ronin quilombola

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  • 8/3/2019 ronin quilombola

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    lo pimentel,

    /ao magnfica/o ronin quilombola [des]conhecida/o, de ontem, hoje e de amanh, saudaes

    aqueles/as que pretendem o escndalo desejam a palavra sacrlega. ou seja, so condescendentes.

    declaram oposio numa hostilidade que nada despreza esta bela ofensa pelo silncio. para se

    reconhecer um/a inimigo/a preciso estar disposta/o a respeit-lo/a., pois se dispem ao dilogo.

    de minha parte, desejando, portanto, oferecer uma perfeita insolncia, sinto-me completamente

    inocente ao negar a existncia daquilo que refutarei, com isso recuso-lhes as honras de uma polmica.

    ignoro, a seguir, qualquer ideia de natureza. ignoro, portanto, qualquer possibilidade de se ser moral ou

    imoral, j que, para ser, tanto um quanto o outro, preciso confrontar-se com algo que exista. portanto,

    a partir daqui, no se viola qualquer natureza humana.

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    captulo i

    de quantas prticas so os quilombos e de que modo podem ser inventados

    nem toda coagulao voluntria de pessoas afins no hierarquizadas foram e um quilombo. h

    comunalismos, seja internacional, ou seja, libertrio.

    os quilombos so prticas polticas essencialmente preocupadas com a existncia e a eficcia desta,

    em detrimento dos valores civilizacionais e das intrigas da corte.

    a indiferena de um quilombo para com os problemas civilizacionais e para com as intriga da corte a

    pura construo a partir do nada. um artifcio inocente. a prpria impossibilidade de lisonjear ou injuriar

    uma civilizao ausente. ausncia de ideologias e utopias.

    em um quilombo o que trago existncia um mnimo de estabilidade e durao. um agrupamento

    de pessoas e circunstncias que escapa qualquer controle. um agrupamento de pessoas e

    circunstncias que no assegura nenhum princpio de permanncia. no h nada que dure por si. no

    h nada que seja natural. nada capaz de durar por foras prprias. nada capaz de durar por sua

    prpria natureza.

    captulo ii

    dos quilombos inventados

    no tratarei de comunalismos. pois estes so criados a partir de, ora vises otimistas (atribuio ao

    humano de uma natureza boa), ora vises pessimistas (atribuio ao humano de uma natureza boa).

    vou dedicar-me ao quilombo como agrupamento que recusa atribuir natureza alguma ao humano.

    agrupamento que recusa o erro poltico comum, pois no h natureza alguma na qual se possa confiar.

    afirmo, portanto, que, nos quilombos seu nico problema resistir; manter a prpria potncia. sua

    durao que se pedir explicaes. nada importando no que diz respeito s suas intenes ou aos

    seus meios.

    temos em palmares, por exemplo, o muulmano saifudin e o judeu suleiman que juntos com zumbi

    resistiram, at o ltimo momento, aos assaltos dos bandeirantes brasileiros no sculo xvii.

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    o nico inimigo de um quilombo manter-se existindo no tempo. no entanto, a permanncia no

    impossvel, deve ser inventada cotidianamente. o que fizeram saifudin, suleiman e zumbi foi inventar

    permanncia. com isso o nico cargo e funo quilombola: a tarefa violenta de prolongar artificialmente

    o acidental de sua inveno.

    cotidianamente, cada habitante de um quilombo se manifesta como ronin (conseguir durar por

    desrespeito absoluto) de circunstncia exterior (o poder civilizacional; o desrespeitado absoluto).

    captulo iii

    dos quilombos decretados

    nos quilombos decretados que reside o erro poltico por excelncia: aceita o princpio de um dilogo

    com aquilo que despreza o poder civilizacional. esses consistem que a/o quilombola no ignore as

    instncias que do existncia quele inimigo: deus, natureza, moral. o decreto a tentativa de tornar

    natural uma vontade geral que nunca ser nem natural, nem tampouco dada.

    lembremo-nos do silncio de jose dolores (evaristo marquz) para sir william walker (marlon brando)

    quando este tenta lhe dar a liberdade no final no filme queimada! (burn!).

    as tentativas de decretar um quilombo, de legaliza-lo, de torna-lo oficial, so: absolutizar um

    fundamento para o poder (o estado); instituir naturezas pelo estado (as instituies); e, canalizar

    desejos para certas redes de preocupaes organizadas (leis). quilombos decretados so a tentativa

    mxima de no conhecer todos os atos que os inventam, e de que se devam dar satisfaes sobre

    qualquer ato que seja. o decreto propriamente o benefcio da iluso dado por quem decreta de que

    seu poder no arbitrrio. eliminar a insolncia primordial quilombola esta besta feroz que no

    vacilar em prejudicar e destruir caso no esteja sob nosso poder.

    ideologia neutralista: ningum que seja quilombola, principalmente quem coloco em condio de ronin,

    est autorizada/o a julgar verdadeiro e falso, ordem e desordem, medida e desmedida sobre sua

    prpria condio. preciso uma causa, a do estado, para a existncia. aqui um quilombo no efeito

    de nada, mas sempre causa. um mundo estabelecido pela causalidade e no pela possibilidade.

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    captulo iv

    por que machu picchu, encontrado abandonado, pode ser considerado um quilombo

    inventado

    considerando as preocupaes ocidentais e oficialescas como uma nostlgica manuteno da ideia de

    ser, algum poderia ficar espantado/a pelo fato de machu picchu ser considerado um quilombo.

    aqueles/as que adoram postular objetos de satisfao fantasmagrica mantm relaes profundas com

    a postura de que algo impensvel algo que s pode estar errado. mas, como disse anteriormente,

    no tenho pretenso alguma em fazer ou desfazer algo, pretendo apenas transgredir e criar. para

    aqueles/as que esperam do futuro apenas restauraes melhor retroceder e no me acompanhar

    nessa expedio pelos cnions do urubamba (peru).

    sem metodologias do bom senso e da evidncia, prossigo. machu picchu um quilombo inventado.

    sua inveno no foi por recusa do que existia; nem por um passado perdido; muito menos por um

    futuro a instaurar. machu picchu foi inventada como algo instantneo e artificial. um quilombo cujo

    controle prtico foi fracassado: instantaneidade. um quilombo cujo controle intelectual foi fracassado:

    artificialidade. experimento trgico de oposio ao civilizador (ser). como quilombo machu picchu foi um

    sucesso: prescindiu de qualquer referencial ontolgico para ser construdo. foi inventada para ser

    abandonada. assuno alegre, serena do trgico, sem renunciar qualquer esplendor.

    alguns acasos organizados que no tem de prestar contas necessidade alguma: fortificada e feita

    para durar milnios, uma incrvel urbanizao levantada como algo fortuito e frgil; uma insupervel

    agricultura criada para em seguida se deixar de cultivar a terra. situada no alto de uma montanha e

    circundada pelo rio urubamba foi o mais perfeito refgio nas amricas. um quilombo arbitrariamente

    indgena onde no h nenhum objeto a perder, mas sim um aproveitamento total de todas as

    circunstncias possveis. aproveitamento instantneo e artificial sem o menor temor da indeterminao.

