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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA - ECCO EDUARDO LUIS MATHIAS MEDEIROS CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NO ASSENTAMENTO DORCERLINA FOLADOR - MT: DIÁLOGO DA DIFERENÇA CUIABÁ 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA - ECCO

EDUARDO LUIS MATHIAS MEDEIROS

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NO ASSENTAMENTO DORCERLINA FOLADOR - MT:

DIÁLOGO DA DIFERENÇA

CUIABÁ 2010

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EDUARDO LUIS MATHIAS MEDEIROS

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NO ASSENTAMENTO DORCERLINA FOLADOR - MT:

DIÁLOGO DA DIFERENÇA

Dissertação apresentada para defesa no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa em Epistemes Contemporâneas.

ORIENTADOR: PROF DR MÁRIO CEZAR SILVA LEITE

CUIABÁ

2010

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

M488c Medeiros, Eduardo Luis Mathias.

Construção de identidade no assentamento Dorcelina Folador – MT: Diálogo da diferença, 2010.

89 f ; il : color. 30 cm (Incluem figuras.) Orientador: Mário Cezar Silva Leite

Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagem. Programa de Pós-Graduação Estudos de Cultura Contemporânea, 2010.

Bibliografia: f. 87-89

1. Cultura contemporânea. 2. Identidade. 3. Movimentos sociais. I.

Título. CDU 316.7

Catalogação na fonte: Maurício S. de Oliveira - Bibliotecário CRB/1 1860 Catalogação: Maurício Silva de Oliveira – Bibliotecário CRB/1 1860

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DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA _______________________________________________________ Prof. Dr. Prof. Dr. Fréderico Augusto Garcia Fernandes Examinador Externo (UEL) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Leonice Aparecida de Fátima Alves Examinador Interno (UFMT) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite Orientador (ECCO/UFMT)

Cuiabá, __ de _____ de 20__

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho A meus pais Ana Maria Mathias Medeiros e a José Carlos de Lavor Medeiros que, como sempre, estiveram presentes ao meu lado em mais uma etapa da minha vida. Dedico também aos assentados do Dorcelina Folador - MT por terem me recebido em suas casas e contribuído com esta pesquisa.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores de mestrado do ECCO/UFMT pelas discussões e reflexões ao longo dessa pesquisa; Agradeço ao meu orientador, Mário Cezar Silva Leite, pelo seu constante apoio e estímulo à pesquisa; Agradeço à banca, professora Leonice Aparecida de Fátima Alves e professor Frederico Garcia Fernandes por aceitarem o convite para avaliação e por todas as observações na qualificação da pesquisa; Agradeço aos meus companheiros André Dias e Lawrenberg pela colaboração no trabalho; Agradeço à FAPEMAT por ajudar nesta pesquisa; Agradeço aos meus irmãos Éder e Everton por terem me acompanhado nestes dois anos em Cuiabá; Agradeço à Amanda, pela compreensão e ajuda em todos os momentos e pela força nos minutos finais; Agradeço à Deus, na minha trajetória de vida.

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RESUMO

Esta pesquisa observa, a partir de uma série de entrevistas com as famílias assentadas, a construção de identidades da população do assentamento Dorcelina Folador (MT). A investigação parte da inquietação do porque de os indivíduos que participam de um movimento social de luta pela terra, o MST, não representarem no dia-dia do assentamento as ideologias que o movimento prega: de pluralidade, cooperação, coletividade. Valores que vêm sendo substituídos na cultura contemporânea pelo individualismo. No assentamento pesquisado, as famílias que moram no local não conseguiram criar laços de comunidade, se unir em cooperativas, associações, e todos os projetos coletivos de que participaram fracassaram. Verificou-se também que há famílias um pouco mais estruturadas, outras menos e outras ainda que abandonam os lotes para trabalhar na cidade ou em outros sítios da zona rural para poder saldar suas dívidas junto ao banco e não voltar mais para a beira da estrada. Essas e outras estratégias para permanecer na terra não são condizentes com o projeto da Reforma Agrária e nem com a ideologia passada pelo próprio movimento; mas são formas que esses sujeitos encontraram de continuar na terra sonhada. Palavras-chave: Cultura contemporânea, identidade, movimentos sociais.

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ABSTRACT This research observes, from a series of interviews with settled families, the identity construction of the population of the Dorcelina Folador settlement (MT). The investigation starts in the unrest of why the individuals that take part in a social movement of struggle for land, the MST (Landless Workers’ Movement), don’t represent on their everyday life in the settlement the ideologies that the movement conveys – plurality, cooperation, colectivity. Principles that have been replaced in contemporary culture with individualism. In the researched settlement, the families were not able to spawn community bonds, get together in co-ops or associations, and all collective projects they have participated in have failed. It has also been found that there are a little more structured families, some a little less, and ones that have even abandon their parcels to work in the city or in other ranches of the rural zone to be able to pay off their debts in the bank and do not come back anymore to the roadside. These and other strategies to remain on the land are not consonant with the Land Reform Project e neither with the past ideology of the movement. But these are ways these subjects find to remain on the aspired land. Key-words: Contemporary culture, identity, social movements.

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SUMÁRIO RESUMO.................................................................................................................6

ABSTRACTS .........................................................................................................7

INTRODUÇÃO.......................................................................................................9

I - CONCEITOS CONTEMPORÂNEOS..........................................................16

1.1 O MST e o seu lugar na cultura contemporânea ..............................................16

1.2 Transformações no campo................................................................................22

1.3 A questão das identidades.................................................................................26

1.4 Transformações da identidade na contemporaneidade ....................................31

1.5 O estudo dos Movimentos Sociais ...................................................................37

1.6 Paradigmas marxista e neomarxista .................................................................38

1.7 Os novos movimentos sociais ..........................................................................41

II- A LUTA PELA TERRA ................................................................................ 46

2.1 Histórico dos movimentos sociais no campo ...................................................46

2.2. Índios ...............................................................................................................46

2.3 Negros .............................................................................................................48

2.4 Canudos ............................................................................................................50

2.5 Guerra do Contestado ...................................................................................... 53

2.6 Santa Dica ........................................................................................................55

2.7 As Ligas Camponesas ......................................................................................57

2.8 O Movimento dos Trabalhadores Sem- Terra .................................................61

2.8.1 Congressos que marcam a história ................................................................63

2.8.2 Estrutura ........................................................................................................65

III - O ASSENTAMENTO...................................................................................68

3.1 A formação do assentamento............................................................................72

3.2 As experiências ................................................................................................80

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................85

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................87

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo observar a construção da identidade da população

do assentamento Dorcelina Folador, localizado a 25 km da capital mato-grossense e que

abriga cerca de 33 famílias. De maneira geral, a pesquisa constatou que nos últimos

anos o movimento de luta pela terra tem se intensificado bastante em várias regiões do

país. Dados apontam mais de 35 movimentos diferentes envolvidos com a questão da

luta pela terra. Há também as ações independentes, sem ligação com os movimentos

sociais, que se mobilizam para conquistar a terra. Embora haja uma grande diversidade

de movimentos organizados pela luta da conquista da terra, o imaginário social

relaciona essa luta à imagem dos sem- terra e do MST (Movimento dos Trabalhadores

Sem Terra), destacando este movimento como uma espécie de imagem predominante e

dominante em toda a movimentação social da luta pela terra.

De algum modo os outros movimentos são, enquanto identidades, entidades

distintas, apagados e diluídos pelo emblema MST. A pesquisa optou por observar, como

hipótese e pela pesquisa de campo com entrevistas, o processo da construção de

identidades sociais partindo do princípio de que o assentamento, mesmo ligado ao MST,

é um lugar de recriação de experiências, de ressocialização, de hibridização e

mestiçagem entre uma identidade cultural homogênea, representada e articulada pelo

MST e uma representada, em fluxos de articulações, pelo trabalhador rural. Ao

conquistar a terra esse trabalhador rural deixa de ser, identificar-se com (e como) “sem

terra”, e passa a construir e elaborar outras possibilidades identitárias. Isso, em tese, o

torna de certo modo refratário a todo o repertório identitário do MST sem, no entanto,

desligar-se completamente desse assentamento de pertencimento. Essa pesquisa visa a

investigação e entendimento de como esses processos se elaboram, criam e recriam

dentro do Dorcelina Folador e no imaginário dos assentados.

A pesquisa tem como problema o porque de os indivíduos não representarem no

seu cotidiano as ideologias dos movimentos sociais dos quais participam. Ou melhor,

por que as pessoas que participam de um movimento social de luta pela terra, o MST,

não representam no dia-dia do assentamento a ideologia que o movimento passa, de

pluralidade, cooperação, coletividade. Valores que vêm sendo substituídos na cultura

contemporânea pelo individualismo.

Conforme observado pela pesquisa no assentamento Dorcelina Folador, as

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famílias que moram no local não conseguiram criar laços de comunidade, se unir em

cooperativas, associações, e todos os projetos coletivos dos quais participaram

fracassaram. No entanto, gostam-se e respeitam uns aos outros, mas na hora de se unir

em busca de um objetivo único não se articulam, não se unem. Diante de todas as

dificuldades e falta de apoio do governo, os assentados tiveram que arrumar estratégias

individuais para continuar na terra.

Percebe-se que os sujeitos não conseguem representar (ou tem grande

dificuldade em fazer isso) no cotidiano essa unidade que a identidade sem-terra sugere.

Os indivíduos que participam do movimento, assim que recebem a terra, deixam de

responder à ideologia do seu grupo e passam a entrar na lógica capitalista. São

alterações na esfera do imaginário desses indivíduos, que passam a trabalhar a terra

como mercadoria, como produto.

Enquanto estão acampados e unidos por um elemento aglutinador comum - que

podemos indicar como o fato do acesso à terra - eles ainda respondem pela ideologia do

grupo. Mas, a partir do momento em que recebem seus lotes, boa parte dos valores

como coletividade e cooperação são substituídos pelo individualismo. Obviamente a

falta de apoio aos assentamentos por parte do Estado, os constantes ataques da mídia e

do mercado levam a isso.

Uma particularidade em relação aos assentamentos no Estado de Mato Grosso é

que normalmente ficam isolados e em área de difícil acesso a mercados e à infra-

estrutura urbana. O Dorcelina Folador foge a essa tendência. O assentamento se localiza

a 25 km de Cuiabá e 18 km do município de Várzea Grande. Por isso podemos

denominá-lo rururbano, pela sua proximidade com a cidade. Distância esta que não

deveria prejudicar o escoamento da produção do assentamento e os deixam integrados à

cidade. Muitos têm celulares, acessam a internet, ouvem rádio e assistem à televisão. Ou

seja, são bombardeados diariamente pelos meios de comunicação e toda força

hegemônica do mercado. Apesar de eles estarem muito próximos da cidade, ainda

encontram muitas dificuldades que na cidade já foram superadas (ou ao menos se espera

que tenham sido), como acesso à água, esgoto, saúde pública e escolas. Percebe-se no

local o moderno convivendo com o arcaico.

A grande extensão do assentamento (aproximadamente 1.180 hectares) e a

distância percorrida de um sítio ao outro dificultaram no primeiro momento as

entrevistas. Com isso, na primeira visita ouviram-se poucas pessoas e percorreu-se

apenas uma parte do assentamento. Foram entrevistadas na grande maioria mulheres, já

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que os homens, por conta das dificuldades encontradas para se manterem com a

produção do sítio, estavam trabalhando em outros sítios da zona rural, ou mesmo nas

cidades mais próximas.

As chuvas também prejudicaram um pouco o acesso às fontes. Com elas, as

estradas de terra do assentamento ficavam intransitáveis. Nos dias de chuva não se

conseguia chegar ao assentamento e demorou-se um pouco mais para colher as

entrevistas por ter sido necessário esperar um período de maior estiagem. Essas

dificuldades encontradas pelo pesquisador e relatadas aqui podem servir de pequena

amostra das dificuldades encontradas por esses assentados no seu dia-a-dia.

A pesquisa se concentrou no estudo de um caso em particular (o assentamento

Dorcelina Folador) considerando-o representativo dentro de um universo de casos que o

estudo pretende abordar. A coleta de dados e suas análises se dão na forma de pesquisas

bibliográficas e de campo. O caso averiguado, em especial, é bem significativo e

fundamenta as análises do pesquisador. Os dados foram coletados e registrados,

seguindo todos os procedimentos da pesquisa de campo.

No primeiro momento, realizou-se a pesquisa bibliográfica, quando o

pesquisador se debruçou sobre o fichamento de livros, artigos e teses sobre o tema em

questão. A partir daí, partiu-se para a pesquisa de campo, onde utilizou-se técnicas de

entrevistas e observação in loco. Na pesquisa de campo, procurou-se abordar as fontes

em seu ambiente próprio. Os dados foram coletados e observados, sem intervenções e

alterações por parte do pesquisador.

A escolha pelas entrevistas se deu por conta de procurar aprender e compreender

como estes sujeitos abordados pensam e se representam na cultura contemporânea. As

técnicas de entrevista utilizadas foram: entrevistas não-diretivas e entrevistas

estruturadas.

Na primeira visita ao local, fez-se uso de entrevistas não-diretivas. Ou seja,

colheu-se informações dos sujeitos a partir de um discurso livre. Não foi utilizado

gravador. Manteve-se uma escuta atenta, registrando todas as informações que se

mostraram necessárias e só intervindo discretamente para, eventualmente, estimular o

entrevistado. Fez-se uso de um diálogo descontraído, deixando o entrevistado à vontade

para expressar sem constrangimentos suas representações. Foram anotadas apenas

algumas informações a fim de traçar um perfil dos problemas do assentamento e a

maneira que os assentados encontravam para superá-los. Optou-se por este caminho no

intuito de buscar uma aproximação maior com os entrevistados, conhecer as famílias

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que moram ali (e elas também saberem mais sobre do que se tratava a pesquisa, o

porquê dessa abordagem), seus problemas, suas histórias, a fim de nas próximas visitas

conseguir uma observação mais detalhada.

Com as informações colhidas neste primeiro contato, pôde-se partir para o

próximo encontro, com as entrevistas estruturadas. Sendo elas questões mais

direcionadas e previamente estabelecidas, buscou-se abordar o objeto com maior

precisão. Note-se que não era um questionário, pois não tinha esse caráter tão sisudo e

impessoal que o mesmo sugere. Mas tinha uma determinada articulação em torno das

questões, a fim de abordar o universo dos entrevistados e tirar respostas mais precisas,

sendo mais útil para o desenvolvimento do levantamento dos dados. Nesta etapa, fez-se

o uso do gravador.

Nas entrevistas foram colhidas também informações sobre a história de vida dos

assentados. Isso foi importante para observar a complexidade das trajetórias desses

sujeitos que, de uma hora para outra, decidem participar de um movimento social de

luta pela terra a fim de alcançar o sonho de ter a sua própria. Importante também foi

lançar um olhar para as diferentes estratégias utilizadas por esses sujeitos para se manter

na terra conquistada por eles, depois de muitos anos de luta e sofrimento, vivendo

acampados à beira da estrada e em locais sem o mínimo de estrutura. Tentou-se captar

com profundidade as palavras do imaginário destes sujeitos que refletem a experiência

de quem viveu na pele o significado da luta pela terra.

De posse de alguns elementos da pesquisa se constata que existe nos

assentamentos, de modo geral, uma enorme heterogeneidade de situações que constitui

um indicativo de diferentes lados da questão agrária no Brasil e da sua diversidade de

sujeitos nela envolvidos. Esses e outros aspectos fazem dos assentamentos rurais um

verdadeiro laboratório para observação privilegiada de múltiplas experiências.

No assentamento pesquisado há famílias que conseguiram se estruturar e

conseguem tirar o mínimo de sustento do seu lote. No entanto, há outras que

abandonaram os seus lotes para trabalhar na cidade para poder saldar suas dívidas junto

ao banco e não mais voltar para a beira da estrada. Aliás, a maioria hoje precisa partir

para o trabalho fora do sítio para compor a renda mensal. Trabalhos que são

desenvolvidos algumas vezes em sítios da zona rural, ou até mesmo nas cidades, como

serventes de pedreiro, guardas-noturnos. Em geral, serviços no mercado informal, sem

carteira assinada.

Essas e outras estratégias para permanecer na terra não são condizentes com o

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projeto da reforma agrária e nem com a ideologia passada pelo próprio movimento, mas

são formas que esses sujeitos encontraram de continuar na terra sonhada.

Não se trata de uma realidade homogênea. Embora todos tenham recebido de

início a mesma quantidade de terra (mediante sorteio), nem todos tiveram a mesma

infra-estrutura. Há sítios que se encontram longe de poços de água para abastecê-los, e

outros não receberam a infra-estrutura básica prometida pelo INCRA (Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Observou-se também que a sociabilidade da fase do acampamento e pré-

assentamento não teve continuidade no assentamento. Esses valores trabalhados pela

ideologia do MST como, por exemplo, solidariedade e cooperação, foram sendo

substituídos pelo individualismo da cultura contemporânea, em virtude da pressão sob o

sítio ser produtivo e ter que pagar o banco.

Após tornarem-se assentados, esses sujeitos, embora tenham outro imaginário

em torno da terra, são forçados a entrar no circuito do mercado, da produção, da terra

como mercadoria, renda, negócio. Percebe-se por meio da pesquisa como o

assentamento Dorcelina Folador é fragmentado. As famílias que convivem lá não

conseguiram criar laços de comunidade, se juntar em cooperativas, associações; como a

ideologia do MST sugere.

Na estrutura do trabalho, apresenta-se no primeiro capítulo o lugar do MST na

cultura contemporânea e como o impacto da globalização sacudiu as estruturas que até

então via-se como estáveis, e alterou as identidades e as formas das relações sociais na

cidade e no campo. Mudanças ocorridas na esfera da cultura que fragmentaram o

indivíduo e mudaram seu processo de identidade, ou melhor, de identificação, como

sugerem os cientistas sociais contemporâneos.

A fim de entender como se configura a cultura contemporânea faz-se um passeio

pelo pós-modernismo, isto é, a consciência estética do movimento pós-moderno. Para

isso utiliza-se o crítico cultural Fredric Jameson com seu livro Pós-Modernismo - A

Lógica cultural do capitalismo tardio. Nesta obra, Jameson expõe as formulações de

Ernest Mandel em “O Capitalismo Tardio” para indicar que este terceiro estágio do

sistema capital atingiu seu estado mais puro e a forma da mercadoria cobriu todo o

planeta.

Seguindo Jameson, pode-se ver que o capitalismo tardio começou a se

desenvolver após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), onde a falta de bens de

consumo e de peças de reposição foi solucionada e novas tecnologias – e a mídia -

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puderam ser introduzidas. Com isso, houve um ciclo de expansão do capitalismo de

alcance mundial.

A emergência do pós-modernismo está relacionada com esse desenvolvimento

do capitalismo que se inicia no pós-guerra e se intensifica durante a Guerra Fria (1946-

1989). A partir dos anos 60 e mais precisamente nos anos setenta, uma nova sociedade

começa a se desenvolver em um ritmo acelerado de mudanças na esfera da cultura até

então sem precedentes em toda a história da humanidade. O capital penetra na Natureza

e no Inconsciente – devido a novas formas de relação no campo com a entrada do

capital e a abrangência da mídia em todo o globo.

O desenvolvimento acelerado deste terceiro estágio do capitalismo - favorecido

pelo desenvolvimento tecnológico e os meios de comunicação que intensificaram o

processo de globalização - e o nascimento do pós-modernismo revolucionaram as

relações de produção e modos de vida em todos os lugares do globo. Trabalhadores, em

escala global, foram expulsos das fábricas por conta de novas técnicas de produção,

baseadas no desenvolvimento da eletrônica e da informática. No lugar destes

trabalhadores, maquinários que produzem mais, geram mais lucro e não fazem greve,

foram adotados. Assim como a cidade, o campo também foi industrializado e sentiu o

impacto dessas transformações.

Como resultado, os camponeses foram expulsos da terra e migraram para os

centros urbanos, compondo os bolsões de pobreza. Mas houve aqueles que preferiram

ficar no campo, resistir e lutar por um pedaço de terra. Assim nasceu o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil, resultado de um processo de modernização

da agricultura no sul do país, que expulsou os pequenos trabalhadores rurais e esses

viram a necessidade de se organizarem para lutar pela terra.

Procurou-se ainda problematizar neste capítulo o que aconteceu com o conceito

de identidade após estas transformações da cultura contemporânea, aproximando-o mais

ao conceito de identificação que sugere algo muito mais leve e fluído, com metáforas

mais condizentes com o atual estágio da cultura contemporânea. Para fechar este

capítulo faz-se uma abordagem do que são movimentos sociais, como são estudados e

como se articula na cultura contemporânea esta idéia de defesa das identidades

projetadas pelos movimentos.

No capítulo dois, traça-se um histórico dos principais movimentos sociais que

estiveram presentes na história do Brasil e aponta-se como esses movimentos marcam

uma história de luta do homem pobre do campo na sua busca contínua pela conquista da

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terra para trabalhar, para morar, viver, ter um lar e construir uma vida digna. Um

processo de luta que se pôs em movimento a partir da chegada do colonizador europeu e

se estende até os dias de hoje. Por último, mostra-se o nascimento do MST, traçando um

histórico de todos esses anos de luta pela terra e suas experiências que o levam a ser o

maior movimento social rural do mundo.

No capitulo três apresentam-se as narrativas e, a partir delas, como os assentados

representam nos assentamentos a lógica capitalista, inverso da ideologia pregada pelo

grupo. De posse das análises da pesquisa de campo, mostrar-se-á o processo da

construção de identidades sociais, em um assentamento que viveu uma reforma agrária

parcial, ou seja, limitando-se o governo a distribuir apenas a terra, mas não ofertando as

condições necessárias para o desenvolvimento econômico e social dos assentados.

Nessas narrativas, os assentados contam suas experiências em enfrentar as dificuldades

encontradas no assentamento e como isto confere a eles novas identidades. Na

conclusão, buscar-se-á algumas interpretações e novos debates para o caso.

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I

CONCEITOS CONTEMPORÂNEOS

1.1 O MST E O SEU LUGAR NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

Pensar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) requer, antes

de tudo, uma reflexão a respeito do seu lugar na contemporaneidade. Numa sociedade

marcada por diferenças e pela valorização da individualidade, como se dá a emergência

de um movimento que reconecta o individuo à coletividade? Essa me parece uma

discussão inicial necessária para entendermos como um movimento social articula na

cultura contemporânea tantas diferenças e se fortalece como uma identidade que

representa uma unidade, num tempo em que projetos únicos não são mais valorizados.

