tinha vindo mas que deram notiacutecia que ela estava bem D Zulmira jaacute se emocionou

muito com a novidade e agradeceu a Deus a Jesus Cristo louvando a possibilidade

deste reencontro Abraccedilou Seu Joatildeo e depois ele Adir e Geralda foram logo lhe

dando notiacutecias dos familiares que tinham saiacutedo dali para o Paranaacute como Manoel e

Ana que jaacute tinham falecido Olegaacuterio e Jovelina que estatildeo vivos Ela tambeacutem foi

atualizando seu Joatildeo e contando sobre os parentes que continuaram morando na

regiatildeo

Mostramos entatildeo para D Zulmira o viacutedeo com a mensagem enviada por sua

irmatilde D Maria das Dores a qual mencionamos acima D Zulmira falou que natildeo

achava que veria eles mais

D Zulmira O meu Santiacutessimo Sacramento porquecirc que some assim Ai meu nosso Senhor Que benccedilatildeo de Jesus Deus Deus achou

Cassius Eacute sua irmatilde

D Zulmira Eacute minha irmatilde meu fio Ai meu Deus Eacute das mais nova Ela deve ter uns sessenta anos Ela taacute muito bonita Eacute ela mesmo

Adir Eacute ela

D Zulmira Como eacute que eu tocirc gente Que Deus Ocirc minha Nossa Senhora cecirc trouxe o meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer ainda (se abaixa com as matildeos no rosto e comeccedila a chorar) Graccedilas a Deus Faz vinte anos ou vinte e cinco

Adir Eacute muita emoccedilatildeo

D Zulmira Eu perdi tantos irmatildeo

Adir Mas a senhora ainda vai ver ela Se Deus quiser a senhora vai ver

O nosso encontro com D Zulmira (73 anos) e depois com D Regina (78

anos) que logo chegou da roccedila foi uma experiecircncia uacutenica para todos os presentes

Segundo elas receber notiacutecias da irmatilde e rever o cunhado era a concretizaccedilatildeo de uma

intercessatildeo divina pela qual sempre rezavam buscando esperanccedilas para acreditar

que um dia este reencontro poderia acontecer Em seguida pedimos para que elas

196

mandassem uma mensagem que levariacuteamos de volta para D Maria das Dores Dona

Regina que estava mais calma comeccedilou mandando o seu recado

Hoje eu tocirc chegando da roccedila e tive a maior surpresa com a maior satisfaccedilatildeo cumadi Maria de ver o meu cumpadi Joatildeo mais a famiacutelia dele Eu tive muito prazer que eu vivia sempre na cabeccedila achando que nem vivo ocecircs era porque ocecircs tambeacutem natildeo dava nem notiacutecia pra mim E eu perdi o contato com ocecircs porque tomaram o endereccedilo e nunca mais me deram Entatildeo eu fiquei sem jeito de ligar pra vocecircs Agora ocecircs de laacute pra caacute tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacute Entatildeo cumadi Maria hoje eu tocirc no maior prazer na maior riqueza sou veia e pra mim fiquei nova de prazer de saber notiacutecia da minha irmatilde com a famiacutelia dela e meu cumpadi Joatildeo Cumadi Maria breve noacutes vamos encontra se Deus quiser Agora eu natildeo vou natildeo mas eu vou

Dona Zulmira depois tambeacutem deixou sua mensagem

Cumadi Maria eu minha fia graccedilas a Deus tive tanto prazer que eu vi a sua famiacutelia que chegou de laacute a moccedila e o rapaz o cumpadi Joatildeo o irmatildeo dele a irmatilde dele eu fiquei tatildeo emocionada de vecirc essa famiacutelia prazerosa que Jesus mandou pra noacutes nesse horaacuterio certo que chegou devia de ser meio dia Eu fiquei tatildeo emocionada que eu vou falar procecirc que eu natildeo tive ideia de dar pra eles nada a ideia que eu tive foi de chorar Fiquei tatildeo feliz tatildeo satisfeita tatildeo alegre porque sempre eu pensava assim ldquoEacute de vera a minha irmatilde foi embora essa eu natildeo vejo ela maisrdquo Mas Deus abenccediloou que trouxe eles em paz com vida e sauacutede e assim eacute de trazer a senhora tambeacutem E que breve se Deus quiser noacutes vamos encontrar E cecirc vecirc que depois que a senhora foi noacutes perdeu nossa matildee noacutes perdeu nosso pai noacutes perdeu meu irmatildeo Erosino a Benedita e a Margarida entatildeo cecirc sabe Eu fiquei assim pro rumo natildeo sube nem cumprimentar eles como eles merecia de tanta emoccedilatildeo que eu fiquei Mas eu fiava em Deus que eu esperava sempre que Deus ia abenccediloar que um dia que ocecircs tivesse a par ocecircs vinha caacute e noacutes encontrava Eu fiquei tatildeo feliz que soacute cecirc vendo Natildeo soube nem tratar eles como eles merecia E a companhia deles a moccedila mais o rapaz que tava com eles de fora que tambeacutem eacute outros irmatildeo tudo que eu fiquei toda feliz e tudo eu considerei por minha famiacutelia E Deus que te abenccediloa e algum dia noacutes encontra

A experiecircncia de ter um parente perdido era para elas muito angustiante

pois se a pessoa morre eacute porque ldquoDeus levardquo mas no caso de D Maria das Dores a

anguacutestia estava nesta duacutevida que se estendia por anos da ausecircncia de qualquer

notiacutecia Fazia dezenove anos que D Maria das Dores tinha ido pela uacuteltima vez para

Santo Antocircnio do Itambeacute A responsabilidade de fazer o movimento para o reencontro

como pode se depreender do comentaacuterio de D Regina ndash ldquoAgora ocecircs de laacute pra caacute

tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacuterdquo ndash afinal de contas eacute atribuiacuteda agravequeles que

migraram pois sabiam para onde voltar para encontrar os parentes diferente dos que

permaneceram na regiatildeo para quem seria muito mais difiacutecil tal busca

197

FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das Dores

Com o pouco tempo que passamos com D Regina e D Zulmira criamos com

elas uma conexatildeo muito forte Eu e Cassius entatildeo nos comprometemos a ajudar a

levar a D Maria das Dores para reencontraacute-las assim que fosse possiacutevel Com D

Zulmira e D Regina tambeacutem conversamos sobre a aacutervore genealoacutegica com enfoque

nos antepassados e compreendemos entatildeo o viacutenculo de parentesco da famiacutelia de

Manoel Ciriaco com a comunidade quilombola ldquoVila Novardquo165

O viacutenculo de parentesco se daacute por meio de D Maria das Dores que eacute filha de

Luiza Eleoteacuteria da Silva e neta de Virgulino Martins Gomes Virgulino por sua vez era

irmatildeo de Clarindo Gomes e filho de Matili e Francisco Lucindo o casal ancestral

estruturante da comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Clarindo Gomes era pai de

Raimundo Gomes e avocirc de seu Adatildeo D Necila D Maria Geralda e Jesu nossos

anfitriotildees em Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras Portanto Raimundo Gomes filho de

Clarindo eacute primo de primeiro grau de Luzia Eleoteacuteria filha de Virgulino e matildee de D

Maria das Dores

165Aleacutem da importacircncia das relaccedilotildees de parentesco destacadas ateacute aqui eacute necessaacuterio aprofundar a

pesquisa a respeito das relaccedilotildees de compadrio que parecem centrais tambeacutem neste caso para reforccedilar os viacutenculos de parentesco

198

Por meio de dois casamentos a famiacutelia de Luzia Eleoteacuteria da Silva se conecta

com a famiacutelia de Manoel Trata-se do casamento entre D Maria das Dores (filha de

Luzia) e Seu Joatildeo (filho de Manoel) e entre Zeacute (filho de Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de

Manoel Ciriaco) e Benedita (irmatilde de D Maria das Dores) D Maria das Dores nos

falou tambeacutem da possibilidade de uma conexatildeo entre as famiacutelias na geraccedilatildeo

ascendente mais distante agrave qual tivemos referecircncias Ela achava que ldquoVovoacute Matilirdquo

sua bisavoacute era irmatilde de Joseacute Domingos pai de Maria Bernarda e avocirc de Ana

Rodrigues (esposa de Manoel) bisavocirc portanto de Adir e Geralda conforme Excerto

Genealoacutegico apresentado abaixo Em alaranjado destacam-se os trecircs membros da

famiacutelia D Jovelina D Maria das Dores e Seu Joatildeo os quais efetivamente retornaram

a Minas Gerais por meio destas duas viagens pois laacute jaacute haviam morado Em amarelo

destacam-se os parentes com quem eles se encontraram durante as duas viagens

199

FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4

200

Segundo D Zulmira a famiacutelia de ldquovovoacute Matilirdquondash originaacuteria de Aacutegua Santa ndash era

muito pobre Este lugar atualmente estaacute abrangido pelo Parque Estadual do Pico do

