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Apresentao Orientaes Curriculares para a Educao Bsica do Estado de Mato Grosso

As Orientaes Curriculares para a Educao Bsica do Estado de Mato Grosso fundamenta-se na deciso poltica de fazer chegar ao cho da escola um texto claro e conciso que, a par dessa clareza e conciso, oferea ao professor uma viso inequvoca do homem e da sociedade que se quer formar. Um retrospecto histrico da educao brasileira, desde a colonizao aos dias atuais, permite a visualizao de um pas aparentemente dual, tanto nas polticas econmicas, quanto sociais. Na concepo de Francisco de Oliveira (1981), por detrs da aparente dualidade, existe uma integrao dialtica que permite a convivncia entre o atrasado e o desenvolvido, com maior privilgio para aqueles que detm o poder econmico. No caso da educao, essa dualidade revela-se nas diferentes concepes entre redes de ensino, entre entes federados, e, especialmente, entre os diversos modelos de ensino oferecido, que separam trabalho manual de trabalho intelectual. Na ltima dcada do sculo XX, o Estado de Mato Grosso acompanhou as discusses nacionais, procurando criar para a educao uma identidade conceitual que potencialize esforos capazes de superar a dicotomia existente entre gesto educacional e organizao poltico-pedaggica, sem superar, contudo, as razes estruturais que dificultam a qualidade do ensino para a maioria da populao. A economia brasileira j esteve sob a gide do capitalismo agrrio. A elite dirigente j conviveu sem preocupao com o grande percentual de cidados analfabetos exrcito de reserva necessrios para o crescimento das grandes empresas e do capital internacional. Nas ltimas dcadas, com o impacto dos avanos tecnolgicos, o Brasil, como a maioria dos pases do mundo, vem promovendo reformas nos seus sistemas educacionais, com o discurso de superar a herana de uma educao seletiva, excludente e, acima de tudo, dualista. As mudanas que tm ocorrido na sociedade e no trabalho tm mostrado que o homem necessrio para o trabalho mecnico est em fase de superao. As mudanas da tecnologia com base na microeletrnica, mediante a informatizao e a robotizao, alm de revolucionar as reas da qumica e da gentica, modificam os meios de sustentao do capital, alterando tambm os paradigmas sociais e cientficos, exigindo assim um novo trabalhador. A educao em seu papel preponderante de formao humana v-se instada a atender s novas necessidades sociais e econmicas, aliando-se aos aspectos da tica, da 6

solidariedade, da gesto compartilhada das polticas sociais, das utopias e das tecnologias a favor da vida, como verdadeiros aspectos do que se possa constituir como uma sociedade sustentvel, a despeito do fenmeno da globalizao econmica que, embora anunciada como triunfante ao final do sculo XX, vem revelar, atravs dos capitais fictcios, das inesperadas falncias, da esquizofrenia do mercado financeiro derrubando as bolsas, sua fragilidade e contradio, como sistema capaz de promover justia social com igualdade de oportunidades para todos, conservados os valores humanos e sociais indispensveis vida e sobrevivncia planetria. Em Mato Grosso, as polticas e prticas educacionais tm buscado responder a essa nova realidade. Desde a aprovao da LDBEN, em 1996, novas possibilidades para a organizao da educao foram abertas. A Constituio Estadual passou a permitir a organizao da educao na forma de gesto compartilhada, indicando um sistema nico de ensino, no sentido de superar a dicotomia entre as redes, possibilitando uma abordagem sistmica da educao, cuja poltica educacional priorize a formao da pessoa humana. A gesto compartilhada da educao, articulando as redes municipal e estadual, fomentou discusses com a base na escola, gerando documentos de referncia para o sistema nico de ensino, acordado com o Sindicato dos Profissionais da Educao e demais instituies representativas. Foram construdas propostas educacionais para o ensino fundamental na inteno de superar a escola seriada, norteando a organizao escolar por ciclos de aprendizagem de durao trienal, antecipando o ensino de nove anos, posteriormente adotado pelo pas. Foi pactuada a proposta de ensino mdio integrado, com o intuito de superar a separao entre os que pensam e os que fazem, entre o trabalho manual e o intelectual. Enfim, o Estado incorporou as premissas para um novo modelo de sociedade, que passaram a orientar a formulao das polticas e o desenvolvimento de programas e projetos. Como as mudanas estruturais, necessrias s mudanas polticas, encontravam-se reguladas pelo movimento de insero do Brasil e do Estado na internacionalizao da economia, as propostas no atingiram a profundidade necessria que possibilitasse ultrapassar o patamar alcanado no final do sculo XX e incio do XXI, detendo-se na ante-sala do sistema nico de ensino. Assim, a implementao de uma proposta realmente capaz de romper as barreiras entre o pensar e o fazer, na superao de uma prtica educacional destinada a reforar a lgica de formao de duas espcies de homem, aquele que deve ser formado para o trabalho manual e o outro que pensa e para o qual se destina o trabalho intelectual, v-se, minimizada em sua aplicao. Mesmo assim, o movimento realizado pelo Estado, marca fundamentalmente a concepo de educao presente nos projetos pedaggicos das escolas e 7

nas organizaes estruturais nos municpios de Mato Grosso. O debate educacional que se desenvolveu nos ltimos anos permite visualizar a incorporao de concepes construdas no coletivo do sistema pblico: prxis pedaggica, politecnia, escola unitria, sistema nico de ensino... No incio do sculo XXI, ano de 2002, chega ao poder no pas uma nova proposta de organizao poltica, redefinindo o papel do estado e conseqentemente o da educao. Aos poucos as discusses vo novamente tomando corpo, agora de forma mais amadurecida. A populao discute o sistema nacional de educao, que incorpora, em grande parte, as discusses que Mato Grosso realizou no incio da ltima dcada do sculo XX. Em Mato Grosso h novamente uma efervescncia de idias. Retoma-se a discusso da colaborao entre os entes federados, ocorre a aproximao com o Sindicato dos Professores para a construo de polticas alternativas. No obstante as diferenas h avanos significativos nos pactos realizados, tendo em vista o compromisso com a qualidade da educao pblica. O Governo do Estado, atravs da Secretaria de Educao, estabelece dilogo franco e direto com o MEC, construindo plano de ao articulada com todos os 141 municpios de Mato Grosso. Constri com as universidades pblicas, SINTEP, CEE, CEFETs, entre outras entidades, plano de formao de professores e avana na organizao das Orientaes Curriculares para a Educao Bsica, uma histrica solicitao das escolas, pois os documentos produzidos na esfera nacional, apesar de bem fundamentados, no respondem ao cotidiano da escola mato-grossense, no se constituindo como referncia suficiente para a elaborao da proposta curricular da Educao Bsica no Estado. Para atender a essa solicitao, algumas decises polticas foram tomadas: primeiro, considerar o trabalho entendido como prxis humana como categoria organizadora do processo de construo das diretrizes, concebendo o humano por sua capacidade de intervir na natureza e transform-la, e, no caso do Mato Grosso, transform-la em favor da sustentabilidade entendida a partir dos aspectos aqui destacados. Desta opo epistemolgica decorre, como princpio pedaggico, a busca da superao da diviso entre trabalho manual e intelectual, concebidos como as duas dimenses que se articulam dialeticamente para constituir a prxis humana. Ou seja, compreender que a educao no pode ser ofertada de forma desigual em funo da origem de classe dos alunos, desenvolvendo projetos que formem para o exerccio de funes intelectuais ou operacionais, separando atividade intelectual de atividade prtica. Ao contrrio, o desafio propiciar a todos Educao Bsica de qualidade, como expresso do compromisso com a incluso social.

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Em seguida, h que definir uma estrutura organizacional da escola que guarde coerncia com a concepo adotada. O estado de Mato Grosso incorpora de forma definitiva a organizao estrutural atravs dos ciclos de formao humana, valendo-se do percurso histrico da rede, que, h dez anos, trabalha com a organizao de ciclos, condio que se avalia mais inclusiva e voltada para a promoo humana. Entende-se que a escola local de promoo, no de reteno. Entretanto, toda promoo deve ser acompanhada da qualidade necessria para a vida cidad. Portanto, a escola dispor dos elementos necessrios para promover a superao das dificuldades apresentadas pelos alunos, condio essencial para que a organizao por ciclos de formao humana apresente os resultados esperados. As orientaes curriculares apontaro as estratgias e os recursos necessrios destinados apropriao por parte dos alunos dos conhecimentos nele veiculados, de modo a no permitir a excluso por falta de conhecimento. Concebe-se a educao como elemento propiciador de conhecimento sobre a realidade, pelo debruar-se sobre ela, a fim de extrair contextos significativos para a formao humana. Conforme Frigotto (2005), nesta concepo, o trabalho engendra um princpio formativo. Desde a infncia fundamental educar as crianas para que compreendam que os seres humanos so seres da natureza, e que, portanto, tm necessidades de protegerem e proverem a sua subsistncia, condio comum a todos os seres humanos. Para atender s perspectivas histricas do trabalho de construo das orientaes curriculares, entende-se pertinente, retomar os conceitos discutidos com base nas escolas pblicas de Mato Grosso ao longo da dcada de 90 do sculo passado, considerando-se, em sua possvel reconfigurao, a atual conjuntura econmica, poltica e social. Como primeiro passo do processo de construo coletiva das Orientaes Curriculares, apresentamos para a escola um texto preliminar que incorpora as dimenses anteriormente apresentadas. Esse texto servir como ponto de partida e estmulo a uma ampla e aprofundada discusso coletiva e interativa entre os que esto no cho da escola e os dirigentes estaduais da educao. Assegurando a liberdade de opinio e o processo de construo coletiva, o texto, amplamente discutido, dever incorporar, resguardada a sua coerncia interna e sua adequao realidade, as propostas de modificao, de forma a contemplar tanto quanto possvel, as variadas formas de prticas pedaggicas existentes no cotidiano da escola pblica de Mato Grosso. Entende-se que compete ao estado a gesto das orientaes curriculares, de modo a assegurar sua implantao. Para tanto, a Secretaria de Estado de Educao prope-se a 9

assegurar que todos os profissionais tenham possibilidade de participar da discusso do texto preliminar nos horrios de sesses pedaggicas na escola, bem como de intervir apresentando sugestes para a sua redao. Posteriormente ao processo de discusso, compromete-se com a viabilizao de formao continuada dos professores e profissionais da educao, visando consolidao das orientaes na prxis pedaggica, que ter como referncia o Projeto Poltico Pedaggico das escolas. A coordenao das aes referentes ao dilogo dos profissionais com o texto preliminar mediante apresentao de sugestes, realizar-se- pela SUEB e pelos consultores das diversas reas do conhecimento. A consolidao das orientaes acontecer em parceria entre SUEB, Superintendncia de Formao e Superintendncia de Gesto, por meio das assessorias pedaggicas, dos CEFAPROS-MT e, nas escolas, atravs do Projeto Sala do Professor. Pensar uma sociedade altrusta, solidria e humanizada, onde a incluso social, poltica e econmica so condies essenciais para a existncia humana, tambm tarefa da Educao. Conscientes dessa responsabilidade convidamos todos os parceiros para juntos definirmos o que deve conhecer cada estudante, nas idades em que se organizam os ciclos de formao humana, definio esta que se destina a propiciar condies ideais para que possam conviver em situao de igualdade na sociedade em que todos so partcipes e na qual devem exercer liderana. Professor, voc o protagonista desta ao, portanto, nosso principal convidado.