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    captulo v

    como se encontram organizados os quilombos, entre o desaparecimento e o aparecimento

    quando quilombos so inventados, como foi dito, se mostram incapazes de restaurar qualquer coisa

    que seja. isso por que no h nada a restaurar. a inveno no comporta nenhum trao restaurador. ,

    seno, uma ginga, um palpite genial, um jogo, um carnaval, uma capoeira.

    sendo inveno no um pensamento mesquinho para aprisionar uma realidade que lhes escapam.

    chega-se com as mos vazias e sem a possibilidade de aprender tcnicas de fazer modelos. uma

    inteligncia viva cuja mscara a ingenuidade. uma criminalidade acompanhada de graa e humor.

    no uma ironia cruel e dolorosa. nada se destri, nada se conquista. exu bailarino que se manifestapelo desprezo aos valores civilizados estes cuja eficcia proporcional sua impreciso para assim

    se tornarem invulnerveis.

    como exemplo, h o quilombo nmade do catuc (situado em pernambuco). catuc teve diversas

    sedes provisrias e era dividido em diversos grupos pela floresta. a base de sua economia era a

    agricultura, o furto nos engenhos e os assaltos nas estradas.

    um quilombo algo independente de qualquer tentativa de generalizar uma experincia. um contato

    ingnuo, ao mesmo tempo novo e original com a desaprendizagem e a inveno. no entanto, no

    pretende em nada purificar o teatro do mundo. esquece-se momentaneamente todos os sentidos de

    seu antigo territrio sem que isso signifique uma experincia transcendental. esquece-se

    momentaneamente todos os sentidos de sua antiga vida para deixar de aparecer como familiar. entre

    o desaparecimento e o aparecimento encontra-se o como organizar um lugar onde nada necessrio

    e, em certo sentido, tudo possvel eventualidades do queres e espontaneidade do acontecer.

    captulo vi

    dos quilombos que so inventados com armas prprias e antes que a memria falhe

    afirmo, portanto, que nos quilombos inventados, onde existem ronins quilombolas, encontra-se maior

    ou menor dificuldade para invent-los, segundo o ritmo da elaborao de modelos e de fcil

    construo, antes que sua memria falhe. pois, foram tragos/as a fora da frica para c, de mos

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    vazias, humilhados/as, relegados/as condio de mera fora de trabalho, mas com a cabea cheia de

    memrias.

    por este resultado, cada uma e cada um, tornam-se rainhas e reis de um reinado particular de

    denegao da natureza e afirmao radical do acaso. no entanto, nada difere a natureza do artifcio.

    nenhuma oposio. j que nem uma nem outra esto preliminarmente dadas. nada h para se

    explorar, compreender e antecipar. o mundo torna-se um conjunto de coisas que no contm mais nem

    menos sentido, o qual possa ser considerado sensato ou insensato. j que est privado de qualquer

    ideia de finalidade.

    todo banzo (angstia mortal) torna-se uma radical abertura de mundo, jamais pensada por qualquer

    existencialismo: o que antes era um olhar de peixe morto torna-se um olhar de jaguar faminto. nada

    a perder, nada perdido. improbabilidade de qualquer perda. todas as circunstncias so utilizveis.

    absoluta simplicidade. toda sabedoria constituda a partir da um crime contra o ser esta ideologia

    colonial e crist. com essa inocncia radical, tanto da vida, quanto do devir, tornam- se ronins: olhar de

    jaguar faminto.

    cada quilombola que possui esse tipo de olhar mostra-se, no como uma repetio do mesmo

    (perpetuao de modelos), mas sim como excesso de variedade (faanhas no vazio). universo que no

    existe, mas com o qual podemos tudo inventar. por exemplo, o culto brasileiro do batuque (bahia) que

    possui em seu vasto panteo, uma famlia inteira de espritos turcos um sincretismo afro-brasileiro

    que no inclui o cristianismo, por ter como elemento original escravos/as muulmanos/as

    sequestrados/as do norte da frica.

    captulo vii

    dos quilombos que so inventados com as armas e com as memrias de outros/as

    quem por sorte torna-se ronin quilombola, com pouca fadiga chegam a isso, se sustenta graas

    vontade e sorte de quem lhes concede um quilombo. vontade e sorte cuja fora maior o

    desaparecimento voluntrio e inslito. a face visvel desse quilombola enganadora, porm, tua

    nica face. no h meio-termo. nem iluso, nem verdade. nem artifcio, nem natureza. um tipo

    especial de desenvolvimento que no resulta de nenhuma memria prestes a falhar. nenhuma crise de

    memria. o quilombo existe em estado de liberdade do acaso. um reino aberto a todas aspossibilidades da inveno.

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    o caso dos/as lumbees (carolina do norte, eua). exemplo fantstico cuja origem lembrada pela

    mensagem crptica deixada para trs por colonizadores desaparecidos: fomos para croat. ndios de

    olhos cinza, como eram conhecidos com muito assombro, cuja lngua tem elementos do ingls e que

    diziam que seus antepassados sabiam falar num livro (especula-se que essa expresso signifique

    sabiam ler).

    neste tipo, imortais tabus so livre e deliberadamente ignorados. desobedincia metafsica.

    desobedincia ontolgica. ambas voluntrias. inveno de uma realidade estranha a qualquer ideia que

    se possa tomar como pretexto. inveno que se disfara em natureza sem assim o querer. inocncia

    por no se privar de um gesto de autenticidade original. indiferena iluso, verdade ou ao erro.

    mais ainda, uma condio assumida em toda sua dificuldade afetiva: a insignificncia radical de todo

    acontecimento seja anterior (memria), seja posterior (etnognesis).

    captulo viii

    das invenes de quilombos por meio do grau zero das leis

    sem estar com a memria prestes a falhar ou por memria de outros/as, pode-se tornar ronin

    quilombola por meio do crime. um quilombo assim inventado estabelece a nica razo de ser vlida

    para todas as leis: a arbitrariedade. qualquer que seja a lei, sua validade somente garantida pelo grau

    de autoridade arbitrria que a criou e a faz valer. acaso imposto. acaso repetido. acaso convencionado.

    o quilombo inventado pelo crime assim o como todo decreto divino ou toda lei natural: inventado por

    sede por necessidade. reinei na frica, vou reinar aqui tambm: chico rei (galanga muzinga). um reino

    inteiro aprisionado no congo e trago ao brasil para ser escravizado. tal galanga muxinga, batizado

    como francisco (como todo escravo) pelo papa, j que o rei de portugal no permitia a entrada depagos no brasil, consegue comprar sua alforria e a de seus/suas conterrneos/as. na recm

    construda capela para santa efignia (santa negra), com a autorizao do governador e do bispo,

    chico torna-se rei de vila rica (hoje ouro preto minas gerais).

    seguindo o exemplo: mstica arbitrria (congado). criatura razovel (reinado do rosrio). inverso

    inventiva onde a natureza exposta como posterior cultura. alienao inventiva da natureza pela

    reinicializao da histria. um reino cujo domnio o mutvel, o inapreensvel e o sensvel. grau zero

    da lei.