Itambeacute uma unidade de conservaccedilatildeo de proteccedilatildeo integral em decorrecircncia da qual os

uacuteltimos moradores foram retirados da aacuterea e reassentados Esta localidade de acordo

com D Zulmira era ldquoterra de ningueacutemrdquo uma ldquoterra de heranccedilardquo onde passaram

muitas dificuldades e por isso de laacute saiacuteram Com tais explicaccedilotildees pudemos comeccedilar

a compreender a conexatildeo entre a famiacutelia de D Maria das Dores e a famiacutelia da

comunidade quilombola ldquoVila Novardquo que tambeacutem originaacuteria de Aacutegua Santa bem como

conhecer um pouco de sua histoacuteria de deslocamentos dentro de uma mesma

regiatildeo166

Depois que saiacutemos da casa de D Zulmira e D Regina naquele dia 10 de

marccedilo voltamos para a casa de Zeacute Simatildeo pois ele tinha dito que sabia o paradeiro

de D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que ajudou a criar Seu Joatildeo junto com

a avoacute Izidora Contratamos uma van escolar para nos levar de Itambeacute ao Serro na

casa que Zeacute Simatildeo indicava como sendo de D Ana Raimunda Natildeo tiacutenhamos certeza

se era a mesma pessoa de quem estaacutevamos falando pois alguns como a proacutepria D

Zulmira achavam que ela jaacute tivesse morrido Mas Zeacute Simatildeo genro de Seu Daniel

que nos contou que tambeacutem foi criado por Ana Raimunda afirmou que tinha ido visitaacute-

la recentemente Quando chegamos em sua casa logo na primeira pergunta que Adir

fez jaacute tivemos a confirmaccedilatildeo ldquoAna Raimunda irmatilde de Sebastiatildeo de Paulardquo Ela

respondeu ldquoEacute eu mesmordquo

Ana Raimunda da Silva nasceu em 19 de fevereiro de 1925 e tem 87 anos

Viuacuteva seu companheiro Joseacute Teoacutefilo dos Reis faleceu em 31 de agosto de 2014

quando ambos estavam hospitalizados Depois da morte de Teoacutefilo e de sua

recuperaccedilatildeo D Ana continuou morando na mesma casa e ldquopor natildeo ter parentes que

moram proacuteximordquo passou a receber cuidados da vizinhanccedila contando com uma

cuidadora chamada ldquoFatinhardquo Passou a receber tambeacutem o auxiacutelio de ldquopensatildeo por

morterdquo ndash com o intermeacutedio de Josiane outra vizinha que lhe auxiliava com as questotildees

financeiras e prestava esclarecimentos ao Centro de Referecircncia Especializado de

Assistecircncia Social (CREAS) ndash segundo consta do relatoacuterio da assistente social que

Josiane e Fatinha fizeram questatildeo de nos mostrar

166 Questatildeo que como jaacute mencionamos foi apontada pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir da pesquisa realizada por Cassius em 2012 a qual merece desdobramento em pesquisa posterior

201

Seu Joatildeo se apresentou ldquoE a senhora lembra de mim Joatildeo de Izidora que a

senhora criourdquo E jaacute foi logo falando que iria levaacute-la embora com ele para Presidente

PrudenteSP Geralda tambeacutem se apresentou como filha de ldquoManeacute de Paulardquo e

perguntou sobre quais filhos de Maneacute que D Ana ainda tinha lembranccedila D Ana se

lembrou primeiro da sobrinha Jovelina e entatildeo Geralda lhe deu o recado de sua irmatilde

ldquoEla disse que vai vir aqui pra buscar a senhorardquo D Jovelina e D Ana Raimunda

puderam conversar por telefone e ficaram muito felizes depois de cinquenta e nove

anos sem se falarem Jovelina estava desde que saiacutemos de Presidente PrudenteSP

esperando notiacutecias se tiacutenhamos conseguido encontrar sua tia que junto com a avoacute

Izidora cuidou dela de Joatildeo e de Olegaacuterio quando eram pequenos e ficaram sem a

matildee Maria Olinda que havia falecido

Noacutes ficamos horas conversando com ela sobre os parentes e ela nos contou

muitas histoacuterias D Ana Raimunda eacute irmatilde de Manoel Ciriaco apenas por parte de pai

ndash Joaquim Guilherme de Paula ndash assim como Sebastiatildeo Vicente de Paula filhos de

matildees diferentes informaccedilatildeo que Adir e Geralda desconheciam O uacutenico dos irmatildeos

que era filho de Izidora era Manoel Ciriaco Ana Raimunda contou que ela eacute filha de

Joaquim de Paula Guilherme com a sobrinha de Izidora Luiza Eufraacutesio da Silva

Quando Ana nasceu sua matildee Luiza tinha a intenccedilatildeo de em seguida matar o bebecirc

pois era fruto de uma gravidez indesejada D Ana contou entatildeo que Izidora mesmo

com a traiccedilatildeo do marido interveio para lhe salvar enrolando-a na saia Depois disso

sua matildee bioloacutegica Luiza foi embora e ela nunca mais a viu Izidora foi quem a criou

e em retribuiccedilatildeo D Ana cuidou dela ateacute sua morte

Uma hora no meio da conversa D Ana comentou com Fatinha ldquoVocecirc viu a

borboleta A borboleta aqui oacute todo mundordquo E D Ana entatildeo nos explicou sobre o

que estava falando

ldquoChegou uma borboleta aqui de tarde ela chegou ai na porta fez assim oacute (fez o gesto da borboleta voando com a matildeo) e sumiu Ai eu falei assim ldquoUai Fatinha a borboleta taacute chegando aqui na porta quarque coisa eacute alguma notiacutecia ela vai dar E laacute em casa no quarto tem uma direto laacuterdquo (risos)

A borboleta veio anunciando para D Ana a chegada dos sobrinhos Ela havia

recebido haacute algum tempo a notiacutecia por outros parentes da parte de seu irmatildeo

Sebastiatildeo Vicente de Paula que moram na regiatildeo de que seus sobrinhos Olegaacuterio e

Joatildeo jaacute haviam falecido Segundo ela a notiacutecia que eles lhe haviam dado visava

202

confirmar o domiacutenio que o filho de Sebastiatildeo Vicente Geraldo tem hoje sobre a terra

que foi de Izidora E D Ana nos contou que desde que recebeu a notiacutecia rezava

para alma de Joatildeo e Olegaacuterio todos os dias

FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda

Ela natildeo podia imaginar que naquele dia Seu Joatildeo iria visitaacute-la trazendo

consigo mais dois sobrinhos para ela conhecer Geralda e Adir que nasceram no

Paranaacute E D Ana agradeceu ldquoGraccedilas a Deus Eacute Deus que trouxe ocecircs Todo mundordquo

D Ana explicou que natildeo poderia ir agora com eles embora de Serro pois ela ainda

precisava ficar por mais um tempo ali para poder resolver algumas questotildees

pendentes sobre a heranccedila de Teoacutefilo seu marido que faleceu Segundo nos contou

com tristeza os parentes que moram na regiatildeo natildeo visitam mais ela quase natildeo tecircm

contato Ressentiu-se de ficar muito sozinha pois estaacute debilitada e precisando de

cuidados Com a diabetes ela ficou com uma ferida que estava aberta no peacute e que a

impedia de caminhar sem apoio

Noacutes entatildeo combinamos que iriacuteamos manter contato para que ela pudesse ir

passar um tempo com eles no estado de Satildeo Paulo e no Paranaacute Voltando para a

sede do parque naquele 10 de marccedilo de 2015 conversaacutevamos sobre como aquele

tinha sido um dia que entrou para a histoacuteria da famiacutelia No mesmo dia haviacuteamos

encontrado as pessoas que eles mais almejavam as irmatildes de D Maria das Dores D

Zulmira e D Regina e a irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda

203

3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda

No outro dia o quinto e uacuteltimo que ficamos na regiatildeo passamos na igreja

matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Geralda reforccedilou vaacuterias vezes como estava

realizada por chegar naquele lugar sagrado pois nunca tinha imaginado que um dia

poderia ir na igreja que foi frequentada por seu pai e sua matildee onde eles tambeacutem se

casaram

FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

A ldquoIgreja Matriz de Santo Antocircniordquo eacute a uacutenica igreja catoacutelica do municiacutepio

Construiacuteda no seacuteculo XVIII se tornou paroacutequia no ano de 1868 Apesar do desgaste

da construccedilatildeo com o passar do tempo a imagem de Santo Antocircnio estaacute preservada

e fica em destaque do lado do altar As histoacuterias sobre a imagem do santo remontam

agrave eacutepoca de construccedilatildeo da igreja matriz Conta-se como a imagem eacute viva167 pois havia

167 ldquoOs santos constituem o exemplo mais claacutessico de objetos ndash objetos de barro ou madeira objetos

narrativos objetos sem mais ndash e de ldquofeitichesrdquo que se manifestam como atores que em cada um de seus avatares natildeo se comportam como intermediaacuterios ou como signos transparentes mas como

204

sido construiacuteda uma capela para abrigaacute-la em outro lugar mas a imagem aparecia no

local onde fica atualmente a igreja como um sinal do santo de que era ali o lugar onde

a igreja deveria ser construiacuteda

Esta era a igreja em que Padre Joviano atuava Como comentamos acima

Padre Joviano foi quem criou Maria Olinda matildee de Joatildeo Jovelina e Olegaacuterio Sobre

ele contaram como era muito caridoso e amoroso com todos e por isso eacute ainda hoje

muito estimado pelo povo do lugar que o considera santo168 Ele estaacute enterrado dentro

da igreja onde as pessoas acendem velas e fazem pedidos por sua intercessatildeo

Joviano Alves Diamantino nasceu em 08 de julho de 1874 e faleceu em 10 de maio

de 1965 com 91 anos Como D Maria Geralda e D Necila haviam nos contado ele

era proveniente do distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras tendo ido depois morar

em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

Acima de seu tuacutemulo estaacute afixado em uma placa os seguintes dizeres ldquoComo