Prof . Rosa Neide Sandes de Almeida

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1.

A Educao Bsica no Estado de Mato Grosso

Diferentemente da filosofia pragmtica e tecnicista que presidiu a Lei 5692/71 (LDBanterior) a Lei 9394/96 (LDB-atual), prima por uma educao integral, tendo como finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho, inspirada nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana (Art. 2.), enfatizando o carter formativo da Educao Nacional. Fortemente enraizada em conhecimentos scio-antropolgicos, originrios das discusses em pauta nas cincias humanas e sociais, a Lei enfatiza princpios como: igualdade de condies para o acesso e permanncia na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idias e de concepes pedaggicas; respeito liberdade e apreo tolerncia; valorizao da experincia extra-escolar; vinculao entre a educao escolar, o trabalho e as prticas sociais (Art. 3.). Em sntese, ecos do vigoroso debate, travado nas universidades brasileiras ao longo dos anos oitenta, acerca dos rumos da educao ps-ditadura militar, fazem-se ouvir por entre as letras da Lei 9394. Em seu artigo 22 reafirma os princpios da educao nacional acima enfatizados, estabelecendo as finalidades da Educao Bsica. A educao bsica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formao comum indispensvel para o exerccio da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. a concepo de educao bsica que assegura a organicidade da Educao Nacional, atravs do princpio da integrao dos nveis educao infantil, ensino fundamental e ensino mdio e das modalidades e especificidades educao profissional, educao do campo, educao especial, educao de jovens e adultos e educao indgena. Por compreender a educao como totalidade, j no primeiro captulo a LDBN a define em seu conceito mais amplo, admitindo que ela supera os limites da educao escolar por ocorrer no interior das relaes sociais e produtivas. Reconhece, pois, as dimenses pedaggicas do conjunto dos processos que se desenvolvem em todos os aspectos da vida social e produtiva. Essa concepo incorpora a categoria trabalho, reconhecendo a sua dimenso educativa, ao tempo que reconhece a necessidade da educao escolar vincular-se ao mundo do trabalho e prtica social. A incorporao de todas as modalidades de educao na concepo de educao bsica, estabelecendo sua integrao e assegurando sua organicidade, decorre dessa concepo de educao como totalidade. Isto significa organizar a educao bsica como um sistema que no admite formas paralelas que comprometam a assumida integrao entre os 11

nveis e modalidades de ensino oferecidas pela educao escolar e as demais aes educativas que ocorrem no conjunto das prticas sociais. Pretende assegurar, desta forma, tanto a organicidade interna educao bsica, entre seus nveis e modalidades, quanto a organicidade externa, articulando, pela mediao da educao, conhecimento, trabalho e cultura. Buscando garantir e objetivar essa concepo, a Unio chama a si, a coordenao da poltica nacional da educao, com a finalidade de assegurar a articulao dos diferentes nveis, modalidades e sistemas de ensino, no que expressa a letra do artigo 8 1:

Art. 8 A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios organizaro, em regime de colaborao, os respectivos sistemas de ensino. 1 Caber Unio a coordenao da poltica nacional de educao, articulando os diferentes nveis e sistemas e exercendo funo normativa, redistributiva e supletiva em relao s demais instncias educacionais. Com base na Poltica Nacional de Educao, compete s Unidades Federadas organizar, manter e desenvolver os rgos e instituies oficiais dos seus sistemas de ensino, definindo, com os Municpios, as formas de colaborao que possibilitem a progressiva extenso da oferta pblica e gratuita. Para tanto, dever propor e executar polticas, diretrizes e planos educacionais, integrando e coordenando as suas aes Unio e aos seus Municpios. (art. 10). O compromisso com a democracia se expressa na idia da gesto democrtica do ensino, cujas normas e projetos pedaggicos, devero ser definidos com a participao dos profissionais da educao, da comunidade escolar e da comunidade local, de modo a assegurar progressivos graus de autonomia pedaggica e administrativa e de gesto financeira, no que reza os artigos 14, 15 e seus incisos. Ciente de suas responsabilidades e assumindo os princpios democrticos que tm pautado as aes do Governo na rea da Educao, a Secretaria de Estado de Educao, entrega para a discusso da comunidade, uma proposta de Orientaes Curriculares para a Educao Bsica, que contempla os princpios de integrao, organicidade e democratizao da gesto. Com o intuito de assegurar o cumprimento destes princpios, o texto foi organizado da seguinte forma: inicialmente, foram contempladas as questes conceituais de natureza epistemolgica e metodolgica que devero nortear as prticas pedaggicas em toda a Educao Bsica, tendo a emancipao humana como finalidade. Ainda na primeira parte so apresentadas as concepes por nveis e modalidades. Por nveis so apresentados o Ensino 12

Fundamental organizado por ciclos de formao humana, e o Ensino Mdio de Educao Geral. Por especificidade e modalidades, para atender s diversidades: Ensino Mdio Integrado incluindo o PROEJA, Educao do Campo, Educao Indgena, Educao Especial, Educao de Jovens e Adultos (EJA). Os nveis, especificidades e modalidades contemplam as concepes que fundamentam a construo das Orientaes Curriculares para a Educao Bsica, apresentadas no texto. A segunda parte apresenta as Orientaes Curriculares das reas, que abrangem todos os nveis e modalidades da Educao Bsica. Espera-se, dessa forma, mediante o tratamento articulado entre nveis, modalidades e reas, assegurar a necessria organicidade que conferir identidade Educao Bsica. Assim, pelo entrecruzamento de todas essas dimenses, espera-se que cada professor possa apreender a forma como as concepes, os contedos e as atividades se integram no nvel em que ele atua, e como esse nvel se articula com o subseqente; do mesmo modo, ele poder verificar como as capacidades e contedos que ele trabalha se integram na sua rea e como se relacionam com as demais reas, de modo a compreender sua prtica como parte integrante da totalidade representada pela Educao Bsica. Dessa forma, pretende-se superar a fragmentao e a desarticulao que tem marcado, historicamente, as prticas pedaggicas no sistema educacional brasileiro. Esse texto, que resulta da contribuio de um grupo de professores da rede, das universidades e de especialistas da SEDUC, constitui-se, portanto, em pr-texto e pretexto para um ampliado e profundo debate, que comear nas escolas, passar pela discusso nos Municpios e culminar em Seminrios Regionais, at que, produzindo os consensos possveis, o texto final possa ser assumido como documento organizador da Educao Bsica no Estado do Mato Grosso, por expressar no apenas a posio do Governo, mas a vontade das escolas e das comunidades acerca da educao que podemos oferecer, principalmente, a educao que queremos oferecer, na perspectiva da emancipao humana, viabilizada por uma organizao social cada vez mais justa e democrtica.

1.1

Breve Contexto da Educao em Mato Grosso

O Governo do Estado de Mato Grosso, atravs da Secretaria de Estado de Educao busca responder aos desafios de transformar a escola em um espao propcio aprendizagem de todos, inspirando-se no que a Lei de Diretrizes e Bases da Educao, apresenta como finalidades da educao bsica em seu artigo 22, citado pgina 1 desse documento. A par dessa intencionalidade a permear as vontades e aes polticas no atual contexto, necessrio melhor situ-lo historicamente, para que se perceba processualmente sua instalao. 13

Diante dos vrios problemas detectados pelo governo do Estado em 1997, tais com alto ndice de evaso (14,9%) e repetncia (19,5%) alcanando 34,4% de fracasso escolar1 e aps a aprovao da Lei 9394/96 (LDB), foram elaboradas e executadas metas de curto, mdio e longo prazo. Inicialmente so institudas as Leis Complementares 49/98, e 50/98, que regulamentam o Sistema de Ensino e a carreira dos profissionais da educao, respectivamente. Na esteira dessas medidas, outras foram criadas no sentido de implementar polticas que promovessem a expanso da oferta de vagas da educao bsica e instalao de mecanismos de permanncia da criana na escola, em todas as suas etapas e modalidades de ensino. A partir daquele ano foram dados os primeiros passos no sentido da reorganizao do Ensino Fundamental em Ciclos, com a introduo do Ciclo Bsico de Aprendizagem (CBA), que se constituiu numa importante iniciativa para o enfrentamento dos problemas de evaso e repetncia, eliminando a reprovao no primeiro ano de escolaridade, contribuindo assim para a permanncia das crianas em idade escolar no sistema de ensino e na continuidade do processo de alfabetizao. Dando seqncia a esse processo, a Seduc, em 1999, prope a implantao dos Ciclos de Formao em todo o ensino fundamental, para que os alunos ao conclurem o CBA, continuassem seus estudos no mesmo ritmo da proposta do Ciclo Bsico de Alfabetizao.2 A maturao e aprofundamento desse processo ganham corpo nas atuais Orientaes Curriculares, que pretendem instalar no cotidiano da escola, as discusses fundamentais ao aprimoramento da organizao escolar baseada em Ciclos de Formao Humana, em toda a rede estadual de ensino. Quanto ao Ensino Mdio, tambm, desde 1998, teve incio o processo de expanso. No excessivo recordar que o Estado de Mato Grosso no final de 1995, atravs da portaria 1266/95 determinou o encerramento dos cursos profissionalizantes na rede estadual, antecipando-se ao que viria a ocorrer atravs do Decreto Federal 2208/97. As discusses s foram retomadas em 2004, atravs do Decreto 5154/04, que resgata a proposta de Ensino Mdio Integrado e traz considerao das polticas pblicas posturas calcadas no respeito s diferenas e diversidades que compem a complexidade social, a exigir esforos no sentido de incentivar e apoiar alternativas diferenciadas de organizao escolar e de preparao dos professores para atuao na Educao do Campo, Indgena, Educao Especial, Ensino Mdio Integrado Educao Profissional e na Educao de Jovens e Adultos. As principais aes da atual gesto, abrangendo todos os nveis e etapas de ensino, desde a educao infantil at a educao superior, nas suas diversas modalidades, e tendo1

IN MT, Seduc. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaos para ensinar aprender a sentir, ser e fazer. Cuiab: Seduc. 2001. 2 Ibdem

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como foco a universalizao da educao bsica e a qualidade no ensino, tm garantido recursos para fortalecer e acompanhar o currculo da escola, oferecer e subsidiar a formao continuada dos professores, equipar as escolas com laboratrios, dotar de acesso Internet todas as escolas estaduais, adquirir e instalar as bibliotecas escolares, adquirir materiais didticos, fortalecer o quadro de pessoal, estabelecer parcerias com instituies educacionais, criar o Centro de Recursos Didticos de Lngua Espanhola, criar os Centros de Educao de Jovens e Adultos(CEJAS), implantar o Ensino Mdio Integrado Educao Profissional e promover a incluso social por meio do atendimento s diferentes demandas dessa rea. Portanto, com o intuito de viabilizar e garantir um sistema de ensino capaz de promover a qualidade de vida a todos, que os esforos e investimentos aplicados pelo atual governo do estado de Mato Grosso se voltam para as dimenses do modelo de educao definidas no Plano Estadual de Educao de Mato Grosso.