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    captulo ix

    das variaes quilombolas

    todo quilombo se modifica no prprio instante em que produzido. deste modo no existe um quilombo

    em si. muito menos uma nica significao de quilombo, ou mesmo uma forma certa de inventar um.

    sem razes metafsicas nem ontolgicas, um quilombo apenas um estar. jamais estiveram a para

    dar certo: deixam de existir apenas pela violncia civilizacional, no por ter sido inventado a partir de

    uma concepo ruim (programas), ou por falta de dinheiro e pessoas qualificadas (heris ou viles), ou

    mesmo por m administrao (repblica, federao, nao, etc.).

    so perspectivas de palpites geniais dissimuladas pela violncia exterior: a civilidade esta desculpa

    cultural para o fracasso e para a violao. o quilombo aqui teve um tirano. o quilombo acol foi uma

    repblica. aquele conglomerado de quilombos foi uma federao. outro foi um refgio de criminosos.

    aquele outro foi uma mina comprada para a extrao de ouro. e da? se no existe uma forma certa de

    se inventar um quilombo. ronins quilombolas abandonam um quilombo facilmente, e com a mesma

    facilidade inventam outro. e isso no significa que so sem quilombos. pois um quilombo no um

    resto, nem um prmio de consolao.

    profundo e inquietante: cada variao de quilombo assim existe. um presente enquanto tal. profundopor ter, mesmo em seu florescer, uma intenso trgica. inquietante por ter sua existncia fincada no

    no que so, mas sim no estarem presentes. manifestao abrupta da linearidade histrica: no se est

    nem num passado, nem num futuro; est-se presente para alm da soma das existncias de todos os

    outros quilombos. felizes reencontros com uma organizao social liberada da ideia de organizao

    social. morada inslita.

    captulo x

    como devem ser consideradas as potncias de todos os quilombos

    ao examinar a diversidade das invenes destes quilombos, convm considerar outro aspecto, isto ,

    se ronins quilombolas inventam um quilombo to potente que possa, precisando, resistir contra a

    violncia das foras civilizacionais ou, ao contrrio, se tem necessidade de ser abandonado para que

    seus habitantes o reinventem.

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    para mostrar melhor esta parte, digo como potncia a capacidade do quilombo de liberar cada

    quilombola da ideia de estar no mago do mundo: no de dele ou dela a responsabilidade do

    quilombo ser um espao definvel isento da dramtica e conflitante existncia humana. estar

    quilombola trata-se de uma adequao jubilosa a nada. instncia negativa da miragem civilizacionista.

    a potncia de todos os quilombos se d como, ocupar o lugar arriscado entre a indefinio da ordem e

    da necessidade da natureza que o cerca, e a vicissitude da atividade de cada quilombola que o habita

    e o inventa. ao contrrio dos governos e dos estados, a eficcia de sua potncia no supe nenhuma

    dissimulao e nenhum mistrio. potente em alto grau inexiste qualquer situao ou modelo que se

    supe que um quilombo contradiga.

    paradoxalmente o grau mximo dessa potncia deve-se ao contentamento da prpria impotncia. no

    existe como ideia (causas e efeitos), existe como prtica (atualizao constante). quilombolas no

    inventam quilombos porque os desejam, mas porque ignoram sua existncia. um silncio potente que

    aniquila tanto o silncio ideolgico (miragem civilizacionista) quanto o silncio do ceticismo (medo de

    errar, portanto de jogar gingar capoeira).

    captulo xi

    dos quilombos fantasmticos

    resta-me, tratar agora dos quilombos fantasmticos, nos quais so conservados pelas ordens de h

    muito estabelecidas na historiografia oficial. estes se tornaram to fortes e de tal eficcia oficialesca

    que se mantm como peas pilares da construo do estado-nao, fictcio como plural, chamado

    brasil.

    a ideia desse tipo de quilombo, frequentemente, tem sido usada como arma eficaz contra a inveno

    de novos quilombos talvez a mais eficaz das armas.

    nada mais ambguo do que o estado brasileiro integrar em sua historiografia oficial os quilombos

    como algo contribuidor da noo de brasilidade. essa integrao s possvel se existe uma

    brasilidade para se integrar. um brasil que lhe permite sobreviver apenas como histria; como um dado

    ideolgico de base.

    fantasmtico por estar vinculado moralmente numa recusa de ver, na existncia de um quilombo, afalta completa de princpios geradores. recusa em saber que nenhuma brasilidade decidiu a forma de

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    existncia quilombola. recusa que atua como fantasma, como efeito de foras, como resultado de

    princpios. alguma coisa se fez porestas terras brasilis, portanto existe um brasil de fato. eleva-se

    algo inocente e indiferente dignidade necessria da formao de um estado -nao. no h

    absolutamente nada sem a brasilidade. esta um agora que possibilita qualquer antes que assim o

    queira.

    quilombos fantasmticos tornam-se todo aquele desabilitado a trilhar mil caminhos. todos aqueles que

    possam produzir-se sem causa nem desgnio.

    captulo xii

    de quantas maneiras so a rebeldia e a guerra de guerrilha quilombola

    tenho falado das invenes que so os quilombos, ponho-me a falar agora dos meios ofensivos e

    defensivos que neles possam ocorrer. inveno e resistncia. rebeldia e guerrilha.

    contra um exrcito regular, contra grupos paramilitares bem armados como os bandeirantes, e contra

    colonos que adoram transformar-nos ou em fora de trabalho ou em defuntos/as, o que fazer? revolta

    luciferina; revolta utpica; revolta instintiva; revolta brutal; revolta social. cada quilombo resposta comdoses sutis de vrios tipos de revoltas.

    cada escravo e escrava evocam a sim mesmo/a a se posicionar: comear a dizer a prpria palavra; no

    deixar que pensem e ajam em seu nome. obrigam-se a recolocar seu cotidiano. fazem do meio em que

    vivem o lugar no qual se engajar. aprendem a no ter medo da morte, j to cotidiana. cultivam,

    cuidadosamente, o dio por quem os/as oprimem. cultivam, cuidadosamente, o amor pelo combate que

    liberta. tornam-se, portanto, inimigo/a indigesto/a. inventam outro nascimento, com os matizes da

    morte.

    o enfrentamento travado em todos os momentos da vida. no apenas em campos de batalha. torna-

    se a nica possibilidade de sobrevivncia. combater para voltar a viver. em vez de assumir a condio

    de escravos e escravas ou de sub-humanos, dizem adeus a uma civilizao que no acalenta.

    colocam-se acima das leis, em resposta ofensa que as leis lhe fizeram. rebeldia como inveno e

    guerra de guerrilha como resistncia. jogos e gingas contra-civilizao.

    fugir, organizar-se para resistir e, em seguida, reorganizar-se para exercitar o empoderamento. e, claro,no existe uma forma certa de fazer esse exerccio.