Pedro foi pedra fundamental dos ensinamentos de Cristo Padre Joviano foi o pilar da

feacute do povo desta terrardquo Natildeo por acaso a data de sua morte eacute celebrada no calendaacuterio

cultural do municiacutepio conforme consta na paacutegina virtual da prefeitura169 Em duas

casas que visitamos de pessoas que foram suas contemporacircneas no municiacutepio de

Santo Antocircnio do Itambeacute ndash de Seu Daniel e de D Regina ndash vimos a imagem do padre

em um porta-retrato afixado na parede

mediadores razoavelmente opacos () Os meus livros estatildeo cheios de exemplos de como as imagens sagradas (essas imagens tatildeo desprezadas por todos os iconoclastas) satildeo muito mais ativas do que parece a sua materialidade natildeo passa despercebida aos fieacuteis que a partir dela elaboram novos relatos a respeitordquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 215) 168 Segundo o antropoacutelogo Calavia Saez os santos satildeo achados e domesticados por meio de um

processo de canonizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica mas natildeo satildeo instituiacutedos pela instituiccedilatildeo pois tem origem na margem como no caso dos cultos a mortos praticamente anocircnimos (CALAVIA SAEZ p 200) 169 Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidadecalendario-de-eventos Acesso em

121015

205

FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel

Padre Joviano eacute portanto personagem destacado da histoacuteria local como

tambeacutem se evidencia no hino municipal

Estribilho ndash I Para alto para frente Com civismo amor e feacute Povo forte nobre gente Santo Antocircnio do Itambeacute II Das bandeiras heroacuteicas e rudes Tu herdastes os anseios e a feacute Guardiatildeo de lendaacuterias virtudes Junto a ti se levanta o Itambeacute III Foste em Minas o berccedilo do prelo Esta gloacuteria tu tens sem rival Com Geraldo Pacheco de Melo170 Desfraudando o pendatildeo liberal IV Joviano chamou-se o teu Santo Outro igual nunca mais tu teraacutes Seja sempre teu nome o teu canto Numa prece de amor e de paz (grifos nossos)171

Por ter criado Maria Olinda o padre ocupa a posiccedilatildeo de avocirc de Olegaacuterio

Jovelina e Joatildeo Seu Joatildeo nos contou que conviveu muito na casa do padre que

passava por laacute e o padre o chamava de ldquominha Maria Olindardquo ao se lembrar da filha

de criaccedilatildeo que jaacute era falecida Nos contou tambeacutem como o padre sempre lhe dava

algo para comer em um gesto de cuidado e consideraccedilatildeo Hoje a casa do padre eacute

uma moradia particular Na frente haacute uma placa talhada em madeira com a

identificaccedilatildeo ldquoSolar do Padrerdquo

170 Outro importante personagem da histoacuteria local foi ourives e jornalista tendo fundado o primeiro jornal

da regiatildeo ldquoLiberal do Serrordquo em 1828 Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiSanto_AntC3B4nio_do_ItambC3A9 Acesso em 1210015 171 Hino do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute Letra composta por Padre Celso de Carvalho e

melodia por Mozart Bicalho Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidade Acesso em 121015

206

Na imagem abaixo esta relaccedilatildeo de parentesco fica simbolizada na disposiccedilatildeo

assumida por Geralda Seu Joatildeo e Adir ndash que estaacute com as matildeos no ombro da estaacutetua

de Padre Joviano ndash que parece apontar para a percepccedilatildeo de uma continuidade entre

passadopresente e mortosvivos como em outros momentos jaacute destaquei neste

trabalho

FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano

3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente

Seu Joatildeo Adir e Geralda natildeo poderiam segundo eles ir embora sem antes

passarem na terra que foi de Izidora onde Manoel Ciriaco viveu ateacute sua saiacuteda da

regiatildeo Seu Joatildeo ateacute 1981 quando foi morar no siacutetio de seu pai em GuaiacuteraPR

tambeacutem viveu na terra que pertencia a sua avoacute Izidora Nela atualmente moram

parentes que pelas informaccedilotildees que tivemos teriam recebido autorizaccedilatildeo de Geraldo

ndash filho de Sebastiatildeo Vicente de Paula que era irmatildeo de Manoel e D Ana Raimunda ndash

que com a morte do pai ldquotomou conta de tudordquo nos termos D Ana Ela tambeacutem nos

207

contou que quando Manoel foi embora Sebastiatildeo Vicente ocupou toda a terra e natildeo

deixou nenhum espaccedilo para ela que passou a viver na cidade do Serro172

Seu Joatildeo jaacute muito contrariado com tudo que havia sido falado sobre as

ldquoarbitrariedadesrdquo173 do falecido Sebastiatildeo Vicente e agora de Geraldo preparou-se

para conversar com seu primo sobre como tinha ficado a questatildeo do documento da

terra Quando chegamos laacute o clima era hostil Geraldo foi muito incisivo em afirmar

que os filhos de Manoel Ciriaco natildeo teriam mais direito nenhum sobre aquela terra

pois toda a aacuterea tinha sido registrada como propriedade de seu pai Sebastiatildeo Vicente

jaacute que Manoel tinha ido embora dali e nunca mais voltado Como apontamos no

primeiro capiacutetulo a migraccedilatildeo consiste em uma estrateacutegia importante precisamente

para excluir da heranccedila membros da famiacutelia visando evitar o fracionamento da terra

a um ponto que inviabilize a reproduccedilatildeo camponesa (WOORTMANN 2009)

Por outro lado esta postura de Geraldo desconsiderava que Seu Joatildeo havia

morado nesta aacuterea ateacute 1981 e que os irmatildeos filhos do segundo casamento de Manoel

ndash Joaquim e Antocircnio ndash haviam ido ateacute laacute na deacutecada de 1980 quando Sebastiatildeo

Vicente ainda era vivo para vender a parcela hereditaacuteria que cabia a Manoel Ciriaco

Na eacutepoca conforme me contou Joaquim tinham sido recebidos tambeacutem com

hostilidade e a resposta do seu tio foi que ldquonatildeo negociava com molequerdquo e que

Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel era quem teria que ir pessoalmente laacute para

que fosse feito qualquer acordo Esta fala de Sebastiatildeo Vicente mostra que soacute o

primogecircnito dentre os filhos de Manoel ndash que ademais nasceu e morou na aacuterea ndash

poderia reivindicar a parte do pai ao passo que Antocircnio ndash que saiu de MG com quatro

anos de idade ndash e Joaquim ndash que nasceu na regiatildeo de Presidente PrudenteSP no

municiacutepio de CaiabuSP ndash ambos filhos do segundo casamento natildeo seriam

172 Pelo que se pocircde observar ateacute o momento haacute uma possibilidade de que as mulheres segundo o

arranjo costumeiro natildeo fossem herdeiras pois no sistema tradicional camponecircs geralmente elas natildeo satildeo incluiacutedas na heranccedila sendo portanto recompensadas por meio do dote pago agrave famiacutelia do marido quando se casam Posteriormente a mulher eacute incluiacuteda na heranccedila do marido (SEYFERTH 1985) Para poder fazer esta afirmaccedilatildeo de modo mais consistente no entanto seraacute necessaacuterio um aprofundamento da pesquisa na regiatildeo Soacute desta forma seraacute possiacutevel compreender as regras locais sobre o direito de heranccedila 173 Os dados levantados indicam que este parece ser um caso de ldquoheranccedila indivisardquo ou ldquoheranccedila

impartiacutevelrdquo camponesa conforme o direito costumeiro tendo em vista que o modelo de heranccedila igualitaacuteria por todos os herdeiros previsto no direito civil natildeo corresponde agraves estrateacutegias acionadas no mundo rural brasileiro Neste modelo de ldquoheranccedila indivisardquo apenas um herdeiro fica com toda a propriedade familiar (SEYFERTH 1985) No caso em questatildeo a heranccedila fica para Sebastiatildeo Vicente ao passo que Manoel migra para o Paranaacute e Ana Raimunda natildeo herda nenhuma parcela

208

reconhecidos pelo tio neste sentido conforme apontariam as regras locais de direito

costumeiro

Deve-se levar em conta ainda que os acordos locais sobre os acertos de

heranccedila podem abranger estrateacutegias variadas conforme as condiccedilotildees de escassez de

terras bem como outros fatores importantes avaliados em um dado momento Aleacutem

desta possibilidade de variaccedilatildeo das proacuteprias regras conforme a situaccedilatildeo eacute possiacutevel

perceber neste caso especiacutefico da famiacutelia de Manoel que haacute uma variaccedilatildeo no modo

de interpretaccedilatildeo das regras a partir da perspectiva especiacutefica dos sujeitos que estatildeo

posicionados de modos diferentes na estrutura familiar Eacute possiacutevel tambeacutem que haja

uma combinaccedilatildeo da estrateacutegia interpretativa local com os argumentos da legislaccedilatildeo

civil nacional

No caso de Seu Joatildeo Adir e Geralda pude observar nas conversas sobre o

tema da heranccedila a presenccedila do entendimento de que os filhos de Manoel que

moraram na terra de sua avoacute Izidora teriam o direito de retorno e de reivindicaccedilatildeo de

uma parte da aacuterea mesmo depois de anos que saiacuteram da regiatildeo Galizoni em estudo

sobre a regiatildeo no Alto Vale do Jequitinhonha muito proacuteximo da aacuterea aqui em questatildeo

apontou como a entrada do herdeiro potencial com seu retorno apoacutes a migraccedilatildeo eacute

uma situaccedilatildeo conflituosa Isso porque se cria sobre a terra ldquocamadas de direitos que

convivem uns com os outros e se sobrepotildeemrdquo (GALIZONI 2002 571)