1.2

Os desafios a serem enfrentados na proposio de Orientaes Curriculares para a Educao Bsica

As novas determinaes do mundo social e produtivo, contempladas pela LDBEN, apontam duas linhas a orientar a elaborao das Orientaes Curriculares para a Educao Bsica: metas claras e democraticamente estabelecidas no sentido de orientar a ao poltica do Estado em todas as instncias, particularmente no tocante a investimentos; uma concepo formulada de modo a integrar todos os saberes, articulando formao cientfica, tecnolgica e cultural, com vistas a superar a ruptura historicamente determinada entre uma escola que ensine a pensar atravs do domnio terico-metodolgico do conhecimento, socialmente produzido e acumulado e, uma escola que ensine a fazer, atravs da memorizao de procedimentos e do desenvolvimento de habilidades psicofsicas. A elaborao desta nova sntese no um problema pedaggico, mas um problema poltico, uma vez que, a dualidade estrutural que historicamente determinou a oferta de duas redes desiguais, em funo das necessidades de formar diferentemente trabalhadores e intelectuais, tem suas razes na forma de organizao da sociedade, expressando as relaes entre capital e trabalho. Em que pese os avanos decorrentes da ampliao da oferta e da melhoria da qualidade mediante polticas pblicas, preciso compreender que no possvel superar a dualidade estrutural a partir da escola, seno a partir das mudanas na sociedade. Contudo, preciso reconhecer que a escola se constitui no nico espao em que os filhos dos que vivem do trabalho podem ter acesso ao conhecimento sistematizado, tal como 15

ele foi produzido pela humanidade ao longo dos anos. Assegurar essa possibilidade, mantendo a qualidade da oferta pblica da educao para a maioria da populao, crucial para que a possibilidade da transformao social seja concretizada. Neste sentido, a educao de qualidade, embora no tenha autonomia para, por si mesma, mudar a sociedade, importante estratgia de transformao, uma vez que a incluso na sociedade contempornea no se d sem conhecimento. Do ponto de vista da nova concepo, preciso ter claro que ela s ser plenamente possvel em uma sociedade em que todos desfrutem igualmente das mesmas condies de acesso aos bens materiais e culturais socialmente produzidos e em que os jovens possam exercer o direito diferena sem que isso se constitua em desigualdade, de tal modo que as escolhas por determinada trajetria educacional e profissional, no sejam socialmente determinadas pela origem de classe. Ou, exemplificando, que a deciso de no cursar o nvel superior corresponda ao desejo de desempenhar uma outra funo que exija qualificao mais rpida, mas que seja igualmente valorizada socialmente, de modo a propiciar trabalho e vida digna. Isso exigiria que potencialmente existissem vagas para todos que desejassem ingressar em qualquer nvel e modalidade de ensino, possibilidade a que o Brasil, particularmente, ainda se encontra muito distante. A seletividade configura uma situao em que o acesso a diferentes nveis, e em particular aos cursos tcnicos e superiores que exigem tempo integral, escolaridade anterior de excelncia e financiamento de material tcnico e bibliogrfico, alm de cursos complementares formao, reservado queles com renda mais alta. Ao mesmo tempo, o mundo do trabalho reestruturado, no mbito da globalizao da economia, restringe cada vez mais o nmero de empregos formais, criando ou recriando na informalidade, um sem nmero de ocupaes precrias que, embora ainda sirvam sobrevivncia, longe esto de permitir um mnimo de dignidade e cidadania. com essa realidade que a Educao Bsica dever trabalhar, ao estabelecer suas Orientaes Curriculares: um imenso contingente de crianas e jovens que se diferenciam por condies de existncia e perspectivas de futuro desiguais. a partir dessa realidade que se h de tratar a sua concepo. Se por um lado, a existncia de duas redes de ensino qualitativamente diferentes para filhos de trabalhadores e para os filhos da burguesia, mostra seu carter perverso por reproduzir desigualdades, por outro, simplesmente estabelecer um modelo igual para todos no resolve a questo, posto que, submeter os desiguais a igual tratamento, naturaliza a desigualdade em direo sua permanncia e aceitao.

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O que est em jogo a recriao da escola, que, embora no possa por si s resolver as desigualdades sociais, poder, ao dar acesso ao conhecimento, cultura e ao trabalho, ampliar as condies de incluso social. Escola nica nos ciclos iniciais de formao humana, para que no tenha diferentes formas de organizao a contemplar diferentes qualidades destinadas formao da burguesia ou dos trabalhadores. Escola de formao humana para trabalhadores intelectuais e operacionais. Para o nvel mdio, reconhecido o seu carter de parte integrante da educao bsica, bem como a necessidade de assegurar sua oferta para todos, a prpria LDBEN aponta para a possibilidade de ofertar distintas modalidades de organizao, inclusive a qualificao tcnica, com o intuito de tratar diferentemente os desiguais, conforme seus interesses e necessidades, para que possam ser iguais do ponto de vista dos direitos. Importante destacar, contudo, que a oferta de diferentes modalidades no Ensino Mdio continua mantendo a concepo de escola nica, uma vez que, mesmo que assim as oferte, no as atrela origem de classe dos alunos, como a escola dual fazia, ao ofertar formao profissional para os trabalhadores e Ensino Mdio de educao geral para os que ocupariam na sociedade as funes dirigentes. Todos os alunos, independentemente de sua classe social, tm o direito de escolher a modalidade que melhor atenda suas motivaes e especificidades e todas as modalidades devero articular trabalho intelectual e atividade prtica. A possibilidade de mltiplas formas de organizao na educao para os adolescentes e jovens reconhecida por Gramsci, o intelectual que formulou a concepo de escola nica, ao apontar a necessidade de construir progressivamente a autonomia intelectual e tica nessas fases da formao humana. Afirma o autor que a escola para adolescentes e jovens no antidemocrtica pelo contedo que oferece, mas por oferecer diferentes propostas com diferentes qualidades, conforme se destinem aos trabalhadores intelectuais ou operacionais. (Gramsci, 1978). Assim, a organizao da Educao Bsica em Mato Grosso, para atender aos desafios apontados, contemplar, no mbito do Ensino Fundamental, os ciclos de formao humana, e no mbito do ensino Mdio, as distintas possibilidades propostas no Decreto 5154/04, de modo a considerar as diferentes realidades dos jovens mato-grossenses, com vistas sua incluso social. Para tanto, as orientaes curriculares priorizam a formao cientficotecnolgica e cultural para todos, visando construir uma igualdade que no est dada no ponto de partida, e que, por essa mesma razo, exige mediaes diferenciadas no Ensino Fundamental organizado por ciclos de formao humana e no Ensino Mdio para atender s demandas de uma clientela diferenciada e desigual.

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2.

Orientaes

Curriculares

para

a

Educao

Bsica:

concepes

epistemolgicas3 e metodolgicas 2.1 Os eixos estruturantes: Conhecimento, Trabalho e Cultura

A concepo mais ampla de educao, considerada aqui como ponto de partida conforme indicado na concepo de Educao Bsica (item1), de modo a incorporar todas as dimenses educativas que ocorrem no mbito das relaes sociais que promovem a formao humana na dimenso scio-poltico-produtiva, implica adotar o trabalho como princpio educativo, como categoria orientadora das polticas, projetos e prticas dos nveis e das modalidades que integram a Educao Bsica. Trata-se de reconhecer que cada sociedade, cada modo de produo e regimes de acumulao4, dispem de formas prprias de educao que correspondem s demandas de cada grupo e das funes que lhes cabe desempenhar na diviso social e tcnica do trabalho. O exerccio dessas funes no se restringe ao carter produtivo, mas abrange todas as dimenses comportamentais, ideolgicas e normativas que lhe so prprias, elaborando a escola sua proposta pedaggica a partir das demandas sociais. Como demonstra Gramsci, velha escola humanista tradicional correspondia necessidade socialmente determinada de formar os grupos dirigentes, que no exerciam funes instrumentais. A proposta pedaggica da escola, portanto, no tinha por objetivo a formao tcnico-profissional vinculada a necessidades imediatas, e sim formao geral da personalidade e o desenvolvimento do carter atravs da aquisio de hbitos de estudo, disciplina, exatido e compostura. No mbito das formas tayloristas/fordistas5 de organizar o trabalho capitalista no sculo XX, desenvolveu-se uma rede de escolas de formao profissional em diferentes nveis, paralela rede de escolas destinadas formao propedutica, com a finalidade de formar os trabalhadores para atender aos diversos ramos profissionais demandados pela

3

A epistemologia o ramo da filosofia que estuda o conhecimento: o que , como produzido, suas fontes, sua validade. Ver VAZQUEZ, A. S. Filosofia da praxis .Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968. Um regime de acumulao caracteriza pela estabilidade, por um longo perodo, entre as formas de produzir mercadorias e as normas e comportamentos dos trabalhadores para produzi-las e consumi-las, tendo em vista a acumulao do capital. Implica, portanto, nos modos de organizar e gerir o trabalho, no uso das tecnologias disponveis, nas leis e normas e nos processos educativos. Este texto contrape dois regimes de acumulao, o taylorista/fordista, rgido, e o atual, denominado acumulao flexvel, que se apia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padres de consumo. Esta flexibilizao demanda novas formas de disciplinamento dos agentes econmicos e polticos, ou seja, novos processos educativos que permitam ao capital se acumular. Para a escola, o dilema est em aproveitar as possibilidades trazidas pela flexibilizao, mas contrapor-se s suas negatividades, mediante uma prtica pedaggica emancipatria. Ver HARVEY, D. A condio ps-moderna. Loyola, So Paulo, 1992.