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    captulo xiii

    das rebeldias auxiliares, mistas e prprias

    na gradao entre a aceitao e a recusa que percorre toda histria, geografia e conscincias convm

    singularizar a revolta quilombola.

    a revolta quilombola no se trata de uma qualificao. trata-se de uma condio mesma de viver. ela

    no se impe lentamente ou por fases. muito menos se monstra a um olhar perspicaz que tenta dizer o

    momento exato em que a rebeldia dar seu primeiro passo. isso por sua amarga inaptido para o

    arrependimento. instantnea e irreversvel. exlio absoluto de regresso impossvel. instaurao de um

    potente movimento inercial contra-civilizao indiferente prpria ideia de causa. nenhuma causa em

    si esconde-se atrs das mltiplas invenes. a experincia da rebeldia limita-se rebeldia.

    transposio e radicalizao de uma experincia cotidiana. surpresa de encontrar a rebeldia onde se

    esperava encontrar a aceitao.

    rebeldia auxiliar: para preservar vida, arruna-se essa prpria vida. rebeldia mista: escolher o risco da

    morte contra uma escravatura. rebeldia prpria: dar livre curso a todos os instintos de morte contra as

    poderosas indstrias da morte geridas pelas civilizaes. rebeldias conjugadas cuja conjugao a

    prpria negao da histria do mundo sempre atravessada pela nostalgia. fundem-se com a naturezapelo artifcio que lhe prpria. rebeldias que esto no mundo ao mesmo ttulo que as pedras e as

    plantas. existncia que se processa num plano indiferenciado. rebeldias que se sucedem, sem arquivos

    e sem progresso. abandono (so no militantes anti-civilizao ocidental, do-se como movimento

    inercial insurgente), indiferena (o acaso os/as fez nascer no h ordenamento primordial algum),

    silncio (desaparecer sua soberania fecham seus segredos e no revelam as verdades das suas

    vidas) e seguir (apoderar-se de uma liberdade que se transforma em fatalidade).

    captulo xiv

    o que compete a um e a uma ronin quilombola acerca da guerrilha

    deve no ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa para fazer, seno a

    guerrilha e sua organizao e disciplina, porque essa a nica arte que lhe compete?

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    no. pois a dor que separa quilombola de quilombola no usada como pretexto exterior. cada dor

    privada ao mesmo tempo uma dor pblica e vice-versa. a guerrilha quilombola uma tenso

    existencial entre, o fazer a si mesmo/a, em um cosmo que est em contnuo movimento de desfazer-

    se, e um mundo social onde, as prticas so sempre desenvolvidas em um horizonte supostamente

    determinado, certo e edificante. um tipo de guerrilha que se d como recuperao da prpria

    mortalidade, paradoxalmente alienada pela escravido, onde a morte era deciso apenas de seu

    senhor.

    desamparo original do nascimento e desamparo posterior da escravido: a mais prpria condio

    desestabilizadora para uma guerra de guerrilha radical contra todas as ontologias da totalidade

    civilizacionista. guerrilha mais fundamental que organizar-se e disciplinar-se para tal. guerrilha que no

    se trata mais de uma questo moral este horizonte enganoso de justificao das aes humanas.guerrilha que no se trata de um tornar-se feliz; de um retirar-se da misria ou da miserabilidade; trata-

    se de uma ao sempre reativa e desestabilizadora. no se quer uma tomada de poder. quer sim que

    o/a inimigo/a se desgaste; que se esgote em suas penrias. h mais situaes e estados de coisas que

    se quer rechaar do que situaes e estados de coisas que se quer alcanar. guerrilha de evitamento e

    no de conquista.

    guerrilha da existncia onde a vida a prpria impossibilidade fundamental de nada oferecer, mas que

    nos impe exigncias diante as quais temos que tomar posies.

    captulo xv

    daquelas coisas pelas quais se louvam ou censuram ronins quilombolas

    como devem ser os modos e as condutas de ronins quilombolas para com outros modos e condutas

    quilombolas ou para com outras/os ronins quilombolas?

    no, no h uma quebra do silncio aqui. continuo a insolncia.

    modos e condutas o grau zero do oferecimento. nada h para oferecer. o desamparo, a carncia e a

    desproteo esto igualmente distribudos para todos e todas. no h ningum que ajude e ningum

    que possa oferecer ajuda alguma. no entanto, h uma enorme generosidade. generosidade de mos

    vazias. jamais se coloca outros modos e condutas quilombolas e de ronins quilombolas no lugar de

    inferioridade ou de superioridade. a ajuda mtua, aonde as qualidades vo igualmente se elevando

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    somente porque so relaes entre liberdades; algo que somente algum livre pode cultivar. o

    pessimismo, o niilismo, a tristeza, a melancolia, o suicdio so tambm tomadas de posio diante a

    irreversibilidade da existncia. so condies de possibilidade de vida.

    desagradecimento a toda ajuda que no seja mtua e recproca. ingratido profunda contra as sutis

    formas de dominao por trs das assistncias e das ajudas. nenhuma esperana ilimitada nem

    luminosa. apenas distribuio igualitria da melancolia do saber (viver ao mesmo tempo desviver), da

    lucidez (toda alegria tambm uma tristeza) e da conscincia (toda atitude vital uma atitude mortal)

    entre reis, rainhas, guerreiras, guerreiros, folies e folionas.

    captulo xvida liberalidade e da frugalidade

    caso a rebeldia ganha sensatez tornar-se- reacionarismo. assim se tornaria um/a quilombola caso se

    abdicasse da frugalidade guerrilheira esta que no dirigida nem a ordem estabelecida, nem a uma

    ordem estabelecida. quilombos no se limitam a ser reformista de coisa alguma. indiferena radical

    revoluo. paixo incondicional insurreio. no se pretende aniquilar velhos vcios para garantir

    privilgios s novas virtudes. no se liberta escravo e escrava. liberta -se aquele escravo, esta escrava

    singularidades.

    no ganho da sensatez, liberalismos. quantos fanfarres e quantas fanfarronas no se tornaram pacatos

    e pacatas cidads? contra a pacatez reformista e acomodada, a frugalidade que no oferece quaisquer

    garantias e que no tem nada a perder o que o mesmo dizer que nada tm a arriscar. a frugalidade

    traz a/ao quilombola inquietude, desassombro, mutabilidade sem se tornarem manacos e manacas da

    novidade. pois no o grau de servilismo, mas sim o grau do trabalho tornado livre que faz o cotidiano

    quilombola ser espao apropriado de liberdade e no espao liberado da apropriao como querem

    liberalistas polticos e liberalistas econmicos.

