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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ÉDERSON ANDRADE
POLÍTICA DE CURRÍCULO PARA A ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS DE
FORMAÇÃO: ARTICULAÇÕES, DISCURSOS E SIGNIFICANTES NAS
ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA A REDE ESTADUAL DE MATO GROSSO
Cuiabá – MT
2013
ÉDERSON ANDRADE
POLÍTICA DE CURRÍCULO PARA A ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS DE
FORMAÇÃO: ARTICULAÇÕES, DISCURSOS E SIGNIFICANTES NAS
ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA A REDE ESTADUAL DE MATO GROSSO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de
Mato Grosso, como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Mestre em Educação, na Área de Concentração
Educação, Linha de Pesquisa Organização Escolar, Formação e
Práticas Pedagógicas.
Orientadora: Profa. Dra. Jorcelina Elizabeth Fernandes
Cuiabá – MT
2013
A553p ANDRADE, Éderson
Política de currículo para a escola organizada por Ciclos de Formação: articulações,
discursos e significantes nas orientações curriculares para a rede estadual de Mato
Grosso /Éderson Andrade. – Cuiabá, MT, 2013. 174f.
Dissertação – (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em
Educação. Instituto de Educação. Universidade Federal de Mato Grosso.
Orientação: Profa. Jorcelina Elizabeth Fernandes
1. Escola em Ciclos – Mato Grosso. 2. Currículo escolar – Políticas Públicas 3.
Formação escolar – Mato Grosso. I.FERNANDES, Jorcelina Elizabeth, orient. II.
Título.
CDU371.214.1(817.2)
Aos meus pais, Aécio e Maria, e ao meu companheiro Sávio,
que sempre acreditaram e acreditam em mim.
Agradecimentos
À minha Profa. Jorci, por ter possibilitado o crescimento político pedagógico em minha
trajetória de vida como profissional, e principalmente como pessoa.
À Profa. Ozerina, pelas grandes contribuições nesta pesquisa, e pelas múltiplas discussões
em espaços tempos dessa minha trajetória acadêmica.
À Profa. Tura, que colaborou com o aprofundamento teórico dos escritos deste texto,
obrigado pelas contribuições e ensino nos tempos que estive na UERJ.
À Profa. Alice Casimiro Lopes, pelas discussões, orientações nas aulas e participação em seu
Grupo de Pesquisa da UERJ.
Aos meus colegas de turma do Mestrado, Silva Rosa, Edson e Kátia, pelos momentos de
debates e pela cumplicidade nos momentos difíceis durante estes anos de mestrado.
À Janaína Pereira Monteiro, amiga mãe, que me introduziu ao mundo dos estudos
curriculares, e por todas as atenções até hoje dispensadas para discussões de quaisquer
assuntos, na vida pessoal e profissional.
Ao Marcelo, que contribuiu com o trabalho árduo de transcrever algumas das entrevistas.
A todos e todas do CEJA Prof. Alfredo Marien, que me apoiaram e me apoiam em minhas
discussões acerca de múltiplas questões que me inquietam no campo educacional.
Aos colegas do Cefapro de Rondonópolis, Flávia, Cris, Rafa, Bere, Lili, Carlos, Aline, Thaís,
que sempre me ouviram, me ouvem, e me apóiam.
A todos e todas que pacientemente me concederam as entrevistas desta pesquisa.
Ao meu companheiro Sávio Antunes dos Santos, que pacientemente e impacientemente
ajudou-me na compreensão enquanto gente.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
SEDUC/MT Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso
EJA Educação de Jovens e Adultos
CEJAs Centros de Educação de Jovens e Adultos
CEFAPROS Centros de Formação dos Profissionais da Educação de Mato Grosso
GPCFOPE Grupo de Pesquisa Currículo, Formação e Práticas Pedagógicas.
PT Partido dos Trabalhadores
PSDB Partido Social Democrata Brasileiro
UFMT Universidade Federal de Mato Grosso
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso
UNIC Universidade de Cuiabá
UNIVAG Centro Universitário de Várzea Grande
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
MEC Ministério da Educação
CNE Conselho Nacional de Educação
GTs Grupos de Trabalho
CBA Ciclo Básico de Alfabetização
PEC Projeto Escola Ciclada
LDB Lei de Diretrizes e Bases
OCs Orientações Curriculares
RESUMO
Nesta pesquisa, dedicamo-nos a compreender o processo de produção da política curricular
para a Escola Organizada por Ciclos de Formação da rede estadual de Mato Grosso,
destacando quais as articulações, os discursos e os significantes estão presentes nesse
processo. Essa política curricular é desenvolvida pela SEDUC/MT, envolvendo professores
consultores, professores da Secretaria e professores da rede estadual. Para a compreensão
desse movimento optamos metodologicamente em articular o Ciclo Contínuo de Políticas
proposto por Stephen Ball e colaboradores e a Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e
Chantal Mouffe. Com o foco na abordagem qualitativa na pesquisa educacional fizemos
análise documental e entrevista semi estruturada com os Gestores da SEDUC/MT e
Professores Consultores que estiveram no processo de produção dos textos curriculares. Nesse
sentido buscamos aportes teóricos que nos potencializou a compreensão do currículo como
uma política cultural pública, marcada por arenas em que as fronteiras culturais são espaços
tempos de negociações constantes. Estamos ancorados para esta discussão em Canclini (2011,
2012), Lopes (2005, 2006, 2008, 2011), Macedo (2004, 2006, 2011). No tocante aos Ciclos de
Formação nos aportamos em Freitas (2002, 2003, 2004), Fernandes (2012), Mainardes (2007,
2009), Alavarse (2002), Barreto e Mitrulis (1999), Barreto e Souza (2004), Jacomini (2009).
Os resultados nos demonstram que a política curricular para o ensino fundamental nasce de
influências internas da SEDUC/MT, dos discursos circulantes nas escolas da necessidade de
se ter um documento curricular, nas propostas curriculares advindas do Governo Federal, e do
discurso de que as propostas curriculares se tornam mais potentes na articulação de todas as
etapas da Educação Básica. A produção do texto curricular apresenta sua organização em
Áreas do Conhecimento, e no final de cada Ciclo há um quadro com eixos, capacidades e
descritores, sendo estes dois pontos considerados como potencializadores de possíveis
estrangulamentos das políticas curriculares que se espera para os Ciclos de Formação, pois
apresentam uma excessiva disciplinarização e fechamento dos quadros sinalizando uma
perspectiva tecnicista de currículo. A produção do texto passou por discussões em Seminários
Escolares, Municipais e Regionais, com o discurso de democracia, contudo com tempo
limitado para debates. Para o fechamento provisório da produção do texto a SEDUC/MT
propôs grupos de sistematização para discussões entre os membros deste e os Professores
Consultores. Há em todo esse movimento um processo de hibridação cultural entre as teorias
de currículo, fato visto não de forma celebratória, mas sim de uma constatação que nos
possibilitou compreender uma fragilidade na política de currículo para a escola Organizada
por Ciclos de Formação, uma vez que a mesma apresenta uma excessiva visão tecnicista de
currículo. As articulações, discursos e significantes nos evidenciaram a não articulação entre a
propositura da política curricular e as concepções de Ciclos de Formação. Consideramos
dessa forma que a política curricular proposta pela SEDUC/MT não levou em consideração as
concepções dos Ciclos de Formação que deveriam nortear toda a formulação de políticas de
currículo para essa forma de organização escolar. É preciso dessa forma que professores e
professoras que estão trabalhando nessas escolas compreendam quais as intencionalidades
presentes nesta política curricular, a Escola Organizada por Ciclos de Formação, que traz
concepções tecnicistas, podendo estes desta forma, produzirem suas próprias políticas
curriculares que rompam com essa lógica.
Palavras-chave: Ciclo Contínuo de políticas. Teoria do Discurso. Ciclos de Formação.
Política Curricular.
ABSTRACT
In this research, we are dedicated to understanding the production process of curriculum
policy for the School Organized by Formation Cycle of the State of Mato Grosso, drafting
what articulations, discourses and signifiers are present in this process. This curriculum policy
is developed by SEDUC / MT, it is involving consultants professors, teachers from the
Secretariat of the state and teachers of schools. To understand this movement
methodologically we chose to articulate the Continuous Cycle Policy proposed by Stephen
Ball and collaborators and Discourse Theory of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe. In the
focus on the qualitative approach in educational research we made it by document analysis
and semi-structured interviews with the managers of SEDUC / MT T and Consultants
professors who have been in the production process of curriculum texts. We searched
theoretical support that enhanced the understanding of the curriculum as a public cultural
policy, marked by arenas in which cultural boundaries are spaces of time constant
negotiations. We are anchored to this discussion in Canclini (2011, 2012), Lopes (2005, 2006,
2008, 2011), Macedo (2004, 2006, 2011). About formation cycles we found in Freitas (2002,
2003, 2004), Fernandes (2012), Mainardes (2007, 2009), Alavarse (2002), and Mitrulis
Barreto (1999), Barreto and Souza (2004), Jacomini (2009). The results show that the new
curriculum policy for the school comes from the internal influences of the SEDUC / MT,
discourses circulating in the schools need to have a curriculum document, the curriculum
proposals coming from the Federal Government, and the discourse that curriculum proposals
become more powerful in articulating all stages of Basic Education. The production of the
text presents its curricular organization Knowledge Areas, and at the end of each cycle there
is a box with axes, capabilities and descriptors, and these two points considered as
potentiators of possible strangulation policy curriculum expected for Cycle Training since
they show an excessive disciplining and closing frames signaling a technical one curriculum.
The production of the text passed through discussions Seminars School, Municipal and
Regional, with the discourse of democracy, however with limited time for discussions. For the
temporary closure of the production of the text SEDUC / MT proposes to systematize groups
for discussions among members of the Teachers and Consultants. There's in this whole
movement a process of cultural hybridization between the theories of curriculum, not actually
seen so celebratory, but rather an observation that allowed us to realize a weakness in policy
curriculum for a school Organized by Formation Cycle, since it presents excessive technical
view of curriculum. The joints, speeches and showed us the significant link between not
bringing the curriculum policy and conceptions of Formation Cycles. We believe that in this
way the curriculum policy proposed by SEDUC / MT did not take into consideration the
views of Formation Cycles that should guide all policy formulation resume to this form of
school organization. It takes so that teachers and teachers who are working in these schools
can understand what intentions in proposing a curriculum policy that brings technicist
conceptions to the School organized in Formation Cycles and where they can produce their
own curriculum policies who break with this logic.
Key words: Continuous Cycle Policy. Discourse Theory. Formation Cycles. Curricular
Policy.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
Origem e tipo da pesquisa 21
Os sujeitos e os instrumentos da pesquisa 29
1. POLÍTICA CURRICULAR COMO POLÍTICA CULTURAL 34
1.1 Pensando o currículo como política cultural pública 37
1.2 A centralidade cultural nos estudos, teorias e políticas curriculares 46
1.2.1 A centralidade cultural nas teorias curriculares: uma compreensão importante na
leitura das políticas de currículo
53
1.2.1.1 Currículo e cultura na perspectiva Tecnicista 54
1.2.1.2 Currículo e cultura na perspectiva Crítica 57
1.2.1.3 Currículo e cultura na perspectiva Pós-Crítica 59
1.3 Processos de hibridação cultural nas políticas de currículo 61
1.4 Políticas curriculares: um híbrido com discursos, articulações e significantes 66
1.4.1 Articulação 68
1.4.2 Discurso 69
1.4.3 Significantes Vazios
71
2. A PRODUÇÃO DA POLÍTICA DE CURRÍCULO PARA A ESCOLA
ORGANIZADA POR CICLOS DE FORMAÇÃO DA REDE ESTADUAL DE MATO
GROSSO
74
2.1 Ciclos de Formação: uma postura pedagógica e política 74
2.1.1 A escola organizada por Ciclos de Formação na rede estadual de Mato Grosso
2.2 A produção e as Influências na emergência da política curricular para a Escola
Organizada por Ciclos de Formação de Mato Grosso
78
80
2.2.1 EIXO 1: A produção do texto da política curricular 80
a) O processo de construção dos textos das orientações curriculares 80
b) Currículo organizado em áreas versus currículo organizado em disciplinas 94
c) Hibridação das perspectivas curriculares na produção do texto da política 107
d) Os quadros organizativos: eixos, capacidades e descritores 113
2.2.2 EIXO 2: Influências presentes nas Orientações Curriculares 120
a) Emergência Curricular para a Escola Organizada por Ciclos de Formação
b) Influências do Governo Federal na produção da política curricular
120
125
c) Propostas Curriculares de outros estados e as Orientações Curriculares de MT 130
d) A presença e voz de uma “comunidade epistêmica” 136
e) Organização, sistematização e produção dos GTs das Orientações Curriculares 142
2.2.3 EIXO 3: Política de Currículo para a Escola Organizada por Ciclos de
Formação
147
a) Desconsideração dos pressupostos pedagógicos e políticos dos Ciclos de Formação
na construção da política curricular
147
b) Os Pedagogos na produção do texto curricular 152
c) Concepções políticas-pedagógicas e a Escola Organizada por Ciclos de Formação 157
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 162
REFERÊNCIAS 170
13
INTRODUÇÃO
A escola, um cenário de muitas disputas, tem sido um espaço tempo1 marcado por
muitas discussões, envolvendo múltiplos atores: pais e alunos falam da escola, das que são
boas, das que são ruins; professores, coordenadores e diretores falam sobre como ter melhores
condições pedagógicas e financeiras; estudiosos e pesquisadores falam sobre como formar
professores, como organizar melhor o currículo, como o professor deve ensinar; políticos e
governantes falam de como alavancar o País, de como ter melhores índices. Todos falam
sobre a escola, sobre suas potencialidades e fragilidades. Estar na escola é estar em um
entrecruzamento de dúvidas, de certezas, de incertezas, de interrogações. Professores
experientes e professores iniciantes estão nesse espaço tempo cheios de perguntas e anseios
para melhorar a qualidade da educação de crianças, adolescentes, jovens e adultos.
Uma temática que vem assumindo um relevo significativo nesse cenário é o estudo
sobre currículo. Uma palavra muito comum do vocabulário escolar, contudo sem muitas
discussões teóricas para entender e compreender o peso que esta tem para com as práticas
pedagógicas. Ao se perguntar nas escolas para os professores o que significa currículo, um
emaranhado de proposições surge marcado principalmente por experiências de vida de cada
um. É perceptível uma mistura de ideias, teorias e práticas. É uma configuração complexa
originada de um processo de hibridação da constituição dos currículos escolares.
Durante a minha graduação em Educação Física pouco se falava sobre essa temática,
muitas vezes era resumida apenas aos conteúdos a serem ensinados, quais os jogos e
brincadeiras fariam parte do currículo, qual o programa curricular seria seguido. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, sempre serviam de sustentação para a construção
das práticas pedagógicas referentes aos estágios e em trabalhos para as aulas. Lembro-me que
havia uma disciplina em que discutíamos questões referentes à organização curricular do
ensino de Educação Física, mas as relações de poder, os discursos, os processos de construção
do currículo e as relações culturais não faziam parte das reflexões, talvez porque eu mesmo
não tivesse condições de fazer essa discussão com os meus professores.
1 Espaço tempo é compreendido, em nossa dissertação, como múltiplas interações que vivenciamos nas
construções das práticas pedagógicas e curriculares, entrecruzando as memórias e as experiências de todos e
todas, independentes de estarem num determinado espaço e tempo, ou seja, a temporalidade e a espacialidade
são entendidas como não fixadas, e ao mesmo tempo relacionadas (MACEDO, 2006).
14
Ao chegar à escola, como professor me deparei com vários desses contextos em que
professores ansiosos, cheios de dúvidas diziam que a escola era ruim e que não tinham
condições nenhuma de se trabalhar ali, que escola não tinha mais futuro, outros diziam que
mesmo nas condições precárias o futuro de qualquer pessoa passava pelas mãos dos
professores. Nessa situação as questões de formação de professores, de processos de ensino e
de aprendizagem, de currículo, sempre ficavam em segundo plano, falavam-se mais de
salários do que de como melhorar as condições de ensinar às pessoas que estavam dentro da
escola. Penso que não eram todos os professores, apenas “os malvados,” que não queriam
fazer nada, acredito que muitos professores estavam em uma situação tão crítica de incertezas
que os deixavam muitas vezes sem saída, sem saber o que dizer e o que fazer.
A discussão sobre currículo não era muito diferente da que tive na graduação e da
mesma forma falar em currículo significava falar em conteúdos. Embora na escola falar em
currículo fosse mais frequente que na minha graduação, a visão era a mesma. O livro didático,
e por algumas vezes as políticas curriculares nacionais como os PCNs, eram o ponto de
partida para as discussões e construções sobre os conhecimentos a serem ensinados, ou seja,
ao currículo. Um olhar reducionista e prescritivo, com fortes marcas da concepção Tecnicista
de Currículo, com objetivismo e eficientismo, o qual só iria descobrir durante os meus estudos
no Mestrado.
A partir de 2008 tive a oportunidade de trabalhar na Sede da Secretaria de Estado de
Educação – SEDUC/MT. Fui trabalhar na Coordenadoria de Educação de Jovens e Adultos,
espaço destinado a discutir as questões de organização e funcionamento pedagógico nas
escolas que atendiam à modalidade de Educação de Jovens e Adultos – EJA. O currículo
escolar estava mais uma vez em voga. Mesmo estando em um espaço macro de construções
de políticas educacionais e curriculares não conseguia ver, no início dos meus trabalhos,
tantas diferenças quanto às discussões acerca do currículo feitas na graduação e na escola em
que iniciei a minha carreira docente. Na Coordenadoria de EJA tive primeiramente o contato
com os documentos de Política Curricular para a modalidade, fato que me levou inicialmente
aos estudos curriculares ligados à produção do documento pelo Governo para a escola, uma
vez que os Parâmetros e Orientações Curriculares para EJA estavam longe de se pensar na
constituição de políticas curriculares em múltiplos contextos, em instâncias micro e macro.
Como sugestão da Profa. Janaína Pereira Monteiro, membro da equipe EJA da
SEDUC/MT na época, foram montados Grupos de Estudos entre alguns membros da
15
Coordenadoria, Coordenadores Pedagógicos e de Área dos Centros de Educação de Jovens e
Adultos – CEJAs, de Cuiabá-MT e Várzea Grande-MT num total de três grupos: um sobre
Avaliação, outro sobre Metodologia e o último sobre Currículo. Como a discussão sobre
questões curriculares muito me intrigava fiquei responsável pelo grupo de Currículo. O
Currículo: uma reflexão sobre a prática de Jose Gimeno Sacristán foi o meu primeiro contato
com uma obra que dava sustentação para os múltiplos contextos de produção das políticas
curriculares. Com uma matriz crítica passei a então pensar as questões de poder enviesadas na
produção de políticas de currículo articuladas no Estado.
Quando cheguei à SEDUC/MT, estava em processo de construção uma política de
currículo para toda a rede, denominada Orientações Curriculares para a Educação Básica. De
uma forma tímida comecei a adentrar nas discussões para a formulação do documento para a
EJA. O que no início era tímido se tornou um marco em minha vida, mergulhei nas discussões
da produção desse documento. Participei de vários encontros formativos com as professoras
consultoras da EJA, Profa. Jane Paiva e Profa. Inês Barbosa de Oliveira e de muitos
momentos para a decisão de como o documento deveria ser encaminhado. Embora Paulo
Freire não falasse sistematicamente sobre currículo, as suas obras têm muito impacto sobre
esse campo, e naquele momento as obras Pedagogia do Oprimido e Educação como Prática
da Liberdade foram basilares em meus estudos, e por isso a minha compreensão de Currículo
passou a ser sustentada pelas concepções de emancipação, libertação, poder, hegemonia,
dentre outras ligadas à Teoria Crítica de Educação e de Currículo.
Mantendo-me ainda na discussão destes documentos da política curricular, em 2009,
fui transferido de setor dentro da própria secretaria. Fui convidado para ser Gerente de
Organização Curricular para o Ensino Fundamental. Um desafio gigante era lançado na minha
vida profissional, contudo aceitei cheio de expectativas. Assim como a EJA, o Ensino
Fundamental também estava passando pela construção de uma proposta curricular. Um
espaço tempo diferente que me provocou novos estudos para entendimento dessas novas
discussões. Com o interesse sempre crescente pela temática currículo, organizamos junto à
Coordenadoria de Ensino Fundamental, um Ciclo de Debates com professores e
coordenadores das Escolas Organizadas por Ciclos de Formação em vários polos dos Centros
de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação – Cefapros. Foram momentos de
grandes embates que me instigaram a buscar e compreender com maior profundidade as
questões referentes à construção curricular na e para as escolas de Ensino Fundamental da
rede estadual de Mato Grosso.
16
Munido de um corpus teórico sobre Currículo, um pouco mais elaborado, pude
perceber muitas fragilidades no documento curricular proposto pela SEDUC/MT para o
Ensino Fundamental organizado por Ciclos de Formação. Tive muitas interrogações acerca da
organização e as perspectivas postas para essa etapa da Educação Básica. Algumas marcas
tecnicistas, como a organização de quadros com grandes listagens de conteúdos, articuladas
com o Ciclo de Formação (uma proposta de emancipação dos sujeitos), não eram concebidas
por mim. Eu não as aceitava, pois pensar em uma Escola em Ciclos é potencializar as suas
possibilidades de organização e flexibilização do currículo, e não promover uma tentativa de
engessamento, ora apresentado nesses quadros.
Essas interrogações e indignações me levaram a buscar a entrada no Programa de Pós
Graduação em Educação – PPGE da Universidade Federal de Mato Grosso, a fim de me deter
mais ao foco dos estudos curriculares. Por todo esse movimento, ao passar no Mestrado
busquei junto ao GPCFOPE (Grupo de Pesquisa Currículo, Formação e Práticas Pedagógicas)
compreender as relações entre as concepções de currículo para o ensino fundamental, e
principalmente na organização por Ciclos de Formação. O GPCFOPE já possuía uma grande
trajetória com pesquisas e estudos acerca das práticas pedagógicas e das questões curriculares
nas escolas de ensino fundamental com a organização por Ciclos de Formação, possibilitando
maior compreensão de sua complexidade no cenário escolar, munindo professoras e
professores de ferramentas para melhorar a qualidade da educação para as crianças e
adolescente que frequentam essas escolas. Munido do interesse crescente em compreender
questões referentes ao currículo e com a intenção de corroborar com o grupo iniciei os meus
estudos acerca da Política de Currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação
proposta pela SEDUC/MT.
Para compreender melhor esse movimento tive um breve olhar sobre as políticas
construídas pela SEDUC/MT ao longo da década de 1990 até os anos 2000, destacando este
último ano como ponto chave para pensar as questões curriculares para o ensino fundamental.
Segundo dados do GPCFOPE, levantados por Bordalho (2008) as discussões na SEDUC/MT
iniciaram-se com a propositura do Projeto Terra em 1996, uma proposta de trabalho em
algumas unidades escolares a fim de refletirem, discutirem e analisarem uma alternativa
pedagógica que rompesse com as rígidas séries, o alto índice de reprovação e apresentasse
uma nova maneira flexiva de organizar o currículo.
17
A SEDUC/MT encerra o Projeto Terra (com o fim da Gestão da Secretaria) e em
1997 (com uma nova Gestão) inicia-se um novo projeto pedagógico, o Ciclo Básico de
Alfabetização, o qual tinha como objetivo o enfrentamento ao fracasso escolar. Este projeto
eliminava a reprovação das crianças na passagem da 1ª para a 2ª série (MENEGÃO, 2008).
Em 2000, o governo do Estado de Mato Grosso assume depois de vários momentos de
debates com a sua rede de ensino, a proposta política de organizar o Ensino Fundamental da
rede estadual por Ciclos de Formação. Uma nova forma de organização da escola que trouxe
desafios de se pensar as questões curriculares de forma mais flexível, bem como uma
possibilidade de formação de sujeitos críticos e emancipados.
Nesse momento foi construída uma proposta com pressupostos pedagógicos para a
organização escolar, discutindo os papéis dos profissionais como: professor regente, professor
articulador, o coordenador pedagógico, dentre outros, bem como o processo avaliativo e
metodológico. A questão curricular assumiu um ponto importante na produção do texto e
trouxe consigo uma reflexão em torno das áreas do conhecimento e das disciplinas. Do debate
entre as escolas e a SEDUC/MT nasceu o texto oficial Escola Ciclada de Mato Grosso: novos
tempos e espaços para ensinar – aprender a sentir, ser e fazer. Esse texto oficial destaca em
seu terceiro capítulo a concepção de currículo para a Escola Organizada por Ciclos de
Formação – que foi de certa maneira pouco trabalhada pela própria Secretaria de Educação.
Em 2007, a SEDUC/MT reinicia o debate acerca do currículo para toda a Educação
Básica, constituindo grupos para as discussões e proposições da política de currículo para a
Escola Organizada por Ciclos de Formação. Essa política, publicada em 2012, foi intitulada
de “Orientações Curriculares para a Educação Básica de Mato Grosso”. No que se refere ao
ensino fundamental há uma discussão em um texto introdutório, o qual traz as concepções
gerais sobre Ciclos de Formação, e um segundo bloco de textos divididos em três áreas as
quais possui como foco a organização curricular para o Ensino Fundamental.
A SEDUC/MT vem num movimento de quase duas décadas pensando em propostas
para a organização do ensino fundamental. Dentro deste contexto um fato interessante diz
respeito ao tempo em que a proposta Ciclos de Formação vem tendo na rede estadual. É
importante salientar também que a proposta de Organização das Escolas por Ciclos de
Formação tem sido implantada principalmente por governos progressistas, liderados pelo PT
(Partido dos Trabalhadores), e no caso de Mato Grosso, o mesmo foi implantado em um
governo neoliberal, PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro), uma apropriação do
18
discurso inovador dessa política, o que para esse governo era fundamental para a sua
afirmação no governo (FERNANDES, 2012).
Nessas discussões, embates e lutas para a implantação da Escola Organizada por
Ciclos de Formação, a Política Curricular é um ponto de destaque, é o espaço tempo de
articulações e proposições que se destinam aos processos de identificações coletivas que os
sujeitos que nela estão irão significar precariamente, dessa forma nossa pesquisa tem como
foco o processo de produção da política de currículo, suas intencionalidades, suas
articulações, seus discursos e seus significantes que foram produzidos e estabelecidos
contingencialmente.
Junto às organizações e propostas curriculares está um jogo de intencionalidades
políticas e pedagógicas, ou seja, pensar políticas curriculares para a educação é uma forma de
criar uma postura social, de sociedade. Dessa forma ao proporem políticas para o ensino
fundamental, os governos possuem intencionalidades. Por que construir uma proposta
curricular? Quais identidades sociais tais políticas pretendem? São questões que nos movem
em direção a interrogar e propor questões relevantes para pensar as políticas de currículo em
instâncias macro e micro.
Entendendo Discurso a partir de Laclau e Mouffe (2010), que salientam a não fixação
verbal do mesmo, compreendendo-o como sentidos material e simbólico, entende-se que
nesse espaço tempo de articulação muitas negociações foram travadas, e nesse momento
discursos foram produzidos, discursos esses que nos levaram a levantar as seguintes questões
para este estudo: como foi o processo de produção do texto curricular? Como o texto
curricular está estruturado? Quais as influências levaram a produção dessa política? Quais
influências estão presentes na produção do texto? Quais as articulações, discursos e
significantes foram construídos/identificados para o ensino fundamental organizado por
Ciclos de Formação? Os discursos produzidos levaram em consideração as concepções
políticas e pedagógicas de Ciclos de Formação na construção curricular? São questões
inquietantes que nos levaram a realização desta pesquisa, pois é exatamente nesses pontos que
muitos sentidos são hegemonizados e postos em uma tentativa de fixação.
A Escola Organizada por Ciclos de Formação preconiza a educação como um direito a
cidadania (FERNANDES, 2011), como uma forma de atender às necessidades educativas dos
alunos dentro de cada contexto pedagógico, “deve ser visto como um processo aberto à
mobilização e tomada de consciência” (FREITAS, 2003, p. 88), ou seja, organizar a escola
19
desta forma implica pensar uma lógica pedagógica e uma lógica política, em que posturas são
postas em ambos os pontos.
Consideramos tal discussão imprescindível para que esta proposta se efetive de forma
crítica e reflexiva dentro das escolas. Dessa forma temos como objetivo compreender como
foi o processo de produção dessa política curricular buscando entender quais as articulações,
discursos e significantes foram produzidos no Contexto de Influência e no Contexto de
Produção do Texto Curricular destinados à Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Nesse contexto, procuramos compreender e refletir acerca do processo de produção da
política curricular a partir do Ciclo Contínuo de Políticas, proposto por Stephen Ball e
Colaboradores, destacando as Influências para a sua emergência e para Produção do Texto,
destacando as articulações, os discursos e os significantes que circulam nessas arenas
políticas, a partir da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Propomos
também entender quais as articulações entre a política curricular e as concepções dos Ciclos
de Formação estão presentes nessa proposta, pois acreditamos que isso seja fundamental para
a produção de políticas macro e micros para essa organização escolar.
Todo esse contexto conflituoso, conturbado e intrigante nos levou a pesquisar sobre
currículo para o ensino fundamental organizado por Ciclos de Formação. Temos que destacar
que um dos pontos fundamentais para a busca dos objetivos propostos em nossa pesquisa se
deu por meio das nossas inquietações políticas, que inevitavelmente nos levaram a estudar e
tentar compreender o campo da Política de Currículo para essa etapa da Educação Básica no
estado de Mato Grosso. Interessa-nos muito compreender os sentidos políticos e pedagógicos
que circulam as arenas de produção dessa política curricular, pois nos permite visualizar como
podemos pensar a formação dos sujeitos sociais e de que maneira podemos reconfigurar os
currículos em cada escola.
A produção da política de currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação
foi marcada por articulações políticas, discursos foram produzidos em torno de uma escola
que garantisse a qualidade de ensino, sentidos de currículo para esta escola foram lançados
nos discursos e textos. Esse movimento foi marcado por intenções que muitas vezes foram
colocadas publicamente de uma forma, mas como pano de fundo apareciam outras intenções,
como, por exemplo, alcançar índices elevados em avaliações externas propostas em esfera
nacional.
20
Dentro da produção da política de currículo para o ensino fundamental organizado por
Ciclos de Formação, muitas vozes se fizeram presentes, umas com mais poder outras com
menos. Discursos foram produzidos em torno de desejos dos atores sociais que dela fizeram
parte. Espaços de articulações políticas foram estabelecidos a todo o tempo. Lutas foram
travadas para a significação de concepções de currículo e de educação para o ensino
fundamental. E é exatamente nesse espaço tempo que esta pesquisa irá se aprofundar.
As articulações políticas construídas durante esse processo pode nos levar a
compreender as tentativas de hegemonização de currículos para as Escolas Organizadas por
Ciclos de Formação. Sendo as articulações espaços tempos em que engendram desejos
políticos em torno de demandas (LACLAU e MOUFFE, 2010), os atores que fizeram parte da
construção da política em seus debates calorosos tentaram “impor” o que desejavam enquanto
posição política pedagógica para estar presente no texto curricular. Tais articulações são
sempre contingenciais e as lutas são provisórias, e a cada momento novas articulações podem
surgir, e nesse sentido é que passamos a pensar quais articulações foram realizadas em torno
dessa política para tentar compreender os sentidos educativos construídos pelos múltiplos
produtores da política para o ensino fundamental organizado por Ciclos de Formação.
A educação, bem como as questões curriculares, foram e sempre se constituirão em
grandes desafios, pois não se tratam de algo fixo e acabado, mas sim de um território de lutas
e de constantes mudanças. O trabalho com a pesquisa talvez seja um das possibilidades mais
profícuas para o entendimento desse fenômeno, tendo-a como ponto de partida para o
desenvolvimento de práticas pedagógicas inovadoras no cenário escolar. É nesse sentido que
buscamos através da articulação entre Ciclo Contínuo de Políticas e Teoria do Discurso
(OLIVEIRA e LOPES, 2011) captar as intencionalidades propostas na política de currículo
para a Escola Organizada em Ciclos de Formação no estado de Mato Grosso, consideramos
tal articulação como uma forma potente e inovadora para a compreensão da produção de
políticas curriculares, uma vez que esta amplia a visão sobre a complexidade do campo
político.
Dessa forma esperamos que esta pesquisa possa corroborar com as práticas
pedagógicas e curriculares nas Escolas Organizadas por Ciclos de Formação da rede estadual
de Mato Grosso, uma vez que aborda um aspecto importante dentro dos estudos curriculares:
o contexto político.
21
Origem e tipo da pesquisa
A metodologia utilizada nesta pesquisa assume uma postura qualitativa, descritiva e
interpretativa, e ancorados em Lopes (2011b) e Oliveira e Lopes (2011) operamos com a
integração entre o Ciclo Contínuo de Políticas, proposto por Stephen Ball e colaboradores
(1992, 1994) e a Teoria do Discurso proposta por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2010).
Pensamos que esta articulação se torna profícua, pois através dos sentidos de articulação,
discurso e significantes propostos nesta Teoria do Discurso, nos permite ampliar os sentidos
de circularidade nas arenas políticas propostas pelo Ciclo Contínuo de Políticas.
Os estudos de Stephen Ball e seus colaboradores (BOWE, BALL e GOLD, 1992 e
BALL, 1994) trazem-nos potencialidades maiores de análise e compreensão de políticas de
currículo, pois alargam o nosso campo óptico, permitindo-nos vislumbrar a rede complexa de
atores na produção de políticas curriculares. O autor britânico faz uma crítica em seus estudos
sobre as pesquisas no campo das políticas educacionais que focam apenas a lógica de poder
estatal em suas análises, restringindo ao Estado como o único construtor de políticas, cabendo
aos professores e as escolas implementarem tais políticas, além disso o autor discute a
possibilidade e a importância de nos atermos às relações culturais que estão presentes em
múltiplos espaço tempo de construção de políticas curriculares.
É nesse sentido que pensamos o estudo da política de currículo na Escola Organizada
por Ciclos de Formação no estado de Mato Grosso, acreditando que na formulação das
propostas já sinalizadas há um processo contínuo de disputas e articulações em torno da
produção de sentidos de educação escolar. Toda organização curricular proposta para os
Ciclos de Formação na rede estadual possui uma articulação entre os produtores de políticas
macro, nas instâncias estatais, com os produtores de políticas micro, os agentes sociais
envolvidos diretamente no processo educativo: os professores, os alunos, os pais, a
comunidade escolar. Ao ler a política de currículo procuramos romper com a lógica de pensar
que somente o Estado tem o poder de produzir políticas curriculares para as escolas
consumirem, pois mesmo no momento de produção via Estado havia influências da escola
presentes nos produtores do texto curricular.
Os estudos focalizados apenas no contexto estatal, no macro contexto, simplesmente
confirmam e reforçam que professores e escolas são meros reprodutores e acatadores de
22
políticas que os governos prescrevem. Contudo é preciso ter muita atenção, pois pesquisas
que focam apenas na cotidianidade escolar, destacando apenas o micro contexto político
podem descartar a força que as relações governamentais e econômicas possuem sobre a
produção de políticas educacionais e curriculares, por isso preocupamo-nos com estes
múltiplos espaços tempos de produção de políticas curriculares e suas articulações.
As relações e produções no contexto micro político são relevantes para os estudos
curriculares, e ganham relevo nesses campos uma vez que são destacadamente espaços de
grandes lutas, de recontextualizações, de hibridismos, ou seja, as políticas entendidas a partir
dos seus micros espaços tempos evidencia que são produzidas e transformadas em políticas de
currículo para o contexto escolar. Essa complexidade apresentada acima também pode ser
vista no contexto macro político, nas grandes discussões para a elaboração de políticas
curriculares, pois entrecruzam nesses espaços, lutas de poder entre variados atores, como
dirigentes de secretarias de Estado e consultores contratados para a formulação do texto da
política curricular, consultores e intelectuais em nível nacional ou internacional, políticos de
governo e dirigentes de secretarias, enfim, uma emaranhada rede de complexidade em que
articulações e discursos são construídos.
Nesta pesquisa optamos em não desconsiderar nenhum lugar de produção de sentidos
da política curricular, decidimos não polarizar sentidos de bem ou mau, de certo e errado, de
estado e de escola, de produção e de implementação. Ancorados em Stephen Ball (1992,
1994) tentamos a todo o momento de nossa pesquisa pensar a articulação entre o macro e o
micro, sem manter centralidade em um ou em outro. Para compreender a produção da política
curricular, articulando uma visão plural e cultural, de contextos micros e macros, optamos em
operar com o método analítico proposto pelo autor britânico denominado Ciclo Contínuo de
Políticas. Em entrevista à Mainardes e Marcondes (2009), Stephen Ball deixa claro que o
Ciclo se denomina como um método, uma maneira de pesquisar e teorizar sobre as políticas.
O seu modelo analítico inicialmente constituiu-se em três contextos: o contexto da
influência, o contexto da produção de textos e o contexto da prática, e posteriormente o Ciclo
de Políticas foi expandido acrescentando-se outros dois contextos ao referencial original: o
contexto dos resultados (efeitos) e o contexto da estratégia política. Mainardes (2006)
esclarece que os dois últimos contextos podem ser integrados nos três anteriores,
didaticamente mais explicado na obra Education reform: a critical and post-structural
approach de Stephen Ball (1994).
23
Segundo Ball apud Mainardes (2006) o Contexto de Influência é geralmente o espaço
tempo onde políticas educacionais se iniciam, estão presentes nele os discursos de seus
formuladores e de outras figuras importantes no cenário político e acadêmico. É um espaço
tempo de efervescência de ideias e de posições. Há sempre uma tentativa dos atores
envolvidos em emplacarem os seus discursos como sendo os verdadeiros, em uma luta para
definir os sentidos de educação. As arenas políticas nesse contexto são marcadas por jogos de
interesses, pela grande circulação de ideias e pela disputa para influenciar o que será definido
como princípios para a política curricular.
As agências multilaterais, os grupos dos governos, os grupos de partidos políticos, as
comunidades epistêmicas e disciplinares, a mídia em suas múltiplas estruturas, grandes
eventos, práticas pedagógicas, dentre outros, são agentes responsáveis pela influência na
produção de políticas curriculares, constitui-se numa composição de esferas que articula
componentes internacionais, nacionais e locais. Buscamos nesse sentido compreender os
discursos e as articulações construídas durante o processo de construção das Orientações
Curriculares captando as influências circulantes em múltiplos contextos.
Em nossa pesquisa destacamos dentro do Contexto de Influências para a produção da
política curricular para o ensino fundamental na rede estadual de Mato Grosso os documentos
oficiais propostos pelo MEC, principalmente os PCNs para o Ensino Fundamental e Ensino
Médio. Estes são documentos que influenciaram marcantemente a produção da política de
currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação. A referência a estes documentos
estão presentes tanto nos textos da política, quanto nos discursos registrados nas entrevistas
com os consultores e gestores da SEDUC/MT envolvidos diretamente na produção da política
curricular.
Já o Contexto da produção do texto político é o espaço tempo de produção de
documentos, de pronunciamentos, afirmação da política curricular. Cabe salientar que essa
afirmação não se configura como algo acabado, pois as políticas curriculares não se resumem
a algo pronto, elas sempre estão a vir, sempre estão em processos de produções. Os textos
produzidos são representações da própria política em várias formas como documentos
oficiais, comentários formais ou informais, pronunciamentos oficiais, vídeos, dentre outros
(BALL apud MAINARDES, 2006). Esses textos são resultantes de muitas tensões verificadas
em embates e negociações dos múltiplos atores produtores da política curricular. Lopes e
Macedo (2006, p. 06) salientam que:
24
O contexto de produção dos textos das definições políticas é constituído pelo
poder central propriamente dito, que mantém uma associação estreita com o
primeiro contexto, e formula os textos visando ao direcionamento das ações
nas práticas.
Muitas vezes os textos são considerados como uma prescrição estatal, uma vez que
cabem aos governantes organizarem a produção e a distribuição dos produtos (Orientações,
Diretrizes, Pareceres, Pronunciamentos, e outros.), contudo, os textos são marcados por
influências que emanam de múltiplos espaços tempos havendo sempre negociações,
articulações e produções de discursos que se configuram provisoriamente.
Em nossa pesquisa nos atemos ao texto oficial das Orientações Curriculares lançado
em setembro de 2010, sendo disponibilizado na mesma data via on line no site da
SEDUC/MT, e que somente em 2012 foram publicados e encaminhados às escolas da rede
estadual de ensino. Os documentos formam uma coletânea com cinco volumes: um volume
para discussão de concepções gerais da Educação Básica, três volumes divididos em áreas do
conhecimento e um volume destinado as modalidade e especificidades educacionais. Atemos-
nos aos volumes/textos que se dedicam a trazer as concepções curriculares para o ensino
fundamental organizado por Ciclos de Formação, foco da pesquisa.
Para Ball apud Mainardes (2006) o Contexto da Prática é onde a política está sujeita a
sua interpretação e a ressignificação nos contextos escolares. É o local das vivências práticas
das ações políticas. Um exemplo disso são as ações que professores e professoras podem
desenvolver a partir da chegada de documentos nas escolas, dando o tom e a cor, de acordo
com as suas crenças, leituras e influências das mais diversas, vindas de outros contextos. Um
perigo o qual não podemos correr é pensar que toda a ressignificação, reinterpretação seja
algo positivo, é preciso lembrar que o contrário também é verdadeiro, ou seja, pode haver
ressignificações ruins, trata-se então de não pensar em certo ou errado, mas sim de tentar
captar os significados que esses documentos estão tendo na prática.
Cabe esclarecer que mesmo sendo focalizado no cenário escolar (BALL, 1992, 1994),
o Contexto da Prática não fica isolado dos demais, ele apresenta características imbricadas
nos textos, bem como nas influências, o que dá ao Ciclo seu caráter de circularidade e de
articulação entre os contextos (LOPES e MACEDO, 2006). Dessa forma, mesmo não se
tratando diretamente do Contexto da Prática em nossa pesquisa, uma vez que a política de
currículo ora analisada tem pouco tempo de produção, pois as escolas ainda estão iniciando
suas leituras, trabalhos e ressignificações acerca dos mesmos, acreditamos que várias
influências advindas da escola Organizada por Ciclos de Formação estão presente na
25
produção do texto. Podemos perceber isto nos discursos de vários entrevistados, em que para
a produção foram às escolas para discutirem com alguns professores, e outros que fizeram
análises das propostas político pedagógica das mesmas.
Nesse sentido um importante ponto de destaque nos estudos de Stephen Ball é sua
discussão do entendimento das políticas enquanto texto e enquanto discurso. Segundo
Mainardes (2006, p. 53) o autor britânico diz que a “política como texto baseia-se na teoria
literária que entende as políticas como representações que são codificadas”, e a política
como discurso “incorpora significados e usam proposições e palavras, onde certas
possibilidades de pensamento são construídas (p. 54)”.
Os textos são configurações que representam a política e devem ser vistos como
marcas de muitas disputas, texto aqui são entendidos como um meio material, uma forma
codificada, que no caso da rede estadual de ensino de Mato Grosso geralmente são conjuntos
de orientativos ou instruções normativas, documentos escritos, bem como propostas como já
salientamos anteriormente: o texto do Projeto Terra, do Projeto CBA, o livro Escola Ciclada
de Mato Grosso, e as Orientações Curriculares (textos analisados em nossa pesquisa).
Compreendemos que ao pensar as políticas curriculares devemos pensar que as
mesmas são expressões do currículo que se pretende nas/para as escolas, e que as políticas
curriculares são marcadas por um grande movimento conflituoso, cheio de intenções e lutas
para significação de currículo, tendo a política então que ser compreendida como textos e
como discursos (PARASKEVA, 2008).
Entendemos, em nosso estudo, que a política curricular para o ensino fundamental da
rede estadual de Mato Grosso como textos e discursos, tendo o foco nos Contextos de
influência e o Contexto da produção do texto político. O Ciclo Contínuo de Políticas não é
visto por nós como um aglomerado de contextos que se justapõem, mas sim como um modelo
heurístico que nos possibilita visualizar um contexto mais amplo onde são constituídas as
políticas educacionais e curriculares (LOPES e MACEDO, 2011), o que quer dizer que
mesmo utilizando para a pesquisa entrevistas com os atores produtores do texto e a análise
dos textos da política (contexto de influência e contexto da produção do texto) não nos
desligamos dos efeitos que este possa ter no Contexto da Prática, os resultados por ele
constituídos, pelas práticas vistas nos discursos, ou seja, pretendemos analisar a política
através do Ciclo Contínuo de Políticas vislumbrando a sua circularidade, os seus meandros, os
seus múltiplos espaço tempo de constituição. Como evidencia Mainardes (2006, p. 50) “esses
contextos estão inter-relacionados, não tem uma dimensão temporal ou sequencial, e não são
etapas lineares”.
26
Stephen Ball em entrevista a Mainardes e Marcondes (2006, p. 306) reforça essa ideia,
dizendo que os contextos podem ser pensando uns dentro dos outros, ou seja,
[...] dentro do contexto de prática, você poderia ter um contexto de
influência e um contexto de produção de texto, de tal forma que o contexto
de influência dentro do contexto da prática estaria em relação à versão
privilegiada das políticas ou da versão privilegiada da atuação. Assim,
podem existir disputas ou versões em competição dentro do contexto da
prática, em diferentes interpretações de interpretações... pode haver ainda um
contexto de produção de texto dentro do contexto de prática, na medida em
que materiais práticos são produzidos para utilização dentro da atuação.
Assim, podem existir espaços dentro de espaços. Podemos refletir a respeito
das políticas em termos de espaços e em termos de tempo, de trajetórias
políticas, movimentos de políticas através do tempo e de uma variedade de
espaços.
Para fazer a leitura da produção das políticas curriculares à luz do Ciclo contínuo de
políticas articulando os contextos em um processo de circularidade é preciso estar atento que
em cada um deles há arenas de embates, negociações, marcadas por discursos e por textos
presentes também nos outros contextos.
A partir do Ciclo contínuo de Políticas passamos a entender a política curricular como
um processo conflituoso, de lutas e de negociações, e não meramente como um produto de
governo a ser consumido. A política curricular é viva, é pulsante, marcada por embates em
muitos lugares que ficam além de gabinetes governamentais. A produção da política se
configura num processo de hibridação cultural entrelaçando significações culturais de
múltiplos atores. Sentidos escapam de uma fixação esperada por agentes governamentais, e a
produção da política curricular recebe influências de vários meios, práticas são cruzadas,
hibridizadas, fazendo com que a política seja uma representação sempre precária, provisória.