Idealmente todos os irmatildeos tecircm direitos iguais assim como todos os netos e bisnetos Acontece que no jogo de dados que se estabelece entre filhos (as) no interior da famiacutelia e as conjunturas externas dadas por migraccedilatildeo trabalho casamento processos de acumulaccedilatildeo e ambiente cria-se uma diferenciaccedilatildeo interna na famiacutelia que se refletiraacute nas diversificaccedilotildees de trajetoacuterias e destinos e seraacute fundamental para a construccedilatildeo do herdeiro e do migrante Essas diferenciaccedilotildees podem ocorrer tanto na mesma geraccedilatildeo ndash entre irmatildeos por exemplo ndash quanto entre geraccedilotildees no caso tios e sobrinhos A partilha da terra e a sua passagem entre geraccedilotildees ocorrem atraveacutes de um processo que se desenrola no interior da famiacutelia articulado com processos exteriores (GALIZONI 2002 571)

No jogo entre herdeiros a terra principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos

agricultores eacute valorizada como um recurso valioso de modo que as disputas entre

parentes pela heranccedila camponesa decorrem de sua escassez A interpretaccedilatildeo por

parte de Seu Joatildeo Adir e Geralda acima mencionada de que os filhos de Manoel

Ciriaco que viveram neste siacutetio em Santo Antocircnio do Itambeacute seriam ldquoherdeiros

potenciaisrdquo ndash entendendo a heranccedila como um viacutenculo simboacutelico que natildeo se dilui com

209

o tempo e que garante assim a possibilidade de retorno ou reivindicaccedilatildeo da parcela

hereditaacuteria ndash conjugou-se com a possibilidade discutida naquele momento de que

futuramente decidissem acionar judicialmente o direito agrave reparticcedilatildeo igualitaacuteria entre os

herdeiros previsto na legislaccedilatildeo

Os acircnimos entre Seu Joatildeo e Geraldo poderiam ter se exaltado mas a minha

presenccedila e a do professor Matheus que foi quem nos levou fizeram com que como

Seu Joatildeo comentou ele tivesse se contido de modo que preferiu se retirar a gerar

uma confusatildeo Mesmo sem conseguirem ver uma possibilidade de negociaccedilatildeo sobre

o direito que entendem possuir sobre aquela terra principalmente em referecircncia aos

trecircs irmatildeos mais velhos que laacute viveram para Geralda e Adir soacute o fato de terem ido

conhecer o siacutetio onde seu pai e sua avoacute Izidora moraram jaacute foi muito significativo

Se por um lado a postura de Seu Joatildeo reforccedila um conjunto de relaccedilotildees

comuns ao campesinato como questotildees de honra que estatildeo baseadas na valorizaccedilatildeo

do trabalho e do sofrimento que seu pai passou ali ndash o que sustenta a sua leitura da

atitude da famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente como um ato de expropriaccedilatildeo ndash por outro

lado a postura de Geraldo pode estar embasada em regras de direito costumeiro que

sustentam estrateacutegias sucessorais locais jaacute que como analisamos acima o modo de

lidar com a heranccedila na aacuterea rural natildeo eacute uma praacutetica fixa que obedeccedila a regras gerais

do direito civil (SEYFERTH 1985 p 09)

Ao mesmo tempo reivindicar essa aacuterea seria retirar aqueles que atualmente

constroem suas vidas a partir dela jaacute que se conseguissem retomaacute-la provavelmente

natildeo haveria intenccedilatildeo de as famiacutelias de Jovelina Joatildeo e Olegaacuterio passarem a viver ali

O que mais se apontou foi a intenccedilatildeo de que a parcela hereditaacuteria fosse vendida

visando garantir melhores condiccedilotildees financeiras na localidade onde vivem hoje

Presidente PrudenteSP Com a impossibilidade de negociaccedilatildeo com Geraldo no

entanto esta questatildeo ficou suspensa para refletirem posteriormente se iriam mesmo

tomar qualquer atitude para reaver a aacuterea

Por fim no que toca aos descendentes de Sebastiatildeo Vicente tambeacutem

visitamos a casa da ex-mulher de seu filho Aniacutezio Aniacutezio estaacute haacute muitos anos

morando no Paraguai depois de ter vivido com os parentes em GuaiacuteraPR e natildeo

manteacutem mais contato com seus filhos Juliana ndash filha de Aniacutesio e sua ex-mulher

Ceciacutelia que retornou a morar em Santo Antocircnio do Itambeacute com a matildee em meados da

deacutecada de 1980 depois de terem vivido um periacuteodo na regiatildeo de GuaiacuteraPR com seu

210

pai ndash entregou a Adir entatildeo uma carta para que ele fizesse chegar ateacute Aniacutezio na

qual estava escrito

Meus irmatildeos satildeo Marcelo Erlindo Vardeti Pedro Eva

Uomesan (incompreensiacutevel) e Carlos Quase todos tem

famiacutelias Meu nome eacute Juliana tenho oito filhos um moreu

em asidenti de carro com bicicleta U nome deles satildeo

Karina Wilka Tomaz Francineli Joatildeo Vitor Camila

Igridi e Julia Eu queria encontrar meu pai para ele me

achuda minha casa taacute quase caindo o nome dele eacute Anizio

Dionizio de Paula Quando eu sai de terra rocha eu era

muito pequena Eu agora capino para sobreviver e cuidar

da minha famiacutelia Tudo que eu quero eacute encontrar meu pai

Eu queria que ele me achudace natildeo tem ninguem que me

achuda aleacutem de Deus e Nossa Senhora174

Ceciacutelia e seus filhos foram a uacutenica famiacutelia que depois de terem se mudado para

a regiatildeo de Guaiacutera (na carta Juliana cita que morou em Terra Roxa municiacutepio

vizinho) retornaram para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Este caso de retorno indica

como a modalidade de migraccedilatildeo se temporaacuteria ou definitiva soacute pode ser definida no

fim da vida das pessoas (GALIZONI 2002 p 569) Pelo que Juliana relata na carta e

pelas condiccedilotildees de moradia que vimos na casa de Ceciacutelia atualmente estatildeo

passando por muitas dificuldades financeiras e podem vir a ser uma das famiacutelias com

interesse em retornar para o siacutetio em GuaiacuteraPR a partir da regularizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo

da aacuterea por meio do procedimento em tracircmite no INCRA

324 Novos movimentos

Depois de nossa estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG retornamos para

SerroMG de onde pegamos um ocircnibus para Belo HorizonteMG De laacute eu e Cassius

embarcamos de aviatildeo para CuritibaPR enquanto Adir e Geralda voltaram de aviatildeo

ateacute CascavelPR e de laacute puderam seguir de ocircnibus ateacute GuaiacuteraPR Seu Joatildeo por sua

vez foi de ocircnibus ateacute Presidente PrudenteSP Interessante destacar que em

Cascavel Adir e Geralda pernoitaram na casa de parentes e tambeacutem aproveitaram

para fazer uma visita e ldquocolocar a conversa em diardquo

174 Adotei o uso de um formato de letra que se aproxime da letra cursiva para fazer referecircncia agrave transcriccedilatildeo de textos escritos por meus interlocutores(as)

211

Com o impacto que a primeira viagem teve para Adir Geralda e Seu Joatildeo

bem como para mim e para Cassius a possibilidade de um retorno ndash visando a

conclusatildeo de algumas questotildees prementes que ficaram abertas com esta retomada

do contato ndash fez com que eu e Cassius jaacute iniciaacutessemos o planejamento de uma nova

viagem A intenccedilatildeo agora era que D Maria das Dores fosse ateacute Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG reencontrar suas irmatildes e que D Jovelina encontrasse sua tia D Ana

Raimunda em SerroMG e a trouxesse para morar com ela em Presidente

PrudenteSP Demorou quase trecircs meses ateacute que todo este processo fosse articulado

Em 05 de junho uma sexta-feira eu e Cassius desembarcamos de aviatildeo em Belo

HorizonteMG enquanto D Maria das Dores e D Jovelina viajavam juntas de ocircnibus

desde Presidente PrudenteSP Desta vez tanto D Ana Raimunda como D Zulmira

e D Regina estavam cientes da nossa chegada e nos aguardavam para aquele fim

de semana

Eu e Cassius resolvemos entatildeo alugar um carro em Belo Horizonte para que

pudeacutessemos ter mais autonomia nos deslocamentos entre Serro e Santo Antocircnio do

Itambeacute e tambeacutem para proporcionar mais conforto agraves duas senhoras D Maria das

Dores e D Jovelina que estavam conosco aleacutem da possibilidade de que D Ana

Raimunda tambeacutem retornasse no final da viagem Por outro lado a opccedilatildeo do aluguel

do carro fez com que nos programaacutessemos para ficar apenas o final de semana jaacute

que tiacutenhamos que devolvecirc-lo na segunda-feira dia 08 de junho Apesar de ter sido

uma viagem curta como veremos abaixo este final de semana proporcionou

segundo elas tudo o que D Maria das Dores e D Jovelina almejavam

3241 O reencontro das irmatildes

Quando chegamos na casa de D Zulmira com D Maria das Dores e D

Jovelina jaacute era de madrugada e elas ficaram sem dormir conversando muito felizes

de poderem se atualizar sobre as histoacuterias as experiecircncias de vida os sofrimentos e

as alegrias Aquele reencontro tatildeo esperado tinha se concretizado No outro dia de

manhatilde saacutebado 06 de junho foi que D Maria encontrou entatildeo D Regina que eacute

vizinha de sua irmatilde D Zulmira

Eu e D Zulmira fomos na padaria comprar patildeo para o cafeacute D Zulmira estava

tatildeo eufoacuterica por conta do reencontro com sua irmatilde que foi logo contando para o dono