    no ganho de sensatez, liberalismos. quantos esbanjadores e quantas esbanjadoras no se tornaram

    amantes da misria? contra o ideal de miserveis, de que todos e todas devem tornar-se miserveis, a

    frugalidade que desabilita a onipotncia infinitista do trabalho. frugalidade como relembrana cotidiana

    de que se ricos/as so responsveis pela pobreza, pobres so responsveis pela riqueza. no h dia

    til, dia produtivo. h dia a dia que sabe utilizar a mortalidade que torna todo projeto algo finito e

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    consumador. o que faz do quilombo um espao de aguda conscincia de evitamentos e no um espao

    de conscincia de finalidades como querem liberalistas sociais e liberalistas humanistas.

    a frugalidade conquista de um s para mim fundamental: a liberdade jamais se torna liberalismo; ou

    algo que se conquista singularmente, ou no nada. no adianta ter liberdade de imprensa, de ir e vir,

    de expresso, de manifestao, etc., se a pessoa no se tornou liberta. tornar-se livre algo mais do

    que a liberdade. atribuir qualidade e contedo vida vivida. atribuio que depende mais da

    singularidade do/a liberto/a do que como, genericamente, este ou aquela se serve da liberdade.

    atribuir uma via de mo dupla do que se quer ao vazio do que no se quer. a liberdade a impresso

    de personalidade ou no nada.

    captulo xvii

    da crueza e da miragem; se melhor a falta de instituies que excesso dessas mesmas, ou

    antes, o excesso que a falta

    de tudo at aqui indicado, digo que desejada a falta de instituies do que o excesso. em outros

    termos, desejada a crueza do que a miragem.

    a miragem sempre o inextirpvel. pois no define o contedo do que visto, mas o modo da prpria

    viso. torna o pensado, a imaginao, o medido, a inveno, o relatado, a arte da composio em fato

    irredutvel, inatacvel, irrefutvel. assim d-se o excesso das instituies. intil lanar-se contra elas.

    nem mesmo adiante desmistificar seus mecanismos. objeto impreciso pronto para receber a adeso

    de um sujeito do mesmo modo impreciso. a se encontra sua fora pra continuar sua durao:

    impossibilitar a preciso no se espera do futuro nem transgresso, nem criao, somente

    restauraes imprecisas aqui e ali. at mesmo suas possibilidades de desvios j esto inscritas em

    uma ordem imprecisa. seu destino a tirania poder poltico como coero e violncia.

    a falta de instituies o grau zero do medo do instvel e do fugidio meio de neutralizar a violncia

    da autoridade poltica civilizacionista. o prprio reconhecimento de que o acaso tem um papel na

    gnesis de um quilombo. neste as instituies no esto nem ausentes, nem escondidas. o acaso em

    cada quilombo a inocncia primordial da inveno no tem conveno alguma presente no inventar

    quilombos. no h ideia alguma que permita a segurana no mago desse grau zero. jamais se est

    em paralisia, sem medo do instvel e do fugidio, se foge a potncia e a perpetuao da fuga exatamente o que cada quilombola quer que o quilombo seja.

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    prefervel a crueza em vez de fazer sacrifcios sem sentido miragem. tal crueza estar diante da

    situao do subjugo definitivo diante um/a inimigo/a obviamente mais forte. render-se admitir que se

    foi subjugado. negociar reconhecer que se est a meio caminho de ser subjugado. fugir significa

    subjugo nenhum. na miragem ou se rende ou se negocia. no excesso das instituies ou se rende ou

    se negocia. portanto, prefervel fugir, pois a fuga a abertura do grau zero do medo do instvel e do

    fugidio. o instvel e o fugidio presente na falta no gera nem um sentimento de vazio nem uma

    impossibilidade de aderir ao que quer que seja.

    captulo xviii

    de que modo se ronin sendo quilombola

    nos caracis-quilombos dos maias zapatistas no mxico, corre a seguinte prtica: um mundo onde

    caibam todos os mundos. prtica aqui aderida.

    primeiramente, se considerarmos apenas como populao dos quilombos histricos, pessoas de

    origem negra-africana, a frica jamais foi um continente de uma s cultura uniformidade esttica,

    poltica e lingustica. ser negro e negra era to somente uma generalizao precipitada esttica.

    mesmo a designao tardia de afrodescendentes, apenas se refere extenso territorial da qual

    foram sequestrados e sequestradas e a condio de ser descendentes de escravos e escravas. a

    prpria diversidade encontrada nesse territrio original implodia, desde j, a poltica moderna europeia

    da identidade binria e/ou dialtica que contrape o um ao um.

    em segundo lugar, nos quilombos no s havia pessoas de origem negra-africana. por l conviviam

    mestios e mestias de toda ordem, indgenas (tambm das mais variadas culturas) e pessoas brancas

    de sorte. tal experincia pluricultural fez dos quilombos histricos, quilombos polticos e extemporneos

    (no institucional nem duradouro) e sem preciso territorial. mas que, no entanto, no os fizeram meras

    abstraes. os fizeram como horizontes de mltiplas possibilidades e no de nica necessidade. sendo

    assim, neste mundo que cabe todos os mundos, uma das possibilidades a condio de ronin.

    condio tambm tornada extempornea e sem preciso territorial. aqui prefiro a desordem

    contaminadora da pluriculturalidade diviso histrica, geogrfica, tnica e racial produtora e

    reprodutora da ordem racista civilizacional.

    ser ronin quilombola o abandono e fuga de ideais e conceitos iluministas. estar alm da polis. estar alm da civilizao. a linguagem dos quilombos histricos aos quilombos polticos e

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    extemporneos (no institucional nem duradouro) sincrtica e catica. tais condies nos deslocam

    para outras categorias lingusticas conceituais e imaginativas. ronin aqui adquire hibridao

    polissmica. ronin aqui est alm da linguagem monossemntica, dos conceitos universais e das

    verdades civilizacionistas. portanto, aqui no h purismo algum seja ele ideolgico, lingustico,

    antropolgico, racial, etc. por aqui ronins quilombolas no nascem, nem morrem, apenas aparece e

    desaparece. ns, sim! na condio de ronins quilombolas nascemos e morremos.

    captulo xix

    de que modo se evita estar em obedincia

    esta forma sutil de sacrifcio, a obedincia, assume um papel de glria eterna um privilgio para quem

    no se rebela: escravo e escrava tornando a escravido suportvel. lpide do tmulo da rebeldia. a

    obedincia a submisso ao medo de libertar-se e a renncia de uma vida cotidiana no masoquista.

    momento em que se abdica de desejos e paixes em prol de pretextos: sobreviver, filhos/as para

    criar, contas a pagar, etc. aceitao reduzida ao cada um por si compreendido em termos coletivos:

    o cotidiano no nada mais do que um emaranhado de mediocridades submisso alegre ao poder

    da autoridade.

    um quilombo no uma proposta de sociedade transparente e retumbante, onde se desaparece todo

    conflito, onde se estabelece o fim de toda diviso, onde se d a harmonia global. est mais para um

    estado de esprito desobediente do que para uma utopia ou um projeto. irrompe como uma fratura

    entre ser e estar. um sentir em relao presena da ausncia. momento em que a era da abstrao

    universal chega ao fimos paradigmas da dominao justa ou necessria.

    desobedecendo, se aprende a desaprender; se abandona a institucionalizao da relao comando-

    obedincia; se regionaliza a conscincia; se desconecta da condio de que sua vida pode ser

    descarta, a qualquer momento, por razes estratgicas civilizacionista; instaura uma resistncia

    invisvel (se coloca para alm do externo cristo-militar-ocidental) e negativa (ao poltica no

    substancialista); rompe com a distribuio perversa e cnica da mortalidade; destri a retrica triunfante

    da salvao e vida boa para todos e todas; se constri um presente e um futuro sem as ruinas e as

    memrias civilizacionistas.