Vimos na proposta de Stephen Ball a possibilidade de compreendermos esses fluxos
contínuos de produção de políticas de currículo. Os processos de hibridação cultural que
acontecem na produção da política curricular entrelaçam os contextos propostos por Stephen
Ball permitindo assim maior circularidade entre eles.
A utilização do Ciclo Contínuo de Políticas permite a análise das políticas curriculares
entendendo-as como um processo que não tem um início e um fim fixado. É possível
compreender a trajetória da política. Operando com esse corpus teórico-metodológico
pretendemos romper com a lógica de produção e implementação, com a visão top down, bem
27
como a visão down top. Articulando os contextos micro e macro políticos esse referencial
possibilita focalizar a natureza complexa da produção de políticas curriculares.
Além dos contextos do Ciclo Contínuo de Políticas, estamos operando com a Teoria
do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2010), pois ela nos dá potência no sentido
de permitir entender os discursos circulantes em múltiplos contextos a partir das articulações
estabelecidas contingencialmente entre os atores produtores das políticas curriculares.
Procuramos nesta dissertação compreender a análise das articulações, dos discursos e dos
significantes presentes nas arenas contextuais propostas por Stephen Ball. Ancorados em
Lopes (2011b) e Oliveira e Lopes (2011) articulamos Ciclo Contínuo de Políticas e Teoria do
Discurso, dando potência à compreensão dos processos de negociações e articulações entre os
produtores da política curricular.
A Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (2010), uma matriz pós-estrutural, possui
uma rede conceitual relacionada a discurso e poder que possibilita o descentramento de
análises políticas localizadas apenas na visão econômica, com centralidade no Estado. Permite
que entendamos como as articulações por demandas diferentes se aglutinam em uma luta
política, produzindo discursos que buscam a hegemonização em projetos diversos. Por meio
da rede conceitual: articulação, práticas discursivas, significantes vazios e flutuantes,
equivalência e diferença, ponto nodal e hegemonia, há a possibilidade de uma visão da
construção social através do discurso e das identidades dos atores sociais sempre construídas a
partir de articulações discursivas, provisórias e contingentes. Nesta tal rede se hibridizam
aportes marxistas, o desconstrucionismo de Jacques Derrida, a psicanálise de Jacques Lacan, a
linguística e o pós-estruturalismo (OLIVEIRA E LOPES, 2011), o que dá potência a visão
ampla de deslocamento de análises com foco no Estado.
Destacamos em nossa pesquisa três conceitos que estão presentes na Teoria do
Discurso: as articulações, as práticas discursivas e a produção de significantes vazios e
flutuantes. A intenção é pensar esses conceitos imbricados nos Contextos propostos por
Stephen Ball. Consideramos a articulação entre Ciclo Contínuo de Políticas e a Teoria do
Discurso muito profícua, pois na análise de políticas curriculares é preciso pensar sua
produção em múltiplos contextos (influência, produção de texto, da prática) pensando as
tensões que acontecem em cada um deles, bem como compreender como são travadas as
negociações, as produções de discursos e as articulações entre os atores produtores da política,
28
uma vez que lutas constantes são travadas nesses espaços tempos para a tentativa de
hegemonização de sentidos para os currículos escolares.
São realizadas articulações em torno de demandas coletivas para a produção das
Orientações Curriculares. Os sujeitos produtores sempre se articulam politicamente e
pedagogicamente a fim de produzirem discursos que firmam, provisoriamente, determinadas
posições, intenções sociais por meio da educação. Esse movimento é visto tanto nas
entrevistas com os consultores e gestores da SEDUC/MT, quanto nos próprios textos da
política curricular. São formas de se “aglomerarem” para tornar um corpo forte e consistente,
momentaneamente, na tentativa de hegemonizar uma ideia. Dessa forma iremos discutir em
nossa dissertação quais as articulações são produzidas dentro do Contexto de influências e do
Contexto de produção do texto político.
Como produtos das articulações emanam os discursos, formas materiais e não
materiais, linguísticos e extra-liguístico (LACLAU e MOUFFE, 2010). Podemos ver os
discursos acerca de como deve ser o currículo para a Escola Organizada por Ciclos de
Formação nos pronunciamento dos consultores e gestores da SEDUC/MT, bem como nos
próprios escritos dentro do texto político curricular. Os discursos são proferidos a fim de
tentar garantir uma determinada posição para organização do currículo das escolas
organizadas por Ciclos de Formação. Nesse sentido podemos captar e tentar compreender
quais as intencionalidades de se construir um proposta curricular para o ensino fundamental
da rede estadual de Mato Grosso, pois estes discursos são carregados de compreensões de
mundo, de desejos de se formar uma sociedade, de formulações de proposituras políticas
dentro do mundo em que vivemos.
Desta forma são constituídos significantes, como qualidade da educação através do
currículo organizado por áreas de conhecimento, no qual se pretende fixar um determinado
sentido, hegemonizando-o. Os significantes são meios que propagam sentidos de
hegemonização dentro do contexto escolar. Na política de currículo são vistos alguns
significantes que aglomeraram sentidos de um currículo que dê conta da dinamicidade e
flexibilidade da Escola Organizada por Ciclos de Formação. Os significantes são importantes
na análise de políticas, pois possibilitam a nossa compreensão dos sentidos que se pretendem
hegemonizar, ou seja, nos permitem compreender quais ideias são postuladas pela política
curricular no tocante a formulação de currículos na escola.
29
Dentro dos Contextos de Influência e de Produção do Texto Político são vistas as
práticas discursivas, que estão marcadas por constantes articulações e propagação de
significantes, produzindo provisoriamente os sentidos que tentam ser hegemonizados. Dessa
forma operamos metodologicamente com a articulação destes dois aportes a fim de nos
possibilitar uma leitura mais ampla da complexidade que é uma política de currículo. A
Escola Organizada por Ciclos de Formação possui peculiaridades na construção curricular
principalmente no que se refere à flexibilidade e autonomia, e, entrecruzando estes
referenciais metodológicos a nossa análise se torna mais profícua, pois poderemos captar as
lutas travadas nas arenas políticas.
Os sujeitos e os instrumentos da pesquisa
Sujeitos
Nossa pesquisa busca compreender os jogos políticos dentro do processo de produção
e de influências nos discursos e textos das Orientações Curriculares, bem como as
intencionalidades propostas para a construção dessa política curricular à Escola Organizada
por Ciclos de Formação na rede estadual de Mato Grosso. Sendo assim, para chegarmos a
estas discussões, elegemos como sujeitos desta pesquisa os produtores dos textos e os gestores
da SEDUC/MT que fizeram parte da construção da política curricular para o ensino
fundamental organizado por Ciclos de Formação.
Desta forma foram selecionados inicialmente oito professores consultores contratados
pela SEDUC/MT. Estes professores em sua maioria eram da UFMT (Universidade Federal de
Mato Grosso), os demais eram um da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso),
um da UNIC (Universidade de Cuiabá) e um da UNIVAG (Centro Universitário de Várzea
Grande). A intenção foi buscar os professores consultores que escreveram os componentes
curriculares previstos para o Ensino Fundamental, desta forma escolhemos quatro professores
da Área de Linguagens (um de Arte, um de Educação Física, um de Língua Portuguesa e um
de Língua Estrangeira), dois da Área de Ciências Humanas (um de Geografia e um de
História) e dois de Ciências da Natureza e Matemática (um de Ciências e um de Matemática).
30
Após o primeiro contato com cada um dos professores consultores o número de
sujeitos diminuiu para seis, pois o consultor de Educação Física não se predispôs a conceder a
entrevista e a consultora de Arte, apesar de se predispor a ser entrevistada, não conseguiu
organizar um tempo e um espaço para que a entrevista fosse realizada.
Um segundo grupo de sujeitos foram os gestores da SEDUC/MT. Elegemos nesse
sentido os gestores que estavam em cargos de níveis estratégicos dentro da Secretaria, ou seja,
aqueles que tinham possibilidades diretas de se posicionarem em torno da produção de textos
e discursos políticos. A justificativa pela escolha assenta-se na intenção de captar quais as
influências, discursos e articulações foram produzidas pelas pessoas que detinham certo poder
de deliberação na produção do texto curricular. Todos os gestores escolhidos estavam na
época envolvidos com a construção da política de currículo para o ensino fundamental. Desta
forma foram selecionados sete gestores da SEDUC/MT, todos em cargos estratégicos: Sub
Secretária, Superintendente da Educação Básica, Superintendente de Formação dos
Profissionais da Educação, Coordenadora e Gerente do Ensino Médio, Coordenadoras e
Gerente do Ensino Fundamental.
Não conseguimos entrevistar a Coordenadora do Ensino Médio, nem a
Superintendente de Formação dos Profissionais da Educação, a qual na época da produção
inicial da política curricular estava diretamente envolvida na produção da política curricular.
Foram marcadas várias entrevistas, contudo não conseguimos tempo e espaços para realização
das mesmas devido à justificativa de não haver tempo, dada a demanda de trabalho que
estavam tendo. Também não conseguimos entrevistar uma das Coordenadoras do Ensino
Fundamental, pois a mesma mudou-se para um município distante de Cuiabá-MT, o que
dificultou a realização da entrevista com a mesma. Totalizamos no final cinco gestores da
SEDUC/MT.
Os sujeitos foram identificados da seguinte forma: os professores consultores com a
sigla PC acrescida da primeira letra do nome do entrevistado, se o entrevistado tiver a
primeira letra do seu nome I, a sigla será PCI. Os gestores da SEDUC/MT com a sigla GS,
acrescida da primeira letra do nome do entrevistado, se o entrevistado tiver a primeira letra do
seu nome J, a sigla será GSJ.
31
Instrumentos da pesquisa
Para levantar os dados desta pesquisa utilizamo-nos de dois instrumentos: a análise
documental e entrevista semi estruturada.
Segundo Lüdke e André (2004) a análise documental é uma técnica valiosa para o
levantamento de dados na pesquisa qualitativa, identificando questões de interesse, sendo
assim uma fonte poderosa para considerações da pesquisa.
Na análise documental da Política de Currículo desencadeada a partir de 2007 pela
SEDUC/MT, denominada de Orientações Curriculares para a Educação Básica do Estado de
Mato Grosso, optamos por estudar os documentos produzidos para o ensino fundamental
Organizado por Ciclos de Formação, um dos focos de estudos do Grupo de Pesquisa
Currículo, Formação e Práticas Escolares. Estes textos são organizados em quatro cadernos:
um com as concepções para a Escola Organizada por Ciclos de Formação e outros três
destinados à organização curricular definidos em três textos: Orientações Curriculares para a
Área de Linguagens, para a Área de Ciências da Natureza e Matemática e para a Área de
Ciências Humanas. Em nossa análise nos dedicamos a analisar os três documentos das áreas
de conhecimento, uma vez que o primeiro texto foi encomendado, não sendo sujeito a
discussões, reflexões e/ou alteração, além disso, este texto encomendado não faz referência à
Política de Ciclos de Formação de Mato Grosso, mantendo características políticas e
pedagógicas da Escola Cidadã de Porto Alegre.
No primeiro momento foi dedicado um tempo para leitura e releitura dos textos da
versão final a fim de se ter uma compreensão geral das concepções políticas e pedagógicas da
política curricular proposta. Após esse primeiro momento de leitura, fizemos os apontamentos
/ destaques dos principais significantes presentes nos mesmos. Destacamos para a organização
das análises nesse sentido, a organização do texto curricular, os processos de hibridação
curricular, as influências de documentos federais, estaduais e municipais na produção do texto
curricular, a organização do currículo em áreas de conhecimento versus a organização
disciplinar, as concepções políticas e pedagógicas dos Ciclos de Formação e a política
curricular.
Além dos estudos das Orientações Curriculares para a Educação Básica do Estado de
Mato Grosso, fizemos também, o estudo da proposta anterior para o ensino fundamental da
32
rede estadual de Mato Grosso (Escola Ciclada de Mato Grosso), das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Básica, lançadas também em 2010, e de outros textos não oficiais,
produzidos pela SEDUC/MT, estes se referem a recomendações às escolas, a forma de estudar
as Orientações Curriculares, a forma de organização da produção dos documentos, as
primeiras sínteses produzidas e discutidas pelos consultores e a SEDUC/MT, disponibilizados
via e-mail, por dirigentes da secretaria, e/ou via site da SEDUC/MT. As análises destes
documentos ajudaram-nos a ampliar algumas discussões acerca do processo de produção da
política curricular, bem como compreender que influências de outros espaços tempos estarão
sempre entrecruzando os movimentos de construção de documentos.
A análise documental nos proporcionou a captação de algumas articulações, discursos
e significantes presentes no texto da política de currículo para o ensino fundamental.
Após a realização das análises documental fomos para as entrevistas. Utilizamos o
modelo de entrevista semi estruturada, pois é mais flexível e permite que o entrevistado tenha
uma abertura de discussões em suas respostas. Para Lüdke e André (2004) esse tipo de
entrevista talvez seja o mais adequado para o campo educacional, pois mesmo possuindo um
roteiro básico ela não é aplicada rigidamente, permitindo adaptações necessárias para captar
dados, permitindo-nos ampliar as questões a fim de nos permitir uma compreensão maior do
processo de produção das Orientações Curriculares.
As entrevistas foram realizadas durante o primeiro semestre de 2012. Os espaços
escolhidos pelos entrevistados, em sua maioria, ambientes silenciosos (local de trabalho e em
domicílio), onde pudemos dialogar tranquilamente, permitindo que captássemos com maior
clareza as nuances do processo de produção.
As entrevistas foram gravadas e depois transcritas. Após esse primeiro passo, lemos as
transcrições e posteriormente as encaminhamos, via e-mail a cada entrevistado, a fim de que
os mesmos fizessem a leitura e a devolutiva. Os mesmos fizeram a leitura e devolveram-nas,
também via e-mail.
A intenção desse movimento foi a de possibilitar aos entrevistados momentos de
reflexões sobre suas falas, permitindo-lhes ajustes, comentários ou correções. Após o
recebimento da devolutiva de cada entrevistado ocorreu um novo processo de leitura e
destaque dos pontos significativos para a pesquisa tais como: o pensamento sobre organização
curricular por área de conhecimento e por disciplina, as perspectivas teóricas educacionais e
33
curriculares assumidas pelos consultores, a articulação entre as concepções de Ciclos de
Formação e a produção do texto curricular, a obliquidade dos poderes nos momentos de
produção, bem como todo o jogo articulatório nas influências advindas de múltiplos espaços
tempos, de cenários macro e micros políticos.
34
1. POLÍTICA CURRICULAR COMO POLÍTICA CULTURAL
Estamos vivendo num tempo em que as preocupações com a educação são imensas.
Pais, mães, professores, professoras, governantes, todos e todas pensam em soluções que
possam alavancar o país do caos educacional. Como solucionar os problemas de reprovação?
Da falta de acesso à escola? Da permanência na escola? Como construir propostas
educacionais e curriculares que promovam possibilidades de ensino e de aprendizagem
adequadas a cada etapa da educação básica? Há uma efervescência de ideias em múltiplos
lugares e tempos. Na escola estão pensando em como melhorar a aprendizagem. Nos
gabinetes governamentais estão pensando em como atingir melhores índices. E é nesse
emaranhado de soluções e interrogações que muitas políticas educacionais e curriculares são
desenvolvidas.
Na rede estadual de ensino de Mato Grosso um desses pontos de discussões refere-se à
Escola Organizada por Ciclos de Formação. Preocupados com as formas em que a
SEDUC/MT vem organizando esta escola, operamos com um referencial teórico para pensar e
refletir sobre a política curricular construída pela Secretaria, considerando este um dos pontos
destacados para pensar e organizar tal escola. Pois, acreditamos que a educação escolarizada
não é neutra, não é um espaço tempo vazio, é um espaço marcado por disputas de
hegemonização de projetos sociais, dessa forma ao se propor a construção curricular nessa
organização escolar podemos considerar que há múltiplas intencionalidades políticas e
pedagógicas.
Ancoramo-nos então em Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2010) para potencializar
os sentidos políticos e não apenas os de políticas governamentais para compreender as
políticas curriculares na construção de uma identidade social. Nos múltiplos espaços tempos
pensamos como o político vem assumindo uma necessidade de emergência na constituição de
políticas curriculares, pois esse é um terreno de constituição da formação da sociedade em
que vivemos. Acreditamos que o ato político está marcado por conflitos e disputas, por
contestações e lutas, pois nesse sentido as políticas assumem uma ação democrática radical
em que múltiplos projetos entram em negociação.
Isso significa dizer que o político sendo uma ação ontológica do ser humano, uma
constituição da própria ação humana (MOUFFE, 1992) necessita de estar articulado aos
momentos de decisões e proposição de políticas públicas. Necessitamos que todos estejam
35
envolvidos no processo de construção de políticas de currículo a fim de discutir, refletir e
desenvolver propostas para tentar responder as interrogações ligadas às problemáticas da
educação, pois os currículos são formas de construção das identidades pessoais e sociais.
Defendemos dessa forma que para compreender uma política pública é preciso tentar
captar as diferentes ações que estão marcadas na mesma, afastando-se do pensamento de que
ela está localizada apenas em uma instância governamental, mas que existe uma
potencialidade quando nos assumimos como agentes produtores de políticas em qualquer
nível. As políticas não são constituídas apenas em uma visão de produção por governos e em
sua implementação pelas escolas, se pensarmos desta maneira estaremos desconsiderando
toda a potencialidade de produção dos sentidos políticos do ser humano.
Dessa forma acreditamos que para se produzir políticas curriculares na Escola
Organizada por Ciclos de Formação é preciso que escola e governo assumam a articulação
entre os sentidos políticos na propagação de políticas. A propositura dessa escola é
possibilitar a democratização do ensino, e para que se efetive a construção de políticas
curriculares, seja no âmbito micro ou macro, será mais potente assumirem essa arena como
um espaço de definição coletiva, de projetos coletivos.
Coadunamos aqui com o que Mouffe (1993) chama de regresso do político,
evidenciando a importância que se tem o pensamento voltado para além de sistematizações
políticas, como partidos e governos, senado e câmara, documentos e propostas, pensamento
este voltado para as possibilidades democráticas radicais da ação humana, de envolvimento na
luta social.
É por isso que iremos operar teoricamente pensando a política curricular do Estado de
Mato Grosso com a lógica da política cultural, uma forma de pensar e analisar o campo
político curricular a partir de vários prismas das relações humanas e suas significações.
Embora destaquemos esse fio condutor em nosso estudo sabemos que no Brasil as
análises dos estudos sobre políticas curriculares ainda mantém o foco preferencialmente nas
questões econômicas, com centralidade no Estado. Em brilhante trabalho que nos ajuda a
compreender as tendências teórico-metodológicas em estudos de política curricular
(OLIVEIRA, 2005) nos mostra que essa centralidade econômica liga-se às produções
materiais, sempre pensando as políticas sob um prisma mercadológico, tendo as relações
simbólicas e discursivas em segundo plano.
36
Lopes e Macedo (2006) também afirmam que são muito frequentes as pesquisas sobre
currículo centralizarem nas ações do governo, contudo está sendo cada vez mais vista no
cenário de pesquisas, a utilização de outras perspectivas que salientam outros aspectos
políticos ligados a noções de poder imbricados no processo cultural. E esse é o caso desta
pesquisa.
Na intenção de ampliar a nossa visão sobre o nosso objeto de estudo, passamos a
compreender a produção de políticas curriculares a partir de suas significações culturais.
Entendemos dessa forma a política curricular como uma produção cultural, como política
cultural pública: Cultural, pois é marcada por processos de significação dos múltiplos atores
sociais envolvidos na constituição do movimento de produção de políticas curriculares, e
Pública pelo caráter que assume diante da formação de uma sociedade, uma vez que
currículos são documentos de identidades (SILVA, 2010).
Pensar a política de currículo enquanto cultura é pensar uma lógica não fixa de
construção de saberes, é permitir que as vozes da diferença estejam presentes nas
configurações dos conhecimentos. Aqui destacamos a cultura e o currículo como processo de
significação, como um espaço tempo de negociações contingentes e provisórias. Dar
centralidade cultural aos estudos das políticas curriculares significa ampliar a visão dos
meandros da constituição curricular, pois as questões das diferenças culturais, os processos de
poder marcados nas relações culturais, as formas de significar discursivamente o mundo, as
experiências dos sujeitos, podem ser evidenciadas na produção de políticas curriculares
(GIROUX, 2012).
Em nosso estudo temos a preocupação de destacar questões referentes às tensões
travadas entre os produtores curriculares, de compreender os discursos circulantes em
múltiplos espaços tempos que configuram a política, bem como não ter a intenção de destacar
o Estado como uma entidade que formula políticas para serem implementadas em escolas.
Pretendemos entender quais as relações simbólicas de poder estão presentes na produção da
nova política de currículo para o ensino fundamental em Mato Grosso em vários espaços
tempos.
Pretendemos assim não polarizar e nem centralizar um espaço tempo, fixo, único e
verdadeiro para a produção de políticas de currículo (LOPES e MACEDO, 2011), mais sim
pensar que estas são produtos híbridos, marcados por processos de descoleção, de
desterritorialização e de proliferação de gêneros impuros (CANCLINI, 2010), onde podemos
37
captar e compreender as articulações e práticas discursivas, construídas pelos atores sociais
envolvidos na constituição de políticas (LACLAU e MOUFFE, 2010), bem como entender
como estão engendradas as relações de poder na produção de uma política de currículo para a
Escola Organizada por Ciclos de Formação, que se faz cheia de intencionalidades
pedagógicas e políticas (FREITAS, 2003).
Dessa forma, neste capítulo, discutiremos como compreender a política de currículo na
Escola Organizada por Ciclos de Formação da rede estadual de Mato Grosso a partir dos
sentidos políticos, o que potencializa seu caráter público, bem como a centralidade que a
cultura tem na constituição dos currículos escolares, compreendendo-a dessa forma como
política cultural, entendendo-a como uma produção híbrida, marcada por articulações,
discursos e significantes.
1.1 Pensando o currículo como política cultural pública
Os estudos sobre currículo nos guarda um emaranhado de situações. Pensar e refletir
acerca do mesmo significa estar atento aos múltiplos espaços tempos de sua constituição. Sua
construção é marcada por lutas, embates, conflitos dentro das escolas, das Secretarias de
Educação, do Ministério da Educação (MEC), dos Programas de Pós-Graduação em
Educação. Tema este, que deveria ser discutido por todos os pais, alunos, professores,
políticos, gestores, e outros.
Em nossa pesquisa optamos em pensar o currículo a partir das políticas públicas,
entendendo que nessa arena existe um ponto forte para a construção dos currículos nas
escolas, este se refere aos processos de significação cultural, ou seja, as lutas, embates e
negociações entre todas e todos pertencentes ao espaço tempo escolar. Buscamos
compreender como as políticas de currículo são pensadas pelos Governos e quais as
configurações em que o currículo vem sendo pensado nas escolas via essas políticas. Aqui
operamos com a política de currículo construída pelo Governo do Estado de Mato Grosso, que
teve um processo de produção de três anos, e como nos assinala Ball (1992, 1994) a mesma
foi sujeita a muitos contextos para a sua construção, como influências de outros Estados,
práticas escolares, dentre outras situações.
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É preciso buscar então como o currículo se configura como política e nas políticas.
Desde o início do pensamento curricular, ou melhor, da teorização curricular, com os estudos
de John Franklin Bobbit, John Dewey e Ralph Tyler, já existe no campo do currículo uma
forte produção de políticas governamentais para alinhar as escolas a uma mesma perspectiva,
formulações de políticas educacionais em que as escolas devem seguir o mesmo padrão.
O modelo americano para educação, fundamentada principalmente nestes três
primeiros estudiosos, buscava a construção de currículos nas escolas que dessem conta de
uma necessidade econômica que o país estava passando. A Crise de 29 foi um motor
propulsor para que o governo americano propusesse para as escolas uma política de currículo
capaz de alavancar o país. Várias reformas, de lá até os dias atuais, no campo educacional,
vem mostrado que os governos possuem uma prática constante de construir políticas para a
organização escolar.
No Brasil, um dos movimentos mais fortes na contemporaneidade, foi a partir da
construção dos PCNs para o Ensino Fundamental. O Governo Federal lançou em todo
território nacional documentos para parametrizar os currículos escolares. A partir daí vários
outros documentos foram sendo construídos e publicados na esfera nacional, configurando
assim políticas de currículo, tais como PCNs para o Ensino Médio, PCNs +, Coleção
Indagações sobre Currículo, e mais recentemente as Diretrizes Curriculares para a Educação
Básica CNE/2010, dentre outros.
Não olhamos estas políticas a partir da lógica top down, visão que encara que o Estado
constrói e as escolas implementam, porque as políticas não devem se constituir em produtos
elaborados por experts do governo (como consultores contratados) e reproduzidas nas escolas
simplesmente, ou seja, como políticas são marcadas por disputas e recontextualizações
(LOPES, 2005), sendo impossível controlar um fluxo de posições e de reconstruções
curriculares que as escolas fazem, por exemplo. Seria ingênuo, também, pensar somente pela
lógica inversa, down top (LOPES e MACEDO, 2011), que os currículos são construídos
apenas no cotidiano escolar, pois as políticas produzidas pelos Governos estão presentes nas
escolas, os professores e professoras fazem uso destas políticas dentro das escolas, sendo
assim, tais políticas curriculares produzidas pelo Governo exercem influência na construção
dos currículos nas práticas pedagógicas escolares. É por isso que consideramos tão relevante
compreender a trajetória das políticas de currículo, pois isso nos potencializa entender a
configuração de práticas pedagógicas dentro da escola.
39
Como pensamos a política para além de uma mera constituição instrumental,
passamos a nos ancorar nos estudos de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe a fim de mostrar a
constituição das políticas curriculares a partir de sentidos políticos dentro das políticas,
compreendendo esse movimento como uma ação inerentemente humana, que marca toda a
vida das pessoas. A intenção é desmitificar a ideia de que política é algo distante da vida
cotidiana das pessoas, principalmente dos professores e professoras, mostrando que o sentido
político faz parte de todas as nossas ações, que elas são culturais, portanto, fruto das relações
das pessoas. Dessa forma, pensar e construir o currículo na escola está ligado às questões de
políticas micros e políticas macros, sempre a compreendendo como uma política cultural
pública.
Assim, travaremos uma discussão em torno do político e de sua relação cultural,
entendendo que estes dois pontos dão o caráter público das políticas curriculares. Pois, a
nosso ver, o sentido político na constituição das políticas potencializa a visão de que a
constituição de currículos para a Escola Organizada por Ciclos de Formação não são meros
aglomerados de textos, são textos e discursos marcados de sentidos e intencionalidade, que
não podem ficar guardados a sete chaves nas mãos de alguns privilegiados, é uma discussão
que necessita da participação de todos e todas, portanto pública.
Passamos então a tentar elucidar como podemos entender melhor os sentidos políticos
dentro da constituição de políticas. Ao buscarmos os significados de política e de político em
dicionários encontramos talvez uma visão restrita a concepções de ações governamentais,
entendendo por política a ciência do governo das nações, arte de regular as relações de um
Estado com outros Estados, sistema particular de um governo, tratado de política e por
político aquele que se dedica à política, estadista, dedicado, cortês. Queremos ampliar essa
noção de modo a pensar o currículo como uma política cultural pública, ou seja, uma ação que
envolve múltiplos atores sociais, que significam e (re) significam suas ações, na sociedade e
para uma sociedade, entendendo a política curricular como um projeto de formação de
sociedade.
O currículo, e as políticas curriculares, não podem ser vistos apenas como um
conglomerado de conhecimentos, como uma forma de essencializar as pessoas, eles são uma
forma de constituição e de posicionamento das pessoas frente a uma sociedade, imprimindo
formas de pensar e agir nas instâncias políticas que todos e todas estão envolvidos (SILVA,
2012), portanto é uma política cultural pública.
40
Por isso não pode ser pensada apenas a partir de uma produção governamental em que
os sujeitos atores produtores do tecido social apenas sejam os receptores das ações
pretendidas pelos governantes. Ela é marcada pelas ações cotidianas das pessoas em vários
espaços. Isso implica dizer que somos produtores de políticas públicas e que não podemos
fechar os olhos para esta propositura. Isso se torna potente quando pensamos no sentido
cultural de sua produção, e nesse caso precisamos nos afastar aqui do pensamento de cultura
como um produto apenas midiático, um artefato pronto e acabado. Para Giroux (2003, p.18),
A cultura torna-se política não apenas quando é mobilizada pela mídia e por
outras formas institucionais que atuam de maneira a garantir certas
manifestações de autoridade e relações sociais legítimas, mas também como
um conjunto de práticas que representam e empregam o poder, assim
identidades particulares, mobilizando uma variedade de paixões e
legitimando formas precisas de cultura política. A cultura, nesse sentido,
torna-se produtiva, inextrincavelmente ligada às questões relacionadas ao
poder e de protagonismo.
A política curricular entendida como política cultural pública permite a compreensão
de múltiplas vozes, desejos e disputas por significações que estão presentes na construção de
currículos, a todo o momento os sujeitos estão disputando discursivamente o que é melhor, ou
mais adequado para a aprendizagem dos alunos. Nesse sentido a mesma é tida como uma ação
política humana, em um sentido político ontologicamente humano (MOUFFE, 2011).
Queremos dizer que, ao assumir uma postura cultural, esta articula os sujeitos na produção de
políticas, e, dessa forma as políticas curriculares assumem-se como políticas culturais
públicas.
As políticas curriculares são marcadas por disputas, por conflitos, em que não há um
consenso permanente, está sempre em transitoriedade, não há fixidez permanente, sempre
provisória, sempre contingente, é um produto hibridizado, marcado pelas lutas de poder,
constantemente reinterpretadas e recontextualizadas, é um espaço tempo de fronteira em que
embates são travados constantemente, de articulações, de discursos, de significantes, de
hegemonias provisórias (LOPES, 2005, 2006, MACEDO, 2004, 2006, LOPES e MACEDO,
2011).
41
Iremos articular a estas concepções sinalizadas anteriormente os estudos de dois
cientistas políticos, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, para potencializar as discussões dos
sentidos políticos dentro da política de currículo analisada.
Como dito anteriormente o primeiro ponto a ser compreendido é o da distinção entre o
político e a política. Mouffe (2011) considera importante essa distinção, pois pode trazer
novos caminhos de se pensar a ação das pessoas no campo de constituição de políticas
públicas sociais.
A política pode ser entendida como as organizações, instituições, sistematizadas de
representatividade, como as igrejas, os sindicatos, os partidos políticos, os textos políticos.
Como uma atividade que cuida da organização da vida das pessoas, não de uma forma
distante, mas sim articulada aos processos de construções de identidades coletivas, sem
individualismo, marcada pelas negociações e pelas paixões (MOUFFE, 1993). A
compreensão do currículo como uma política passa a ser vista como uma ação articulada entre
vários atores sociais, contudo emplacada em uma produção sistematizada. Documentos,
vídeos, propostas, pronunciamentos, formações, dentre outros discursos, são produzidos para
representar o que se espera acerca das concepções de currículo.
Dessa forma a política de currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação
está sendo constituída, a partir da série de documentos publicados pela SEDUC/MT. É uma
proposta sistematizada, produzida pelo Governo, que se pretende organizar os currículos nas
práticas escolares.
Já por político, Mouffe (1993) compreende a não limitação às instituições, sendo o
mesmo inerente a toda e qualquer pessoa, é uma ação ontológica, do conhecimento da própria
ação enquanto homem e mulher. É na dimensão do político que as relações sociais se formam
e são simbolicamente ordenadas, num terreno de conflitos, em que o antagonismo tem
fundamental importância. Dessa forma o movimento de produção de uma política de currículo
necessariamente se torna mais potente democraticamente ao assumir uma postura no âmbito
do sentido do político, permitindo a constante configuração das identidades coletivas, dentro
das particularidades, em uma relação de conflitos, de propositura de projetos diversos, em que
a hegemonização destes projetos seja sempre provisoriamente construída.
42
A partir de uma afirmação de contraposição à filósofa Hannah Arendt, Mouffe (2011,
p. 16) nos esclarece a distinção entre o político e a política,
[...] Hannah Arendt vê o político como um espaço de liberdade e de
deliberação pública, enquanto outros vêem-no como um espaço de poder,
conflito e antagonismo. Meu entendimento do ‘político’ claramente pertence
à segunda perspectiva. Mais precisamente, esta é a forma como eu distingo o
‘político’ da ‘política’: por ‘o político’ eu entendo a dimensão do
antagonismo a qual eu tomo como constitutiva das sociedades humanas,
enquanto que por ‘política’ eu significo uma série de práticas e instituições
através das quais uma ordem é criada, organizando a coexistência humana
no contexto de conflitualidade provido pelo político.
As políticas curriculares dessa forma se tornam mais potentes quando assumem o
caráter político, pois como explica a autora o sentido antagônico permite que múltiplas vozes
estejam presentes na constituição de uma política, ou seja, posições distintas em ampla
negociação em torno do projeto social que pretende pôr em voga. Isso não significa negar o
sentido das políticas, pois como veremos adiante entre os dois sentidos há uma necessidade
de articulação, salientamos apenas que a Escola Organizada por Ciclos de Formação sugere a
formulação de políticas de currículo que promovam a luta contra as mazelas sociais, portanto,
requerem uma ampla participação na produção das mesmas.
Dentro desse jogo político e de política, Mouffe (2011) nos chama a atenção referente
ao nível ôntico da política e do nível ontológico do político. Para a autora o ôntico se refere à
multidão de práticas das políticas tradicionais e o ontológico se refere ao modo mesmo de se
constituir as ações do homem. A política está no nível ôntico porque ela é atrelada a algo
existente, a um ente, a uma matéria, a um objeto, por exemplo, as instituições políticas como
os sindicatos, é algo que está além do homem, já estabelecido do exterior. O político está no
nível ontológico, pois se liga a visão de um entendimento do ser enquanto ser, indo além de
aparências materiais, preocupa-se com a coisa em si, depende da existência do homem para
existir, há no nível ontológico a possibilidade de significação constante, pois o mesmo não é
fixo e inacabado, esse nível estabelece arenas de lutas, conflitos, em busca da hegemonização
provisória.
Há uma separação entre os dois níveis, contudo um necessita do outro. Toda mudança
substancial no nível ôntico, ou seja, no sentido das políticas, irá trazer uma nova concepção
do nível ontológico, no sentido político. E o nível ôntico só tem sentido na existência no nível
ontológico, pois ele promove a significação das construções sociais (LACLAU e MOUFFE,
43
2011). Os autores ainda dizem que há um “processo de feedback mútuo de adição de novos
objetos e campos de categorias ontológicas gerais que governam, ao longo do tempo, o
campo geral da objetividade” (p. 10). Pensar o político é dar sentidos às políticas, afastando-
se de uma relação produção e implementação.
Dessa forma compreendemos que seja importante buscar analisar as políticas de
currículo na articulação dos sentidos políticos, potencializando seu caráter cultural público.
Vislumbrar a política apenas no nível ôntico é fixá-la, é pensá-la de uma forma imutável, feita
por governantes, sem ter a possibilidade de reconfigurações no cenário escolar, nas práticas
pedagógicas. Por isso defendemos a tal articulação do nível ontológico, do sentido político,
pois nele reside à possibilidade da significação do currículo por múltiplos atores sociais, é o
espaço tempo de conflitos, de lutas, de poder, do antagonismo.
Mouffe (1993, 2003, 2005, 2011) postula em seu projeto de democracia radical que as
políticas devem estar sendo articuladas em um campo antagônico. Chantal Mouffe parte da
tese de Karl Schmitt sobre a constituição da democracia liberal e a relação amigo/inimigo.
Esta relação para ele se configura como hostil entre os seres humanos, e afirma que é preciso
haver um consenso para que haja democracia, consenso provisório.
A distinção entre amigo e inimigo é frutífera na tese de Karl Schmitt no sentido de
possibilitar a leitura do antagonismo no campo político. Nesse campo sempre há a
necessidade de uma distinção nós e eles, amigo e inimigo. Contudo, não em um sentido de
destruição do outro (MOUFFE, 2011). O jogo de poder nas políticas públicas acontece na
dimensão dessa constituição identitária coletiva, existe uma necessidade de constituição de
um nós e de um eles, não podemos acreditar, contudo, em uma fixação de posições, essas
relações são sempre precárias, e podem mudar a qualquer momento.
As relações antagônicas, ou seja, as lutas contraditórias existentes na sociedade
sempre irão existir. Na produção de políticas curriculares sempre irá existir grupos que irão se
configurar na relação amigo/inimigo, na constituição de identidades coletivas, em um nós e
um eles. Os projetos sociais são constituídos nesse jogo de poder, e as políticas de currículo
também. Acreditar nessa proposição é aceitar que existem projetos plurais dentro do contexto
social, que os currículos nas e das escolas podem ser configurados de múltiplas formas. É
admitir a presença do outro em uma lógica salutar de dissenso.
O movimento do antagonismo para o agonismo é uma necessidade nesse processo,
pois permite pensar a relação amigo/inimigo não com a intencionalidade de destruição mútua,
mas sim de acreditar que o outro é um adversário (MOUFFE, 2011). O antagonismo é o
espaço do contraditório e o agonismo permite uma luta sem destruição do outro. O sentido
44
ontológico permite uma leitura do campo político a partir dos conflitos entre adversários.
Diferentemente de ver o outro e tentar apagá-lo, o adversário luta por muitos princípios em
comum como sinaliza Mouffe (2005, p. 20),
A categoria adversário, todavia, não elimina o antagonismo e ela deve ser
distinguida da noção liberal do competidor com que ela é identificada
algumas vezes. Um adversário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com
quem temos alguma base comum, em virtude de termos uma adesão
compartilhada aos princípios ético-políticos da democracia liberal: liberdade
e igualdade.
Na elaboração de políticas de currículo a disputa por legitimar aquilo que um grupo
acredita está sempre em jogo. Se partirmos do princípio de uma relação amigo/inimigo
pensado no apagamento do outro, as políticas possivelmente não avançarão no sentido
democrático. Se ao contrário acreditarmos que os grupos que estão em disputa por
hegemonização dos sentidos de currículo, buscam ambos, por exemplo, a qualidade do
ensino, existe uma relação de adversário, pois mesmo tendo posturas distintas, lutam em torno
de um mesmo significante. Pensar a política curricular pelo viés agonítico sem a exclusão do
antagonismo potencializa a necessária pluralidade de projetos sociais. É pensar o movimento
já sinalizado do antagonismo para o agonismo, pois o primeiro é a luta entre inimigos, afim da
destruição e o segundo representa a luta entre adversários, sem destruição (MOUFFE, 2005).
Sendo assim coadunamos com Mouffe (2011, p. 27) quando a autora pontua a
importância para as políticas da ruptura dessa visão de destruição do outro,
[...] o adversário constitui uma categoria crucial para a política democrática.
O modelo de adversário deve ser considerado como constitutivo da
democracia porque permite a política democrática transformar o
antagonismo em agonismo. Em outras palavras, nos ajuda a conceber como
se pode domesticar a dimensão antagônica, graças ao estabelecimento de
instituições e práticas através das quais o antagonismo potencial pode
desenvolver-se de um modo agonista.
Acreditamos ser potente analisar as políticas de currículo a partir da presença da
categoria adversário, da mudança do antagonismo para o agonismo, pois nos permite
visualizar os embates, as lutas, os conflitos, entre os produtores, entendendo que na produção
de políticas múltiplos atores estão envolvidos. Assumimos essa posição, pois acreditamos que
analisar as políticas de currículo é pensar além de uma visão consensual, em que governos
produzem e escolas reproduzem. Que os embates, discussões não devem ser apagados ou
vistos como algo negativo, mas sim como positivos cheios de possibilidades de avanços. Não
45
podemos negar os dissensos, pois podem nos permitir avanços na constituição de políticas
curriculares, sendo um espaço em que múltiplas vozes podem ser ouvidas.
É justamente nessa situação que vislumbramos a necessidade de analisar as políticas
curriculares em uma perspectiva cultural, pensando-a como processo de significação. É nesse
cenário que múltiplas culturas entram em conflito, em negociação. Isso porque o currículo não
é um terreno fixo e acabado, é um espaço tempo de permanentes configurações e
reconfigurações.
Mouffe (2011) afirma que é preciso compreender que no terreno político, no campo
das políticas, o conflito é um elemento propulsor de um processo democrático, que permite
múltiplos projetos entrar em disputas por hegemonizações provisórias, o que chamamos de
conflito consensual. E todo esse movimento está intrinsecamente ligado às questões culturais,
uma vez que as relações humanas e políticas na contemporaneidade não conseguem se furtar
desse movimento. É como nos elucida Hall (1997) dizendo que na sociedade moderna tardia a
cultura tem um impacto incontrolável. O sentido político torna-se potente ao pensarmos nas
práticas de significação cultural. Assim a cultura realmente se torna política, e deixa de ser
vista como um artefato.
Pensando a política de currículo como política cultural, assumimos uma postura de
creditar o poder em relações assimétricas, que o currículo é construído em cada escola em
torno de disputas. Existe um terreno fixo, um consenso, sempre acompanhado de um
dissenso, de uma provisoriedade. São produzidos discursos, são feitas articulações,
significantes e significados giram em torno da produção de uma política de currículo, pois a
cultura é esse elemento que permite as nossas negociações, as nossas posturas sociais e
políticas na sociedade.
A política curricular é pensada para e em um projeto social, do que se pretende em
uma sociedade, esses projetos são imbricados por relações de poder, das lutas sobre o quê e
como as pessoas identificam o que é bom ou o que é ruim, em fim, o que as pessoas pensam
que a escola deve fazer para que os alunos tenham uma educação de qualidade. Esses projetos
são marcados então pelo processo de significação cultural, e é por isso então que entendemos
tais políticas como políticas culturais, ou seja, de como as pessoas veem o mundo.
Resgatando a compreensão do sentido político nas relações sociais e fortalecendo a cultura
como processo de significação teremos potência para ver as políticas de currículo como
políticas culturais públicas, de ação permanente dos sujeitos, em que o conflito, o
antagonismo e o agonismo sejam vistos como fundamentais para a construção curricular.
46
Para a ampliação do contexto da centralidade da cultura na educação escolarizada no
que tange às questões curriculares, neste próximo capítulo discutiremos como podemos
compreender a feitura de currículos e de políticas curriculares, tendo como ponto central os
sentidos da cultura. Isso nos possibilitará potencializar o entendimento da política curricular
como política cultural pública.
1.2 A centralidade cultural nos estudos, nas políticas e teorias curriculares
Os significados que o termo currículo já possuiu e vem possuindo no cenário
educativo é amplo e conflituoso. Uns o significam como tudo aquilo que acontece na escola e
outros como uma listagem de conteúdos dentro de um planejamento. Consideramos ambas as
posições generalistas e simplistas, pois não conseguem caracterizar as lutas travadas para o
que se ensina dentro da escola, ou seja, descartam o movimento da busca de significados que
se vão constituindo a cada disputa em o que vale ou não vale ensinar.
No início de 1990, no Brasil, Antonio Flávio Barbosa Moreira e Tomaz Tadeu da
Silva, sinalizavam que os estudos curriculares travavam uma das lutas mais significativas no
campo, o que demonstra essa complexidade: o combate às fixações tecnicistas acerca do
currículo. Ancorados, à época, em uma perspectiva crítica da educação e do currículo os
autores destacavam que,
O currículo há muito tempo deixou de ser apenas uma área meramente
técnica, voltada para as questões relativas a procedimentos, técnicas,
métodos. Já se pode falar agora em uma tradição crítica do currículo, guiada
por questões sociológicas, políticas, epistemológicas (1994, p. 07).
Muitas perspectivas e conceitos giram em torno do que o currículo venha a ser. Nesse
sentido três movimentos são marcos dentro dos estudos curriculares: os estudos de Ralph
Tyler, em que a sua principal preocupação reside na busca da eficiência na educação, uma
busca permanente de resultados técnicos (TYLER, 1981), conhecido no Brasil como
movimento Tecnicista; os ancorados na perspectiva da Teoria Crítica e nos pressupostos
Marxistas, em que estão os currículistas como Michael Apple (2008) e Henry Giroux (1997),
uns dos que mais impactou os estudos no Brasil, conhecido como movimento Crítico; um
47
terceiro movimento ancorado nos Estudos Culturais, Pós-Estruturais, Pós-Coloniais, destina-
se a discutir o currículo a partir dos significados culturais construídos pelos sujeitos atores
sociais, os estudo de movimento Pós-Crítico.
Tomaz Tadeu da Silva, um dos mais importantes estudiosos do campo do currículo no
país, em sua obra Documentos de Identidade (2010) nos apresenta uma cronologia de tais
perspectivas curriculares. O autor faz a divisão entre os três momentos do campo em que as
Teorias Tecnicistas, construídas no início do século passado, se preocupavam com questões
como ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento,
eficiência e objetivos; as Teorias Críticas, construídas em meados do século passado, se
preocupavam com questões como ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social,
capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação, libertação e
resistência; e as Teorias Pós-Críticas, mais atuais, que se preocupam com identidade,
alteridade, diferença, subjetividade, significação, discurso, saber e poder, representação,
cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade e multiculturalismo.
Aparentemente, uma lógica linear, contudo coadunamos com Lopes (2011) quando
esclarece que tais perspectivas estão em constantes lutas, e que as encontraremos em muitos
espaços tempos atuais, além disso, pontos como saber poder são elementos caros em
discussões de estudos Pós-Estruturais. Currículo como seleção de conteúdos para alcançar o
sucesso escolar ou currículo como espaço de luta para emancipação do sujeito, estão presentes
em políticas e práticas curriculares na atualidade, portanto longe de estarem sepultadas em um
passado recente.
Pensamos que dentro dessas conflituosas disputas o que consiste em um ponto de
destaque no campo curricular está ligado à centralidade que a cultura e seus processos
assumem na contemporaneidade. Percebemos que mesmo com focos e referenciais distintos,
conscientes ou inconscientes, os estudiosos do currículo mantém centralidade a cultura. A
cultura assume nesse sentido possibilidades distinta de visualizações. Para Lopes e Macedo
(2011) a cultura dentro dos estudos curriculares pode ser vista como a ação do homem e suas
produções, pode também ter uma noção de repertórios de significados; e na perspectiva Pós-
Estrutural entendida como processo de significação.
