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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA KARINE KREWER O atenuamento do Princípio de Não Contradição aristotélico em “domínios contínuos” com relação à noção de instantes de tempo definidos como “pontos de acumulação”. Cuiabá/ MT 2012.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

KARINE KREWER

O atenuamento do Princípio de Não Contradição aristotélico em “domínios contínuos” com relação à noção de instantes de tempo

definidos como “pontos de acumulação”.

Cuiabá/ MT 2012.

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KARINE KREWER

O atenuamento do Princípio de Não Contradição aristotélico em “domínios contínuos” com relação à noção de instantes de tempo

definidos como “pontos de acumulação”.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Epistemes Contemporâneas.

Orientador: Prof. Dr. Walter Gomide do Nascimento Júnior

Cuiabá/ MT 2012.

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FICHA CATALOGRÁFICA

K92a Krewer, Karine. O atenuamento do princípio de não contradição aristotélico em domínios

contínuos com relação a noção de instantes de tempo definidos como pontos de acumulação / Karine Krewer. – 2012.

101 f. Orientador: Prof. Dr. Walter Gomide do Nascimento Júnior.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Área de Concentração: Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa: Epistemes Contemporâneas, 2012. Bibliografia: 100- 101. 1. Linguagem – Filosofia. 2. Filosofia da linguagem. 3. Linguagem e lógica. I. Título.

CDU – 81:1 Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

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Prof. Dr. Ricardo Kubrusly (UFRJ)

Examinador externo

Prof. Dr. Teresinha Prada (UFMT)

Examinadora interna

Prof. Dr. Walter Gomide do Nascimento Júnior (UFMT)

Orientador

Cuiabá 27 de fevereiro de 2012.

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Aos meus filhos, Victor e Cecilia.

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Agradecimentos

A Deus, pela guarnição, Luz, Paz e Amor. Á minha família. Á meus filhos Victor e Cecilia, que são VIDA na minha vida, a expressão do amor que Deus tem por minha pessoa, manifestado. Á pessoa encantadora de minha mãe, Anadir. Ao meu pai Valdir. Ao meu irmão Vinícius. Aos meus avôs Ivo e Hortelino e avós Gilda e Arminda, que tenho a mais doce lembrança da infância. Á minha madrinha, Marli. Aos meus queridos amigos, de todas as horas, de infância, de estudos, de confraternizações, de horas difíceis, todos, meus irmãos de espírito, Afonso, Juliana,Adriano, Tarcísio, Raquel, Jonas, Luis Otávio, Denis, Mariama, Erder, Danieli, Gabriel, João, João Divino, Rosângela, Alessandro, Luciana, Vitória, Miguel,Tomas, Beth, Camila, Jorge, Maria, Rama Chandra, Daniele, Inácio, Maria Helena, Isabela, Edilson, Ge, Camila, Kelvin. Meus compadres e colegas, Aisllindo, Valerinha, Tatiana, Martyna, Fernandinha Nice, Maria Rosa, Judite, Najmah, Wuldson, Aliana, Cris, Alan, Luzo, Glória, Marília, Dan, Leo Baralle, Lisabeth, Maria da Paz, Bibi, Ludimila, Roberta, Halysson, Caia, Ario, Gabi, Kylvia, Edson, Merlyn, Raquel, Marla, Diáquenes, Fábio, Michel,Tina, Larissa, Juliane, Gilmar, Maria Cristina, Silas, José Carlos, Daniela, Veridiana, Simony, Antônio, Fábio, João, Waldivino, Pablito, Rosana, Rogério, Aleh, Nelson, Rosa, Raycauan, Fabi, Elaine, Flora, Renata, Dráuzio, Liu, Clau, Jaqueline, Max, Jone, Léia, Alessandra, Jamal, Adriana, Mariana, Attílio, Hector, Octavio, Theodora, Deborah, Roberto, Eliete, Tetê, Lucinha. Aos pais e avós dos meus filhos, pela ajuda. A UFMT que me acolheu em mais esta jornada acadêmica. Á meus alunos, que me ensinaram muitas coisas, pois quando se ensina também se aprende. Aos meus professores que me incentivaram a persistir. Aos professores, Ricardo Kubrusly, Terezinha Prada e Ludimila Brandão por aceitarem prontamente participarem da banca. Ao meu orientador, professor Walter Gomide, que sempre me apoiou, ensinando, tirando dúvidas, compreensivo com os prazos, sempre solicito. Muito grata á você professor Walter, por estes dois anos de convivência, estudo e amizade. A CAPES pela bolsa, pois com ela foi possível este mestrado ter se realizado.