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    captulo xx

    se as fortificaes e muitas outras coisas que a cada dia so feitas por ronins quilombolas so

    teis ou no

    para durar em rebeldia e autogovernar-se preciso um quilombo em fortificaes. estas so: virtuais

    lugares escondidos, clandestinos e de difcil acesso; pessoais guerreiros e guerreias em tocaia e

    populao armada; e, materiais armadilhas com as estacas pontiagudas fincadas de ponta para cima

    em buracos disfarados com galhos, etc.

    na ausncia de todo um exrcito regular, de dinheiro e armas de fcil acesso, estratgias de guerrilhas

    tornam-se critrios mais gerais de fortificao. como as tticas empregadas por tereza de benguela na

    defesa do quilombo quariter (em cuiab); as de joo tapuia no quilombo dos palmares; e at mesmo

    as utilizadas por henry berry lowrie durante a guerra civil americana na defesa da autodeterminao de

    sua etnia lumbee.

    cinco utilidades iniciais:

    [1]. a resistncia e a derrota dependem das foras temporrias das circunstncias: terreno (em quais

    batalhar e em quais no), clima (uso de fogo, gua, intempries), distncia (exaurir, confundir e

    dispersar foras inimigas antes da batalha), armas disponveis (tipos e funcionalidade) e estado de

    humor (surpresa ou preparo);

    [2]. no h resistncia alm do momento presente: dificuldade em descobrir um ataque que se anuncia

    (indiferena mstica da transgresso) e dificuldade de aplicar o aprendido (por utilizar apenas o acaso

    como fonte de poder), pois no se exrcito profissional (quilombos tratam-se como estado de acaso e

    no estado de guerra);

    [3]. existe algo a ser aprendido em cada situao: animais sabem o que comer e o que no comer, oclima revela condies do terreno, o terreno revela como se movimentar e onde se esconder, etc. t udo

    que imaginvel somente valer a posteriori. no entanto, tudo somente ter impacto sobre as origens

    do poder e no sobre seus meios.

    [4]. cada pessoa afetada pelo que esto acostumadas a ver e a escutar: sempre vista utenslios e

    ferramentas para a resistncia (proteger-se da violao) ou para a inspirao de tais (alcanar a

    inviolabilidade), histrias de antigos e antigas guerreiras derrotando inimigos e inimigas poderosas

    (estado de memria ao reino de uma desaprendizagem ordenada aprendizagem livre);

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    [5]. ir alm fugir da norma: ou se est em rebeldia (sem metafsica, ontologia ou natureza) ou no se

    est em nada.

    captulo xxi

    o que convm estimar ser ronin quilombola

    antes de tudo, nada me falta. no tenho espao vazio algum para ser preenchido por uma boa causa.

    no tenho angstia alguma para ser preenchida por deus, pela humanidade, pela verdade, pela

    liberdade, pelo humanitarismos, nem pela justia. no sinto nusea alguma para ser amenizada pelo

    povo, pelo prncipe e pela ptria. todo esse excesso de coisas para me preencher meu niilismo. este

    ao avesso: no pela falta de sentido, mas pelo excesso deste. sim, o no previsto: tudo est cheio de

    tudo. no entanto, nenhuma atrao pelo vazio, sim atrao pelo excesso. em rota de coliso. oponho

    ao excesso dos sentidos das coisas a dureza de meu excesso. tudo isso que se quer ser causa e

    ordem das de mim e do cosmos se quebrar por si mesmo.

    a dureza de meu excesso faz ruir, em minha fuga para um quilombo em terras estranhas e sem

    garantias, tudo isso que se espera que eu trabalhe me sacrifique e me entusiasme: deus, humanidade,

    verdade, liberdade, humanitarismos, justia, povo, prncipe, ptria.

    meu excesso querer mais do que tudo isso. no quero o divino, pois assim me tornaria centro de

    humanismos. nem mesmo o humanismo, pois assim me tornaria centro de humanitarismos. quero mais

    que isso. no quero justia, pois assim me tornaria subjugo de poderes judicirios. nem mesmo a

    verdade, pois assim tudo o mais teria que ser mentiras. quero mais que isso. no quero prncipe, pois

    assim eu justificaria todas as autoridades. nem mesmo ptria, pois assim me confinaria a alguma

    terrinha. quero mais que isso. no quero o povo, pois assim me tornaria mediao por baixo. nem

    mesmo a liberdade, pois assim me liberto apenas daquilo que no quero. quero mais que isso.

    convm estimar ser ronin quilombola: sem deus no h enigmas ou mistrios para assombrar o

    universo, no h despojo eclesistico, nem cidad/o submissa/o h apenas tomar posse de si

    mesma/o; sem humanitarismos no h humanidade em si, nem cidad/o utilizvel apenas h eu e tu,

    personas concretas tomando posse de si mesma/o; sem justia no h poderes alheios aos meus

    conflitos, nem aplicao de sanes, punies e enquadramentos h meu e teu desamparo legislador

    tomando posse de si mesma/o em associaes; sem a verdade, no h centro, nem uma nica formaapenas de ser perspectiva h apenas tomar posse de si mesma/o sem represso alguma ao que

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    pessoal; sem prncipe, no h a fraqueza que precisa recorrer autoridade h apenas tomar posse

    de si mesma/o em personalidades voluntrias; sem ptria, no h uma terrinha nem seus/suas

    administradores/as, muito menos suas preocupaes mesquinhas para que a tais nos sacrifiquemos

    h apenas tomar posse de si mesma/o em dispora voluntria; sem povo, no h para quem nos

    entusiasmemos por alheiamento h apenas tomar posse de si mesma/o sem ter que se tornar um/a

    autntica/o ser das massas e das multides; sem liberdade, no h apenas estar livre , h de termos

    aquilo que queremos.