Para explicar como entendemos a cultura contemporânea, recorro primeiramente

ao filósofo francês, Jean-François Lyotard. Na década de 1970, Lyotard, escreveu um

livro chamado A Condição Pós-moderna, a pedido de estudiosos canadenses, onde ele

tinha como objetivo mostrar a situação do saber nas sociedades mais desenvolvidas.

Essa nova situação do saber, Lyotard resolveu chamar de pós-moderna, palavra que vai

designar a cultura após as transformações ocorridas em relação à crise dos grandes

relatos e que afetaram as regras dos jogos da Ciência, da Literatura e das Artes no final

do século XIX.

Conforme Lyotard, a pós-modernidade caracteriza-se pelo fim desses grandes

relatos (metanarrativas): ...considera-se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos metarrelatos’. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da filosofia metafísica e a da instituição universitária que dela dependia (LYOTARD, 1993, p. 3)

Segundo o filósofo estas mudanças começaram a aparecer por volta do final dos

anos cinqüenta, época do fim da reconstrução da Europa. No entanto, tais mudanças

variam de país para país e de atividade para atividade. O que chama a atenção na obra

de Lyotard é o fato do saber científico na pós-modernidade ser apenas mais uma espécie

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de discurso, bem como o fato de as ciências e das técnicas de vanguarda, nos últimos

tempos, versarem sobre a linguagem. Para Lyotard, o saber muda de estatuto ao mesmo

tempo em que “as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na idade

dita pós-moderna” (LYOTARD, 1993, p. 3).

A cultura contemporânea, ou pós-moderna, é vista através dessas transformações

que o mundo passou. Saber se estamos na modernidade ou na pós-modernidade se faz

importante para definir nossa posição na história. Porém, dizer que estamos num

momento posterior em relação à modernidade pressupõe a aceitação daquilo que

caracteriza a modernidade, a idéia de progresso, de história, de avanço, de superação.

Para o filósofo italiano Gianni Vattimo, a modernidade se caracteriza por ser dominada

pela idéia da história do pensamento como uma iluminação progressiva (Iluminismo).

Conforme ele, deveríamos entender o pós de pós-moderno como uma despedida da

modernidade, na medida em que se quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, de

progresso.

A pura e simples consciência - ou pretensão - de representar uma novidade na história, uma figura nova e diferente na fenomenologia do espírito, colocaria de fato o pós-moderno na linha da superação. No entanto, as coisas mudam se, como parece deva-se reconhecer, o pós-moderno se caracterizar não apenas como novidade com relação ao moderno, mas também como dissolução da categoria novo, como experiência de “fim da história”, mais do que como apresentação de uma etapa diferente, mais evoluída ou mais retrógrada, não importa, da própria história. (VATTIMO, 2007, p. IX)

A razão, instrumento com o qual o Iluminismo desejava combater as trevas da

superstição e do obscurantismo, é denunciada como o principal agente de dominação. O

pós-moderno busca despedir-se da modernidade, fugindo de sua lógica de

desenvolvimento a partir de uma relação consciente dos problemas que surgem da

superação.

Tem-se com a globalização o fenômeno mais marcante das sociedades

contemporâneas. O seu impacto na cultura global influencia na construção identitária

dos povos em função das freqüentes interações transnacionais que promovem a

disseminação da informação e das imagens através de meios de comunicação cada vez

mais rápidos e sofisticados. Para Ianni: A globalização no mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nacionalidades,

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regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. (IANNI, 1999, p.11)

Com a globalização desapareceram as fronteiras, modificou-se os significados

das nações de países centrais e periféricos, industrializados e agrários, modernos e

arcaicos. O mundo se dá conta de que a história não se resume ao fluxo das

continuidades, seqüencias e recorrências, mas que envolve também tensões e rupturas.

O desenvolvimento capitalista da produção, em forma extensiva e intensiva, adquire

outro impulso com base em novas tecnologias, criação de novos produtos, recriação da

divisão internacional do trabalho e mundialização dos mercados.

De acordo com Ianni, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e em escala mais

ampla desde o término da Guerra Fria, o capital adquiriu proporções propriamente

universais.

Em relativamente poucas décadas, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, a industrialização espalhou-se pelo mundo. A época da Guerra Fria foi também uma época de desenvolvimento intensivo do capitalismo no mundo. A contrarrevolução mundial embutida na guerra fria favoreceu a criação e o desenvolvimento de indústrias em nações subdesenvolvidas, agrárias, periféricas, do Terceiro Mundo. (IANNI, 1999, p. 20)

Gilberto Dupas chama a atenção para a necessidade de se fazer um exame desse

novo momento do capitalismo, que trouxe também a criação e a reprodução de

desigualdades, carências, inquietações, tensões e antagonismos. O mundo se viu

novamente repleto de problemas que parecia ter eliminado como, por exemplo,

desemprego, depressões, população indigente e o Estado em crise.

Apesar de todas as conquistas da ciência, a humanidade não foi capaz de torná-

las acessíveis a todos. Pelo contrário: nos últimos anos, o que se vê é um crescimento da

riqueza e do alto padrão de vida de uns poucos ao custo do aumento da pobreza da

maioria. Até mesmo alguns países que tinham conseguido contornar os problemas do

desemprego e da miséria têm que enfrentar novamente essas questões no século XXI.

Na pós-modernidade, a utopia dos mercados livres e da globalização tornam-se a referência. Mas o vazio e a crise pairam no ar. Sente-se um mundo fragmentado, seu sentido se perdendo nessas fraturas, com múltiplos significados, orientações e paradoxos. Juntas, ciência e técnica não param de

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surpreender e revolucionar. A capacidade de produzir mais e melhor não cessa de crescer. Mas essa ciência vencedora começa a admitir que seus efeitos possam ser perversos. Ela é simultaneamente hegemônica e precária. Nesse mundo de poder, produção e mercadoria, o progresso traz consigo desemprego, exclusão, concentração de renda e subdesenvolvimento. (DUPAS, 2000, p. 16-17)

Para entender como se configura a cultura contemporânea será realizado um

passeio pelo pós-modernismo, isto é, pela consciência estética do movimento pós-

moderno. O pós-modernismo não é apenas um desses conceitos para descrever um

estilo específico. Sua função, como a descrita por Jameson (1997), é a de “correlacionar

a emergência de novos aspectos da cultura com a emergência de um novo tipo de vida

social e com a nova ordem econômica” - o capitalismo tardio ou multinacional. Em seu

livro Pós-Modernismo - a lógica cultural do capitalismo tardio, Jameson mostra que o

cultural agora é a lógica desse novo estágio do sistema capital.

Jameson expõe, nessa obra, três estágios do capital e três estágios da cultura

burguesa. Esses avanços não são vistos como uma história linear, em direção ao

progresso. Mas sim como uma história que envolve descontinuidades, tensões, rupturas

e que não se resume ao fluxo das continuidades. Neste processo, cada qual, capital e

cultura, obedecem à sua própria lógica. Ou seja, tem certa autonomia um em relação ao

outro, se movimentam em velocidades diferentes e concorrem para produzir uma

totalidade. A questão é que agora, neste terceiro estágio, a lógica do sistema é cultural.

O importante é notar, portanto, que o pós-modernismo não é a dominante

cultural de uma ordem social nova. Pois, para isso, precisaria criar outro sistema social,

o que não aconteceu. A revolução fracassou. O que houve foram alterações, mudanças

ocorridas no próprio sistema. Assim, o pós-modernismo “é apenas reflexo e aspecto

concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo”. (JAMESON,

1997, p. 16).

Para indicar este terceiro estágio do sistema capital, Jameson expõe as

formulações de Ernest Mandel, em “O Capitalismo tardio”. O terceiro estágio do

capitalismo sucede os estágios do capitalismo de mercado e do monopolista ou

imperialista. É o capitalismo em seu estágio mais puro, onde a forma mercadoria cobriu

todo o planeta.

Conforme as observações de Mandel, o capitalismo tardio começou a se

desenvolver após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), onde a falta de bens de

consumo e de peças de reposição foi solucionada e novas tecnologias – e a mídia -

puderam ser introduzidas. Com isso, houve um ciclo de expansão do capitalismo de

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alcance mundial, um surto de crescimento no pós-guerra que teve seu maior impulso

dado pelos Estados Unidos.

A designação de capitalismo tardio aqui é utilizada para marcar sua continuidade

em relação ao que o precedeu, e não à quebra, ruptura ou mutação, como observa

Jamenson: O que o [capitalismo] tardio quer transmitir é mais um sentido de que as coisas são diferentes, que passamos por uma transformação de vida que é de algum modo decisiva, ainda que incomparável com as mudanças mais antigas da modernização e da industrialização, menos perceptíveis e menos dramáticas porém mais permanentes, precisamente por serem mais abrangentes e difusas. (JAMESON, 1991, p. 24)

A emergência do pós-modernismo está relacionada com esse desenvolvimento

do capitalismo que se inicia no pós-guerra e se intensifica durante a Guerra Fria (1946-

1989). A partir dos anos 60 e mais precisamente nos anos setenta, uma nova sociedade

começa a se desenvolver em um ritmo acelerado de mudanças na esfera da cultura até

então sem precedentes em toda a história da humanidade. O capital penetra na Natureza

e no Inconsciente – devido a novas formas de relações no campo com a entrada do

capital e a abrangência da mídia em todo o globo.

Temos assim o pós-modernismo. “O pós-modernismo é o que se tem quando o

processo de modernização está completado e a natureza se foi para sempre”.

(JAMESON, 1991, p.13). Teve-se, então, uma ruptura na esfera da cultura iniciada pelo

modernismo, que encontrou no capitalismo tardio ou multinacional o desenvolvimento

acelerado das tecnologias eletrônicas para se alterar de vez e tornar-se pós-moderna.

Porém, rupturas entre períodos nem sempre envolvem mudanças completas de

conteúdo, mas antes, a reestruturação num certo número de elementos. Traços que eram

subordinados, num período anterior, tornam-se então dominantes, e traços que tinham

sido dominantes, por sua vez, tornam-se secundários. Uma época em que a produção

subalterna ganha espaço na esfera dominante.

As formas que antes, no modernismo, causavam repúdio e assustavam a

sociedade que as considerava feias, escandalosas, imorais e subversivas não espantam

mais ninguém. Na pós-modernidade, as características ofensivas do novo são recebidas

normalmente e incorporadas na cultura pública. Assim, percebemos que a produção

estética na contemporaneidade está integrada à produção das mercadorias. Neste mundo

novo que começa a surgir, a cultura torna-se um produto, embalado e à venda, pronto

para ser consumido.

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Tem-se então no pós-modernismo um apagamento – que Jameson chama de

esmaecimento – da fronteira entre a alta cultura e a cultura de massa ou cultura popular.

A produção cultural está homogeneizada e impregnada “das formas, categorias e

conteúdos da mesma indústria cultural que tinha sido denunciada com tanta veemência

por todos os ideólogos do moderno”. (JAMESON, 1991, p. 28).

A cultura pós-moderna encontra-se então fragmentada. Não está mais ligada à

concepção da estética modernista de um estilo único. A cultura modernista formava o

indivíduo com valores iluministas, totalmente centrado, unificado e dotado de

capacidade de razão, consciência e de ação. Havia então uma concepção individualista

do sujeito, onde o centro do eu era identidade de uma pessoa, que nascia com ela e com

ela permanecia inalterada ao longo da sua história.

O sujeito moderno produzido por esta cultura modernista era cartesiano,

racional, soberano, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento. Sua

identidade não mudava e era contínua com seu sujeito. O indivíduo estava inscrito no

centro dos processos e das práticas que construíram o mundo moderno e, por isso, ele

também sofria as conseqüências dessas práticas. (HALL, 2005)

Este tipo de individualismo e identidade pessoal ficou no passado. O antigo

sujeito individual e individualista produzido pela modernidade está morto. Este sujeito

sociológico, de identidade unificada e estável, foi se fragmentando com as mudanças

ocorridas na sociedade e passou a ser composto não mais de uma única identidade, mas

sim de várias identidades diferentes e contraditórias.

Assim, percebe-se que as velhas identidades que compunham o mundo e que

asseguravam nossa conformidade subjetiva com as necessidades objetivas da cultura,

entraram em colapso com as mudanças estruturais e institucionais. Dessa maneira, o

próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

Na contemporaneidade se tem a heterogeneidade estilística e discursiva sem

norma. Os sujeitos hoje não obedecem mais às leis do capitalismo clássico. Esse

processo de transformação pelo qual a sociedade passou produziu um sujeito

fragmentado, e não lhe cabe mais ser taxado com uma identidade fixa, essencial e

permanente. Todo o peso da modernidade ficou para trás. No pós-modernismo o sujeito

é leve, móvel, sua identidade é formada e transformada continuadamente em relação às

formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos

rodeiam.

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1.2 Transformações no campo

Vimos até aqui como o desenvolvimento acelerado deste terceiro estágio do

capitalismo e o nascimento do pós-modernismo revolucionaram as relações de produção

e modos de vida em todos os lugares do globo. E não foram apenas as sociedades pré-

capitalistas de países periféricos e distantes que foram transformadas, mas também as

dos países dominantes, em que o capital se encontrava avançado.

Trabalhadores, em escala global, foram expulsos das fábricas por conta de novas

técnicas de produção, baseadas no desenvolvimento da eletrônica e da informática. No

lugar destes trabalhadores, foram adotados maquinários que produzem mais, geram

mais lucro e não fazem greve. Assim como a cidade, o campo também foi

industrializado e sentiu o impacto dessas transformações. Como resultado, os

camponeses foram expulsos da terra e migraram para os centros urbanos. Surgiram

assim crises que foram determinadas pelo novo surto de acumulação do capital.

O processo de industrialização no campo ocorreu em outras épocas do século

XX, porém, se intensificou com o capitalismo multinacional e o surto de expansão a

partir do fim da Segunda Guerra Mundial. A entrada do capitalismo tardio revolucionou

as condições de vida e trabalho do “homem do campo”. Segundo Ianni (2004), com

estas transformações o mundo agrário perde sua importância neste novo cenário da

cultura pós-moderna. Para ele, este mundo continua a existir, mas agora transformado,

transfigurado. “A revolução que a globalização do capitalismo está provocando no mundo agrário transfigura o modo de vida no campo, em suas formas de organização do trabalho e produção, em seus padrões e idéias socioculturais, em seus significados políticos. Tudo o que é agrário dissolve-se no mercado, no jogo das forças produtivas operando no âmbito da economia, na reprodução ampliada do capital, na dinâmica do capitalismo global”. (IANNI, 2004, p. 42)

Com o desenvolvimento da cultura pós-moderna – pós-modernismo -

intensificada com o advento dos novos meios de comunicação , o cotidiano do homem

do campo foi atravessado pela mídia e foi transformado o seu modo de viver, de pensar,

de agir, de imaginar. Elementos antes vistos apenas na cidade, como a televisão, o rádio,

o telefone celular, foram incorporados ao dia-a-dia do trabalhador rural. Aos poucos se

percebe que a cultura da cidade vai se estendendo até ao campo, absorvendo e apagando

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a fronteira existente entre estas duas realidades. É o pós-modernismo formando em

todos os lugares pessoas pós-modernas, como observa IANNI: “Faz tempo que a cidade não só venceu como absorveu o campo, o agrário, a sociedade rural. Acabou a contradição cidade campo, na medida em que o modo urbano de vida, a sociabilidade burguesa, a cultura do capitalismo como processo civilizatório invadem, recobrem, absorvem ou recriam o campo com outros significados”. (IANNI, 2004, p. 48)

O meio rural brasileiro já não pode se caracterizar somente como agrário.

Conforme José Graziano da Silva, a partir de meados dos anos 80, surge uma nova

conformação do meio rural brasileiro, a exemplo do que já ocorre há tempos nos países

desenvolvidos. Denominado como “novo rural” este espaço compõe-se basicamente de

três grandes grupos de atividades: a) Uma agropecuária moderna, baseada em

commodities; b) Um conjunto de atividades não-agrícolas ligadas à moradia, ao lazer e

a várias atividades industriais e de prestação de serviços; c) Um conjunto de "novas"

atividades agropecuárias, impulsionadas por nichos especiais de mercados.

A modernização da agricultura diminuiu o número de trabalhadores para dar

conta das tarefas no campo, necessitando atualmente de cada vez menos pessoas. No

entanto, surgiram no meio rural outras atividades não-agrícolas que acabam absorvendo

estes trabalhadores. Entre essas novas atividades não-agrícolas, Graziano da Silva

mostra que há uma nova onda de valorização do espaço rural, por questões ecológicas,

preservação da cultura "country", lazer, turismo, ou para moradia.

O espaço rural também está sendo cada vez mais demandado como espaço para lazer. Na última década, milhares de pesque-pagues proliferaram pelo interior. Nestes, a produção de peixes propriamente dita não é a maior fonte de renda, mas sim os serviços prestados nos pesqueiros, visando populações urbanas de rendas média e baixa. Também observa-se a expansão das construções rurais para segunda moradia das famílias urbanas de rendas média e alta, em chácaras e sítios de lazer no interior do Brasil. (GRAZIANO DA SILVA)

As dificuldades crescentes para ingressar no mercado de trabalho urbano e de

aquisição da casa própria, aliadas ao avanço das facilidades nos meios de transporte,

tem feito com que o meio rural também seja uma opção de moradia cada vez mais

interessante para boa parte da população de baixa renda. Assim, o fato de as pessoas

residirem no meio rural não significa que também exerçam suas atividades no mesmo

local. Hoje, um pedreiro ou uma empregada doméstica que resida no meio rural pode

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perfeitamente ter seu local de trabalho na cidade mais próxima.

Percebe-se com as exposições feitas que está cada vez mais difícil delimitar o

que é rural e o que é urbano. O rural hoje pode ser entendido como uma continuação do

urbano do ponto de vista espacial. A cidade deixou de ser vista como atividade

industrial, e o campo, como lugar de atividade agrícola e pecuária.

Nas últimas décadas o meio rural brasileiro se urbanizou como resultado do

processo de industrialização da agricultura e a pluriatividade se tornou marca

fundamental desse novo agricultor. O espaço rural não mais pode ser pensado apenas

como um lugar produtor de mercadorias agrárias e ofertador de mão-de-obra. Além

disso, ele poder oferecer ar, água, turismo, lazer, bens de saúde.

É neste contexto que o campesinato muda de figura. Continua a ser uma

realidade em muitos lugares, mas com outros significados, tanto históricos como

teóricos. Uma análise sobre a história dos conflitos sociais no campo brasileiro nos

mostra que eles não são exclusivos do nosso tempo. Eles acontecem no Brasil desde a

sua “descoberta” e colonização pelos povos europeus.

Os indígenas foram os primeiros a lutar pela terra contra os colonizadores. Não

conseguiram resistir por muito tempo e foram massacrados. Os poucos que sobraram

foram “civilizados” pela cultura européia. Aprenderam a rezar, a ler, a escrever e a

obedecer.

Depois lutaram os negros. Estes foram arrancados de suas nações para serem

escravos em terras brasileiras. Aqui os negros se uniam em quilombos para lutar contra

a opressão dos brancos. Os quilombos eram lugares de resistência. Ficavam escondidos

na floresta, para onde os negros iam quando conseguiam fugir das senzalas. O mais

famoso destes lugares foi o Quilombo de Palmares, em Alagoas. Lá reinaram Zambi,

Ganga Zumba e Zumbi.

Com o fim da escravidão, as lutas pela terra não pararam. Veio “Canudos”, e os

camponeses do nordeste viram o sertão se transformar em um campo de batalha

sangrento. Depois foi a vez dos camponeses do sul do país, com a “Guerra do

Contestado”, considerada a maior guerra popular da história do Brasil.

Estas primeiras lutas representavam a forma que os expropriados da terra, em

seu tempo, encontraram para resistir em seu espaço de vida no território invadido

(OLIVEIRA, 1996). O capital se encontrava em seu estado de primeiro estágio, e os

processos de expansão e desenvolvimento de acumulação eram ainda primitivos.

O século XX foi marcado por vários exemplos de luta pela terra. Podemos citar a

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“Revolta de Trombas e Formoso” e o “Movimento de Santa Dica”, ambos em Goiás, e

também as “Ligas Camponesas”, no nordeste brasileiro. Essas lutas marcam pela

tentativa de resgate da condição de camponês autônomo – destruída com a entrada do

capital na agricultura – e contra sua expropriação completa no latifúndio, que

transformava em trabalhadores rurais os camponeses (OLIVEIRA, 1996).

Essas lutas são mostras da capacidade de resistência e de construção desses

expropriados da terra na busca pelo espaço livre. São também lembranças da capacidade

destruidora do capital e dos capitalistas perante o temor de uma destruição inevitável.

A partir de 1979, nasce em Santa Catarina o Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem-Terra (MST). O movimento vai se desenvolver em um cenário em que o

capital está no seu terceiro período e o pós-modernismo já foi instalado. Portanto,

podemos assinalar como sendo um movimento pós-moderno, que marca uma ruptura

com os outros movimentos existentes até então no país; pelo menos nos termos

definidos até aqui.

Sem abandonar seus ideais socialistas onde o movimento está ancorado, o MST

vai lutar pela reforma agrária e redefinir suas estratégias para se inserir numa economia

de mercado. Também lutará para tornar seus assentamentos produtivos, voltados para o

mercado externo e não apenas para o consumo de subsistência. As pessoas que vão

formar esse movimento, os expropriados da terra na contemporaneidade, também são

pessoas pós-modernas, formadas e transformadas pelo pós-modernismo.

Com as exposições feitas acima percebemos que a dimensão do cultural no pós-

modernismo está impregnada de formas do popular. O pós-modernismo representa o

nascimento de uma cultura hegemônica que atingiu todas as classes e todos os níveis -

muito diferente do modernismo que propunha uma cultura alternativa, oposicionista.

Tanto o MST quanto os seus integrantes resultam da expansão acelerada do

capitalismo em seu terceiro estágio. Porém, retornando a Jameson, os movimentos e as

minorias repudiam este conceito de um pós-modernismo como uma história

universalizante. Segundo o crítico cultural, para esses grupos, “o pós-modernismo é

apenas uma operação cultural da classe muito mais estreita que serve às elites brancas,

dominantes, masculinas dos países avançados”. (JAMESON, 1997, p. 322).