212

da padaria Alex sobre a vinda de D Maria das Dores que natildeo via haacute muitos anos

Alex que era tambeacutem comentarista nas missas da Igreja de Santo Antocircnio ficou muito

feliz com a notiacutecia de D Zulmira Comentou entatildeo da possibilidade de conversar com

o padre para pedir que eu fizesse um testemunho na missa que ocorreria agraves 19h

contando esta histoacuteria do reencontro entre as irmatildes Este convite se justificava

tambeacutem pelo fato de que aquele dia 06 de junho era o primeiro dia dos festejos para

Santo Antocircnio cuja ldquodata augerdquo da festa seria no saacutebado seguinte dia 13 de junho o

dia do santo Esta sincronia da nossa chegada com o calendaacuterio sagrado daquele

lugar fez com que Alex atribuiacutesse agrave intercessatildeo de Santo Antocircnio aquele

acontecimento que era tatildeo esperado por D Zulmira e D Regina

Os eventos relacionados ao catolicismo como a Festa de Santo Antocircnio o

santo padroeiro do municiacutepio satildeo os grandes eventos da sociabilidade local na regiatildeo

do Vale do Jequitinhonha (PORTO 2007 p 156) Assim que chegou a notiacutecia de que

o padre tinha concordado com a ideia os parentes ficaram muito animados e felizes

principalmente as trecircs irmatildes que consideraram este fato uma importante forma de

reconhecimento e valorizaccedilatildeo local da histoacuteria da famiacutelia bem como uma confirmaccedilatildeo

do caraacuteter sagrado daquele reencontro

Conversei entatildeo com D Maria das Dores que mesmo sendo evangeacutelica

aceitou e ficou feliz com a possibilidade de dar seu testemunho mas fez questatildeo de

apontar que segundo seu ponto de vista natildeo se tratava de milagre do santo mas de

obra de Deus diretamente No primeiro capiacutetulo destaquei neste sentido a

importacircncia das relaccedilotildees de continuidade percebidas pelos meus interlocutores(as)

entre diferentes religiotildees para aleacutem das divergecircncias existentes Podemos nos

lembrar por exemplo da fala de Eva de que ldquoDeus eacute um soacuterdquo compreensatildeo novamente

reforccedilada pela decisatildeo de D Maria das Dores em participar do ritual catoacutelico

Combinamos entatildeo que eu faria uma pequena fala introdutoacuteria e passaria o

microfone para ela relatar sua chegada em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG depois de

muitos anos sem contato com a famiacutelia E assim fizemos Depois da comunhatildeo como

estava acertado Alex que estava fazendo os comentaacuterios da missa fez um gesto

sinalizando que era a hora de subirmos ateacute o altar D Maria das Dores depois de

minha pequena introduccedilatildeo contextualizando a pesquisa e o subsiacutedio que havia sido

dado para aquele reencontro agradeceu a Deus pela oportunidade de seu retorno

que era uma grande benccedilatildeo na sua vida e de seus familiares Contou um pouco de

213

sua trajetoacuteria e fez questatildeo de enfatizar que ela natildeo tinha saiacutedo de Santo Antocircnio do

ItambeacuteMG ldquopor orgulhordquo mas porque ldquotinha sido buscadardquo Afirmou que temos

sempre que glorificar a Deus por suas obras e concluiu sua fala de modo um tanto

tiacutemido mas com muita firmeza

No final da missa as trecircs irmatildes foram novamente ateacute o altar para

cumprimentar e agradecer ao padre tirar fotos e neste momento foram aplaudidas

por todos os presentes Apoacutes a missa houve uma confraternizaccedilatildeo em frente agrave Igreja

onde havia uma barraca na qual se podiam comprar comidas e bebidas iniciando as

festas juninas

FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

De alguma forma eu e Cassius fizemos parte daquilo que para elas era

consequecircncia de um milagre e segundo afirmaram vaacuterias vezes tiacutenhamos sido

enviados por Deus para trazer esta benccedilatildeo para a famiacutelia Interessante observar

neste sentido como o catolicismo eacute uma linguagem muito presente que sustenta o

modo de compreensatildeo das pessoas e lhes daacute um horizonte de futuro bem como uma

estabilidade no presente mesmo em situaccedilotildees de adversidade Ao falarem da morte

por exemplo usam a expressatildeo ldquoDeus levourdquo ao comentarem que moram sozinhos

214

ressalvam ldquomoro eu e Deusrdquo ao dizerem que natildeo podem contar com ningueacutem como

na carta de Juliana lembram-se da ajuda ldquode Deus e Nossa Senhorardquo Esta

concepccedilatildeo catoacutelica de mundo eacute tida como a forma legiacutetima de falar dos

acontecimentos e dizer que eacute um milagre natildeo traz necessariamente um sentido de

extraordinaacuterio pois tudo estaacute sobre o domiacutenio da justiccedila divina O sagrado portanto

faz parte do cotidiano e fornece a base dos valores fundamentais a serem seguidos

a partir da religiosidade cristatilde (PORTO 2007 p 157)

Nos dois dias que D Maria passou em Santo Antocircnio do Itambeacute ela pocircde

reencontrar vaacuterios sobrinhos e tambeacutem parentes que ainda natildeo conhecia pois a

maioria foi lhe ver na casa de suas irmatildes Ela foi muito bem recebida e acolhida por

todos que estavam em clima de festa A partir deste reencontro trocaram contatos no

intuito de que natildeo haja mais um lapso de convivecircncia e de comunicaccedilatildeo como ocorrido

anteriormente

FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira (no canto esquerdo) sua

sobrinha com o marido e os filhos

215

Antes de partimos gravamos um viacutedeo com as trecircs irmatildes contando sobre

como tinha sido aquele reencontro D Maria das Dores entatildeo comentou

D Maria Que noacutes foi muito bem recebida E eu tenho trecircs irmatildeos em Belo Horizonte e ateacute isso eu jaacute consegui conversar hoje com uma soacute E amanhatilde eu espero que se Deus quiser ela taacute na rodoviaacuteria pra noacutes se ver Entatildeo eu fiquei muito feliz neacute porque a gente viu meu sobrinho tudo minha sobrinha tocirc muito alegre Gloacuteria a Deus por isso E eu vou falar verdade que eu fui muito bem recebida na casa da cumadi Zulmira minha irmatilde e na casa da cumadi Regina E graccedilas a Deus laacute eu vou levando muita alegria porque tocirc vendo que taacute tudo bem neacute tudo em ordem muita fartura muita alegria e muita uniatildeo Gloacuteria a Deus por isso

Por fim jaacute na rodoviaacuteria de Belo Horizonte mais um reencontro aconteceu

entre D Maria das Dores e suas duas irmatildes que moram na capital mineira Teresa e

Anita Elas haviam combinado por telefone enquanto estaacutevamos em Santo Antocircnio

do Itambeacute que na segunda-feira se encontrariam na rodoviaacuteria da capital O uacutenico

irmatildeo que D Maria natildeo viu foi Joaquim que tambeacutem mora em Belo Horizonte mas

natildeo pocircde encontraacute-la naquele dia Segundo D Maria das Dores ela ficou imaginando

a possibilidade de um novo retorno com mais tempo para um encontro entre todos

os irmatildeos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG

FIGURA 37 (Da esquerda para a direita) Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo Horizonte

216

3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda

D Jovelina estava ansiosa pelo reencontro com a tia Ana Raimunda que natildeo

via haacute cinquenta e nove anos desde que saiu de laacute em 1956 quando tinha catorze

anos Nesta segunda viagem depois de termos pousado a primeira noite na casa de

D Zulmira em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG no saacutebado pela manhatilde eu e Cassius

levamos D Jovelina na casa de D Ana Raimunda que morava em Serro Quando

chegamos D Ana Raimunda nos aguardava tambeacutem ansiosa pois haviacuteamos dito que

chegariacuteamos na noite anterior o que natildeo havia sido possiacutevel O encontro entre as

duas foi de muita alegria

Dandara Bom dia pra senhora

D Ana Bom dia tudo bem

Dandara Tudo bom Graccedilas a Deus

D Jovelina Ei minha matildeezinha do ceacuteu sua benccedilatildeo

D Ana Oi minha fia tem anos que eu natildeo vejo pelo amor de Deus Que tempo Jaacute tem uns quarenta anos ou mais

D Jovelina Eu natildeo to acreditando meu Deus do Ceacuteu

D Ana Jaacute tem uns quarenta anos ou mais Hein

D Jovelina Acho que eacute sessenta anos

D Ana Sessenta anos Noacute pelo amor de Deus Sumiu

D Jovelina A senhora vai comigo agora dessa vez

D Ana Que dia que vocecirc vai

D Jovelina Segunda-feira

D Ana Graccedilas a Deus Eu tocirc arrumando Que eacute eu sozinha com Deus aqui oacuteh (junta as matildeos como em oraccedilatildeo)

D Jovelina Agora eu vou te levar pra laacute vou ponhar papinha na sua boca

D Ana Eu sei boba

D Jovelina Vou te dar banho vou te carregar ponha na cama pra dormir

D Ana (risos) Ograve minha companheira

D Jovelina O que eu puder fazer eu vou fazer

D Ana Se Deus quiser Vai dar um pouquinho de confusatildeo mas vai dar certo Eu gostei que vocecirc vai segunda que segunda vai daacute tempo de noacutes arrumar tudo Vamo entrar pra dentro