Na concepção tecnicista de currículo, embora não de forma explicita, acreditamos que
a cultura esteve e está presente, contudo com uma gigantesca vantagem da concepção estática
da mesma, ou seja, cultura como elemento fixo a ser repassado ao outro – aos alunos. Na obra
48
de Ralph Tyler (1981), por exemplo, existe uma busca de objetivos a ser alcançados que são
selecionados a partir da cultura da sociedade, uma cultura em que os alunos devem
eficientemente adquirir em suas trajetórias escolares. Autores dessa perspectiva assumem a
Administração e a Psicologia Comportamental como fontes de organização curricular, tendo
como objetivo básico que os alunos atendem determinadas demandas sociais econômicas, ou
seja, responder com eficiência aos preceitos culturais do mundo capitalista. Embora o ápice
dessas formulações estivesse nos meados do século passado ainda temos práticas engendradas
em tal perspectiva, currículos que se destinem a atender a uma determinada demanda
econômica.
A cultura também é discutida nas perspectivas críticas de currículo, os mesmo estão
ancorados principalmente nos estudos marxistas, em que a lógica da luta de classes e de
mercado são centrais. Jose Gimeno Sacristán (2008), curriculista ancorado na Teoria Crítica,
também trata da cultura quando define currículo como projeto de seleção cultural. Embora o
autor assuma uma perspectiva diferente de Ralph Tyler, em que existam culturas dos alunos, o
autor dá ênfase na seleção de culturas, fato que nos leva a crer em sua estaticidade dentro de
um quadro plural. Paulo Freire (2008) autor que não se dedicou, explicitamente, aos estudos
curriculares, tem uma grande contribuição para o campo, quando constrói o seu método dos
temas geradores; o autor explica detalhadamente como construir o currículo escolar por meio
da busca de temáticas que fazem parte da cultura dos sujeitos que serão ensinados, a
alfabetização é efetivada a partir da realidade cultural dos alunos, perspectiva que
consideramos importante, contudo acreditamos que mantém a cultura como um repertório
construído e fixo.
Os estudos ligados ao que se denominou de Pós-críticos assumem a cultura como
objeto de estudos. As correntes Pós-Colonialistas, os Estudos Culturais e Pós-Estruturalistas
são exemplos desse movimento. Tais pesquisas são desenvolvidas a partir da concepção de
cultura como processos de significações, ou seja, a cultura não é algo dado como fixo, mas
sim um processo contínuo em que atores sociais vão significando ao passo de suas interações,
nesse sentido todas as ações sociais é cultural, portanto o currículo assume-se literalmente
como cultura. Dessa forma a necessidade de se pensar o currículo como política cultural
pública se amplia, pois em torno das múltiplas propostas curriculares residem às questões
sobre cultura, pois ela é a forma como nós sujeitos sociais significamos as nossas vidas.
49
Na próxima sub sessão discutiremos algumas conceituações acerca da cultura
pensando-as nas teorias de currículo, dessa forma iremos nos aprofundar mais no sentido de
compreender como a cultura teve e tem tido relevância na construção de currículo e de
políticas curriculares, uma vez que em qualquer que seja a postura teórica a cultura assume
uma papel importante, a partir dessa compreensão podemos analisar e entender a propositura
de políticas de currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Consideramos que a cultura é central nos estudos curriculares. Pensamos que o
deslocamento da concepção de cultura – da fixação pregada principalmente pelo Iluminismo,
ou seja, das grandes coleções de objetos e saberes, para o entendimento de cultura a partir dos
processos de significações realizadas pelas negociações entre vários sentidos culturais – seja o
ponto primordial para os estudos contemporâneos de currículo, pois potencializa a
visualização de meandros e detalhes antes não captados pela concepção que mantém a
localização da cultura como um objeto fixo.
Pensar na cultura como central em educação é entendê-la como um processo de se
tornar, de vir a ser, e não como um repertório fixo de ações, fato que nos permite acreditar na
construção curricular sempre em momentos de dialogicidade e de tensões, de lutas e de busca
incessante de construção de um projeto social, pois somos sujeitos em permanente formação
cultural que nunca se fecha, permanecendo em constantes mudanças (HALL, 2009).
A Escola Organizada por Ciclos de Formação requer uma postura dialógica e reflexiva
na construção dos seus currículos, em que a cultura assuma uma postura dinâmica e flexível,
tomada não como um repertório a ser seguido de forma homogênea em todos os espaços
tempos. A forma de compreender como a cultura é vista e colocada em diversas posturas
teóricas nos possibilita visualizar como está à constituição das políticas curriculares para os
estudantes, uma vez que em cada visão ela irá assumir uma função social, uma forma de
compreender e ver o mundo.
Para Stuart Hall (1997) a cultura sempre foi vista como importante, contudo não com
tanta relevância. Para o autor, nas Ciências Humanas e Sociais, esse reconhecimento já vem
de longa data,
Nas humanidades, o estudo das linguagens, a literatura, as artes, as idéias
filosóficas, os sistemas de crença morais e religiosos, constituíram o
conteúdo fundamental, embora a idéia de que tudo isso compusesse um
50
conjunto diferenciado de significados - uma cultura - não foi uma idéia tão
comum como poderíamos supor (p. 15).
Como podemos ver nas relações sociais a cultura tem um papel fundamental no
tocante a organização e desorganização da sociedade, ele passa por múltiplos espaços tempos
da configuração da nossa vida, todos esses sistemas estão imbricados nas relações humanas,
portanto, ponto de partida de constantes discussões a serem travadas dentro da escola, por
meio dos currículos. Mesmo como sinaliza o autor, a cultura está presente em toda e qualquer
relação social. Acreditamos nesse sentido que é por isso que se torna uma ação política
relevante, e como já salientamos, só reforça o sentido de publicidade, sendo mais uma
prerrogativa de sinalizarmos o currículo como uma política cultural pública.
É interessante resaltar que para Stuart Hall, a centralidade da cultura vista como uma
ação política necessita ser pensada a partir de dois processos destacados: a globalização e a
virada cultural (LOPES e MACEDO, 2011).
Para Hall (1997, p. 17):
Sem sombra de dúvida, o domínio constituído pelas atividades, instituições e
práticas expandiu-se para além do conhecido. Ao mesmo tempo, a cultura
tem assumido uma função de importância sem igual no que diz respeito à
estrutura e à organização da sociedade moderna tardia, aos processos de
desenvolvimento do meio ambiente global e à disposição de seus recursos
econômicos e materiais. Os meios de produção, circulação e troca cultural,
em particular, têm se expandido, através das tecnologias e da revolução da
informação.
As trocas culturais sempre ocorreram, contudo um ponto fundamental que altera essa
lógica e torna a cultura como um elemento central é justamente a velocidade que a
globalização trouxe. Hoje as trocas são muito rápidas, a cultura circula em muitos espaços em
pouco tempo. A internet permite que signifiquemos a nossa cultura a todo o momento.
Pensando nesse sentido assumir a cultura como central, a partir de grande fluxo, é
potencializar o currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação, pois no momento
que esta se assume como uma escola para atender às necessidades educativas, e também
políticas, de todos os sujeitos, esta visão traz as várias diferenças presentes em nossa
51
sociedade para um processo de negociação em que todas as vozes podem ser ouvidas na
construção de políticas curriculares, macro e micros.
A globalização é um elemento que transcende as fronteiras locais e assume aspectos
homogeneizadores, contudo nunca fechados, pois como Bhabha (2003) salienta, o localismo é
um grande processo de construção para os globalismos. As políticas curriculares vistas a
partir dos sentidos políticos são compreendidas dentro de jogo articulatório presente nas
fronteiras culturais, que são apagadas pelo dinamismo da globalização. Nas práticas
curriculares das escolas estão presentes culturas de muitos lugares distintos. As crianças,
adolescentes, jovens e adultos, provenientes de várias localidades precisam ser ouvidas a fim
que se possam efetivar currículos que estejam ligados à dinamicidade que a cultura assume
em nossas relações sociais, são formas variadas de significar a vida e as coisas, que se
deixadas de lado, podem levar a constituição de currículos monolíticos, estanques e elitizados.
O segundo momento que emerge a centralidade da cultura está ligado à virada cultural,
que “trata-se do deslocamento dos estudos culturais em direção a abordagens Pós-
Estruturais que implica dar destaque à linguagem na construção e circulação de significado,
concebê-la como instituinte: ela não reflete o mundo real, mas o constitui” (LOPES e
MACEDO, 2011, p. 197).
A cultura passa a ser mais central, um destaque que vai além das proposições materiais
econômicas advindas da teoria marxista, pois a constituição da vida social passa então pelas
significações culturais, os sentidos são produzidos pela linguagem, de forma que nunca é algo
estático e fixo (HALL, 1997).
Um exemplo brilhante do autor nos revela como a linguagem torna os significados em
realidade,
Trata-se aqui da relação total entre a linguagem e o que podemos denominar
“realidade”. Os objetos não existem no mundo independentemente da
linguagem que utilizamos para descrevê-los? Num sentido, é óbvio que sim.
Para voltarmos ao exemplo familiar discutido anteriormente: uma pedra
ainda existe a despeito de nossas descrições dela (ver Hall, 1997, p 45).
Entretanto, a identificação que fazemos da mesma como “pedra” só é
possível devido a uma forma particular de classificar os objetos e de atribuir
significado aos mesmos (isto é, a palavra pedra vista como parte de um
sistema de classificação que diferencia pedra de ferro, madeira, etc.; ou, por
outro lado, num sistema de classificação diferente — a pedra, em oposição
ao penedo, rocha, seixo, etc.). Os objetos certamente existem também fora
52
destes sistemas de significação (cada qual dando um significado diferente a
mesma coisa, a “pedra”); os objetos certamente existem, mas eles não podem
ser definidos como “pedras”, ou como qualquer outra coisa, a não ser que
haja uma linguagem ou sistema de significação capaz de classificá-los dessa
forma, dando-lhes um sentido, ao distingui-los de outros objetos (HALL,
2003, p. 40).
Como processo linguístico de significação, a cultura nos possibilita vislumbrar como
as coisas e o mundo são, é a partir desses sentidos que compreendemos o quê está sendo
ensinado dentro das escolas, então a partir da constituição do currículo vamos dando sentidos
as nossas ações e as nossas vidas. A cultura como explicita o autor é a forma de como nós
vivemos e como damos sentidos ao mundo, é a maneira como construímos o nosso currículo
diz o que queremos que os alunos das escolas sejam.
Dessa forma entendemos que o currículo como qualquer outra ação social é um
processo de significação cultural, que não deve ser tratado como um objeto estático a ser
ensinado na escola, mas sim como uma arena de luta em que atores sociais disputam os
sentidos a serem hegemonizados. Por isso aceitamos e acreditamos que a cultura é central
para o estudo de currículo, como traduz Lopes e Macedo (2011) o currículo é uma prática de
atribuir significados, um discurso que constrói sentidos.
A partir dessa centralidade cultural assumimos o currículo como cultural. Uma cultura
que não é estática, que não é fixa, mas que está em permanente movimento, com uma
diversidade viva e repleta de significações. Diversidade presente em constantes e permanentes
negociações, no espaço tempo que serão produzidos os currículos escolares. Tais negociações
produzem sempre híbridos culturais. O currículo escolar não deve ser um amontoado de
saberes considerados como únicos e verdadeiros, pois os alunos trazem suas culturas vivas
que entram em negociações umas com as outras gerando sempre novas culturas, é nesse
movimento de hibridizações que o currículo está sendo sempre produzido.
53
1.2.1 A centralidade cultural nas teorias curriculares: uma compreensão importante
na leitura das políticas de currículo
Como vimos, a centralidade cultural tomou corpo nos estudos curriculares e
educacionais. Nesse sentido a partir desse momento faremos uma breve conceituação de um
termo extremamente polissêmico e contestado a fim de esclarecer como estamos
compreendendo a cultura no campo das políticas curriculares a partir da compreensão dos
seus significados nas teorias de currículo. Isso se justifica pela necessidade que temos de
compreender a política curricular analisada nesta pesquisa, a partir dos processos híbridos
culturais entre as múltiplas possibilidades de construção curricular.
Sabemos que a cultura é carregada de significados e que não será tarefa fácil tentar
conceituá-la, será sempre possível haver contestações e correções, pois a “cultura é
considerada uma das duas ou três palavras mais complexas da nossa língua” (EAGLETON,
2011, p. 9). No entanto, sem querer fazer uma trajetória da significação da cultura, optaremos
por fazer um recorte mais amplo que ela assumiu e vem assumindo no campo social e
educacional destacando três momentos: o primeiro em que esta é vista como um repertório
elitizado, o segundo em que aparecem estudos postulando que todo e qualquer sujeito possui
cultura e o terceiro em que a mesma é vista como um processo de significação.
Um dos primeiros conceitos construídos sobre cultura foi formulado por Edward
Burnett Tylor, em 1871. Segundo Tylor apud Eagleton (2011), cultura são as manifestações
das crenças, das artes, os hábitos construídos pelo homem, são as capacidades construídas
pelo homem na sociedade. Isso nos remete a uma visão que perdura até hoje em muitos
discursos, de que existe uma cultura única e verdadeira, a cultura em que todos devem se
submeter e consumir para ser um bom cidadão.
Exprime-se aqui um caráter classista de cultura, em que somente a classe burguesa
possui cultura. É um sentido de cultura ligado às artes, à apreciação de músicas eruditas,
literatura, cinema, teatro, pintura, todos os bens construídos historicamente pelo homem
(MOREIRA, 2008). Pensando no currículo escolar, temos uma visão de que a escola “deve”
permitir que todos os alunos tenham acesso a essa cultura, a cultura da elite.
A partir do alargamento do conceito construído por Franz Boas, a cultura toma corpo e
amplia a visão das possíveis culturas em múltiplos espaços preocupando-se com “as culturas”,
54
ou seja, todos os sujeitos têm cultura (NEIRA e NUNES, 2008). Um movimento mais
contemporâneo que embora tenha trazido uma grande contribuição no tocante à possibilidade
de que todos e todas tenham cultura, dando ênfase à possibilidade do evidenciamento da
cultura popular, ainda dicotomizava a cultura, no sentido de que o rico tem uma cultura
elevada (ligada aos estudos) e o pobre tem a cultura do seu cotidiano (ligada aos saberes
populares).
Uma terceira conceituação, utilizada nesta dissertação, se refere à significação que
todas as pessoas constroem sua cultura em qualquer espaço tempo social que a mesma se
insere. Tomamos como ponto de partida e chegada as relações simbólicas construídas pela
linguagem, pelo discursivo. A cultura se torna aqui um sistema de significação e de
representação (LOPES e MACEDO, 2011), em que a cultura é negociação, disputa, luta.
Assume aqui uma postura de fluidez e rompe com o caráter fixo salientado anteriormente.
Nesse espaço tempo as pessoas significam as suas vidas sociais e políticas pela cultura.
Nas três subsessões a seguir iremos destacar a cultura nas teorias curriculares a fim de
possibilitar uma visão de como a mesma possuiu relevância na constituição das políticas de
currículo na contemporaneidade.
1.2.1.1 Currículo e cultura na perspectiva Tecnicista
A perspectiva tecnicista de currículo talvez seja a que mais teve e tem impacto na
construção dos currículos escolares brasileiros. Destacaremos aqui dois teóricos importantes
desse cenário, John Franklin Bobbitt e Ralph Tyler, a fim de nos possibilitar a compreensão
de como a cultura foi vista em seus pressupostos. O primeiro destaque a ser feito é que estes
autores não escreveram sobre cultura em suas formas de arquitetarem os currículos, essa é
uma leitura que nós fazemos, dada a importância sinalizada anteriormente sobre a cultura,
currículo e políticas curriculares.
Um dos primeiros teóricos a sistematizar acerca do campo curricular foi Bobbitt, a sua
obra O currículo de 1918 foi um marco para os estudos curriculares (SILVA, 2010). Nela o
autor destaca as finalidades técnicas do currículo e como o mesmo deve ser organizado. Já no
início de sua obra (BOBBITT, 2004) salienta que existi no campo educacional os que
55
defendem a cultura na formação das pessoas e os que defendem o fazer, a prática. E qual a
opção correta ele se pergunta e responde: os dois.
Embora sua resposta seja que os dois campos sejam importantes, no decorrer de sua
obra ele enfatiza o campo da prática social, em que os currículos escolares devem incidir
sobre o mesmo. A cultura é vista como patrimônio que os estudantes devem ter acesso. Para
Bobbitt (2004), a escola é uma entidade que deve funcionar como uma fábrica, tendo o
currículo o dever de processar crianças capazes de serem eficientes onde elas estiverem. O
currículo para Bobbitt deve preparar o aluno para a vida adulta economicamente ativa,
selecionando as grandes áreas a serem trabalhadas encontradas na sociedade, ou seja,
construir os objetivos a serem atingidos pelos alunos futuramente na sociedade (LOPES e
MACEDO, 2011).
Para Kliebard (2011), Bobbitt adaptou os princípios da administração científica,
proposta principalmente por Frederick Taylor, para pensar a organização escolar: usar toda a
área escolar o maior tempo possível, reduzir o número de trabalhadores possível dentro da
escola, fazendo com que cada um dê o máximo em suas funções, uma escolarização de
pudesse diminuir os gastos supérfluos, dentre outros. Segundo o autor (2011, p. 10),
A extrapolação desses princípios da administração científica para a área do
currículo transformou a criança no objeto de trabalho da engrenagem
burocrática da escola. Ela passou a ser o material bruto a partir do qual a
escola-fábrica deveria modelar um produto de acordo com as especificações
da sociedade. O que de início era simplesmente uma aplicação direta dos
princípios de administração geral à administração das escolas tornou-se uma
metáfora central em que se fundamentaria a teoria moderna do currículo.
Nesse sentido a escola e o currículo não deveriam centralmente se preocupar com a
cultura, mas sim em trabalhar com o “indivíduo” segundo as suas potencialidades, sendo
assim os objetivos e a eficiência seriam sempre centrais. É uma busca constante de como
preparar os sujeitos para atender bem o contexto social, ou mais precisamente o contexto
econômico. Seguindo os princípios de Bobbitt as políticas curriculares deveriam dar conta da
sistematização burocrática da escolarização, a cultura ficaria em segundo plano, como objeto
a ser consumido.
56
John F. Bobbitt foi um dos pioneiros na sistematização curricular, contudo a obra de
Ralph Tyler, Princípios Básicos de currículo e ensino de 1949, teve um impacto grandioso
nos estudos curriculares nos Estados Unidos e também no Brasil, tomando mais força ainda a
ideia de currículo como organização escolar de uma forma técnica administrativa (SILVA,
2010).
Nesta obra Tyler (1981, p. 2), logo de início, postula quatro questões cruciais, que
devem ser pensadas e respondidas, para a construção do currículo escolar:
1. Que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir? 2. Que
experiências educacionais podem ser oferecidas que possibilitem a
consecução desses objetivos? 3. Como podem essas experiências
educacionais ser organizadas de modo eficiente? 4. Como podemos
determinar se esses objetivos estão sendo alcançados?
Estas questões são basilares para a construção de programas curriculares. As políticas
de currículo pensadas à luz destes princípios devem postular como se chegar à eficiência dos
alunos, focando-se principalmente nos objetivos. Tais objetivos são selecionados a partir do
conhecimento dos alunos, de estudos da vida contemporânea e de sugestões oferecidas por
especialistas (TYLER, 1981).
Consideramos, nesse sentido, que Ralph Tyler lida com a cultura, contudo pensando-a
como um elemento estático e elitizado, pois ao pensar a seleção de conteúdos para dar conta
de educar os alunos, o autor vai ao universo cultural, ao solicitar as sugestões dos
especialistas, e estes estão lidando com conhecimento, ou seja, o autor pensa a cultura, mesmo
que de forma linear e fixa. Salientamos que Tyler não fala diretamente acerca da cultura,
contudo acreditamos que ao pensar a fonte dos objetivos ele inevitavelmente lida com cultura.
A cultura pensada por ele é elitizada, selecionada por poucos, são artefatos a serem
repassados aos alunos.
A compreensão destas perspectivas é fundamental para o estudo das políticas
curriculares. Como já salientado, tais concepções não foram eliminadas com o aparecimento
de outras perspectivas curriculares. O modelo proposto por Ralph Tyler e John Franklin
Bobbitt é visto em muitos documentos de políticas de currículo hoje pelo Brasil. Por isso, ao
entendermos que a política de currículo se configura como uma política cultural, é mister que
façamos um exame de como a cultura é encarada nessas perspectivas curriculares a fim de que
57
possamos realizar uma discussão que corrobore com alternativas curriculares que permitam o
fazer cotidiano do professor.
1.2.1.2 Currículo e cultura na perspectiva Crítica
O movimento Tecnicista dominou o pensamento curricular por muitos anos, isso não
significa dizer que este já não exista mais. Contudo, a partir da década de 1960 outros
movimentos iniciaram o combate a tal perspectiva curricular. Referimos-nos a combate, pois
a sensação ao realizarmos os estudos sobre currículo essa talvez seja a palavra mais adequada.
O surgimento de perspectivas Críticas de currículo nasceu justamente para tentar romper com
a lógica de que a escola é uma indústria, mostrando que os alunos são mais do que meros
reprodutores para o mercado capitalista.
Enquanto o movimento das perspectivas Tecnicistas estava preocupado em postular
como deveria ser a organização dos currículos para chegar a maior eficiência dos alunos, ou
seja, no como fazer um currículo, as perspectivas Críticas se preocupavam e se preocupam
com conceitos chave como: ideologia, classe social, emancipação, currículo oculto,
resistência, os quais nos permitem compreender o que o currículo faz com os alunos e com a
escola (SILVA, 2010). Muitos teóricos e obras são emblemáticos nas críticas a modelos
tecnicistas de currículo, iremos selecionar três, que consideramos importantes para
entendermos como a cultura é pensada nos currículos e nas políticas curriculares: Paulo
Freire, Michael Apple e Jose Gimeno Sacristán.
Começamos por Paulo Freire, um dos maiores educadores brasileiros. Paulo Freire não
escreveu nenhuma obra especificamente sobre currículo, contudo as suas obras tiveram e
ainda têm um impacto forte no campo do currículo. Suas obras combatem veementemente as
perspectivas tecnicistas de currículo. Em Pedagogia do Oprimido (2010), talvez encontremos
os principais pontos para a discussão acerca da cultura e currículo, bem como discussões
importantes para o campo das políticas curriculares. Nesta obra o autor trava uma discussão
aportada em várias perspectivas, contudo a marxista tem uma fundamental importância, pois é
a partir daí que o autor irá pensar a relação de classe na construção curricular: a relação
opressor e oprimido. Paulo Freire pensa na construção curricular a partir do diálogo, sendo
esse o ponto chave no emergir da cultura dos alunos e alunas. Ele cria os Círculos de Cultura,
58
um espaço tempo de reflexão e aprendizagem. Segundo Freire (2010, p. 47), o educador
propicia momentos de diálogo em que os conteúdos e as culturas são aflorados,
Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo
programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um
conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a revolução
organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que
este lhe entregou de forma desestruturada.
A cultura é um operante significativo no processo educativo. A cultura do povo é
apresentada como possibilidade de se compreender o mundo que cerca os alunos. Os
professores se tornam aqui os construtores curriculares, e as políticas de currículo nesse
sentido podem auxiliar a efetivação de uma postura dialógica, caso contrário esta pode se
tornar impositiva e arbitrária. É uma sinalização que traz a cultura em um sentido político, em
que todos e todas possuem cultura.
Seguindo na esteira das perspectivas críticas, as obras de Michael Apple, curriculista
estadunidense, tiveram grande impacto no campo curricular brasileiro. O autor tece críticas
severas às concepções tecnicistas de currículo. A principal discussão travada por Apple está
ligada às questões econômicas e a seus impactos no campo curricular, contudo a cultura não é
vista por ele como um simples reflexo da economia (SILVA, 2010), pois esta tem sua própria
dinâmica. Na mesma lógica Freiriana, Apple (1982, p. 44) sinaliza que temos que pensar que
a cultura não é uma produção apenas da classe burguesa,
Existe uma singular combinação de cultura popular e cultura de elite nas
escolas. Como instituições, elas se constituem em áreas excepcionalmente
interessantes e fortes, política e economicamente, para a investigação dos
mecanismos de distribuição cultural numa sociedade.
Irá existir uma divisão entre culturas, a do pobre e a do rico. Embora o autor traga a
cultura como um ponto importante, a mesma ainda é vista dicotomizada. No cenário da
perspectiva crítica a cultura assume um papel importante no que tange a distribuição cultural
nas escolas, é nesse sentido que reside uma das críticas de Michael Apple, para o autor o
importante não reside em saber quais os conhecimentos verdadeiros devem estar no currículo,
mas sim o porquê deles estarem no currículo, porque políticas curriculares tendem a imprimir
uma cultura, porque a cultura elitizada é privilegiada, são estas e outras questões que movem
o pensamento do autor.
59
Em torno destas e outras indagações está Jose Gimeno Sacristán, curriculista espanhol
ancorado na perspectiva crítica de currículo. Segundo Sacristán (2000) o currículo se define
como o “projeto seletivo de cultura, cultural, social, política e administrativamente
condicionado, que preenche a atividade escolar e que se torna realidade dentro das
condições da escola tal como esta se acha configurada” (p. 34). Sendo um projeto de seleção
exige que alguém escolha o que é certo, e neste momento a cultura se torna um artefato. Há
uma grande contribuição para a discussão da cultura no cenário escolar, contudo ela acaba
tendo uma posição fixa, que seja da cultura de elite, que seja da cultura popular.
Na perspectiva tecnicista de currículo a cultura toma um corpus muitas vezes fixo, ou
seja, um conjunto inerte e estático a ser transmitido, mesmo sendo considerado vindo de
múltiplos lugares. Na perspectiva crítica de currículo a cultura é vista politicamente, não é
única, é um campo de produção, um campo de contestação (MOREIRA e SILVA, 2008).
Nesse sentido a cultura é pensada não como algo a ser repassado, mas sim como algo que
todos e todas possuem, ela está ligada intimamente às classes sociais.
Contrariamente ao que muitas pesquisas e debates vêm sinalizando atualmente,
acreditamos que as perspectivas críticas se constituem como um método potente para a
compreensão de muitos pontos das políticas curriculares. A cultura nos permite compreender
como as relações econômicas e estatais são importantes no momento de produção de políticas
de currículo. Elas fazem uma importante discussão acerca do poder na constituição de
políticas curriculares, acenderam as discussões contra as perspectivas tecnicistas, possuem um
arcabouço teórico importante no campo curricular. Contudo, a cultura ainda é secundarizada.
Há uma forte concepção de cultura de elite e de cultura popular, e isso pode enfraquecer o
debate acerca das potencialidades de compreender as políticas curriculares como políticas
culturais. Nesse sentido apresentamos a seguir como a cultura tem sido pensada e operada nas
perspectivas pós-críticas de currículo, uma visão aberta e flexível, que permite compreender
as relações de poder em múltiplos espaços tempo na produção de políticas curriculares,
tirando a centralidade das mesmas de um único foco: o Estado.
1.2.1.3 Currículo e cultura na perspectiva Pós-Crítica
Neste último ponto destacamos a importância das concepções pós-estruturalistas no
campo curricular. Nesse sentido iremos operar com construções teóricas de três curriculistas
importantes no Brasil: Tomaz Tadeu da Silva, Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo. A
60
intenção é trazer uma discussão que descentre as concepções de currículo que se pretendem
fixadas, ou seja, é pensar possibilidades de currículo e de políticas curriculares que se
distanciem de qualquer centralização. Nas perspectivas Pós-críticas, contudo, não temos
apenas concepções pós-estruturais, nelas estão presentes um conjuntos de outras fontes
teóricas como: os Estudos Culturais, o Pós-colonialismo, a Teoria Queer, o Pós-modernismo,
em fim, uma série de concepções que auxiliam a pensar o currículo não como algo dado, mas
sim como práticas de significações.
Pensando currículo a partir dessas matrizes teóricas temos como um dos pioneiros no
Brasil o estudioso Tomaz Tadeu da Silva, foi ele que na década de noventa começou os
escritos de currículo a partir destes aportes, além de fazer uma série de traduções de textos
que alavancou os estudos curriculares à luz do pós-estruturalismo (LOPES e MACEDO,
2011). Segundo Silva (2003, p. 17) “o currículo, tal como a cultura, é compreendido como:
1) uma prática de significação; 2) uma prática produtiva; 3) uma relação social; 4) uma
relação de poder; 5) uma prática que produz identidades sociais”.
A cultura e a linguagem nessa perspectiva assumem lugar de destaque. O currículo
passa a ser pensado não como uma estrutura a ser seguida, mas como algo a ser significado
pelos sujeitos viventes dos currículos. As relações de poder travadas no momento da produção
curricular, da sua significação, são descentralizadas de um órgão central (o Estado), e dessa
forma passa a ter múltiplos espaços de disputas.
Lopes e Macedo (2011), ancoradas nos estudos mencionados inicialmente,
compreendem o currículo como uma prática discursiva, uma intrínseca relação de poder nas
construções de sentidos, a realidade curricular, o currículo é construído a partir do discurso,
um processo constante de criação e recriação. Para as autoras,
O currículo é, como muitas outras, uma prática de atribuir significados, um
discurso que constrói sentidos. Ele é, portanto, uma prática cultural... Não
estamos tratando a cultura como objeto de ensino nem apenas como
produção cotidiana de nossas vidas. Estamos operando mesmo com uma
compreensão mais ampla de cultura como aquilo mesmo que permite a
significação (2011, p. 203).
Assumimos nesta dissertação esta concepção de currículo e de cultura,
compreendendo que as políticas curriculares não podem ser um amontoado de “coisas” que as
escolas devem fazer. As políticas curriculares pensadas à luz da cultura, nesta perspectiva,
podem potencializar as negociações e construções curriculares no cenário escolar.
61
A cultura passa a ser pensada não como um produto a ser consumido, mas como um
processo de significar o mundo, as coisas, a vida, a escola, tudo o que nos cerca. Essa leitura
potencializa o rompimento com preconceitos no tocante aos que possuem cultura elitizada ou
popular, ela despolariza essa visão. O currículo é significado num fluxo constante, tendo a
possibilidade de negociar culturas múltiplas. Os alunos e professores podem nas práticas
pedagógicas construir e reconstruir seus currículos.
1.3 Processos de hibridação cultural nas políticas de currículo
A visão de múltiplas formas de pensar o currículo, a forma de conceber as políticas
curriculares, vem sendo marcadas por essa efervescência cultural, mostrando as constantes
negociações que temos na construção de práticas pedagógicas inovadoras e de políticas. Nesse
sentido destacamos agora como nos estudos curriculares e educacionais, no mesmo caminhar
das ciências humanas, como um todo vem se destacando estudos que se dedicam a explorar a
noção de hibridismo, um conceito caro para compreender como as políticas curriculares tidas
como políticas culturais públicas são produzidas e reproduzidas. Para Macedo (2004, p. 13),
trata-se de uma noção que lida com a diferença – assim com a aparente homogeneidade – e
perturba tanto as fronteiras entre o eu e o outro quanto à própria ideia de eu e de outro.
Buscamos então elucidar, ou pelo menos tentar, como um conceito tão caro como o
hibridismo entrou no cenário educacional e curricular, bem como ele se desenvolveu e vem se
desenvolvendo dentro desses contextos, nos possibilitando fazer uma leitura menos linear
possível das políticas curriculares. Esse processo se faz importante para que possamos
entender como as compreensões sobre cultura, identidade, diferença, dentre outros conceitos
importantes para a educação se reconfiguraram a partir do híbrido (CANCLINI, 2012).
Para Dussel (2005), falar no termo hibridismo requer uma leitura não apriorística,
entendendo a complexidade do seu uso em muitas áreas. A autora nos mostra a partir de uma
breve trajetória histórica o uso do termo híbrido, que:
[...] começou a ser utilizado no idioma inglês no século XIX com referência
à botânica e à zoologia. Embora presente na literatura desde o século XVII,
fortaleceu-se com o impulso classificatório da ciência do século XIX,
preocupada em identificar as espécies em taxionomias de conhecimento. Em
1828 no dicionário Webster, o híbrido, era “um mestiço ou mula”; um
62
animal ou planta produzido pela mistura de espécies. O uso do termo
aplicado a humanos data de meados do século XIX (p. 58).
Canclini (2012) salienta que esse termo é tão antigo como as trocas que as sociedades
faziam e fazem entre os seus bens materiais e simbólicos; as migrações e as mestiçagens entre
os povos também já se configuravam como híbridos há muito tempo. A diferença entre o
antes e o agora reside na velocidade desses processos, pois com o advento das tecnologias,
esse processo tem sido cada vez maior.
Alguns outros termos como mestiçagem, sincretismo e crioulização, advindos desde
estes tempos ainda continuam a ser utilizados em estudos atuais como formas particulares de
hibridação, contudo não dão conta de explicar fusões como culturas de bairros e midiáticas,
estilos de consumos, sendo o termo hibridação o mais favorável para nomear os processos
políticos sociais na contemporaneidade (CANCLINI, 2011), escolhemos no para ser utilizado
por nós neste trabalho, pois o mesmo aproxima-se das produções de políticas públicas
culturais.
Uma das potencialidades ao se usar o termo híbrido na atualidade é buscar entender
que somos sujeitos formados sem determinações fixas, seres impuros, sem predeterminações
(DUSSEL, 2005), ou seja, não produzimos uma identidade permanente, mas sim processos de
identificações, que se reconfiguram e se hibridizam permanentemente.
Canclini (2011), ao estudar as relações entre Modernidade e Pós-Modernidade na
América Latina, nos traz uma grande contribuição para compreendermos esse processo de
hibridização permanente. A partir de três processos o autor explica como se dá o hibridismo:
a quebra e a mescla das coleções organizadas pelos sistemas culturais, a desterritorialização
dos processos simbólicos e a expansão dos gêneros impuros (p. 284).
A descoleção é uma referência às grandes coleções culturais da Modernidade. A
humanidade, ou melhor, o poder constituído na Europa, construiu um grupo de bens
simbólicos considerados como a própria configuração da cultura, certos conhecimentos eram
tidos como de alta cultura, e quem os detinham eram tidos como os sujeitos cultos, puros.
Podemos perceber ainda presentes na contemporaneidade discursos que “tentam” manter as
grandes coleções culturais, como a música erudita, o gosto e o acesso a certos quadros
pintados por grandes artistas, as grandes Barsas que detinham todo o conhecimento
63
culturalmente correto e verdadeiro. Além disso, podemos ver que existia o discurso do
popular, das coleções populares, ligadas às questões folclóricas que mantinham a sua cultura
com os seus costumes, seus objetos, suas coleções, ou seja, uma visão bipolar entre o culto e o
popular (CANCLINI, 2011).
Contudo estas coleções nunca foram e nunca serão puras, sempre serão produtos de
grandes hibridações culturais, e nós mesmos temos a possibilidade de construirmos as nossas
próprias coleções, e também podemos a cada momento ressignificá-las, ou seja, as coleções
são descolecionadas permanentemente, em que a
[...] agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as
classificações que distinguiam o culto do popular e ambos do massivo. As
culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e, portanto desaparece
a possibilidade de ser culto conhecendo o repertório das grandes obras, ou
ser popular porque se domina o sentido dos objetos e mensagens produzidos
por uma comunidade mais ou menos fechada (uma etnia, um bairro, uma
classe). Agora essas coleções renovam sua composição e sua hierarquia com
as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário
pode fazer sua própria coleção (CANCLINI, 2011, p. 304).
Pensando na produção de políticas curriculares e de práticas curriculares a partir do
processo de descolecionar, de quebrar as grandes coleções de saberes, potencializa a
construção dos sujeitos que estão em cada espaço tempo, ou seja, de significação cultural de
acordo com as demandas circulantes. Essas descoleções podem romper com hierarquias no
tocante à construção de currículos, em que as coleções teóricas tradicionalmente constituintes
de um currículo podem ser dissolvidas (LOPES, 2005).
Um segundo processo trazido por Canclini (2011) é a desterritorialização. A cultura
passa a ser significada em suas negociações permanentes nas zonas de fronteiras. A cultura
pertencente a um determinado território ou nação se enfraquece. O que se tem como cultural
só é construído nas relações entre distintos espaços e tempos entre pessoas que se comunicam
cada vez mais com a globalização.
Canclini (2011) aponta que na entrada e na saída da Modernidade existem uma tensão
entre a desterritorialização – a perda de uma relação natural da cultura com um determinado
território geográfico ou social – e a reterritorialização – certas relocalizações assumidas
64
parcialmente entre as velhas e novas produções simbólicas. É um movimento constante que
acontece nas tênues linhas fronteiriças.
A desterritorialização acontece principalmente por dois aspectos: a
trasnacionalização e o grande fluxo migratório. O primeiro está ligado à articulação entre o
nacional e o estrangeiro, a cultura produzida em cada país não é consumida e produzida em
um único espaço, os cenários são múltiplos e extrapolam fronteiras, esse movimento é
marcado por negociações entre os diversos atores sociais que fazem parte desse processo, ou
seja, a cultura nunca é pura de um único território. O segundo aspecto liga-se ao grande fluxo
de migrações de artistas, escritores e políticos exilados, bem como de toda a população de
todos os extratos sociais econômicos (CANCLINI, 2011).
Esses mecanismos permitem que as culturas se toquem e haja permanente troca entre
os povos, construindo assim momentos de negociações, uma descoleção de estruturas que
tentavam certa fixidez, fato que promove automaticamente novas coleções provisórias e
contingentes que se expandem por territórios diversos, ou seja, a cultura é sempre um híbrido,
uma mistura, uma significação que acontece a cada novo contato com novos atores sociais.
Para Lopes (2005, p. 57) “a desterritorialização – perda da relação suposta como
natural entre cultura e territórios geográficos e sociais – e reterritorizalização –
relocalizações territoriais, relativas e parciais, das velhas e novas produções simbólicas”.
As políticas de currículo nesse sentido são/estão em um constante processo de
hibridação, no que se refere à circularidade de múltiplos conceitos, posturas, enfoques
(BALL, 2005). Na produção de uma política de currículo via Governo, as fronteiras são
quebradas e assumem-se posturas de outros lugares, de outros países, de outros estados. Na
produção de uma política de currículo na escola as fronteiras também são apagadas e os atores
sociais que estão produzindo tal política curricular trazem de vários outros lugares posturas
teóricas, concepções de ensino, e outros.
O terceiro mecanismo apresentado pelo autor são os gêneros impuros. Para Canclini
(2011) esses são gêneros constitucionalmente híbridos, pois se constituem em pontos de
intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular, o artesanal e o industrial. O autor
apresenta o grafite e as histórias em quadrinhos como dois gêneros impuros:
65
O grafite é um meio sincrético e transcultural. Alguns fundem a palavra e a
imagem com um estilo descontínuo: a aglomeração de signos de diversos
autores em uma mesma parede é como uma versão artesanal do ritmo
fragmentado e heteróclito do videoclip (CANCLINI, 2011, p. 338).
A história em quadrinhos mistura gêneros artísticos prévios, consegue que
interajam personagens representativas da parte mais estável do mundo –
folclore – com figuras literárias e dos meios massivos, introduz em épocas
diversas (CANCLINI, 2011, p. 345).
Os dois exemplos de gêneros impuros, já de nascimento impuros, citados pelo autor
são produtos culturais mesclados por formas midiáticas diversas, nos quadrinhos e nos
grafites são colocados discursos políticos severos, o drama diário, a sátira da vida, a comédia
da vida privada e pública. É importante salientar que a proliferação de gêneros impuros não se
trata de uma polarização puro ou impuro, pois não existe pureza. O processo de hibridação
acontece por descoleções, por desterritorializações e por gêneros que se constituem ou irão se
constituir impuros por estes outros processos. Dessa forma as políticas curriculares podem ser
analisadas a partir de uma lógica de deslocamento de poderes, do espaço estatal para
múltiplos espaços tempos, em que gêneros impuros nos possibilitam visualizar a configuração
dos discursos circulantes.
Esses processos nos elucidam como podem ser constituídos produtos híbridos, que
perdem o poder centralizado e verticalizado na significação cultural, o que Canclini (2011)
chama de propagação de poderes oblíquos. Há rupturas nas fixações que funcionam como
válvulas de escape para a proliferação de culturas híbridas. Para o autor aparentemente os
grandes grupos concentrados de poder são os que subordinam a arte e a cultura do mercado,
os que disciplinam o trabalho e a vida cotidiana (p. 346), contudo com uma acuidade
ampliada nos mostram que a verticalização nunca é pura, e o poder é sempre oblíquo,
Os cruzamentos entre o culto e o popular tornam obsoleta a representação
polar entre ambas as modalidades de desenvolvimento simbólico e
relativizam, portanto, a oposição política entre hegemônicos e subalternos,
como se se tratasse de conjuntos totalmente diferentes e sempre
confrontados (p. 346).
O processo de hibridação visto por essa relação não verticalizada permite analisar as
questões do poder, sendo este não eficaz quando mantém uma visão binária entre burgueses
66
sobre proletariados, brancos sobre indígenas, mídia sobre receptores, dentre outros na
produção cultural, a eficácia acontece no entrelaçamento de uns com os outros, na obliquidade
(CANCLINI, 2011).
A partir dos processos de hibridação os discursos nas políticas curriculares e nas
práticas pedagógicas reconhecem a fragilidade de um possível/impossível processo de
originalidade, pois são rompidas as coleções produzidas historicamente para o processo de
ensino, e há produção de novas coleções, os processos de significação nos evidenciam que a
cultura e suas fronteiras são frágeis e porosas, ou seja, professores, alunos, gestores, deslocam
as fronteiras na produção curricular, bem como consultores contratados para produzirem
políticas curriculares via Estado apagam fronteiras no momento de suas escritas, no momento
de suas produções, e dessa forma podemos dizer que há uma proliferação dos gêneros
impuros (LOPES, 2008).
1.4 Política curricular: um produto híbrido com articulações, discursos e
significantes
A leitura das políticas curriculares, pensadas a partir do hibridismo cultural, é
potencializada nesta dissertação a partir da análise da luta política, na produção das práticas
discursivas vindas das articulações dos sujeitos envolvidos no processo de produção da
política curricular analisada. Estes conceitos nos auxiliam a compreender a política curricular
em seu processo de hibridação cultural.
Assumimos dessa forma, na política curricular cultural pública, que no processo de
produção das Orientações Curriculares para a Escola Organizada por Ciclos de Formação, há
articulações, há discursos e há significantes que produzem sentidos que tentam
hegemonização. Nessa dimensão fica claro que nos aportamos ao seu entendimento a partir
dos processos linguísticos, em que toda produção humana passa por um processo de
significação, só é assim que as coisas e as ações têm sentidos.
Aportar-nos-emos em Laclau e Mouffe (2010) para nos dar sustentação teórica, a fim
de compreendermos os jogos de negociações e disputas no momento de produção de uma
política social. Os autores (re) significam a Teoria Linguística de Ferdinand Saussure a partir
dos estudos de Jacques Lacan na construção de conceitos que captem a dinamicidade e a
flexibilidade na produção de políticas sociais.
67
Para Laclau (1995), a forma estrutural da língua, formulada por Ferdinand Saussure,
apresentou limites para a constituição de uma teoria linguística do discurso, pois o discurso se
fixava em qualquer sequência linguística mais extensa que uma oração, sendo essa um
conjunto construído pelo falante sem nenhuma representação social e política.
Essa visão dinamiza a leitura e compreensão das políticas curriculares, pois como
salienta Burity (2010), há como preocupação maior na dimensão política das práticas
discursivas que até então não eram abordadas, retirando então o discurso do seu campo apenas
linguístico transpondo-o para o campo político.
Analisar e compreender as políticas curriculares a partir das significações discursivas
potencializa os sentidos políticos no momento de luta (MENDONÇA, 2009), que é
constituído por um fechamento provisório possibilitando o entendimento dos acontecimentos
por uma cadeia articulatória, fato que gera os discursos em torno desta luta.
A partir da análise dos sentidos discursivos podemos analisar e entender a constituição
de projetos hegemônicos dentro da proposição de políticas de currículo. A relação entre
discurso e poder se torna evidente nas produções políticas, uma vez que são postos na mesa os
sentidos de educação que os produtores possuem. Os atores sociais envolvidos na luta política
se movimentam em um processo de articulação a fim de garantir determinadas posições.
Desse movimento são produzidos os discursos que se pretendem hegemonizar.
Queremos dizer que no momento de produção da política de currículo para a Escola
Organizada por Ciclos de Formação há tentativas de hegemonizar projetos políticos e
pedagógicos. Como salienta Freitas (2003) em toda e qualquer proposta de organização
escolar por Ciclos de Formação reside um emaranhado de proposições e intenções, ou seja, ao
analisar e pensar a organização curricular através da constituição de políticas temos que estar
atentos para captar quais as intencionalidades estão postas.
A seguir apresentamos os três elementos que consideramos chaves para refletir sobre o
processo de produção da política de currículo para a Escola Organizada por Ciclos de
Formação da rede estadual de Mato Grosso. Acreditamos que seja importante compreender as
políticas curriculares a partir da rede conceitual construída por Laclau e Mouffe (2010), dando
destaque principalmente aos discursos, articulações e significantes, pois estes elementos
podem nos auxiliar na visualização e compreensão dos sentidos políticos dentro da política
curricular ora analisada.
68
1.4.1 Articulação
Existem no jogo político as articulações entre os sujeitos, a constituição dos processos
identificatórios é fruto de uma articulação discursiva (LACLAU e MOUFFE, 2010), a
constituição social é realizada a partir das articulações. Esse é um movimento que irá produzir
as práticas discursivas que irão, de forma provisória e contingente, constituir os projetos
hegemônicos. Os sujeitos possuem projetos políticos e desejam que estes sejam
hegemonizados, e nesse momento se dá o início das articulações. Os sujeitos se unem em
torno de projetos e começam a produzir um discurso que acreditam ser a melhor opção para a
sociedade.
A articulação se dá inicialmente por posições diferenciais que estabelecem
posteriormente ligações. Para Laclau e Mouffe (2010, p. 142) a articulação é toda prática que
estabelece uma relação entre elementos, em que a identidade desses é modificada como
resultado dessa prática.
É importante ressaltar que as articulações construídas não são fechadas, e são sempre
contingentes e precárias, ou seja, a todo o momento novas articulações podem ser
estabelecidas na luta política (LACLAU, 2011). Porém, não devemos confundir com os
processos de mediações presentes na cadeia articulatória, como salientam Laclau e Mouffe
(2010, p. 131), nos elucidando que “somente a primeira forma de “organização” pode ser
considerada como articulação; a segunda é, no sentido estrito do termo, uma mediação”.