Assim, esses novos movimentos e pessoas emergentes do pós-modernismo

passaram a se unir para resistir ao sistema, a fazer força para voltar a um passado

“romântico” onde as relações sociais e culturais ainda não tinham sido modificadas pela

força do capital.

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Talvez essa fosse a melhor forma de descrever um sentimento que une as

pessoas a participar de movimentos na contemporaneidade. Uma moda da nostalgia,

descrita por Jameson, de voltar a um tempo em que as coisas eram diferentes. Em que o

ritmo da vida não batia acelerado com o relógio do capitalismo, em que existiam

sentimentos de amizade, respeito, tolerância. As pessoas viviam em comunidades,

tinham vizinhos, hortas sem agrotóxico no quintal de casa e animais de estimação.

Num tempo em que o novo já foi inventado, e não sobraram muitas outras

coisas, talvez a única solução encontrada seja a volta de um passado que ficou guardado

em nossas mentes, e que não se vê mais.

1.3 A questão das identidades

Trataremos agora de conceitos centrais envolvidos na discussão sobre

identidades. Essa conceitualização será importante para sabermos como a identidade

funciona, e possibilitará mais à frente a análise da participação dos assentados na luta

pela terra, verificando até que ponto essa luta imprime a eles uma nova identidade.

O primeiro a abordar o tema da identidade foi Parmênides, na metade do século

V a. C., definindo como “tudo o que é, é”. Parmênides estudou o ser como identidade e

fundamento e, para ele, a única realidade era o ser, imutável, infinito e imóvel, e a

identidade era algo presente e estático. Este era o início de uma discussão de um

conceito que atormentava as ciências sociais e que não comportava uma definição única

como se acreditava no princípio.

Mais de um século depois foi a vez de Aristóteles desenvolver seu pensamento

sobre a identidade. Partindo do conceito inicial de Parmênides, Aristóteles incluiu mais

dois princípios: o da contradição e o do terceiro excluído. Com o princípio da

contradição, o filósofo definiu que “uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo,

pois se dissemos que um objeto é e, ao mesmo tempo, que não é, uma das duas

afirmações está errada“. (In: BOGO, 2008, p. 31). Já com o terceiro excluído, “definia

que toda coisa deve ser ou não ser, pois não existe a terceira possibilidade” (In: BOGO,

2008, p.32). A afirmação Aristotélica reforçou o caráter estático e imutável da

identidade (o que é, é).

Somente no século XVIII, Hegel (1770 - 1831) retomou a questão sobre a

identidade, afirmando a existência de duas naturezas: “a primeira originada pela própria

criação espontânea da natureza e a segunda criada pela intervenção humana, a cultura”.

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(In: BOGO, 2008, p. 33). Assim, a afirmação de Parmênides sobre o “o que é, é” se

referia à primeira natureza, e na segunda natureza aparecia um outro elemento - a

consciência humana. Para Hegel, a segunda natureza se desenvolveu graças à

capacidade de intervenção humana sobre a primeira. (In: BOGO, 2008, p. 33)

Porém, Hegel permaneceu preso à idéia de uma separação entre o mundo

material e o da consciência, sem perceber as contradições nas relações sociais. Foram

Karl Marx (1818 - 1883) e Friedrich Engels (1820 - 1895) que avançaram na elaboração

da identidade, compreendendo que “as coisas estão em constante transformação pelo

movimento das contradições existentes na matéria e na história da sociedade, onde

ocorrem os conflitos entre as classes sociais“. (In: BOGO, 2008, p. 34).

Com a contribuição da sociologia, estes cientistas ultrapassaram o princípio de

identidade “o que é, é” - puramente isolado e estático - para “as coisas são e, ao mesmo

tempo, não são mais puramente, pois decorrem de processos anteriores”. Elas evoluem

por meio de constantes modificações, mantém características e apresentam outras

novas. No entanto, o modelo marxista é baseado na noção de base e superestrutura.

Conforme este modelo, a base - fundação material, econômica, da sociedade - determina

a superestrutura - as relações sociais, as instituições políticas e as formações

ideológicas.

Porém, apenas os fatores materiais não dão conta de explicar todo o processo de

construção das identidades. Outras teorias pós-marxistas enfatizam também os sistemas

simbólicos, sugerindo que os sujeitos são produzidos não apenas no nível do consciente,

mas também no nível do inconsciente. Percebe-se que assim as identidades se formam,

através de processos de construção, sendo que estes podem ser tanto no nível simbólico

quanto social, como afirma Woodward:

... o social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles é necessário para a construção e manutenção das identidades. A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e as relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da diferença são vividas nas relações sociais. (WOODWARD, 2006, p. 14)

Mais recentemente, o conceito de identidade ganhou bastante destaque como

questão central das discussões contemporâneas, sobretudo por conta do fenômeno de

exaltação da diferença que aconteceu nos anos 70. No entanto, certos estudiosos acabam

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associando erroneamente o conceito de identidade com o conceito de cultura. Sobre

isto, explica o antropólogo Denys Cuche:

... a cultura pode existir sem consciência de identidade, ao passo que as estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura que não terá então quase nada em comum com o que ela era anteriormente. A cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas. (CUCHE, 2002, p. 176)

A identidade cultural, onde debruçarei em fazer uma categorização mais

profunda, é um dos componentes da identidade social. Tem-se a identidade social como

um conjunto de vinculações na qual um indivíduo se localiza em um sistema social. Ao

escolher uma profissão ou religião, por exemplo, o indivíduo está definindo sua

identidade social. Entretanto, um grupo, e não apenas o indivíduo, também é dotado de

uma identidade que o define e o localiza dentro de um conjunto social. “Nesta

perspectiva, a identidade cultural aparece como uma modalidade de categorização da

distinção nós/eles, baseada na diferença cultural“. (CUCHE, 2002, p. 177)

Quando se começou a conceituar a identidade, na década de 50, nos Estados

Unidos, a abordagem que se tinha era que a identidade cultural era imutável e

determinava a conduta dos indivíduos. Neste caso, a identidade definiria o indivíduo e o

marcaria de uma vez por todas em sua cultura. A origem seria, assim, o fundamento de

toda identidade cultural e a identidade seria preexistente ao indivíduo. Esta era uma

visão objetivista do conceito de identidade que via a identidade como uma “essência

impossibilitada de evoluir e sobre a qual o indivíduo ou o grupo não tem nenhuma

influência“. (CUCHE, 2002, p. 178)

Nesta concepção objetivista: ... o individuo, devido a sua hereditariedade biológica, nasce com os elementos constitutivos da identidade étnica e cultural, entre os quais os caracteres fenotípicos e as qualidades psicológicas que dependem da mentalidade, do gênio, próprio do povo ao qual ele pertence. A identidade repousa então em um sentimento de fazer parte de certa forma inato. A identidade é vista como uma condição imanente do individuo, definindo-o de maneira estável e definitiva. (CUCHE, 2002, p. 178 - 179)

Uma outra abordagem, chamada de culturalista, também define a identidade

como preexistente ao individuo. No entanto, o que muda é que ela não considera a

herança biológica como determinante, e sim a herança cultural. Neste caso, o individuo

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interioriza os modelos culturais que lhe são impostos, até o ponto de se identificar com

seu grupo de origem.

Outras concepções, apresentadas por Cuche, chamadas de identidades

primordialistas, consideram a identidade etno-cultural como primordial porque

acreditam que a vinculação ao grupo étnico é a primeira e mais importante de todas as

vinculações sociais. A identidade cultural é vista como uma propriedade essencial

transmitida pelo grupo e no interior do grupo, sem referências a outros grupos. A

identidade já está definida desde o começo.

Na concepção objetivista, a identidade cultural é definida e descrita a partir de

um número de critérios determinantes e considerados como objetivos, como origem

comum, língua, cultura, religião, psicologia coletiva, vínculo a um território, etc.

Conforme esta concepção, um grupo sem língua, cultura e território próprio não

constitui um grupo etno-cultural e muito menos pode reivindicar uma identidade

cultural autêntica.

Na concepção subjetivista, a identidade cultural não é recebida definitivamente.

Os subjetivistas não encaram a identidade como algo estático, definido de maneira

invariável e quase imutável. Para eles, a identidade cultural atua como um sentimento

de vinculação ou de identificação a uma coletividade imaginária. O que importa para os

subjetivistas são as representações que os indivíduos fazem da realidade social e de suas

divisões. A abordagem subjetivista considera o caráter invariável da identidade.

Apenas adotar as concepções objetivistas ou subjetivistas não é suficiente para

compreender todo o fenômeno. Isto porque a identidade também é relacional, quer

dizer, se constrói no interior de contextos sociais que determinam a posição dos

indivíduos e orientam suas representações e escolhas.

A identidade é uma construção que se elabora em uma relação que opõe um

grupo aos outros grupos com os quais está em contato. Assim, ela funciona como um

modo de categorização para os grupos organizarem suas trocas. Deve-se considerar que

as identidades se constroem e reconstroem constantemente no interior das trocas sociais.

Esta concepção dinâmica se opõe àquela que vê a identidade como um atributo original

e permanente que não poderia evoluir.

Segundo Kathryn Woodward (2006), que faz sua análise a partir dos Estudos

Culturais, para existir, a identidade depende de algo fora dela, ou seja, de uma outra

identidade que difere e fornece as condições para que ela exista. A identidade se

distingue por aquilo que ela não é. Dessa forma, a identidade é marcada pela diferença e

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sustentada pela exclusão. Se você é um, por exemplo, você não pode ser o outro, e vice-

versa. Assim, a identidade existe sempre em relação dialética ao outro. Ela é sempre

uma concessão ou uma negociação entre uma auto-identidade - definida por si mesma -

e uma hetero-identidade ou hexo-identidade - definida pelos outros.

As identidades são construídas relativamente a outras identidades, relativamente

ao forasteiro, ou ao outro, ao que não é. Essa concepção de diferença é fundamental

para se compreender o processo de construção cultural das identidades.

Segundo a autora, a diferença pode ser construída negativamente - por meio da

exclusão ou da marginalização ou celebrada como fonte de diversidade,

heterogeneidade e hibridismo, sendo vista como enriquecedora.

Nesta mesma linha dos Estudos Culturais, Tomaz Tadeu da Silva (2000),

contribui para se pensar a identidade e a diferença. Para ele, a identidade é

simplesmente aquilo que se é. A identidade assim concebida parece ser uma

positividade (aquilo que sou) uma característica independente, um fato autônomo.

Nessa perspectiva, a identidade só tem referência a si própria: ela é autocontida e

autosuficiente.

A identidade é aquilo que você é, ou seja, é concebida de forma positiva. A

diferença é aquilo que o outro é. Ela é marcada em oposição à identidade, só que, no

entanto, uma não existe sem a outra. A identidade é marcada de forma negativa; ela é a

referência, a norma.

Tanto a identidade quanto a diferença são produzidas nos contextos das relações

culturais e sociais e, sendo assim, elas estão sujeitas a relações de poder. “Elas não são

simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a

lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas“. (SILVA, 2000, p. 81). Onde

existe produção de identidade e diferença está presente o poder.

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. A identidade e diferença se traduzem assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre “nós” e “eles“. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder. (SILVA, 2000, p.82)

Nota-se que dessa dicotomia identidade e diferença, nunca os dois recebem peso

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igual. Uma das partes sempre acaba sendo mais valorizada ou mais forte. Como a

diferença é sempre marcada em relação à identidade, a identidade recebe sempre um

valor positivo, enquanto a diferença, um valor negativo. Este valor positivo fixa esta

identidade como norma, como parâmetro, nos quais as outras identidades serão sempre

atribuídas como negativas. “A identidade normal é natural, desejável, única“. (SILVA,

2000, p. 83).

1.4 Transformações da identidade na contemporaneidade

Na pós-modernidade, o conceito de identidade cultural ganha outros contornos e

sua discussão se torna recorrente hoje nas Ciências Sociais. Com o declínio das velhas

identidades que por muito tempo orientaram o mundo social, outras novas identidades

estão surgindo e fragmentando o individuo moderno, visto até então como unificado.

Stuart Hall, um dos principais autores dos estudos culturais britânicos, que a partir de

sua experiência como imigrante iniciou seu estudo em torno da raça e da etnicidade,

aponta que esta crise de identidade:

“é vista como parte de um processo amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam ao individuo uma ancoragem estável no mundo social”. (HALL, 2005, p.7)

O autor destaca três concepções diferentes de identidade do sujeito: sujeito do

Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. No Iluminismo, o individuo era

totalmente centrado, unificado e dotado de capacidade de razão, consciência e de ação.

Nesta concepção individualista do sujeito e sua identidade, o centro do eu era identidade

de uma pessoa, que nascia com ela e com ela permanecia inalterada ao longo da sua

história. O sujeito era cartesiano, racional, soberano, pensante e consciente, situado no

centro do conhecimento. Sua identidade não mudava e era contínua com seu sujeito. O

indivíduo estava inscrito no centro dos processos e das práticas que construíram o

mundo moderno e, por isso, ele também sofria as consequências dessas práticas.

Porém, as sociedades modernas foram se tornando mais complexas e adquirindo

forma mais coletiva e social. E, de acordo com Hall, ocorreu outra transformação do

sujeito. Entrou em cena então o sujeito sociológico. Nesta concepção, o individuo

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reflete a complexidade do mundo moderno e deixa de ser autônomo e auto-suficiente. O

centro do sujeito sociológico se forma através das relações com as outras pessoas, que

mediavam para ele os valores, sentidos e símbolos – cultura -, do mundo que habitava.

Essa é uma concepção interativa da identidade do eu com a sociedade. O centro do

sujeito é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais

exteriores e as identidades que esses mundos oferecem.

Para Hall, a identidade nesta concepção sociológica preenche o espaço entre o

“interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público.

O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura, o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificado e predizíveis. (HALL, 2005, p. 11-12)

Este sujeito sociológico, de identidade unificada e estável, com as mudanças

ocorridas na sociedade, foi se fragmentando e passou a ser composto não mais de uma

única identidade, mas sim de várias identidades diferentes e contraditórias. Assim

percebe-se que as velhas identidades que compunham o mundo e que asseguravam

nossa conformidade subjetiva com as necessidades objetivas da cultura estão entrando

em colapso com as mudanças estruturais e institucionais. Dessa maneira, o próprio

processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

Esse processo de transformação produz o chamado sujeito pós-moderno. Um

sujeito que não tem mais uma identidade fixa, essencial ou permanente. A sua

identidade é móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas

quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

Esse sujeito pós-moderno começa a aparecer a partir dos movimentos estéticos e

intelectuais associado ao surgimento do modernismo, principalmente os movimentos

sociais que nasceram durante os anos setenta. “Encontramos aqui a figura do indivíduo

isolado, exilado ou alienado, colocado contra pano-de-fundo da multidão ou da

metrópole anônima e impessoal”. (HALL, 2005, p.32).

Na pós-modernidade, seguindo o pensamento de HALL, o sujeito não fica preso

a uma identidade única, ele pode assumir identidades diferentes em momentos distintos

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e estas não são unificadas ao redor de um eu coerente. Estas identidades empurram em

direções diferentes e com isso nossas identificações também acabam sendo

continuadamente deslocadas. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2005, p.13)

Para HALL, a identidade é algo formado ao longo do tempo, através de

processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do

nascimento. Ela está sempre incompleta e em processo de formação. Assim, ao invés de

falarmos de identidade, como coisa acabada, esse autor sugere que utilize o termo

identificação, que dá idéia de um processo em andamento.

“A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros”. (HALL, 2005, p.39)

Percebemos que na contemporaneidade, o individuo vive uma busca constante

de identidade, que está sempre em processo de formação. O velho sujeito do

iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando

nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas do sujeito pós-

moderno.

Outra forma de pensar acerca da discussão das identidades culturais é a

compreensão latino-americana do filósofo e antropólogo Néstor García Canclini. O

autor defende o termo hibridação, mais apropriado à época do que as velhas e

contestadas identidades do passado, como um modelo explicativo da identidade

cultural. O autor argumenta ainda que os estudos sobre a hibridização modificaram as

reflexões sobre identidade, cultura, diferença, desigualdade e multiculturalismo.

Segundo Canclini, a América Latina é palco da coexistência de culturas

estrangeiras que geraram processos de mesclagem/mistura em diferentes momentos do

século XX. Esses processos, chamados de hibridização cultural, concorreram para a

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formação dos países latino-americanos. A hibridização contribui para que as estruturas

ou práticas culturais, que existiam em formas separadas, combinem-se para gerar novas

estruturas, objetos e práticas. Esse processo de hibridização desencadeou a combinação

de formas imprevistas e formou novos sujeitos híbridos, emergentes, marcados pela

diferença.

Para Canclini, hibridação não é apenas sinônimo de fusão entre diferentes

culturas sem contradições, mas ajuda a dar conta de formas particulares de conflitos

geradas na interculturalidade. “Entendo por hibridação processos socioculturais nos

quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinem

para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. (CANCLINI, 2006, p. XIX.). Alguns

autores que defendem a hibridação acreditam que ela seja uma fonte criativa que produz

novas formas de cultura.

Percebemos que as culturas, mesmo as mais isoladas, sempre estiveram em

contato umas com as outras, por isso não podem ser consideradas fontes puras. Como

disse Kuper, “toda cultura é multicultural” (KUPER, 2002, p.299). A hibridação funde

essas culturas que estão em contato e gera novas formas de cultura. Na pós-

modernidade, a globalização, com seu acesso à maior variedade de bens, facilita ainda

mais a capacidade de combinar e de desenvolver uma multiculturalidade criativa.

Canclini argumenta, no entanto, que o objetivo não é estudar a hibridez, mas sim

os processos de hibridação. A análise empírica desses processos, articulados com estratégias de reconversão, demonstra que a hibridação interessa tanto aos setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-se dos benefícios da modernidade. (CANCLINI, 2006, p. XXII)

Segundo o autor, a ênfase do estudo na hibridação não enclausura apenas a

pretensão de estabelecer identidades puras ou autênticas. Também coloca em evidência

o risco de delimitar identidades locais autocontidas ou que tendem a firmar-se como

radicalmente opostas à sociedade nacional ou à globalização. Quando se define uma identidade mediante um processo de abstração de traços, língua, tradições, condutas estereotipadas, freqüentemente se tende a desvincular essas práticas da história das misturas em que se formaram. Como conseqüência, é absolutizado um modo de entender a identidade e são rejeitadas maneiras heterodoxas de falar a língua, fazer música ou interpretar as tradições. Acaba-se, em suma, obturando a possibilidade de modificar a cultura e a política. (CANCLINI, 2006 p. XXIII).

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Hoje não é mais possível falar de identidade como apenas um conjunto de traço

fixo, ou a essência de uma etnia, ou de uma nação. Ao se estudar os processos de

hibridação é possível observar o que estes contém de desgarre e o que não chega a

fundir-se. Uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma consciência

crítica de seus limites, do que não se deixa, ou o que não pode ser hibridado. Em um

mundo tão fluidamente interconectado, as sedimentações identitárias organizadas em

conjuntos históricos mais ou menos estáveis (etnia, nações, classes) se reestruturam em

meio a conjuntos inter-étnicos, transclassistas e transnacionais, como observa Canclini:

A reflexão atual sobre a identidade e a cidadania precisa situar-se em relação a vários suportes culturais, e não só em relação ao folclore ou à discursividade política, como ocorreu nos nacionalismos do século XIX e princípios do XX. Deve também levar em conta a diversidade de repertórios artísticos e dos meios de comunicação que contribuem para a reelaboração das identidades. Por isso mesmo, seu estudo não pode ser tarefa de uma única disciplina (a antropologia ou a sociologia política), e sim um trabalho transdiciplinar, em que intervenham especialistas em comunicação, semiólogos, urbanistas, e no qual seria útil a participação de experts, como economistas e os biólogos, que se ocupam de cenários decisivos para a recomposição atual das identidades. (CANCLINI, 2006, p. 136).

Outra proposta de analisar essas tentativas de construção identitária que têm

como eixo a idéia de “mescla” é vista com o antropólogo italiano Massimo Canevacci.

Este autor estuda a pluralidade que caracteriza um olhar sobre os muitos brasis e utiliza

o conceito de sincretismo:

Numa só palavra, o outro lado produtivo, criativo, não-conciliado da diáspora é o sincretismo. E o sincretismo que atravessou diversas diásporas é um dom que o Brasil atual pode oferecer (apesar de suas inúmeras dores) para um mundo que é, ao mesmo tempo, globalizado e localizado. Para as mundo-culturas. Um sincretismo como proposta de uma nova antropologia híbrida, como aplicação de módulos narrativos inovadores, como exploração da co-presença de linguagem plurais e antitéticos, como conflito criativo e proposicional no plano dos novos cenários transcomunicativos. (CANEVACCI, 1996, p. 8)

Entendemos o sincretismo como a fusão de elementos de culturas diferentes em

um só elemento, continuando perceptíveis alguns traços originários. Este conceito

sempre teve uma grande ligação com os fenômenos de fusão nas religiões,

principalmente no Brasil, onde a partir dele se estuda as ligações dos santos da igreja

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católica com os orixás africanos.

Porém, afirma Canevacci, há algum tempo essas modulações sincréticas foram

se firmando na pesquisa cultural, redefinindo-as como um sincretismo cultural. E o

Brasil é justamente um laboratório para a passagem dos sincretismos religiosos para os

sincretismos culturais.

O sincretismo cultural é tal, exatamente enquanto nega qualquer tensão e dignidade ao asseio sintético, às superações dialéticas, aos evolucionismos unilineares e progressivos. No âmago de seu conceito permanece um sentido de desordem, de confusão, de sujeira. De “selvageria”. E de movimento desejoso e inquieto. (CANEVACCI, 1996, p.17).

No Brasil, explica o antropólogo, o sincretismo nasce com os quilombos e

representa a fuga, a não aceitação de uma ordem cultural impositiva e destrutiva. Para

ele: “com o sincretismo exprime-se o fim da lamentação pela perda da origem, da

identidade fixa, da memória restauradora, que angustia a maioria dos cientistas sociais“.

(CANEVACCI, 1996, p.8) O sincretismo pode ser a o termo-chave para a compreensão

da transformação que está em jogo neste processo de globalização, utilizando o

sincretismo como uma antropologia da mudança para estudar os processos de

continuidade, difusão, inovação, modernização.