    captulo xxii

    de outros e outras ronins quilombolas que se tm em associao

    por em funcionamento associaes em rebeldia: eis o horizonte da inveno de um quilombo. ter-se

    em associao em rebeldia: eis o horizonte sem a lgica do poder e dos planos das elites

    hegemonizadoras. terceiro momento de rebeldia. pois o primeiro foi o tomar posse de si mesma/o e o

    segundo, a fuga. terceiro momento criado apenas coletivamente e determinado por membros/as, onde

    se prefervel estar dependente de outros e outras ronins quilombolas. usos mtuos para que minha e

    tua fora seja multiplicada sem obrigaes nem fidelidades. cada ronin quilombola aperfeioando e

    aumentando suas foras mediante estes usos mtuos entre ronins quilombolas.

    a inveno em rebeldia de um quilombo, ou seja, uma associao entre ronins quilombolas, no a

    transformao de um estado de coisas a partir de uma consequncia necessria. a transformao de

    um estado de coisas a partir da insatisfao da pessoa consigo mesma. no um levante coletivo.

    muito menos uma manifestao de crtica coerente ou mesmo uma guerra consistente aos

    desdobramentos da guerra colonialista. um insurgir sem pensar que da possa surgir instituies. sem

    esperana nestas organiza-se a si prprio/a. a associao que daqui surge no uma luta contra a

    hegemonia colonial. apenas um meio ativo de emancipar-se da situao vigente.

    invenes libertrias da amizade e dos conflitos. prefere-se antes amigos e amigas amizade abstrata

    (destinao ou misso associativa). amigas e amigos, guerreiras e guerreiros, egostas generosas e

    egostas generosos. egos apropriados para si que em rebeldia transbordam em ddiva temporria para

    outros egos apropriados. no preciso a fraternidade associao amistosa e no fraternal. basta a

    cumplicidade j que a inveno de um quilombo um adorvel crime. amizade que guarda com

    carinho o carter trgico e perverso de cada amiga e amigo. nudez frontal. predao generalizada. sem

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    temor antropofagia. tais como relao que se fundamenta na coragem do no-respeito e da recusa

    de solues pacficas e transcendentais para os conflitos inevitveis. nenhum conforto normativo. no

    entanto tal apenas uma entre todas as possibilidades. nenhum dio entre amigos e amigas to

    corajosas e corajosos; to diferentes e iguais. no entanto, nenhuma castrao de tal sentimento o

    dio tambm uma paixo construtiva. nenhuma subalternao. apenas as voluntrias.

    na associao entre ronins quilombolas no se gritam intensamente em defesa de sua superioridade,

    pois tal gritaria sempre se d para ocultamento de si o negativo constitutivo.

    captulo xxiii

    como se deve evitar ativistas polticos e ativistas sociais

    o adestramento algo que se torna cada vez mais geral e mais vasto. individualmente tem incio como

    misso particular capacidade disto e/ou daquilo. coletivamente tem incio como destinao geral o

    fim ltimo disto e/ou daquilo. a possibilidade e o futuro em eterna coincidncia. misso e destinao

    com algo eternamente no surgido vir-a-ser e/ou alm. e assim o adestramento se expande da

    religiosidade ao ativismo poltico e ao ativismo social e vice-versa.

    adestrada e adestrado no se liberta dos contedos da liberdade, como ronins quilombolas. a liberdade

    torna-se um dogma disto e/ou daquilo. torna-se uma funo, um papel na vida, um emprego, uma

    carreira. a poltica e o social tornam-se o mundo da obsesso. esta armadilha de forma e contedo.

    ativistas tornam-se para si um imaginvel no futuro e no alm. operacionalmente um quilombo

    inventado por ativistas no seria diferente de uma corporao, de um partido, de um estado. tal

    coincidncia tambm aparece em interpretaes tardias deste ou daquele quilombo por ativistas

    intelectuais que se estabelecem como objetivos, tarefas, como dever, destinao, misso, como ideais

    de si. invenes e interpretaes ativas tanto quanto uma rotina cega e estril.

    com ativistas polticos e ativistas sociais muito fcil de conviver. pois so hbeis em assimilar e

    desempenhar papis de acordo com as normas oficiais. no so superaes do ser nem do

    pensamento. saltam servilmente de modelo a modelo: faamos um quilombo moderno, como forma as

    comunas anarquistas ou as vilas operrias comunistas; o quilombo x foi uma repblica muito antes

    das repblicas europeias; etc. no suportam a falta de modelos. em geral suas invenes e

    interpretaes no vo mais longe do aquilo que inventaram e interpretaram seus pais/mes, padres,

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    pastores, policiais e professores/as. no pecam nem cometem crimes desobedincias

    epistemolgicos, nem desobedincias hermenuticas e muito menos apostam na inveno de

    quilombos por ronins.

    ativistas polticos e ativistas sociais tm apenas interpretado e tentado transformar o mundo; a questo

    porm, para ronins quilombola apostas na inveno de outros mundos.

    captulo xxiv

    porque a expresso e o significado dos quilombos se reduziram luta pela terra

    o mtodo moderno e, portanto, colonial no territrio invadido e batizado como brasil a destruio ao

    milmetro. uma visvel trama de ligaes que constituem a integrao nacional e a eliminao daquilo

    que ameaa o projeto de hegemonizao colonial. do direito clssico portugus, a leis das sesmarias

    (legislao de fernando i de portugal promulgada em 1375), passando pelas capitanias hereditrias

    (promulgada por dom joo iii de portugal em 1536 no brasil) e pelas leis de terra de 1850 e da

    constituio de 1988 tudo se reduz a se apropriar e a distribuir terras legalmente. nestes modelos

    legais de desalojamentos, pilhagens e concesses um quilombo aparece, ora como algo considerado

    excessivo onde todos os valores civilizacionistas so atacados e destrudos, ora como algo pardico

    baseado no desespero e na barbrie improviso e m-formao.

    como excesso, um quilombo deve ser destrudo e suas terras retomadas. como pardia, um quilombo

    deve ser submetido a um processo de certificao pelo incra (instituto nacional de colonizao e

    reforma agrria). ambas as perspectivas hoje andam juntas sob a forma do desenvolvimentismo: forma

    de contornar e confrontar a expresso e o significado de um quilombo. visa-se contornar por este

    relativizar radicalmente o estilo de vida civilizado/colonizado. a possibilidade se fundindo ao presente

    como outros mundos de auto-realizaes coexistindo. visa-se confrontar por aquele ameaar a

    positividade e o privilgio que apenas alguns e algumas usufruem. mais uma possibilidade que se

    funde ao presente como auto-liberao da vida usada contra os/as vivos/as, para melhor os/as

    dominar.

    um quilombo reduzido luta pela terra que ocupa o modo de reduzi-lo boa convivncia com a

    explorao e a misria. a ele no confiada nenhuma abolio presente ou futura a verdade da

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    inveno de um quilombo. a ele confiada apenas a nostalgia a potncia de sua dominao. para a

    melhor administrao civilizacionista/colonial de quilombolas reduzidos e reduzidas a cidados e

    cidads e das instituies que os/as reduzem. terras sem quilombos. terras sem auto-realizaes.