Para Mendonça (2009) a articulação é constituída por um jogo de diferenças entre os
atores sociais, uma cadeia permanente de práticas articulatórias, que não possuem um
essencialismo nas relações sociais políticas, sendo emerso desse processo é o discurso.
Esse processo articulatório para Laclau e Mouffe (2010) se configura como uma
prática entre elementos que se articulam, contingencialmente, tornando-se momentos. Tais
elementos são identificados e começam as negociações em torno das demandas. E neste
momento é preciso distinguir as articulações das mediações que acontecem no jogo político.
As articulações são estabelecidas e consequentemente são produzidos momentos, e as novas
negociações efetivadas dentro destes momentos, quando não alteram os sentidos, são apenas
mediações entre os sujeitos. Para Burity (s/d, p. 14), a articulação,
[...] implica na construção de uma nova síntese, na qual a recomposição dos
fragmentos é artificial, contingente. Ela não repõe uma unidade orgânica
69
original. No caso da mediação, a relação entre os fragmentos e sua forma
recomposta é necessária. “Mediação” descreve um sistema de transições
lógicas em que as relações entre os objetos são concebidas como
reproduzindo relações entre conceitos (e vice-versa). No caso da articulação,
a natureza das relações que se estabelecem entre os elementos tem que ser
determinada. Não somente isto, mas se as relações entre os elementos não
são necessárias, tampouco o são as identidades desses. O discurso que
articula elementos ao mesmo tempo modifica suas identidades.
No contexto das políticas curriculares implica dizer que os sujeitos (ao entrar na luta
política) inicia um processo de articulação, os elementos vão constituindo assim uma cadeia
articulatória, em que as diferenças são apagadas em torno de um significante. Dentro dessa
cadeia (marcada por diferenças) os sujeitos podem discursivamente estabelecer ou não outras
discussões, e isso não significa dizer que estes estão formando outras cadeias articulatórias.
Essas articulações são sempre provisórias. Isso porque a qualquer momento os sujeitos
podem se aglutinar em torno de outras demandas que os farão construírem uma nova
articulação. Isso não significa dizer que não existe uma fixação nas posições dos sujeitos, mas
significa dizer que os sujeitos são descentrados, o que nos mostra que a qualquer momento
podemos trocar de posição, podemos ter outra opinião, podemos produzir outros discursos.
A produção de políticas curriculares é fruto de intensas articulações estabelecidas entre
múltiplos sujeitos (consultores, professores, alunos, membros das secretarias de educação,
dentre outros). E o sentido político, sendo construído nessas relações, é efetivado nas
articulações (SOUTHWELL, 2008). Compreender as articulações nesse sentido é importante
para pensar as políticas curriculares a partir da multiplicidade dos seus atores produtores.
Assumindo assim uma postura em que as pessoas ao entrarem na arena pública de
constituição das políticas curriculares se articularão em torno das demandas circulantes em
um dado espaço tempo. É preciso reiterar que o processo articulatório é sempre contingencial,
ou seja, apesar de em dado momento haver uma fixação acerca do que significa currículo, ela
pode mudar a quaisquer instantes (só não podemos confundir com as mediações citadas
anteriormente).
1.4.2 Discurso
Laclau e Mouffe (2010) não veem distinção entre práticas discursivas e não
discursivas, concebem que todo objeto é constituído pelo discurso, ressaltam ainda que a
separação entre os aspectos linguísticos e os aspectos da prática em um contexto social são
distinções incorretas. Os autores esclarecem que pensar no sentido em que todo o objeto se
70
constitui como discurso não tem nada a ver com a existência de um mundo exterior ao
pensamento, nem com a distinção realismo/idealismo. Em um pequeno exemplo eles
demonstram essa situação: um terremoto acontece em qualquer momento independente da
nossa vontade, contudo a sua constituição como objeto resultante de um fenômeno natural ou
a ira de Deus, depende da construção discursiva.
Coadunando com essa posição Oliveira e Lopes (2011, p. 33) dizem que o “discurso é
uma consequência de práticas políticas articulatórias que unem palavras e ações, no sentido
de produzir sentidos que vão disputar espaço social.” Dessa forma o social é constituído pelo
discurso.
O discurso é uma categoria fundamental para a compreensão da realidade social. Toda
e qualquer realidade é significada, ou seja, não existe a objetividade dada e acabada. Os
sujeitos significam as coisas, dão sentidos para a realidade. Portanto o real só é real quando
significado discursivamente. Segundo Burity (2010) os autores se ancoram no discurso para
explicar que as coisas, o social, são sempre, contingente, provisórias, e os sentidos são
produzidos a todo o momento. Para Mendonça e Rodrigues (2008, p. 27),
Discurso, não dever ser entendido como um simples reflexo de conjuntos de
textos. Discurso é uma categoria que une palavras e ações, quem tem
natureza material e não mental e/ou ideal. Discurso é prática – daí a ideia de
prática discursiva – uma vez que quaisquer ações empreendidas por sujeitos,
identidades, grupos sociais são ações significativas. O social, portanto, é um
social significativo.
Nesse sentido compreender os discursos produzidos na política de currículo nos
possibilita entender qual ou quais os projetos de educação os governos estão significando,
como escolas e professores entendem o processo educativo. Unindo palavras e ações, operar
com esse sentido de discurso, podemos compreender a constituição das políticas curriculares a
partir do emaranhado de sentidos que são postos em jogo.
O discurso é para Burity (2008, p. 42), “uma unidade complexa de palavras e ações,
de elementos explícitos e implícitos, de estratégias conscientes e inconscientes”, ou seja, é a
constituição da nossa realidade. Ao assumir essa postura estamos diante de uma ação potente
para compreensão do jogo articulatório nas disputas políticas. Os sujeitos políticos ao se
envolverem na luta se articulam e produzem discursos na tentativa de hegemonizar conceitos
que os mesmos consideram importantes para a educação e para o currículo. Os discursos
71
circulantes na constituição de uma política de currículo são processos para a produção de
significantes e de significados.
Para Lopes (2006, 40),
Como todo e qualquer discurso, não são fenômenos apenas linguísticos, mas
se articulam com as práticas e as identidades dos sujeitos, bem como estão
sujeitos a mudanças e constituem um repertório que pré-configura
possibilidades para as relações sociais. Dessa forma, esses discursos, estão
imbricados com instituições, processos econômicos e culturais, normas e
técnicas que constituem as relações sociais.
A produção das políticas curriculares são ações sociais que estão marcadas por
processos econômicos e principalmente culturais, elas constituem o real discursivamente e
representam, precariamente, os sentidos do que os atores sociais nela envolvidos pretendem
construir na realidade.
1.4.3 Significantes vazios
Como mencionado anteriormente os significantes fazem parte do processo de
compreensão da nossa realidade, eles são formas simbólicas que articulados nos permitem
compreender a constituição do social. O jogo significante e significado a partir da
compreensão Lacaniana nos permite entender o mundo a partir de múltiplas relações
discursivas. Jacques Lacan constrói uma importante conceituação da relação significante e
significado a partir da Teoria de Ferdinand de Saussure, para esse a articulação entre o
significante e o significado se configura como o signo linguístico, que representa não uma
mera coisa a uma palavra, mas sim um conceito a uma imagem acústica, apesar de manter
uma relação biunívoca entre o significante e o significado, ele privilegia o primeiro; Lacan
também privilegia o significante quando apresenta o algoritmo S/s (Significante sobre o
significado), contudo o mesmo irá dizer que se caracteriza pela articulação e pela introdução
da diferença que funda os diferentes (COUTINHO e FERREIRA, 2011). É exatamente nessa
lógica que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe trabalham com a categoria significante vazio,
aquele que se constitui nas articulações e nas diferenças. Nesse jogo de linguagem precisamos
compreender a lógica dos significantes vazios.
Sobre os significantes vazios Laclau (2011, p. 67) diz que “um significante vazio é, no
sentido estrito do termo, um significante sem significado”. Há um esvaziamento dos seus
sentidos, fazendo com que ele se torne um aglutinador dentro da cadeia de equivalência. O
72
significante se torna vazio quando ele representa uma série de demandas diferentes, ou seja,
há uma grande gama de significados que se destinam a ele na luta política.
Segundo Mendonça (2009, p. 162),
O significante vazio ocorre quando um discurso universaliza tanto seus
conteúdos a ponto de ser impossível de ser significado de forma exata. Isso
se dá, segundo Laclau (1996), quando, numa prática articulatória, a cadeia de
equivalências (elementos/momentos articulados) expande polissemicamente
seus conteúdos, inflaciona-se sobremaneira de sentidos.
Laclau (2011, p. 68), diz que:
[...] um significante vazio só pode surgir se há uma impossibilidade
estrutural da significação e apenas se essa impossibilidade puder significar
uma interrupção (subversão, distorção, etc.) da estrutura do signo. Ou seja,
os limites da significação só podem enunciar a si mesmos como
impossibilidade de realizar aquilo que está no interior desses limites – se
estes pudessem significar-se de modo direto, seriam internos a significação;
logo, não seriam limites em absolutos.
O significante vazio emerge por alguns limites, e um deles é a ambivalência dos atores
sociais. Na luta política cada um possui uma identidade, o que representa as diferenças e ao
mesmo tempo todas essas diferenças se equivale, no instante que elas pertencem a um sistema
de exclusão. Nesse momento existe um significante que irá se esvaziando conforme a entrada
de outras diferenças que vão se equivalendo.
Os significantes vazios, muitas vezes, são compreendidos de forma contraditória: um
esvaziamento de sentidos ou um excesso de sentidos. Contudo, falar em significante vazio não
significa dizer que ele não tem significado, e por isso remeter a ideia de vazio, pois dessa
forma seria apenas uma sequência de sons sem sentido algum, ele representa algo. O contrário
também não pode ser sua conceituação, pois um significante vazio não se configura por uma
multiplicidade de significados, pois se assim o fosse, ele teria plenitude de significação em
algum espaço tempo discursivo.
Existe um limite para que o processo seja significado, as diferenças não conseguem
significar. Nesse instante é que surge o significante vazio, aquele que dentro da
impossibilidade, cancela as diferenças possibilitando um fechamento provisório, produzindo
73
um processo, contingente, hegemônico. Ele é dentro de uma cadeia articulatória um
significante da ausência. O que seria a ideia de “renunciar a sua identidade diferencial a fim
de representar a identidade puramente equivalencial de um espaço comunitário”
(GIACAGLIA, 2008, p. 78).
Entender os significantes dentro do contexto das políticas está ligado ao entendimento
dos sentidos que são hegemonizados provisoriamente (significantes vazios), dado os seus
limites de significação, só é no jogo político, na análise das políticas de currículo, que
podemos compreender que significantes se tornaram vazios ou não. É na disputa, nas
articulações, nas práticas discursivas, que podemos localizar quais as tendências de
hegemonizações pretendidas pelos sujeitos que estão envolvidos com uma dada política de
currículo.
Esse cenário político é compreendido por nós nesse trabalho marcado pelo processo de
significação cultural. Entendemos o currículo como um jogo político em que a cultura
entrecruza todas as relações sociais. Dessa forma, compreender os significantes vazios dentro
do contexto das políticas curriculares é ver que as pessoas e as sociedades mudam que as
identidades não estão prontas e acabadas, portanto passíveis de mudanças a qualquer
momento, e que nesse inacabamento identificatório múltiplos projetos pretendem
hegemonizar os significantes vazios (LACLAU, 2011).
74
2. A PRODUÇÃO DA POLÍTICA DE CURRÍCULO PARA A ESCOLA
ORGANIZADA POR CICLOS DE FORMAÇÃO DA REDE ESTADUAL DE MATO
GROSSO
2.1 Ciclos de Formação: uma postura pedagógica e política
Ao investigar a política de currículo discutida em nossa dissertação destacamos o local
de seu destino, de sua chegada, o espaço tempo de suas negociações, reinterpretações,
recontextualizações: a escola. Lembramos ainda que esta escola tem uma organização política
pedagógica, sustentada em concepções educacionais, estamos falando aqui na Escola
Organizada por Ciclos de Formação. Uma forma de organização escolar a qual vem sendo
debatida na rede estadual de Mato Grosso desde final do século passado. É por isso que
iremos fazer uma discussão acerca das concepções sobre Ciclos que nos orientam nessa
pesquisa.
Os Ciclos, como organização escolar, aparecem no cenário educacional com Plano de
Reforma Langevin-Wallon, elaborado pelo governo Francês pós II Guerra Mundial, com o
intuito de melhorar a qualidade do ensino, favorecimento do aperfeiçoamento dos professores,
valorização e preservação da dignidade, reconstrução dos prédios, dentre outros, já no Brasil a
organização da Escola com a denominação de Ciclos iniciou-se a partir da década de 1980,
com o Ciclo Básico de Alfabetização na rede estadual de São Paulo (MAINARDES, 2007,
2009).
Antes de pensar em Ciclos no Brasil já pairava uma preocupação com o alto índice de
reprovação e de desistência nos primeiros anos de escolaridade desde a década de 1920
(BARRETO e MITRULIS, 1999), e talvez esse fosse o grande gargalo da educação brasileira
que culminaria mais tarde na adoção de políticas que tentassem acabar com essa
problemática, dentre elas os Ciclos sob suas várias formas. Dentre os vários debates e
propostas para essa problemática se destacariam a promoção em massa proposta por Oscar
Thompson, Diretor Geral de Ensino do Estado de São Paulo em 1921; a promoção
automática destacada como uma ação de sucesso à reprovação pelo então Presidente da
República Juscelino Kubitscheck em 1957; a organização por níveis da rede estadual de
Pernambuco 1968; a promoção por rendimento efetivo da rede estadual de São Paulo em
75
1957; e os avanços progressivos na rede estadual de Santa Catarina em 1970 (BARRETO e
MITRULIS, 1999, MAINARDES, 2007, 2009).
Como já mencionado os Ciclos como forma de organização escolar apareceu no Brasil
em 1984 com a implantação do CBA, sendo a década de 1990 a propulsora de múltiplas
formas de Ciclos, destacando-se os Ciclos de Aprendizagem, Ciclos de Formação e o Regime
de Progressão Continuada (MAINARDES, 2009).
Segundo o autor os Ciclos de Aprendizagem são organizados em Ciclos Plurianuais
(dois anos, três anos ou até mais), o tempo de aprendizagem é alongado, compreendendo a
flexibilização do atendimento aos alunos que possuem formas e tempos de aprendizagens
diferentes, contudo mantém a reprovação no final de cada Ciclo, caso o aluno não alcance os
objetivos esperados. A Progressão Continuada divide o Ensino Fundamental em dois ou mais
Ciclos, geralmente propõe pouca ruptura com a Escola Seriada, bem como mudanças pouco
substanciais no currículo escolar, a reprovação muitas vezes só é eliminada do primeiro para o
segundo ano de escolaridade. Já os Ciclos de Formação propõe uma ruptura mais radical com
o modelo Seriado, baseia-se nos ciclos de desenvolvimento humano, sendo os alunos sempre
agrupados pelas idades, sua operacionalização é complexa e exige um grande trabalho
coletivo (MAINARDES, 2009).
Os Ciclos como forma de organização da Escola de Ensino Fundamental não é uma
novidade contemporânea no cenário educacional Brasileiro, contudo como aponta pesquisa de
Souza e Barreto (2004) eles ainda são a minoria na forma de organização do ensino, mesmo
apresentando uma postura crescente em todo o país. Outro ponto importante ao se discutir os
Ciclos é a sua gama de conceituações e intencionalidades que giram em torno da propositura
de forma de organização escolar.
A rede estadual de Mato Grosso vem desde 1996 implantando novas formas de
organização para o Ensino Fundamental,
Uma das alternativas foi posta em prática em 1996, com a experiência piloto
Projeto Terra, implantada em 22 escolas rurais, tinha como fundamento a
organização em ciclos de formação. Em 1997, a SEDUC implantou a
segunda experiência: o Ciclo Básico de Alfabetização, nos dois primeiros
anos do ensino fundamental de todas as escolas, tendo por finalidade
promover automaticamente o aluno no processo de alfabetização. Entre os
anos de 2000 e 2002, a Secretaria de Educação implantou os ciclos de
76
formação para todo o ensino fundamental que, desde então, passou a ser de
nove anos (BORDALHO, FERNANDES e MENEGÃO, 2007, p. 169).
Em nossa pesquisa defendemos que a Escola Organizada por Ciclos de Formação
possa ser uma das possibilidades mais profícuas para o Ensino Fundamental, pois possibilita
um movimento constante de luta pela democratização, pelos múltiplos projetos de sociedade,
pela valorização do ser humano, um espaço de resistência às injustiças no mundo. Assumimos
dessa forma que a política curricular dentro desse espaço tempo precisa reconhecer as
relações de poder no processo de formação de identidades sociais.
Freitas (2003) defende que a problematização das relações de poder dentro das escolas
organizadas por Ciclos assumem sua complexidade, pautando-se na noção de formação e não
apenas na instrução, na introdução do desenvolvimento humano como ponto importante para
a organização, na reflexão crítica sobre o mundo, dentro outros pontos.
É nessa esteira que acreditamos que possa ajudar a construir um processo educacional
que compreenda as significações culturais advindas de cada sujeito pertencente a um
determinado espaço tempo escolar, ou seja, uma postura dos Ciclos de Formação em que as
concepções políticas e pedagógicas não se distanciam, mas se aglutinam em um constante
movimento de embates, de lutas, de forma que a escola não seja um bloco monolítico de
reprodução de uma sociedade elitizada. Como salienta Freitas (2002, p. 320):
A luta por uma escola para todos somente poderá ser consequente quando a
escola for, além de um local de aprendizagem, um local de tomada de
consciência e de luta contra as desigualdades sociais em estreita relação com
os movimentos sociais emancipatórios, quando então a escola encontrará seu
lugar formativo/instrutivo no nosso tempo. Além de conteúdo, a escola deve
ensinar novas relações com as pessoas e com a natureza. Mais do que nunca,
temos que saber ler as medidas que estão sendo propostas usando um
instrumental teórico que nos permita desvelar as reais intenções e as práticas
das atuais políticas públicas e armar a resistência.
Assumindo uma postura política e pedagógica de luta por projetos diversos, a Escola
Organizada por Ciclos de Formação ancora-se em uma concepção de sociedade e de
educação, que preza pela posição crítica sobre o mundo, com ruptura ao currículo
enciclopédico, que flexibiliza os tempos formativos, que organiza o trabalho coletivamente,
77
que acredita no processo democrático de acesso, permanência e qualidade da educação
pública (FREITAS, 2002b, ALAVARSE, 2009, FERNANDES, 2012).
Dessa forma “trata-se de politizar as soluções organizativas da escola e levar ao
extremo suas possibilidades” (ALAVARSE, 2009, p. 38). Assim, as transformações
curriculares que constroem as identidades escolares, não podem ser apenas nominalistas, mas
precisam romper com lógicas excludentes e caminhar em direção a produções de políticas de
currículo que ampliem as possibilidades de participação de todos e todas dentro da escola.
A Escola Organizada por Ciclos de Formação ao buscar formas de participação e
eliminação da exclusão da diversidade promove a compreensão da educação como direito de
todos, atendendo às múltiplas necessidades dos alunos, articulando politicamente e
pedagogicamente as demandas culturais trazidas de múltiplos espaços e tempos de vivências
dos alunos (JACOMINI, 2009).
Ancorados em Freitas (2003), Barreto e Souza (2004), Mainardes (2009) e Fernandes
(2012), acreditamos que a organização da escola por Ciclos de Formação não pode ser vista
como uma mudança apenas no tocante à forma de organização das turmas e dos alunos, pois
essa organização há uma grande e complexa mudança na cultura política pedagógica de cada
unidade escolar. Dentre essas mudanças, uma das mais radicais está na política curricular
construída ao pensar as concepções educacionais, já sinalizadas anteriormente.
O currículo na Escola Organizada por Ciclos de Formação se potencializa quando sua
organização e produção assumem um caráter provisório, uma articulação entre os
conhecimentos e as vivências culturais e sociais dos alunos, promove integração curricular,
rompe com a lógica de seletividade cultural elitizada, promove a democratização nas práticas
pedagógicas, problematiza a diferença cultural, quando possibilita ser pensado como política
cultural pública.
2.1.1 A escola organizada por Ciclos de Formação na rede estadual de Mato
Grosso
A proposta da Escola Organizada por Ciclos de Formação na rede estadual de Mato
Grosso vem sendo construída a partir de 1996, desde então muitas discussões vêm sendo
78
travadas para a sua compreensão e construção de práticas pedagógicas em cada contexto
escolar.
Na intenção de romper com as rígidas séries e os seus processos de exclusão,
principalmente a retenção, os movimentos de implantação do Projeto Terra em 1996 e do
CBA em 1997 organizados pela SEDUC/MT promoveu a produção da primeira proposta
pedagógica da Escola Organizada por Ciclos de Formação na rede estadual de Mato Grosso,
tendo como fruto desses processos a publicação do documento no ano de 2001: Escola
Ciclada de Mato Grosso – novos tempos e espaços para ensinar, aprender a sentir, a ser e
fazer (MENEGÃO, 2008, BORDALHO, 2008).
Neste documento é apresentada a forma de organização da Escola Organizada por
Ciclos de Formação, contendo as concepções de Ciclos, as possibilidades de construção
curricular, metodológica e avaliativa, bem como outras questões pedagógicas.
O capítulo I dedica-se a contextualização da Escola Organizada por Ciclos na rede
estadual, discutindo a trajetória do processo de sua implantação. Destaca-se a concepção
ampla de garantir a educação como direito subjetivo, promovendo o amplo acesso e
permanência dos estudantes na escola, propondo o rompimento com a escola organizada em
séries (MATO GROSSO, 2001). Essa preocupação não residia apenas a essa concepção, pois
sendo um governo neoliberal (PSDB) destacamos aqui que o mesmo se ancora em uma
necessidade de proferir um discurso inovador para manter-se no governo.
Em seu segundo capítulo o livro dedica-se a uma discussão necessária para a escola
organizada por Ciclos de Formação: os ciclos de desenvolvimento humano e a sua estrutura
organizacional. O texto da política de Ciclos destaca que “o redimensionamento da educação
escolar de crianças e adolescentes pressupõe a compreensão dos significados atribuídos à
infância e à adolescência na esfera da cultura e da vida social contemporânea” (MATO
GROSSO, 2001, p. 30), evidenciando a sua atenção na relação entre Ciclos de Formação e
desenvolvimento humano nesta fase de escolarização (infância, pré-adolescência e
adolescência).
Em seguida a proposta trata da estrutura dos Ciclos de Formação, discutindo temas
como a progressão, a enturmação, a forma de organização dos profissionais da educação e a
retenção. Este último ponto é alvo de grandes discussões, pois assume uma concepção que vai
de encontro com os Ciclos de Formação. Assim como Brandini (2011), consideramos este
79
ponto como um processo de hibridação entre Ciclos de Formação e Ciclos de Aprendizagem,
pois há a organização ancorada nos ciclos de desenvolvimento humano, pressuposto dos
Ciclos de Formação, sendo ao mesmo tempo permitida a retenção no final de cada ciclo,
pressuposto dos Ciclos de Aprendizagem.
No capítulo III da proposta são debatidas as questões curriculares. Propõe-se a
organização por Área de Conhecimento, trazendo as concepções dos componentes
disciplinares, evidenciando a importância da interdisciplinaridade, propondo o fim das
listagens de conteúdos (MATO GROSSO, 2001). A concepção de currículo vem do
movimento da teoria crítica refletindo a todo o momento as relações de emancipação dos
sujeitos a partir da escolarização, contudo, embora não traga listagem e nem quadros de
conteúdos, hibridiza-se a concepções tecnicistas de currículo, fundamentando-se em Cesar
Coll e nos PCNs. Mesmo apresentando essa problemática acreditamos que esta proposta
possibilita uma maior flexibilização na construção curricular do que a proposta publicada
recentemente, que se apresenta mais endurecida.
Além disso, este texto traz como propostas metodológicas para organização curricular
os Temas Geradores, Complexo Temático, Pedagogia de Projetos e Unidades Temáticas
(MATO GROSSO, 2001), deixando que as escolas debatessem e fizesse a escolha da melhor
proposta para cada unidade, diferente das Orientações Curriculares, publicadas em 2010, que
trazem apenas o Complexo Temático como proposta metodológica para a Escola Organizada
por Ciclos de Formação.
Na última parte do documento são tratadas as concepções de avaliação que coadunem
com a Escola Organizada por Ciclos de Formação. Além da descrição de instrumentos
avaliativos, a proposta discute a importância da avaliação reflexiva, pautada na emancipação
dos sujeitos (MATO GROSSO, 2001).
A política curricular para/na Escola por Ciclos de Formação é complexa e exige um
debate permanente em sua construção, tendo os professores e professoras a considerá-la como
um processo em constantes negociações culturais para a sua efetivação. Nesta proposta
inicial, publicada nesse texto político em 2011, o currículo é dado com um ponto importante
para a construção de uma educação democrática, contudo, como podemos ver apresenta
limitações, como a citada acima.
80
Com o início da reformulação da proposta curricular para a Educação Básica em
2007/2008 a SEDUC/MT, o grupo que estava a frente do processo de produção da proposta
também começa um movimento de (re) pensar o texto curricular do Ensino Fundamental
Organizado por Ciclos de Formação, processo que encaminhou a produção do texto curricular
das Orientações Curriculares em 2010.
2.2 A Produção e as Influências na emergência da Política Curricular para a
Escola Organizada por Ciclos de Formação de Mato Grosso
2.2.1 EIXO 1 – A produção do texto da política curricular
a) O processo de construção dos textos das orientações curriculares
Os professores e professoras da rede estadual de ensino de Mato Grosso contam desde
2010 com uma série de documentos que orientam a produção e organização curricular em
suas escolas. No dia 27 de setembro de 2010 no auditório da Escola Superior do Tribunal de
Contas do Estado de Mato Grosso foi lançada a nova política de currículo para toda a
Educação Básica da rede estadual. A disponibilidade dos documentos, a partir dessa data, foi
através do site da SEDUC/MT (www.seduc.mt.gov.br). A versão impressa dos documentos
somente chegou às unidades escolares a partir de 2012 (MATO GROSSO, 2012, site da
SEDUC/MT – Notícias).
Dessa maneira iremos discutir o processo de produção dos documentos da política
curricular para a Escola Organizada por Ciclos de Formação. Traremos o processo como um
todo, apresentando e debatendo as etapas de produção, buscando articular esse processo ao
nosso objeto, que reside na discussão do currículo para a Escola Organizada em Ciclos de
Formação, a fim de refletirmos como o mesmo foi pensado durante a produção da política
curricular. Debateremos as articulações, os discursos e os significantes relevantes dentro desse
processo no tocante ao ensino fundamental, tentando fazer um movimento em busca das
intencionalidades políticas e pedagógicas.
81
A partir da década de 1990 muitos investimentos no campo educacional foram postos
no Brasil. Tais investimentos vieram carregados de lutas de poder, além de muitas críticas e
controvérsias. Organismos como Banco Mundial e OCDE injetaram verbas em muitos países
para o fortalecimento educacional e uma das determinações destes organismos aos governos
era a produção de documentos orientativos para a organização e produção curricular. No
Brasil a produção dos PCNs para o Ensino Fundamental publicado em 1997 foi um grande
marco desse processo. Ademais, outra determinação era que os Estados da Federação também
se organizassem para produção e publicação de documentos próprios.
Como nos salienta Ball (2001) é inevitável com o processo de globalização que as
políticas nacionais ou estaduais não sofram as influências advindas de vários lugares no
globo, elas sofrem uma processo de “bricolagem”, um processo de empréstimo e de recortes
de outros lugares, e são marcadas por influências das agências financiadoras de políticas
educacionais e curriculares, como no caso brasileiro, como podemos ver.
Nesse mesmo movimento de produção, nesse fluxo de proposição de políticas
educacionais, Mato Grosso em 1998 também propõe a produção de textos curriculares.
Primeiro com a publicação do livro para o Ensino Médio: Novas perspectivas para o Ensino
Médio em Mato Grosso, coordenado pelo Prof. Dr. Antonio Carlos Maximo e Acácia Zeneida
Kuenzer. Documento que de certa forma não obteve tanto impacto na rede, pois os produtores
dos documentos eram todos do Estado do Paraná, fato que provocou certo distanciamento das
realidades sociais, culturais, econômicas, políticas do Estado do Mato Grosso (Entrevista com
GST).
Em 2000 o governo do Estado de Mato Grosso assume depois de vários momentos de
debates com a sua rede de ensino (via Projeto Terra, Projeto CBA e Projeto PEC, citados
anteriormente) a proposta de organizar o Ensino Fundamental por Ciclos de Formação. Essa
foi e ainda está sendo uma nova forma de organização da escola que trouxe desafios de como
pensar as questões curriculares de forma mais flexível, bem como uma possibilidade de
formação de sujeitos críticos e emancipados (FERNANDES, 2012).
Nesse momento foi construída uma proposta com pressupostos pedagógicos para a
organização escolar em geral, discutindo os papéis dos profissionais como: professor regente,
professor articulador, o coordenador pedagógico, dentre outros, o processo avaliativo e
metodológico. A questão curricular assumiu uma parte importante, trazendo uma reflexão em
torno das áreas do conhecimento e das disciplinas. Do debate entre as escolas e a SEDUC/MT
82
nasceu o texto oficial publicado no livro Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e
espaços para ensinar – aprender a sentir, ser e fazer. Esse texto oficial destaca em seu
terceiro capítulo a concepção de currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação
(MATO GROSSO, 2001), que foi de certa maneira pouco trabalhada pela própria Secretaria
de Educação (FERNANDES, 2012).
Enredados por uma série de discursos circulantes a nível nacional, somados aos
discursos dos professores e professoras da rede estadual da necessidade de documentos
orientativos, mais a necessidade de (re) pensar as propostas produzidas anteriores (citadas
acima), bem como das demandas de trabalho formativo oriundos da Superintendência de
Formação dos Profissionais da Educação, a Superintendência de Educação Básica em meados
de 2007 assume a responsabilidade da produção de novos documentos para a orientação
curricular das escolas da rede estadual (Entrevista com GSA).
A tomada de decisão para a produção da política curricular se deu pelo
posicionamento da Superintendente de Educação Básica da época, Profa. Aidê Fátima de
Campos, como podemos ver no trecho abaixo:
Eu disse a professora Rosa Neide que era nossa Secretária Adjunta que nós
faríamos. Eu vi essa necessidade porque eu era da superintendência de
formação em 2006, e quando eu estive lá por um ano em 2006, o tempo
todas as colegas da SUFP diziam que não tínhamos como discutir formação
se não tínhamos os parâmetros que deveriam vir da superintendência que
deveria discutir currículo, então de certa forma já havia uma cobrança
interna por parte da superintendência que a SUEB deveria dar o tom
(Entrevista com GSA).
Percebemos nesse sentido que houve um jogo articulatório em que a Superintende da
Educação Básica inicia entre os membros de sua Equipe Pedagógica da SUEB, e enreda a
Secretária Adjunta de Políticas Educacionais (cargo estratégico de deliberações pedagógicas e
financeiras), assumindo assim após entrar na articulação o discurso da necessidade de se
produzir um documento que desse o tom para todo o acompanhamento das escolas da rede.
Essa articulação é feita a partir das necessidades de outras equipes, bem como a forte
marca de estar coadunando com os propósitos do governo federal. É importante salientar que
todo esse movimento inicial se deu para a produção de um documento curricular para o
83
Ensino Médio, somente depois de algumas discussões que se torna concreto a política
curricular para toda a Educação Básica (Entrevista com GST).
Com o discurso de integração da Educação Básica começou-se a ideia de produzir um
documento integrando a Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio,
A princípio a gente tava organizando cada qual na sua etapa, educação
básica, ensino fundamental e ensino médio, e depois houve uma parada pra
refletir, porque se a educação básica ela é dividida em etapas, é uma
continuidade, então pra tentar aproximar mais de uma prática
verdadeiramente é que se buscou essa integração (Entrevista com GSAS).
[...] uma proposta que se iniciaria do ensino infantil até o ensino médio, mas
a proposta não deu conta de incorporar a educação infantil por ausência de
profissionais para discuti-la (Entrevista com GSA).
Como podemos perceber foi produzido um discurso com a necessidade de se produzir
um documento integrando toda a Educação Básica, contudo no texto curricular a Educação
Infantil acabou não aparecendo como salientado no último trecho acima, fato que de certa
forma constitui uma falha.
Com relação ao ensino fundamental, mais precisamente acerca da Escola Organizada
por Ciclos de Formação, já havia na SEDUC/MT uma discussão interna iniciada em 2005,
sendo tomada a decisão de reestruturação da Política de Ciclos em Mato Grosso (BRANDINI,
2011), o que gerou a produção de vários documentos de (re) organização da escola, através de
Portarias e Instruções Normativas elaboradas a partir desse movimento. Foram debatidas as
temáticas relacionadas à organização da Articulação, da Sala de apoio pedagógico, da
permanência do mesmo professor em uma única turma dentro de cada ciclo, dentre outros
mecanismos importantes. Contudo, mesmo a Equipe do Ensino Fundamental, pensando e
organizando tais documentos, muitas vezes outros setores da própria SEDUC/MT não
coadunavam com as mesmas proposituras, o que levava muitas vezes a uma dificuldade de
implantação (dos mecanismos citados acima) da Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Mesmo após o Ensino Fundamental já ter iniciado um movimento de (re) estruturação
dos Ciclos de Formação, onde o currículo tinha uma parte significativa, a SEDUC/MT inicia
somente em 2007 as discussões internas com as equipes da Educação Básica num movimento
de produção da política curricular para toda a Educação Básica.
84
Inicialmente, estas discussões centraram-se na Equipe do Ensino Médio. Alguns
membros da Secretaria pensaram, junto a Superintendente da Educação Básica, a necessidade
de contratação de uma consultoria externa para pensar a produção da proposta. Fruto desses
debates foi a definição de viagem da Equipe do Ensino Médio à Secretaria de Estado de
Educação do Paraná, a qual vinha de um movimento de produção de documentos curriculares,
bem como manter contato com a Profa. Dra. Acácia Kuenzer. Essa escolha, de ir ao Paraná,
deu-se por dois motivos: o primeiro pelos trabalhos desenvolvidos pela professora Acácia em
momento anterior e o segundo por ela fazer parte do grupo que estava pensando as diretrizes
curriculares para o País (Entrevista com GSA).
Isso nos mostra as relações de poderes oblíquos existentes no campo educacional, uma
vez que a consultora foi contratada por vários motivos, contudo destacamos nesse momento
as questões referentes ao campo que lhe conferiu posteriormente o poder de definições de
toda a organização da política curricular, principalmente o fato de que a mesma desenvolvia
trabalhos junto ao MEC.
Depois de aceitar o convite para produção da política curricular a Profa. Acácia
Kuenzer sugeriu que a SEDUC/MT contratasse professores consultores do Estado de Mato
Grosso, a fim de permitir que os documentos tivessem as especificidades culturais, políticas e
sociais da região. A fim de não correr o risco de realizar um trabalho que tivesse as
características de outros espaços tempos, afastando-se mais uma vez das especificidades de
Mato Grosso, a sugestão foi acatada pela SEDUC/MT (Entrevista com GST).
Na intenção de promover uma proposta articulada com as escolas, a SEDUC/MT
promoveu um primeiro encontro com os consultores contratados para a produção,
acompanhamento e assessoramento das disciplinas, eram Professores da Universidade Federal
de Mato Grosso, Universidade do Estado de Mato Grosso e Professores da SEDUC/MT sede
e dos Cefapros. Esse encontro foi realizado em Cuiabá-MT em abril de 2008 e teve como
ponto fundamental a discussão das linhas gerais de orientação do processo de construção das
concepções de educação para todas as etapas e modalidades, bem como as orientações das
consultoras que iriam coordenar inicialmente todo o processo: Profa. Dra. Acácia Kuenzer e
Profa. Dra. Jorcelina E. Fernandes (SEDUC/MT, 2008 - Documento Sistematizador do
Encontro).
Nesse momento foi apresentado aos consultores das disciplinas que a política
curricular teria um documento introdutório com as concepções teórico, filosóficas e
85
metodológicas que norteariam as diretrizes pedagógicas da educação básica e modalidades,
texto construído pela Profa. Dra. Acácia Kuenzer.
Nesse primeiro momento a ideia da SEDUC/MT era produzir um documento que
articulasse as três etapas da Educação Básica: Educação Infantil, Ensino Fundamental e
Ensino Médio, mostrando para os professores e professoras da rede uma visão de integração e
não de etapas fragmentadas (SEDUC/MT, 2008 - Documento Sistematizador do Encontro).
Contudo, no desenrolar do processo de produção a Educação Infantil não foi posta em cena,
tendo os documentos a discussão apenas sobre Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Em 2008 por motivo de estar em outra consultoria na produção de um documento para
a Escola Organizada por Ciclos de Formação (processo iniciado em 2006) a Profa. Dra.
Jorcelina E. Fernandes se afasta da consultoria das Orientações Curriculares para se dedicar
somente a esse primeiro trabalho (Entrevista com GSA). Nesse momento esta consultora
orienta a SEDUC/MT a contratar um especialista em Alfabetização para o acompanhamento
da construção dos Documentos para o Ensino Fundamental. Esse fato leva a SEDUC/MT a
colocar a Profa. Dra. Acácia Kuenzer como consultora geral da política curricular, a qual iria
orientar a todos os demais consultores, bem como contratar a Profa. Dra. Martha Lourenço
Vieira da Universidade Federal de Minas Gerais para tratar das especificidades da
alfabetização, no ensino fundamental.
Embora as intenções das SEDUC/MT fosse a organização, sistematização e
distribuição dos documentos ainda em 2008 este ano foi reservado aos debates entre
consultores e professores e dirigentes da Secretaria, sem envio às escolas. A Profa. Dra.
Acácia Kuenzer escreveu o documento preliminar com as concepções de Educação e os
professores consultores das disciplinas se destinaram a escrever os documentos em três
grandes áreas: Ciências Humanas, Linguagens e Ciências da Natureza e Matemática.
Além dessa organização para as etapas da Educação Básica, também foram
construídos textos orientativos para as Modalidades e Especificidades: EJA, Educação
Especial, Educação Escolar Indígena, Diversidade, Educação do Campo. A produção desses
documentos tiveram caminhos muito peculiares, cada um com sua trajetória.
Esse primeiro documento (mencionado anteriormente) só foi enviado às escolas no
início de 2009, primeiramente via e-mail e posteriormente impresso. A partir da leitura desse
primeiro documento as escolas deveriam realizar discussões e encaminhar à SEDUC/MT
86
sugestões de alterações e/ou acréscimo de outras proposituras. Conhecido como Caderno
Amarelo, a primeira parte foi encaminhada no dia 03 de abril de 2009 às escolas estaduais.
Depois desse envio a Secretaria organizou o dia “D” das Orientações. Neste dia todas as
escolas públicas estaduais deveriam realizar uma mobilização para estudos, debates e
sistematização de propostas a serem encaminhadas para a SEDUC/MT (MATO GROSSO,
2009, site da SEDUC/MT – Notícias).
Esse movimento foi repleto de confusões e conflitos. Muitas escolas não realizaram os
encontros. Outras acharam um dia extremamente ilusório para as discussões. Algumas
encaminharam até mesmo resumos para a SEDUC/MT. Comungamos com as escolas que se
puseram contra o movimento de um dia apenas para um documento tão importante para as
práticas pedagógicas dos professores e professoras.
As unidades escolares receberam uma carta da SEDUC/MT com orientação para que
houvesse uma articulação com toda a Comunidade Escolar para a leitura e debate do texto
preliminar. Contudo, cada escola teve suas formas de organização. Em alguns casos, as
escolas convocaram apenas os professores, dispensando a presença dos demais profissionais e
alunos, realizaram uma divisão do número de professores pelo número de páginas do texto, e
cada um deveria fazer um resumo de sua parte, cabendo posteriormente ao Coordenador da
escola encaminhar o resumo completo à Secretaria. Em outros casos as unidades escolas
conseguiram travar uma discussão ampla com a sua Comunidade Escolar, realizando um
debate sobre como o texto curricular poderia colaborar com a formação dos sujeitos da escola.
Em suma, podemos dizer que foi um movimento com poucos dias, limitando-se em alguns
casos a uma discussão mais ampla, pois com o tempo reduzido muitas escolas não
conseguiram terminar a leitura e nem fazer o debate de todo o texto.
Depois dessa etapa a produção das Orientações Curriculares dirigem as atenções à
produção dos documentos por área do conhecimento, construídos preliminarmente pelos
consultores das disciplinas. Nessa etapa as discussões iniciais foram internas entre os
membros da SEDUC/MT, professores consultores das Universidades e a Profa. Dra. Acácia
Kuenzer. Um movimento articulado com as escolas só retornaria em 2010.
Como podemos ver, nas primeiras fases de produção da política curricular não há uma
preocupação em discutir as questões referentes à Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Embora houvesse alguns discursos proferidos pelos consultores e por gestores da SEDUC/MT
circulando nos meandros do processo, pouco de fato se discutiu acerca da articulação entre as
87
concepções de Ciclos de Formação e a propositura da política de currículo. A preocupação foi
dada principalmente aos conhecimentos disciplinares e suas possíveis integrações em áreas de
conhecimento.
No que se refere aos Ciclos de Formação, há na política de currículo um texto
encomendado ao Prof. José Clovis do Rio Grande do Sul. Tal texto apresenta a perspectiva da
Escola Cidadã (proposta construída em Porto Alegre – Rio Grande do Sul), com suas
características pedagógicas e políticas. É um texto bem fundamentado, contudo de certa forma
se distancia da realidade mato-grossense. Foi feito um convite para que este professor
escrevesse sobre os Ciclos de Formação, mesmo sem o mesmo ter vindo ao Estado travar uma
discussão com os professores consultores, bem como com nenhum professor ou professora da
rede estadual, como podemos ver no trecho abaixo:
[...] pra discutir o Ciclo, a concepção de ciclo também, a gente procurou o
professor José Clovis da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que
atualmente está como secretário do estado... foi tido com ele uma conversa, e
como a gente precisava escrever a concepção de ciclo de forma objetiva, de
forma clara, e ele é um estudiosos de Ciclo no país, então foi convidado o
professor José Clovis (Entrevista com GSR).
O Prof. José Clovis não participou do movimento de produção da política de currículo
para a Escola Organizada por Ciclos de Formação, ele apenas escreveu sobre os Ciclos e suas
concepções, sem haver um diálogo com os demais produtores consultores. É como se
apresentasse um texto, mas que ninguém poderia mudar o que está colocado, sem tocar o
movimento articulatório de produção na política curricular, e isso a nosso ver é um ponto
negativo, pois ficou desarticulado com a proposta.
Após muitas discussões internas da SEDUC/MT em 2009, a Superintendência de
Educação Básica, através da Coordenadoria de Ensino Fundamental – Profa. Janaína Pereira
Monteiro retoma os debates com as escolas. Esta Coordenadoria sistematiza e organiza o
processo final de produção das Orientações Curriculares para toda a Educação Básica
(Entrevista com GCA e GSJ).
Com os documentos preliminares das disciplinas, organizadas em Áreas de
Conhecimentos construídos, a Secretaria encaminha às unidades escolares, via e-mail, no final
de maio de 2010, para apreciação e discussões internas em cada escola (Entrevista com GSA).
88
A orientação dada era de que fossem utilizadas as horas de trabalho pedagógico – as 10 horas
atividades para os primeiros debates (SEDUC/MT, 2010 - Carta de Orientação às escolas).
Contudo, um problema foi lançado a esta proposta, pois grande parte dos professores da rede
estadual é contratada temporariamente e não possui tais horas. Isso gerou um desconforto
dentro de muitas escolas. Fato não solucionado pela Secretaria. As escolas tiveram todo o mês
de junho para a realização destes primeiro estudos, que culminou de um debate coletivo de 30
de junho a 02 de julho (MATO GROSSO, 2010, via site SEDUC/MT – Notícias).
Semanalmente os professores deveriam se organizar durante as horas atividades fora
de classes de aulas, para o estudo e debate da segunda parte do texto curricular. Destacamos
que mais uma vez o Ciclo de Formação não foi tratado diretamente nesses momentos, pois
essa segunda parte trata das concepções disciplinares e tenta propor uma articulação por Área
de Conhecimento.
Destes estudos, cada escola selecionou membros para participar e representar a sua
unidade em um Seminário Municipal das Orientações Curriculares. Todos os municípios do
Estado de Mato Grosso organizaram encontros sob a coordenação das Assessorias
Pedagógicas. Os representantes das escolares levaram para estes encontros municipais todas
as sugestões, acréscimos ou supressões que a escola de origem havia debatido em estudos
anteriores. O mês de julho de 2010 foi reservado para que estes Seminários Municipais
fossem realizados. Após os debates nestes encontros, foram produzidos um documento de
cada município, com suas sugestões e outros encaminhamentos. Este processo foi
sistematizado por membros dos Cefapros (Entrevista com GSJ).
Assim como os estudos nas escolas, os Seminários Municipais também foram
conturbados, conflituosos e profícuos. Muitos Seminários Municipais tiveram uma discussão
muito distante do esperado para a construção da proposta da política de currículo em
construção. Discussões em torno de salários, infraestrutura, eram evidenciadas a todo o
momento. Não que isso não fosse importante, mas a propositura a ser debatida e refletida
girava em torno de questões curriculares. O inverso também é verdadeiro. Boas discussões em
torno de questões curriculares pertinentes foram travadas, principalmente em torno de
temáticas como diversidade e as tecnologias da informação e comunicação, que não estavam
presentes diretamente nos texto curriculares (MATO GROSSO, 2010 – Relatório GTs).
Estes Seminários tiveram seus relatórios encaminhados aos Seminários Regionais. A
partir da leitura de alguns dos quadros sistematizadores dos Seminários Municipais podemos
89
detectar a presença de algumas discussões acerca de uma necessidade de se pensar a Escola
Organizada por Ciclos de Formação, contudo não diretamente as questões curriculares, mas à
organização e funcionamento geral dessa escola.
Destes Seminários foram eleitos representantes de cada município para a participação
no Seminário Regional, a mesma lógica esperada entre os Estudos Internos nas Escolas e o
Seminário Municipal deveria ser feita entre o Seminário Municipal e o Seminário Regional.
Foram organizados 15 Seminários Regionais no Estado (um em cada polo Cefapro) sob a
responsabilidade dos Gestores dos mesmos. Estes seminários aconteceram na primeira
quinzena de agosto de 2010. Foram debatidos nestes encontros os documentos provenientes
dos Seminários Municipais. As sugestões eram votadas e definidas pelos representantes.