4

Taylorismo/fordismo: regime de acumulao que se inicia no incio do sculo XX com os estudos de Taylor e Ford, materializados inicialmente na linha de montagem de automveis, e que, expandindo-se para as demais esferas de trabalho, impacta a organizao econmica e social, passando a ser dominante nos anos de 1945 a 1980; caracteriza-se por exercer rgido e desptico controle sobre o trabalho, atravs da fragmentao das tarefas, da desqualificao do trabalhador, do pagamento por produo e do controle das condutas dos trabalhadores. Ver GOUNET, T. Fordismo e toyotismo na civilizao do automvel. So Paulo, Boitempo, 1999.

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diviso do trabalho. Os profissionais que deveriam executar as funes intelectuais tinham educao mais prolongada em cursos de nvel superior, estabelecendo diferenciao de escolas e redes que atendem s demandas de formao, a partir do lugar que cada classe social vai ocupar na diviso do trabalho, determinando assim o carter antidemocrtico do desdobramento entre escolas propeduticas e profissionais, cujas propostas se diferenciavam em funo da classe social a que se destinavam. Assim que, o conhecimento tecnolgico de ponta, embora organicamente vinculado ao trabalho, no era democratizado, por destinar-se formao dos dirigentes, estando restrito por longo tempo formao de nvel superior. Gramsci, ao analisar o americanismo e o fordismo, j demonstrava a eficincia dos processos pedaggicos no processo de valorizao do capital, medida que, a partir das relaes de produo e das formas de organizao e gesto do trabalho, ento dominantes, eram concebidos e veiculados novos modos de vida, comportamentos, atitudes, valores. O novo tipo de produo racionalizada, com base no trabalho parcelado organizado nas linhas de montagem, exigia um novo tipo de homem, capaz de ajustar-se aos novos mtodos da produo. O arteso, que tinha conhecimento e domnio da totalidade do seu trabalho, autonomia para organizar seus tempos e liberdade para comercializar seus produtos, com a organizao taylorista/fordista tinha que ser reduzido a um trabalhador que dominava apenas um fragmento do processo de trabalho, sem ter o controle sobre ele e sobre o que produzia, que era comercializado pelo capitalista. Para reduzir o arteso ao trabalhador fragmentado, mostra Gramsci, os mecanismos de coero social j no eram suficientes. Era necessrio educar este trabalhador para a nova forma de organizar a produo: desenvolver novas competncias articuladas a novos modos de viver, pensar e sentir, adequados aos novos mtodos de trabalho, caracterizados pela automao. Esses novos mtodos implicavam na ausncia de mobilizao de energias intelectuais e criativas no desempenho do trabalho. Havia que memorizar e repetir de forma mecnica os movimentos necessrios produo. O pensamento hegemnico6, alm de expressar uma reforma econmica, assume as feies de uma reforma intelectual e moral. nesse sentido que Gramsci prope como categoria para a compreenso da educao, o trabalho como princpio educativo, mostrando que os projetos pedaggicos se originam nas necessidades do mundo da produo da existncia, o que implica no s no desenvolvimento de capacidades tcnicas, mas6

Hegemonia: concepo desenvolvida por Gramsci para caracterizar uma forma especfica de dominao de uma classe social sobre a outra: a dominao consentida, resultante da combinao de processos de coero exercida pelo Estado, e de consenso, desenvolvido pelas instituies que compe a sociedade civil, dentre elas a escola. Na sociedade capitalista, a hegemonia exercida pela burguesia, mediante a ideologia, tendo em vista dar coeso aos comportamentos e concepo de mundo da classe trabalhadora, tendo em vista a acumulao do capital. Ver GRAMSCI, A. Maquiavel, a poltica e o estado moderno. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1988.

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principalmente de uma concepo de mundo que aceite o trabalho dividido como natural, e no como necessidade do modo de produo capitalista, para melhor explorar o trabalho, e assim valorizar-se. Se o fundamento do trabalho taylorista/fordista a fragmentao, posto que, da manufatura fbrica moderna, a diviso capitalista faz com que a atividade intelectual e material, o gozo e o trabalho, a produo e o consumo caibam a indivduos distintos, tanto as relaes sociais e produtivas como a escola, passam a educar o trabalhador para essa diviso. Em decorrncia, a cincia, e o desenvolvimento social que ela gera, ao pertencerem ao capital, aumentando a sua fora produtiva, colocam-se em oposio objetiva ao trabalhador. Assim, o conhecimento cientfico e o saber prtico so distribudos desigualmente, contribuindo ainda mais para aumentar a alienao dos trabalhadores. A escola, por sua vez, se constituiu historicamente como uma das formas de materializao desta diviso, ou seja, como o espao por excelncia, da distribuio desigual e do acesso ao saber terico, divorciado da prtica, representao abstrata feita pelo pensamento humano, e que corresponde a uma forma peculiar de sistematizao do conhecimento, elaborada a partir da cultura da classe dominante que, no por coincidncia, a classe que detm o poder material e que possui tambm os instrumentos materiais para a elaborao do conhecimento. Assim a escola, fruto da prtica fragmentada, passa a expressar e a reproduzir essa fragmentao, atravs de seus contedos, mtodos e formas de organizao e gesto, mediante um projeto pedaggico que tem sido denominado por Kuenzer de taylorista/fordista. (Kuenzer, 2000). Considerar o trabalho como princpio educativo, se por um lado implica em uma postura metodolgica que permite analisar os projetos educativos a partir das demandas dos processos social e produtivo, os quais, no capitalismo, implicam na explorao dos trabalhadores, por outro lado aponta para a possibilidade da construo de projetos alternativos que atendam s necessidades dos que vivem do trabalho, o que implica buscar o enfrentamento da escola dual mediante a construo de uma educao bsica que articule conhecimento, cultura e trabalho. Contudo preciso ter alguns cuidados: ver o trabalho como princpio educativo no significa sucumbir s propostas que articulam escola e produo. Ao contrrio, como afirma Kuenzer, a finalidade da escola que unifica conhecimento, cultura e trabalho a formao de homens desenvolvidos multilateralmente, que articulem sua capacidade produtiva s capacidades de pensar, de relacionar-se, de desenvolver sua afetividade, de estudar, de governar e de exercer controle sobre os governantes. Ou seja: trabalho na perspectiva da prxis humana e no apenas como prtica produtiva, mas, como uma das aes, materiais e 20

espirituais, que os serem humanos, individual e coletivamente desenvolvem, para construir suas condies de existncia. Ao fazer esta afirmao, a autora se refere escola nica como a proposta a ser defendida a partir da tica dos que vivem do trabalho. Com base em Gramsci a escola unitria, ou de formao humanista, ou de cultura geral, deveria propor-se tarefa de propiciar a insero dos jovens na atividade social, na criao intelectual e prtica e no desenvolvimento de uma certa autonomia de orientao e iniciativa, paralelamente s suas conquista de desenvolvimento de um certo grau de maturidade e capacidade. Concebida dessa forma, a escola nica, de Educao Bsica, propiciar uma slida formao geral inicial que proporcionar criana e ao jovem um desenvolvimento amplo e harmonioso que lhes confira a capacidade de atuar intelectual e praticamente. Na primeira etapa, hoje correspondente ao Ensino Fundamental, a escola propiciar a aquisio das capacidades bsicas necessrias apropriao da cultura: ler, escrever, calcular, situar-se histrica e geograficamente, bem como o desenvolvimento das primeiras noes de Estado e Sociedade, sob a forma de direitos e deveres. Tudo isso, com uma finalidade de iniciar a elaborao de uma nova concepo de mundo que supere as desigualdades sociais. No artigo 32 da LDB, o legislador incorpora esta concepo ao definir os objetivos do Ensino Fundamental, que poder ser organizado em ciclos: Art. 32. O ensino fundamental obrigatrio, com durao de 9 (nove) anos, gratuito na escola pblica, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, ter por objetivo a formao bsica do cidado,mediante: I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios bsicos o pleno domnio da leitura, da escrita e do clculo; II - a compreenso do ambiente natural e social, do sistema poltico, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisio de conhecimentos e habilidades e a formao de atitudes e valores; IV - o fortalecimento dos vnculos de famlia, dos laos de solidariedade humana e de tolerncia recproca em que se assenta a vida social. J o nvel mdio, a segunda etapa da Educao Bsica na atual legislao, constituirse-, na concepo de escola nica, em fase transitria de fundamental importncia para a formao da autodisciplina intelectual e da autonomia moral, valores fundamentais para a constituio de uma nova sociedade e base necessria para a especializao posterior, tanto na Universidade quanto no processo produtivo. Nessa fase, outra orientao ser necessria em 21

substituio ao dogmatismo da fase anterior e que possibilite o trabalho criador, predominantemente autnomo e independente, que se desenvolver em bibliotecas e laboratrios atravs de seminrios e debates. (Gramsci, 1978). Essa concepo conduz ao conceito de politecnia, que, como afirma Saviani, toma como pressuposto a possibilidade de que o processo de trabalho, e o processo educativo dele decorrente, desenvolva-se de modo a assegurar a indissociabilidade entre atividades manuais e intelectuais. O conceito de politecnia, que significa no o domnio de todas as tcnicas e sim o domnio intelectual da tcnica, encontra suporte em Gramsci (1978), que, ao apontar o trabalho como princpio educativo, afirma no existir, no trabalho humano, a possibilidade de dissociao entre o trabalho manual e o intelectual, medida em que, mesmo no trabalho fsico mais brutal e repetitivo, o pensamento se faz presente. O compromisso com uma educao bsica pblica e de qualidade, ao ter como princpio educativo o trabalho, implica em desenvolver um percurso educativo em que estejam presentes e articuladas as duas dimenses, a terica e a prtica, em todos os momentos da formao, contemplando ao mesmo tempo slida formao cientfica, cultural e tecnolgica, sustentadas em um consistente domnio das linguagens e dos conhecimentos scio-histricos. Isso significa afirmar que, a proposta poltico-pedaggica da Educao Bsica ter como finalidade o domnio intelectual da tecnologia, a partir da cultura, contemplando o currculo de forma terico-prtica em seus fundamentos, bem como os princpios cientficos e linguagens das diferentes tecnologias que caracterizam o processo de trabalho contemporneo, em suas relaes com a cultura, considerados sua historicidade. Dessa forma, permitir ao aluno da educao bsica, compreender os processos de trabalho em suas dimenses cientfica, tecnolgica, cultural e social, como parte das relaes sociais. Essa concepo tambm est presente na LDB, no artigo 1o quando afirma que a educao abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivncia humana, no trabalho, nas instituies de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizaes da sociedade civil e nas manifestaes culturais. Da mesma forma, o art. 35, ao definir as finalidades do ensino mdio, revela a mesma concepo, uma vez que esse nvel, alm de propiciar a consolidao e o aprofundamento dos conhecimentos e capacidades cognitivas adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento dos estudos dever promover: - a preparao bsica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condies de ocupao ou aperfeioamento posteriores;