O velho conceito de identidade como sendo distintiva e coerente não serve para

explicar mais as transformações do mundo moderno. Hoje, os membros de uma

comunidade não pertencem a uma só cultura homogênea. Para se perceber as situações

de interculturalidade, e repensar os conceitos de identidade, temos que estudar como

estão sendo produzidas as relações de continuidade, ruptura e hibridização, como bem

indicou Canclini.

Na antropologia, Adan Kuper (2002, p. 309), observou que para compreender a

cultura precisamos primeiro desconstruí-la. Como os conceitos de cultura e identidade

caminham juntos, a desconstrução é uma maneira para se compreender os fenômenos de

identidade. A noção de que identidade é definida como o conjunto dos repertórios de

ação, de língua e de cultura que permitem a uma pessoa reconhecer sua vinculação a

certo grupo social e identificar-se com ele não se ajusta mais na contemporaneidade.

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1.5 O estudo dos Movimentos Sociais

Geralmente temos uma representação do que é um movimento social. Esta

representação envolve a imagem de um grupo de pessoas em luta por algum bem

material ou simbólico. Pessoas comuns vêem o movimento como um todo hegemônico,

a partir da imagem que suas ações projetaram na sociedade e que foram mediadas para

elas através dos meios de comunicação.

Se fizermos o exercício de perguntar para alguém, quem quer que seja, no

Brasil, sobre o que é o MST, logo a resposta será: um grupo de pessoas pobres,

baderneiras, provenientes das áreas rurais, que lutam por um pedaço de terra. Isto se dá

porque fazem uma leitura de uma imagem calcada nas ações dos movimentos pelo

conteúdo de sua demanda em si (terra) que são mediadas pela mídia. Porém, será que o

MST é de tão simples conceituação? Será ele apenas um grupo de pessoas pobres e

baderneiras que lutam por terra?

Para estudar um movimento social, devem-se abranger outras dimensões, como

crença, valores, dimensão das ações, práticas sociopolíticas, etc. Há outros elementos

que compõem um movimento social que devem ser observados, pois são estes

elementos que, articulados, constituem esse todo que nos dá a idéia de unidade.

Percebe-se que, diferentemente do senso comum, na linguagem acadêmica os

movimentos sociais são difíceis de serem conceituados. Não há uma definição geral,

única e universal. Elas variam segundo os paradigmas teóricos e metodológicos

utilizados. Isso se dá pela multiplicidade de interpretações e enfoque sobre o que são

movimentos sociais.

Apesar dessa idéia de unidade que é transmitida, a maioria dos cientistas sociais

considera que movimentos sociais contemporâneos se caracterizam mais por suas

fragmentações, cujas características são a diversidade, descontinuidade e a efemeridade.

Talvez em uma observação mais aprofundada sobre um movimento, se perceba mais

fragmentação que a unidade, mais a descontinuidade das lutas que a continuidade de um

projeto histórico.

As diferentes interpretações sobre o que é um movimento social na atualidade

decorrem de três fatores principais:

1 - mudanças nas ações coletivas da sociedade civil, no que se refere a seu

conteúdo, suas práticas, formas de organização e bases sociais;

2 - mudanças nos paradigmas de análise dos pesquisadores;

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3 - mudanças na estrutura econômica e nas políticas estatais.

Resulta dessas alterações um conjunto desigual de fenômenos sociais que têm

sido caracterizados como movimentos sociais.

O termo “movimentos sociais” surge pela primeira vez na sociologia acadêmica

com Lorenz Von Stein, por volta de 1840. Na época, Stein defendia a necessidade de

uma ciência da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, como se

fazia com o movimento proletário francês, e do comunismo e socialismo emergentes.

Porém, somente a partir de 1940 - um século depois - a sociologia acadêmica passou a

defender a supremacia de uma sociologia dos movimentos sociais.

Desde então, os critérios que têm sido normalmente utilizados para

caracterização dos movimentos sociais referem-se:

“a um grupo mais ou menos organizado, sob uma liderança determinada ou não; possuindo um programa, objetivos ou plano comum; baseando-se numa mesma doutrina, princípios valorativos ou ideologia; visando um fim específico ou mudança social“. (SCHERER-WARREN, 1987, p. 12)

1.6 Paradigmas marxista e neomarxista

Nas análises marxistas do século XIX e início do século XX a preocupação

sobre o movimento das classes sociais recaía sobre critérios como: necessidade de

organização e da comunidade de interesse de classe; exigência de uma vanguarda para o

movimento; desenvolvimento de uma consciência de classe e de uma ideologia

autônoma; e uma proposta ou um programa de transformação social.

O pensamento de Marx é uma espécie de ponto de referência para o estudo dos

movimentos sociais. As principais contribuições de autores clássicos e contemporâneos

partem de suas análises. Seus seguidores tentam dar continuidade às suas reflexões,

aprofundando o questionamento sobre os aspectos políticos, cultural e ideológico do

real, na dinâmica dos movimentos sociais. Já nas tendências contemporâneas nota-se

um avanço em relação ao marxismo clássico no que diz respeito à extensão do estudo,

ao conjunto dos grupos sociais, fugindo da dicotomia burguesia-proletariado. Estes

estudos aprofundam também o conhecimento das particularidades históricas

contemporâneas.

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Para Scherer-Warren, o fundamental no pensamento de Marx foi ter dado à

categoria “totalidade” um lugar central na discussão:

“Ao examinar o agir humano, concebe este agir como um conjunto que conecta dialeticamente várias práxis: teórica, produtiva ou econômica e político-ideológica. A articulação entre as várias práxis, e a idéia de uma práxis teórica a serviço de uma práxis política transformadora do social, criou o espaço necessário para se colocar a ciência engajada aos movimentos sociais“. (SCHERER-WARREN, 1987, p. 136).

Schere-Warren acrescenta que a teoria marxista centra-se no estudo de processos

históricos globais, nas contradições existentes e nas lutas entre diferentes classes

sociais. No entanto, é importante destacar que Marx não criou uma teoria específica

sobre os movimentos sociais. Seus estudos foram sobre a sociedade capitalista,

mercadoria, processo de acumulação e desenvolvimento das relações sociais

capitalistas. Foi a partir da reflexão sobre as relações capitalistas que Marx desenvolveu

a categoria de práxis1 social que se tornou fundamental nos estudos do movimento

social operário.

De acordo com o marxismo, para que se efetive a práxis é necessário a formação

da consciência de classe e de uma ideologia autônoma de forma organizada, para as

quais sugere o partido de classe. As classes conscientes geram um movimento social e

uma organização de classe e, a partir disto, desenvolvem uma ideologia própria de

classe.

Estas teorias, por um lado, expressam uma opção ideológica e um tipo de

engajamento do próprio pensador social, mas por outro lado, enquanto leituras do real,

expressam a própria dinâmica dos movimentos sociais e as transformações pelas quais

estão passando no decorrer do tempo.

A importância do estudo sob a ótica do marxismo nos dias atuais tem dois

motivos: como memória histórica das primeiras teorias dos movimentos sociais e ações

coletivas; e como busca de referência e matrizes teóricas de vários conceitos que estão

sendo retomados nas pesquisas contemporâneas. No entanto, o estudo do marxismo

voltado à compreensão dos movimentos sociais não é apenas uma teoria explicativa

1 1 A categoria de práxis é fundamental para compreender o pensamento de Marx. Em sua obra ela está presente como elemento de transformação da sociedade e da natureza pela ação dos homens. A práxis significativa refere-se à práxis transformadora do social, que se realiza em conexão com a atividade teórica, por meio da atividade produtiva e/ou atividade política. No campo da produção teórica, o conceito práxis é fundamental no marxismo, como articulador da teoria à prática. (GOHN, 2007, p. 176).

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conceitual, mas também funciona como uma teoria orientadora para os militantes

guiarem suas ações e refletirem sua prática que se tornará práxis histórica.

De acordo com Gohn (2007), a análise dos movimentos sociais sob o paradigma

marxismo refere-se a processos de lutas sociais voltadas para a transformação das

condições existentes na realidade social, de carências econômicas e/ou opressão

sociopolítica e cultural. Trata-se do processo de luta histórica das classes e camadas

sociais em situação de subordinação.

Gohn explica que o paradigma marxista divide-se em duas abordagens:

ortodoxas (clássico) e não ortodoxas. Conforme a pesquisadora, no paradigma marxista

clássico há duas grandes correntes. Uma quando era Marx ainda jovem e seus estudos

eram sobre a consciência, a alienação e a ideologia. Esta corrente criou uma tradição

histórica humanista e teve continuidade nos trabalhos de Rosa Luxemburgo, Gramsci,

Lukács, e da Escola de Frankfurt. A outra corrente decorre dos trabalhos do Marx

maduro, após 1850, e seus estudos sobre o desenvolvimento do capital, em que os

conceitos básicos serão formação social, forças produtivas, relações de produção,

superestrutura, ideologia, determinação em última instância, mais-valia, etc. Esta última

corrente privilegia os fatores econômicos, macroestruturais da sociedade. (GOHN,

2007, p. 172).

Já o paradigma neomarxista faz uma releitura do marxismo ortodoxo:

A abordagem dos fatores políticos tem centralidade, e a política passou a ser enfocada do ponto de vista de uma cultura política, resultante das inovações democráticas, relacionadas com as experiências dos movimentos sociais, e tem papel tão relevante quanto a economia no desenvolvimento dos processos sociais históricos. Duas grandes referências fundamentaram esta releitura: a teoria da alienação, desenvolvida por Lukács (1960) e pela Escola de Frankfurt, e a de Gramsci sobre hegemonia. (GOHN, 2007, p. 173)

Constitui a corrente neomarxista: Manuel Castells, Jean Lojkine, Claus Offe,

Laclau e a corrente dos historiadores liderada por Hobsbawm E. P. Thompson e G.

Rudé e outros. O que tem destacado estes estudiosos é que os movimentos sociais não

surgem espontaneamente como se pensava. Para eles, são as organizações de cidadãos,

consumidores e usuários de bens e serviços que, mobilizados por problemas decorrentes

de seus interesses cotidianos, geram estes movimentos. Isto é, os movimentos nascem

devido a ações práticas dos homens na história.

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Como descreve Scherer-Warren (1987, p.13), na década de 1950, a sociologia

acadêmica incorpora as contribuições do marxismo para a análise dos movimentos

sociais. Com isso, a caracterização sistemática ou tipológica dos movimentos sociais dá

lugar a uma análise da dinâmica dos movimentos sociais. Ou seja, da busca da

contribuição dos movimentos sociais na produção transformadora do social.

Assim, a teoria sociológica vai buscar um entendimento dos movimentos sociais

a partir da natureza de sua ação para transformação, da natureza de sua dinâmica (de sua

práxis); de sua proposta de transformação (seu projeto); dos princípios que orientam

esta proposta (sua ideologia); e dos condutores do movimento (sua direção ou

organização). Noções consideradas fundamentais para a compreensão da dinâmica dos

movimentos sociais.

Na ótica da sociologia acadêmica, Scherer-Warren define movimentos sociais

como:

...uma ação grupal para a transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção). (SCHERER-WARREN, 1987, p. 20).

1.7 Os novos movimentos sociais

A partir da década de 60, com a aceleração dos processos de globalização

(descritos anteriormente), o Estado começa a deixar de ser o foco principal das

investigações das ciências sociais. Os pesquisadores passam a criticar o Estado e a não

considerá-lo mais como regulador de fronteiras nacionais e controles sociais.

A teoria dos Novos Movimentos Sociais foi construída a partir da crítica à

abordagem marxista, considerada inadequada para a época. Os teóricos desta linha

utilizaram esquemas interpretativos que davam ênfase à cultura, à ideologia, às lutas

sociais cotidianas e ao processo de identidade.

Assim, construíram um modelo teórico baseado na cultura e a questão da

identidade coletiva criada pelos grupos ganhou centralidade nas explicações. “Nos NMS

a identidade é parte constitutiva da formação dos movimentos, eles crescem em função

da defesa dessa identidade. Ela se refere à definição dos membros, fronteiras e ações do

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grupo“. (GOHN, 2007, p. 124).

Conforme Gohn (2007), a mudança do eixo das demandas da economia para um

patamar mais cultural refletiu-se na organização dos Novos Movimentos Sociais

fazendo com que se apresentassem mais descentralizados, sem hierarquias internas, com

estruturas colegiadas, mais participativos, abertos, espontâneos, fluídos.

Os movimentos passaram a atuar mais como redes de troca de informações e cooperação em eventos e campanhas. Mas há também conflitos entre eles, internos e externos, e este aspecto, na teoria dos Novos Movimentos Sociais, é visto como parte do processo de construção de identidade. (GHON, 2007, p.126).

A preocupação com a identidade coletiva decorre do crescente aumento da

fragmentação e pluralidade da realidade social característico da sociedade

contemporânea, sendo, portanto, quase uma estratégia para construir uma unidade do

possível.

Os olhares da investigação são deslocados para a sociedade civil e, com isto, os

movimentos sociais ganham visibilidade na própria sociedade enquanto fenômenos

históricos. Esse processo contribuiu para que os estudos sobre os movimentos sociais

ganhassem espaço nas ciências sociais e status de objeto cientifico de análise, e

proporcionou o surgimento de várias teorias.

Como a América do Norte, a Europa e a América Latina possuem contextos

históricos específicos de lutas e movimentos sociais correspondentes a eles; e os

pesquisadores de cada um destes continentes adotaram posturas metodológicas para

realizar as análises de suas realidades nacionais, locais ou regionais.

Maria da Glória Gohn (2007) explica que na Europa e na América do Norte

estas posturas geraram teorias próprias, enquanto na América Latina as posturas

metodológicas foram hibridas, ou seja, geraram muitas informações, mas o

conhecimento produzido foi orientado basicamente pelas teorias criadas em outros

contextos, diferentes de suas realidades nacionais, como o caso a ser analisado da teoria

européia dos Novos Movimentos Sociais.

Na América Latina, as teorias que orientaram a produção a respeito foram as dos

paradigmas europeus, tendo predominado nos anos 70 a vertente marxista, e nos 80 a

abordagem dos Novos Movimentos Sociais.

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Na América Latina vários movimentos populares, das mulheres, dos negros, não direcionaram suas frentes de luta totalmente fora das estruturas do poder estatal, da sociedade política, porque a própria sociedade civil estava havia longas décadas controlada pelas estruturas de poder estatal. Aliar-se a partidos, por exemplo, foi uma necessidade estratégica imperiosa para atingir a sociedade política, para tentar mudar as leis e algumas das estruturas de organização da sociedade como um todo. As mensagens dos novos códigos culturais não eram suficientes. Elas foram importantes para atingir concepções alicerçadas como pontos estratégicos na cultura política vigente. Era preciso atuar em duas frentes: nas mentalidades, da sociedade em geral, e na estrutura das leis que regulamentavam as relações sociais vigentes. (GHON, 2007, p. 130).

Nos anos 90, alguns cientistas sociais declararam que os movimentos sociais

estavam em declínio e eram fenômenos pertencentes ao passado. Porém, como explica

Ghon (2007), o que houve é que com as mudanças estruturais e conjunturais da

sociedade civil e política que ocorreram nas últimas décadas, os movimentos se

transformaram. Como os problemas sociais se apresentam em ciclos históricos, eles

apresentam características particulares para cada momento, e suas análises e conceitos

são atualizados historicamente. Sendo assim, o estudo dos movimentos sociais é

permanente: “Enquanto a humanidade não resolver seus problemas básicos de

desigualdades sociais, opressão e exclusão, haverá lutas, haverá movimentos“. (GOHN,

2007, p. 20).

A sociedade contemporânea globalizada remete à problemática das interações

interculturais. Como a globalização não é apenas um fenômeno econômico, mas

também ocorre nas dimensões culturais e políticas, novos desafios se impõem. De

acordo com Sherem-Warren, nas últimas décadas “no plano político, os movimentos

sociais tornaram-se cada vez mais transnacionais; e no plano cultural, enfrentam o

desafio do multiculturalismo“ (SCHERER-WARREN, 1998, p. 31). Este contexto histórico

exige dos cientistas sociais que se construam referenciais analíticos adequados para se

pensar estes processos de transformação.

Na atual conjuntura da sociedade contemporânea, temas como multiculturalismo

e identidades são de grande atualidade e relevância. Isto porque convivemos com o

desafio de novas relações interculturais que vêm se impondo com mais força no cenário

mundial. Os movimentos sociais no plano cultural enfrentam o desafio da hibridização,

da diversidade e do respeito à diferença. Na medida em que estes movimentos sociais

confrontam-se com a necessidade de relacionamentos multiculturais, enfrentam também

o imperativo de lidar com a construção de subjetividades.

Segundo a pesquisadora Ilse Scherer Warren, a partir da segunda metade da

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década de 80 e, sobretudo na de 90, há uma crescente interação destes movimentos

entre si, ou uma penetração de seus ideais em movimentos mais clássicos, como o

sindical e o de moradores. “Juntamente com a defesa das identidades, surge a

necessidade de abertura ao outro e à reciprocidade nas trocas”. (SCHERER-WARREN,

1998, p. 31) A partir daí começou-se a se preocupar com a hibridização cultural e a

“formação de um movimento cidadão, onde a complementariedade se constrói a partir

do respeito às diferenças, não impondo uma uniformização para se trabalhar

cooperativamente”. (SCHERER-WARREN, 1998, p. 31)

O debate entre uma epistemologia monoculturista e uma multiculturalista traz

elementos para se pensar as identidades nos movimentos sociais. Uma visão

monoculturalista acerca da identidade de sujeitos coletivos entende que as minorias têm

suas identidades determinadas objetivamente numa realidade específica. O

monoculturalismo também busca valores universais, absolutos, ou um projeto

civilizatório único. Isto pode levar a legitimar uma dimensão de dominação frente às

minorias. Na visão do multiculturalismo, há um relativismo em relação aos valores, o

que permite pensar alternativas para as minorias. O relativismo absolutizado, na prática,

também legitima exclusões sociais existentes e também pode justificar a fragmentação

ou a criação de guetos culturais que reproduzem desigualdades e discriminações sociais.

No campo das relações sociais, neste caso, inter-grupais, o monoculturalismo

busca um igualitarismo universal que não conduz suficientemente as especificidades

identitárias e históricas. O igualitarismo que não contempla as diversidades culturais

poderá ser opressor e discriminatório. O multiculturalismo considera as diferenças

pessoais construídas historicamente.

Kathryn Woodward explica que a política de identidade concentra-se em afirmar

a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou

marginalizado. Defender estas identidades torna-se um fator importante de mobilização

política e representação.

Pode-se apelar à identidade de duas formas bastante diferentes – uma

essencialista e outra não-essencialista. Os movimentos sociais clássicos geralmente

trabalham sua identidade a partir de uma visão essencialista – a defesa da singularidade

do grupo é uma forma essencialista. O MST também defende a unidade, o que o liga

mais diretamente a uma visão essencialista acerca das identidades.

Porém, encontra-se entre alguns dos novos movimentos uma posição não-

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essencialista com respeito à identidade. Numa visão não-essencialista, as identidades

são fluídas, não são essências fixas, e não estão presas a diferenças que seriam

permanentes e valeriam para sempre. Estes movimentos têm questionado as concepções

que pressupõem o caráter fixo da identidade.

As mudanças econômicas e sociais pelas quais a sociedade passou sugerem que

não é mais suficiente argumentar que as identidades podem ser deduzidas pela posição

de classe ou raça. Especialmente porque este próprio conceito de classe está mudando.

Na contemporaneidade, as estruturas tradicionais baseadas nas relações de classe têm

sido questionadas.

As sociedades modernas formaram sujeitos de identidade unificada e estável que

se fragmentaram com as mudanças estruturais e institucionais da sociedade e passaram

a ser compostos de várias identidades. Nasceram assim sujeitos que não têm mais uma

identidade fixa, essencial ou permanente. A sua identidade é móvel, formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

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II

A LUTA PELA TERRA

2.1 Histórico das lutas no campo

Conflitos sociais no campo não são fenômenos exclusivos do nosso tempo. Eles

sempre estiveram presentes na história do Brasil. Marcam uma história de luta do

homem pobre do campo na sua busca contínua pela conquista da terra para o trabalho,

para morar, viver, ter um lar, construir uma vida digna. Um processo que se pôs em

movimento a partir da chegada do colonizador europeu em solo brasileiro e que se

estende até os dias de hoje.

Os primeiros a lutar foram os índios que aqui habitavam e tiveram que resistir ao

genocídio imposto pelo colonizador. Depois foi a vez dos escravos, imigrantes e

camponeses. Escovar a contrapelo2 a história dessas lutas se faz importante por dois

motivos. Primeiramente, expõem os conflitos que originaram nossa sociedade e que

agora servem de fonte de energia para grupos de luta pela terra que tentam interromper

a continuidade do processo de opressão. E segundo, ditam como esses grupos, em

especial o MST, articulam essas lutas para construir uma identidade histórica “sem-

terra” reivindicada hoje por eles.

2.2 Índios

Sobre os índios, conta Ariovaldo Umbelino de Oliveira que:

O território capitalista brasileiro foi produto da conquista e destruição do território indígena. Espaço e tempo do universo cultural índio foram sendo moldados ao espaço e tempo do capital. O ritmo compassado do tic-tac do relógio no seu deslocar temporal nunca foi a marcação do tempo para as nações indígenas. Lá o fluir da história está contado pelo passar das luas e pela fala mansa dos mais velhos registrando os fatos reais e imaginários. (OLIVEIRA, 2001, p. 11).

2 Sabe-se que a história é escrita pelos Vencedores. Escovar a História a contrapelo é um conceito utilizado por Walter Benjamin que significa desvendar a História sobre o ponto de vista das classes populares, dos vencidos.

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Oliveira acredita que talvez a luta das nações indígenas e a sociedade capitalista

européia marcam a primeira luta entre desiguais. “A luta do capital em processo de

expansão, desenvolvimento, em busca de acumulação, ainda primitiva, e a luta dos

‘filhos do sol’ em busca da manutenção do seu espaço de vida no território invadido”.

(OLIVEIRA, 2001, p. 11). Convém observar que esta luta nunca cessou na história do

Brasil. A Amazônia é o último reduto do índio livre. Nas outras regiões do país, a luta é

pela garantia de suas terras e pela recuperação da cultura indígena destruída pelos

valores ocidentais.