Mais uma vez os membros dos Cefapros tinham nesse evento a responsabilidade de
sistematização de um documento do seu polo, de forma a representar os desejos provenientes
das cidades que o compunha (Entrevista com GSJ).
A intenção nesse processo foi de promover a construção de uma política com cunho
democrático representativo. Acreditamos que essa tentativa democrática seja importante,
contudo acreditamos na democracia radical, que requer uma ampla arena de negociação de
sentidos, de disputas, em que o antagonismo se transforme em agonismo, em que inimigos
sejam vistos como adversários (MOUFFE, 2011), sendo este espaço tempo destinado às
discussões dos textos da política extremamente limitados, fato que nos leva a pensar em uma
possibilidade de que se pretendeu democrática, mas que não se efetivou nesses seminários de
forma ampla.
Uma problemática vista nesse processo foi exatamente a representação. O que
significa representar? Será que os membros conseguiam representar? Os desejos de cada
escola foram representados? São questões extremamente complexas que possuem uma carga
de poder muito grande. A representação é algo tão subjetivo que muitas vezes escapa da sua
legitimação final, provocando certo descolamento do que iria representar, por isso muito
difícil de acontecer (LOPES, 2012).
Após todo esse processo foram reunidos em Cuiabá um Grupo de Sistematização para
organização dos quinze documentos provenientes dos Seminários Regionais. Esses Grupos de
Trabalhos (GTs) foram formados por membros da SEDUC/MT sede e professores
Formadores dos Cefapros. Estes GTs tiveram a grande responsabilidade de dialogar com os
90
Professores Consultores produtores dos documentos das Áreas de Conhecimento, a partir dos
documentos vindos dos Seminários Regionais.
Foi dada uma responsabilidade grande aos GTs, que deveriam ser excelentes
professores para essa atividade. Mas, uma pergunta se faz necessária: como foram escolhidos
os membros destes GTs? Primeiramente foram selecionados internamente pelas
Coordenadorias e pela Superintendência da Educação Básica os Técnicos Pedagógicos da
SEDUC/MT mais envolvidos no processo de produção da política curricular. Já os membros
dos Cefapros foram selecionados a partir da participação no Encontro Formativo dos Cefapros
dedicado aos estudos e debates das Orientações Curriculares. A SEDUC/MT observou e
convidou os professores formadores que tiveram maiores intervenções e participações nos
debates sobre as Orientações Curriculares no Encontro realizado em março de 2010
(Entrevista com GSJ).
Foram organizados quatro GTs: Linguagens, Ciências Humanas, Ciências da Natureza
e Matemática e Alfabetização. Os membros dos GTs realizavam a leitura dos documentos
vindos dos Seminários Regionais e logo após faziam uma discussão com o consultor de cada
texto. A proposta era de que a partir deste dialogo o Professor Consultor fizesse os ajustes
para adequar aos anseios dos professores da rede estadual de todo o Estado. Esse momento foi
tenso e conflituoso, o que para nós é extremamente importante para o processo democrático.
Em algumas áreas não foram encaminhadas sugestão alguma, em umas só foram
encaminhadas reclamações acerca do processo salarial. Sendo assim, uma das discussões nos
GTs era o processo de “limpeza” do que fosse importante para a produção do documento de
Orientações Curriculares (Entrevista com GSJ e GSAS). Reiteramos como anteriormente que
as demandas sobre salário e outros são importantes, contudo para outro cenário.
Embora um dos GTs de sistematização final das Orientações Curriculares fosse
formado por um grupo de Pedagogas, que ficaram responsáveis pelo debate do Ensino
Fundamental, mais uma vez a discussão acerca do currículo para uma escola que está
Organizada por Ciclos de Formação ficou distanciada desse processo. As discussões estavam
centradas nos saberes disciplinares.
Acreditamos que a participação desse grupo de Professores Pedagogos foi importante
para a produção da política curricular, pois são professores dessa formação que lidam com as
especificidades das crianças na infância e na pré-adolescência, portanto fundamentais para a
discussão da construção de propostas pedagógicas para os mesmo, contudo o foco dos GTs
91
eram as sistematizações dos campos disciplinares e não a produção de um currículo que iria
ser destinado às Escolas Organizadas por Ciclos de Formação. E tal temática é fundamental
para esse processo, uma vez que a propositura curricular se destina a um espaço tempo, que
no caso da rede estadual de Mato Grosso é a Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Percebemos que esse ponto reforça o que salientam Macedo e Lopes (2002) a estabilidade
disciplinar no currículo escolar, ou seja, mesmo com um grupo amplo de profissionais de
diversas áreas tentando realizar um trabalho integrado, os saberes e o poder disciplinar ainda
imperam na produção de uma política de currículo.
Outro ponto refere-se às fronteiras entre os membros dos GTs e os Professores
Consultores. As discussões com alguns Consultores foram desgastantes, pois os mesmos não
aceitavam as alterações advindas dos Seminários Regionais. Alguns dos consultores até
mesmo se afastaram do processo, caso de Educação Física e Sociologia. Contudo, embora
tenham ocorrido estes percalços na maioria dos casos as mudanças foram recebidas
positivamente, sendo a maioria aberta às alterações propostas (Entrevista com GSAS).
Esse movimento de discussões nos GTs durou aproximadamente dois meses (agosto e
setembro). Depois destes trabalhos o texto da política curricular foi publicado oficialmente em
27 de setembro de 2010. Inicialmente os textos foram disponibilizados no site da
SEDUC/MT, e só foram encaminhados às unidades escolares no formato impresso em 2012
(MATO GROSSO, 2010, via site SEDUC/MT – Notícias).
De todo esse movimento, consideramos que a falta de discussões acerca dos
significados de construção do currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação foi
um dos pontos mais problemáticos, pois isso diminuiu a possibilidade de efetivação de uma
política de currículo que atendesse aos princípios de produção autônoma das escolas, tentando
enquadrar o movimento que a construção curricular necessita.
O processo de produção foi longo, do início das ideias em 2007 à chegada dos
documentos às escolas em 2012 foram feitas e (re) feitas várias articulações em torno da
necessidade de se produzir esta política curricular. Desse movimento de produção podemos
captar vários discursos como: foi o tempo necessário para se produzir um documento
educacional; a produção foi longa devido à participação de todos os profissionais da educação
do estado; a proposta tem uma visão orgânica de unicidade de toda a Educação Básica.
Destacamos nesse jogo linguístico a imersão do significante democracia. Todo movimento
articulatório entre os consultores e gestores da SEDUC/MT nos leva a pensar a produção
92
destes discursos que se pretenderam hegemonizar com o nome de um processo democrático,
ou seja, um documento que dado o seu processo de produção representa os professores e
professoras da rede estadual.
Nos discursos proferidos por Gestores da SEDUC/MT há uma clara posição de que
esse movimento de produção foi democrático e que representa os professores e professores da
escola, mesmo que não de forma geral, mas que em sua maioria, como podemos ver nos
trechos abaixo:
Eu não sei se representa na sua totalidade, porque algumas escolas acharam
que estava bom e aceitaram. Já outras não. Mas tivemos regiões que
participaram intensamente que deram sugestões que foram incorporadas por
parte dos consultores, porque até as sugestões nós precisávamos negociar
com os consultores (Entrevista com GSA).
[...] não vou dizer que foi 100% democrática, como a gente tinha tempos
delimitados, então o tempo pede que a gente amadureça democraticamente,
mas o ir e vir na escola, a escola ter a oportunidade de se pronunciar sobre o
que ela vai fazer, acho que nesse sentido foi um processo democrático, a
gente usou a possibilidade de democracia, não que ela tenha sido atingida na
sua totalidade... mas eu conceituo que foi um processo que teve um veio
democrático (Entrevista com GSR).
Isso foi uma coisa que depois desse seminário integrador que eu tive a
oportunidade de estar com a minha equipe do ensino fundamental dividida
por área, eu já via naquilo ali um processo democrático (Entrevista com
GSJ).
Acreditamos que o processo de construção da política curricular para a Escola
Organizada por Ciclos de Formação, embora tenha passado por várias fases, não se propõe
como um processo democrático radical como defendemos nessa dissertação. Como podemos
ver os dias para o debate foram poucos e os embates em torno do currículo para a escola em
Ciclos não foram promovidos, pois o texto que se refere às perspectivas foi encomendado.
E no que se refere à segunda parte dos documentos (divididos em Áreas de
Conhecimento) houve uma tentativa de um processo democrático radical entre os consultores
e os participantes dos GTs (selecionados via Seminário Integrador dos Cefapros), como
salienta o último trecho acima, esse foi um espaço de disputas, de lutas de adversários
(MOUFFE, 2011) defendendo um projeto político e pedagógico para os componentes
disciplinares e não para uma escola que se organiza em Ciclos de Formação. Além disso,
93
vemos a profusão dos poderes oblíquos, pois mesmo sendo um espaço de debates, muitas
vezes era necessário fazer um grande processo de negociação com os consultores para que
estes aceitassem as mudanças no texto curricular.
“A representação é um processo de se colocar algo no lugar de outro” (LOPES,
2011, p. 5, no prelo), ou seja, a intencionalidade dos discursos é a de que eles possam dizer ao
outro, ou sobre o outro, em outro espaço tempo, contudo ela sempre é precária, e nunca
consegue representar com plenitude.
Dessa forma os textos da política podem “tentar” representar os professores e
professoras, contudo são sentidos que escapam desse contexto e podem acabar representando
apenas interesses de quem produzir o texto. De fato, como nos aponta Mainardes (2006, p.
52),
Os textos políticos representam a política. Essas representações podem
tomar várias formas: textos legais oficiais e textos políticos, comentários
formais ou informais sobre os textos oficiais, pronunciamentos oficiais,
vídeos etc. Tais textos não são, necessariamente, internamente coerentes e
claros, e podem também ser contraditórios.
Contudo é preciso refletir como e quem estes textos estão representando politicamente,
uma vez que podem ser claros e também contraditórios. Pensar que esse movimento de
produção da política curricular foi um processo democrático de representação é complexo,
uma vez que a dinamicidade da representação deve ser pensada em uma lógica de disputas,
dentro das arenas políticas. A representação dos processos educativos, processos que
necessitam da intelectualidade não podem partir de uma forma logística, como a produção de
documentos e outros, pois isto pode nos levar a uma representação crua (BALL, 2004), uma
vez que a construção de políticas curriculares exigem processos de interação humana em um
movimento contínuo e não apenas com a produção de documentos, pois estes não garantem a
representação dos professores e professoras.
Salientamos que nesse processo de produção houve momentos, possibilidades
democráticas. Um exemplo foram os Seminários citados anteriormente que debateram as
questões relativas às Áreas de Conhecimento, onde professores e professoras tiveram a
possibilidade de se pronunciar. Contudo, com tempo e espaços reduzidos, sem
amadurecimento político e pedagógico acerca da complexidade da efetivação de uma política
curricular no contexto escolar. Sinalizamos ainda a não discussão ampla acerca dos princípios
94
da Escola Organizada por Ciclos de Formação, uma vez que tal política curricular se destina a
este espaço tempo.
Dentro desse contexto pensamos que discursos sinalizando a importância de se propor
uma política de currículo para uma escola que se organiza por Ciclos de Formação ficou,
aparentemente, sem uma discussão profícua. Não percebemos uma preocupação no sentido de
pensar as concepções dos Ciclos de Formação, ficando um vazio significativo nesse sentido.
Embora se tenha um texto falando das concepções da Escola Organizada por Ciclos de
Formação, este não se refere às características de Mato Grosso, e nem ao menos foi discutido
em qualquer momento com a participação dos professores.
b) Currículo organizado em Áreas versus currículo organizado em disciplinas
A política de currículo para o ensino fundamental da rede estadual de Mato Grosso
está organizada em várias partes, constitui-se em quatro cadernos divididos da seguinte forma:
uma parte contendo a introdução dos princípios educativos norteadores para o ensino
fundamental organizado por Ciclos de Formação e as outras três para a organização e
sistematização dos conhecimentos pertinentes a Área de Linguagens (Língua Portuguesa,
Língua Estrangeira, Educação Física e Arte), à Área de Ciências Humanas (História,
Geografia e Educação Religiosa) e à Área de Ciências da Natureza e Matemática (Ciências e
Matemática). Em nossa análise nos ateremos, principalmente, aos três cadernos das Áreas de
Conhecimento, nos discursos dos interlocutores da SEDUC/MT que estiveram articulados na
produção dos mesmos, bem como aos consultores que produziram os textos para esta etapa da
Educação Básica. Não iremos fazer análise do texto introdutório que traz os princípios
norteadores, pois este documento foi encomendado pela SEDUC/MT ao Prof. José Clóvis de
Azevedo (Professor da UFRGS, atualmente Secretário de Estado de Educação do RS), devido
a sua experiência com a Escola Cidadã de Porto Alegre, não passando por discussões,
sugestões e/ou alterações durantes o processo de produção da política curricular analisada.
Há uma disputa de sentidos, um deslizamento, no processo de produção dos
documentos no que se refere a sua organização. A estrutura do documento oficial da política
de currículo é em Áreas de Conhecimento, contudo as Disciplinas que compõem estas Áreas
95
são evidenciadas a todo o instante, é enfática a posição dos discursos em torno da importância
dos saberes das disciplinas escolares tradicionais.
Como salientam Macedo e Lopes (2002, p. 82) “independente dos discursos de
articulação disciplinares, a matriz disciplinar persiste como instrumento de organização e
controle do currículo”, como é o caso da política curricular para o Ensino Fundamental
organizado por Ciclos de Formação da rede estadual de Mato Grosso, em que as disciplinas
mostram todo o seu poder de organização curricular.
A organização do currículo em Áreas de Conhecimento é uma preocupação que gira
em torno de todos os textos da política curricular organizada pela SEDUC/MT, vem como
discurso balizador para a efetivação da proposta, é visto nos discursos dos consultores e
gestores da Secretaria. A organização do currículo em Áreas é vista pela SEDUC/MT como
uma forma de integração dos saberes disciplinares e como uma possibilidade de melhorar o
processo de ensino e a aprendizagem dos alunos e alunas. O que podemos ver em um das
falas dos Gestores da SEDUC/MT que fizeram parte do processo de produção dos
documentos:
[...] (as áreas) asseguram um processo de aprendizagem de qualidade
onde o foco seja a aprendizagem, e que as disciplinas que compõe
aquela área sejam trabalhadas realmente articuladas (Entrevista com
GSAS).
Como sinaliza Lopes (2008) as políticas curriculares de integração não são novas, e
em muitas delas há uma defesa dessa forma de organização, é preciso compreender quais os
interesses estão marcados nessa organização curricular, uma vez que eles são muitos, pois tal
perspectiva é assumida em documentos nacionais e internacionais com múltiplas
intencionalidades. Sendo as políticas curriculares um produto hibridizado em múltiplos
contextos (BALL, 2001), os discursos circulantes em outros espaços tempos acabam
migrando de um território para outro, um processo de desterritorialização (CANCLINI, 2011),
trazendo também muitas vezes as mesmas necessidades e intencionalidades. Um exemplo
trazido por Lopes (2008) é o das necessidades que agências multilaterais apresentam para os
Estados, a fim de que estes organizem currículos integrados para permitirem a formação de
pessoas que estejam mais engajadas na organização das relações sociais e econômicas que o
96
mundo contemporâneo assumiu. Estas e outras posturas globais em circulação podem
influenciar a produção de políticas locais.
Iremos ver então como as articulações foram estabelecidas para a produção do
documento trazendo a organização do currículo em Áreas de Conhecimento, como uma forma
de integração, enviesado por discursos em torno das disciplinas escolares, bem como tentar
identificar, como nos aponta Lopes (2008) algumas intencionalidades nesse jogo articulatório.
Houve de fato, uma articulação em torno da demanda de organização do currículo em
Área de Conhecimento. Esta articulação (concebida no Contexto de Influência) foi construída
a partir das políticas nacionais, trazidas por vários documentos do MEC (PCN, PCNs + EM,
dentre outros), e da postura da consultoria “geral” dos documentos da política curricular
(Profa. Acácia Z. Kuenzer) junto aos membros Gestores das SEDUC/MT. Desse movimento
articulatório foram produzidos os discursos de Áreas de Conhecimento para a organização do
currículo para o ensino fundamental. Fato que podemos ver nos seguintes trechos das nossas
entrevistas:
[...] as discussões do conselho nacional das diretrizes, do conselho 2010 e
2011, então... a Acácia já vinha acompanhando e já sabia que existia um
indicativo de organização curricular por Área de conhecimento, integrado
para toda a educação básica via MEC, conselho nacional. As normativas já
vinham apontando isso, desde 1996 a LDB já vinha apontando a necessidade
de organização de um currículo integrado, que rompesse com a ideia de
disciplina do conteúdo que não complementa dentro de uma área, então a
ideia foi buscar uma proposta curricular que desse conta de apontar e sugerir
pra escola e que a escola também desse conta de interpretar e entender as
necessidades de integrar as áreas do conhecimento, buscando a
interdisciplinaridade, trabalhar com eixos curriculares ou categorias que
descem conta de integrar o conhecimento dentro das áreas (Entrevista com
GSA).
[...] Foi um direcionamento da Secretaria. E a Legislação maior já dizia isso
né... a que vigorava era a 003, e ela já estabelecia que teria que organizar por
área do conhecimento. Então a gente seguiu essa orientação. E
principalmente por conta de dois princípios isso ficaria mais fácil, que era o
princípio da interdisciplinaridade e da contextualização. E então nas áreas,
pelo menos nas áreas, poderia se começar um trabalho de integração. E a
contextualização é aquilo que a nossa sociedade é, e é o que ela exige, e com
a cultura você acaba contextualizando (Entrevista com GST).
[...] (a organização por Áreas de Conhecimento) foi pelo referencial do
Plano Curricular Nacional, porque lá é por área de conhecimento, porque se
é um programa nacional, aqui também, o que do qual eu também participei
(Entrevista com PCE).
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A organização curricular em Áreas de Conhecimento foi concebida na política de
currículo pelo processo articulatório entre os múltiplos atores produtores e os documentos de
nível nacional. A Profa. Acácia Kuenzer (consultora geral) teve um papel preponderante nesse
momento, uma vez que a mesma já vinha acompanhando as discussões para a produção das
Diretrizes Curriculares Nacionais, lançada em 2010, o que lhe conferia certo poder nos
momentos de definições de como seria a organização da política curricular. Além disso, em
vários momentos os sujeitos evidenciavam a articulação com os documentos do MEC, em que
a proposta do Estado tinha que ser adequada aos pressupostos do governo federal.
Documentos oficiais como os PCNs e a LDB foram fundamentais nessa discussão. Houve
uma articulação em torno dessas propostas para a produção e sustentação do currículo
organizado em áreas de conhecimento. Esse fato potencializa a visão de que mesmo com o
desejo de se fazer uma proposta curricular que desse conta das especificidades do Estado
havia uma circularidade (BALL, 1992; LOPES, 2005) de discursos que hibridizam as
políticas curriculares com a mesma forma de organização curricular e com múltiplos
interesses.
E quais os interesses em organizar o currículo em Áreas de Conhecimento? Ao tentar
responder esta questão chegamos a uma lógica das negociações em torno das demandas as
quais pretendem se legitimar (ORSINI, 2007). São vistas, nas discussões das necessidades da
organização do currículo em Áreas de Conhecimento, práticas articulatórias que emanam de
posições diferenciais, com interesses diferentes, e com formas diferentes de conceberem a
integração, evidenciando a propagação de poderes oblíquos que circulam nos momentos de
produção de políticas curriculares, e que depois estabelecem as ligações formando uma cadeia
de equivalência em torno do currículo em áreas, ou seja, todas as diferenças foram apagadas
provisoriamente para o estabelecimento de tal organização, o que Laclau e Mouffe (2010) vão
chamar de articulação no jogo político, uma vez que as identidades, pessoas, os sentidos
pessoais são momentaneamente apagadas, modificando-as. A lógica da diferença se
transforma na lógica da equivalência. Os discursos produzidos depois desse jogo articulatório
nos mostram as múltiplas diferenças, as várias posições apresentadas, que são apagadas e se
equivalem em torno de Área de Conhecimento,
[...] nós entendemos que o fragmento da disciplina é altamente prejudicial...
a gente parte da concepção que o cérebro humano não aprende por
pedacinhos, por caixinhas, aprende na sua totalidade, então a equipe da
secretaria, tendo em vista toda a discussão nacional, as concepções mais
98
aceitas no mundo, e aqui também o que faz a nossa cabeça, na nossa
identidade educacional fez com que a gente não tivesse dúvida de orientar
que fosse por área (Entrevista com GSR).
[...] (área) parece ser mesmo a forma correta, ter esse direcionamento, ainda
mais que o ensino fundamental onde uma disciplinação é muito excessiva
pode ser prejudicial ao desenvolvimento do acesso ao ensino da
aprendizagem (Entrevista com PCM).
[...] Nós sabemos que o conhecimento não é separado na nossa cabeça. Daí
fica só uma forma de fragmentar, pra ficar... para ensinar com mais
profundidade. Agora... essa fragmentação acaba quando o professor assume
um outro discurso dentro da sala de aula, no momento que ele ensina, no
momento que ele constrói (Entrevista com PCO).
[...] (em áreas) eu acredito que a cabeça da gente melhora muito, melhora
muito da gente no sentido do aprender. Você aprende que a língua
portuguesa, não é língua portuguesa só, ela tá lá na outra, que a arte não é só
ver desenho, figura, sei lá, fazer teatro, nada disso isso, aí também está
dentro a palavra, também está dentro corpo, sabe, e sei lá, o que mais a
imaginação, a sensibilidade e um monte das outras coisas. Isso ajuda e não
só isso, mas como também, a vida é isso. A vida é um conglomerado de tudo
isso (Entrevista com PCI).
Nos três trechos acima podemos perceber uma necessidade de organizar o currículo
em Áreas de Conhecimento, uma vez que o currículo organizado em disciplinas é visto como
altamente prejudicial para quem aprende. Os discursos giram em torno de que o cérebro das
pessoas não é fragmentado, o ensino em caixinhas disciplinares e disciplinação excessiva
prejudicam as crianças do ensino fundamental, que o conhecimento na cabeça não é separado,
ou seja, são apresentadas justificativas ligadas aos processos mentais de aprendizagem para se
legitimar o currículo integrado, o currículo em Áreas de Conhecimento. Contudo, há outras
justificativas, outras necessidades. Vejamos os trechos abaixo:
[...] Área do conhecimento tem como característica possibilitar a percepção
do processo de transformação da natureza e suas relações, desvelando as
interações entre as partes e o todo, as entidades multidimensionais e os
problemas essenciais. A partir desse pressuposto, é possível desencadear
procedimentos pedagógicos que promovam ações coletivas (OC Ciências da
Natureza e Matemática, p. 8).
Ao se optar pela organização curricular em áreas de conhecimento, pretende-
se que cada campo do saber adquira dinamicidade e articulação, tanto entre
suas disciplinas quanto entre as próprias áreas, possibilitando maior
flexibilidade, pontos de interesse e metas comuns no que diz respeito à
construção do conhecimento pelo estudante (OC Ciências Humanas, p. 7).
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Os discursos apresentados nos documentos se referem à organização do currículo em
Áreas de Conhecimento como uma necessidade de melhorar o processo de ensino, uma vez
que tal organização possibilita compreender como os fenômenos são construídos, bem como
esta forma de organização pode tornar o processo mais dinâmico para a aprendizagem.
Podemos ver também um terceiro movimento no tocante à articulação estabelecida para a
construção da nova política em Áreas de Conhecimento
[...] se você busca uma proposta inovadora que tenha como norte a
emancipação humana, que já tem uma pista metodológica que é dialética,
que e a transição entre pensamento e ação, entre o abstrato e o concreto, e
para interpretar esse concreto que é a realidade que é o ponto de partida para
a organização do currículo você precisa da interpretação das disciplinas,
seria bem melhor não deixar tão soltas e organizar a princípio por áreas...
Então a princípio você organiza em área, e a disciplina não deixa de existir,
pois ela e importante para o processo de compreensão da área do
conhecimento, pois ela soma com as demais outras disciplinas, para
interpretar àquela realidade, e é claro que ela precisa extrapolar porque a
área de linguagem que integra a área das humanas que integra a área de
ciências da natureza (Entrevista com GSA).
[...] a Área de Conhecimento... possibilite a construção e/ou a apropriação
dos significados sócio-histórico-culturais elaborados e que favoreçam aos
sujeitos envolvidos no processo, a ampliação da visão de si, de sua família,
da escola, do bairro onde mora, da sociedade e cultura em que vivem e
busquem transformações (OC Linguagens, p. 7).
Neste terceiro ponto identificamos que a organização em Áreas de Conhecimento se
torna um mecanismo que pode possibilitar a leitura de mundo, em que os sujeitos aprendizes
construam sua emancipação e busquem transformações no mundo a partir da articulação dos
conhecimentos construídos de forma integrada.
Mesmo as intenções não estando diretamente ligadas aos interesses econômicos, elas
são várias. Contudo as articulações estabelecidas entre estes sujeitos nos mostram que todas
as intencionalidades, que todas as diferenças foram apagadas e os mesmos entraram em uma
cadeia de equivalências, produzindo o significante que tentou hegemonizar os sentidos de
integração: Área de Conhecimento. As necessidades de se adequarem a propostas nacionais, o
prejuízo da fragmentação disciplinar, uma melhor forma de ensinar, uma possibilidade de
leitura de mundo de forma articulada e integrada, são elementos que se articularam
produzindo discursos em defesa da organização curricular em Áreas de Conhecimentos.
100
Embora a decisão para a produção das Orientações Curriculares para Educação Básica
do Estado de Mato Grosso tenha sido feita por influências dos documentos federais e da
própria consultora geral (Acácia Kuenzer) junto aos dirigentes da SEDUC/MT, percebe-se a
produção de uma cadeia articulatória em torno da demanda de integração curricular, o que
produziu discursos em torno de sua necessidade na organização dos currículos escolares para
o ensino fundamental. Houve uma intensa articulação em torno da demanda Área de
conhecimento, uma vez que os sujeitos coletivos se entrecruzaram na luta para tal
significação, o que podemos chamar de construção das identidades políticas coletivas, ou seja,
houve uma luta política em torno do significante Área de conhecimento, fazendo com que os
sujeitos se identificassem em torno desse significante, na busca por hegemonização de
sentidos (LOPES, 2008). Houve um conflito consensual (MOUFFE, 2011) em torno desse
momento político, embora aparentemente a decisão de organizar o currículo por Área de
Conhecimento na política de currículo seja visualizada a partir da hibridação de discursos em
torno do mesmo, é um processo hibridizado que nos mostrou o poder em torno do discurso na
relação de cultura (significação) e poder (CANCLINI, 2011), no qual houve muita disputa.
Esse jogo nos mostrou uma tentativa de hegemonização do currículo organizado em
Áreas de Conhecimento. Por que falamos em tentativa? Porque mesmo com todos esses
discursos, vistos anteriormente, o poder da disciplinarização está presente na organização dos
documentos. São frequentes as retomadas aos sentidos de currículo partindo das disciplinas
escolares tradicionalmente conhecidas e reconhecidas. O que ressalta mais uma característica
advinda de outras propostas em circulação nacional, em que são fortes as marcas de um
currículo que se predispõe a uma organização integrada, contudo salientando formas de como
integrar as disciplinas, ou seja, a força do currículo disciplinar ainda continua a ter uma forte
presença mesmo em proposições de integração (LOPES, 2008).
Macedo e Lopes (2002, p. 93) evidenciam que,
[...] a disciplina escolar é um padrão de estabilidade curricular porque legitima
legitimando a própria idéia de escolarização. Trata-se de um dos maiores
padrões curriculares da Modernidade e não deve ser encarado como um
esquema neutro e burocrático de controle do ensino, mas como um esquema
de conservação e estabilidade.
101
Percebemos que na política curricular analisada essa disciplinarização, mantendo essa
estabilidade curricular, está presente em vários momentos nas três Áreas de Conhecimento da
política curricular,
[...] (a área) é difícil, mas interessante e importante... é difícil mesmo.
Porque você está ensinando por área, mas você não deixa de priorizar aquilo
que a gente ensina. Já pensou... você tá ensinando por área e de repente, você
ensina aquilo que você prioriza... e a partir dela eu vou articular com as
outras, daí você vai na matemática para ensinar as medidas, mas o seu foco é
(na sua disciplina), e você faz essas relações a partir dela (Entrevista com
PCO).
[...] nos anos finais do ensino fundamental foram trabalhados com temas,
assim... energia era um tema, poluição parecia que era outro tema, recursos
renováveis, então o trabalho era mais por tema, por conta do grupo de
ciências, então a matemática prevalecia menos... a matemática ficava mais
distante... (Entrevista com PCER).
Os produtores da política curricular, embora salientem a possibilidade de integração
curricular, mantêm fortemente a noção das disciplinas. Percebemos que a coleção de bens
simbólicos (CANCLINI, 2011), apesar de ser outra coleção, apresenta-se de forma fechada,
salientando que os conceitos das disciplinas darão conta de sustentar todo o processo
educativo do ensino da própria Área de Conhecimento,
[...] “a matemática é a ferramenta especialmente adaptada ao tratamento
das noções abstratas de qualquer natureza e, neste domínio, seu poder é
ilimitado”. Dessa forma, a linguagem Matemática como ferramenta auxilia
na compreensão e interpretação do conhecimento das outras ciências (OC
Ciências da Natureza e Matemática, p. 10).
[...] ficava uma fala assim... que a matemática seria uma outra área... meio
que assim... queria que a matemática fosse mais uma área, porque a gente
não conseguia dialogar legal com a química, com a física e com a biologia,
com as ciências (Entrevista com PCER).
O documento de Ciências da Natureza e Matemática, talvez seja o que mais salienta
essa dicotomia. De um lado apresenta possibilidade de integração nas Ciências, pensando a
integração dos fenômenos vistos à luz dos conhecimentos físicos, químicos e biológicos,
trazendo como grande foco a Alfabetização Científica, porém por outro lado, traz a
102
matemática em uma tentativa de ser uma área em si, como visto no último trecho acima. São
construídos discursos nos três ciclos de formação acerca dos conhecimentos de ciências e de
matemática, ou seja, há uma disciplinarização. Em nenhum momento é efetivada proposituras
de integração entre os dois campos disciplinares nos textos curriculares da Área.
Isso não é diferente nas outras Áreas de Conhecimento. Em Linguagens, por exemplo,
inicialmente é apresentado um discurso de integração da Área, como podemos ver nos trechos
abaixo:
Pelo fato de se pensar que o conceito de linguagem envolve indivíduo,
história, cultura e sociedade em uma relação dinâmica entre produção,
circulação e recepção, compreende-se a linguagem como o espaço da
interlocução da atividade sociointeracional e possibilita reafirmar as práticas
sociais de linguagem constituídas pela/na inter e transdisciplinaridade (OC
Linguagens, p. 11).
Essa compreensão de linguagem permite a construção de um currículo por
área de conhecimento. As disciplinas de Artes, Educação Física, Língua
Estrangeira Moderna e Língua Portuguesa integram o que denominamos a
área de Linguagens. Esses campos de conhecimento apresentam
características comuns que autorizam a articulação didático-pedagógica
interna da área (OC Linguagens, p. 11).
Na caracterização da Área de Linguagens são apresentados elementos de articulação
entre as disciplinas por meio da concepção que a política opera com o termo linguagem, em
seguida apresenta também três objetos comuns às disciplinas da área: o código, o texto e a
leitura, e se espera que destes três elementos se configurem a articulação que promoverá a
integração na Área de Linguagens. Contudo logo em seguida, e isso vai do primeiro ao
terceiro ciclo, há uma fragmentação em disciplinas, sem apresentação ou discussão de
integrações entre tais componentes disciplinares,
Na disciplina de Arte, a leitura tem se efetivado em caráter mais teórico e a
releitura, como a produção a partir do objeto de estudo (OC Linguagens, p.
13).
Em Educação Física, a construção do sujeito e da linguagem aponta para um
universo de possibilidades que precisa ser considerado, a fim de contemplar
essa perspectiva (OC Linguagens, p 13).
Em Língua Portuguesa, o trabalho é orientado pelo texto, unidade básica de
estudo que se refere às atividades discursivas em uso, sejam elas orais,
escritas e/ou multimodais, pertencentes aos variados gêneros discursivos
(OC Linguagens, p. 13).
103
A Língua Estrangeira Moderna (LEM) é componente curricular da Área de
Linguagens, na parte diversificada do Currículo da Educação Básica, a partir
dos anos finais do Ensino Fundamental, com o objetivo de iniciar os
estudantes no conhecimento das línguas ofertadas e dessa forma oportunizar
o conhecimento dos códigos pertinentes à LEM, para produção e leitura dos
textos que circulam socialmente (OC Linguagens, p. 14).
Como visto nos discursos acima, há um forte matiz disciplinar na organização da
política curricular. São apresentadas sequencialmente estas fragmentações. Arte, Educação
Física, Língua Portuguesa e Língua Estrangeira Moderna são apresentadas sem articulação,
sem integração, sem estarem em Área. Em seguida, na proposta para os três ciclos de
formação, a mesma situação é vista. Em uma tentativa de integração, a proposta da Área de
Linguagens, organiza o texto sem colocar tópicos específicos das disciplinas que a compõe,
contudo o que se percebe é um texto recortado, em que de uma ora para outra se muda para
outra disciplina.
No documento de Ciências Humanas há uma prevalência da disciplina Geografia,
embora no texto introdutório desta área seja apresentada a organização de forma a promover a
integração curricular, salientando a importância da intersecção entre as disciplinas, no restante
do texto há prevalência daquele componente disciplinar. No primeiro ciclo de formação, por
exemplo, não há referência direta à disciplina História (há apenas uma referência tênue). O
texto é bem organizado e apresenta conceitos importantes para o processo de aprendizagem
das crianças de seis a oito anos, como por exemplo, a alfabetização cartográfica, as noções de
espaço, lugar, paisagem, localização, mapas, urbano, rural e rurbano (OC Ciências Humanas,
2010), contudo são conceitos da Geografia. É apenas no terceiro ciclo de formação que as
disciplinas História e Educação Religiosa aparecem com maior sistematização, até porque,
neste ciclo, nesta área, há uma divisão dos três em que cada um escreve sobre as suas
especificidades separadamente, há tópicos separados das disciplinas.
Percebemos que há na política de currículo para o ensino fundamental um
deslizamento de sentidos (LACLAU e MOUFEE, 2010), no tocante a organização curricular,
existem discursos operando em torno da área de conhecimento, contudo a disciplinarização é
uma forma de organização potente dentro destas áreas. Espera-se que haja integração, contudo
é apresentada uma disciplinarização em todas as partes. É preciso salientar que na maioria dos
discursos não são vistos posicionamentos contrários à existência das disciplinas, pelo
contrário, há um discurso que para existir as áreas de conhecimento, estas devem emergir dos
104
conhecimentos disciplinares, o que de certa forma reforça a lógica da organização disciplinar
nos currículos escolares.
Nesta arena de disputas, marcada por conflitos, dissensos, consensos (BALL, 1992,
1994), percebemos a constituição de múltiplas articulações entre os atores sociais envolvidos
nas lutas para a construção da política de currículo para a Escola Organizada por Ciclos de
Formação. Lutas travadas em torno de demandas dos sujeitos coletivos (LACLAU e
MOUFFE, 2010), produziram os discursos de integração em Áreas de Conhecimento, que
circulou em torno deste significante, bem como do significante disciplina, dessa forma
compreendemos que os sentidos de integração não se hegemonizaram, uma vez que os
sentidos das disciplinas tomam espaço significativo na formulação das propostas. Há uma
tentativa de hegemonização, contudo não se concretiza, pois a forte presença das disciplinas
ainda sobrepõe às Áreas de Conhecimento na organização curricular. Vejamos alguns trechos
que sinalizam estas disputas,
[...] se o ensino é por área de conhecimento como é que a estrutura da escola
continua por disciplina? A começar pelos horários. Então nós achamos que
não pode ter horário de aula de química, física e biologia, você tem que ter
no horário de ciências da natureza, e outra coisa que é confusão também... é
bom registrar porque foi um impasse terrível, a ideia que as pessoas estavam
tendo que o ensino por área de conhecimento, todo mundo tinha que ser
polivalente, agora eu tenho que saber química, física... tenho que saber tudo?
(Entrevista com PCE).
[...] a alfabetização até então, vista como se fosse só língua portuguesa e
matemática, e a gente sabe, quem é pedagogo sabe, que é muito mais que
essas duas disciplinas, então a gente já defendia... os pedagogos... também
defendiam, que deveria organizar um documento onde também as outras
disciplinas de uma forma globalizado pudesse compor o currículo
(Entrevista com GSAS).
[...] Não (vejo a área) como algo isolado, mas que se articula e se
complementam, porque eu acho que o objetivo e objeto de conhecimento de
cada área, às vezes quando foi pensado qual o objeto de conhecimento das
ciências naturais, das humanas ou da linguagem, no processo de
alfabetização ou no desenvolvimento no segundo e terceiro ciclo, só pra
definir esse objeto de conhecimento já era muita discussão, porque cada
disciplina tem seu objeto de estudo, e agora como que faz isso, então eu vejo
que cada disciplina dentro de uma área, ele se articula ela não perde sua
especificidade, integrando e complementando dentro de uma área e de uma
área para outra (Entrevista com GSAS).
[...] Olha (a organização em área)... uma coisa é a ideia, outra é o que tá
escrito, é uma das coisas que principalmente na área de ciências humanas, eu
acho que consegue perceber melhor essa articulação (Entrevista com GSAS).
105
[...] nós queríamos (a organização em área) pelo menos desestabilizar essa
concepção de disciplina, de que eu tenho uma disciplina, de que eu trabalho,
de que eu sou autônomo, eu reprovo, e já havia uma proposta nacional de
trabalho por área e então julgamos que nada seria melhor que isso
(Entrevista com GSJ).
Como podemos perceber, nos trechos das entrevistas acima, houve um discurso em
torno da organização do currículo em Áreas de Conhecimento. Em torno deste significante,
muitas negociações para tentar hegemonizar os sentidos desta forma de organização curricular
foram realizadas. Como vemos no último trecho, há uma tentativa de desestabilizar a força da
organização disciplinar, contudo podemos sinalizar que não houve hegemonização, (apesar
dos documentos da política curricular estar estruturado em áreas), pois o currículo está
fortemente marcado pela disciplinarização, salientando o que Macedo e Lopes (2002) nos
evidenciam como estabilidade curricular, onde as disciplinas escolares possuem grande
poder na organização do currículo.
O interessante é que muitos dos atores partícipes da produção da política de currículo
(como em um dos trechos acima) reconhecem a disputa em torno do currículo organizado em
Áreas de Conhecimento e em Disciplinas, salientando “uma coisa é a ideia, outra é o que
está escrito”. Um dos consultores dá um exemplo muito propositivo para a organização
curricular em Áreas de Conhecimento,
[...] Se você tem um eixo norteador, por exemplo, você pega a árvore, aquilo
ali é um fenômeno, ele é um ser vivo, ele enquanto ser vivo ele tem célula,
mas essa célula pra funcionar precisa de quê? Precisa de substâncias,
substância é o quê? É química, então os professores de química, podem
muito bem trabalhar junto comigo pra dizer como é que o material
inorgânico, se transforma em orgânico, através de quê, da energia, essa
energia, a física explica muito bem, e como é que mensuro isso?
Matemática, e posso trabalhar conforto térmico, tudo isso numa árvore,
então se eu tenho um eixo, então se eu vejo aquilo como fenômeno, como
que aquele fenômeno funciona? Então aí sim, que eu vou ver os conteúdos,
que colaboram, pra explicar aquele fenômeno, olha que bonito... se nós
pudéssemos fazer isso? (Entrevista com PCE).
Veja, o consultor apresenta uma articulação entre os saberes disciplinares na Área de
Ciências da Natureza e Matemática, mostrando que a organização em área é uma forma
positiva, que funciona, contudo o mesmo finaliza com uma interrogação que sinaliza a
106
dificuldade em realizar o mesmo: “olha que bonito... se nós pudéssemos fazer isso?”.
Salientamos também que exemplos como este não são apresentados nos textos da política
curricular desta área.
Embora o discurso de área do conhecimento estivesse fortemente presente contra o
inimigo comum (LACLAU e MOUFFE, 2010), existia outro discurso: a defesa dos
conhecimentos disciplinares. É unânime nos discursos que há uma necessidade de se
organizar a Área de Conhecimento a partir dos saberes de cada disciplina. É importante dizer
que em momento algum houve uma negação de que o currículo para a escola Organizada por
Ciclos de Formação tivesse que ser organizado por Áreas de Conhecimento, contudo que ele
deveria ser necessariamente pré-concebido por saberes de cada campo disciplinar,
fortalecendo no texto curricular da política as suas especificidades.
Não descartamos que seja possível que haja integração a partir das disciplinas, até
porque o poder das disciplinas é muito forte na organização curricular, e nos ancoramos em
Lopes (2008, p. 82) para salientar isso,
A utilização da tecnologia de organização disciplinar, no entanto, não
impede, ao longo da história do currículo, a organização de diferentes
mecanismos de integração, seja pela criação de disciplinas integradas ou pela
tentativa de articulação de disciplinas isoladas.
A análise das recentes propostas curriculares evidencia esse argumento, pois
o atual discurso em defesa do currículo integrado, nas definições curriculares
oficiais e no pensamento curricular, não implica a superação das disciplinas
escolares ou mesmo a diminuição de seu poder na seleção e na organização
do conhecimento escolar.
Não negamos isso, contudo os discursos presentes nos textos das Orientações
Curriculares, para o ensino fundamental organizado por Ciclos de Formação, não apresentam
possibilidades de se organizar de forma integrada, eles enunciam as áreas, mas, depois trazem
apenas as disciplinas isoladamente. Os discursos dos produtores dessa política curricular são
de organização em Áreas de Conhecimento de forma integrada, contudo isso não se
concretiza na proposta curricular.
107
c) Hibridação das perspectivas curriculares na produção do texto da política
A partir da discussão feita anteriormente, em nosso quadro teórico, acerca das
perspectivas curriculares e os processos de hibridação, pretendemos agora apresentar como a
política de currículo para o ensino fundamental organizado por Ciclos de Formação da rede
estadual de Mato Grosso foi construída em um movimento de luta afirmada pelas posições
assumidas nas articulações e nos discursos presentes nos sujeitos protagonistas do processo de
produção.
Ao analisar os documentos divididos nas três Áreas de Conhecimento, percebemos
que a política curricular para a Escola Organizada em Ciclos de Formação se configura como
um gênero impuro (CANCLINI, 2011), hibridizado pelas três principais perspectivas teóricas
curriculares (a Teorias Tecnicistas de currículo, as Teorias Críticas de currículo e as Teorias
Pós-Críticas de currículo). As três estão presentes nos discursos da política curricular. Este
fato confirma que não podemos pensar as Teorias de Currículo de forma linear (LOPES,
2011), pois as discussões de uma não rompem totalmente com a presença de outra nas
políticas curriculares e nas práticas pedagógicas. Esses discursos para Lopes (2005, p. 57),
Não se trata de elementos contraditórios em que um não existe sem o outro,
tampouco podem ser explicados apenas por distinções e oposições. São
discursos ambíguos em que as marcas supostamente originais permanecem,
mas são simultaneamente apagadas pelas interconexões estabelecidas em
uma bricolagem, visando sua legitimação. Dessa forma, os múltiplos
discursos das políticas assumem a marca da ambivalência, pela qual há
possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria.
Não se trata então de pensar que posturas críticas de currículo necessitem de alguma
coisa que é boa na postura tecnicista, ou que ao assumir essas hibridações ficam claro que em
determinado momento da construção curricular deve-se posicionar a partir dos campos pós-
críticos de currículo se opondo aos campos da teoria crítica de currículo. Nos documentos das
Áreas de Conhecimento, aparentemente uma lógica de emancipação, ancorada nos
pressupostos da teoria crítica de currículo, é vista como fundamental para a Escola
Organizada em Ciclos de Formação, contudo podemos visualizar que essa marca é apagada, e
aparecem fortemente concepções tecnicistas hibridizando a produção dos documentos.
108
Esse discurso é assumido no texto da política curricular, bem como é fortalecido em
discursos de alguns consultores. O produto híbrido é visto, por exemplo, no momento em que
perguntamos qual a postura teórica assumida na produção do texto da política curricular:
Tem que ter uma?! Eu não tenho uma postura teórica! Depende. Eu fui
formada dentro de uma postura marxista, crítica. Só que eu não sou
extremista. Em alguns momentos eu penso que o positivismo funciona muito
bem no sentido de ensinar os conceitos, por exemplo, eu tenho que ensinar
escala, e escala é escala, eu uso um conceito matemático, eu ensino
(Entrevista com PCO).
Percebemos que há um discurso que se “pretende” ser original, em que os documentos
estão ancorados principalmente em perspectivas críticas de currículo, contudo ele é quebrado
com o processo de hibridação no momento em que perspectivas positivistas e tecnicistas
entram na constituição da política curricular.
A questão não é tão simples assim. Cada teoria curricular é marcada por
intencionalidades pedagógicas e políticas, ou seja, cada uma visa alcançar determinados
objetivos. Quando dizemos que o positivismo pode funcionar, mesmo que seja em alguns
casos, estou assumindo a forma que o mesmo pensa a organização social, bem como a
formação identitária de um aluno, de forma que se pode causar certa problemática na
constituição de currículos escolares.
Iremos a partir de agora trazer alguns pontos que destacamos a fim de mostrar a
configuração híbrida da política curricular. Na Área de Linguagens podemos perceber nos
trechos a seguir como se deu esse processo:
[...] a construção de conhecimentos e a formação cidadã mediante a
interação ativa, crítica e reflexiva com o meio físico e sociocultural, de
modo que os educandos desenvolvam a autonomia para o tratamento da
informação e para expressar-se socialmente utilizando as múltiplas formas
de linguagens (OC Linguagens, 2010, p. 8).
[...] eixos articuladores... foram pensados considerando que as crianças, os
pré-adolescentes e os adolescentes possuem “identidades de classe, raça,
etnia, gênero, território, campo, cidade e periferia... as quais são constituídas
por valores e conhecimentos produzidos nos contextos de vivências e
experiências mediadas pela linguagem nas relações estabelecidas
socioculturalmente (OC Linguagens, 2010, p. 8).
109
[...] capacidades referem-se ao conhecimento e aplicação de estratégias e
técnicas apropriadas, relacionadas aos conteúdos aprendidos, que o aluno
busca, em suas experiências anteriores, para analisar e resolver novos
problemas (OC Linguagens, 2010, p. 8).