    terras sem auto-liberaes. terras apenas para agricultura, pastagem e ocultamento. reduo que visa

    salvar o/a criminoso/a de seu crime punindo-o/a para restabelecer a mesma ordem hegemnica

    criminoso e criminosa no determinados/as pelo objeto do crime, as terras; criminosa e criminoso que

    determina o prprio objeto do crime.

    a expresso e o significado dos quilombos a prpria no distino entre pessoas superiores e

    inferiores, e sim a distino entre singularidades que no visam animar a mecnica da sociedade

    civilizada/colonial.

    captulo xxv

    quanto pode o acaso e de que modo no faz sentido resistir a ele

    simples pndulo da inveno de quilombos: oscilao entre necessidades factuais e necessidades

    arbitrrias. nenhuma necessidade ltima ou transcendente. nenhuma zona de certeza. apenas um

    horizonte de acasos materiais e de vicissitudes das aes pessoais. um mundo por apostar e por fazer.

    o feito atrai o pndulo do lado das necessidades factuais. a aposta atrai o lado das necessidades

    arbitrrias. atrao e movimento. no entanto, a relao de foras muito plstica e flexvel: ora cada

    tipo de necessidade torna-se o atrator e feito e aposta tornam-se o movimento pendular; ora uma

    necessidade atrator e a outra um movimento.

    o acaso no uma ideologia. no oculta nada. muito menos contribui para impreciso o que o

    tornaria invulnervel enquanto ideia; como so as ideologias metafsicas, morais e religiosas. acaso

    no uma palavra imprecisa. no constitui uma miragem. acaso no um silncio prolixo. no lhe falta

    contedo. a insignificncia radical de qualquer acontecimento e coisa. confirmao pela experincia

    de todos os aspectos perigosos, negativos e problemticos da existncia, sem enigmas, mistrios e

    profundidades esta trade que sustenta toda forma de autoridade hierarquizada. o acaso no uma

    afetividade obsessiva. no se constitui a partir de insatisfao alguma desejo. no constitui

    racionalizao alguma justificativa a posteriori tornada fenmeno a priori. o acaso no tem como

    objetivo resultados prticos nem um aprimoramento do prazer esttico. mas, sim, um exercitar de uma

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    intuio especial. intuio que capta ao mesmo tempo a totalidade (condio de escravido onde se

    quer viver, mas no desta forma) e a singularidade de todas as coisas (o momento oportuno para a

    fuga rumo ao desamparo). percepo cotidiana.

    a experincia quilombola experincia ao acaso e de acaso. cria-se algo do nada para fazer com que

    o falso parea verdadeiro rastros e trilhas falsas. atinge o inimigo onde este menos espera

    organiza-se uma sociedade em rebeldia. alheiamento s discusses e desventuras na organizao

    social civilizacionista/colonial colhe benefcio com mnimo esforo. conquista-se a confiana do

    inimigo para desarm-lo, enquanto se prepara para lanar-se fora a aparncia de escravo e escrava

    de fragilidade, porm, seu mpeto forte. liberta-se da liberdade - sacrificam-se todos os contedos

    da liberdade para atingir a liberdade plena. aproveitam-se todas as fraquezas do inimigo roubam-se

    armas, ferramentas, tesouros, provimentos e auxiliam-se outras fugas. toda coragem de ronins

    quilombolas emerge antes de qualquer estratgia. ao mesmo tempo em que qualquer tipo de economia

    e receio que se possa fazer e sentir lhe custar a vida.

    captulo xxvi

    exortao para tomar a defesa de quilombos a-histricos e para a inveno de outros quilombos

    em nossos dias

    nos considerados vinte e cinco sculos da histria da filosofia ocidental, cada filsofo e filsofa tomou

    elementos de sua poca para pensar desde a universais. por exemplo, plato e sua repblica, hegel

    e napoleo, hannah arendt e o nazismo, etc. no entrarei no mrito de nada que envolvam estes

    sculos, usos e filsofos/as. sobre isso apenas farei uma nica afirmao: o surgimento de universais

    no exclusividade de uma regio geogrfica do globo terrestre europa e/ou eua.

    h muito que quilombos so apropriados pela antropologia, sociologia, histria e rgos de estado.

    jamais pela filosofia. o que o lana a duas condies: a primeira de que um quilombo um tipo de

    coisa que impele escravos e escravas a inventarem tal organizao na obscuridade de uma origem

    contingente, atravessa a histria de modo irrelevante quanto sua expresso e significao mais

    potentes, extingue-se nos territrios nacionais integrados e na arbitrariedade de rgos

    governamentais e essa morte ilusria: qualquer coisa do terror da escravido continua a assombrar

    os ideais do desenvolvimentismo tal como ante ns ressurge a necessidade da fuga e da organizao

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    em rebeldia; a segunda de que desde um quilombo nenhum universal possvel: a experincia

    quilombola aloja-se nos recantos atenuados da filosofia; assim que o discurso filosfico faz uma pausa

    ou balbucia, o discurso dissonante quilombola faz surgir universais como liberdade, natureza

    humana, etc. e logo regressa ao seu silncio; a consequncia que sabemos antropolgica,

    sociolgica e historicamente sobre a aurora e a epopeia quilombola, no entanto, no sabemos nada

    das verdades universais apostadas e realizadas.

    aqui fao um experimento: exortar os quilombos como uma realizao extempornea. substituir o

    horizonte histrico-geogrfico em que nasceu este ou aquele quilombo por outros horizontes menos

    conhecidos: o lugar vazio e circular onde em rebeldia traamos outras geometrias e criamos outras

    epistemologias e hermenuticas que tais impossibilitem elas mesmas. a pretenso aqui presente a

    de elevar a experincia quilombola ao discurso pleno. no a uma fala onde algo est sempre faltando,

    como, por exemplo, a falta de instituies. nem uma fala proftica, como, por exemplo, da eminncia

    do despotismo de instituies mal formadas. um quilombo considerado como elemento potente de

    desocultamento para qualquer organizao social. o quilombo no diz mais nem menos das

    organizaes civilizacionistas/coloniais, ele propriamente relativa tais. deste modo algo

    extemporneo: tivemos experincias quilombolas no passado (ancestralidade de ex-escravos e ex-

    escravas que fugiram da escravido); temo-las no presente (fuga da cidade, da sociedade e do

    discurso do mtodo rumo s auto-organizaes em rebeldia); e a teremos no futuro (abandono dacivilizao como um todo).

    sim, mas, e porque ronin? o mesmo que o prncipe para maquiavel, s que com a seguinte base de

    ao: entre os aforismosna parede do senhor naoshige havia este: assuntos de grande importnciano devem ser levados to a srio. mestre ittei comentou: assuntos de pequena importncia devem

    ser tratados com seriedade. hagakure (o livro do samurai) de yamamoto tsunetomo.

    lo pimentel amante da heresia 2012