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- o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico; - a compreenso dos fundamentos cientfico-tecnolgicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prtica, no ensino de cada disciplina. Ao referir-se ao currculo do ensino mdio, o art. 36 dispe em seus incisos que este observar as seguintes diretrizes: - destacar a educao tecnolgica bsica, a compreenso do significado da cincia, das letras e das artes; o processo histrico de transformao da sociedade e da cultura; a lngua portuguesa como instrumento de comunicao, acesso ao conhecimento e exerccio da cidadania; - adotar metodologias de ensino e de avaliao que estimulem a iniciativa dos estudantes; - ser includa uma lngua estrangeira moderna, como disciplina obrigatria, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em carter optativo, dentro das disponibilidades da instituio. - sero includas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatrias em todas as sries do ensino mdio. (Item includo pela Lei n 11.684, de 2008) Ainda o 1 desse mesmo artigo determina que os contedos, as metodologias e as formas de avaliao sero organizados de tal forma que ao final do ensino mdio o educando demonstre: - domnio dos princpios cientficos e tecnolgicos que presidem a produo moderna; - conhecimento das formas contemporneas de linguagem.

2.2

Do taylorismo/fordismo s novas formas de organizao do trabalho na sociedade contempornea: novas exigncias para a Educao Bsica.

As mudanas ocorridas no mundo do trabalho tm apontado novas direes para a construo do Projeto Poltico Pedaggico escolar, e em particular para a Educao Bsica. Partindo do pressuposto de que cada etapa de desenvolvimento das foras produtivas determina a forma de educao dos intelectuais que vo exercer as funes fundamentais produo material e no material e conferir unidade e coeso ao projeto hegemnico, h que considerar que as mudanas ocorridas no mundo do trabalho configuram novas bases materiais a exigir um novo tipo de intelectual, que a pedagogia nascida das formas tradicionais de organizao e gesto da vida social e produtiva j no consegue formar.

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A comprovao da veracidade desta afirmao est na crise em que esto imersas as escolas de todos os nveis em todos os pases do mundo. Evidentemente no Brasil esta crise assume contornos mais dramticos em virtude da no democratizao da educao em todos os nveis, de modo que nossos indicadores educacionais nos colocam entre os piores do mundo. O pas, portanto, tem duas ordens de problemas a enfrentar: a universalizao da Educao Bsica e a reformulao do Projeto Poltico Pedaggico escolar. As presentes Orientaes tm por finalidade enfrentar esta segunda questo. O desafio a ser enfrentado, como mostram as pesquisas que tm sido realizadas sobre as novas demandas de educao a partir das mudanas no mundo do trabalho, est em desenvolver prticas pedaggicas que permitam estabelecer novas relaes entre o homem e o conhecimento, diferentes das estabelecidas pelo taylorismo/fordismo7. O princpio educativo que decorre da forma taylorista/fordista de organizao e gesto do trabalho, dominante at 1980, tinha por finalidade atender a uma diviso social e tcnica do trabalho em que a fronteira entre o trabalho manual e o intelectual claramente demarcada. Em decorrncia, a relao entre o homem e o conhecimento era determinada pelo lugar que cada um ocupa na hierarquia do trabalho coletivo. Os trabalhadores responsveis pelas aes instrumentais estabeleciam relaes com o conhecimento atravs do fazer, uma vez que as caractersticas do processo produtivo, dividido, relativamente estvel e de base rgida, atrelavam o trabalhador a uma ocupao determinada, praticamente durante toda a sua vida laboral. Esse trabalhador, que precisava de pouca escolaridade e muita experincia, desenvolvia a sua competncia memorizando e repetindo as aes tpicas de sua tarefa, do que resultavam destrezas psicofsicas, tais como acuidade auditiva, visual, coordenao motora fina, fora fsica, resistncia ao trabalho repetitivo, concentrao e assim por diante. As habilidades cognitivas superiores no eram demandadas, em funo do que ele pouco se relacionava com o conhecimento cientfico-tecnolgico e scio-histrico. Como a diviso do trabalho exigia que os trabalhadores operacionais dominassem fazeres, de modo geral fragmentados, no se exigia deles que dominassem os princpios terico-metodolgicos que fundamentavam a sua prtica. O princpio educativo que determinou o projeto pedaggico taylorista/fordista, ainda dominante em nossas escolas, deu origem s tendncias pedaggicas conservadoras em suas distintas manifestaes, que sempre se fundaram na diviso entre pensamento e ao, a partir da distribuio diferenciada do conhecimento. O que era estratgico para a classe dominante, que mantinha o monoplio do saber cientfico, no podia ser democratizado, de modo que, o7

Ver KUENZER, op. cit

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acesso aos nveis superiores de ensino sempre foram controlados com a intervenincia do Estado, que mantinha a oferta de ensino superior gratuito nos limites das demandas do capital, atravs de um sistema educacional que se caracterizava pela seletividade. Essa pedagogia foi dando origem a projetos poltico-pedaggicos ora centrados nos contedos, ora nas atividades, sem propiciar relaes entre o aluno e o conhecimento que integrassem efetivamente contedo e mtodo, ou mesmo se constitussem em mediaes significativas que pudessem se constituir em aprendizagem. Dessa forma, no chegavam a propiciar o domnio intelectual das prticas sociais e produtivas para a maioria do alunado, que iria complementar sua educao para o trabalho em cursos especficos, treinamentos ou atravs da prtica, no prprio trabalho. Relaes significativas entre o aluno e a cincia s iriam ocorrer nos cursos superiores, para os poucos que demonstrassem mrito. Em decorrncia de sua desvinculao da prtica social e produtiva, a seleo dos contedos obedecia a critrios formais fundados na lgica positivista, em que, cada objeto do conhecimento, origina uma especialidade que desenvolve seu prprio quadro conceitual e se desvincula dos outros objetos e da prtica que o gerou. Concebidos desta forma, os diferentes ramos da cincia deram origem a propostas curriculares onde as disciplinas eram rigidamente organizadas e sequenciadas segundo sua prpria lgica. Os contedos, assim organizados, eram repetidos ano aps ano de forma linear e fragmentada, predominantemente por meio do mtodo expositivo combinado com a realizao de atividades que iam da cpia de parcelas de texto resposta padronizada de questes, onde mais importava cumprir a tarefa, tanto para o aluno quanto para o professor, ao invs de estabelecer profcua relao com o conhecimento. Para um processo produtivo estvel onde a maioria desempenharia tarefas parciais e repetitivas decididas por especialistas, tinha lgica ser a memorizao de procedimentos nem sempre compreendidos, atravs de exerccios de fixao, a habilidade cognitiva fundamental. Nesse contexto, a avaliao s poderia ser a verificao do que foi memorizado, por um avaliador externo ao processo, tal como faziam os inspetores de qualidade nos processos produtivos taylorizados. Nos processos pedaggicos tradicionais, os diretores de escola faziam exames orais de leitura e as provas eram preparadas por especialistas ou inspetores, sem a participao do professor, que tambm era avaliado. Embora nos processos pedaggicos mais recentes o professor passe a avaliar usando um nmero maior de procedimentos que podem incluir a autoavaliao, a lgica permanece a mesma: o controle externo e pontual daquilo que foi memorizado ou automatizado. A essas categorias da pedagogia taylorista/fordista somavam-se outras, que tambm contribuiriam para definir contedos e mtodos: uma concepo unilateral de homem, cuja 25

inteligncia exclusivamente lgico-formal, ou seja, uma concepo que considera apenas a dimenso cognitiva como constitutiva do ser humano. Consequentemente, uma viso de comportamento como obedincia s ordens, submisso, disciplina e cumprimento das responsabilidades, leva a considerar o comportamento divergente como patolgico, que deve ser tratado, e uma concepo de espao escolar como ambiente rigidamente normatizado, onde as decises so centralizadas em uma autoridade superior. Essa proposta pedaggica expressa uma concepo de educao como prdisciplinamento, tendo em vista as caractersticas de um processo social e produtivo fortemente marcado pela estabilidade e rigidez, a demandar respostas socialmente estabelecidas e relativamente uniformes para situaes geralmente conhecidas, em que o espao para a criatividade e para a originalidade era restrito a atividades de natureza intelectual, decorrentes do exerccio das funes de direo tcnica e poltica, portanto, para poucos. Foi, ao longo dos anos, reconhecidamente orgnica s demandas de uma sociedade cujo modo dominante de produo, a partir de uma rigorosa diviso entre as tarefas intelectuais e as operacionais, caracterizava-se por uma tecnologia de base rgida, relativamente estvel, que demandava comportamentos operacionais pr-determinados e com pouca variao. Compreender os movimentos necessrios a cada operao, memoriz-los e repeti-los ao longo do tempo, no exigia outra formao escolar e profissional a no ser o desenvolvimento da capacidade de memorizar conhecimentos e repetir procedimentos em uma determinada sequncia. A globalizao da economia e a reestruturao produtiva, princpios organizadores do novo padro de acumulao capitalista a partir dos anos 80, transformaram radicalmente esta situao, imprimindo vertiginosa dinamicidade s mudanas que ocorrem no processo produtivo, a partir da crescente incorporao de cincia e tecnologia em busca de competitividade. So descobertos novos materiais, criados novos procedimentos e equipamentos. Os processos de trabalho de base rgida, fundamentados na eletromecnica e adequados a situaes pouco dinmicas, cedem lugar a processos com base microeletrnica, que asseguram amplo espectro de solues possveis, desde que haja domnio da cincia e da tecnologia pelo trabalhador. Os sistemas de comunicao disponibilizam toda a sorte de informaes em tempo real. Em decorrncia, passa-se a exigir um cidado/trabalhador que tenha mais conhecimentos, saiba comunicar-se adequadamente, trabalhe em equipe, avalie seu prprio trabalho, adapte-se a situaes novas, crie solues originais, e, de quebra, seja capaz de educar-se permanentemente. 26