Os trechos acima sinalizam um processo de hibridação entre as três concepções de
currículo já citadas. O primeiro trecho nos mostra a concepção de formação de sujeitos
críticos e autônomos ligados às concepções críticas, que estão ancoradas nos pressupostos
marxistas, ou seja, a escola deve preparar e formar sujeitos que possuam liberdade, que sejam
emancipados de qualquer forma de opressão, principalmente ligada a questões econômicas
(MOREIRA e SILVA, 2008). Já no segundo trecho é possível perceber uma ampliação da
noção anterior em que discussões como identidade e gênero, por exemplo, devem estar
presentes na formação dos sujeitos, preocupação de perspectivas pós-críticas (como nos
Estudos Culturais e no Pós-Colonialismo). E no último trecho a clara preocupação com os
conteúdos, com a formação de capacidades, uma visão tecnicista.
Além disso, assim como em todas as áreas, a Área de Linguagens apresenta quadros
sistematizando capacidades, descritores e eixos articulatórios, notadamente mostrando grande
preocupação com as competências que os professores devem construir com os seus alunos, ou
seja, uma marca forte da perspectiva Tecnicista de Currículo.
Como nos elucida Canclini (2010), esses processos são marcados por descoleções,
desterritorializações e produção de gêneros impuros, ou seja, um processo de hibridação. Ao
mesmo tempo em que são propostas grandes coleções quando o foco são as capacidades, os
conteúdos, prática da perspectiva tecnicista de currículo, o texto propõe um processo de
descoleção das grandes metanarrativas no momento que traz a necessidade de trabalhar com
as múltiplas identidades presentes na escola.
Ao questionarmos alguns consultores da Área de Linguagens acerca da matriz teórica
percebemos essa mesma lógica
[...] as próprias orientações, a própria Área de Linguagem, não sei educação
física, mas a própria área de linguagem, todo conteúdo está estruturado a
partir de uma base materialista histórica onde a prática social que justifica
tudo. Aí sim... muitas pessoas chamam de marxismo é isso (Entrevista com
PCS).
110
[...] do lado cognitivo nós trabalhamos com construtivismo, nós trabalhamos
com os sócio-interacionistas. Trabalhamos depois a teoria do discurso em
termos assim desde a aprendizagem até teoria linguística. Foram às bases
(Entrevista com PCI).
As fronteiras são rompidas e a proposta passa por processos de desterritorialização e
descoleção entre várias perspectivas teóricas na constituição do currículo.
Esse mesmo movimento é realizado no documento da Área de Ciências da Natureza e
Matemática. O texto desta área inicia trazendo uma discussão Pós-Crítica de Currículo, ligada
a uma perspectiva Pós-Estruturalista, no que tange a uma não fixação de saberes absolutos,
contudo no decorrer do texto é possível visualizar a presença de uma lógica de Currículo
Crítico, com discursos para a formação de sujeitos críticos e emancipados, bem como de
concepções tecnicistas que permeia muitas partes do texto, mostrando uma sustentação e
afirmação com foco no ensino de conceitos, de conteúdos. Vejamos nos trechos a seguir:
[...] a Ciência compreende um dos instrumentos de leitura, interpretação e
explicação dos fenômenos e das transformações da natureza, resultante da
construção coletiva de experiências e da criatividade humana. Nesse
entendimento, segundo Chassot (2006), a ciência não possui a verdade, mas
aceita algumas verdades transitórias, provisórias, em um cenário inacabado,
onde os seres humanos não são o centro da natureza, mas parte dela (OC
Ciências da Natureza e Matemática, 2010, p. 8).
]...] Na escola, o ensino de Ciências pode ser respaldado pela pedagogia
histórico-crítica. Nesse enfoque pedagógico, cabe à escola o papel de
oportunizar às novas gerações a socialização do saber (OC Ciências da
Natureza e Matemática, 2010, p. 9).
[...] o ensino das Ciências como um direito, um dever social e um
reconhecimento de que os conceitos nesta disciplina, bem como nas outras
ligadas à área das CNM, favorecem a interação dos sujeitos com a realidade
social e natural (OC Ciências da Natureza e Matemática, 2010, p. 9).
Acreditamos que o movimento presente nesses discursos não foi fruto de consensos,
mas sim espaços de lutas, espaços de conflitos que o processo de hibridação nos possibilita
visualizar (CANCLINI, 2011, LOPES, 2005). Os produtores da política curricular são sujeitos
com diferenças, e tais estão presentes nos discursos. É possível perceber tensões na
organização do documento que nos revelam a luta por significações acerca de currículo. No
caso das Ciências da Natureza e Matemática acreditamos que mesmo sendo possível
111
visualizar as perspectivas Críticas e Pós-Críticas engendradas no texto, existe certa
prevalência da perspectiva tecnicista, uma vez que por várias passagens têm-se o foco nos
conceitos, nas capacidades e nos objetivos.
a gente trabalho no sistema emancipatório. Porque o técnico é reproduzir o
que a escola vem reproduzindo, e não dá certo, e a escola está um caos. O
prático não dá conta, porque você precisa ter o sentido da reflexibilidade do
professor, a questão da crítica sobre o que tá posto. Contudo, eu fico me
perguntando como construir um currículo emancipatório (Entrevista com
PCER).
[...] utilizamos a aprendizagem crítica... eu tenho um ditado, nós quatro
temos um ditado que achei ótimo, eu prefiro a leveza do e, do que a ditadura
do o. Não! É isso ou aquilo! Tanto que você pode ver que nosso documento
nós nos reportamos a outras teorias também como possibilidade...
aprendizagem crítica é aquela que é questionadora, aquela que passa pela
problematização e não só com foco no conteúdo... ele (aluno) pode ter um
espírito crítico (Entrevista com PCE).
A todo o momento percebemos o deslizamento de sentidos. Existe a produção de
discursos em defesa da construção de um currículo ancorado nos pressupostos da teoria
crítica, contudo com fortes marcas tecnicistas. Não defendemos que as políticas curriculares
permaneçam fixas, contudo salientamos a necessidade de se ter uma forma de pensar
curricular que garanta uma possibilidade sustentada em uma perspectiva de formação
humana.
Os discursos acima poderiam até justificar a necessidade de não fixidez quando falam:
“preferimos a leveza do e do que a ditadura do o”, em um sentido de somar múltiplas
possibilidades. A fluidez, a não fixação, são pontos caros em nossa dissertação, contudo ao
ver, a partir dos processos híbridos, esse ecletismo, nos perguntamos quais interesses estão
marcados quando se propõe hibridizar concepções distintas de currículo, ou seja, concepções
distintas de formação de identidades sociais. Fica claro dessa forma que não se trata apenas de
usar perspectivas diferentes, é preciso pensar na organização e nos sentidos que tal postura irá
produzir.
Nos documentos da Área de Ciências Humanas podemos perceber uma aproximação
maior com as concepções críticas de currículo. O texto, já em sua introdução, salienta que a
Área:
112
[...] busca fundamentação na concepção do método histórico-dialético com o
entendimento de que o conhecimento é construído sócio-historicamente na
relação entre homens e destes com o contexto social, político, econômico,
cultural, natural e tecnológico em constante processo de transformações, e
que envolve diretamente o cotidiano dos professores e estudantes (OC
Ciências Humanas, 2010, p. 9).
O trecho acima mostra que o currículo para essa Área deve ser refletido e construído a
partir dos pressupostos das teorias críticas. O método histórico-dialético é fundamentado nas
bases marxistas em que o foco é a economia política. Dessa forma espera-se que as questões
curriculares sejam capazes de garantir emancipação dos alunos através de uma visão crítica.
Contudo, existe a presença das outras concepções como o caso das concepções
tecnicistas trazendo, assim como em todas as Áreas, quadros sistematizadores com
capacidades e descritores a serem construídos nos alunos, além desses quadros esse
documento possui uma grande listagem de objetivos a serem alcançados pela Área, no
primeiro e segundo Ciclos, e objetivos para cada disciplina no terceiro Ciclo. Essa forma de
organização curricular está ancorada nos princípios de organização postulados por Ralph
Tyler, a preocupação é estar atento a que objetivos deve se alcançar e na forma de
sistematização dos conteúdos (quadros com capacidades e descritores).
Esta área também se ancora, em alguns momentos, nos pressupostos das teorias pós-
críticas de currículo como podemos ver abaixo:
Cultura é concebida, nestas Orientações Curriculares, como conjunto de
práticas por meio das quais significados são produzidos e compartilhados.
Diversidade, do ponto de vista cultural é explicada como construção
histórica e social das diferenças. As diferenças são construções humanas no
contexto sociocultural e histórico (OC Ciências Humanas, 2010, p. 11).
O trecho acima nos evidencia uma concepção de cultura a partir das concepções pós-
estruturalistas, uma vez que o conceito da mesma é apresentado como um processo de
significação, ou seja, uma lógica linguística. Nesse sentido, é construído em alguns trechos do
texto desta área o discurso de que a escola tem que operar com a cultura em um sentido de
significação.
113
Existe uma disputa clara nos discursos produzidos no texto da política de currículo
para a Escola Organizada por Ciclos de Formação acerca da afirmação de concepções de
currículo nas três perspectivas apresentadas. Em cada momento existe a ênfase em uma delas.
Coadunando com os estudos de Nestor Garcia Canclini (2011) acreditamos que entender a
produção dessa política de currículo a partir dos processos de hibridação permite compreender
os jogos de poder existentes na política, fato que nos possibilita entender como certos sentidos
acerca de currículo podem ser hegemonizados discursivamente.
Foram produzidos discursos de que o currículo deve promover a autonomia e a
emancipação, bem como formas de pensar e construir currículos que respeitem e valorizem as
culturas de todos e todas, contudo ao mesmo tempo a política curricular apresenta uma forma
firme de poder quando coloca no final do texto de cada Ciclo de Formação quadros que
delimitam as condições que os alunos devem sair (perfil de saída) da escola, isso denota uma
forma extremamente tecnicista, em que a prescrição de mínimos é o ponto chave para a
melhora da educação.
Na produção do texto curricular não existe uma postura teórica curricular para a
organização do currículo para a Escola Organizada em Ciclos de Formação, há uma
hibridação, uma bricolagem (BALL, 2001) de várias formas. Encaramos que isso é um
problema, uma vez que não orienta à construção curricular nas escolas no tocante a pensar a
formação humana. Não acreditamos na fixação de posturas teóricas, mas é preciso ter uma
postura para a formação das crianças que estão na escola, uma concepção a ser construída.
Embora se mostre como um produto híbrido, a política curricular, tendencialmente se
aproxima mais da perspectiva tecnicista de currículo, uma vez que prescreve um currículo
mínimo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação por meio da listagem de objetivos
e da construção dos quadros organizativos com eixos, capacidades e descritores, os quadros
nos mostram uma postura marcada por objetividade e fixidez na organização dos currículos.
d) Os quadros organizativos: eixos, capacidades e descritores
Além da organização dos documentos da política curricular para o ensino fundamental
estar dividido em três Áreas de Conhecimento, como já discutimos, a cada final de cada texto
114
para um Ciclo de Formação são organizados quadros de sistematização para a organização
curricular. Estes quadros são estruturados com eixos, capacidades e descritores.
Os eixos são trazidos como forma de integração entre as disciplinas de cada Área de
Conhecimento. As capacidades são consideradas como ações teóricas práticas que
estabelecem ligações entre sujeito e objeto. E os descritores como um meio de tradução
diagnosticada da realidade do processo de ensino e aprendizagem (OC Linguagens, 2010).
Segundo discursos presentes nos textos da política curricular os quadros visam um
processo facilitador da produção de currículos nas Escolas Organizadas por Ciclos de
Formação, sempre ligado à questão conceitual. São meios de garantir que os alunos aprendam
o mínimo durante a sua escolarização fundamental.
[...] os quadros apresentados foram também encomendados pela importância,
que não é no grupo de produção, porque a priori não existiam os quadros,
eles vieram depois por uma necessidade, assim como, no desenvolvimento
humano a gente, principalmente no ensino fundamental, a gente vai trabalhar
com capacidades, aí a preocupação que não era, também sem fundamento,
de assegurar no núcleo comum, alguns descritores que outros podem, até
falar assim, olha temos lista do que precisamos ser trabalhado, mas o que o
aluno precisa saber, então, para assegurar o perfil. Partiu da própria
superintendência de currículo, pra assegurar o perfil. Na época o diálogo era
acerca do perfil de saída, porque dá impressão assim, que a gente prepara a
educação infantil, tem um perfil de saída, para que ela integre na
alfabetização, com perfil de saída para o segundo ciclo, e aí também o perfil
de saída, para assegurar que realmente no processo de alfabetização...
assegurar um perfil de saída, não com um critério para que ele pudesse
avançar para o segundo e terceiro ciclo, mas para assegurar um processo de
qualidade de construção de conhecimento, que ninguém aprende do nada,
então para estabelecer um perfil de saída mesmo (Entrevista com GSAS).
A necessidade da construção dos quadros foi vista como uma possibilidade de garantir
um perfil de saída para todos os estudantes, uma preocupação ancorada nas perspectivas
tecnicistas de currículo. Essa ideia partiu da Superintendência de Educação Básica e logo se
espalhou por todos os sujeitos envolvidos no processo de produção da política curricular para
a Escola Organizada por Ciclos de Formação. Apensar de ser uma definição da SEDUC/MT
não foi um processo tranquilo, a elaboração desses quadros foi algo extremamente polêmico,
115
e em sua própria estruturação podemos ver os poderes oblíquos circulando em torno do que
seria colocado ou não.
Isso deu o maior pau, esse foi o maior ponto de estrangulamento, e
estávamos muito resistentes a não fazer aqueles quadros, muito resistente,
entretanto como tinha que ter uma lógica geral, então acabou tendo os
quadros, mas a todo o momento, nós tivemos muita resistência de aceitar
isso, porque nós achávamos que a partir daqueles quadros aquilo poderia ser
um elemento engessador, e ele seria só aquilo, isso foi colocado, mas durante
nossos encontros com os Cefapros e os professores nós colocávamos isso,
explicava que aquilo era apenas uma síntese de entendimento, mas que eles,
nas suas práticas, poderiam fazer da forma que lhe convier, desde que
atendesse aos princípios mínimos, daqueles eixos colocados, e os conteúdos
que fossem inerentes, e se você observar, todas as séries, são os mesmos
eixos, o que muda é o aprofundamento, só isso que vai mudar, é o
aprofundamento dentro daqueles eixos, e esse quadro deu muito problema
(Entrevista com PCE).
Como podemos ver alguns dos sujeitos produtores da política curricular consideraram
a constituição dos quadros como um dos maiores pontos de estrangulamento do processo.
Contudo, mesmo tendo essa concepção no processo final de produção do texto um consenso
pairou em torno da necessidade de se garantir com os quadros um currículo mínimo a ser
trabalhado com as crianças nas Escolas Organizadas por Ciclos de Formação.
Então... eu diria pra você... tanto que pra mim o grande parâmetro é o
livrinho da Escola Ciclada, o livro branco.... ele não tem quadro, ele não tem
nada, e eu dei capacitação, eu trabalhei com capacitação de 1998 até hoje... e
o professor não se encontra... então... quando não tem uma coisa dizendo
assim: é por aqui! Os professores não se encontram, e daí qualquer coisa
serve. Às vezes os professores se sentiam muito desamarrados... será que
precisa? Porque o professor que aposta na emancipação de um currículo e
que tem um compromisso social não precisaria dos quadros, mas... é esse o
perfil de professores que nós temos? Então nesse momento... mas, eu me
pergunto: qual é o professor que nós temos? Qual é a concepção dele em
fazer ciências, em fazer matemática? É claro, é distante? É! É, mas é um mal
necessário! O quadro diz minimamente o que o aluno tem que saber
(Entrevista com PCER).
Em alguns casos, como podemos ver acima, os quadros são vistos como o que os
professores minimamente devem ensinar aos seus alunos, uma vez que estes não têm
116
condições de estabelecer os conhecimentos necessários a ser construído por seus alunos, o que
contraria a própria constituição de um dos princípios basilares da Escola Organizada em
Ciclos de Formação: a emancipação. No trecho acima, a proposta produzido no Livro Escola
Ciclada de Mato Grosso é evidenciada como uma política que não garantiu os conteúdos
mínimos, fato que deixou os professores em condições adversas para a constituição dos
currículos em seus contextos escolares.
Ancorados em Ball apud Mainardes (2006) acreditamos que estes quadros sejam os
mais próximos da prescrição curricular, sendo um texto que limita a leitura dos professores e
professoras, tendo estes que garantir as capacidades ali presentes, dando o caráter de
alimentação textual dentro do contexto da prática. Sabemos que estes textos, mesmo com esta
intencionalidade, podem ser reinterpretados e ressignificados pelos professores e professoras,
contudo a sua estrutura é tecnicista. Fato que podemos ver em um dos discursos com algo que
possa ser negativo dentro da construção curricular nas escolas:
[...] o que eu acho de negativo em relação a isso, aí também não pode dizer
que fosse acontecer assim, mas vem um pensamento nesse sentido, de que
ele pode tornar o quadro em currículo, e questões muito mais importantes
do que estão escritos lá no quadro, podem deixar de ser trabalhado, então o
que eu vejo de negativo... é o receio de que o quadro se torne o currículo da
escola (Entrevista com GSAS).
Como podemos ver o discurso de currículo mínimo, onde o quadro se torne o currículo
da escola, foi posto como um desafio a ser superado pelas escolas. Contudo, é fato que ele
pode se tornar um elemento engessador dentro da política curricular, embora outros discursos
sejam proferidos em torno de uma necessidade de se ter uma proposta com o currículo básico,
retirando o peso dos sentidos do currículo mínimo, o que em nossa leitura configura como a
mesma coisa.
[...] a Secretaria de Estado de Educação, hoje ela não concebe a ideia de um
currículo mínimo para a escola, entende que a gente tem que ter um
currículo básico, isso sim, não o mínimo, e que a escola é responsável pelo
seu projeto político pedagógico, a escola é responsável por isso, mas
compete ao estado, enquanto política pública fazer suas orientações dentro
dos princípios basilares que a escola vai completar e vai organizar o seu
fazer (Entrevista com GSR).
117
Houve uma preocupação com os sentidos cognitivos de aprendizagem dos alunos,
como nos revela o trecho abaixo, há sempre um deslizamento de sentidos, nos mostrando que
a constituição dos quadros dentro dessa política curricular tem um forte marca tecnicista.
A escola em todas as correções devolvidas... a escola... a escola aponta um
pouco isso, e tem todos os estudos que os próprios formuladores que
estavam juntos olhando os ciclos de vida das crianças, dos adolescentes e
dos jovens puderam definir, qual era o eixo que melhor atraía os alunos
nessas idades, porque nós nos baseamos na idade, idade pra este
conhecimento e também nós temos a área de diversidade posta nas
orientações curriculares, foram ouvidos os indígenas, a educação
quilombola, todo mundo olhando seus pares, então quais são os
conhecimento que um aluno, por exemplo, de oito anos de idade teria? No
final de 11 anos de idade o que a escola deixou de capacidade naquele aluno,
ela teve no seu trabalho pedagógico, condição de desenvolver o aluno, então
utilizando a idade como referência, a gente construiu as capacidade que os
alunos devem ter não uma coisa fixa, verdadeira, única e exclusiva, a gente
sabe que não é assim, alguém tem oito anos e todo mundo de oito anos é
igualzinho, não é um Admirável Mundo Novo que a gente quer, a gente quer
os meninos próximos na mesma idade, eles têm valores parecidos, têm
brincadeiras que fazem a cabeça dele e conhecimentos também, então de
uma forma mais tranquila fomos organizando por idade os tempos dos
alunos, e o que ele deve ter de capacidade em cada tempo da vida dele
(Entrevista com GSR).
Isso nos mostra como as perspectivas tecnicistas de currículo não ficaram mortas
quando apareceram no campo curricular às teorias críticas de currículo, isso reforça o que
compreendemos pela não linearidade de perspectivas de currículo no contexto da produção de
políticas. A racionalidade tyleriana, com sua formulação curricular em torno das quatro
questões básicas formuladas por Ralph Tyler não faz parte do passado, está profundamente
marcada nas reformas curriculares nacionais (LOPES e MACEDO, 2011), e também mato
grossense.
O modelo fornecido por Cesar Coll para elaboração de currículo, fortemente
influenciado pela racionalidade posta por Ralph Tyler (LOPES e MACEDO, 2011), teve um
impacto sobre a organização destes quadros na política curricular em Mato Grosso. Segundo
as autoras (2011, p. 59),
[...] seu modelo curricular tem por horizonte um projeto curricular para a
escolarização obrigatória a ser implementado nacionalmente ou por um
poder central... o currículo é organizado linearmente envolvendo as decisões
118
sobre as finalidades do sistema educacional, legalmente estabelecidas; sobre
os objetivos gerais do ensino obrigatório; sobre os objetivos gerais de cada
ciclo e sobre o projeto curricular básico de cada área para o ciclo.
Os quadros sistematizadores apresentam um projeto político e pedagógico que as
escolas têm a obrigatoriedade de trabalhar com os mínimos, ou os básicos, postos na política
curricular, construído pelo poder central. São apresentados, por exemplo, antes de cada
quadro nos textos das Áreas de Ciências da Natureza e Matemática e Ciências Humanas, uma
grande listagem de objetivos a serem alcançados na efetivação da proposta curricular das
escolas.
A constituição das capacidades reforça ainda mais a proximidade da perspectiva
tecnicista na formulação da nova política curricular. Para Lopes e Macedo (2011), o modelo
proposto por Cesar Coll (impregnado da racionalidade tyleriana) organiza os conteúdos em
conceituais, procedimentais e atitudinais. Na produção do texto da política curricular o
significante conteúdo não é abordado diretamente, porém as capacidades são divididas da
mesma forma em que os conteúdos são divididos por Cesar Coll. Vejamos a seguir como as
capacidades são divididas
[...] as capacidades cognitivas, socioculturalmente construídas estão relacio-
nadas aos processos ou operações mentais quando o ser humano constrói o
conhecimento, tais como: a abstração, a análise, a síntese, a correlação, a
percepção, a identificação, a aplicação, a fruição... As capacidades
atitudinais dizem respeito às convicções e modos de ser, sentir e se
posicionar mediante situações concretas... As capacidades procedimentais
estão relacionadas a ser, saber, fazer e saber fazer determinadas coisas (OC
Linguagens, 2010, p. 9).
As capacidades são desenvolvidas da mesma forma que os conteúdos. Os alunos
devem construir saberes ligados ao saber pensar, refletir, fazer, bem como ter bons
relacionamentos com as outras pessoas que o mesmo interage. Mesmo sendo aparentemente
coisas que realmente os alunos no processo de escolarização devam construir, acreditamos
que as mesmas são tidas como possíveis pontos de estrangulamento da construção curricular
dentro das escolas, pois possuem um alto grau de prescrição.
119
Queremos retornar aqui aos sentidos das tencionalidades visualizadas no processo de
produção destes quadros. Como mostramos em alguns trechos esse foi um movimento de
negociações e disputas de poder travada entre os produtores da política curricular. Segundo
entrevista com GSA a proposta da Secretária Adjunta de Política Educacionais da época era
de que a política curricular deveria ter conteúdos, tinha que garantir o mínimo para as escolas.
Ao mesmo tempo a Superintendente de Educação Básica (nível estratégico inferior)
acreditava que não seria necessário. Nesse sentido houve um movimento articulatório que
produziu o discurso de que os quadros seriam estruturas que iriam nem ser tão abertos, nem
tão fechados, possibilitando maior flexibilidade curricular.
Foi uma luta de poderes, sem vencedores, sem perdedores. Nessas “mediações, de vias
diagonais para gerir conflitos, dá às relações culturais um lugar proeminente no
desenvolvimento político” (CANCLINI, 2011, p. 348), é uma luta cultural discursiva e
metafórica, em que os sujeitos se articularam para significar o que acreditavam ser melhor na
constituição dos quadros.
Nessa arena política houve muitas tentativas de manter e romper com a formatação
dos quadros. É interessante ressaltar as fugas de sentidos que este espaço tempo promoveu,
pois “em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos” (CANCLINI, 2011, p. 349), ou
seja, os subterfúgios nessa zona nos mostra as possibilidades de poderes oblíquos circulantes
na constituição de políticas curriculares, há momentos em que alguns discursos conseguiram
sustentar a significante necessidade dos quadros, em outros não, em momentos alguns
discursos conseguiram retirar capacidades estanques, por capacidades mais flexíveis.
Mesmo a constituição dos quadros estando marcadas pelo fluxo contínuo de poderes,
sendo uma arena política de disputas de sentidos, mostrando-se como um produto híbrido
consideramos que os mesmos são extremamente tecnicistas, com possibilidades de
engessamento curricular nas escolas organizadas por Ciclos de Formação. Tais quadros não
garantem que tenha qualidade nos processos de ensino e de aprendizagem, como sinalizam
alguns discursos, pelo contrário podem transformar-se na própria constituição do currículo
escolar, reduzindo toda a complexidade do campo.
A Escola Organizada por Ciclos de Formação seria potencializada curricularmente a
partir de uma política que propusesse a reflexão e a construção em cada espaço tempo escolar
e não com quadros burocráticos que nos remetem a uma lógica tecnicista de pensar e
organizar o currículo escolar. Com esses quadros são postas em cena várias intencionalidades
120
de formação dos sujeitos que estão no processo de escolarização, que, ancorados na
racionalidade tyleriana, nos remetem a pensar na formação de alunos e alunas que respondam
às necessidades do modo de produção capitalista, sentido oposto ao que se espera da
organização por Ciclos de Formação, que é justamente romper com as lógicas excludentes de
mercado, diminuindo e até mesmo erradicando as injustiças postas no mundo contemporâneo.
2.2.2 EIXO 2: Influências presentes nas Orientações Curriculares
a) Emergência Curricular para a Escola Organizada por Ciclos de Formação
As políticas curriculares são frutos de fluxos de proposições vindas de vários espaços
tempos. As políticas curriculares se configuram como ‘“uma produção de múltiplos contextos
sempre produzindo novos sentidos e significados” (LOPES, 2006, p. 39). A circulação de
vários documentos de políticas curriculares produzidos pelo governo federal, bem como
governos estaduais e municipais é hibridizada na constituição de uma política de currículo,
umas de uma forma mais contundente, outras menos. E no caso de Mato Grosso não foi
diferente, percebemos na configuração da política curricular para o ensino fundamental
organizado por Ciclos de Formação a presença de outras propostas curriculares.
A partir desse contexto iremos discutir a emergência curricular para a Escola
Organizada por Ciclos de Formação, pensando nas influências do seu surgimento e nas
necessidades de (re) organização curricular através desta proposta política produzida a partir
de 2007.
O pensamento sobre políticas educacionais que rompessem com a forte exclusão do
sistema seriado no Brasil não surge imediatamente com a proposta de Ciclos, desde o início
do século passado propostas para a redução das taxas de reprovação e evasão, bem como o
aumento do número de vagas na escola pública já eram pensadas (MAINARDES, 2007).
Segundo Barreto e Mitrulis (2001) esse movimento se alargou no Brasil a partir das
décadas de 1950 em diante, nessa década, na Conferência Regional Latino-Americana sobre
Educação Primária Gratuita e Obrigatória, promovida pela UNESCO, já era recomendado,
cautelosamente, que gradativamente se implantasse um sistema que garantisse a promoção de
todas as crianças sem prejuízo de aprendizagem.
121
Outras propostas foram sendo debatidas e implantadas nas décadas seguintes. O termo
Ciclo aparece no cenário nacional em 1984, no sistema educacional paulista. Esse discurso
entra no cenário nacional a partir da circulação dos modelos europeus, que surgem a partir da
reforma do sistema francês no Plano Langevin-Wallon. Após o surgimento da proposta
paulista houve uma disseminação pelo Brasil (MAINARDES, 2007).
A intenção dessa breve exposição é esclarecer que os Ciclos de Formação não são
invenções que surgem sem um respaldo teórico prático histórico internacionalmente. E o mais
importante, que tal forma de organização escolar requer que seja pensado o currículo de forma
a compreender os novos tempos e espaços para a formação dos sujeitos que nela está. A
emergência de proposituras curriculares para a Escola Organizada por Ciclos de Formação
talvez seja uma das mudanças mais necessárias para uma nova configuração no processo de
ensino e de aprendizagem (MAINARDES, 2007).
O surgimento da Escola Organizada por Ciclos de Formação na rede estadual de Mato
Grosso se deu com as primeiras experiências no Projeto Terra, desde então novas proposituras
foram sendo implementadas com o intuito de romper com o massacre das reprovações e
evasões dos estudantes desta rede. Deste momento até a sua implantação efetiva na rede em
2000, muitas influências operaram para a sua gênese e reconfiguração, sendo mais latentes as
propostas da Escola Plural de Belo Horizonte e a Escola Cidadã de Porto Alegre
(MENEGÃO, 2008; BORDALHO, 2008; BRANDINI, 2011).
As influências dessas propostas não se restringiram apenas na configuração da
proposta da implantação da política de ciclos, na produção da política curricular, as
circulações dos pressupostos curriculares daquelas propostas estiveram presentes na produção
do texto político curricular. Em entrevista com vários consultores foi mencionada a leitura dos
documentos dessas propostas, embora alguns deles mencionassem que a SEDUC/MT não
provocou a discussão sobre Ciclos.
[...] nós fomos recuperar estudos antigos, era tema integrador, era ensino por
projetos e trabalhos... então, era por onde iríamos começar, o que nós já
sabíamos e como seria a estrutura do documento. Então, ninguém foi nos
questionar, por exemplo, seu eu acreditava na Escola Organizada em Ciclos
de Formação Humana. Se eu achava que era uma proposta exequível. Se era
um proposta eficiente para a proposta de educação para o ensino de Mato
Grosso. Ninguém nos questionou. A mim não! Nem coletivamente. Nós já
começamos um conversa de como seria o documento, por onde nós
122
começaríamos isso, que leitura nós tínhamos, quem já conhecia o documento
anterior (Escola Ciclada). Eu já conhecia. Outras pessoas não conheciam.
Então nós teríamos que fazer uma leitura inicial, mas isso não foi orientado
(Entrevista com PCO).
A proposta inicial foi a de construir uma política curricular revisitando estudos sobre
formas de integração dos saberes, mas as discussões sobre como pensar essas integrações
dentro da Escola Organizada por Ciclos de Formação não foram postas em jogo para a escrita
dos consultores. Encaramos isso como uma problemática, pois o currículo é pensado para uma
forma de organização escolar específica devendo levar em consideração as suas
especificidades. Foi proferido um discurso acerca das necessidades de integração curricular,
fato que consideramos importante, contudo ficou falha a discussão acerca dos pressupostos do
Ciclo de Formação.
Além disso, como já mencionado, a SEDUC/MT encomendou a produção de um texto
ao Prof. José Clóvis, que fez parte da equipe que construiu a proposta da Escola Cidadã de
Porto Alegre, para trazer as concepções do Ciclo de Formação. Um texto bem elaborado,
contudo com as concepções voltadas para as características e necessidades daquele lugar, ou
seja, com concepções políticas e pedagógicas já definidas.
O currículo para a Escola Organizada por Ciclos de Formação deve ser flexível,
adaptável, politicamente articulado com as necessidades dos alunos e alunas que nele serão
formados (FERNANDES, 2012), dessa forma exige-se uma política curricular que promova o
debate e a produção curricular em cada contexto, permitindo a circularidade de discursos e a
articulação entre os sentidos macro e micros na constituição do currículo escolar, e não cópias
a serem repetidas.
Consideramos que mesmo o governo produzindo ou (re) produzindo políticas
curriculares impregnadas de concepções estaques, como as dos PCNs e outras, sempre serão
reconfiguradas no contexto da prática, contudo nesses movimentos macro e micros, as
políticas como textos são significativas nas práticas pedagógicas, tendo essas que possibilitar
reflexões nesse contexto, e não prescrever os saberes mínimos a serem ensinados.
Os discursos proferidos no Contexto de Influência e de Produção da política curricular
são os de rompimento com a proposta anterior no livro “Escola Ciclada de Mato Grosso”,
bem como o de reconfigurar o currículo com a política proposta atualmente, contudo o que
123
percebemos é uma produção marcada por um processo de bricolagem (BALL, 2001) dos
PCNs e outros documentos federais.
Concordamos que a proposta produzida no documento Escola Ciclada de Mato Grosso
apresenta alguns problemas, como a hibridação entre Ciclos de Aprendizagem e Ciclos de
Formação, como explicitado anteriormente, principalmente no tocante a retenção no final de
cada Ciclo de Formação, contudo no tocante às questões curriculares, ela apresenta pontos
importantes que ainda não foram superados até hoje, como a articulação dos saberes em Áreas
de conhecimento. Essa preocupação é vista do discurso de alguns gestores da SEDUC/MT à
época,
[...] desde 2000 a proposta política é a Organização por Ciclos de Formação
Humana, a gente percebia assim ainda um desencontro, muitas pessoas nas
escolas, nem conheciam ainda bem o livro Escola Ciclada de Mato Grosso, e
que ele tinha assim, um desencontro com a formação humana, porque tem
horas que ele puxa para como se fosse o Ciclo de Aprendizagem, e a gente
precisava desse alinhamento, para a formação, e também para o
desenvolvimento do currículo do ensino fundamental (Entrevista com
GSAS).
Percebemos que essa foi uma preocupação dos profissionais da SEDUC/MT que
estavam à frente do setor específico para pensar o Ciclo de Formação, eles discutiam a
necessidade de se romper com essa hibridação, pois talvez uma das piores concepções do
Ciclo de Aprendizagem estava enviesada no Ciclo de Formação, a retenção, um dos
mecanismos mais perversos de exclusão humana no processo de escolarização. Além disso,
esta e outras preocupações já vinham sendo discutidas antes da proposição das Orientações
Curriculares,
A gente dentro dessa tentativa de organizar propriamente na concepção de
Organização por Ciclo de Formação Humana, a gente teve portarias, que
houve participação da equipe que trabalhava, junto com a consultora, e
alguns momentos até a consultora mesmo, na produção de portarias que
orientam as escolas, pra o desenvolvimento organizacional na escola, tanto
de recurso humano, quanto articulado para a prática pedagógica, o professor
articulador, o processo de alfabetização sendo unidocente porque isso... para
implementação da proposta é fundamental, e a reorganização do livro Escola
Ciclada de Mato Grosso, que era um ponto fundamental, pra que ela fosse
alinhada ao desenvolvimento humano, e não essa mescla de Ciclo, e esse a
124
gente deu terminalidade, mas não chegou ainda a publicação (Entrevista com
GSAS).
Antes da produção da política curricular alguns membros da SEDUC/MT já se
preocupavam com a formação e atribuição do professor articulador, com o professor
acompanhar a turma durante todo um Ciclo, com a não retenção. Tais preocupações foram
publicadas em Portarias e Instruções Normativas, era uma preocupação paulatina com as
concepções do Ciclo de Formação, que de certa forma desembocavam na configuração
curricular para essa organização escolar, pois para se pensar o currículo para a Escola
Organizada por Ciclos de Formação é preciso se debruçar nas concepções que o cercam.
Contudo percebe-se que isso não foi uma lógica nos discursos de muitos consultores,
pois a preocupação maior residia em manter um currículo com uma listagem mínima de
capacidades a serem desenvolvidas pelos alunos.
[...] a proposta antiga... quanto à reformulação da proposta, aquele livro que
nunca saiu, aquele da escola ciclada, nunca tinham escritos os conteúdos
mínimos... porque pra mim currículo são os conteúdos mínimos. Então
nunca tinham sido escrito nada pontual, só geral sobre o que seria o ciclo de
formação humana... pra mim o grande parâmetro é o livrinho da escola
ciclada, o livro branco.... ele não tem quadro, ele não tem nada, e eu dei
capacitação, eu trabalhei com capacitação de 1998 até hoje... e o professor
não se encontra... então... quando não tem uma coisa dizendo assim: é por
aqui! Os professores não se encontram, e daí qualquer coisa serve
(Entrevista com PCER).
Como podemos perceber a preocupação não estava na reflexão e discussão acerca das
concepções da Escola Organizada por Ciclos de Formação, mas sim em garantir os mínimos.
Há, por vezes, alguns discursos que desconsideram a produção curricular dos professores que
estão no contexto da prática, como se eles não fossem capazes de produzirem os currículos
que deem conta das especificidades do processo educativo a ser desenvolvido na Escola
Organizada por Ciclos de Formação.
A escola organizada por Ciclos de Formação necessita de políticas curriculares que
pensem toda a sua lógica de conceber os tempos e espaços formativos, os professores que nela
estão não necessitam de listagem de conteúdos mínimos a serem reproduzidos, que já estão
encontrados em propostas como PCNs ou até mesmo nos livros didáticos, os professores
125
precisam de subsídios teóricos práticos para pensar e refletir como produzir e organizar os
currículos em cada contexto, para cada necessidade que houver no seu dia a dia,
compreendendo que a retenção não faz com que os alunos aprendam mais, que quando os
alunos permanecem com seus pares de idade a aprendizagem se torna mais profícua, que os
conteúdos precisam ser integrados e que devem possibilitar à compreensão de mundo em que
cada um deles vive e poderão viver.
A seguir discutiremos a influência que os PCNs e outros documentos oficiais do
governo federal tiveram na produção do texto da política curricular para o ensino fundamental
organizado por Ciclos de Formação.
b) Influências do Governo Federal na produção da política curricular
As políticas de Ciclos no Brasil tiveram como um dos grandes propulsores os
Governos do PT, na entrada dos comandos políticos em vários municípios e estados este
partido implantou a política de Ciclos de Formação. Uma marca registrada para o avanço da
educação, com princípios democráticos, uma escola para todos (MAINARDES, 2007;
FREITAS, 2003). No estado de Mato Grosso temos um movimento contrário a este, pois foi
no Governo do PSDB, com características neoliberais, que o Ciclo de Formação foi
implantado como forma de organização do ensino fundamental.
Nesses movimentos articulatórios entre partidos progressistas e neoliberais residem
preocupações distintas, percebe-se a proliferação de discursos que aparentemente coadunam
com a mesma intenção, contudo é preciso ter um olhar sagaz para perceber quais as
intencionalidades que cada um espera (FREITAS, 2003). Nesse bojo, salientamos que o
currículo constrói identidades sociais, dessa forma a sua organização e as influências que nele
se fazem querem dizer quais as intencionalidades se têm na formação de um aluno (a). Como
esse olhar sagaz, buscamos compreender quais os discursos tentaram hegemonizar tais
sentidos em torno dessa política curricular.
Percebemos que os PCN talvez sejam os documentos que mais tiveram impacto na
construção da política curricular para o ensino fundamental. Em torno da sua utilização há um
126
discurso de que a política do estado deve coaduanar com as políticas nacionais, e para
consultores e gestores da SEDUC/MT os PCNs são os documentos basilares.
[...] havia a necessidade de implementar um programa curricular que
superasse alguns problemas diagnosticados, e que também tivesse alinhado
com os Parâmetros de Currículo Nacional, porque o principal problema foi
esse, como que nós podemos também... quer dizer também não... nós temos
a obrigação de adequar o currículo do estado com a proposta do MEC, que
era os PCNs (Entrevista com PCE).
O discurso de adequar, de acompanhar o que o governo federal desenvolve influenciou
marcadamente a produção dos documentos no estado de Mato Grosso. Tal adequação foi um
discurso circulante entre Gestores da SEDUC/MT e entre vários consultores. Um sentido de
obrigação, em que o Governo Federal dita a “regra” e o estado tem que seguir essa “regra”,
podendo fazer alguns ajustes, porém mantendo a mesma lógica, como reforça o trecho abaixo:
[...] a organização curricular por área de conhecimento, integrado para toda a
educação básica via MEC e Conselho Nacional de Educação. As diretrizes
nacionais já estão postas, o Conselho Nacional já estabelece essas
normativas, então o papel do estado é apresentar para a sociedade
educacional qual é a sua concepção e isso precisa estar estruturado em um
documento, e porque orientações, porque elas não são obrigatórias
(Entrevista com GSA).
Percebemos a forte influência dos PCNs e outros documentos do Governo Federal
como as Diretrizes Curriculares Nacionais CNE/2010, que foram lançadas no mesmo ano das
Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso. Visualizamos um sentido de obrigação
do estado de produzir e seguir o que estes documentos ditam. No trecho abaixo a entrevistada
reforça esse visão afirmando a igualdade de termos e concepções sinalizadas nas Diretrizes
Nacionais CNE/2010 que Mato Grosso já utilizou nas Orientações Curriculares:
[...] ela (Acácia Kuenzer) foi extremamente importante, porque ela já vinha
acompanhando essas discussões no conselho nacional, ela era uma das
consultoras junto ao MEC para rever as diretrizes nacionais, depois ela
acabou se afastando. Então ela já sabia o que já vinha sendo discutido em
nível nacional pelo MEC e conselho nacional, e ela trouxe isso para o Mato
Grosso. As diretrizes do governo federal saíram depois, e quando saíram as
nossas já estavam atualizadas, até as categorias trabalho, conhecimento e
cultura (Entrevista com GSA).
127
A consultora geral da política curricular de Mato Grosso, Profa. Acácia Kuenzer, era
consultora do MEC na produção das Diretrizes Curriculares Nacionais (publicadas em 2010).
Quando a mesma começa os trabalhos em Mato Grosso, várias das concepções sinalizadas no
documento do Governo Federal são colocadas como carro chefe. As próprias categorias
trabalho, conhecimento e cultural são assumidas como basilares na proposta mato-grossense,
a única diferença é que neste documento tais categorias são chamadas de eixos articuladores,
mostrando-nos como os documentos federais foram influenciadores da proposta curricular da
rede estadual de Mato Grosso. Mais uma vez evidenciamos o poder oblíquo, pois se percebe
uma espécie de concepções garantidoras de que Mato Grosso estava no caminho certo e,
portanto deveria seguir o que a consultora estava orientando.
Mesmo as Diretrizes Curriculares Nacionais CNE/2010 tendo esse grande impacto nas
concepções educativas gerais na política curricular, percebemos que a grande referência para
a produção do texto para o Ensino Fundamental foi mesmo os PCNs como podemos ver nos
trechos de algumas entrevistas:
[...] a grande referência é claro que são os parâmetros nacionais... a
documentação fundamental para produzir as Orientações sem sombra de
dúvida foram os PCNs (Entrevista com PCM).
[...] os PCNs sempre foram os documentos balizadores de tudo... foram
muito utilizados. Eu sempre uso então os PCNs... é claro que nós tivemos
como inspiração maior os PCNs, que as OCs seriam o desdobramento dos
parâmetros maiores (Entrevista com PCER).
O discurso de coadunar com os documentos do MEC ficou fortalecido na posição dos
consultores das disciplinas. Eles são enfáticos ao dizer que a política curricular para o ensino
fundamental da rede estadual de Mato Grosso deveria ser um desdobramento dos PCNs. O
que podemos ver é que em alguns casos são retirados trechos dos PCNs e utilizados na integra
nos documentos de Mato Grosso, apresentando muitas vezes certo distanciamento do próprio
Ensino Fundamental como podemos ver no caso do texto de Ciências da Natureza e
Matemática, em que os eixos articuladores para o Ensino Fundamental são retirados dos
PCNs +, documentos destinados para o Ensino Médio: Representação e Comunicação,
Investigação e Compreensão e Contextualização Sociocultural adaptados dos PCNs+ do
Ensino Médio (OC Ciências da Natureza e Matemática, 2010, p. 10).
128
No texto de Linguagens há várias referências aos PCNs, sendo a disciplina de Língua
Portuguesa a que mais faz essa evidência,
No processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, os eixos
temáticos já apontados nos PCNs – oralidade, práticas de leitura, produção
de textos escritos e análise linguística – constituem norteadores de uma
proposta interlocutiva de ensino (OC Linguagens, 2010, p. 28).
Em Ciências Humanas as referências dos PCNs são tomadas constantemente no corpo
do texto, são trazidos trechos diretos ou fazendo referência ao mesmo. Vejamos os trechos
abaixo:
Com maior autonomia em relação à leitura e à escrita, as possibilidades de
aprendizagem dos estudantes ampliam-se, permitindo o uso crescente dos
procedimentos de observação, descrição, explicação e representação,
construindo compreensões mais complexas e realizando analogias e sínteses
mais elaboradas (BRASIL, 1997) (OC Ciências Humanas, 2010, p. 22).
Sobre organizações populacionais, ver Parâmetros Curriculares Nacionais do
Ensino Fundamental (BRASIL, 1997) (OC Ciências Humanas, 2010, p. 23).
Em um estudo do meio o estudante depara-se com o todo cultural, o presente
e o passado, o particular e o geral, a diversidade e as generalizações, as
contradições e o que se pode estabelecer de comum no diferente (BRASIL,
1997) (OC Ciências Humanas, 2010, p. 34).
As categorias geográficas “região” e “território” estão inseridas no espaço
geográfico e, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998)
(OC Ciências Humanas, 2010, p. 40).
Não olhamos negativamente esse processo de circularidade de outras políticas
curriculares serem evidenciadas na política curricular analisada, até porque acreditamos que
há sempre movimentos migratórios de discursos e textos, e que estes influenciam as novas
produções. Também não descartamos a potência dos processos de hibridação na configuração
de políticas curriculares, uma vez que os processos de descoleção e desterritorialização são
capazes de promover mudanças constantes na produção de políticas educacionais e
curriculares. Contudo, não podemos deixar de salientar que a insistente postura de evidenciar
os PCNs, deixa nas Orientações Curriculares um empobrecimento no tocante a feitura
curricular nas Escolas Organizadas por Ciclos de Formação.
129
Além da forte influência dos PCN, percebemos também na configuração da proposta
para o Ensino Fundamental a presença dos eixos e capacidades solicitados em programas e
avaliações de larga escala realizados pelo Governo Federal, como podemos ver no trecho
abaixo:
[...] eu me ative muito à experiência que eu tive no Gestar, e também no
INEP, Prova Brasil... nós tínhamos muito presente a questão dos PCNs, do
PISA, das avaliações do SAEB, dos descritores da Prova Brasil, do Gestar,
que eles tinham os descritores, as habilidades que as crianças tinham que
alcançar (Entrevista com PCER).
Em algumas Áreas de Conhecimento a influência dos descritores da Prova Brasil foi
forte evidenciando que a preocupação, muitas vezes, não residiu em produzir uma política
curricular que atendesse às necessidades da Escola Organizada por Ciclos de Formação, mas
sim a responder os índices propostos por organismos mundiais.