No Brasil, entre os séculos XVI e XVII, cerca de 350 mil índios foram

escravizados. Para não deixar-se serem escravizados, os índios lutaram, fugiram,

morreram. Diversos movimentos de resistência ocorreram nesta época. Dentre eles, a

Confederação de Tamoios3 e a Guerra dos Potiguara. Porém, pouco a pouco a

escravidão indígena foi sendo substituída pela escravidão negra. No entanto, é

importante destacar que os índios continuaram a ser escravos até meados do século

XVIII.

Esconder a história da destruição das nações indígenas foi estratégia dos

vencedores para enaltecer o avanço e a conquista capitalista. Esta história, de destruição

e dominação, fez com que dos cinco milhões de índios restassem hoje pouco mais de

220 mil.

Historicamente, os povos indígenas sempre reagiram à violação e a conquista

dos seus territórios tradicionais, e estas respostas variavam de acordo com o desafio

imposto pelos distintos momentos da expansão capitalista, inicialmente européia, e mais

tarde, condicionada à formação econômica brasileira.

Após a promulgação da Constituição de 1988, uma nova fase do movimento

indígena no Brasil se inicia com mudanças significativas na forma jurídica e política de

inserção das populações indígenas no Estado brasileiro. Assim, o movimento indígena

adquire uma nova configuração para lidar com as transformações ocorridas no cenário

político das relações interétnicas no Brasil.

Através da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, obteve-se o

reconhecimento legal da organização social indígena e o direito dos índios, suas

3 Confederação de Tamoios ou Guerra dos Tamoios foi um poderoso movimento de resistência formado por diversos grupos tupinambás, ao longo do litoral de Cabo Frio (RJ) a São Vicente (SP). Entre as décadas de 1540 a 1560 todo o litoral e muitas partes da Serra Acima foram envolvidos na Guerra dos Tamoios. Esta revolta tornou a escravidão Tupinambá um negocio cada vez mais arriscado e caro para os portugueses. (Ver Monteiro, 1994, p. 35-37)

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comunidades e organizações de ingressarem, como partes legítimas, em defesa de seus

direitos e interesses. Uma vez assegurado o direito indígena à terra na Constituição de

1988, abriu-se espaço para outras preocupações emergirem com maior força

reivindicativa, como, por exemplo, a proteção dos territórios e a sustentabilidade

socioeconômica dos grupos indígenas na sociedade nacional.

2.3 Negros

O lucrativo negócio de tráfico de escravos africanos fez com que os portugueses

substituíssem a escravidão do índio pela escravidão do negro. Interessa destacar aqui

que nessa época já vigorava no mundo o primeiro estágio do capitalismo descrito por

Mendell - o capitalismo Comercial ou Mercantil. Os negros eram vendidos como se

fossem mercadorias no Brasil, para trabalhar como escravos nos engenhos de açúcar.

Para Portugal importava agora que a colônia gerasse lucro. Além dos aspectos

comerciais, a escravidão negra passou a ser preferida por motivos legais e morais.

Assim, nesta época, o primeiro estágio do capitalismo já atingia a colônia e fazia

suas primeiras vítimas. Em 1570, já se contabilizava no Brasil mais de 50 engenhos. Em

1584, trabalhavam nas fazendas, na cultura da cana-de-açúcar, em torno de 15 mil

africanos escravizados. Como o índio, o negro também reagiu à escravidão.

Entre as várias formas que os negros encontraram para lutar contra a opressão

dos brancos, a mais significativa foi, sem dúvida, a formação de quilombos. Os

quilombos eram lugares de resistência negra. As pessoas que moravam nos quilombos

(quilombolas), viviam em um sistema comunitário na floresta onde podiam praticar sua

cultura, falar sua língua e exercer seus rituais religiosos. Estes quilombos eram sempre

perseguidos pelos exércitos de fazendeiros que, quando podiam, destruíam e matavam

os negros, e os recapturados eram levados de volta para os engenhos, onde eram

duramente castigados e marcados.

As lutas de resistência no período escravocrata aconteceram em todo território

brasileiro. Muitos foram os quilombos criados em diferentes regiões do país. Entre os

quilombos, Palmares foi o grande exemplo de luta, resistência e destruição. Lá reinaram

Zambi, Ganga Zumba e Zumbi.

Palmares foi o maior quilombo. Era um conjunto de povoados socialmente

organizados que formou a União dos Palmares. Estima-se que, por volta de 1670, perto

de 20 mil pessoas viviam ali. Palmares ficava localizado na Zona da Mata, à cerca de 70

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quilômetros do litoral, onde é hoje a região fronteiriça entre os estados do Alagoas e

Pernambuco:

(...) Era uma verdadeira cidade onde os negros viviam numa comunidade de fato. Aí se fazia a experiência da fraternidade verdadeira. Era o lugar onde os negros se sentiam iguais de verdade. O quilombo dos Palmares tinha sua base na organização social e política voltada para se defender dos exércitos dos fazendeiros e para garantir a posse coletiva da propriedade. Os quilombos representavam a única possibilidade, fora a morte, para fugir da escravidão e a tentativa de estabelecer uma comunidade negra, autônoma, livre, no meio da floresta. (...) (COMISSÃO, 1987, apud in: OLIVEIRA, 2001, p. 16).

O quilombo dos Palmares foi o que mais tempo resistiu aos ataques dos

fazendeiros. Essa resistência durou cerca de 100 anos e deve muito a seu grande líder

Zumbi e sua capacidade de organização. O quilombo dos Palmares foi destruído por um

grande caçador de índios chamado Domingos Jorge Velho e seus soldados. Este

capitão-do-mato assassinou Zumbi e muitos outros negros e índios, além de recapturar

outros para vendê-los e enriquecer com isto. Mesmo com a destruição de Palmares e

com a morte de Zumbi, os negros continuaram a fugir das senzalas e a se agrupar nas

florestas, lutando pela sobrevivência e pela liberdade.

Assim como garantiu um avanço para o movimento indígena, a Constituição

Federal de 1988 buscou trazer uma reparação histórica pelo período da escravidão. A

partir da elaboração e da promulgação da Constituição federal de 1988, o movimento

negro brasileiro sai da passividade e começa a militar por seus direitos. A Constituição

garante uma série de direitos aos negros.

Após a abolição da escravatura, a existência de discriminação racial no Brasil só

foi reconhecida em 1951, com a aprovação da Lei Afonso Arinos4. A Constituição de

1988 transformou essa discriminação em crime. A Constituição Federal de 1988

estabelece que o racismo passa a ser crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena

de reclusão, nos termos da lei. A Constituição garante também a proteção da cultura

negra, seus ritos religiosos e costumes trazidos da África. Antes, a cultura negra era

reprimida, suas crenças e cultos religiosos eram considerados atentatórios à ordem

pública e aos bons costumes.

O Estado passa a proteger as manifestações culturais populares indígenas e afro-

brasileiras e a lei fixa datas comemorativas para os diferentes segmentos étnicos

4 A Lei Afonso Arinos foi aprovada em 3 de julho de 1951. A partir de sua resolução, ficou caracterizada como contravenção penal, qualquer prática de preconceito de raça e cor de pele. A Lei Afonso Arinos foi a primeira lei brasileira a condenar a discriminação e o preconceito racial no país.

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nacionais. A Constituição determinou também que o ensino da História do Brasil levará

em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo

brasileiro. E, por fim, aos remanescentes das comunidades dos quilombos (comunidades

negras que se organizaram autonomamente no interior do Brasil, liberando-se de fato da

situação da escravidão) que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade

definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

2.4 Canudos

O século XIX encerra-se com a mais trágica e violenta guerra do Brasil,

envolvendo de um lado os sertanejos5 e de outro os donos do poder: coronéis, militares

e o governo republicano. A Guerra de Canudos ou Campanha de Canudos, como ficou

conhecida, representa o maior exemplo da organização de resistência camponesa no

país.

O conflito durou de 1896 a 1897 e mobilizou aproximadamente cerca de 12 mil

soldados, distribuídos em quatro expedições militares. Em 1897, na quarta incursão, os

militares incendiaram o arraial, mataram grande parte da população e degolaram

centenas de prisioneiros. Estima-se que morreram ao todo por volta de 25 mil pessoas,

culminando com a destruição total de Canudos. (CUNHA, 1982).

Conta Cunha que:

"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 de outubro de 1896, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados". (Cunha, 1982, p. 359).

Euclides da Cunha cobriu o conflito de Canudos como correspondente do jornal

O Estado de São Paulo. Na função de repórter, passou três semanas no local como

testemunha ocular do massacre sofrido pelos sertanejos. Após a guerra, resolveu

5 A obra de Euclides da Cunha retrata a existência de dois “Brasis“. O primeiro era o Brasil litorâneo, moderno, europeizado, urbano e progressista, em constante mudança em decorrência do processo civilizador e migrações estrangeiras. O segundo representava um Brasil interiorano, do sertão, que vivia de modo tradicionalista, arcaico, pobre, de população ingênua, vivendo em função da Natureza, com outros hábitos e costumes. O Brasil caboclo, mestiço e rural. Os sertanejos seriam os filhos, moradores, povos desse segundo Brasil. (BRANDÃO, 1996)

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escrever um livro - Os Sertões (1902) - no qual procurou vingar os mortos de Canudos. “Livro vingador”, assim chamou o próprio Euclides que, ao presenciar a valentia dos jagunços, o idealismo dos canudenses, o papel desempenhado pelo Conselheiro, o ânimo e caráter do sertanejo, assumiu a posição de advogado da causa de Canudos, ao voltar para o litoral, na certeza de que todas aquelas campanhas, aparato bélico, mobilização militar, violência do governo contra a população inocente, não passara de um “crime monstruoso”, um crime contra a nacionalidade brasileira, um equívoco sem perdão. (BRANDÃO, 1996, p. 27)

A obra de Euclides da Cunha tornou-se um dos mais importantes marcos da

literatura brasileira e inspirou diversas de outras obras que tratam do conflito. Os

Sertões teve papel de importância na construção da memória da Guerra de Canudos

dando destaque à coragem do vencido. Poucas obras marcam com destaque a coragem

dos vencidos.

O movimento messiânico ocorrido em Canudos tem como figura central Antônio

Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, descrito por Euclides da Cunha como

profeta e principal articulador dos sertanejos que estavam sofrendo agressões e

injustiças.

Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além. Era o servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível. (CUNHA, 1982, p. 98)

Apontado como uma personalidade psicologicamente anormal, Conselheiro era

filho de Vicente Mendes Maciel, comerciante de algumas posses que o queria padre. Só

que as mudanças ocorridas em sua vida fizeram dele um peregrino pelos sertões do

nordeste. Deixou a barba e os cabelos crescerem, vestia uma túnica de algodão e calçava

sandálias. Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o

sustento de cada dia. Andava a rezar terços, ladainhas, a pregar e dar conselhos às

multidões. Movendo sentimentos religiosos, foi arrebatando o povo e guiando-os a seu

gosto.

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Conselheiro e seus seguidores instalaram-se na fazenda Canudos em 1893 e

passaram a chamar o lugar de Belo Monte. A organização econômica se realizava por

meio do trabalho cooperado, o que foi essencial para a reprodução da comunidade.

Todos tinham direito à terra e desenvolviam a produção familiar, garantindo um fundo

comum para uma parcela da população, especialmente para os velhos e desvalidos, que

não tinham como subsistir dignamente.

Em Canudos viveram aproximadamente dez mil pessoas. Acusados falsamente

de defender a volta da monarquia, foram atacados por expedições militares vindas de

quase todo o Brasil. Mais de cinco mil soldados combateram os sertanejos de

Conselheiro. De outubro de 1896 a outubro de 1897, os ataques do exército foram

enfrentados e refreados até o cerco completo e o massacre do povo de Canudos.

Para Vasconcellos, a Proclamação da República é apontada como causa

principal do insurgimento de Conselheiro e de seu povo. “A ela o líder atribuía alguns

erros, segundo sua visão religiosa“. (VASCONCELLOS, 1991, p. 38). Conselheiro

acreditava que a República, com a introdução do casamento civil, passou a legislar

sobre fatos que eram da competência exclusiva da Igreja. Há ainda o fato de a Igreja

estar a favor da escravatura, e a queda da monarquia para ele estaria diretamente ligada

à abolição.

Há outros pesquisadores, no entanto, que acreditam serem as transformações

ocorridas nas relações de trabalho a causa de tal movimento. A introdução do trabalho

livre com a arregimentação de colonos estrangeiros para o cultivo de café no sul do

país, em restrição ao sertanejo nordestino que poderia ser aproveitado para tal mister, é

tida ainda como uma possível causa do conflito:

Antônio Conselheiro beneficiou grande parte do sertão baiano, pois por onde quer que passasse se colocava a reconstruir igrejas, reformar cemitérios, abrir estradas ou fazer açudes. Para tanto contava com o apoio da classe dominante e do clero, que muitas vezes permitiu-lhe o uso do púlpito para suas pregações. Com isto se indispôs com o a hierarquia eclesiástica da Igreja Católica na Bahia, cujo arcebispo afirmava ser a pregação em igrejas um direito nítido de padres ordenados (Della CAVA, 1975:124, apud in, VASCONCELLOS, 1991, p. 38)

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2.5 Guerra do Contestado

Se não bastasse a Campanha de Canudos finalizar o século XIX de forma

sangrenta, o século XX tem início, logo nas suas primeiras décadas, com o maior

confronto armado entre camponeses e o Exército no Brasil:

“A maior guerra popular da história contemporânea do Brasil foi a Guerra do Contestado, uma guerra camponesa no sul do país, nas regiões do Paraná e Santa Catarina, de 1912 a 1916. Abrangeu 20 mil rebeldes e envolveu metade dos efetivos do Exército brasileiro em 1914, mais uma tropa de mil “vaqueanos”, combatentes irregulares. Deixou um saldo de pelo menos três mil mortos.” (MARTINS, 1981, apud in OLIVEIRA, 2001, p. 17).

O confronto envolveu posseiros expulsos de suas terras pela empresa norte-

americana Brazil Railway ou pela Southern Brazil Lamber & Colonization, assim como

cerca de oito mil trabalhadores contratados para a construção da rodovia, que ficaram

desempregados. As terras atravessadas pela ferrovia foram exploradas e desflorestadas

pela empresa que comercializou as madeiras no Brasil e no exterior. Sem terra e sem

emprego, esses posseiros e desempregados perambularam pelo sertão ocupando terra,

saqueando e muitas vezes se oferecendo como jagunços para conseguirem emprego

junto aos coronéis.

Como se não bastassem para a revolta as causas enumeradas acima, havia ainda

o problema da extração da erva mate, abundante na região, que desagradou não só ao

ervateiro, mas, principalmente, aos coronéis. Pode-se acrescentar a isso também a

questão de limites entre Santa Catarina e Paraná, pela posse da região contestada.

Percebe-se assim que a região se tornou um lugar propício para o surgimento de

conflitos de resistência.

No Contestado, a república é tida como a causa do desencontro que estava

ocorrendo na sociedade. Embora não citadas como causas da rebeldia, as mudanças

ocorridas nas relações de trabalho com a introdução do trabalho assalariado pela

construção da estrada de ferro, como também o contrato firmado pelo governo nacional

para a construção da linha férrea à sua margem (15 km em cada lado) e,

conseqüentemente, desalojando os posseiros que ali se encontravam, tudo isso é

percebido como mais uma maldade da República. Estas foram as causas que levaram o

povo à associação de ser o governo republicano um mau governo.

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A República como regime anti-tradicionalista e, até certo ponto, artificial, é apontada como responsável pela situação de opressão e miséria por que passam as populações, sendo então o pretexto para o surgimento de movimentos como Canudos e Contestado principalmente. Entretanto, a visão da Republica é diferente em cada um deles. Se em Canudos, Antônio Conselheiro, considerado monarquista por vários autores, se põe contra aquela instituição, é por admitir este líder existir o direito divino dos reis e por estar o poder civil se imiscuindo em setores tidos como privilégio da Igreja. O mesmo não se dá com o Contestado, posto que a monarquia, para os participantes do movimento, se apresenta como uma proposta milenarista. Ela era tida pelos jagunços como a prefiguração do céu ou mesmo o governo do céu. (VASCONCELLOS, 1991, p. 48-49).

Diferentemente de Canudos, o movimento messiânico que ocorreu no

Contestado não teve a participação de um só líder. Três monges, à maneira dos beatos

nordestinos, rezavam e migravam penitencialmente pelos sertões. Entretanto, outros

líderes assumiram a liderança - geralmente estes possuíam experiência em coisas de

guerra ou também eram portadores de sinais carismáticos como a Virgem e o Menino

Deus.

O primeiro monge foi João Maria. Homem de origem italiana, que peregrinou

pregando e atendendo doentes na região do conflito por volta de 1844 a 1870. Chegou a

construir capelas e era penitente. Vivia uma vida extremamente humilde, e sua forma de

viver arrebanhou milhares de crentes. No entanto, não se tem registro de milagres ou

curas.

Após seu desaparecimento, surge o segundo João Maria. Seu verdadeiro nome

era Atanás Marcaf, provavelmente de origem síria. Apareceu na região com a

Revolução Federalista6 de 1893. Adepto de Gumercindo Saraiva - comandante das

tropas rebeldes (maragatos) durante a Revolução Federalista - trazia consigo alguma

experiência de guerra. Mas, no Contestado, não participou de qualquer combate. Após

seu desaparecimento, os sertanejos ficaram esperando sua ressurreição.

É com José Maria, o terceiro monge, que o movimento teve início. Ele assume o

papel de rezador e curador por volta de 1912, e a partir daí começam a aparecer os

primeiros sinais de um movimento camponês de caráter político - religioso.

6 A Revolução Federalista aconteceu no Rio Grande do Sul do ano de 1893 até 1895. Na época, a República dava seus primeiros passos e dois grupos pleiteavam o poder, o Partido Federalista – que agrupava a antiga nata do Partido Liberal da época do império, comandado por Gaspar da Silveira Martins – e o Partido Republicano Rio-Grandense – do qual faziam parte os adeptos da república, e que era dirigido por Júlio de Castilhos, então governador.

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Depois de se envolver com a disputa política local, recebeu o apoio de um coronel, o que proporcionou o conflito de interesses no sistema coronelista. O monge foi acusado de ter proclamado a monarquia e, perseguido, retirou-se para Irani, localizado na região contestada pelos estados do Paraná e de Santa Catarina. A chegada do monge e seus seguidores na região pretendida pelo Paraná foi interpretada como uma invasão dos catarinenses. Foram atacados pela Polícia Militar do Paraná, mesmo depois de terem proposto que partiriam daquela região. Foram atacados de madrugada e revidaram. O monge foi atingido mortalmente na batalha em que os seus seguidores derrotaram a tropa policial. (MANÇANO, 1999, p. 20).

No final do ano de 1913, na região de Taquaruçu, em Santa Catarina, o

movimento messiânico ressurge. Em fevereiro de 1914, o movimento já era composto

por mais de dez mil pessoas. Em setembro do mesmo ano eram mais de 15 mil pessoas.

Acusando o governo de assassinar os trabalhadores e entregar as terras para empresas

estrangeiras, passaram a atacar fazendas, cidades, e controlaram partes da ferrovia. A

guerra terminou somente em 1916, quando as tropas oficiais conseguiram prender

Adeodato, um dos chefes do último reduto de rebeldes. Ele foi condenado a trinta anos

de prisão.

“Da mesma forma no Contestado, como em Canudos e em diversos outros movimentos messiânicos que ocorreram no Brasil, os camponeses foram destroçados. Foram movimentos populares que acreditaram na construção de uma organização em oposição à república dos coronéis, da terra do latifúndio e da miséria. Em nome da defesa e da ordem, os latifundiários e o governo utilizaram as forças militares, promovendo guerras políticas. Não era a monarquia que combatiam, mas sim a insurreição dos pobres do campo.” (Martins, 1981, p. 62, apud in, MANÇANO 1999, p. 21).

2.6 Santa Dica

O movimento social de Santa Dica foi um movimento de pequena escala que

ocorreu no Estado de Goiás na década de 20. No município de Pirinópolis, a população

sofria em detrimento da vida abundante dos coronéis. Como as demais localidades do

Estado, a terra era o principal elemento de dominação. A elite agrária tinha o controle

da terra e tudo que estava sobre e sob ela. Neste contexto, se tornou lugar propício para

o aparecimento de um movimento messiânico.

O movimento messiânico de Santa Dica é considerado de pequena escala porque

sua ação ficou restrita mais ao âmbito local e regional. E os fatos que ocorreram não

foram ao conhecimento do público brasileiro. No Brasil, somente os movimentos

sociais nos quais o poder federal foi chamado a intervir - através de sua força militar

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(exemplo de Canudos e Contestado) - é que se tornaram objeto de estudo por parte dos

pesquisadores. Apenas esses movimentos foram divulgados e ficaram marcados na

memória nacional. Outros numerosos movimentos de pequena escala permanecem

esquecidos ou contam com poucos estudos.

Sobre esses movimentos considerados de pequena escala, explica Vasconcellos:

Tais movimentos são numerosos em todo o país e se localizaram nos mais diversos estados. Caldeirão, no Ceará, se desenrolou ao mesmo tempo em que vivia o Padre Cícero, mas não recebeu o mesmo tratamento que este por parte dos estudiosos. Santa Brígida e Pau de Colher, na Bahia, foram estudados por Pereira Queiroz, o primeiro, e por Duarte, o segundo, mesmo assim são pouco divulgados. Pedra do Rodeador em Pernambuco, Irmão José no Amazonas, Aparecidão em São Paulo ou Santa Dica em Goiás são outros movimentos que merecem, dentre muitos, ser melhor estudados e que estão esquecidos por aí. A estes considero como movimentos de pequena escala. (VASCONCELLOS, 1991, p. 18)

Assim como os outros movimentos messiânicos acima analisados, este gira em

torno de um líder. Neste caso, uma líder carismática, Benedita Cypriano Gomes, a Santa

Dica. Nasceu em 13 de abril de 1905, na fazenda Mozondó, a 40 km de Pirenópolis

(GO). Era filha do lavrador Benedito Cypriano Gomes, que tinha um pequeno engenho

de cana no qual fabricava rapadura.