217

FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos

D Ana Raimunda jaacute estava se preparando para ir para a casa de D Jovelina

em Presidente PrudenteSP e contou com a ajuda da sobrinha que passou com ela

o final de semana para organizar e levar o maacuteximo de coisas possiacuteveis Ela disse que

natildeo estava se mudando definitivamente pois ainda teria que voltar para Serro com o

intuito de vender a casa que era de seu falecido marido Teacuteofilo e ver questotildees

relacionadas agrave heranccedila entre ela e os dois filhos dele

D Ana estava muito feliz pois agora teria sempre companhia cuidados amor

de familiares e natildeo ficaria mais tatildeo sozinha e desamparada como se sentia ali Na

segunda-feira pela manhatilde conseguimos despachar as vaacuterias sacolas e bagagens de

D Ana pelo ocircnibus e seguimos de carro ateacute a rodoviaacuteria de Belo Horizonte D Ana

estava muito tranquila durante todo o percurso e assim foi ateacute chegar em Presidente

PrudenteSP acompanhada de D Jovelina e D Maria das Dores que seguiram

viagem juntas D Ana estaacute haacute cinco meses morando com D Jovelina e se sente muito

bem junto da famiacutelia como pude observar em agosto de 2015 quando fui visitaacute-la na

casa de D Jovelina

218

FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa da sobrinha Jovelina

Eacute possiacutevel perceber deste modo como estes reencontros apontaram para

dinacircmicas que operam entre relaccedilotildees de proximidade e de distacircncia em famiacutelias

como esta marcadas por situaccedilotildees de deslocamento natildeo haacute rupturas definitivas mas

potencialidades que podem dinamizar ou colocar as relaccedilotildees em letargia A facilidade

e a intensidade da retomada do contato por meio das viagens realizadas nas quais

foram refeitos partes dos caminhos de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100)

confirmaram a forccedila do sentimento de viacutenculo com os parentes e de continuidade com

este passado comum

Da situaccedilatildeo de isolamento que se reportavam em relaccedilatildeo agrave experiecircncia do

grupo em GuaiacuteraPR antes do autorreconhecimento como quilombolas foi possiacutevel

chegar a um novo momento em que houve um acionamento significativo da ampla

rede social de parentesco Ademais estas relaccedilotildees de parentesco entre as famiacutelias

que se deslocaram para o estado de Satildeo Paulo e para o Paranaacute e as famiacutelias

quilombolas da regiatildeo de origem tende a operar como um iacutendice da ldquoquilombolidaderdquo

do grupo Eacute possiacutevel assim identificar trecircs momentos centrais de institucionalizaccedilatildeo

da alteridade da ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo

219

(a) no primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo natildeo foi reconhecido pelos

pesquisadores nenhum ldquograurdquo de alteridade

(b) no segundo relatoacuterio antropoloacutegico foi fundamentada a existecircncia de

alteridade em continuidade com o passado mineiro do grupo com base na pesquisa

realizada na regiatildeo de SerroMG e

(c) com as duas viagens de volta realizadas em marccedilo e junho de 2015 houve

por fim um significativo fortalecimento do sentimento de continuidade dos quilombolas

com sua origem comum bem como maiores subsiacutedios para sustentar a legitimidade

histoacuterica e a possibilidade de reivindicaccedilatildeo de direitos do grupo no presente

De algum modo como jaacute mencionamos foi esta demanda por coesatildeo e

coerecircncia das narrativas do grupo que impulsionou o retorno dos proacuteprios quilombolas

agrave regiatildeo de origem como um aprofundamento do processo de ldquoauto-organizaccedilatildeo em

termos poliacuteticosrdquo e concomitantemente de ldquoarticulaccedilatildeo dos antigos costumes e

formas de relacionamento social com as novas regras a que estatildeo submetidosrdquo

(ARRUTI 1997 23-24) Para aleacutem desta dimensatildeo pragmaacutetica houve uma

transformaccedilatildeo natildeo soacute na identidade quilombola com a multiplicaccedilatildeo dos espaccedilos

pelos quais eacute validada (ARRUTI 1996) mas tambeacutem na vida e nas trajetoacuterias dos

sujeitos envolvidos com estas experiecircncias de retorno

A realizaccedilatildeo destas duas viagens agrave Minas Gerais em marccedilo e junho de 2015

criou um entrelaccedilamento do movimento dos meus interlocutores(as) e do processo de

pesquisa que gerou esta dissertaccedilatildeo Este diaacutelogo aberto decorre da proximidade e

da relaccedilatildeo de confianccedila que jaacute possuiacuteamos criada por meio de um contato que se

estende desde 2011 Foi portanto a circulaccedilatildeo por espaccedilos institucionais a partir do

autorreconhecimento como quilombolas que os conectou com agentes do estado e

com pesquisadores como eu e Cassius que criou um contexto favoraacutevel para a

realizaccedilatildeo dessas viagens de volta

Neste percurso sinuoso da trajetoacuteria histoacuterica destas famiacutelias quilombolas

marcada por continuidades e descontinuidades busquei compreender o grupo ldquopor

meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenocircmenos distribuiacutedos

por diferentes locais escalas e temposrdquo (ARRUTI 2006 p 35) Foi possiacutevel perceber

deste modo como a histoacuteria da comunidade eacute construiacuteda como resultado de um

processo de negociaccedilatildeo Como jaacute mencionado a adoccedilatildeo da identidade implica na

proacutepria produccedilatildeo dessa realidade em uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre o herdado e o

220

projetado (ARRUTI 1997 p 28) a partir da categoria geneacuterica de ldquoquilombolardquo cujo

caraacuteter juriacutedico-administrativo eacute o caminho pelo qual as coletividades organizadas

podem se auto-objetivar (ARRUTI 2006 44)

A ldquoplasticidade identitaacuteriardquo formadora desses grupos permite efetivamente que eles ldquoresgatemrdquo ldquorecuperemrdquo elementos substantivos de identidade que passam a integrar seus processos de emergecircncia mas como ldquomateacuterias-primasrdquo que precisam ser manufaturadas pelas forccedilas mobilizadas no seu interior na forma de desejos coletivos (ARRUTI 1997 p 28)

Este passado pensado em comum estaacute portanto sendo elaborado a partir

do momento presente (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 24) o que destaca o

lugar central que estas viagens a Minas Gerais passaram a ocupar em tal processo

de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria Imagino ter sido suficientemente exposto ao longo

deste trabalho a centralidade para estas famiacutelias quilombolas do que podemos

compreender por meio da expressatildeo ldquodever de memoacuteriardquo entendido ldquocomo um ldquodireito

agrave reparaccedilatildeo em funccedilatildeo do esquecimento e guetificaccedilatildeo a que foram submetidas suas

histoacuterias ao longo do seacuteculo XXrdquo (MATTOS ABREU 2011 p 150) Com as viagens

realizadas em marccedilo e junho de 2015 este ldquodever de memoacuteriardquo se transformou em

algo acessiacutevel para os proacuteprios quilombolas de GuaiacuteraPR ao retraccedilarem o caminho

de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) Por meio destas viagens foi possiacutevel

compreender na praacutetica a necessidade de dessubstancializaccedilatildeo da identidade no

sentido de perceber como esta eacute construiacuteda pela tomada de consciecircncia sobre as

diferenccedilas e natildeo pelas diferenccedilas em si (SCHWARCZ 1999 p 296)

221

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Eu vou contar um pouco da minha histoacuteria pra vocecircs

Dandara e alguns mais importante com esse assunto Em

primeiro lugar o assunto eacute esse eu era companheiro de

minha matildee aos 4 anos e meio de idade eu completei 5 anos

na estrada muito sofrido ateacute que um senhor passou por ela

e chegou ateacute falar ldquodona a senhora vai matar esse menino

por favor natildeo faccedila isso natildeordquo Mais com todos sofrimentos ela

foi pelejando com a vida e noacutes continuamos mais tem aquele

ditado ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo Era muito difiacutecil porque

tudo era com o sofrimento ateacute para agente estudar tinha

que andar 4 km para ir e mais 4 km de voltar tinha que ir

a peacute as vez ateacute discalccedilo nem sapato noacutes natildeo tinha tempo de

frio com bluza uma calccedila todos dias sempre furava o fundo

era costurado toda vez tinha hora que natildeo tava nem

aceitando remendo mais natildeo tinha onde remendar mais

Quando a gente ganhava alguma peccedila de roupa agente

nem sabia o que fazia de tanta alegria Tinha que ir a aula

e voltar de pressa para poder ganhar uns troco ainda porque

meu pai era doente natildeo podia trabalhar que ele sentia um

bronquite forte e ficava muito canccedilado coitado ele viveu ateacute

43 anos com muito sofrimento e agente natildeo podia deixar

sem o remeacutedio porque agente tinha doacute que noacutes natildeo queria

ver ele naquele sofrimento era muito triste o estado que ele

ficou mais fazer o que todos noacutes tem que passar por isso A

gente comeccedilou a trabalhar muito cedo mais a gente soacute

ajudou os outros arrumar a vida deles e noacutes ficou Eu tive

uma chance no quartel eles queria que servisse mais por

motivo do falecimento do meu pai eu natildeo pude servi outra

chance eu tive tambeacutem foi no accedilougue para trabalhar natildeo

pude tambeacutem porque noacutes tinha lavoura de algodatildeo mais

natildeo dava muito porque era as meias tudo dividido pela

metade e assim noacutes continuamos Mais graccedila a Deus estamos

ai mais natildeo pode perder a esperanccedila cada um de noacutes temos

a nossa cruz para carregar ningueacutem passa por ela a num

ser a gente Hoje graccedilas meu Bom Deus eu tenho um lugar

para agente amparar uma motinha natildeo eacute nova mais da

para agente quebrar um galho temos roupas temos

alimentos para noacutes poder alimentar temos lugar para poder

plantar alguma coisa O que noacutes queremos eacute um apoio do

Governo Federal e temos que trabalhar reunidos com paz e

amor e concentrar naquilo que estamos fazendo Fazemos

um projeto para termos um sombrite para organizar melhor

a horta para sair uns bons lucros o sombrite ajuda e proteja

do sol e o tempo da geada Escrevido por Antocircnio Aparecido

dos Santos

222

Este texto trazido como epiacutegrafe destas consideraccedilotildees finais foi escrito por