A produo flexvel8 passa a exigir que os cidados/trabalhadores tenham autonomia intelectual para resolver problemas usando o conhecimento cientfico, autonomia moral para enfrentar situaes que exijam posicionamento tico e compromisso com o trabalho. Do ponto de vista da construo da nova proposta pedaggica para a Educao Bsica, essas mudanas trazem novos desafios. Sem sombra de dvida, a exigncia de mais domnio de conhecimentos cientfico-tecnolgicos e do desenvolvimento de competncias cognitivas complexas atravs da expanso da escolaridade, principalmente de nvel mdio, positiva. O problema que no , necessariamente, para todos. A escola, no entanto, no pode continuar assumindo a funo de distribuir desigualmente o saber em face da diviso entre atividades intelectuais e manuais, tal como ocorria, e ainda ocorre, na sociedade global, que no superou o paradigma taylorista/fordista, embora ele no seja mais dominante. Ao contrrio, ela deve projetar-se para as futuras transformaes, preparando os jovens para enfrentar a excluso e ao mesmo tempo, atravs da organizao coletiva, super-la. A partir dessa anlise, uma primeira concluso se impe: no possvel enfrentar os novos desafios com a proposta pedaggica do taylorismo/fordismo. Ao contrrio, preciso um novo projeto poltico-pedaggico comprometido com a formao humana em sua integralidade, que prepare as crianas e os jovens para ao mesmo tempo, enfrentar os desafios da vida social e da vida produtiva. Para tanto, a proposta de Educao Bsica dever contemplar: os princpios cientficos gerais sobre os quais se fundamentam os processos

sociais, culturais e produtivos; as habilidades tecnolgicas bsicas; as formas de linguagem prprias das diferentes atividades sociais e produtivas; as categorias de anlise que propiciem a compreenso histrico-crtica da

sociedade e das formas de atuao do homem, como cidado e trabalhador, sujeito e objeto da histria. (Kuenzer, 1997). A rigidez ser substituda pela maleabilidade, a unidade de respostas pela convivncia com a pluralidade, a intransigncia pela construo da unidade na diversidade. Assim compreendida a Educao Bsica, a sua concretizao implica em intensivo trabalho coletivo dos profissionais da educao que atuam em todos os nveis, na implementao de polticas pblicas que objetivem a formao humana na perspectiva da incluso social.

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Ver nota 5.

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2.3

Os princpios metodolgicos

Como evidenciou-se no item anterior, um dos grandes desafios postos Educao Bsica pelas mudanas no mundo do trabalho a superao da pedagogia taylorista/fordista, cujos princpios so a separao entre formao intelectual e formao prtica, a fragmentao da formao, a memorizao atravs da repetio, a nfase nas dimenses psicomotoras e cognitivas, ou seja, no desenvolvimento de capacidades lgico-formais, sem a considerao da dimenso afetiva, ou comportamental. Sem desconsiderar estas dimenses, mas rearticulando-as em uma concepo que tome o processo educativo em sua dimenso de totalidade a partir de uma concepo histrica de homem em sua integralidade, que o compreenda como sntese do desenvolvimento social e individual, e, neste sentido, como sntese entre a objetividade das relaes sociais e produtivas e as subjetividades, h que se construir um processo educativo que o leve a dominar as diferentes linguagens, desenvolver o raciocnio lgico e a capacidade de usar conhecimentos cientficos, tecnolgicos, scio-histricos e culturais para compreender e intervir na vida social e produtiva de forma crtica e criativa, construindo identidades autnomas intelectual e eticamente, capazes de continuar aprendendo ao longo de suas vidas. Assim, a pedagogia dever permitir ao aluno compreender que, mais do que dominar contedos dever aprender a se relacionar com o conhecimento de forma ativa, construtiva e criadora. Torna-se necessrio, portanto, discutir a questo do mtodo. Como ponto de partida preciso apontar que no se trata de discutir procedimentos didticos ou uso de materiais, mas a prpria relao que o aluno estabelecer com o conhecimento em situaes planejadas pelo professor ou em situaes informais. Adentramos, pois, no terreno da epistemologia, em que estabelecer consensos no tarefa simples. Sem a inteno de impor uma concepo epistemolgica, buscar-se- delinear os pressupostos que tm orientado os profissionais comprometidos com a transformao das relaes sociais que esto dadas, na perspectiva da emancipao humana e da construo de uma sociedade mais justa e igualitria. Com base no entendimento de que o trabalho cientfico necessita, tanto de regras rigorosas de deduo, como de sistemas de categorias que sirvam de base imaginao produtiva e atividade criadora do pensamento, no domnio dos novos objetos a serem conhecidos, compreendemos que a metodologia da cincia no se esgota no pensamento lgico-formal, cuja finalidade mostrar as leis sincrnicas do conhecimento atravs da lgica

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simblica. Ser preciso complement-la com outra lgica, no racional, oriunda de percepes, sentimentos e intuies que permitam apreender o novo. Dessa forma compreende-se que o mtodo de produo do conhecimento um movimento, no um sistema filosfico fechado, que leva o pensamento a transitar continuamente entre o abstrato e o concreto, entre a forma e o contedo, entre o imediato e o mediato, entre o simples e o complexo, entre o que est dado e o que se anuncia. Este movimento de ascenso das primeiras e precrias abstraes compreenso da rica e complexa teia das relaes sociais concretas, no apenas a passagem do plano sensvel, onde tudo caoticamente intudo ou percebido, para o plano racional onde os conceitos se organizam em sistemas lgicos e inteligveis. Desse movimento decorre uma concepo metodolgica que pode ser sistematizada da seguinte forma: o ponto de partida sincrtico, nebuloso, pouco elaborado, senso comum; o ponto

de chegada uma totalidade concreta, onde o pensamento re-capta e compreende o contedo inicialmente separado e isolado do todo; sempre sntese provisria, esta totalidade parcial ser novo ponto de partida para outros conhecimentos; os significados vo sendo construdos atravs do deslocamento incessante do

pensamento das primeiras e precrias abstraes que constituem o senso comum, para o conhecimento elaborado atravs da prxis, que resulta no s da articulao entre teoria e prtica, entre sujeito e objeto, mas tambm entre o indivduo e a sociedade em um dado momento histrico; - o percurso vai do ponto de partida ao ponto de chegada, possuindo uma dupla determinao, finita ou infinita; pode-se buscar o caminho mais curto ou se perder, marchar em linha reta, seguir uma espiral ou manter-se no labirinto; ou seja, construir o caminho metodolgico parte fundamental do processo de elaborao do conhecimento; no h um nico caminho para se chegar a uma resposta, como h vrias respostas possveis para o mesmo problema. Essa concepo compreende o processo de produo do conhecimento como resultante da relao entre o homem e as relaes sociais em seu conjunto, atravs da atividade humana. O ponto de partida para a produo do conhecimento, portanto, so os homens em sua atividade prtica, ou seja, em seu trabalho, compreendido como todas as formas de atividade humana atravs das quais o homem apreende, compreende e transforma as circunstncias, ao mesmo tempo em que transformado por elas. Em sntese, o trabalho compreendido como prxis humana, portanto, o eixo sobre o qual ser construda a proposta poltico-pedaggica,

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que integrar trabalho, cincia e cultura, atravs de criteriosa seleo de contedos e de seu tratamento metodolgico. Portanto, trata-se de uma concepo epistemolgica que rejeita tanto o entendimento que o conhecimento se produz atravs da mera contemplao, como se bastasse observar a realidade para apreender o que nela est naturalmente e a priori inscrito, como o entendimento que o conhecimento mero produto de uma conscincia que pensa a realidade, mas no nela e a partir dela, ou seja, atravs de uma iluminao metafsica. As duas concepes acima descritas, predominam nos processos pedaggicos em geral em que, quem ensina, considera-se iluminado pela posse do conhecimento que j encontra elaborado. Dificilmente analisa e critica, estuda e prepara. Exaure-se em explicaes que o aluno deve ouvir, absorver e repetir, mais como um ato de f do que como resultado de sua prpria elaborao. Com o intuito de simular situaes prticas, o aluno deve fazer exerccios, resumos ou outras atividades, sempre repetindo uma lgica e uma trajetria que no a sua, mas a expresso da relao que o professor, em seu modo singular de conhecer, estabeleceu com o objeto a ser conhecido. As mudanas que decorrem desse processo de anlise, reforam a necessidade da superao de uma concepo de cincia enquanto um conjunto de verdades, ou sistemas formais de natureza cumulativa, em nome da compreenso de que as teorias cientficas que se sucedem ao longo da histria so modelos explicativos parciais e provisrios de determinados aspectos da realidade. Particularmente no final desse sculo, esses modelos que se superam com especial dinamismo, passam a exigir o desenvolvimento da capacidade individual e coletiva de relacionar-se com o conhecimento de forma crtica e criativa, substituindo a certeza pela dvida, a rigidez pela flexibilidade, a recepo passiva pela atividade permanente na elaborao de novas snteses que possibilitem a construo de condies de existncia cada vez mais democrticas e de qualidade. Em decorrncia, se as formas tradicionais de relao com o conhecimento que se pautavam na absoro passiva de contedos parciais formalmente organizados j eram criticadas de longa data, nesta etapa elas so inadmissveis, at mesmo por demanda do desenvolvimento capitalista. H que apontar, ainda, para o fato de que a seqncia metodolgica preleo, fixao, avaliao, toma por objeto o conhecimento sistematizado no seu mais alto grau de abstrao e generalidade, o que vale dizer, como resultado final de um processo de construo que articulou inmeros e diversificados movimentos do pensamento coletivo e deram-se em um determinado tempo e espao para satisfazer a uma determinada necessidade da existncia humana. Descolado deste movimento e desta prtica, e, portanto, de sua historicidade, este 30

conhecimento dificilmente ter significado para um estudante que recebeu a tarefa de incorpor-lo a partir de sua expresso mais formalizada e esttica, enquanto formulao terica. Da as crticas feitas escola sobre a sua dificuldade de ensinar os alunos a relacionarem os contedos das disciplinas com as relaes sociais e produtivas, que constituem sua existncia individual e coletiva. Da mesma forma, a dinamicidade da produo cientfico-tecnolgica contempornea aponta para um princpio educativo que, sem chegar ao exagero de tomar os contedos como pretexto, privilegia a relao entre o que precisa ser conhecido e o caminho que precisa ser trilhado para conhecer, ou seja: entre contedo e mtodo, na perspectiva da construo da autonomia intelectual e tica. Se o homem s conhece aquilo que objeto de sua atividade, e conhece porque atua praticamente, a produo ou apreenso do conhecimento produzido no pode se resolver teoricamente atravs do confronto dos diversos pensamentos. Para mostrar sua verdade, o conhecimento tem que adquirir corpo na prpria realidade, sob a forma de atividade prtica, e transform-la. A partir desta afirmao, h duas dimenses a considerar. A realidade, as coisas, os processos, so conhecidos somente na medida em que so criados, reproduzidos no pensamento e adquirindo significado. Essa recriao da realidade no pensamento um dos muitos modos de relao sujeito/objeto, cuja dimenso mais essencial a compreenso da realidade enquanto relao humano/social. Em decorrncia, a relao entre o aluno e o conhecimento antes construo de significados do que construo de conhecimentos, posto que esses resultam de um processo de produo coletiva que se d por todos os homens ao longo da histria. Em segundo lugar, preciso considerar que a prtica no fala por si mesma; os fatos prticos, ou fenmenos, tm que ser identificados, contados, analisados, interpretados, j que a realidade no se deixa revelar atravs da observao imediata; preciso ver alm da imediaticidade para compreender as relaes, as conexes, as estruturas internas, as formas de organizao, as relaes entre parte e totalidade, as finalidades, que no se deixam conhecer no primeiro momento, quando se percebem apenas os fatos superficiais, aparentes, que ainda no se constituem em conhecimento. Ou seja: o ato de conhecer no prescinde do trabalho intelectual, terico, que se d no pensamento e que se debrua sobre a realidade a ser conhecida. Os significados so construdos nesse movimento do pensamento, que partindo das primeiras e imprecisas percepes para relacionar-se com a dimenso emprica da realidade que se deixa parcialmente perceber, por aproximaes sucessivas, cada vez mais especficas, e, ao mesmo tempo, mais amplas.