Voltamos aqui nas intencionalidades destes discursos. Embora sejam proferidos
discursos de que os PCNs são apenas basilares, e que não devem ser seguidos, e que o Estado
reorganizou os mesmos, percebemos que em relação ao Ensino Fundamental, as Orientações
Curriculares de Mato Grosso (2010), somente reafirmam o que os PCNs e outros documentos
nacionais já estabelecem. Há uma clara intenção de que o Estado dê conta de atingir os
patamares exigidos nas avaliações externas, deixando à mercê as concepções a serem
refletidas acerca do Ciclo de Formação na produção de Orientações Curriculares.
A política curricular foi influenciada de tal maneira pelos documentos federais,
principalmente pelos PCNs, que desconectou as singularidades das concepções do Ciclo de
Formação. Há uma ruptura com os pressupostos progressistas da proposta ao se propor um
currículo que atenda às necessidades capitalistas via exames como Prova Brasil. A política
curricular analisada apresenta problemas quanto às concepções de emancipação e autonomia
na produção dos currículos para as Escolas Organizadas por Ciclos de Formação, pois tentou
fixar caminhos, como por exemplo, para se chegar a resultados satisfatórios em exames de
larga escala.
Sabemos que emancipação e autonomia são duas condições impossíveis de se
conquistar plenamente na vida humana, contudo acreditamos que dentro da precária fixação
130
de ambas os professores e as escolas podem construir propostas autônomas, criativas,
flexíveis, atingindo, ou tentando atingir, às necessidades que residem em cada espaço tempo
formativos, em cada processo de ensino e de aprendizagem, possibilitando a construção de
saberes para todas e todos.
c) Propostas Curriculares de outros estados e as Orientações Curriculares de MT
Além das influências dos documentos curriculares do Governo Federal na emergência
e produção do texto da política curricular para o Ensino Fundamental, a circularidade de
outras propostas curriculares de alguns estados do Brasil esteve presente nos documentos.
Algumas propostas foram fortemente influenciadoras e outras menos, umas mais legitimas ou
menos legitimas (LOPES, 2006). Destacaremos as sinalizadas nos discursos dos produtores
do texto da política curricular, a proposta do Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São
Paulo, Espírito Santo e Pará.
A proposta construída pelo Estado do Paraná foi talvez a mais influenciadora, não no
sentido de cópia ou de produção em uma mesma estrutura, mas das concepções teóricas.
Consideramos que isso ocorreu principalmente pelo fato de que a consultora geral, Profa.
Acácia Kuenzer, é deste Estado. No momento de definição para a produção da política
curricular para toda a Educação Básica este foi o Estado “visitado” por membros da
SEDUC/MT.
[...] o grupo mesmo que montamos no início foi Ema e Terezinha que foram
para o Paraná e conversaram com a professora Acácia Kuenzer (Entrevista
com GSA).
[...] a Ema era coordenadora do ensino médio, e ela foi até o Paraná e tomou
conhecimento das orientações, ou qualquer coisa parecida e fez a defesa na
SEDUC/MT (Entrevista com GSJ).
As pessoas mencionadas acima, Ema e Terezinha, eram Assessoras Técnicas
Pedagógicas da SEDUC/MT, ambas ocupavam cargos de Coordenação e Gerência da Equipe
do Ensino Médio. Elas foram ao Paraná conhecer a proposta deste Estado, bem como entrar
131
em contato direto com a consultora que seria posteriormente quem coordenaria toda a
proposta para a Educação Básica.
Inicialmente as Orientações Curriculares seriam produzidas para o Ensino Médio, após
as discussões com a Profa. Acácia Kuenzer a proposta se ampliou para toda a Educação
Básica, englobando assim o Ensino Fundamental organizado por Ciclos de Formação. A
Equipe do Ensino Fundamental já havia iniciado um movimento para a discussão dos Ciclos
de Formação desde 2006, esse movimento foi estabelecido para discussões mais amplas, e não
apenas para as questões curriculares. Neste movimento a proposta de Minas Gerais, bem
como estudos realizados por um grupo de pesquisa da UFMG, tiveram influências na
produção dos documentos para o Ensino Fundamental, tanto nessas discussões gerais quanto
posteriormente na produção do texto curricular para essa etapa da Educação Básica. O trecho
abaixo nos mostra esse processo:
[...] em 2007 já tinha... quem era Gerente de Organização Curricular no
Ensino Fundamental, chegou a fazer uma viagem para Minas pra olhar como
que era a organização da Escola Plural e a partir da viagem... e assim... os
documentos que a gerente de organização curricular da época, Profa.
Catarina... a partir daquelas propostas estruturadas lá em Minas a gente
começou a também a se organizar, e o diferencial e as leituras que a gente
faziam em equipe... já tinha uma leitura da própria produção de Minas,
depois a gente conseguiu ter o diferencial, porque tem que levar em conta o
letramento, que na Escola Plural também é a partir do letramento (Entrevista
com GSAS).
As concepções da Escola Plural foram referenciadas nas discussões acerca da forma de
se pensar a Organização da Escola em Ciclos de Formação. Destaca-se como fundamento
observado na proposta de Minas Gerais a fundamentação em torno do Letramento, conceito
utilizado fundamentalmente na proposta curricular nos dois primeiros Ciclos de Formação,
termos como Alfabetização e Letramento Científico, Alfabetização e Letramento Cartográfico
e Alfabetização e Letramento nas múltiplas Linguagens, foram levantados como pontos chave
para o processo de construção de conhecimentos das crianças, consideramos que estes pontos
sejam destacados como fortes dentro da produção da política curricular para o ensino
fundamental por Ciclos de Formação.
Veja, estamos tratando de dois momentos, o primeiro em que a Equipe do Ensino
Fundamental remete-se a discussões da reorganização dos Ciclos de Formação e depois à
132
construção das Orientações Curriculares, em ambos os processos a proposta de Minas Gerais
teve influências. O contato com a proposta da Escola Plural de Minas Gerais, bem como as
fundamentações do Grupo CEALE/UFMG influenciaram a contratação de uma consultoria do
mesmo estado para trabalhar com os primeiros Ciclos e orientar aos professores consultores
das disciplinas na escrita específica das disciplinas.
[...] decidiu (após sugestão da Jorci) que teria uma consultoria de Minas, e
acho que duas ou três vezes, tem que olhar nos meus registros... só que ela
tinha... a formação dela era na área de Linguagem, trabalha nesse grupo de
Formação de Alfabetizadores, só que depois a contribuição dela foi
interessante, mas ainda focava muito em língua portuguesa e matemática
(Entrevista com GSAS).
Nós tivemos uma consultora específica para o primeiro e para o segundo
ciclos. Foi... a Professora de Minas (Professora Martha). Eu,
particularmente, incomodei muito! Ela sempre me respondeu. Ela corrigiu.
Ela corrigiu os descritos, e sempre devolvia com considerações, com
considerações bem pertinentes (Entrevista com PCO).
Como podemos ver a contratação veio após a sugestão da consultora que
acompanhava e orientava a reorganização das concepções da Escola Organizada por Ciclos de
Formação, contudo com influências de visitas e estudo da proposta do Estado de Minas
Gerais. Alguns Consultores das Disciplinas tiveram contato frequente com a mesma, outros
nem se lembraram da existência de uma consultora para tratar das questões disciplinares dos
Ciclos de Formação durante as entrevistas realizadas. Como podemos ver essa consultoria
desenvolveu um trabalho mais específico em Língua Portuguesa e Matemática, auxiliando e
corrigindo alguns pontos das outras disciplinas.
[...] como alfabetização no estado a gente não tem grupo de pesquisa tão
fortalecido, com representações mais fortes, a gente procurou fora, a
Universidade de Minas Gerais, pra discutir o ciclo a concepção de ciclo
(Entrevista com GSR).
Os pressupostos destas propostas, principalmente acerca da alfabetização e letramento,
tiveram influências na produção do texto da política curricular para o ensino fundamental em
Mato Grosso, evidenciando a circularidade dos discursos curriculares na produção das
133
políticas. Mesmo que alguns discursos de Gestores da SEDUC/MT sinalizassem que tais
propostas serviram apenas para se fazer comparações, pontuando que a proposta de Mato
Grosso foi totalmente diferente, outros discursos evidenciam o processo de
desterritorialização ocorrido na produção da política curricular,
[...] toda vez que você vai elaborar um documento é comum você procurar
saber o que outros estados já fizeram, parece-me que foi apresentado a nós
propostas de Minas Gerais, São Paulo, mas era bem fora daquilo que
queríamos, pois eles chegam a nível de conteúdo, o que não era nossa
intenção, então a equipe leu todos esses inclusive o do Paraná, mas não
tomamos com referência, foi só pra conhecimento, pois nós ousamos
construir algo nosso, no Paraná, nós fomos atrás de consultoria (Entrevista
com GSA).
[...] pegamos o material de Minas e tomamos como parâmetros para tomar
uma decisão pra não ficar tão engessado, mas também não muito aberto
(Entrevista com GAS).
Mesmo que outras proposições e formas de conceber o currículo na construção de
políticas sejam subjulgados, eles não são completamente excluídos da arena política (LOPES,
2006). Os discursos acima nos evidenciam justamente esse processo ambivalente que
constitui a construção de políticas curriculares, pois mesmo tentando excluir a circulação de
sentidos de outros espaços tempos, os discursos são reconfigurados e hibridizados na
constituição da política curricular. Mesmo negando que as propostas de outros locais não
foram utilizadas como referência direta, pode-se perceber que indiretamente elas estão
marcadas na produção do texto curricular da rede estadual de Mato Grosso.
Como salienta Canclini (2011), a tentativa do estabelecimento de rígidas fronteiras é
extremamente porosa, pois as situações culturais se constituem como unidades instáveis, ou
seja, pensar a proliferação de discursos fechados em uma política curricular que os
hibridismos acontecem a todo o momento é praticamente impossível, mesmo tentando se
fechar, postulando questões como a limitação territorial, os poderes oblíquos imbricados em
múltiplos espaços tempos circulam e deixam as suas marcas em novas produções culturais,
como o caso da política curricular, com as influências vindas de outros lugares.
Para além da proposta dos estados brasileiros já sinalizados, podemos vislumbrar esse
processo de desterritorialização cultural em outros lugares, como salientam os trechos abaixo,
134
[...] a equipe daqui conheceu outros estados, conheceu Paraná, Rondônia, o
Ensino Fundamental também conheceu o Ciclo do Rio Grande do Sul, o
modelo que São Paulo faz, a equipe visualizou... a professora Acássia
Kuenzer que foi orientadora da primeira discussão de Ensino Médio aqui no
estado... ela acabou fazendo a discussão em outros estados da federação
como Minas e o próprio Paraná (Entrevista com GSR).
A proposta da Escola Cidadã, da Secretaria Municipal de Educação do Rio Grande do
Sul, que trata dos Ciclos de Formação, foi tomada principalmente do texto encomendado ao
Prof. José Clóvis, como já mencionado. Talvez seja um ponto falho nas Orientações
Curriculares do Ensino Fundamental, pois ao contrário do processo de hibridização
evidenciado, por exemplo, junto à proposta de Minas Gerais, foi um texto sem discussões
com consultores e professores de Mato Grosso.
Segundo alguns Gestores da SEDUC/MT aos consultores foram encaminhados e
sugeridos as leituras de outras propostas, sendo a da rede estadual de São Paulo evidenciada
por alguns deles,
A Secretaria nos deu... eles nos deram exemplares, diretrizes de dois, três, eu
acho que uns três Estados para nós. Víamos em que pé, ou até então, as
sistemática deles. Eu me lembro que eu fiquei com um, a Maria Rosa com
outro, depois...deixe-me ver, deixe-me ver... foram documentos de São
Paulo, depois eu devolvi pra Terezinha lá da Secretaria. Foi São Paulo... eu
fiquei com São Paulo, não me lembro se foi Santa Catarina ou Paraná, Maria
Rosa ficou com outro. Ah! Ela ficou com Paraná e eu fiquei com São Paulo
e Santa Catarina foi bem assim (Entrevista com PCI).
O discurso da Secretária Adjunta de Políticas Educacionais, à época, era que se
construísse um documento que discutisse e apresentasse claramente os conteúdos básicos,
uma ideia vinda da proposição do Estado de São Paulo, talvez seja por isso o
encaminhamento dela aos consultores. Essa influência pode ser devida algumas visitas que a
mesma teve a este estado. Segundo entrevista com GSA esse era o “desejo” da Secretária,
contudo não se efetivou diretamente como a proposta Paulista, descrevendo diretamente os
conteúdos a serem trabalhados, mas nos quadros com os eixos, capacidades e descritores são
evidenciados os conteúdos de forma indireta.
135
Políticas Curriculares de outros estados também foram destacadas como podemos ver
a seguir:
[...] nós tivemos conhecimento de Orientações Curriculares de Espírito
Santo, recebemos materiais de outros estados, e a partir dos momentos que a
gente vai conhecendo colegas de outros estados a gente vai recebendo,
conhecendo as propostas de outros estados. Conhecemos também a proposta
do Pará, trouxemos pessoas do Pará para fazer capacitação interna, porque
isso também. Isso nesse momento é exigido na secretaria, para gente fazer
comparações, melhorar, aproveitar as experiências de outros lugares. E
assim foi feito (Entrevista com GST).
O contato que os membros da SEDUC/MT tiveram com equipes de outros estados
durante encontros no MEC promoveu um processo migratório de outras ideias acerca da
organização de políticas curriculares, tais como as do Espírito Santo e Pará. Esse movimento
foi realizado até mesmo com formações internas através da vinda de pessoas do Pará.
Acreditamos que essas circulações estão extremamente vinculadas ao processo de construção
do texto da política curricular de Mato Grosso, promovendo de certa forma uma aproximação
com as realidades destes Estados e o afastamento das discussões da própria política de Ciclos
de Formação da rede estadual de Mato Grosso.
Percebemos que a arena de influências de outros estados brasileiros na constituição da
política curricular para o ensino fundamental organizado por Ciclos de Formação promoveu a
quebra das fronteiras que alguns discursos tentaram estabelecer, evidenciando a relação
intrínseca entre o particular e o universal (LACLAU, 2011), entre as questões locais e
estaduais na configuração da política curricular. Mesmo havendo uma vontade de se construir
uma proposta “pura”, os processos de hibridação promovidos pelas várias proposituras
curriculares de outros espaços tempos e a circulação dos múltiplos discursos em outras
políticas estão marcadas na produção da política curricular para o ensino fundamental da rede
estadual de Mato Grosso.
136
d) A presença e voz de uma “comunidade epistêmica”2
As produções de políticas curriculares emergem e se constituem a partir de um
emaranhado de influências, já destacamos uma grande influência de discursos dos PCNs na
produção da política de currículo para o Ensino Fundamental da rede estadual de Mato
Grosso, e queremos potencializar o nosso debate mostrando que as influências também
nascem de outras instâncias, as vozes de muitos setores públicos ou privados, dos professores
e professoras, dentre outros discursos que circulam no momento da produção de uma política
são encarados aqui nesta dissertação como potentes para a produção dos textos políticos.
Sabemos que são muitas vozes presentes nas produções das políticas de currículos, e
como Mainardes (2007) explica, algumas são ouvidas outras não, umas são incluídas e outras
excluídas, algumas podem até mesmo serem silenciadas ou mesmo ausentadas. Destacamos
para evidenciar a presença dessa arena conturbada e marcada por conflitos a presença da
consultora Profa. Dra. Acácia Kuenzer, que durante o processo de produção se tornou a
consultora geral influenciando todo o processo de produção da política curricular para a
Educação Básica de Mato Grosso.
Os discursos proferidos por ela foram de fundamental relevância na construção dos
textos da política curricular. A sua contratação se deu pelos trabalhos desenvolvidos
anteriormente no estado,
[...] procuramos a professora Doutora Acácia Kuenzer, que tinha feito uma
orientação anterior, aqui no estado de Mato Grosso para o ensino médio, e
tem um trabalho fortificado no País nessa discussão e reflexão sobre o
ensino médio, e aí ela ficou como coordenadora geral do grupo (Entrevista
com GSR).
Além dos trabalhos realizados anteriormente em Mato Grosso, seu trabalho realizado
no MEC foi outro ponto destacado para o convite. Na sua vinda para ser consultora geral da
2Comunidades epistêmicas constituem uma rede de especialistas com perícia e competência
reconhecidas, associadas a um conhecimento específico, capaz de atuar nas políticas em geral
(ABREU, 2010). Em nossa pesquisa tratamos comunidade epistêmica entre aspas para destacar que
compreendemos que este conceito abrange mais de um intelectual, contudo queremos evidenciar que a
Profa. Acácia Kuenzer teve um papel preponderante em toda a organização e produção da política de
currículo analisada, entrelaçando e relacionando múltiplos sentidos pedagógicos e políticos.
137
política curricular a mesma trouxe todas as concepções de educação e sociedade, que
posteriormente seriam matizes para a produção da política curricular em Mato Grosso. Os
conhecimentos trazidos pela Profa. Acácia transformou a arena de influência em um espaço
de circulação das suas concepções educacionais.
Toda nossa construção do processo das orientações curriculares a professora
Acácia foi muito importante, ela foi nossa consultora chefe, as vindas dela
mesmo tendo sido poucas foram de grande importância, pois ela deixava
tudo estruturado, ela foi extremamente importante, porque ela já vinha
acompanhando essas discussões no conselho nacional, ela era uma das
consultoras junto ao MEC para rever as diretrizes nacionais (Entrevista com
GSA).
Os gestores da SEDUC/MT salientam que toda a construção das Orientações
Curriculares de Mato Grosso teve as considerações enfáticas da Profa. Acácia Kuenzer, sendo
todas acatadas pelos núcleos estratégicos da Secretaria. O peso dessas influências pode estar
ligado ao fato de que a mesma era também consultora do MEC, e como o discurso era
coadunar com as propostas deste órgão, os gestores da SEDUC/MT de imediato acatavam as
definições de Acácia Kuenzer. Como se pode ver, mesmo não estando tão presente,
fisicamente, em Mato Grosso ela deixava todo o trabalho estruturado.
Houve nesse sentido uma ampla negociação entre esta consultora geral e os demais
consultores, tendo esse segundo grupo de organizar e reorganizar os textos políticos a partir
desses momentos. Entendemos que as influências da Profa. Acácia Kuenzer ancoravam-se em
duas instâncias, uma dada a sua experiência e produção intelectual em todo território nacional
e outra dada pelo poder que a própria SEDUC/MT lhe conferiu nesse processo. Por isso
podemos dizer que em muitos momentos as articulações estabelecidas entre os dois grupos
nos revelam certo apagamento de diferenças fazendo com que discursos sinalizassem uma
lógica de equivalência (LACLAU e MOUFFE, 2010), como, por exemplo, o caso da
organização do currículo em Áreas de Conhecimento.
Embora fosse uma deliberação da SEDUC/MT, via influência da Profa. Acácia
Kuenzer, foi um discurso assumido como importante por todos os demais consultores durante
o processo de produção, como já discutimos anteriormente.
138
Essa tentativa de organizar o documento tem muito da participação da
Professora Acácia Kuenzer, nossa consultora geral... então em conversas
com professora Acácia, que participava das discussões do Conselho
Nacional das Diretrizes do Conselho 2010 e 2011... então ela já vinha
acompanhando e já sabia que existia um indicativo de organização
curricular por Área de Conhecimento, integrado para toda a educação básica
via MEC, Conselho Nacional (Entrevista com GSA).
[...] já na segunda reunião a Professora Acácia propôs que fizéssemos um
documento conjunto pra educação básica, dividido por Área de
Conhecimento, e já que estavam todos os consultores juntos conosco, nós
acatamos a ideia (Entrevista com GSA).
Como podemos ver a definição foi dada pela Profa. Acácia Kuenzer, e acatada pela
Secretaria, contudo nas entrevistas com vários consultores das disciplinas, a importância dessa
organização é evidenciada, de formas diferentes, mas com intencionalidades equivalentes,
como potencializadora do currículo no Ensino Fundamental.
A área... então... foi uma grande discussão que nós tivemos, ela é uma
discussão muito antiga. Foi um consenso. Essa discussão já vinha da própria
SEDUC/MT, da Acácia, de todos os consultores que eles tinham arrumado
lá... todos vinham com essa discussão. Uma discussão muito interessante
(Entrevista com PCO).
Essas negociações revelam a potencialidade que os poderes oblíquos possuem. A sua
disseminação e sua entrada em múltiplos espaços revelam que a dinâmica dos fluxos de poder
não centralizam apenas em uma localidade (CANCLINI, 2010), os consultores e os gestores
da SEDUC/MT criaram muitas vezes zonas de escape, possibilitando a entrada e saída de
múltiplas concepções na produção da política curricular. Reforçamos aqui nesse jogo
articulatório que a “voz” da Profa. Acácia foi fundamental em toda a estruturação, contudo
sem apagamento de outras vozes.
Como já salientado, as Orientações Curriculares eram inicialmente para o Ensino
Médio, pois o Ensino Fundamental vinha em outro movimento de reorganização de toda a
proposta dos Ciclos de Formação. Foi a partir de mais uma proposta da Profa. Acácia Kuenzer
que a estruturação do documento aglomerou o ensino fundamental, cessando a discussão geral
sobre Ciclos de Formação e direcionando-se para as questões do currículo.
139
[...] a viagem foi feita até Curitiba, onde em conversa com a Secretaria de
Educação do Paraná ela (Acácia Kuenzer) nos alertou para o fato de que
agora tínhamos a Educação Básica envolvendo todos os estudos da
Educação Infantil até o Ensino Médio e que não deveríamos ter Orientações
em separado por quanto isso poderia gerar dificuldades em escolas que
trabalham com as diversas etapas da Educação (Entrevista com GST).
[...] o ponta pé inicial partiu das concepções orientadas e discutidas pela
Professora Acácia (Entrevista com GST).
A orientação de organização do currículo para a Educação Básica nasce das
proposições que o MEC vinha desenvolvendo, bem como a importância de auxiliar as escolas
a pensar a Educação de uma forma integrada e não etapista e factual, ambas as posturas
acompanhadas pela Profa. Acácia Kuenzer. “O pontapé inicial” de como organizar e
estruturar o Documento Curricular de Mato Grosso, como sinaliza a entrevistada, foi da Profa.
Acácia, sendo a responsável por toda a organização do documento. Esse discurso foi
referenciado como uma necessidade para o fortalecimento da proposta, pois uma proposta
orgânica deveria englobar todas as etapas da Educação Básica,
[...] até pra pensar o mesmo princípio para a Escola Básica, não seria o
princípio que nós iríamos trabalhar a organização das orientações para o
médio ou para o fundamental, a gente trabalhou no geral, a gente tem toda a
orientação baseada nos mesmos princípios, então nesse sentido a gente foi
construindo esses grupos de trabalho, fortemente com a presença da
Universidade Federal de Mato Grosso, com a professora Acássia (Entrevista
com GSR).
A ideia veiculada pela Profa. Acácia foi fortalecida pelos Gestores da SEDUC/MT
para que a política curricular garantisse uma unicidade, uma organicidade para todas as etapas
da Educação Básica. Esse fortalecimento foi dado em outros discursos: “nós a convidamos
(Acácia Kuenzer) novamente para que ela fizesse os primeiros textos, o documento que
tivesse as concepções que depois iriam embasar todas as nossas orientações curriculares”
(Entrevista com GST).
Foi uma orientação da professora Acácia fazer tudo junto. Tinha necessidade
de serem os mesmos, ela começou com esse discurso, ia fazer separado
depois de certo tempo, inclusive a introdução da área de linguagens foi feita
pensando no ensino médio, depois nós tivemos que rever pra ver se estaria
140
bem ou não para pegar também o fundamental. Foi bem assim (Entrevista
com PCI).
Através desse trecho percebemos que a articulação para a organização da política de
currículo como uma proposta orgânica para toda a Educação Básica não foi apenas com os
gestores da SEDUC/MT, mas também em negociações com os consultores das disciplinas.
Essa definição foi dada pela consultora, fazendo com que muitos textos fossem reelaborados,
como o caso da Área de Linguagens.
Dentre os discursos influenciadores produzidos pela Profa. Acácia Kuenzer temos a
organização das capacidades para cada Ciclo de Formação. A mesma realizou um encontro
formativo com os GTs de Sistematização das Orientações e os Assessores Técnicos
Pedagógicos da SEDUC/MT para realizar uma discussão que superasse a proposição das
habilidades e competências, sistematizando quadros organizativos para o Ensino Fundamental
com eixos, capacidades e descritores. O trecho abaixo sinaliza esta discussão que resultou em
um dos discursos defendidos dentro da política de currículo para o ensino fundamental:
[...] um dia eu ouvi a fala (da Acácia) sobre capacidades e disse tá aí a
mulher, ela diz exatamente o que eu aprendi sobre isso, o que é competência
e a quem cabe ter competência é o professor, ao profissional cabe ter
competência, não ao aluno (Entrevista com GSJ).
Como salienta Ball apud Mainardes (2006), as influências aparecem de várias formas,
uma delas são as formações, e desta vez no processo de produção da política foi esse o
caminho influenciador advindo das proposições da Profa. Acácia Kuenzer. Durante a sua fala
houve um convencimento e também um fortalecimento de convicções acerca das capacidades
as quais foram encaradas como essenciais para a construção dos conhecimentos dos
estudantes do ensino fundamental organizado por Ciclos de Formação.
Mesmo não estando presente fisicamente por muitas vezes em Mato Grosso, Profa.
Acássia Kuenzer foi a grande influenciadora da construção das Orientações Curriculares,
Muitas questões eram tratadas por email, a Professora Acácia não tinha
disponibilidade para vir, parece que ela veio em 2008 umas 2 ou 3 vezes, em
141
2009 mais umas 2 ou 3 vezes, e em 2010 uma vez. Então eram poucas as
vindas, mas conversávamos muito por telefone e por email, e a professora
Sueli foi importante em 2008, pois ela fazia a reunião com os consultores,
com os GTs que nos constituímos por área de conhecimento na SEDUC/MT
em 2008, eles se reuniam ora na UFMT, ora nas escolas do governo, e a
professora Sueli acompanhava as reuniões repassando as orientações da
Acássia (Entrevista com GSA).
Esse movimento articulatório se consolida nos discursos de alguns consultores:
[...] fizemos algumas reuniões para que a gente pudesse construir a ideia da
proposta para que depois a gente pudesse começar a redigir os textos.
Tivemos inclusive algumas reuniões também com a consultora maior, com a
Professora Acácia que dava as direções mais gerais, mais importantes... as
linhas gerais eram da Professora Acácia. Ela é quem dava a linha geral do
trabalho que a gente trazia pra especificidades da área de humanidade
(Entrevista com PCM).
[...] a Acácia delineou tudo lá, escreveu muito comprometida, tá tudo lá
(Entrevista com PCER).
Percebemos que a influência dos discursos da Profa. Acácia Kuenzer é vislumbrada
com muita propriedade pelos consultores das disciplinas. As linhas gerais da produção, as
concepções gerais vinham dos seus posicionamentos. E suas concepções eram vistas com
muito respeito, e com propriedade de que todos e todas ao construírem seus currículos devem
seguir, pois “tá tudo lá” no texto escrito por ela.
As suas posições e proposições eram vistas com tanto respeito que alguns consultores
se orgulhavam de ter o trabalho elogiado pela mesma.
[...] eu só consigo enxergar alguma coisa fazendo desde o início. Então eu
sentei e comecei a pensar desde o primeiro ciclo. Até mesmo quando nós
tivemos uma reunião aqui na Escola de Governo, daí a Acácia disse que o
único que havia pensado isso era o da Geografia. E eu fiquei muito honrada
com isso (Entrevista com PCO).
Dialogando com uma das entrevistadas acerca a integração de toda a Educação Básica,
traçando concepções que se articulam entre os Ciclos e vai até o Ensino Médio, sendo este
142
mais um discurso da Profa. Acácia Kuenzer nos é evidenciada a preocupação de estar
atendendo às colocações da consultora geral.
Pensar a produção dessa política curricular para o ensino fundamental a partir das
várias influências na emergência da mesma, bem como nas influências que circulam a
produção do texto, nos mostra como as articulações e as negociações em múltiplos espaços
tempos são evidenciadas, não é só uma instância macro que tem impacto na formulação de
políticas curriculares, tais como PCNs e outros, mas instâncias micros, como as práticas
pedagógicas das escolas e a voz de uma consultoria também exercem uma função de poder
nessa configuração.
O poder na produção da política curricular analisada é visto por nós de uma forma
descentralizada e multideterminada (CANCLINI, 2011), fato evidenciado com a presença da
consultora geral, Profa. Acácia Z. Kuenzer, uma vez que os seus discursos são vistos como
proliferadores de toda a organização da política curricular, ou seja, as produções políticas são
sempre enviesadas por poderes oblíquos, que circulam e quebram qualquer fronteira cultural e
política.
e) Organização, sistematização e produção dos Grupos de Trabalho das Orientações
Curriculares.
Após discussões dos textos curriculares preliminares, construídos pelos consultores,
nos Seminários nas Escolas, Seminário Municipal e Regional a SEDUC/MT organizou
Grupos de Trabalho (GTs) para organização, reflexão e sistematização das considerações
vindas dos Seminários Regionais promovidos para o debate da política curricular. Foram
organizados quatro GTs (Linguagens, Ciências da Natureza e Matemática, Ciências Humanas
e Alfabetização). Os GTs eram constituídos por professores dos Cefapros, da SEDUC/MT
Sede e de um professor de cada escola da rede estadual de ensino de Mato Grosso. Cada GT
tinha no mínimo um professor de cada componente disciplinar correspondente à Área. Os
GTs tiveram a tarefa de negociar com os consultores todas as contribuições dos professores e
professoras da rede estadual de ensino.
Segundo entrevista com a Coordenadora do Ensino Fundamental SEDUC/MT a
formação dos GTs se deu a partir do Seminário Integrador realizado com todos os Cefapros
143
do Estado de Mato Grosso para discussão do texto curricular. Esse encontro foi realizado em
junho de 2010 (como já mencionado) para que todos os Professores Formadores dos Cefapros
fizessem a discussão de todos os documentos da política de currículo:
[...] no início havia pessoas na sala que eram da minha coordenadoria e eu
pedi que eles prestassem atenção nas pessoas que iam à frente, que falavam
que teciam comentários, não aleatórios, mas comentários com fundamento
que estudaram o documento que diziam não é por aí, que propunham
mudanças no documento e eles anotaram o nome dessas pessoas, e esse foi o
critério (Entrevista com GSJ).
Foi a Coordenadoria do Ensino Fundamental, por intermédio de sua Coordenadora
Janaína Pereira Monteiro, a equipe responsável pela organização e sistematização dos GTs.
Os seus membros observaram os Professores Formadores dos Cefapros que mais se
destacaram durante o Seminário Integrador e os convidaram para compor os GTs junto aos
membros da SEDUC/MT sede. Os Professores Técnicos Pedagógicos da SEDUC/MT
Alvarina, Israel, Maristela e Fernando, membros daquela Coordenadoria, foram os
coordenadores dos GTs, responsáveis pela organização dos debates internos, bem como o
diálogo entre os GTs e os professores consultores.
Os membros dos GTs tiveram o trabalho de sistematizar, organizar, discutir e em
alguns casos produzir partes do documento da política de currículo. Eles receberam quadros
sistematizadores dos Seminários Regionais, que vieram dos quinze polos Cefapros, fizeram a
leitura e discussão no GT, e depois negociaram possíveis mudanças com os professores
consultores.
Esse foi um espaço tempo de articulações, de disputas de significantes. Uma arena
política marcada por influências de múltiplos lugares. Foi o espaço tempo de finalização
provisória da produção dos textos da política curricular. Após os trabalhos dos GTs o texto da
política curricular foi publicado e disponibilizado pela SEDUC/MT via site.
Como toda arena, foi marcada por lutas e debates para amplas negociações,
principalmente por se constituir em um espaço tempo de se organizar e sistematizar as
posições que vinham dos professores e professoras da rede estadual de ensino. Como
podemos ver no trecho abaixo:
144
[...] foi muito tenso, foi quando os textos base ficaram prontos e mandamos
pras escolas, e que nos dissemos pra escolas que eles deveriam fazer muitas
críticas e sugestões, quando os documentos vieram pra nós, muitos dos
consultores ficaram chocados, e não aceitavam de forma alguma que aquele
material poderia ter recebido tantas críticas, e então foram necessárias novas
negociações (Entrevista com GSA).
O trecho acima mostra as tensões ocorridas no processo de sistematização final da
produção do texto curricular. Esse movimento pode ser visto como uma possibilidade de um
processo democrático radical, marcado pela luta entre adversários (MOUFFE, 2011) que
pretendem hegemonizar seus projetos educativos. Foi um espaço tempo em que todos e todas
puderam dizer o que desejavam, onde lutas para significação foram travadas, em que ninguém
se via como inimigo, pois o objetivo era um só, tentar garantir um documento de pudesse
organizar da melhor forma os currículos nas escolas, mesmo não aceitando as críticas, como
mencionado no trecho acima, os professores consultores entravam em novas negociações com
os membros dos GTs a fim de poder organizar novamente os textos.
Nesse momento muitas articulações foram realizadas para a constituição dos
significados de currículo, de ensino, das disciplinas, das áreas. Foi um movimento entre os
membros dos GTs inicialmente, e posteriormente com os professores consultores. No
primeiro momento os membros dos GTs tinham que entrar em consenso acerca do que estava
vindo dos Seminários Regionais. Depois disso era o momento de articulação entre os
membros dos GTs e os professores consultores. Desse resultado articulatório muitas coisas
foram mudadas nos textos,
[...] havia momentos que a gente pensava o GT ali sistematizando, fazendo
articulação das contribuições que vinham com o que estavam escrito, e o que
precisava avançar e o que não está dando conta ainda de dizer... a gente
procurou se articular com os consultores das áreas, ciências naturais
humanas e linguagem, mas tinha na sistematização não, mas no momento de
produção dava muita discussão, porque aquilo que eu já tinha dito
inicialmente, quando a gente tem um hábito e uma prática fragmentada, o
que eu tô chamando de fragmentada só a sua disciplina sem fazer articulação
coletiva, depois na hora de sistematizar, eu acho que, a gente teve mais
problemático assim no texto, assim na hora de sistematização, textos que
tiveram que ser refeitos, pelo próprio consultor, depois com as discussões
com o próprio GT (Entrevista com GSAS).
145
Dessas articulações foram produzidos alguns discursos principalmente ligados à
constituição de uma proposta que garantisse a representação dos professores e professoras.
Além disso, os discursos de integração disciplinar em áreas de conhecimento e de currículo
que tivessem as características de Mato Grosso foram os mais relevantes.
Como já citado anteriormente, o movimento dentro dos GTs teve características
democráticas, foi construído coletivamente.
Não foi um documento exclusivamente escrito por consultores como foi da
primeira vez. Essa é uma característica da Superintendência, uma postura da
Secretária Adjunta de Política Educacionais, que sempre nos orienta que
tudo dever ser construído e debatido coletivamente... se a produção ficasse
só na mão de consultores... olha... pode ser que tenha erros, mas foi um
consenso possível. Então foi um documento construído com a participação,
com o coletivo, ele é mais valorizado por que são ouvidas as diversas vozes.
E isso deve ser também na escola (Entrevista com GST).
Este discurso foi proferido pelos GTs, um movimento de trabalho coletivo, que mesmo
que não ficasse tão bom foi escrito com muitas mãos (dos membros dos GTs), ou seja, foi um
processo com potencialidades do processo democrático. É interessante ressaltar que se espera
que a escola faça o mesmo, e isso é extremamente importante. Contudo, podemos inferir que
esse movimento não foi promovido dentro dos contextos escolares. Segundo a Coordenadora
que organizou todo esse processo, Profa. Janaína Pereira Monteiro, a intenção era que fossem
organizados grandes GTs com a participação sólida de muitos professores, contudo isso não
foi possível devido ao tempo e ao gerenciamento de gastos da SEDUC/MT.
Outro discurso era que a organização curricular em Áreas de Conhecimento seria a
garantidora do sucesso da política curricular,
[...] nós fazíamos uma defesa veemente disso (Áreas de Conhecimento), a
gente via que era uma maneira de transpor o que estava posto, e nas
orientações nós podemos dizer que pelo menos com os profissionais que
trabalharam, não os professores consultores, mas os professores aqui da
SEDUC/MT e os que estavam nos Cefapros, eles trabalharam juntos com
áreas (Entrevista com GSJ).
[...] (o trabalho em área) foi difícil, não foi fácil. Foi difícil! Depois que nós
elaboramos, muitos de nós, passaram a ver aquilo de uma forma melhor, eu
146
não tinha experiência antes, que dá certo. Sim! Exato! É possível! Sabe, é
possível! (Entrevista com PCI).
Nos GTs, o discurso do trabalho em Áreas de Conhecimento foi visto como
fundamental para a melhor organização da política curricular. Mesmo sendo encarado como
um ponto de dificuldade, o discurso de integração foi dado como o garantidor de uma política
curricular de qualidade.
Segundo GST, o GT foi fundamental, pois além da articulação entre professores
formadores dos CEFAPROS, professores da SEDUC/MT sede e professores consultores,
possibilitou a constituição de uma política curricular escrita por pessoas que conhecem o
Estado de Mato Grosso, fato que pode aproximar das características das escolas do estado,
diferenciando-se de propostas anteriores que foram escritas por professores consultores de
outros estados.
As lutas e negociações travadas dentro desta arena de definições políticas foram
interessantes. Ancorados na lógica da política cultural, podemos vislumbrar, mais uma vez, os
processos de hibridação, destacando nesse momento a descentralização do poder, pois mesmo
a Secretaria “ditando” algumas regras, o movimento nos GTs foi construído por fugas, em que
os embates políticos pedagógicos lançavam em disputas por significação de sentidos dentro
da política curricular, o que nos mostra a obliquidade do poder.
Nesse momento de discussões e produção da política curricular sinalizamos a ruptura
com a verticalização e a polaridade nas definições políticas, nos mostrando uma possibilidade
de descentralização multideterminada. As articulações nos GTs se entrelaçam em uma luta
democrática radical, com múltiplos projetos educacionais em negociações, mostrando a
multiplicidade de poderes. Como salienta (CANCLINI, 2011, p. 346), “o que lhes dá eficácia
é a obliquidade que se estabelece na trama”, mostrando mais uma vez como é importante a
compreensão dos múltiplos poderes na produção da política curricular.
Consideramos que os GTs foram uma possibilidade democrática dentro do processo de
produção da política curricular, se constituindo em uma arena de lutas, influenciando
fortemente o texto curricular. Foram espaços tempo profícuos em que as vozes foram ouvidas,
onde os seus membros, representantes dos professores e professoras da rede estadual de
ensino, puderam debater, refletir e propor mudanças na configuração textual.
147
No entanto, não podemos deixar de sinalizar, que a reflexão acerca dos sentidos da
política curricular para a Escola Organizada por Ciclos de Formação não foi debatida
substancialmente. Percebemos que embora tenha sido um espaço tempo interessante dentro do
processo de produção do texto, os GTs discutiram com maior profundidade às questões
referentes aos conhecimentos disciplinares e a sua articulação em Áreas de Conhecimento.
Como a política de currículo é endereçada às escolas (MAINARDES, 2007), seria
preciso que houvesse uma ampla discussão acerca dos princípios e fundamentos políticos e
pedagógicos dos Ciclos de Formação, uma vez que a escola na rede estadual em Mato Grosso
possui esta organização.
2.2.3 EIXO 3: Política de Currículo para a Escola Organizada por Ciclos de
Formação
a) Desconsideração dos pressupostos pedagógicos e políticos dos Ciclos de Formação
na construção da política curricular
Produzir uma política curricular é possuir intencionalidades para a formação de
pessoas. Sinalizamos dentro deste contexto que tais intencionalidades não são apenas dos
governantes, do poder do Estado, há muitos poderes oblíquos na configuração dos currículos
escolares, e estes também possuem suas intencionalidades. Os Assessores Técnicos
Pedagógicos da SEDUC/MT, que não estão fixados nos postos de deliberações políticas e
educacionais possuem suas intenções no momento da configuração das políticas curriculares,
influenciados pelas suas crenças, formação e vozes que lidam de vários espaços tempos, como
as dos professores das escolas; os Consultores da mesma forma operam com seus desejos, que
estão traduzidos em suas escritas, pois mesmo produzindo um texto com várias deliberações
dos Gestores da SEDUC/MT eles transferem em seus discursos uma série de concepções
educativas.
Se uma política curricular possui a possibilidade de formação de identidades sociais,
ela não é direcionada para um vácuo, ela tem uma local a ser colocada, possui um espaço
tempo de negociações e (re) negociações, nesse caso específico estamos falando da Escola
Organizada por Ciclos de Formação, uma proposta inovadora para a organização escolar, que
traz em seu bojo uma série de concepções a serem pensadas e refletidas no coletivo escolar.
148
Dessa forma, a nossa questão é discutir se os discursos circulantes na política curricular
refletem ou possibilitam uma reflexão acerca das concepções políticas e pedagógicas desta
escola.
Iniciaremos com um debate já sinalizado que é a propagação de uma política curricular
para toda a Educação Básica. Esse não era o discurso da Equipe do Ensino Fundamental da
SEDUC/MT, que vinha em um importante movimento de discussões dos Ciclos de Formação
da rede estadual de ensino de Mato Grosso, e não apenas curricular. No momento
influenciatório da Consultora Profa. Acácia Kuenzer no tocante a organização de uma
proposta para toda a Educação Básica inicia-se um movimento articulatório a fim de que o
Ensino Fundamental se deslocasse também para essa nova demanda, em um texto curricular
integrando todas as etapas da educação básica.
Na luta política há sempre a busca por hegemonização de concepções, essa luta é
estabelecida pela construção de articulações, provocando a desestabilidade nas relações dentro
de certa arena política, o que provoca uma universalização provisória e precária de uma
particularidade (LOPES, 2006). A equipe do Ensino Fundamental entrou na cadeia
articulatória promovida pelos outros setores da SEDUC/MT iniciando um novo movimento
de produção específico às questões curriculares.
Desse jogo articulatório os discursos sobre uma política curricular para a Educação
Básica foi fortalecido, e logo um novo projeto político pedagógico foi encampado por aquela
equipe. “Esse jogo é marcado por uma negociação entre discursos culturais em que
resistência e dominação não ocupam posições fixas, nem se referem a sujeitos ou classes
sociais específicas” (LOPES, 2006, p. 40), ou seja, o movimento articulatório que produziu
aqueles discursos nos processos de produção da política curricular para o ensino fundamental
não foi uma determinação pontual e factual, mas uma negociação de sentidos que
independente de classe social enredou todo o grupo partícipe para que fosse produzido um
texto curricular para as Escolas Organizadas por Ciclos de Formação.
Talvez nesse exato momento aconteceu uma ruptura com as profícuas discussões
acerca das concepções dos Ciclos de Formação, fato que levou a constituição de uma política
curricular desconectada dos pressupostos das escolas que se organizam desta forma. Nas
discussões iniciais, por exemplo, não foram discutidas com os consultores das disciplinas as
concepções que deveriam nortear o pensamento curricular para os Ciclos de Formação:
[...] ninguém foi nos questionar, por exemplo, seu eu acreditava na Escola
Organizada em Ciclos de Formação Humana. Se eu achava que era uma
149
proposta exequível. Se era uma proposta eficiente para a proposta de
educação para o ensino de Mato Grosso. Ninguém nos questionou. A mim
não! Nem coletivamente. Nós já começamos uma conversa de como seria o
documento, por onde nós começaríamos isso (Entrevista com PCO).
As discussões iniciais centraram-se em como seria a estrutura dos documentos da
política curricular, não foi remetida a uma discussão acerca de como seria uma política
curricular para a Escola Organizada por Ciclos de Formação. Consideramos isso como uma
primeira ruptura com as concepções da proposição da escola Organizada por Ciclos de
Formação, uma vez que se espera um amplo debate sobre a suas potencialidades educativas
para o processo de organização do espaço tempo escolar, da avaliação, do currículo, dentre
outras práticas pedagógicas. Iniciar e ampliar a produção de uma política curricular com
destino às escolas de Ciclos de Formação, sem as discussões dos seus pressupostos, foi um
ponto falho no processo de produção das Orientações Curriculares.
Essa situação é reforçada no momento que a Secretaria encomenda o texto para trazer
as concepções dos Ciclos de Formação. Estamos nos referindo ao texto introdutório
produzido pelo Prof. José Clóvis, pois na elaboração do mesmo não houve nenhum debate em
Seminários ou mesmo com os consultores das disciplinas. Este texto foi solicitado ao mesmo
devido a sua experiência com a proposta da Escola Cidadã de Porto Alegre, segundo a
seguinte justificativa: “gente precisava escrever a concepção de ciclo de forma objetiva, de
forma clara, e ele é um estudiosos de ciclo no País, então foi convidado o professor José
Clóvis” (Entrevista com GSR).
Na política curricular para o Ensino Fundamental há o texto que traz concepções de
Ciclos de Formação, contudo com as características de outro Estado. O texto foi escrito de
forma objetiva, clara e “rápida” para compor o documento. Tais concepções não foram
discutidas no sentido de ampliação da construção da segunda parte (objeto de nossa análise)
dos documentos, a organização das disciplinas e áreas, desconsiderando esses pressupostos
basilares nos textos.
Outro ponto que evidencia essa ruptura foi a construção dos quadros com os eixos,
capacidades e descritores, pois nos evidenciaram uma forma tecnicista de organização
curricular, contrariando as concepções emancipatórias do currículo nas Escolas Organizadas
por Ciclos de Formação. Constatamos que a elaboração desses quadros traz as concepções
preconizadas por Tyler (1981), no tocante a como organizar currículos com eficiência técnica
marcada por uma seleção de conteúdos que deem conta do processo de absorção de saberes
sem conexões com os contextos específicos de cada sujeito aprendiz.
150
Essa característica tecnicista na produção do texto curricular está centrada na
organização do currículo concêntrico, que reside na elaboração de pré requistos básicos para a
promoção do aluno para o próximo nível de escolarização, ou seja, um currículo da/para a
Escola Organizada em Séries (FERNANDES, 2012). Dessa forma podemos concluir que a
estruturação desses quadros contradizem as concepções da Escola Organizada por Ciclos de
Formação no que se refere à construção do currículo, bem como na proposição dos tempos de
aprendizagem, que nas Séries são curtos (um ano) e nos Ciclos de Formação devem ser mais
longos (3 anos).