Seu aparecimento como curandeira, transformando-a em alvo de admiração dos sertanejos ou mesmo dos litorâneos, se dá nos primeiros anos da década de 20 do século atual (passado), quando, acometida de um mal desconhecido, cai gravemente enferma. Após tentar os recursos locais, chás e simpatias, é tida como morta ao final de três dias de prostração. Ressuscita, no entanto, ao lhe ser dado o tradicional banho dos defuntos. A notícia desse fato se espalha, primeiramente na vizinhança para, em seguida, ganhar o município, o estado e o país. (VASCONCELLOS, 1991, p. 79).

Benedicta Cypriano, moça dotada de uma beleza física, cresceu aprendendo os

afazeres domésticos e a prática da religião católica. Muito jovem, aos 18 anos, ela já

começou a formar uma comunidade, no povoado de Lagolândia. O espaço reunia

aproximadamente 500 pessoas e pertencia à fazenda Mozondó. Neste reduto, Benedicta

dividiu a terra de maneira igual para todos, ditando a utilização coletiva dela e dos bens

que nela fossem produzidos.

Muitos trabalhadores de fazendas vizinhas aderiram ao movimento. Deixaram

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seus empregos e passaram a trabalhar em conjunto nas terras da Comunidade. Benedicta

Cypriano estabeleceu uma relação de trabalho próprio, negava-se a pagar impostos e

fazia com que os seus seguidores também se manifestassem contra as autoridades do

Estado.

O poder que exercia frente à população começou a incomodar os coronéis da

região, que viam em Benedicta a reprodução do episódio de Canudos. Logo, a fama de

Benedicta espalhou-se pelos sertões e atraiu mais e mais pessoas. Era também muito

criticada por ser uma mulher diferente ao transgredir em todas as direções. Benedicta

realizava batizados, crismas e casamentos à revelia da Igreja e de sua autoridade,

usurpando o poder que até então era da Igreja.

Mesmo sendo líder de um movimento que contrariava o sistema vigente, Santa

Dica também serviu ao governo. Ela foi convocada pelos coronéis goianos para

participar da Coluna Caiado, a fim de combater a Coluna Prestes, em Goiás. Santa Dica

comandou centenas de homens e este fato serviu para aumentar ainda mais a fama dela

no estado e fora dele. Porém, após colaborar com o governo e voltar a Lagolândia, Dica

passou a ser vista pelos fazendeiros como uma ameaça. Eles temiam que seu reduto

pudesse se transformar em uma espécie de Canudos.

O episódio que marcou o dia do enfrentamento das forças policiais de Goiás com

os adeptos de Santa Dica ficou conhecido como: “O Dia do Fogo”. Neste

enfrentamento, alguns fanáticos morreram a tiros e outros afogados, ao tentarem

atravessar o rio do Peixe. Vasconcellos conta que “Da santa Dica sabe-se que a mesma

conseguiu atravessar o rio do Peixe, dirigindo-se para os lados de Sant’ana do

Montenegro (Uruaçu).

Por volta de 1932, Benedita voltou à cena em Goiás. Ela assumiu a frente de

outra tropa, ao lado das forças legalistas, na Revolução Constitucionalista de São Paulo,

para defender a integridade nacional. Dica comandou cerca de quatrocentos homens

para manter a integridade nacional. Santa Dica tornou - se “Santa” para os seus

seguidores, mas não foi mártir. Ela foi uma das poucas lideranças de movimentos

religiosos rurais no Brasil que sobreviveu, e tornou-se autoridade influente em sua

região como foi “Padim” Cícero, em Juazeiro.

2.7 As Ligas Camponesas

A redemocratização da política brasileira em 1945 – depois de um longo período

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de ditadura Vargas - possibilitou uma grande mobilização de massas camponesas na

maioria dos Estados Brasileiros, sob a iniciativa e direção do Partido Comunista

Brasileiro (PCB), recém-legalizado. Amparados pelo Código Civil, o PCB formou

associações civis que mobilizaram e organizaram os camponeses e trabalhadores rurais.

Nesta época, o campo era dominado pelos grandes latifúndios (coronelismo) e

havia uma rígida restrição ao sindicalismo rural, ditada pelo contexto político de

governos comprometidos com os latifundiários. A organização de associações de caráter

não trabalhista era a única forma. Nesse caminho, PC fundou centenas de Ligas

Camponesas em todos os Estados Brasileiros.

Consoante à própria estrutura orgânica do Partido Comunista, tratava-se de um movimento camponês altamente centralizado. Além de receber orientação de uma dezena de jornais diários e outro tanto de semanários comunistas, as Ligas Camponesas se orientavam por seu próprio jornal, Terra Livre, fundado em São Paulo em maio de 1949, e que circulava semanal ou quinzenalmente, segundo seus recursos financeiros. O folheto Zé Brasil, que reflete mais que nenhum outro a tragédia camponesa, alcançou, durante anos seguidos, milhões de exemplares, com grande circulação no setor rural. (MORAES, 1969, p. 22-23).

Percebe-se que as Ligas Camponesas funcionavam como uma espécie de

instrumento do Partido Comunista para mobilizar e organizar a massa no campo, a fim

de concretizar a idéia de uma aliança operário-camponesa para lutar contra o

imperialismo e o latifúndio. Elas atuavam segundo as táticas ditadas pelo PCB e o seu

líder era o mesmo do partido, Luiz Carlos Prestes. Nessa época, afirma Clodomir

Santos de Moraes, “não se formavam lideres camponeses de grande projeção nacional,

regional ou local”. (MORAES, 1969, p. 23).

No entanto, com a volta do partido à ilegalidade e à clandestinidade em 1947,

ocorreu o fechamento das Ligas Camponesas. Estas foram, sobretudo, duramente

reprimidas pelos grandes proprietários de terras e seus jagunços. O governo Dutra7

contabilizou a maior parte de seus assassinatos, prisões e perseguições no setor rural.

Neste curto período de vida, as Ligas não conseguiram criar uma base de massa sólida

que lhes dessem sustentação e autonomia.

Desta forma, até 1954, as Ligas Camponesas ficaram quase apagadas do cenário

7 Eurico Gaspar Dutra foi militar e o décimo sexto presidente do Brasil. Governou o país de 1946 a 1951. Foi o único presidente brasileiro oriundo do Mato Grosso. Dutra nasceu em Cuiabá a 18 de maio de 1883 e faleceu aos 91 anos no Rio de Janeiro, no dia 11 de junho de 1974.

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rural brasileiro. O PCB, atuando sob condições de clandestinidade, concentrou suas

atividades nas cidades e deixou de lado o setor rural.

Sem outra saída, os camponeses tiveram que se reagrupar por eles mesmos. Os

fatos mais importantes que marcaram esse período foram conflitos envolvendo

posseiros e grileiros em várias áreas do país. Geralmente estes conflitos aconteciam de

forma esporádica e em lugares distantes, onde predominava a agricultura de

subsistência. Entre os mais importantes pode-se destacar: Guerrilha de Porecatu, a

revolta de Dona Noca e o Território Livre de Formoso. Em todos é quase nula a

influência dos operários urbanos.

A partir de 1955 há o ressurgimento das Ligas Camponesas. Segundo Azevêdo,

“isto se dá com a criação no Engenho Galiléia - localizado no município de Vitória de

Stº Antão -, da Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco,

SAPPP”. (AZEVÊDO, 1982, p. 59). Essa sociedade ficaria conhecida como a Liga

Camponesa da Galiléia, alusão da imprensa conservadora do estado às antigas Ligas do

Partido Comunista.

Sobre o nascimento da SAPPP, conta Antonio Callado que o aumento do foro

fez com que os foreiros da Galiléia começassem a atrasar o pagamento. José Ayres dos

Prazeres, Zé dos Prazeres, que havia se desligado do PCB teve a idéia de que “eles

deveriam organizar uma sociedade, criar um fundo, para amparar os que adoecessem e

pagar as dívidas dos atrasados”. (CALLADO, 1960, p. 34).

Conforme Callado, esta organização foi bem vista, a princípio, pelo proprietário

do engenho Oscar de Arruda Beltrão, pois assim, organizados, os foreiros não iam mais

atrasar o pagamento. Porém, o filho dele, João Beltrão, que morava no Recife, alertou o

pai dos riscos de uma revolta camponesa e uma ameaça à paz agrária.

Ainda, de acordo com Callado, Beltrão ordena a dissolução da organização,

ameaça os foreiros com represálias policiais, aumento do foro anual e a expulsão em

massa dos foreiros do engenho. “Nesse exato instante, tem início a longa resistência dos

foreiros que se negam, não só a desistir da SAPPP como não aceitam o aumento

arbitrário do foro, nem a ordem sumária para o despejo do proprietário”. (AZEVÊDO,

1982, p. 61).

Os camponeses resistiram. Foram expulsos sem indenização. Mas foram buscar

justiça no Recife e ali encontraram o Deputado Estadual Francisco Julião, do PSB.

Julião deu forma legal à associação do Engenho da Galiléia: uma sociedade para fins

beneficentes, com sede no Recife e várias delegacias municipais e até distritais. Quatro

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anos depois, o movimento “os foreiros” começou, pacificamente, para terem seu direito

à terra e dela tirar trabalho e paz. Ganha sua primeira batalha, as terras da Galiléia são

desapropriadas.

Essa pequena narrativa ilustra como nasceu o movimento social rural que trouxe

para o debate da sociedade as questões do campo de 1954 a 1964 e levantou a bandeira

da reforma agrária no Brasil. Simboliza, nas palavras de Callado, ”o despertar do

lavrador brasileiro, um dos últimos escravos do ocidente”. (CALLADO, 1960, p. 36).

Nestes dez anos de atuação, as Ligas Camponesas desempenharam um papel

fundamental no movimento social agrário brasileiro.

Porém, Azevêdo, chama atenção para o fato que os foreiros da Galiléia não se

organizaram tão espontaneamente assim como se pensa. Havia por detrás outro fator

que “influenciou” nesta tarefa. Ele declara que “os comunistas e militantes das antigas

associações rurais da década de quarenta tentavam rearticular os contatos no campo e

recriar, sob novas denominações, as Ligas Camponesas”. (AZEVÊDO, 1982, p. 59)

No entanto, influenciados ou não, se faz importante destacar que o Engenho da

Galiléia é símbolo desta luta. Porque os foreiros e os moradores foram os primeiros a

iniciar a resistência à expropriação do trabalhador rural e mudar o caráter da luta pela

terra que vinha sendo travada na história do Brasil. Ao buscar apoio na cidade, o

movimento rompe seu isolamento e encontra suporte para sustentar sua luta contra o

latifúndio e o capital. Na cidade é onde o movimento se estrutura e vincula-se a outros

movimentos urbanos e torna sua luta muito mais ampla.

Nota-se que as lutas anteriores descritas neste capítulo eram muito marcadas

pela sua localidade, por seu universo comunitário, onde, por isso, não conseguiam

adquirir clareza, nitidez, e nem assumir contornos de um conflito muito mais amplo e

estruturado. Talvez isto explique esses universos místicos e religiosos adquiridos nesses

movimentos.

Após o Golpe de 64 as Ligas Camponesas chegam ao seu fim. O Governo

Militar manda prender seus principais lideres e reprime violentamente qualquer

articulação no campo brasileiro. Com isso, o movimento fica enfraquecido e

desarticulado. Felizmente, a experiência das Ligas Camponesas não foi apagada e passa

a influenciar diversos grupos que lutam pela terra. Estima-se que durante o regime

militar foram assassinados 1.106 trabalhadores rurais.

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2.8 O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) começa a surgir no país no

fim da década de 70. Foram vários os fatores que contribuíram para o nascimento do

movimento. Dentre eles, os aspectos socioeconômicos das transformações que a

agricultura brasileira sofreu no campo durante esta década. Sobre esse processo de

modernização que o campo brasileiro sofreu, explica Mançano que:

Na década de 1970, os governos militares implantaram um modelo econômico de desenvolvimento agropecuário que visava acelerar a modernização da agricultura com base na grande propriedade, principalmente pela criação de um sistema de créditos e subsídios. Esse sistema financiou a modernização tecnológica para alguns setores da agricultura, de forma que esta passou a depender menos dos recursos naturais e cada vez mais da indústria produtora de insumos. Esse modelo causou profundas transformações no campo. De um lado, aumentou as áreas de cultivo da monocultura da soja, da cana-de-açúcar, da laranja entre outras; intensificou a mecanização da agricultura e aumentou o número de trabalhadores assalariados. De outro lado, agravou ainda mais a situação de toda a agricultura familiar: pequenos proprietários, meeiros, rendeiros, parceiros etc., que continuaram excluídos da política agrícola. Essa política que ficou conhecida como modernização conservadora promoveu o crescimento econômico da agricultura, ao mesmo tempo que concentrou ainda mais a propriedade da terra, expropriando e expulsando mais de 30 milhões de pessoas que migraram para as cidades e para outras regiões brasileiras. (MANÇANO, 1999, p. 39)

Outro que analisa esse fenômeno que ocorreu no campo brasileiro é José

Graziano da Silva que denomina esse desenvolvimento intenso da mecanização da

lavoura brasileira como uma “modernização dolorosa”, por conta desse processo de

modernizar as tecnologias, mas manter a concentração da propriedade e a exclusão

social.

Esse contingente de 30 milhões de pessoas expulsas da terra migrou

principalmente para as regiões de colonização, especialmente Rondônia, Pará e Mato

Grosso, e outra parte da população foi para a cidade, motivada pelo processo de

industrialização. A maioria desses trabalhadores era do sul do país, onde o fenômeno da

introdução da soja agilizou a mecanização da agricultura, e nessas regiões de fronteira

agrícola, esses camponeses não conseguiram se manter a partir da agricultura que

estavam acostumados a cultivar em suas regiões. Assim, explica Stedille:

Os camponeses expulsos pela modernização da agricultura tiveram fechadas essas duas portas de saída: o êxodo para a cidade e para as fronteiras

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agrícolas. Isto obrigou-os a tomar duas decisões: tentar resistir no campo e buscar outras formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam. É essa a base social que gerou o MST. Uma base social disposta a lutar que não aceita nem a colonização nem a ida para a cidade como solução para os seus problemas. Quer permanecer no campo e, sobretudo, na região onde vive. (MANÇANO, p. 17).

O MST nasce no sul do país em função de um conjunto de fatores relacionados

com as condições do desenvolvimento da agricultura nesta região. No entanto, outras

ações dos trabalhadores sem-terra que aconteceram concomitantemente nos estados de

Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, contribuíram para a formação

do Movimento. Dessa forma, podemos perceber que foi um conjunto de ações que

foram surgindo no campo brasileiro e que a partir do momento em que estas lutas

começam a ser organizadas é que nasce o movimento.

Dentre essas ações, o episódio da Fazenda Macali ganhou destaque e é lembrado

como um ponto de partida para o surgimento do movimento. No dia primeiro de agosto

de 1979, os colonos em audiência com o governador reivindicaram o assentamento nas

Glebas Macali e Brilhante. O governador pediu trinta dias de prazo para dar uma

resposta. Foi quando um colono perguntou o que o governo faria se eles ocupassem a

terra. Numa atitude demagógica, o governador respondeu que iria junto para a

ocupação.

No dia 7 de setembro de 1979, 110 famílias de colonos sem-terra acamparam na

gleba Macali, em Ronda Alta no Rio Grande do Sul. Essa foi uma das ocupações que

resultaram no nascimento do MST. Assim que ocuparam a terra os colonos fincaram

uma cruz que representaria tanto o sofrimento quanto a conquista. Nesta cruz, eles

colocaram a bandeira do Brasil, em homenagem ao dia da pátria, uma vez que estavam

lutando para serem cidadãos.

No dia 8, chegou a Brigada Militar e montou acampamento próximo a área. No

dia seguinte, reforçaram o pelotão com um número maior de soldados. Para se proteger,

as mulheres pegaram seus filhos e formaram uma barreira em torno do acampamento.

Com isto, a polícia recuou e passou então às negociações com o governador.

As lideranças que foram negociar com o governador levaram como prova um

recorte de jornal no qual havia a declaração que ele tinha feito 40 dias atrás. O governo

autorizou os colonos a plantarem na área e retirou a Brigada Militar do local. Se

iniciava a primeira experiência de organização do trabalho e da produção na terra

conquistada. A conquista da Macali fortalecia a decisão dos colonos de serem

assentados no próprio estado.

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Outros confrontos e ocupações de terras foram ocorrendo no país nesta época. E,

para organizar estas ações, a Comissão Pastoral da Terra8 (CPT) teve um papel

fundamental na articulação de um movimento único. A CPT é um organismo pastoral

da Igreja Católica, vinculado à Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),

fundada em 1975, em Goiânia (GO). Ela reorganizou estas lutas que aconteciam

principalmente no Norte e Centro-Oeste do país, devido ao alto grau de violência

cometido contra os posseiros dessas regiões. Depois estendeu suas atividades para quase

todos os estados do Brasil. No Sul, a CPT desenvolveu um trabalho ecumênico e, com

isto, aglutinou o setor luterano que defendia os trabalhos sem-terra nos estados do

Paraná e Santa Catarina. Se não fosse o trabalho desenvolvido pela CPT, a luta pela

terra teria se fragmentado em vários movimentos e não teria este caráter nacional que o

MST tem hoje.

Durante o regime militar, as Comunidades Eclesiais de Base foram os espaços de socialização política que permitiram a recriação da organização camponesa. A Igreja Católica vinha passando por profundas mudanças e era cada vez maior o envolvimento de religiosos com a realidade dos trabalhadores. Essa postura era resultado de decisões tomadas na Igreja após o Concílio Vaticano II (1965), e posteriormente a II Conferência Geral do Episcopado Latino - Americano em Medellín, Colômbia (1968) e a III Conferência em Puebla, México (1979). Por meio desse movimento de renovação da Igreja pela Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base tornaram-se espaços de reflexão e aprendizado de como transformar a realidade, por intermédio da luta pela terra, recusando a condição imposta pela política da modernização conservadora. (MANÇANO, p. 39-40).

2.8.1 Congressos que marcam a história

Oficialmente, o MST nasce em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel (PR),

durante a realização do I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra. Sob a palavra de ordem: “Terra para quem nela trabalha”. Cerca de 92

representantes de 13 estados decidiram fundar um movimento camponês nacional com

base em três objetivos principais: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por

mudanças sociais no país. (MST: luta e conquistas, 2010).

8 A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu em junho de 1975, durante o Encontro da Pastoral da Amazônia, realizado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Goiânia (GO). Fundada em plena ditadura militar, como resposta à grave situação dos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia, a CPT teve um importante papel. Ajudou a defender os trabalhadores do campo da crueldade deste sistema de “modernização conservadora”, implantado pelo governo militar. Ela nasceu ligada à Igreja Católica porque a repressão estava atingindo muitos agentes pastorais e lideranças populares, e também porque a igreja possuía uma certa influência política e cultural. (www.cptnacional.org.br). Acessado em 20/07/2010.

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Na ocasião, foram definidos os princípios, as formas de organização, as

reivindicações, estruturas e formas de luta e o nome do movimento. Como a imprensa

da época já os chamava de Movimento dos Sem Terra, aprovaram por unanimidade o

nome de Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Este primeiro Encontro Nacional é

fruto de várias reuniões regionais preparatórias que ocorreram entre 1982 e 1983. A

partir deste encontro, perceberam a necessidade de fazer o primeiro Congresso

Nacional.

Assim, em janeiro de 1985, em Curitiba (PR), foi realizado o I Congresso

Nacional, com a participação de 1.600 delegados. A palavra de ordem que pautou o

evento foi “Ocupação é a única solução”. Segundo Stedile (MANÇANO, 1999, p. 52),

esse congresso definiu que o movimento não iria fazer parte da Nova República9 e que

somente com a ocupação é que se poderia fazer a reforma agrária. Após o congresso

começaram a surgir ocupações em todo o país.

O II Congresso Nacional do MST ocorreu em 1990, em Brasília (DF), sob o

governo do presidente Fernando Collor de Mello. Collor foi o pior presidente para os

movimentos de luta pela terra. Neste período, poucos assentamentos foram criados e a

polícia federal tentou reprimir o movimento, invadindo suas secretarias estaduais,

instalando processos judiciais e encaminhando pedidos de prisão contra os integrantes

do movimento. Este congresso manteve a palavra de ordem do Encontro Nacional de

1989, “Ocupar, resistir e produzir”, porém com ênfase maior na resistência.

“Percebemos que a luta de massas iria ser mais dura, que seria o período de construir

organicamente melhor os assentamentos”, explica Stedile. (MANÇADO, 1999, p. 54).

Realizado em 1995, em Brasília, o III Congresso Nacional marcou a luta contra

o neoliberalismo do governo Fernando Henrique Cardoso. A palavra de ordem era:

“Reforma Agrária é uma luta de todos”. Esse debate levou à conclusão que para realizar

a reforma agrária deveriam haver mudanças no modelo econômico e que para isto, toda

a sociedade deveria abraçar a luta dos sem-terra, dos trabalhadores pobres do campo.

Foi um congresso massivo, com a participação de 5.000 delegados. Isto trouxe um

aprendizado ao movimento tal que, a partir de 1996, todos os estados passaram a fazer

encontros de massas, sempre com participação de mais de mil pessoas.

9 A Nova República é uma designação que a imprensa da época dava ao governo de Tancredo Neves/José Sarney, que substituiu o Regime Militar em 1985 e governou o país até 1989. Algumas forças políticas de esquerda apoiavam Tancredo Neves e acreditavam que a reforma agrária finalmente iria sair. Afinal, o lema do congresso era: “Sem Reforma Agrária não há solução”; e o presidente Tancredo Neves havia sido eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. Porém, os sem-terra não se iludiram com isto e decidiram lutar pela terra, a fim de impulsionar a Reforma Agrária.

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O IV Congresso Nacional do MST ocorrido em Brasília, 2000, teve como

palavra de ordem: “Reforma Agrária: por um Brasil sem latifúndio“. Conforme informa

o site do MST, alguns desafios foram apresentados para a luta dos sem terra. Como o

enfrentamento com o modelo neoliberal, que começou a ser implantado no campo;

fortalecimento e ampliação da política de relações internacionais do movimento; as

articulações, os esforços organizativos e a elaboração teórica, junto com outras forças

sociais, em torno de um projeto popular de desenvolvimento para o país; e o

enfrentamento com o projeto das elites para a agricultura.