Antocircnio Aparecido dos Santos marido de Geralda e entregue a mim enquanto estive

hospedada em sua casa na vila Eletrosul durante o trabalho de campo realizado em

GuaiacuteraPR Antocircnio conhecido pelo seu apelido Guaraacute eacute filho de Maria Madalena

Rocha dos Santos e Joseacute dos Santos175 casal que tambeacutem era proveniente de Santo

Antocircnio do ItambeacuteMG e viveram em GuaiacuteraPR ateacute falecerem O texto de Antocircnio eacute

aqui destacado por ser significativo para pensar a importacircncia de aspectos analisados

ao longo desta dissertaccedilatildeo sobre este grupo quilombola Desta histoacuteria que Antocircnio

nos conta a mim e ldquoalguns mais importante com esse assuntordquo gostaria de analisar

alguns elementos

Antocircnio deixa expliacutecito logo no iniacutecio de sua narrativa sua expectativa de que

ela pudesse chegar ateacute pessoas que tenham interesse e atuaccedilatildeo com a temaacutetica

quilombola de modo que haja publicidade para suas memoacuterias para sua trajetoacuteria de

luta e feacute bem como para seus anseios de que haja uma melhor condiccedilatildeo de vida para

as famiacutelias Articula suas reflexotildees assim de modo a destacar elementos desta

memoacuteria que satildeo definidos por ele como significativos a partir do momento presente

de sua vida e da sua percepccedilatildeo sobre a trajetoacuteria coletiva do grupo quilombola

Ele ressalta em primeiro lugar como completou cinco anos ldquona estradardquo Filho

uacutenico era o companheiro de sua matildee jaacute que seu pai estava doente Ao acompanhaacute-

la em suas tarefas diaacuterias ele narra como ainda muito novo tinha que enfrentar

extensos trajetos de caminhada Para estudar novamente a experiecircncia do sofrimento

trazido por este caminhar mas acrescenta ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo e assim

sugere a importacircncia que atribui agrave religiosidade para a superaccedilatildeo das adversidades

da vida e da cruz que cada um tem que carregar Como vimos no primeiro capiacutetulo

este modo de elaborar a experiecircncia do sofrimento na interface com a feacute constroacutei um

saber sobre o mundo Saber pautado pela religiosidade cristatilde que vista pela lente de

um catolicismo negro eacute permeada pela religiosidade umbandista da qual Antocircnio eacute

adepto junto com sua esposa Geralda

Quando ainda crianccedilas voltavam da escola depois de oito quilocircmetros de

caminhada percorrida Antocircnio conta como tinham ainda que enfrentar uma jornada

de trabalho na roccedila que no caso dele era ainda mais necessaacuterio pelo fato de que ele

175 Joseacute dos Santos era irmatildeo de Geraldo do Santos que adquiriu um dos lotes da aacuterea original da

famiacutelia em GuaiacuteraPR

223

e a matildee tinham que cuidar de seu pai adoentado O trabalho que os membros da

comunidade realizaram desde muito novos para sobreviver contribuiu segundo ele

ldquoparra arrumar a vida delesrdquo se referindo agrave melhoria da situaccedilatildeo econocircmica dos

proprietaacuterios vizinhos e em contraste ldquonoacutes ficourdquo mostrando que natildeo foi possiacutevel

reverter os benefiacutecios deste trabalho para as proacuteprias famiacutelias da comunidade Este

contexto de interaccedilatildeo com os proprietaacuterios vizinhos a experiecircncia de ldquotrabalhar para

os outrosrdquo permeia a histoacuteria do grupo e eacute interpretada pelos quilombolas como uma

reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo de preconceito e exclusatildeo ndash um dos fatores que motivou o

movimento de saiacuteda das famiacutelias de Minas Gerais Se o deslocamento era uma

estrateacutegia de busca por autonomia e liberdade visando a superaccedilatildeo dos processos

de exclusatildeo nos quais estavam inseridos o processo de fixaccedilatildeo em um novo contexto

acaba por reproduzir as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo

Antocircnio faz referecircncias entatildeo a oportunidades de profissionalizaccedilatildeo que teve

quando jovem fora da aacuterea rural e complementa explicando os motivos pelos quais

natildeo foi possiacutevel investir nestas carreiras A alternativa de inserccedilatildeo no mercado de

trabalho urbano natildeo se consolida como um caminho de fato viaacutevel de modo que a

estruturaccedilatildeo de sua vida continua passando pelo trabalho na aacuterea rural mesmo

quando vai residir em uma vila da periferia de GuaiacuteraPR E novamente reforccedila a

importacircncia da feacute da esperanccedila e da gratidatildeo a Deus na melhoria de suas condiccedilotildees

de vida pois atualmente ele e sua esposa tecircm moradia proacutepria um meio de transporte

(motinha) roupas alimentos Aleacutem disso a permanecircncia da famiacutelia no territoacuterio em

GuaiacuteraPR permite a reproduccedilatildeo do trabalho familiar um certo niacutevel de autonomia

alimentar um modo de vida especiacutefico

Este ldquolugar para poder plantar alguma coisardquo ao qual Antocircnio se refere foi

deixado por seus pais e parentes mais velhos que empreenderam este processo de

chegada e conquista do territoacuterio em Guaiacutera Assim apesar de sempre ter sido

considerada uma aacuterea insuficiente para o nuacutemero de famiacutelias que nela viviam era a

garantia que poderiam deixar para seus filhos e descendentes ndash um lugar para morar

para plantar trabalhar e viverem unidos Por isso Manoel deixou como conselho que

seus filhos nunca vendessem este patrimocircnio familiar que ele lhes deixaria como

heranccedila Como Joatildeo Aparecido filho de Manoel me contou durante uma entrevista

Manoel sofreu muito para poder comprar esse ldquopedacinho de terrardquo pois quando

chegou em GuaiacuteraPE era soacute mato ldquoele natildeo tinha nem comida nem roupa nem nadardquo

224

Ficou anos trabalhando roccedilando aacutereas derrubando a mata e plantando milho e feijatildeo

para conseguir pagar parcelado o valor da terra Segundo Joatildeo ele colhia o milho

debulhava e levava para vender ateacute GuaiacuteraPR ndash caminhava carregando aquele peso

nas costas pelas picadas estreitas por dentro do mato e gastava o dia inteiro para ir

e voltar Todo este sofrimento de Manoel dos pais de Antocircnio e demais familiares

cria assim um compromisso moral dos seus descendentes de seguirem o exemplo

deixado e tambeacutem lutarem sempre lsquotrabalhando na honestidaderdquo

Assim em contraste com o ldquotrabalho para os outrosrdquo que remete na narrativa

de Antocircnio agrave experiecircncia de exploraccedilatildeo e estagnaccedilatildeo ele ressalta ao final de seu

texto o que vislumbra para o futuro o projeto coletivo de autonomia por meio da

geraccedilatildeo de renda para as famiacutelias no proacuteprio territoacuterio com o ldquoapoio do Governo

Federalrdquo para que possam ldquotrabalhar reunidos com paz e amor e concentrar naquilo

que estamos fazendordquo Um lugar portanto que antes mais nada sustenta a

possibilidade de uma vivecircncia coletiva

De um modo mais amplo como vimos um dos aspectos centrais do projeto de

futuro da comunidade eacute a possibilidade natildeo soacute de as famiacutelias que laacute vivem atualmente

permanecerem neste territoacuterio como tambeacutem garantir o aumento do nuacutemero de

famiacutelias da comunidade Esta ampliaccedilatildeo que esperam seja garantida com a conclusatildeo

do procedimento de regularizaccedilatildeo territorial do INCRA proporcionaraacute o aumento do

nuacutemero de famiacutelias da comunidade a partir do retorno de parentes que estatildeo sofrendo

em vaacuterias cidades os quais assim eacute esperado teratildeo condiccedilotildees entatildeo para geraccedilatildeo

de renda no proacuteprio territoacuterio com o acesso a poliacuteticas puacuteblicas necessaacuterias