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Nesse processo, portanto, para que seja possvel a aproximao produtiva da prtica na perspectiva da produo do conhecimento, preciso alimentar o pensamento com o que j conhecido, quer ao nvel do senso comum, quer do conhecimento cientfico, com contedos e categorias de anlise que permitam identificar e delimitar o objeto a ser conhecido e traar o caminho metodolgico para chegar a conhecer. Esse trabalho terico, que por sua vez no prescinde da prtica, que determinar a diferena entre trilhar o caminho mais curto ou permanecer no labirinto. ele tambm que determinar a diferena entre prtica enquanto repetio reiterada de aes que deixam tudo como est, e prxis enquanto processo resultante do contnuo movimento entre teoria e prtica, entre pensamento e ao, entre velho e novo, entre sujeito e objeto, entre razo e emoo, entre homem e humanidade, que produz conhecimento e por isso revoluciona o que est dado, transformando a realidade. Finalmente, h que observar que esse processo no apenas racional, nele intervindo afetos e valores, percepes e intuies, que embora fruto das experincias inscreve-se no mbito das emoes, ou seja: no campo do sentido, do irracional. Dessa perspectiva, o ato de conhecer resulta do desejo de conhecer, de uma vasta e por vezes impensvel gama de motivaes e profundamente significativo e prazeroso enquanto experincia humana. Do ponto de vista metodolgico, de fundamental importncia reconhecer que a relao entre o homem e o conhecimento d-se mediada pela linguagem, em suas mltiplas formas de manifestao: a lngua, a matemtica, as artes, a informtica. Uma das grandes contribuies das teorias scio-interacionistas reside em apontar a interao que existe entre as linguagens, a constituio de conceitos e o desenvolvimento das capacidades cognitivas complexas. Segundo Vygotski, (1984), a cultura fornece aos indivduos os sistemas simblicos de representao e suas significaes, que se convertem em organizadores do pensamento, ou seja, em instrumentos aptos para representar a realidade. As linguagens, portanto, estabelecem as mediaes entre o aluno e o conhecimento de todas as reas, bem como entre a situao na qual o conhecimento foi produzido e as suas novas formas de utilizao na prtica. Tambm pela linguagem que o conhecimento tem conscincia de si mesmo, diferenciando-se do senso comum.(Vygotsky, 1984). A questo que se apresenta, portanto, como fazer para que a autoridade do professor, no sentido da sua relao com o conhecimento e do seu desenvolvimento cognitivo, seja usada no para impor as suas idias, mas para propor situaes problemticas que tirem o aluno da inrcia e o levem a sentir necessidade de reelaborar o conhecimento, pondo em ao suas prprias conceituaes, mesmo que errneas, e de confront-las com outros conhecimentos, at que construa respostas satisfatrias. 32

As consideraes de ordem epistemolgica e metodolgica aqui levadas a efeito podem ser sintetizadas em um conjunto de pressupostos a ser considerado na elaborao do Projeto Poltico Pedaggico para todos os nveis e modalidades de ensino: 1. O Conhecimento fruto da atividade humana, compreendida em sua dimenso prxica, resultante da articulao entre sujeito e objeto, pensamento e ao, teoria e prtica, homem e sociedade. No h conhecimento fora da prxis. Portanto, h que superar o trabalho escolar enquanto contemplao, absoro passiva de sistemas explicativos complexos desvinculados do movimento da realidade histrico-social, organizando o professor situaes significativas de aprendizagem onde estas dimenses estejam articuladas, possibilitando, em particular, a insero do aluno na prtica social de sua comunidade, para que ele possa dimensionar a possibilidade de transformao a partir do conhecimento, do compromisso poltico e da organizao. 2. O conhecimento a compreenso das leis que regem os fenmenos, no apenas

em um dado momento, mas no movimento de sua transformao. Assim, o mtodo a busca do movimento, das interrelaes, das estruturas que regem os fenmenos em suas mltiplas determinaes, na sua concreticidade reproduzida pelo pensamento. 3. O Conhecimento de fatos ou fenmenos o conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade concreta. Se, para conhecer, preciso operar uma ciso no todo, isolando temporariamente os fatos, este processo s ganha sentido enquanto momento que antecede reunificao do todo a partir de uma compreenso mais ampliada das relaes entre parte e totalidade. Pela anlise da parte atinge-se uma sntese qualitativamente superior do todo; parte e totalidade, anlise e sntese, so momentos entrelaados na construo dos conhecimentos. Essa categoria mostra a falcia da autonomizao das partes em que foi dividida a cincia, a serem ensinadas apenas lgico-formalmente, atravs de sua apresentao, memorizao e repetio, segundo uma seqncia rigidamente estabelecida; ao contrrio, indica a necessidade de articulao entre os diversos campos atravs da inter e da transdisciplinaridade, ao mesmo tempo em que ocorrem aprofundamentos em campos especficos do conhecimento. Ou seja: organizar o processo pedaggico escolar, e, em decorrncia, organizar a prpria escola, de modo a articular momentos disciplinares, absolutamente necessrios enquanto resposta necessidade de formalizao, a momentos inter ou transdisciplinares, enquanto espaos de articulao com as prticas sociais, culturais, polticas e produtivas. 4. O Conhecimento produzido ou apropriado atravs do pensamento que se move do mais simples para o mais complexo, do imediato para o mediato, do conhecido para o desconhecido, de uma viso confusa, sincrtica do todo para o conhecimento mais profundo, 33

substancial, dos fenmenos da realidade, que ultrapassa a aparncia para deixar ver as conexes, relaes internas, dimenses estruturais e formas de funcionamento, no sentido da aproximao da verdade. H que se colocar, portanto, a importncia do ponto de partida, que no poder ser o conhecimento em sua forma mais abstrata, organizado em rgidos sistemas tericos, onde os contedos aparecem rigorosa e formalmente organizados. O ponto de partida uma situao ou conhecimento de domnio do aluno, e sempre que possvel sob a forma de problema, indagao ou desafio que mobilize suas energias mentais e capacidades cognitivas tendo em vista a produo de uma resposta a partir da busca de informaes, de discusses com os pares, com o professor ou com membros da comunidade, no sentido de superar o senso comum em busca do conhecimento cientfico. Para que tal acontea, alm de exercer seu papel de organizador de atividades mediadoras, propondo questes, disponibilizando informaes, discutindo e orientando, o professor dever ser um estimulador de motivaes e desejos. Para que o processo ocorra, no basta a conscincia da necessidade de conhecer, preciso ter o desejo de faz-lo. E tudo isto leva tempo. Um aluno no passa de um estado de relativa ignorncia sobre um tema para o seu conhecimento no curto espao de uma aula, atravs de uma exposio ou de uma nica atividade. Isto significa proceder a uma mudana radical na concepo curricular: desviar o enfoque da quantidade de contedos a aprender para o da qualidade dos processos que conduzam construo de significados e ao desenvolvimento das capacidades cognitivas complexas atravs no s da aprendizagem de conhecimentos, mas do exerccio do mtodo cientfico. 5. O Conhecimento exige o desenvolvimento da capacidade de construir o caminho metodolgico atravs da compreenso da relao entre concreto e abstrato e entre lgico e histrico. J se afirmou anteriormente que o pensamento, no processo de conhecer, parte de precrias e provisrias abstraes resultantes de saberes e experincias anteriores, para, atravs de uma profunda imerso na realidade emprica, atingir outro patamar de compreenso dessa mesma realidade, que Kosik9 denomina de real pensado, ou seja, agora conhecido. No processo de conhecer, portanto, o pensamento transita das primeiras abstraes para o real pensado (concreto) atravs da mediao do emprico, voltando sempre ao ponto de partida porm, em nveis superiores de abstrao, ou seja: de compreenso, de sistematizao. Ao buscar o conhecimento, portanto, o aluno precisa dominar o mtodo, enquanto resultado da articulao de momentos no lineares, mas de idas e vindas que transitam da identificao do problema e de seu recorte busca de referncias tericas de informaes em distintas fontes, at que se chegue construo da resposta procurada. Nesse processo de construo do caminho metodolgico, h que se considerar a relao entre as dimenses lgica e histrica na9

Ver KOSIK, op. cit.