E para finalizar, no mais recente, o V Congresso Nacional, realizado em

Brasília, em 2005, participaram mais de 15 mil pessoas. Teve como palavra de ordem:

“Reforma Agrária, por Justiça Social e Soberania Popular”. Neste congresso foi

aprovado o novo programa de Reforma Agrária defendido pelo MST, após dois anos de

debates e estudos nos assentamentos e acampamentos.

Nesses 26 anos de existência do movimento, foram realizados trezes encontros e

cinco congressos nacionais. Os congressos nacionais são organizados a cada cinco anos

e os encontros de dois em dois anos. Nos encontros nacionais são avaliadas e

atualizadas as definições deliberadas no Congresso. É no Congresso que são definidas

as linhas políticas do Movimento para o próximo período e avaliado o período anterior.

Estas definições são sintetizadas nas palavras de ordem de cada Congresso e que se

estendem para o período seguinte. As palavras de ordem de cada congresso retratam

períodos históricos do MST.

2.8.2 Estrutura

De acordo com o site do movimento (mst.org.br), ele está organizado em 24

estados nas cinco regiões do país. São cerca de 350 mil famílias assentadas. O site

informa que mesmo depois de assentadas, estas famílias permanecem organizadas no

MST. “Os latifúndios desapropriados para assentamentos normalmente possuem poucas benfeitorias e infra-estrutura, como saneamento, energia elétrica, acesso à cultura e lazer. Por isso, as famílias assentadas seguem organizadas e realizam novas lutas para conquistarem estes direitos básicos“. (mst.org.br)

O movimento se organiza através de uma estrutura participativa e democrática

para a tomada de decisões. Mesmo nos assentamentos e acampamentos, as famílias se

organizam em núcleos que discutem a produção, a escola, as necessidades de cada área.

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Cada assentamento e acampamento têm seus coordenadores e coordenadoras, sempre

em dupla de um homem e uma mulher. Este tipo de estrutura se repete nas instâncias

regionais, estaduais e nacionais. Em todas as assembléias todos têm direito a voto, tanto

homens, mulheres, adultos ou jovens.

Além dos Congressos, Encontros e Coordenações, as famílias também se

organizam por setores para desenvolverem tarefas específicas. Setores como Produção,

Saúde, Gênero, Comunicação, Educação, Juventude, Finanças, Direitos Humanos,

Relações Internacionais, entre outros, são organizados desde o nível local até

nacionalmente, de acordo com a necessidade e a demanda de cada assentamento,

acampamento ou estado.

Além disso, fazem parte de sua organização associações de produção,

cooperativas de produção agropecuária, cooperativas de prestação de serviços,

cooperativas de crédito, pequenas e médias indústrias na linha de frutas, hortaliças, leite

e derivados, grãos, café e doces.

A terra não é a única preocupação do Movimento. Além das ocupações de terra

o MST luta pelo acesso à educação pública de qualidade no campo. São cerca de duas

mil escolas públicas nos assentamentos e acampamentos do MST, atendendo 160 mil

crianças e adolescentes (estimativa feita a partir dos dados da PNERA, 2004). Mais de

50 mil pessoas já aprenderam a ler e escrever no MST. O movimento tem ainda

parcerias com pelo menos 50 Instituições de Ensino, entre Universidades e Escolas

Agrotécnicas.

A comunicação é outra preocupação do movimento. O MST possui um jornal e

uma revista, além de uma assessoria de imprensa própria. O Jornal dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra é uma publicação mensal voltada, principalmente, para seus

militantes. Surgiu antes da fundação oficial do MST e funciona como um instrumento

de formação e informação para o Movimento e para a sociedade. O jornal conta com

uma tiragem de 20 mil exemplares. Já a Revista Sem Terra é uma publicação bimestral

do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ela existe há treze anos e contribui

para o debate em torno de um Projeto Popular para o Brasil.

O MST possui também um site na internet, como dissemos anteriormente,

(http://www.mst.org.br), que é atualizado diariamente com matérias próprias e de outros

veículos de comunicação que veiculam material sobre o MST, além de artigos de

integrantes do Movimento ou de personalidades que de alguma forma apoiam a luta

pela terra.

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Os assentamentos não chegam a ter um veículo de comunicação próprio. Em

alguns, por enquanto ainda muito poucos, existem rádios comunitárias. No entanto,

tanto o jornal Sem Terra quanto a Revista Sem Terra e os boletins informativos

produzidos pela comunicação do movimento são distribuídos para as suas secretarias

estaduais e regionais. Junto com este material também é transmitido o jornal Brasil de

Fato (este não é produzido pelo MST, mas um jornal de esquerda, de simpatizantes do

movimento que cobre a luta agrária entre outras lutas populares e tem muitos dos

militantes do movimento em seu conselho editorial).

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68

III

O ASSENTAMENTO DORCELINA FOLADOR

Crédito: André Dias

Localização da área de estudo.

Em “A formação dos assentamentos rurais no Brasil: processos sociais e

políticas públicas”, de Leonilde Servolo de Medeiros e Sérgio Leite (organizadores),

mostram que a heterogeneidade é marca presente na formação dos assentamentos rurais

no Brasil e constitui um verdadeiro indicativo da diversidade na questão agrária entre

atores e propostas múltiplas envolvidas. A obra mostra que há assentamentos que são

produtos de conflitos abertos, outros que resultaram em desapropriações ou compras de

terra, ou na utilização de imóveis públicos para fixar grupos demandantes e aliviar

tensões sociais existentes no campo. Normalmente, os assentamentos são criados para

responder a essas pressões e são marcados pela ausência de um planejamento dos

órgãos responsáveis que possa oferecer o mínimo de infra-estrutura básica, como

construção ou melhoria de estradas, saúde, educação, condições para a produção e o

escoamento.

Podemos observar que muitos assentamentos no país encontram-se dispersos

espacialmente e enfrentam situações bastante difíceis por conta das condições de sua

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instalação e falta de apoio. Isso reflete sobre as condições de produção e formas de

sociabilidade e estabilidade dos assentados. Para citarmos dois exemplos expostos no

livro que são emblemáticos para ilustrar isso, podemos destacar o caso de Sergipe, onde

mais da metade dos assentamentos está localizada no semi-árido, que evidentemente

traz problemas para a produção do assentamento, e em Mato Grosso, onde os

assentamentos são marcados pelo isolamento, que dificulta o acesso a mercados e à

infra-estrutura urbana.

Percebe-se assim como é grande a diversidade de situações que envolvem os

assentamentos da reforma agrária. Bastante diferenciadas também são as forças sociais

que se mobilizam para a criação dos assentamentos. Nelas incluem-se antigas

lideranças, originárias das lutas pela terra nas décadas de 1950, 1960, tais como a Igreja,

os sindicatos, as organizações particulares de pessoas que se juntam em ações

independentes para conquistar a terra e os movimentos sociais de luta pela terra. Estes

últimos contabilizam hoje no país cerca de 35 movimentos diferentes envolvidos na

causa, sendo que o de maior destaque na mídia e no imaginário social dos brasileiros é,

sem dúvida alguma, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que se

configura como uma espécie de imagem predominante em toda a movimentação social

da luta pela terra.

Esta pesquisa concentra-se na construção de identidade de um assentamento que

traz a bandeira do MST, o Dorcelina Folador, no município de Várzea Grande. Em

Mato Grosso, o MST é responsável por cerca de quatro mil famílias assentadas. São

poucos os assentamentos que carregam a sua marca. A outra fatia, que corresponde à

maioria das famílias assentadas no Estado, fica por conta do INCRA e ações

independentes, que contabilizam cerca de 89 mil famílias. Isso se dá pelo fato de o MST

ser relativamente novo em Mato Grosso (desde 1995) e ter dificuldades de organização

devido às dimensões geográficas e à diversidade na formação do estado. Já o INCRA

atua em Mato Grosso desde a década de 1970.

A ação voltada para o assentamento de trabalhadores rurais tem em Mato Grosso

o INCRA como seu principal agente executor e também a participação do Instituto de

Terras de Mato Grosso (Intermat). Como em outros estados da federação, os

movimentos de luta pela terra têm se intensificado e exercem intensa pressão para a

ocupação de novas áreas. De acordo com dados do INCRA, Mato Grosso possuí

atualmente cerca de 150 glebas - lotes voltados à produção - destinadas para

assentamento rural e regularização fundiária. O total da área dessas glebas é estimado

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aproximadamente em 4.370.000 ha. Quanto ao número de famílias beneficiadas por

essas ações, é estimado um total de aproximadamente 34.000. As áreas destinadas a

assentamento e regularização fundiária estão espalhadas por todo o território do Estado

e atingem quase a metade de seus municípios.

Apenas para pontuar alguns elementos sobre a formação do MST no Estado de

Mato Grosso, a primeira organização de trabalhadores rurais em torno da questão terra

aparece em 1986, no município de Jaciara. Nesta época, os sem-terra caminharam até

Cuiabá para negociar com o Estado a desapropriação de áreas para fins de reforma

agrária. Como resultado dessa luta há a criação do assentamento Novo México, no

município de Colíder, e abrem-se diálogos e reivindicações junto às instituições

públicas. “Esta foi uma das primeiras organizações de trabalhadores rurais que

apresentou como pauta de reivindicação uma política de reforma agrária para Mato

Grosso“. (Et Al FERREIRA; FERNÁNDES; DA SILVA, apud: DE MEDEIROS;

LEITE, 1999, p. 225)

De acordo com esses pesquisadores, além dessas vitórias pontuais, frutos dessa

primeira organização de trabalhadores rurais, começam a surgir no Estado novas lutas e

a ter visibilidade os problemas sociais no campo. Porém, essas lutas ainda eram muito

desarticuladas. Apenas em 1995, quase dez anos após os “sem-terra de Jaciara” é que o

MST começou a organizar a luta pela terra em Mato Grosso, articulando os

trabalhadores rurais primeiramente e principalmente nas regiões sul e sudeste do estado. O MST considera que nestas regiões concentra-se o maior contingente de sem-terra do estado. São áreas de colonização antiga, onde a estrutura fundiária encontra-se mais consolidada, onde as grandes empresas produtoras de soja, açúcar e álcool e pecuária estão estabelecidas. Em suma, onde as possibilidades de organização das posses estão mais reduzidas. (Et Al FERREIRA; FERNÁNDES; DA SILVA, apud: DE MEDEIROS; LEITE, 1999, p. 225-226)

Ainda hoje no Estado, o MST tem dificuldades de organização, como se pode

observar no depoimento de Antonio Carneiro de Menezes, coordenador estadual do MST:

Mato Grosso é um estado novo. Os assentamentos são formados com grande diversidade devido ao fluxo de migrações existentes aqui. Na década de 70, a produção do serrado não tinha mão-de-obra, daí trouxe o camponês. Foram gente vindo de todos os estados envolvidos com o processo de modernização da agricultura. Na região da baixada cuiabana, por exemplo, é composta de muitos índios e negros, e lá não ocorre enfrentamento, mobilizações. Tudo isso dificulta a mobilização do movimento. (CARNEIRO, 19.08.2009)

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Carneiro explica que o papel do MST é mobilizar os trabalhadores expulsos da

terra para realizar ocupações em terras improdutivas10, a fim de pressionar o governo a

desapropriar a terra para o exercício da reforma agrária. Os trabalhadores que participam

do processo de luta são contemplados com a terra após o INCRA regularizá-la.

Os assentamentos do MST, que participaram da luta pela terra, você percebe que são mais organizados politicamente, os assentados têm uma visão mais crítica, possuem memória de luta. Diferentemente dos que estão sob responsabilidade do INCRA e ações independentes que só querem a terra mesmo, não ligam para os problemas de luta pela terra, não têm enfrentamentos. (CARNEIRO 19.08.2009)

O Dorcelina Folador é um desses assentamentos em que seus moradores

participaram do processo de luta pela terra. Boa parte das famílias nele assentadas estão

lá desde 1997. O assentamento só foi regularizado pelo INCRA em 2002. Sendo assim,

de acordo com a explicação de Carneiro, essas pessoas trazem consigo uma memória de

luta pela terra, um elemento constituinte do sentimento de identidade.

Memórias da época em que se tornaram sem-terra, ou seja, que abandonaram

suas vidas e mergulharam no sonho de ter sua terra, seu lugar para morar, criar os filhos,

e ter uma vida digna. Maria Aparecida de Moraes Silva (2004) conta que é na

construção do acampamento - período anterior à regularização da terra para vir a ser um

assentamento - que começa a se definir a identidade social do sem-terra.

A chegada ao futuro acampamento é feita coletivamente. Centenas, às vezes milhares de pessoas - homens, mulheres e crianças - iniciam então a construção do barraquinho, do ranchinho, das barracas de lona preta. A partir desse momento começa a emergir a construção do nós, do coletivo, da identidade social do sem-terra permeada pela solidariedade, ajuda mútua e outros valores. (MORAES SILVA, 2004, p. 81)

É no acampamento o momento em que o MST e sua ideologia se fazem mais

presente. A força do movimento transforma um conjunto disperso de sujeitos e cria

neles um sentimento de unidade na luta pela terra, sentimentos que vão se formando e

10 Terras improdutivas são aquelas que não são utilizadas para o plantio e, portanto, impedem que a população pobre esteja ali trabalhando, na medida em que essas terras poderiam ser utilizadas para gerar lucro com o cultivo de uma série de plantas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) estima que existem no país cerca de 140 milhões de hectares de terras improdutivas. Segundo a Constituição Federal de 1988, as terras improdutivas que não cumprem a função social podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária, sendo expressamente vedada a desapropriação de propriedades produtivas.

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solidificando em torno de um ideal comum, da construção do nós, do coletivo. É ali que

esses sujeitos abandonam tudo em busca do sonho da terra e tornam-se sem-terra.

Na construção do acampamento tudo é organizado e controlado. Militantes do

MST participam e transmitem suas experiências de outros acampamentos. A

solidariedade, a ajuda mútua, valores deixados de lado na cultura contemporânea

aparecem, e a área ocupada vai se transformando em um espaço social com a infra-

estrutura necessária para o funcionamento da vida coletiva. O trabalho é divido em

equipes e cada qual fica responsável pela execução de uma tarefa. As famílias ali

presentes participam de reuniões e assembléias constantemente, onde são informados da

situação do processo do assentamento. Tudo é decidido coletivamente. Um elemento

bastante importante para a construção do nós utilizado pelo MST é a mística. Através

dela homens e mulheres passam a acreditar nos seus sonhos, em ter esperanças,

acreditar na vitória.

A mística é um sentimento comum, traduzido em cantos, símbolos, fotos etc. fatos recentes são sempre lembrados, como a morte de militantes, prisões, massacres, como o de Eldorado de Carajás (PA). Desta sorte, os ingredientes que a compõem são religiosos, políticos, ideológicos, históricos e morais. É uma espécie de mistério que une os vivos e os mortos, no qual os primeiros são fortalecidos pelo exemplo dos segundos. A mística é a aura da perseverança e da força, necessárias à resistência. (MORAES SILVA, 2004, p. 83)

Os marcos dessa época são gravados na memória de cada um desses sujeitos e

cria um sentimento de identidade entre eles, de pertencimento comum. Para os

assentados, somente é considerado sem-terra quem participou desse momento do

acampamento. Adiante vamos demonstrar as dificuldades pelas quais passam os

“chegantes” (pessoas que chegam no assentamento mediante a compra da terra,

portanto, não participaram do período de acampamento) para serem integrados ao grupo

e serem vistos pelos próprios companheiros/vizinhos como sendo um sem-terra. Antes,

no entanto, vamos continuar com a explanação sobre a formação do assentamento.

3.1 A formação do assentamento

Localizado na rodovia BR 163, a 18 km do município de Várzea Grande e a 35

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onópolis.

km de Cuiabá, o assentamento Dorcelina Folador iniciou a luta pela terra no ano de

1997, porém, a vinda definitiva das famílias se deu apenas no início do ano de 2002.

Como o fazendeiro tinha interesse em vender suas terras para o INCRA, no

Dorcelina Folador não ocorreram conflitos para aquisição de posses. As famílias,

integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), apenas ocuparam a

área da antiga fazenda Umuarama, à espera da desapropriação. Foram cerca de cinco

anos acampados na fazenda até sair a regularização das terras.

Em maio de 2002, o INCRA regularizou a área de 878 hectares, sendo que

aproximadamente 220 hectares pertencem à reserva coletiva. O assentamento recebeu o

nome de Dorcelina Folador11, em homenagem a uma militante do MST assassinada

em Mundo Novo (MS). No local foram instaladas 33 famílias, muitas dessas são

migrantes de diversas regiões do país, que vieram para o Mato Grosso atrás do sonho da

conquista da terra e que acabaram se concentrando primeiramente nas periferias das

cidades de Cuiabá, Várzea Grande, e Rond

Após a regularização das terras, ocorreu a distribuição de lotes, mediante sorteio,

sendo que cada assentado ficou com um sítio de 25 hectares de terra. Embora o tamanho

dos lotes seja igual, as localizações eram diferentes. No assentamento há sítios que na

divisão foram contemplados com uma porção de terra melhor para o plantio, enquanto

outros lotes ficaram com solo mais pedregoso. No geral, as terras são ácidas e

pedregosas e para o plantio precisam de muito calcário e adubo.

11 Dorcelina de Oliveira Folador é considerada uma mártir da luta do povo por libertação no Brasil. Deficiente física, sem-terra, educadora, poeta e artista plástica, teve sua vida toda dedicada à militância. Cresceu na luta dentro do MST e chegou a ser prefeita pelo PT em Mundo Novo, Mato Grosso do Sul. Nasceu no dia 27 de julho de 1963, em Guaporema, Paraná, e foi assassinada com seis tiros no dia 30 de outubro de 1999, aos 36 anos, quando ainda era prefeita, em Mundo Novo.

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Crédito: Eduardo Medeiros

Fig.1: Foto do solo do assentamento Dorcelina Folador, em Várzea Grande-MT.

Lembram os assentados que os lotes foram divididos em forma de sorteio, sendo

que cada família adquiriu em média cerca de 24 a 26 hectares de terra. O parcelamento

da terra foi feito em forma de linhão. Ou seja, o parcelamento da área em linha reta,

onde as moradias ficam distantes uma das outras. Embora cada família tenha

conquistado seu lote, elas não possuem o título de suas propriedades.

Em relação às áreas comunitárias, o Dorcelina Folador tem uma única área

social que equivale a um lote - 20 hectares. Nesta área está construído o Centro de

Formação Olga Benário, onde são realizadas diversas atividades de formação, com uma

área de lazer que é utilizada aos finais de semanas pela juventude que ainda vive no

assentamento.

Após ocuparem seus lotes, as famílias iniciaram uma nova etapa na luta pela

terra, em grande parte muito mais difícil, que é a luta para continuar na terra. Nessa luta

entram no cotidiano dessas famílias outras necessidades como a construção de moradia,

estradas, água, energia elétrica, escola, postos de saúde e produção do assentamento.

De uma hora para outra, eles deixam de ser sem terra e passam a ter a terra e

com ela a responsabilidade de transformar o lote conquistado em um lar, o

assentamento em uma comunidade, e ter que produzir para poder pagar o banco e não

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correr o risco de voltar para as margens das rodovias. Por outro lado, esses assentados

carregam ainda consigo a identidade Sem Terra, e se identificam na luta de seus

companheiros que ainda não conquistaram seu pedaço de chão.

O início da construção das moradias é um momento de transformação do lote

recebido pela reforma agrária em um lar, em um sítio, um lugar para morar, trabalhar,

construir uma nova vida. Para a construção das casas, o Governo Federal disponibilizou

junto ao INCRA um crédito no valor de R$ 2,000,00 para cada família. No

assentamento, todas as casas foram construídas de alvenaria. Mas este recurso foi pouco

e possibilitou apenas a construção das moradias. Para a construção de cercas e apoio

para a produção os assentados não adquiriram recursos.

No Dorcelina Folador, alguns assentados usaram este dinheiro recebido para a

construção da moradia, da cerca, e compra de alguns animais para criação. Outras

famílias venderam suas casas que tinham na cidade para construir seu novo lugar no

campo. Da fase do acampamento até a fase da construção do assentamento muitas

coisas mudam. Nesta fase o MST sai de cena e os assentados embarcam em uma nova

luta, muitas vezes mais difícil: a luta para ficar na terra conquistada.

Crédito: Eduardo Medeiros

Fig.2: Foto da entrada do sítio Bom Jesus, no assentamento Dorcelina Folador, Várzea Grande-MT.

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terra agora passa a ser vista como meio de produção, como mercadoria, como negócio.

rnos, compra de to bancário

oferecidas pelo governo. (MORAES SILVA, 2004, p. 105)

ram. A dificuldade com o solo e o clima prejudicou muito o

plantio

é o Cerrado e aproximadamente

0%

Maria Aparecida de Moraes Silva (2004) destaca que a sociabilidade,

cooperação e ajuda mútua construída na fase do acampamento muitas vezes cede lugar

para o individualismo da cultura contemporânea e pela não cooperação entre os

assentados a partir do momento em que conquistam a terra. Segundo Moraes Silva

(2004) isto ocorre por conta da imposição dos assentados na economia mercantil, o que

gera uma mudança no modo de representação da terra no imaginário dos assentados. A

De um momento para o outro, os sem-terra são obrigados a fazer parte do circuito mercantil, caracterizado pelo chamado processo de industrialização da agricultura, que envolve a aplicação de insumos modemáquinas e, necessariamente, a inserção nas linhas de crédi

No começo do assentamento, a maioria das famílias tentou o cultivo de pomares,

hortaliças, cana-de-açúcar, o plantio de mandioca, a pastagem do gado; porém, nem

todos os lotes prospera

dos assentados.

De acordo com o Diagnóstico Rural Participativo, realizado a partir de

informações de diversas famílias do Dorcelina Folador, no geral o solo do assentamento

é muito desgastado, com forte presença de acidez. Esta é uma característica do solo em

toda a região da baixada cuiabana12, onde a vegetação

5 já foi destruído para desenvolver a agropecuária. Crédito: Eduardo Medeiros

Fig.3: terra de baixa fertilidade no assentamento Dorcelina Folador, Várzea Grande-MT. Foto de

12 A Baixada Cuiabana é uma região do estado de Mato Grosso que abrange uma área de 85.369,70 Km² e é composto por 14 municípios: Acorizal, Barão de Melgaço, Campo Verde, Chapada dos Guimarães, Cuiabá, Jangada, Nobres, Nossa Senhora do Livramento, Nova Brasilândia, Planalto da Serra, Poconé, Rosário Oeste, Santo Antônio do Leverger e Várzea Grande. Estes municípios margeiam os rios Cuiabá e Paraguai, juntamente com seus afluentes e efluentes e tem como principal pólo de desenvolvimento a atual capital do estado, Cuiabá.