Satildeo as dinacircmicas de parentesco que justificam a ampliaccedilatildeo do territoacuterio visto

como referecircncia mas natildeo como limite para o pertencimento identitaacuterio o qual se abre

para uma rede expandida de famiacutelias que se encontram espalhadas por todo o canto

como comentado por Adir em depoimento durante a primeira viagem para Minas

Gerais apresentado no terceiro capiacutetulo Este caso nos permite assim relativizar a

ideia de territorialidade como qualidade imanente e percebecirc-la a partir de uma busca

pela conquista de locais em que fosse possiacutevel a reproduccedilatildeo do modo de vida

especiacutefico ndash por meio de movimentos de deslocamento que desenham uma linha de

continuidade em uma longa trajetoacuteria Movimentos que satildeo eles mesmos iacutendices da

resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida e do desrespeito coletivo ao qual se sentem

submetidos

225

A relaccedilatildeo naturalizada entre identidade e territorialidade como apontamos

tem sido pressuposta pela poliacutetica puacuteblica de regularizaccedilatildeo territorial das

comunidades quilombolas no Brasil Trata-se de uma projeccedilatildeo da ideia de

enraizamento que necessita ser revisada e contextualizada historicamente ndash como

nos aponta este caso especiacutefico da experiecircncia quilombola em GuaiacuteraPR ndash para que

natildeo atue como fator limitador da possibilidade de reconhecimento de direitos a grupos

que natildeo se encaixem no padratildeo estabelecido como modelo Neste sentido a

percepccedilatildeo de continuidade natildeo necessariamente se enquadra nas expectativas da

poliacutetica de reconhecimento que tendem a desconsiderar a complexidade desta

conexatildeo com o passado enquanto dinacircmica de ldquorecuperaccedilatildeo do processo histoacuterico

vivido por tal grupordquo bem como de ldquorefabricaccedilatildeo constante de sua unidade e diferenccedila

em face de outros grupos com os quais esteve em interaccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO

1994a p123) ndash presente mesmo em casos de comunidades que incluem em suas

trajetoacuterias a experiecircncia do deslocamento entre territoacuterios

O retorno agrave regiatildeo de origem foi impulsionado como vimos a partir do

processo conturbado de reconhecimento do grupo como quilombolas que gerou a

produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do procedimento que ainda

tramita no INCRA Este regresso no entanto como apontei na introduccedilatildeo natildeo faz

desta linha de movimento um ciacuterculo que se fecha mas uma dinacircmica em espiral que

se abre para novos movimentos em busca de um futuro norteado pelo pertencimento

a um passado comum e pelos valores compartilhados por esta identidade coletiva Tal

abertura para novos movimentos se fez presente de um modo muito significativo na

mudanccedila de D Ana Raimunda com 87 anos de idade que deixou sua casa em Serro

e se mudou para Presidente PrudenteSP onde atualmente mora com sua sobrinha

Jovelina

A defesa de um deslocamento conceitual da ideia de quilombo tido como

sobrevivecircncia para a ressemantizaccedilatildeo do termo tendo em vista os sujeitos que se

reconhecem como quilombolas no presente (ALMEIDA 2002 p 64) pode ser ainda

ampliada com base nesta experiecircncia de pesquisa Refiro-me assim a um

deslocamento conceitual que inclua tambeacutem o reconhecimento dos proacuteprios

movimentos e deslocamentos dos grupos quilombolas como processo que natildeo retira

a legitimidade de suas reivindicaccedilotildees identitaacuterias e territoriais Este reconhecimento

tem suporte historiograacutefico nas pesquisas que apontam para a intensa movimentaccedilatildeo

226

da populaccedilatildeo negra no contexto do poacutes-aboliccedilatildeo (LIMA 2000) movimento que tinha

como sentido a saiacuteda de aacutereas de colonizaccedilatildeo histoacuterica como a regiatildeo de Minas

Gerais para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente como eacute a regiatildeo de GuaiacuteraPR no caso

em questatildeo

Minha interaccedilatildeo com estas famiacutelias quilombolas eacute fruto da circulaccedilatildeo da

comunidade representada por suas lideranccedilas em espaccedilos institucionais aos quais

passaram a acessar com o autorreconhecimento como quilombolas e a inserccedilatildeo no

movimento poliacutetico estadual em articulaccedilatildeo com demais comunidades Enquanto

relaccedilatildeo estabelecida com o grupo primeiro em uma posiccedilatildeo de agente do Estado

como assessora no Ministeacuterio Puacuteblico do Paranaacute depois como mestranda em

antropologia tive que lidar com esta posiccedilatildeo ambiacutegua que explicita meu duplo

pertencimento acadecircmico que transita entre o direito e antropologia

Acredito que com a convivecircncia cotidiana e a possibilidade de

aprofundamento dos viacutenculos a relaccedilatildeo que antes era de intermediadora de suas

demandas dentro do oacutergatildeo ministerial passou a ser a posiccedilatildeo de algueacutem com quem

pudessem compartilhar suas histoacuterias experiecircncias e sonhos dentro dos quais me vi

imersa Esta imersatildeo possibilitou que pudeacutessemos trilhar juntos o caminho de volta

ateacute Minas Gerais e sem perceber de iniacutecio eu estava tambeacutem sendo levada por esta

linha de movimento dos seus antepassados ndash que se tornou norteadora das

estrateacutegias de pesquisa e da redaccedilatildeo deste trabalho bem como o objeto de reflexatildeo

central fruto da relaccedilatildeo entre pesquisador e sujeitos de pesquisa

Ao concluirmos a segunda viagem de volta em junho de 2015 eu estava

entatildeo inserida em suas leituras permeadas pela compreensatildeo sagrada dos

acontecimentos vivenciados Os modos de compreensatildeo dos meus interlocutores(as)

apontavam para uma leitura de que a relaccedilatildeo entre noacutes assim como entre eles e

Cassius tinham sido acionadas por meio de oraccedilotildees e preces que nos colocaram

como instrumentos na concretizaccedilatildeo destes reencontros Natildeo pude conter a emoccedilatildeo

quando por exemplo D Zulmira agradecia ldquoocirc minha Nossa Senhora ocecirc trouxe o

meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer aindardquo

quando da nossa chegada em sua casa naquela terccedila-feira 10 de marccedilo de 2015 O

desafio colocado pela escrita antropoloacutegica ndash de construccedilatildeo de uma objetividade

perspectiva parcial e situada ndash deste modo natildeo deve ser orientado pela noccedilatildeo de

crenccedila mas pela reflexatildeo sobre como estas pessoas constroem o mundo com base

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na articulaccedilatildeo destes conceitos Trata-se afinal de um saber sobre o mundo

(GOLDMAN 2003 p 461)

Outro desafio foi o de encontrar uma certa estabilidade que seria produzida

no registro da experiecircncia na forma de texto no que tange a processos percebidos

pelos meus interlocutores(as) como accedilatildeo e transformaccedilatildeo no mundo vivido Busquei

criar uma reflexatildeo analiacutetica a partir destas experiecircncias que foram perpassadas por

emoccedilotildees intensas e que me faziam refletir sobre a trajetoacuteria dos meus proacuteprios

antepassados como meus avoacutes paternos que tambeacutem saiacuteram do estado de Minas

Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute na deacutecada de 1940 em busca de melhores

condiccedilotildees de vida Nossos caminhos haviam se entrelaccedilado e como diria Ingold a

partir dali um noacute havia sido criado unindo nossas trajetoacuterias (INGOLD 2011 p 148)

o que espero possa se desdobrar na continuidade desta pesquisa com a intenccedilatildeo de

aprofundar a reflexatildeo sobre muitos pontos que demandam maior investimento de

anaacutelise

Como indagaccedilatildeo final proposta por este trabalho fica a questatildeo de ateacute que

ponto a autoidentificaccedilatildeo e a reconfiguraccedilatildeo do conceito de quilombo estatildeo

consolidadas para os atores que lidam com os procedimentos estatais sobre esta

temaacutetica Eacute necessaacuterio neste processo que se reconheccedila a historicidade e a

diversidade de trajetoacuterias que constitui tais grupos sociais suas dinacircmicas e agecircncias

de modo que se possa garantir direitos sem que se parta de uma fundamentaccedilatildeo

cristalizada decorrente da ideia de territorialidade fixa ou mesmo de imobilidade

Quando pensamos no conceito de ldquotradicionalrdquo natildeo devemos deste modo buscar

uma continuidade direta e substancializadora da identidade (como na perspectiva

produzida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) mas um tipo de relaccedilatildeo especial

com este passado coletivo que permite a manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social que estaacute

ela mesma sempre em transformaccedilatildeo (como analisado pelo segundo relatoacuterio)

No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos estamos

falando da diferenccedila entre por um lado partir da ideia de uma origem a ser

comprovada enquanto requisito para o reconhecimento da identidade quilombola e a

compreensatildeo por outro de como essa origem eacute acionada como importante elemento

identitaacuterio ndash pelos proacuteprios atores sociais enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo

(HALBWACHS 2003 p 94) ndash na forma pela qual se relacionam e se reinventam

como trajetoacuteria compartilhada Este viacutenculo com a origem se expressa na fala de Adir

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ndash ao comentar sobre a nossa viagem e agradecer a recepccedilatildeo que recebemos de D

Regina e D Zulmira ndash com a qual encerro essas reflexotildees

Eu quero aqui agradecer em nome de toda a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que a senhora conheceu que noacutes demos o nome dessa comunidade em memoacuteria dele em Guaiacutera Paranaacute Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos onde a gente comeccedilou Meu sonho era buscar a histoacuteria da famiacutelia () E enquanto eu natildeo conseguir a histoacuteria da nossa famiacutelia que somos famiacutelia mas eu quero buscar desde o passado ateacute o presente eu natildeo vou descansar Se um dia eu morrer vou morrer feliz mas conhecer a nossa histoacuteria a histoacuteria de todos noacutes () Essa passagem taacute sendo experiecircncia pra mim porque como um filho de mineiro um filho dessa terra de pisar aqui nessa terra Que a minha vontade era andar descalccedilo soacute andar andar andar O que eu pensava era soacute andar

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