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produo do conhecimento. Por histrico entende-se o objeto em processo de construo no transcurso de seu desenvolvimento em tempo real, com toda a sua complexidade e contradies. Por lgico entende-se o esforo do pensamento em sistematizar, ordenar o movimento histrico, atribuindo-lhe forma, de modo a apresent-lo com clareza em tempo virtual. O movimento histrico no linear; cheio de desvios, catico e desordenado. O lgico ordena o histrico, pe-lhe racionalidade, recupera-lhe a coerncia. O histrico corresponde ao momento da investigao; o lgico, ao da exposio. O domnio das formas metodolgicas que correspondem a estas duas lgicas, diferentes mas, complementares, parte constitutiva do processo de produo/apropriao do conhecimento, e portanto fundamental para o desenvolvimento da autonomia moral e intelectual. o desenvolvimento dessa capacidade que conferir especificidade ao Ensino Mdio enquanto etapa final da educao bsica. 6. O Conhecimento dever promover a passagem da aceitao da autoridade para a

autonomia, na perspectiva da autonomia tica, permitindo que o sujeito avance para alm dos moldes sociais em suas atividades, criando novas possibilidades fundadas em slidos argumentos, sem ferir as constries sociais necessrias vida coletiva. Ou seja: possibilitar a passagem de um estgio onde as normas so obedecidas em funo de constrangimentos externos, para um estgio onde as normas so reelaboradas e internalizadas a partir do convencimento de que elas procedem e so necessrias, transformando-se as que so ultrapassadas pelo movimento da histria, atravs do conhecimento. Estes constrangimentos, no fosse a impossibilidade de pr rdeas ao pensamento sequioso de conhecer, jogariam o homem e a sociedade no imobilismo conservador. Manter este equilbrio exige esforo da escola, particularmente nesta etapa em que a falta de utopia, agravada pela ideologia neoliberal, tem levado jovens e adultos a todos os tipos de contraveno tica, quer em nome da sobrevivncia, quer em nome de momentos de prazer justificados pelo hedonismo resultante do individualismo exacerbado neste final de sculo.

2.4

O princpio da transdiciplinaridade

Do ponto de vista metodolgico, a categoria transdiciplinaridade desempenha papel fundamental para os projetos poltico-pedaggicos que se propem a superar a fragmentao e a rigidez disciplinar do taylorismo/fordismo. A primeira tarefa que se faz necessria diz respeito elucidao dos diferentes significados que tm sido atribudos aos termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e

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transdisciplinaridade, que invadiram o cenrio do debate sobre as possveis formas de organizao do trabalho escolar. As disciplinas tradicionais j no abrigam os fenmenos da vida cotidiana, posto que a cincia contempornea rompe as barreiras historicamente construdas entre os diferentes campos do conhecimento, superando os limites estreitos das especializaes, construindo novas reas a partir da integrao de objetos na vida social e produtiva. Como bem exemplifica Machado, a Fsica e a Qumica esmiam a estrutura da matria, a entropia um conceito fundamental na Termodinmica, na Biologia e na Matemtica da Comunicao, a Lngua e a Matemtica entrelaam-se nos jornais dirios...(Machado, 1995:80). O pano de fundo para esta discusso, portanto, a relao entre parte e totalidade. Do ponto de vista da pedagogia, a contribuio desta discusso fundamental, por permitir retomar o carter totalizante do processo de produo e apropriao do conhecimento, atravs do movimento do pensamento que busca compreender cada fenmeno como momento de uma realidade em permanente processo de construo. Com relao preciso dos conceitos, os vrios autores que se debruam sobre esta questo identificam trs eixos: o multi ou interdisciplinar, e o transdisciplinar. A multidisciplinaridade trata os objetos a partir de mltiplos pontos de vista que no perdem sua identidade disciplinar. A interdisciplinaridade implica na contribuio de diferentes disciplinas para a anlise de um objeto, que, no entanto, mantm seu ponto de vista, seus mtodos, seus objetos, sua autonomia. A transdisciplinaridade implica na construo de um novo objeto, com metodologia peculiar, a partir da integrao de diferentes disciplinas, que se descaracterizam como tais, perdem seus pontos de vista particulares e sua autonomia para constituir um novo campo do conhecimento10. Ou seja, mais que a soma de partes fragmentadas; supe uma rearticulao do conhecido, ultrapassando a aparncia dos fenmenos para compreender as relaes mais ntimas, a organizao peculiar das partes, descortinando novas percepes que passam a configurar uma compreenso nova, e superior, da totalidade, que no estava dada no ponto de partida. A transdisciplinaridade supe a possibilidade de construo do novo, permitindo aproximaes sucessivas da verdade, que nunca se d a compreender plenamente; por isto, o conhecimento resulta do processo de construo da totalidade, que nunca se encerra, pois h sempre algo novo para conhecer. Nesta concepo, evidencia-se que conhecer a totalidade no dominar todos os fatos, mas as relaes entre eles, sempre reconstrudas no movimento10

Ver MACHADO, op. cit.

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da histria.11 Dela deriva o princpio pedaggico que mostra a ineficcia de aes meramente conteudistas, centradas na quantidade de informaes que no necessariamente se articulam, para propor aes que, permitindo a relao do aluno com o conhecimento, levem compreenso das estruturas internas e formas de organizao, conduzindo ao domnio intelectual da tcnica, expresso que articula conhecimento e interveno prtica. A transdisciplinaridade supe, portanto, uma nova forma de integrao de vrios conhecimentos, que quebra os bloqueios artificiais que transformam as disciplinas em compartimentos especficos, expresso da fragmentao da cincia. Implica na construo de outros objetos com suas formas peculiares de tratamento metodolgico, a partir no mais da lgica formal e sim do movimento da realidade, catica e desordenada, que prope ao homem novos e complexos desafios que exigem tratamento original a partir da integrao dos vrios campos do conhecimento. A transdisciplinaridade, como estratgia de produo do conhecimento, diferencia-se da transdisciplinaridade enquanto estratgia de construo de significados pelo aluno, atravs dos processos pedaggicos escolares. No primeiro caso, refere-se construo de novos objetos; no segundo, refere-se ao aprendizado do caminho metodolgico que permite apreender as relaes entre parte e totalidade, sujeito e objeto, lgico e histrico, concreto e abstrato, individual e coletivo, ou seja, pr-condio para a produo de conhecimentos. Neste sentido, no so conceitos diferentes, mas partes do mesmo processo de formao humana que tem por finalidade o desenvolvimento da capacidade de intervir na realidade para transform-la. Importante destacar, contudo, que em ambas as circunstncias, a transdisciplinaridade, demanda conhecimento disciplinar, evidenciando-se a interdependncia entre estes dois eixos. Sem pretender propor uma soluo para este debate, algumas consideraes se impem a partir do tratamento metodolgico explicitado no item anterior: os enfoques disciplinar e transdisciplinar respondem a diferentes lgicas: a da

forma, que corresponde lgica da disciplina enquanto sistema lgico-formal que apresenta conceitos, classificaes, leis gerais em suas expresses mais abstratas, sntese do pensamento humano em determinada rea do conhecimento e por isto mesmo, descolada das situaes concretas em que foram produzidas, e a do contedo, da concreticidade, do movimento, da histria, do fenmeno no seu acontecendo, que prescinde dos rigores da lgica formal no momento da investigao, que sempre catico e desordenado, mas no dos sistemas de conhecimento disponveis, que fornecero categorias de anlise e permitiro a elaborao deSobre este ponto, KOSIK dir que o pesquisador no um trapeiro que fica a juntar tudo o que aparece, para usar um dia; ao contrrio, o processo de conhecer na perspectiva da totalidade supe seleo do que vai ser conhecido, a partir de critrios que so definidos por aquilo que se quer conhecer, mesmo que de modo precrio no ponto de partida, posto que vo sendo construdos no processo. KOSIK, op. cit.11

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novas snteses atravs da integrao de mltiplos conhecimentos. Em decorrncia, estes eixos so complementares, e no excludentes. Isso significa que o currculo contemplar uma organizao vertical e horizontal composta por disciplinas nas sries e em uma mesma srie, complementada por um eixo transversal de natureza transdisciplinar que tomar questes que mobilizem o interesse dos alunos, por eles indicadas, que sero abordadas de modo a integrar contedos, professores e alunos de diferentes turmas em projetos, seminrios, pesquisas ou outras modalidades de trabalho; o ponto de partida para as prticas disciplinares a lgica da disciplina; para as

prticas transdisciplinares, as relaes sociais, o mundo do trabalho; no possvel trabalhar de forma transdisciplinar caso no haja tratamento

disciplinar rigoroso, que fornea categorias de anlise, referencial terico e sistemas simblicos que viabilizem novas snteses; isso leva o professor a assumir a responsabilidade com um tratamento disciplinar competente e rigoroso, o que remete a discusso sua prpria capacitao. Se o professor no competente em sua rea especfica, dificilmente se integrar a trabalhos transdisciplinares; da mesma forma, se o aluno no dominar conhecimentos bsicos fundamentais, no participar adequadamente, pois s possvel integrar sem confundir aquilo que foi diferenciado previamente; a disciplinaridade implica em relao individual do aluno com o conhecimento; a

transdisciplinaridade, na medida em que significa a construo/apropriao de um novo objeto a partir de um problema da prtica social, que exige a integrao de vrias reas do conhecimento, s possvel atravs do trabalho coletivo; a dinamicidade da produo cientfica contempornea no permite que um profissional domine todos os campos do conhecimento, e detenha todas as habilidades. Nem este o conceito adequado, como j se afirmou anteriormente. Se este tipo de tratamento exige rigor na rea de domnio especfico, quanto mais competente, numeroso e diversificado for o grupo de pesquisadores, ou de docentes e alunos, melhor ser o resultado do trabalho; a transdisciplinaridade espao de aprendizagem coletiva pela construo da unidade a partir da diversidade, e sem dissolv-la; a sntese dialtica atravs da qual se fortalece o todo e se refora a parte, convivendo as diferenas nos limites do saudvel debate que estimula o crescimento e a organizao coletiva, estabelecendo-se relaes de troca e de solidariedade como condio para o desenvolvimento de um projeto poltico-pedaggico que se lance para alm das dimenses formais; a confuso entre estes dois espaos levou banalizao do trabalho em equipe, que, ao substituir a necessria relao do aluno com o conhecimento, inviabilizou tambm a produo coletiva, tornando precrios os processos pedaggicos, com o que, ao mesmo tempo, facilitou-se e justificou-se a excluso da escola dos j socialmente excludos. 38

-

a transdisciplinaridade s ser possvel se for planejada em nvel institucional,

sendo parte integrante do projeto polticopedaggico; os projetos transdisciplinares, que se originam em questes da prtica que sejam

relevantes para a comunidade, sempre que possvel devero culminar com uma atividade de interveno na realidade, de modo a articular cincia e poltica na perspectiva da construo da tica, da solidariedade e do compromisso com a transformao da sociedade. Nessa dimenso, cria-se um espao de interveno prxica, fundamental para o desenvolvimento do sentido de pertencimento sociedade e da conscincia social, bem como de comprometimento com o trabalho. Nessa dimenso, projetos transdisciplinares so espaos pedaggicos para enfrentar o individualismo e a competitividade que caracterizam as relaes sociais nessa etapa de desenvolvimento das foras produtivas e, ao mesmo tempo, desenvolver a capacidade de trabalhar com as diferenas e divergncias, mostrando que a unidade que se constri pela juno dos iguais, alm de pobre, conduz ao sectarismo. A verdadeira unidade processo, resu