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iginalmente são solos considerados quimicamente de média

a baixa

natural. A

incorpo

dá-los com a

aplicaç

empre

iginalmente são solos considerados quimicamente de média

a baixa

natural. A

incorpo

dá-los com a

aplicaç

empre

De modo geral, informa o DRP, este tipo de solo é bastante compactado e, em

boa parte, ocorre relevo ondulado, onde as limitações são fortes em decorrência da

possibilidade de erosão. Orilidade de erosão. Or

fertilidade natural.

No entanto, pode ser usado para agricultura, só que neste caso é necessário fazer

uma correção de acidez. O problema da baixa fertilidade destes solos estaria em grande

parte resolvido com a aplicação de calcário para suprimento com cálcio e magnésio, ao

lado de adubações potássicas e fosfatadas, que melhorariam a fertilidade

fertilidade natural.

No entanto, pode ser usado para agricultura, só que neste caso é necessário fazer

uma correção de acidez. O problema da baixa fertilidade destes solos estaria em grande

parte resolvido com a aplicação de calcário para suprimento com cálcio e magnésio, ao

lado de adubações potássicas e fosfatadas, que melhorariam a fertilidade

ração de matéria orgânica aos solos também traz grandes benefícios.

Esta deficiência no solo dificulta a produção de alimentos. Muitos sítios não

produzem nada e as famílias estão tendo que trabalhar na cidade ou em outras

propriedades rurais na região para tirarem seu sustento. Nunca houve, segundo os

assentados, algum esforço por parte das instituições do Estado para aju

ração de matéria orgânica aos solos também traz grandes benefícios.

Esta deficiência no solo dificulta a produção de alimentos. Muitos sítios não

produzem nada e as famílias estão tendo que trabalhar na cidade ou em outras

propriedades rurais na região para tirarem seu sustento. Nunca houve, segundo os

assentados, algum esforço por parte das instituições do Estado para aju

ão de insumos no solo ou outras alternativas na área de produção.

A presença de atividades não-agrícolas no meio rural são fenômenos em curso

em vários países do mundo. A diminuição do peso das atividades agrícolas no emprego

e na composição da renda das pessoas e famílias residentes no meio rural dá lugar aos

ão de insumos no solo ou outras alternativas na área de produção.

A presença de atividades não-agrícolas no meio rural são fenômenos em curso

em vários países do mundo. A diminuição do peso das atividades agrícolas no emprego

e na composição da renda das pessoas e famílias residentes no meio rural dá lugar aos

gos múltiplos e fontes de rendas diversificadas e são chamados de pluriatividade. gos múltiplos e fontes de rendas diversificadas e são chamados de pluriatividade. Crédito: Eduardo Medeiros

Fig.4: Foto de poço artesiano no assentamento Dorcelina Forlador, Várzea Grande-MT.

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ade foi identificado em todas as famílias que

foram e

áximas estão por volta de 25º a 30ºC

estando

emanda de água das famílias

orqu

de nem as

g.5: Represa no assentamento Dorcelina Forlador, Várzea Grande-MT.

As famílias pluriativas são aquelas em que um ou mais membros do grupo

doméstico exercem alguma atividade extra-agrícola ou possui uma fonte de renda fora

da agricultura. Este fenômeno de plurativid

ntrevistadas no Dorcelina Folador.

Quanto ao clima, classifica-se como tropical úmido, com inverno seco entre os

meses de maio a outubro e verão chuvoso entre os meses de novembro a abril. A

precipitação pluviométrica média anual é de 2.000mm, com temperatura média

oscilando entre 18ºC a 26ºC e as médias das m

a umidade relativa do ar acima de 80%.

De acordo com a observação do local, todos os lotes do assentamento possuem

energia elétrica. A água utilizada no assentamento provém de represas e poços semi-

artesianos construídos com recursos das próprias famílias. Nem todas as famílias têm

acesso à água. O assentamento apresenta represas que servem de bebedouro para os

animais, existindo ainda um córrego muito pequeno na parte oeste do assentamento e

outra nascente na parte sudeste, o que não atende a d

p e eles praticamente secam no período de estiagem.

Crédito: Eduardo Medeiros

Fi

Os assentados reclamam que faz quatro anos que as famílias não têm assistência

técnica. A contribuição da prefeitura é inexistente. O prefeito não aten

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necessi

scolar

da pref

vindo a

o se deve em

parte p

s as famílias têm em casa rádio, geladeira, antena

parabó

grande potencial para comercialização da produção por

estar à margem da rodovia 163.

dades básicas, como rede de água, posto de saúde, escola e estradas.

Assim, os assentados vão a Várzea Grande quando precisam de assistência

médica, fazer compras ou outros serviços. Como nem todos possuem veículos próprios,

há um ônibus que faz a linha três vezes por semana e vai até Várzea Grande. Existe

ainda uma Kombi que leva os estudantes até a rodovia, onde entram no ônibus e

eitura e vão até a escola que está localizada em um assentamento próximo.

Este foi outro fenômeno detectado na pesquisa que aponta o caráter de hibridez

no assentamento. Além do fenômeno de pluratividade que complementa a renda das

famílias com atividades não agrícolas, a localização do assentamento próximo a centros

urbanos faz com que os assentados não percam o acesso à infra-estrutura da cidade. Na

literatura, o conceito de rururbano é aplicado a assentamentos próximos a centros

urbanos e poderia ser utilizado para descrever o Dorcelina Folador, já que boa parte dos

assentados trabalha e utiliza a infra-estrutura da cidade de Várzea Grande, e acabam

os seus sítios apenas aos finais de semana ou os utilizam somente como moradia.

Após dez anos de existência, o assentamento ainda não possui trator coletivo

nem individual. Quando precisam, pagam em média R$ 70 a hora. A participação das

pessoas em reuniões ou qualquer outra atividade organizativa é bastante complicada. Já

houve diversas tentativas por parte dos assentados de organizar os núcleos de base, para

que as famílias se juntassem em torno de questões reivindicatórias, mas todas as

tentativas feitas por parte das próprias famílias não tiveram sucesso. Iss

or conta da dispersão das famílias, já que boa parte vive na cidade.

No assentamento, toda

lica, televisão e celular.

Percebe-se com as exposições feitas até aqui que o assentamento Dorcelina

Folador enfrenta muitas dificuldades, como baixa fertilidade do solo, limites de ordem

orgânica, de participação e inserção das famílias nas atividades. Por outro lado,

apresenta muitas possibilidades, por ser um assentamento com localização próxima de

duas grandes cidades, Várzea Grande e Cuiabá, o que o difere de boa parte dos

assentamentos do Estado de Mato Grosso, que normalmente são marcados pelo

isolamento. Existe também um

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.2 As experiências

guiu o caminho do individualismo, elemento

onstante na cultura contemporânea.

o

fazer o seu. (Meire Terezinha Pereira de Carvalho, 24 de outubro de 2009)

o banco e

continu

assentados apontam que o INCRA

3

O discurso da assentada Meire Terezinha Pereira de Carvalho, de 35 anos,

casada, moradora do primeiro sítio do assentamento, revela as dificuldades encontradas

pelos assentados e como se configurou a imagem do Dorcelina Folador em um grupo

disperso, nas palavras dela, que se

c

Eu sempre morei no campo. Aí uma época fomos tentar a sorte na cidade, mas não deu certo. Não acostumava com a vida na cidade. Meu marido que também sempre trabalhou em roça não conseguia emprego na cidade. Aí através de um amigo do meu marido a gente conheceu o MST e começamos a participar das reuniões. Aí a gente ficou sete anos acampados. Acampamos na Fazenda Girassol, em Serra da Petrolina, em Pedra Preta e em Alto Garça, aí por último ficamos um ano e meio em Jaciara e três anos aqui no Dorcelina, quando ainda era pré-assentamento. Quando regularizou a área nós vendemos nossa casa que ficava na periferia de Várzea Grande e com o dinheiro construímos aqui. Mas a vida aqui é muito difícil. Já tentamos plantar pepino, maxixe, criar galinha, carneiro e até agora nada deu certo. A gente tem uma pequena criação e plantação que é pro nosso consumo mesmo. Agora renda mesmo com o que a gente produz é difícil. Pra gente continuar vivendo no sítio meu marido precisa trabalhar fora, em outros sítios da região, pra ajudar compor a renda e pagar ao banco. O assentamento Dorcelina formou um grupo é disperso. Não tem conjunto. Aqui é assim, são pessoas de mais de idade que estão aqui só para morar na terra. Não pensam em um trabalho em conjunto. Vivendo e apanhando. Não deram certo os projetos coletivos. Cada um fez o que quis, como quis. O último projeto foi o das flores tropicais que começou com 27 famílias envolvidas e agora só tem 5. A coletividade e o trabalho mútuo ficou mesmo só quando era acampamento, após cada um ter sua terra tudo isso acabou e cada um foi

As palavras de Meire não são muito diferentes das de outras famílias ouvidas

pela pesquisa de campo. Das 33 famílias que receberam o lote, atualmente poucas

vivem no Dorcelina Folador, fato que dificultou a entrevista de todos os assentados. No

local se encontram muitas casas fechadas, por conta das famílias estarem trabalhando na

cidade ou em sítios da vizinhança para conseguirem renda para pagar

arem na terra, já que da terra recebida não conseguem gerar lucros.

Cinco famílias já venderam suas terras para “chegantes” e outras que ainda

alimentam o sonho de ter sua terra vivem com muito sacrifício. As razões das

desistências e as dificuldades dos assentados em prosperarem na terra são por conta das

inúmeras necessidades, desde a perfuração de poços, preparação do terreno para o

plantio, ajuda para o escoamento da produção e apoio para projetos que condizem com a

realidade dos assentados. No Dorcelina Folador os

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não cumpriu com toda a infra-estrutura prometida.

tinha 12 vacas, mas depois tive que vender tudo pra pagar o banco. (Vicente Ferreira dos Reis, 24, de outubro de 2009)

o de uma assentada que, para

ter água, tem que deixar a caixa d’água aberta na chuva.

tem poço. Chega er um pouco de

gua. (Entrevista: Agenildo Batista, 24 de outubro de 2009)

ulher, que vai para o sítio apenas nos finais de semana, ajuda a segurar o

investimento.

No meu sítio não tem como plantar nada. Só tem pedra aqui. O que vai plantar no meio de tanta pedra? Eu plantei aqui mandioca, que é mais fácil de vingar, mas ela nasce pequena demais e muito ruim pra comer, só dá mesmo para fazer farinha. Aí comecei a produzir leite. Comprei umas vaquinhas,

Outro elemento que não chegou igual para todos foi a água. Os assentados que

ficaram com os lotes na chamada “parte de cima” - que corresponde a uma porção do

assentamento que se beneficiou por uma porção melhor de terras e infra-estrutura

receberam os poços ou tem uma pequena represa onde podem puxar a água. Agora, para

os da chamada parte de baixo, onde moram sete famílias, a água não chegou. O INCRA

não cumpriu com a instalação de poços para todos. Alguns dos assentados da parte de

baixo tiveram que furar seu próprio poço e há casos como

Aqui tivemos que furar o nosso próprio poço. Quando chegamos aqui não tinha água. Aí fizemos por conta mesmo. Aqui na parte de baixo ninguém tem poço. Só eu que tenho porque fomos nós mesmo que fizemos. Essa parte aqui debaixo foi uma parte menos assistida pelo INCRA. O vizinho aqui do lado tira água da fazenda vizinha, que o fazendeiro deixa-o usar. Ali mais pra frente tem uma senhora que a gente sempre ajuda. Ela não

ar dó. Na chuva ela deixa a caixa d’água aberta pra poder tdá

Obviamente há diferenças entre os sítios. Não se trata, portanto, de uma

realidade homogênea. O sítio do senhor João Carlos da Silva, de 52 anos, por exemplo,

conseguiu se desenvolver com estratégias condizentes com o projeto da reforma agrária.

Mas ele trabalha sozinho no seu sítio. Sua mulher e filhos estão trabalhando na cidade.

E a renda da m

É difícil, mas eu já consigo tirar uma renda do sítio. Eu participo dos projeto das flores, a gente entrega toda a semana flores em Cuiabá. Também planto aqui abóbora, pepino, quiabo e vendo para o comércio. O sítio é um dos poucos que produz. Produz agricultura familiar. A agricultura familiar vem buscar a produção aqui na porta. Mas eu vou ser sincero, eu fui beneficiado com uma terra boa. Assim, a terra não é muito boa, é razoável. Precisa de ajuda. Aí eu ponho calcário, adubo, esterco. Mas tem pessoas aqui que

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ria mora fora. Tem muita gente que pegou terra e não mora mais no sítio por conta de tanta dificuldade. (João Carlos da Silva, 24 de outubro de 2009)

s e

crédito

ização de práticas coletivas, deixadas de lado a partir do

momen

ileiro de apoio às micro e pequenas empresas) e a

Associ

cupava uma área de 1,3 hectares e

benefic

e R$ 15 mil para três hectares e o custo

diminu

pegaram lote e não conseguem plantar nada. A água também não chegou igual pra todo mundo. O pessoal lá de baixo, por exemplo, não tem água. Aí a maio

Diante de tantas dificuldades para produzir como a política de reforma agrária e

MST esperam, de todas as famílias ouvidas pelo menos um integrante têm que trabalhar

fora para compor a renda. Esses empregos normalmente são em sítios da região ou no

mercado informal na cidade, como serventes de pedreiro, guardas noturnos,

entregadores, na maioria dos casos sem carteira assinada. A questão aqui não é

enumerar os culpados pelo fracasso dos assentamentos, mas mostrar e compreender a

complexidade da reforma agrária. Seguir uma política de distribuição de terra

s aos assentados não garante o desenvolvimento de um projeto com sucesso.

Na ansiedade em se agarrar em algo que dê certo e possa gerar renda para o seu

sítio, muitos assentados acabam participando de projetos que não correspondem aos

seus interesses e capacidades. Pesquisas realizadas em outros locais demonstram que a

falência desses projetos está muitas vezes relacionada a conflitos entre lideranças e

assentados e também à não util

to da divisão dos lotes.

Durante a realização da pesquisa de campo, tomou-se conhecimento de um

desses projetos que aparecem com a promessa de transformar a produção do

assentamento e garantir renda aos assentados. Trata-se de um projeto de produção de

Flores Tropicais, implantado através de uma parceria entre a prefeitura de Várzea

Grande, SEBRAE-MT (Serviço bras

ação Floral Mato-grossense.

Este projeto tinha como objetivo aumentar a geração de emprego e renda e

empregar a parte dos assentados que sofre com a falta de atividades remuneradas.

Mulheres, crianças e adolescentes de qualquer idade, são os alvos do projeto. As

atividades tiveram início em 2005, quando os parceiros se reuniram e discutiram formas

viáveis de implantar o projeto experimental, que o

iaria diretamente as 33 famílias assentadas.

Foram ministradas palestras para apresentar e divulgar os planos de trabalho do

projeto aos assentados. O projeto era visto como uma ação de baixo custo e lucro

garantido. O investimento inicial era d

iria conforme o aumento da área.

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o conta com três famílias e causa a

insatisfação de muitos assentados que desistiram.

sítio, meu marido começou a trabalhar em alguns sítios aqui próximo pra gente poder comer”. (Joselita Alves de Alcantra, 24 de outubro de 2009)

tio com o pai João Bernardo de Souza, que é aposentado e garante

o sustento dos dois.

a produção é no lote de cada um que participa. Cada um planta no lote. Meu plantio fez um ano no dia 8 de março. (Maria Edna, 24 de outubro de 2009)

No começo “do projeto das flores”, como é chamado pelos assentados,

participaram 26 famílias. Depois de algum tempo esse número diminuiu para 13

famílias. Após cinco anos de existência, o projet

No começo era tudo flores. Mas depois a gente foi vendo que era tudo mentira. No primeiro mês a gente ganhou 65 reais. Depois não ganhamos mais nada. Eu e meu marido trabalhamos um ano neste projeto, vendemos gado e deixamos de cuidar da nossa roça aqui no sítio. Resultado: não ganhamos nada com as flores e deixamos nossa roça abandonada. Dedicamos lá e não cá. Tem que trabalhar só para si, esses projetos coletivos não funcionaram. Muitas pessoas voltaram para cidade. Desistiu do assentamento. A gente enfrenta muitas dificuldades para permanecer no assentamento. Hoje a gente não ta plantando mais nada. Crio apenas umas galinha. Como não temos renda no

A dificuldade dos assentados de não se manterem no projeto foi por conta de

ficarem muito tempo investindo sem tirar nenhum ganho para se sustentar. As famílias

que sobraram tem outras fontes de rendas que possibilitaram continuar o investimento.

Ou seja, não dependia apenas do projeto das flores, como é o caso da assentada Maria

Edna, que mora em sí

O projeto tem cinco anos. Porque houve a debandada? A dificuldade, porque ninguém tem renda. Os que pegaram melhor terra foi do curral pra cá. Quem pegou os lotes pra lá se deram mal por que a terra não dá nada, tem muita pedra. Os assentados ficaram muito tempo investindo sem tirar nada, sem ter salário para se sustentar. Aqui eu vivo porque eu tenho a pensão do papai. A renda varia de acordo com a produção de cada um. Quem tem flor de melhor qualidade vale mais. Quem tem variedade mais cara consegue mais. Quem tem variedade mais barata consegue menos. Começou com o aprendizado lá em cima no terreno destinado ao projeto. Agora

Observa-se que a implantação do projeto das flores exigiu grandes investimentos

por parte dos assentados. O fracasso econômico desses projetos, além dos prejuízos

financeiros e da inadimplência, põe em causa o processo de inclusão social - objetivo

primordial dos planos de reforma agrária -, sem contar a reprodução de representações

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dos

assentados pessoas desacreditadas no sonho de fazer de seus sítios terras produtivas.

depreciativas dos assentados, vistos como incapazes de serem agricultores. Essas ações

foram contribuindo para fragmentar cada vez mais o assentamento e fazer

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa observou as experiências da reforma agrária no assentamento

Dorcelina Folador, no município de Várzea Grande (MT). Pode-se evidenciar que no

assentamento pesquisado existiu uma reforma agrária parcial, onde o governo se limitou

apenas em distribuir terras, mas não ofertou as condições necessárias para o

desenvolvimento econômico e social dos assentados. Em 10 anos de existência ainda há

sítios no assentamento que não têm água em suas propriedades e a terra também no

geral é muito ácida, o que dificulta a plantação e a reprodução dos assentados.

O assentamento Dorcelina Folador é fruto de um processo de luta pela terra,

onde trabalhadores rurais foram mobilizados pelo MST e ficaram acampados na área até

a desapropriação da terra feita pelo INCRA, em 2002. Dessa ocupação nasceu uma

comunidade formada por 33 famílias, que no início, quando estavam acampadas,

realizavam trabalhos coletivos, se uniam para conquistar seus interesses. Porém, após

conseguirem a terra, esses trabalhos coletivos foram sendo deixados de lado. Hoje,

moram no local pouco mais de dez famílias. O restante reside e trabalha na cidade e

utiliza os sítios apenas nos finais de semana.

A proximidade com Várzea Grande faz do Dorcelina Folador um assentamento

híbrido, uma espécie de rururbano. Percebe-se que os assentados mantém a terra de

forma privada, não querem nem ouvir falar em trabalho coletivo, preferem o trabalho

individual. Só tornam-se coletivos quando há a necessidade de uma ação neste sentido

e, após alcançar o objetivo desejado, voltam à propriedade individual.

O MST acredita que o êxito na organização de um assentamento depende da

participação e ação coletiva entre os assentados. Porém, não foi isto que foi visto no

Dorcelina Folador. Pelo fato de os assentados não disporem de recursos suficientes para

investir nos seus sítios é cada vez mais comum o fenômeno de pluriatividade. Como

demonstrado no primeiro capítulo, a pluriatividade está presente em torno de um terço

da população do campo, que desenvolve atividades não-agrícolas. Portanto, o agricultor

assentado cada vez mais adota estratégias de reprodução que levam em consideração

estas atividades. Esta constatação é importante para o entendimento do assentamento

Dorcelina Folador, onde boa parte dos assentados, com dificuldades de tirar o sustento

da terra, desenvolvem atividades não-agrícolas tais como prestação de serviços, na

cidade mais próxima.

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Observamos na pesquisa que os problemas estão presentes no assentamento e

este necessita de muitos investimentos e conhecimento especializado, especialmente

para o caso de famílias originalmente sem experiência de lidar com a terra. Além da

produção e da melhoria de renda no assentamento, também existe necessidade de

melhorias na estrutura física e na área de serviços prestados para a comunidade, como

saúde e educação.

É muito difícil para os trabalhadores rurais conseguir alcançar os objetivos da

reforma agrária se eles apenas recebem a terra e não tem apoio para que tais objetivos

sejam alcançados. Os planos de reforma agrária não podem se resumir apenas à

distribuição de terras e créditos insuficientes para o desenvolvimento do assentamento.

É preciso que se pense em políticas públicas efetivas que sejam capazes de

garantir as necessidades reais de reprodução social e material das famílias envolvidas

nesses processos. Para que isso seja possível é de fundamental importância que as

particularidades e as experiências dos atores envolvidos na luta pela terra sejam a base

para a construção dos projetos desenvolvidos pelo governo na ocasião da implantação

dos assentamentos, bem como na assistência prestada aos pequenos produtores.

Apesar de ainda não conseguirem alcançar o objetivo da Reforma Agrária, de

tirar seu sustento da terra e fazer seus sítios produtivos, os assentados do Dorcelina

Folador encontraram outro caminho para continuarem na terra conquistada, aderindo à

prática de atividades diferenciadas, não- agrícolas, para tirarem seu sustento.

A realidade parece estar se impondo e demonstrando um caminho natural para

estes assentados, o que não necessariamente é algo negativo. Isto nos indica a

necessidade de efetivar novas propostas de assentamento que contemplem esta

realidade, para que se possa garantir as reais necessidades dos beneficiários da reforma

agrária.

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