Ainda no que se refere às concepções para a construção do currículo nas Escolas
Organizadas por Ciclos de Formação, há uma padronização do perfil do aluno, que visa cessar
as possibilidades de vislumbrar as necessidades dos alunos em espaços tempos distintos. Isso
pode ser visto na preocupação com o “currículo básico”, já mencionado, e com o perfil de
saída, preconizando que todos “devem” chegar a tal perfil.
[...] que capacidade deve ter uma criança em todas as idades, é pensando que
nós temos que dar o tom nesse sentido, de criar capacidades para as idades
(Entrevista com GSR).
[...] a Superintendência de Currículo solicitou os quadros pra assegurar o
perfil. Na época o diálogo era acerca do perfil de saída, porque dá impressão
assim, que a gente prepara a educação infantil, tem um perfil de saída, para
que ela integre na alfabetização, com perfil de saída para o segundo ciclo, e
aí também o perfil de saída, para assegurar que realmente no processo de
alfabetização, alguns pensam assim (Entrevista com GSAS).
A preocupação com os sentidos de que as escolas não trabalhassem o “currículo
básico”, leva os Gestores da SEDUC/MT a estabelecerem a construção dos quadros para
assegurar que todas as crianças tenham no mínimo o mesmo perfil de saída, ou seja, as
mesmas aprendizagens. Como salienta o segundo trecho das entrevistas acima, o pensamento
reside na lógica de que para seguir para uma próxima etapa, para o próximo Ciclo é
necessário que se tenha determinado pré requisto, o que reforça a ideia de um currículo
seriado dentro de uma escola organizada por Ciclos de Formação.
Uma das principais concepções da Organização por Ciclos de Formação é justamente
contrária a essa posição, pois nessa escola a enturmação por idades deve ser basilar para a
efetivação da construção de saberes. Enturmar os alunos por idade é dar mais uma
possibilidade de aprendizagem aos mesmos, é compreender que as fases de desenvolvimento
humano (infância, pré-adolescência e adolescência) potencializam as relações sociais dos
151
sujeitos, o que promove uma maior interligação com o meio social em que eles vivem,
promovendo a aprendizagem (KRUG, 2001; FERNANDES, 2012).
Nesse contexto a interação social é potencializada com um currículo para a Escola
Organizada por Ciclos de Formação que promova a integração dos saberes para a
problematização das situações vivenciadas pelos alunos e professores. Apesar de a política
curricular estabelecer em sua organização textual as Áreas de Conhecimento não
compreendemos que estas estejam dialogando com os princípios de integração, uma vez que
reforça a disciplinarização. Como vimos anteriormente há uma intensa disputa em torno
desses significantes, contudo é notória a excessiva caracterização das disciplinas na produção
do texto para o ensino fundamental.
Como uma política pública cultural a construção do currículo para as Escolas
Organizadas por Ciclos de Formação exige um movimento de debates contínuos acerca das
suas concepções. O currículo não está desconectado de uma realidade, e para ser mais potente
ele necessita manter uma arena de disputas e conflitos em que múltiplos projetos de formação
social negociam (MOUFFE, 1993, 2011) em torno de alcançar possibilidades de melhorar as
condições de aprendizagem para todas as crianças.
Nessas possibilidades reside à força dos processos de significação cultural, pois se o
mesmo fosse compreendido como potente para a produção de currículos escolares respeitar-
se-ia as reflexões e considerações locais, mediadas pelas negociações entre as particularidades
e as universalidades. As práticas culturais evidenciadas nos diversos espaços tempos
promovem maiores discussões e promoções de currículos flexíveis de que estes não sejam
engessados em paradigmas de quadros ou listagens de objetivos, como encontrados na
política curricular para a Escola Organizada por Ciclos de Formação da rede estadual de Mato
Grosso.
Para Canclini (2011) as práticas culturais são mais do que ações, elas são atuações,
representam e nos revelam as condições das sociedades, e isso se revela não apenas nas
atividades culturais organizadas e reconhecidas dentro das sociedades, mas também os
comportamentos das pessoas nos mostram as suas atuações sociais.
Uma vez desconsiderando esses processos de significação cultural há uma ruptura com
as concepções assumidas dentro das Escolas Organizadas por Ciclos de Formação, refletindo
as fragilidades dos consultores e Gestores da SEDUC/MT no tocante a pensarem a proposta
refletindo às necessidades dessa forma de organização.
A não discussão sobre as concepções dos Ciclos de Formação, na produção da política
curricular, mostra a fragilidade da SEDUC/MT em gerir a proposta política pedagógica em
152
suas escolas. Dada às especificidades dessa forma de organização escolar, no momento de se
propor uma política curricular é preciso articular o currículo às concepções dos Ciclos de
Formação, pois caso contrário o currículo proposto, mesmo que seja com a intenção de
reformulação no contexto da prática escolar, pode ficar distanciado dos sentidos de formação
humana dos sujeitos que estão no processo de escolarização fundamental.
Compreendemos que a política curricular proposta pela SEDUC/MT não levou em
consideração os pressupostos pedagógicos e políticos dos Ciclos de Formação, mostrando que
ainda existe uma falta de esclarecimentos teóricos e metodológicos para a gestão das escolas
Organizadas por Ciclos de Formação da rede estadual de Mato Grosso, evidenciado em nosso
estudo pelos distanciamentos das concepções dos Ciclos de Formação apresentadas acima.
b) Os Pedagogos na produção do texto curricular
O Ensino Fundamental Organizado por Ciclos de Formação em Mato Grosso atende
crianças de 6 a 14 anos desde 2000, com a implantação desta proposta na rede Estadual. Desta
forma atuam nessas idades professores pedagogos e especialistas nas disciplinas. No primeiro
e segundo Ciclos o atendimento deve ser feito preferencialmente pelos pedagogos e no
terceiro Ciclo pelos professores especialistas. Entendemos dessa forma que durante a
produção de uma política curricular para os Ciclos de Formação deveria haver estes dois
grupos de profissionais realizando as escritas dos textos curriculares, o que não aconteceu
efetivamente na produção das Orientações Curriculares em Mato Grosso, por isso
consideramos relevantes salientar esta não participação na produção do texto política
curricular.
A formação de professores pedagogos promove o estudo dos princípios e as
concepções para o trabalho pedagógico com as crianças, principalmente no que se referem aos
primeiros anos de escolarização, compreendendo como se concebem os processos de ensino e
de aprendizagem das crianças, promovendo dessa forma maiores possibilidades para o
desenvolvimento das mesmas. Segundo o Parecer CNE/CP n. 03/2006 espera-se que o
Professor formado em Pedagogia acompanhe e produza políticas públicas específicas para a
Educação Infantil e Ensino Fundamental, dentre outras; ensine as múltiplas disciplinas de
forma integrada; compreenda e respeite as fases do desenvolvimento humano no processo de
ensino; dentre outras concepções que como podemos ver estão alinhadas com algumas
perspectivas pedagógicas da Escola Organizada por Ciclos de Formação.
153
Nesse contexto os mesmos podem corroborar com a produção de políticas curriculares
que se destinam às crianças pequenas (da infância e da pré-adolescência). Sendo o currículo o
responsável por aquilo que se ensina nas escolas, dentro de uma arena marcada por lutas e
poder, a compreensão das concepções pedagógicas e políticas para o ensino de crianças,
principalmente nos dois primeiros Ciclos (6 a 11 anos) é de fundamental importância para a
construção de políticas curriculares que irão promover debates e reflexões acerca da
construção de identidades, tendo o pedagogo um papel importante na construção de textos
curriculares, bem como auxiliar outros níveis de escolarização, pois ele possui condições, a
partir dos pressupostos estabelecidos para a sua formação, de fomentar as discussões acerca
dos processos pedagógicos na formação dos sujeitos escolares.
Como já mencionado a Equipe do Ensino Fundamental da SEDUC/MT já vinha de um
movimento de (re) estruturação da Escola Organizada por Ciclos de Formação desde 2006,
com a participação de professores especialistas e professores pedagogos travando debates e
reflexões acerca das concepções dos Ciclos de Formação, contudo com a propagação do
discurso de Orientações Curriculares para a “Educação Básica” esse movimento se rompe
direcionando-se para a construção de uma política curricular especificamente. Tal ruptura
provoca certo afastamento dos pedagogos, pois os textos preliminares foram escritos por
especialistas das disciplinas, salvo algumas exceções que iremos destacar a seguir. Esse
rompimento é evidenciado no trecho a seguir:
[...] se tivesse continuado na perspectiva que vinha, talvez até rompesse,
avançou, mas não foi assim... Têm coisas que a gente percebe que poderia
ser melhor, quando você faz seleção de conteúdos, ou que dá uma pista, de
conteúdo para a escola, quando a gente sabe que no desenvolvimento
humano, deveria pautar mais na realidade da escola, a escola já ter o preparo
pra entender essa articulação do currículo com a própria realidade, aí ela iria
fazer a seleção dos conteúdos a partir do desenvolvimento dos alunos dentro
daquela realidade, claro que articulando com as outras realidades, mas ainda,
a gente tem que avançar nisso, as orientações da forma como elas foram
instituídas, a gente teve que reformular muitas coisas, e ainda no final dela, a
gente pega pra ver e tem pontos que a gente pode avançar melhor (Entrevista
com GSAS).
A entrevistada, que é pedagoga, ressalta que se o movimento que a Equipe do Ensino
Fundamental da SEDUC/MT tivesse continuado talvez o texto curricular rompesse com
vários equívocos acerca das concepções da Escola Organizada por Ciclos de Formação da
rede estadual de Mato Grosso, contudo com o advento de produção das orientações
154
curriculares ela salienta que algumas coisas mudaram, mas não o satisfatório, principalmente
relativo ao currículo, pois ela percebe que para a escola organizada dessa forma não
necessitaria de listas de conteúdos, uma vez que mesmo sendo feitos quadros com eixos,
capacidades e descritores, o que se vê são grandes listagens de conteúdos.
Com esse silenciamento dos pedagogos na produção dos textos para o Ensino
Fundamental ficou apenas os professores consultores especialistas, que haviam sido
contratados inicialmente para a construção dos textos curriculares do Ensino Médio, o
processo de construção do texto curricular para o ensino fundamental. Esse foi um movimento
de certa forma doloroso para as concepções dos Ciclos de Formação, uma vez que os cursos
de licenciatura, em sua maioria, não oferecem respaldos teóricos metodológicos para a
compreensão no processo de ensino e aprendizagem das crianças de 6 a 11 anos (primeiro e
segundo Ciclos).
Não queremos fixar a ideia de que a produção do texto curricular feito por professores
pedagogos seria a solução dos problemas até aqui levantados, como a estabilidade disciplinar,
contudo queremos evidenciar que este profissional, possui em sua formação possibilidades
pedagógicas que potencializariam os textos curriculares para o ensino fundamental
organizado por Ciclos de Formação.
Ressaltamos que a produção do texto de Linguagens do Primeiro Ciclo, o que
concerne à Alfabetização, foi feito por uma Consultora Especialista em Alfabetização,
contudo não é pedagoga, o que fez com que a escrita apresentasse alguns problemas acerca da
temática, limitando esse processo à Língua Portuguesa e Matemática.
A entrada dos pedagogos novamente na produção dos textos curriculares se deu com a
constituição dos Grupos de Trabalho de Sistematização, sendo uma deles sobre a
Alfabetização, que reuniu três profissionais da área para o debate, bem como para propor
sugestões aos consultores das disciplinas. A voz do pedagogo nos GTs não foi silenciada,
porém ela foi secundarizada, uma vez que o texto era construído, (re) construído ou alterado
pelos professores especialistas das disciplinas. Acreditamos que um ponto positivo foi
estabelecido, por exemplo, para a construção do texto curricular para o terceiro Ciclo, pois os
pedagogos puderam colaborar com a construção dos textos, mas para o primeiro e segundo
Ciclos o movimento não deu conta de atender às necessidades pedagógicas referentes às
concepções dos Ciclos de Formação, uma vez que os pedagogos, que poderiam colaborar com
as concepções pedagógicas, só fizeram “sugestões” aos textos.
Como a construção de políticas curriculares são arenas de articulações de poder,
percebemos uma grande tensão em torno dos sentidos de importância da formação durante a
155
produção curricular, bem como no atendimento das crianças. Havia uma disputa discursiva de
empoderamento em torno de que os professores das disciplinas especializadas dão “conta” da
aprendizagem das crianças dos dois primeiros Ciclos de Formação, por isso durante a
produção do texto, não necessitaria de pedagogos.
[...] tinha uns embates porque assim a minha compreensão é de que um
professor para trabalhar bem o ensino da matemática... ele deve primeiro
gostar da matemática e é uma das questões que um pedagogo não tem
identidade de trabalhar com a matemática ou dificilmente tem... eu batia
duro nisso tanto que tinha uns embates (Entrevista com PCER).
Como podemos ver acima, alguns consultores das disciplinas desconsideram o
trabalho do pedagogo, acreditando que o mesmo dificilmente consegue trabalhar bem com o
conhecimento disciplinar. Evidencia-se uma luta de poder por espaço de trabalho, bem como
de autoridade no conhecimento, como podemos ver no trecho abaixo:
Gente! Agora querem tirar a aula do professor de matemática. Porque assim,
no primeiro ciclo e parte do segundo ciclo é o pedagogo, mas tem o
matemático... sabe ... a matemática... sabe... a educação física, a história,
nem tanto... mas a matemática e a língua portuguesa tem identidades, é
muito peculiar... é um trabalho de amor... olha a dificuldade que a gente tem
de fazer as pontes (Entrevista com PCER).
Na disputa de poder há um rechaçamento acerca dos saberes que os pedagogos têm
sobre o ensino das disciplinas, bem como a ideia de que os professores de matemática irão
perder espaço de trabalho. Além disso, esse trecho só endossa a fragilidade que os professores
especialistas muitas vezes têm na compreensão dos Ciclos de Formação, uma vez que acaba
enviesando as concepções de Séries dento dos Ciclos, fazendo a ruptura do Segundo Ciclo,
por exemplo.
Em alguns casos há o reconhecimento de que escrever para essa etapa da Educação
Básica não é fácil, contudo em nenhum momento é evidenciada a necessidade do trabalho do
professor pedagogo:
[...] o ensino fundamental foi muito mais complicado, talvez como te falei
pela nossa falta de experiência, de trabalho dentro dessa área, se bem que
todos nós, que participamos na área de ciências da natureza tivemos
experiências no ensino fundamental, isso também foi entre a gente, já
156
tínhamos uma noção, e também pelos trabalhos que a gente sempre faz com
os professores (Entrevista com PCE).
A falta de experiência é tida como principal problema ou desafio, sendo
posteriormente reconhecida na fala de que algumas experiências do grupo auxiliaram na
produção do texto.
Essas negociações são estabelecidas para o fortalecimento da autoridade (LOPES,
2005) durante o processo de produção da política curricular, e como salienta a autora, “há
relações de poder oblíquas que favorecem determinados sentidos e significados em
detrimento de outros nos processos de negociação” (2005, p. 61). No caso da política
curricular para o ensino fundamental os conhecimentos dos professores consultores das
disciplinas esses significados foram privilegiados.
Havia uma disputa nessas negociações em torno do controle dos sentidos e
significados (LOPES, 2006), ou seja, durante os momentos de negociações para garantir quem
deveria escrever o texto curricular para o ensino fundamental era disputado discursivamente
quem iria ter o poder de dizer o que deveria estar presente nos textos ou não, constituía-se
numa busca por legitimação dos saberes, é importante salientar que as disputas sempre
acontecerão na luta para significação social (LACLAU e MOUFFE, 2010), dentro desta arena
percebemos que a derrota, mesmo que provisória, dos discursos sobre a importância dos
pedagogos nesse processo foi prejudicial à articulação entre a proposição de uma política
curricular para a Escola Organizada por Ciclos de Formação, pois era preciso que houvesse a
efetiva participação dos professores pedagogos na produção de textos curriculares que se
destinavam aos primeiros anos de escolarização das crianças.
A participação dos professores pedagogos na produção do texto curricular é
considerada por nós como uma necessidade para potencializar as discussões referentes aos
processos de ensino e de aprendizagem para as crianças, não acreditamos que essa
participação seria o ponto chave para a produção de um texto curricular integrado e com
respeito às fases de desenvolvimento preconizada na Escola Organizada por Ciclos de
Formação, porém seria importante que este profissional estivesse integrado ao processo de
produção da política curricular para o ensino fundamental.
c) Concepções políticas-pedagógicas e a Escola Organizada por Ciclos de Formação
157
Na configuração de políticas curriculares é importante salientar quais as concepções de
educação e de políticas públicas estão em jogo, pois se estas concepções não forem coerentes
podem limitar as possibilidades dos Ciclos de Formação (FREITAS, 2002). Destacamos que
na política curricular para o ensino fundamental é justamente essa limitação que estamos
visualizando, pois há um distanciamento entre as concepções políticas-pedagógicas dos Ciclos
de Formação e a propositura curricular.
Para Freitas (2004), “os ciclos propõem alterar os tempos e os espaços da escola de
maneira mais global, procurando ter uma visão crítica das finalidades educacionais da
escola.” Nesse sentido espera-se que o currículo evidencie uma problematização sobre os
contextos sociais e não uma mera possibilidade de atingir um perfil de saída. Pensar em uma
política curricular para os Ciclos de Formação implica pensar em perspectivas políticas e
pedagógicas mais amplas.
Queremos chamar a atenção de que estamos nos referindo às questões mais amplas e
não apenas curricular, assim como a Escola não é Ciclada o currículo também não é em
Ciclos (FERNANDES, 2012), ele deve ser pensado a partir das concepções desta forma de
organização. É preciso que o coletivo escolar passe a pensar todas essas concepções no
momento de produção curricular, marcadas por concepções de sujeitos, de escola e de
educação (BARRETO e MITRULIS, 2001).
A Escola Organizada por Ciclos de Formação possui finalidades educativas diferentes
das apresentadas nas séries (FREITAS, 2004), portanto não cabem em políticas curriculares
para os Ciclos de Formação concepções das séries, como evidenciamos na política curricular
para o Ensino Fundamental da rede estadual de Mato Grosso quando esta apresenta listas de
objetivos e quadros com capacidades e descritores. Como salienta o autor, a Escola Organiza
por Ciclos de Formação busca romper com essa lógica, ela é herdeira de uma lógica
progressista, que combate o tecnicismo,
Do ponto de vista político e ideológico, a proposta de ciclos é herdeira
de uma postura progressista, que vê a escola como um espaço
transformador e que para tal, deve ser igualmente transformado em
suas finalidades e em suas práticas, em seus espaços de gestão e em
seus tempos de formação (FREITAS, 2004, p. 15).
No bojo dessas concepções as políticas curriculares destinadas a este espaço tempo
deve promover uma transformação nas questões curriculares (MAINARDES, 2006), e não o
158
engessamento por meio de um currículo básico, como salientam alguns discursos dos
produtores da política curricular.
Consideramos que os movimentos de produção de uma política curricular iniciados
pelas instâncias governamentais são extremamente importantes, contudo não podemos deixar
de salientar as suas falhas no tocante a não compreensão e debate acerca do espaço tempo que
tal a política é destinada, no caso a Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Nesse sentido iremos discutir alguns pontos acerca da necessidade da articulação entre
concepções políticas-pedagógicas e os Ciclos de Formação. Destacamos para esse debate: as
influências dos PCNs, o texto encomendado ao Prof. José Clóvis, o processo de produção dos
textos nos Seminários e nos GTs, a disciplinarização curricular, a hibridação de concepções
curriculares e os quadros sistematizadores dos eixos, capacidades e descritores.
As influências dos PCNs na produção do texto da política curricular para o ensino
fundamental por Ciclos de Formação na rede estadual em Mato Grosso talvez seja uma das
mais fortes. Como vimos anteriormente esses documentos foram aclamados como a grande
referência para a produção dos textos curriculares. Alguns aspectos são importantes de
ressaltar nesse sentido: o primeiro é que os PCNs são documentos escritos 1996, ou seja,
outro tempo histórico, com necessidades diferentes que o mundo atual exige; segundo que a
propositura de organização apresentada nesses documentos se refere aos Ciclos de
Aprendizagem; e terceiro o currículo nos PCNs é um modelo proposto por César Coll, que
busca seus pressupostos nas concepções de Ralph Tyler (LOPES e MACEDO, 2011).
Ao assumir os PCN como referência basilar na produção curricular em Mato Grosso
está estabelecendo um distanciamento aos pressupostos pedagógicos e políticos dos Ciclos de
Formação, promovendo pouca mudança no currículo escolar. Como salienta Mainardes
(2001) há diferentes formas de Ciclos, umas promovem maiores mudanças no currículo e
outras menos,
Em algumas redes de ensino, a implantação dos ciclos configura-se como
uma reestruturação radical no currículo, enquanto que em outras as
mudanças são menos substanciais. No primeiro grupo, enquadram-se as
experiências de ciclos que formulam propostas curriculares que buscam
romper com concepções tradicionais/convencionais de currículo. Nesse caso,
o processo de reorientação curricular envolve a explicitação de concepções
teóricas e epistemológicas mais amplas sobre educação, conhecimento, papel
da escola e processo de constituição do sujeito. O modelo disciplinar
geralmente é substituído pela organização em áreas do conhecimento mais
amplas ou outras alternativas. Além disso, em geral, são propostas formas de
integração curricular ou metodologias de ensino específicas (por exemplo,
projetos de trabalho, temas geradores, complexos temáticos, entre outras), a
159
incorporação de questões como pluralidade/diversidade cultural, relações de
gênero, diversidade sexual, meio ambiente, etc. No segundo grupo, as
alterações propostas são menos radicais. De modo geral, a organização
disciplinar é mantida e os conteúdos (ou objetivos, competências ou
expectativas de aprendizagem) são organizados a partir desse modelo. As
propostas de integração curricular ou de interdisciplinaridade algumas vezes
são mencionadas nos textos oficiais, mas pouco enfatizadas no processo de
formação continuada dos profissionais da educação (MAINARDES, 2011, p.
8).
Acreditamos que a política curricular para a Escola Organizada por Ciclos de
Formação da rede estadual em Mato Grosso se enquadra na segunda opção, pois com a
influência maciça dos PCNs vimos uma mudança menos radical no currículo. Além disso,
apresentam quadros de capacidades, e embora se proponha integração curricular, na maior
parte do texto é evidenciada a disciplinarização, trazendo problemas quanto ao currículo que
se espera na Escola Organizada por Ciclos de Formação.
O texto encomendado ao Prof. José Clóvis é compreendido como outro afastamento
das concepções políticas-pedagógicas dos Ciclos de Formação da rede estadual de Mato
Grosso, como já dissemos é um texto teoricamente bem organizado e com boa sustentação,
embora traga as concepções para os Ciclos de Formação, como a não retenção e a enturmação
por idade, é destinado a outro espaço tempo, as escolas municipais de Porto Alegre – Rio
Grande do Sul. E como salienta Freitas (2002) mesmo sendo duas propostas Ciclos de
Formação, as intencionalidades políticas e pedagógicas são outras.
Sabemos que os processos de desterritorialização e descoleção, fenômenos que
produzem híbridos culturais (CANCLINI, 2011) são impossíveis de serem regulados, pois as
fronteiras simbólicas e materiais na contemporaneidade são quase invisíveis, contudo o que
apresenta esse texto não é um processo de hibridação, mas sim uma “colocação” dentro de
outro contexto.
Sabemos que um dos pressupostos da Escola Organizada por Ciclos de Formação é o
processo de democratização das suas práticas pedagógicas e políticas. Nesse sentido
retratamos aqui o processo de produção dos textos nos Seminários e nos GTs, como pontos de
atenção para debate do processo democrático.
Defendemos aqui a democracia radical, marcada por conflitos, disputas e lutas por
hegemonizações de múltiplos projetos sociais (LACLAU e MOUFFE, 2010; MOUFFE, 1993,
2011), destacando que para que haja projetos que pensem e possibilitem a diferença é preciso
propiciar um espaço tempo em que possam ser travados embates em torno daquilo que
defendemos em um contexto social.
160
A SEDUC/MT promoveu debates em que todos os professores puderam, mesmo que
representativamente, questionar, sugerir, refletir o texto da política curricular, contudo é
preciso salientar que a discussão foi sobre as disciplinas e as áreas e não sobre currículo para
uma escola que se organiza por Ciclos de Formação. Consideramos também que o processo
democrático foi representativo, não podemos nos esquecer de que a representação sempre é
marcada pelas intenções de quem a representa, tornando o processo de certa forma falho.
Os GTs são um exemplo de uma aproximação das concepções à democracia radical,
uma arena de muitos embates, de conflitos, de articulações, negociações. Um espaço tempo
em que os antagonismos se tornaram agonismos, em que conflitos foram vistos como pontos
de crescimentos, em que os atores sociais se mantiveram como adversários e não como
inimigos (MOUFFE, 1993, 1999, 2005, 2011). Contudo, precisamos salientar que
infelizmente foram poucos os partícipes desse processo, foram Assessores Técnicos
Pedagógicos da SEDUC/MT, Professores Formadores dos Cefapros e os Professores
Consultores. Esse movimento não foi promovido aos professores da rede estadual nos
momentos de discussões, entendemos que o número de professores é grande e que não se
pode dispensar da jornada de trabalho em sala de aula durante muitos dias, contudo é preciso
propiciar alternativas para que o processo democrático promova reais condições em que as
múltiplas vozes sejam ouvidas e reconhecidas.
Nesses Seminários e nos GTs a organização curricular por Área de Conhecimento foi
sempre evidenciada, até mesmo na organização dos GTs e dos Seminários os seus
participantes eram separados por Áreas de Formação. Promover o currículo integrado é uma
premissa dos Ciclos de Formação defendida por nós. Para Mainardes (2011) geralmente essa
organização tenta romper com a disciplinarização do currículo, contudo muitas vezes não são
efetivadas, pois como esclarece (LOPES, 2008) tais mudanças exigem alterações profundas
nas concepções sociais e educacionais.
Acreditamos que a disciplinarização curricular foi um ponto que seguiu a lógica
apresentada acima, pois evidencia os saberes disciplinares tanto no corpo textual quanto na
confecção dos quadros com eixos, capacidades e descritores. Nos Ciclos de Formação
necessita-se de uma mudança mais complexa principalmente no que se refere ao currículo
(MAINARDES, 2006), e somente uma mudança de nomenclatura e divisão de documentos
específicos em áreas de conhecimentos não consegue garantir a integração dos saberes. O
currículo disciplinar é uma concepção para a Escola Organizada por Séries e não por Ciclos
de Formação, pontuamos dessa forma essa organização curricular.
161
A hibridação de concepções curriculares, trazendo as concepções das Teorias
Tecnicistas, Críticas e Pós-Críticas de Currículo, nos evidenciou mais uma afastamento das
concepções políticas-pedagógicas ancoradas aos Ciclos de Formação. Reforçamos aqui a
nossa compreensão da não celebração dos processos híbridos culturais (CANCLINI, 2010),
mas que estes nos potencializam vislumbrar processos “esquizofrênicos” nos currículos
escolares. A política curricular apresenta no texto marcas das três concepções citadas acima.
Salientamos que o aparecimento de concepções Tecnicistas de Currículo neste texto curricular
é um problema, pois não se trata de ver algo bom nessas concepções tecnicistas e pinçá-las
para serem usadas na Escola Organizada por Ciclos de Formação, pois carregam concepções
que rompem com a formação humana. Discursos como “um pouco de tecnicismo não faz mal
a ninguém”, como vimos numa de nossas entrevistas, revela a total descompreensão das
intencionalidades pedagógicas e políticas que residem nas posturas teóricas assumidas em um
texto curricular.
Essas intencionalidades enfraquecem a postura política pedagógica para a gestão das
Escolas Organizadas por Ciclos de Formação. Freitas (2003) evidencia que muitas vezes são
propostas Políticas de Ciclos de Formação que se revestem de máscaras progressistas, mas
que na realidade são proposituras neoliberais. Uma marca do tecnicismo dentro da política
curricular para o ensino fundamental são os já mencionados quadros sistematizadores dos
eixos, capacidades e descritores, que reforçam a formação de sujeitos para uma lógica
capitalista e não humanista. Por isso é importante que compreendamos que há um afastamento
da lógica dos Ciclos de Formação nesse sentido, pois os quadros são mecanismos neoliberais
de formulação educacional.
Acreditamos que “é fundamental que compreendamos qual é de fato o nosso inimigo”
(FREITAS, 2003), pois só assim saberemos que nas políticas curriculares que se dizem
progressistas, logo em prol dos Ciclos de Formação, temos na verdade uma preconização de
perspectivas mercadológicas de educação, e continuaremos tendo políticas curriculares que
afastam as concepções que defendemos como aquelas que podem melhorar a formação das
pessoas durante o processo de escolarização.
162
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A produção de políticas de currículo é marcada por articulações, discursos e
significantes que buscam hegemonizar provisoriamente sentidos de educação e de sociedade
no processo de formação dos sujeitos escolares. Isso se configura porque o currículo é um
espaço tempo de fronteira cultural em que há lutas por significações e sentidos em torno do
que é válido ou não na construção de conhecimentos.
Como arena de conflitos, as políticas de currículo, entrecruzam nos processos de
negociações por disputas para hegemonizar os sentidos de formação dos sujeitos, os desejos,
as demandas individuais de cada sujeito que está no processo de produção dos textos
curriculares, que durante a luta política se tornam demandas coletivas.
Sendo as políticas de currículo uma produção coletiva, marcada por múltiplos
contextos, muitas vozes são ouvidas (umas mais e outras menos), contudo não é uma
instituição que deve produzi-la para ser consumida nas escolas. Pensando dessa maneira, elas
se tornam políticas públicas, num espaço tempo em que as pessoas podem e devem se
envolver na produção dos textos curriculares, assumindo a responsabilidade que temos na
formação das pessoas.
Acreditamos que a cultura nesse sentido tem uma grande contribuição nas ações das
pessoas no processo de produção de políticas. Ressaltamos que compreendemos a cultura não
como repertórios fixos construídos por uma determinada sociedade, mas sim como um
processo de significação em que discursivamente as pessoas dão sentidos as suas coisas e
vivências em cada espaço tempo em que vive. Assim, entendemos que o currículo se torna
uma política pública cultural, em espaços macros, como nos textos curriculares propostos por
Governos, e em espaços micros, como os textos curriculares produzidos nos contextos
escolares (BALL, 1992, 1994).
Esse movimento de configuração e de (re) configuração permanente do currículo para
o Ensino Fundamental organizado por Ciclos de Formação na rede estadual de Mato Grosso
vem acontecendo acentuadamente desde 1996 com a implantação do Projeto Terra, passando
pelo Projeto CBA em 1998, pelo Projeto Escola Ciclada que culminou com a implantação
dos Ciclos de Formação em 2000 e recentemente com a produção das Orientações
Curriculares em 2010. Proposições foram feitas e são feitas até hoje no tocante às questões
curriculares, pois esta tem uma força gigante na formação de identidades pessoais e coletivas
dentro de uma sociedade, cabendo a todos os professores e professoras a pensarem
constantemente a (re) configuração das políticas curriculares.
163
Nesse contexto, essa pesquisa foi desenvolvida a fim de compreender como foi o
processo de produção dessa política curricular buscando entender quais as articulações,
discursos e significantes foram produzidos no Contexto de Influência e no Contexto de
Produção do Texto Curricular destinados à Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Destacamos a importância da relação entre produção do texto currículo e Ciclos de Formação,
pois entendemos que esta forma de organização escolar é marcada por concepções específicas
que buscam a formação humana dos sujeitos escolares, desta forma os textos curriculares
destinados à mesma necessitam compreendê-las para não ficarem distanciadas das concepções
políticas e pedagógicas entrecruzadas entre currículo e Ciclos de Formação.
Por meio da articulação entre o Ciclo Contínuo de Políticas (BALL, 1992, 1994) e a
Teoria do Discurso (LACLAU e MOUFFE, 2010) compreendemos que a política curricular
proposta para as Escolas Organizadas por Ciclos de Formação da rede estadual de Mato
Grosso é marcada por um processo de hibridação cultural de teorias curriculares, com
articulações que emanaram dos discursos de processo democrático e garantidor de qualidade
do ensino a partir dos textos curriculares propostos, contudo desconectada em muitos pontos
dos pressupostos políticos e pedagógicos dos Ciclos de Formação, fazendo com que tais
sentidos não se hegemonizassem.
Destacaremos agora as articulações, os discursos e os significantes no Contexto de
Influência e no Contexto de Produção do Texto, relacionando com as questões curriculares da
Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Foram produzidos discursos dentro da cadeia articulatória formada entre Gestores da
SEDUC/MT para a emergência da produção da política curricular para a Educação Básica de
Mato Grosso, tais discursos evocaram a necessidade de atualização do currículo das escolas
estaduais em Mato Grosso. Influências internas, como as demandas vindas da
Superintendência de Formação, os discursos circulantes nas escolas dos professores e
professores, bem como a ideia de coadunar com propostas curriculares produzidas pelo
Governo Federal formaram uma cadeia discursiva em torno da necessidade de se escrever um
texto curricular para a Educação Básica.
O Ensino Fundamental entra diretamente como demanda na produção destes textos
com o discurso de que há a necessidade de se ter uma proposta orgânica com a articulação de
todas as etapas da Educação Básica. Houve um processo articulatório entre os membros da
SEDUC/MT, que teve como grande influenciadora os discursos da Consultora Acácia
Kuenzer, para que a Equipe do Ensino Fundamental da SEDUC/MT introduzisse os estudos
que vinham desenvolvendo acerca das concepções da Escola Organizada por Ciclos de
164
Formação ao texto curricular. Contudo, apensar da Equipe ter entrado na cadeia articulatória e
assumido o discurso de produção de uma política curricular articulando a Educação Básica, as
concepções dos Ciclos de Formação não continuaram sendo discutidas, houve uma parada nos
estudos mais amplos acerca dos Ciclos de Formação e as discussões centraram-se na produção
do texto curricular apenas.
O processo de significação cultural mostra a potência dos discursos na produção de
uma política curricular, pois pensando o currículo como uma política cultural pública,
conseguimos captar que os poderes oblíquos estão em múltiplos espaços tempos promovendo
a produção de sentidos. No contexto de influência para a emergência dessa política de
currículo percebemos a produção de um significante importante, que foi a integração
curricular. Esse significante é estabelecido e produziu sentidos de necessidade de se ter uma
política que não faça rompimentos com a formação dos estudantes, que tenha sentido “único”
em sua trajetória, assumindo uma mesma perspectiva de formação durante toda a sua
escolarização (infantil, fundamental e média), contudo percebemos que os sentidos
produzidos por esse significante não se hegemonizou, pois a estabilidade disciplinar ainda é
preponderante na política curricular para o ensino fundamental organizado por Ciclos de
Formação da rede estadual de Mato Grosso.
Nesse movimento de produção do texto curricular para o ensino fundamental, com a
ruptura dos estudos e debates acercas das concepções do Ciclo de Formação, houve a
proliferação de alguns distanciamentos na articulação política pedagógica dos Ciclos de
Formação e a construção curricular, fato que consideramos relevante, uma vez que nossa
compreensão é de que uma política curricular não é produzida para permanecer em um vácuo.
Ela possui espaços tempos de debates e reflexões permanentes, tendo a necessidade de serem
consideradas no processo de produção do seu texto as formas de organização política
pedagógica desse espaço tempo. Na produção do texto curricular, as influências dos PCNs,
bem como a estabilidade disciplinar são consideramos como alguns dos principais problemas.
Os discursos na política curricular nos mostraram que um dos grandes propulsores da
produção do texto foram os PCN, bem como a lógica de organização disciplinar. A ideia
sempre seguiu a lógica de coadunar com a proposta nacional, pois segundo vários Gestores da
SEDUC/MT e Professores Consultores, o Estado não pode destoar das propostas do Governo
Federal. Ancorado a esse movimento temos uma forte influência de documentos que
organizam as avaliações de larga escala no país, principalmente a PROVA BRASIL.
A articulação dos produtores dessa política curricular proliferou o discurso de que a
política curricular de Mato Grosso para o Ensino Fundamental deve dar condições para que as
165
escolas preparem bem os alunos para responderem às demandas de altos índices no IDEB,
mostrando que a educação em Mato Grosso tem qualidade, uma posição que em muitos casos
vem fortalecendo os sentidos de performatividade na construção curricular, transformando as
discussões do currículo na escola em responder o que está prescrito nas orientações dessas
avaliações.
Esse discurso toma corpo em Mato Grosso com a Conferência das Escolas
Organizadas em Ciclos de Mato Grosso, que aconteceu no segundo semestre de 2012. O
documento que a SEDUC/MT organizou para os debates da avaliação da Escola Organizada
por Ciclos de Formação em Mato Grosso estava repleto de gráficos como os resultados da
PROVA BRASIL, bem como os índices do IDEB, nos mostrando que a preocupação está em
elevar os índices, pois estes indicam a qualidade da educação e da Escola Organizada por
Ciclos de Formação.
Dentro dessa arena política o significante qualidade é evidenciado dentro da cadeia
discursiva dos Gestores da SEDUC/MT e dos Professores Consultores. A preocupação de
coadunar com propostas do Governo Federal e atingir as metas proposta por este é alcançar a
própria qualidade. Isso tem gerado em muitas escolas um processo de performatividade, que
Ball (2005, p. 543) denomina de:
[...] uma tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que
emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de
controle, atrito e mudança. Os desempenhos de sujeitos individuais ou de
organizações servem de parâmetros de produtividade ou de resultado, ou
servem ainda como demonstrações de “qualidade” ou “momentos” de
promoção ou inspeção.
Ou seja, há uma busca por atingir bons resultados em avaliações, pois estes podem
garantir a qualidade. Essa situação gera um estado de estrangulamento do currículo em
Escolas Organizadas por Ciclos de Formação, pois a preocupação não é a formação humana
dos estudantes, mas que os mesmos respondam aos exames, atingindo os patamares de
qualidade. Acreditamos que os dados do IDEB, dentre outros resultados não devem ser
desconsiderados para pensar como está a Educação, contudo não aceitamos que estes índices
sejam as bases para a produção de currículos dentro das Escolas Organizadas por Ciclos de
Formação.
Se o texto curricular está ancorado principalmente nos PCNs, talvez possamos dizer
que há uma dificuldade na significação de uma proposta genuinamente mato-grossense, como
166
proferido discursivamente por vários Gestores da SEDUC/MT e Professores Consultores, pois
há um forte processo de hibridação cultural nessa articulação. A cadeia articulatória
estabelecida no processo de produção do texto nos revelou a proliferação de discursos que
sinalizaram o desejo de se ter uma proposta curricular genuinamente do Estado de Mato
Grosso. “Uma proposta nossa!” como muitos diziam, contudo como visto em nossas análises
é impossível possuir uma proposta genuína, uma vez que os fluxos migratórios sempre
promovem processos de hibridação.
Além desse processo, a circulação das influências de propostas pedagógicas e
curriculares de outros estados do Brasil, como Porto Alegre - RS e Belo Horizonte – MG,
também nos mostrou que tal “pureza” não foi alcançada. Como salienta (CANCLINI, 2011)
tal pureza nos processos culturais são inalcançáveis, uma vez que as fronteiras materiais e
simbólicas na contemporaneidade não são fixas, fazendo com que a pureza desapareça de
qualquer processo cultural.
O coro acerca da proposta genuinamente do estado é aumentado dentro dos GTs de
sistematização de produção dos textos das Orientações Curriculares. Acreditamos que os GTs
constituíram-se em um ponto de destaque na produção do texto curricular, uma vez que
buscou compreendê-los como um processo democrático radical (LACLAU e MOUFEE,
2010; MOUFEE, 1993, 2011). A cadeia discursiva estabelecida dentro dos membros dos GTs,
além de reforçar o discurso de genuinidade da proposta, produziu o significante democracia.
Os GTs lidaram com as propostas vindas dos Seminários Municipais e Regionais, realizados
com representantes das escolas, e esse processo foi tomado como democrático. Consideramos
que dentro dos GTs houve um processo com características democráticas radicais, mas o
movimento anterior não alcançou a necessidade de democratização para a produção e
organização de currículos para a Escola Organizada por Ciclos de Formação.
Na produção do texto curricular há a proliferação do discurso de que a organização do
currículo para o Ciclo de Formação deve ser em Áreas de Conhecimento, pois esta forma
pode garantir melhor qualidade para o processo de ensino e aprendizagem dos alunos. Esse
discurso vem de uma grande cadeia articulatória que defende essa forma de organização,
mesmo alguns posicionamentos sendo diferentes acerca da compreensão dos sentidos de
integração curricular, houve um apagamento destes sentidos diferentes a fim de garantir que a
organização por Áreas de Conhecimento fosse mantida dentro dos textos curriculares,
evidenciando o significante área de conhecimento, tentando hegemonizar os sentidos de
qualidade educativa.
167
Embora esse discurso tenha sido circulado e o texto apresentar uma divisão em Áreas
de Conhecimento há uma grande confusão, uma vez que no desenrolar do texto curricular o
currículo em disciplinas entra com grande força, perdendo assim a potencialidade do currículo
integrado. Nas Orientações Curriculares a preocupação dos textos das Áreas de Conhecimento
foi em listar “conteúdos” (capacidades e descritores), não destacando possibilidades de
integração, tornando assim um currículo funcionalista, o que contraria a Organização da
Escola por Ciclos de Formação, que espera que seja construído um currículo flexível e
integrado. O que se vê é que a tradição dos saberes disciplinares possui poder e acaba
estabilizando-se na construção dessa proposta.
Essa situação toma corpo, por exemplo, na organização dos quadros com os eixos,
capacidades e descritores, pois essa é uma perspectiva que vem das propostas de Ralph Tyler
em meados do século passado, de um currículo tecnicista e funcionalista. Essas concepções se
hibridizam com outras concepções curriculares, contudo como podemos ver assumem uma
grande parte do texto curricular destinado ao ensino fundamental organizado por Ciclos de
Formação.
O processo de hibridação no texto curricular não é visto por nós celebradamente, mas
sim, como uma possibilidade de refletirmos em como pensar e problematizar a presença das
três concepções de currículo na política para o ensino fundamental. Destacamos esse último
ponto (os quadros) que são ancorados na Teoria Tecnicista de Currículo, pois trazer
concepções desta perspectiva, mesmo que seja hibridizada com outras perspectivas críticas, é
assumir a formação de sujeitos técnicos, fora de um processo humanizador preconizado pelos
Ciclos de Formação.
Dentro do Contexto de Influência e do Contexto da Produção do Texto foram
mantidas muitas articulações entre os Gestores da SEDUC/MT, Professores Consultores,
Membros dos GTs de Sistematização e a Consultora geral Profa. Acácia Kuenzer. Essas
articulações já salientadas no decorrer dessa dissertação promoveram a configuração de várias
cadeias discursivas, que por sua vez produziu alguns significantes, dentre eles destacamos
democracia, áreas de conhecimento e qualidade.
Analisar e pensar a produção dessa política curricular a partir dessas arenas políticas,
marcadas por conflitos e disputas, nos evidenciou como é importante tentar captar os
discursos circulantes nas influências e nos textos de uma política curricular, mostrando a
potência que os poderes oblíquos possuem na configuração de políticas públicas. Isso só
reforça a nossa compreensão de que não há como pensar o currículo como uma política
168
cultural pública em uma via top down ou down top, pois a força do processo de significação
cultural nos mostra a proliferação de poderes oblíquos existentes dentro das arenas políticas.
Nesse sentido, acreditamos que a política curricular para a Escola Organizada por
Ciclos de Formação da rede estadual de Mato Grosso seria mais profícua se propusesse
formas de pensar, refletir, produzir, questionar as questões curriculares em cada contexto.
Embora esse seja um discurso circulante entre os membros da SEDUC/MT, de que essa é a
proposta das Orientações Curriculares, percebemos que essa não é a maior preocupação no
tocante à produção da política para o ensino fundamental da sua rede. Percebemos que há uma
preocupação maior em garantir bons resultados nas avaliações externas, principalmente na
PROVA BRASIL.
Consideramos dessa forma, com essa dissertação, que é preciso na análise de políticas
educacionais e curriculares buscarmos referenciais teóricos e metodológicos que possam
captar os meandros no processo de influência e de produção do texto. Destacamos nesse
sentido os estudos de Stephen Ball acerca do Ciclo contínuo de Políticas, de Ernesto Laclau e
Chantal Mouffe sobre os discursos e articulações que circulam a luta política, bem como os
processos de hibridação cultural proposto por Nestor Garcia Canclini. Estes referenciais nos
potencializaram a compreensão do currículo como uma política cultural pública, mostrando
que as relações de poder não estão centralizadas em um único espaço tempo, mas sempre de
forma oblíqua.
Acreditamos que as pesquisas no campo do currículo operando com esses referenciais
podem nos evidenciar as relações de poder existentes na configuração de políticas curriculares
em níveis macro e micros, ou seja, as escolas e professores, além do Estado, também
produzem políticas de currículo. Esperamos que com essa pesquisa, os professores e
professoras da rede estadual de ensino de Mato Grosso, possam compreender que eles são
produtores de currículos, e que os mesmos devem se ver como tais, promovendo debates e
reflexões acerca do currículo dentro da escola. Que ao verem o processo de hibridação das
teorias curriculares evidenciado em nosso estudo reflitam e compreendam que não é uma
mera justaposição de ideias, mas que esse processo tem intencionalidades políticas e
pedagógicas e que os poderes oblíquos permitem que haja circulação de ideias e a formação
de cadeias articulatórias em que a produção de textos de políticas seja arenas de constantes
conflitos.
Destacamos que pensar o currículo como política cultural pública para a Escola
Organizada por Ciclos de Formação exige um rompimento drástico e profundo com as formas
excludentes e tecnicistas. Não se pode pensar o currículo articulando-o com o aumento de
169
índices de avaliações de larga escala, pois a elevação desses índices serão as consequências de
um projeto de política curricular em que todos e todas no contexto escolar estão integrados. É
preciso pensar as concepções dos Ciclos de Formação para propor políticas curriculares que
possam garantir um processo de escolarização humanizador e democrático.
Como última sinalização, das provisórias considerações, esperamos que esta pesquisa
possa contribuir no processo de ensino e de aprendizagem das crianças que estão na Escola
Organizada por Ciclos de Formação. Que o estudo de nossa pesquisa acerca do movimento
inicial construído pela SEDUC/MT, de produção de textos curriculares, seja importante para
que professores e professoras possam entender e se verem como produtores de currículo em
múltiplos contextos escolares, que é preciso assumir os sentidos político de luta, afim de todos
e todas façam parte do compromisso com a educação escolar.
170
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