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Sumário

Resumo..............................................................................................p.8. Abstract..............................................................................................p.9. Introdução.........................................................................................p.10. Capítulo 1 Aristóteles e Bernard Bolzano 1. A Lógica de Aristóteles..............................................................p.13.

1.1 O princípio de Não Contradição em Aristóteles.........................p.15.

1.2 Bernard Bolzano e o infinito matemático: o infinito tratado como

uma grandeza matemática....................................................................p.18.

1.3 O princípio de Não Contradição em Bernard Bolzano e a definição

bolzaniana do tempo.............................................................................p.24.

1.4 A noção de instante isolado......................................................p. 26.

1.5 O “instante como “ponto de acumulação” em oposição ao

“instante” como “ponto isolado”.............................................................p.27.

1.6 O princípio de Não Contradição admitido somente pela

mensurabilidade....................................................................................p.29.

Capítulo 2 Henri Bergson, Agostinho e os procedimentos para medir o tempo 2. Críticas à ciência .......................................................................p.32.

2.1 O tempo como duração..............................................................p.37.

2.2 Desconstruindo a noção de “instante” a partir da ideia de

solidariedade ininterrupta......................................................................p.39.

2.3 O princípio de Não Contradição e o tempo bolzaniano..............p.42.

2.4 Críticas à Bergson......................................................................p.45.

2.4.1 Gillo Dorfles................................................................................p.45.

2.4.2 Susanne Langer.........................................................................p.50.

2.4.3 Gaston Bachelard.......................................................................p.57.

Capítulo 3

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As dialetéias, a música e a consciência como domínios da contradição 3. O dialeteísmo e a possibilidade da ocorrência de efetivas

contradições..........................................................................................p.65.

3.1 A consciência e a escuta na compreensão do tempo e da

música...................................................................................................p.72.

3.2 Seincman analisa Bergson e Bachelard....................................p. 79.

3.3 Seincman e a composição de Frèderic Chopin: Noturno op.15 n°

3..................................................................................................p.82.

Apêndice György Ligeti e a obra “Continuum”.................................................p.90.

Conclusão ...........................................................................................p.97. Referências Bibliográficas.......................................................p.100- 101.

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Resumo

O presente estudo apresenta a hipótese de relativização do Princípio de

Não Contradição, a partir da definição dos instantes temporais como sendo

“pontos de acumulação”. O PNC elaborado por Aristóteles foi examinado pelo

matemático Bernard Bolzano. As considerações bolzanianas estabelecem que

em cada parte mínima do tempo, ou seja, em cada instante do tempo, “não é

possível atribuir ao mesmo objeto duas propriedades contraditórias”, deste

modo, o tempo se assemelha a uma linha reta formada de pontos que se

sucedem. Vistos como unidades cardinais, os instantes já estão sob a forma

arquetípica de “pontos geometrizados”, o que lhe dá um caráter

“espacializado”, sem o compromisso de se mostrarem como uma real imagem

do instante temporal em sua estruturação dentro do contínuo do tempo.

Apresento a noção de tempo “duração” de Henri Bergson aliada à noção

de “ponto de acumulação” de Georg Cantor, afirmando que o tempo é como um

“conjunto contínuo” que oferece infinitos pontos entre seus elementos; a

duração admite que o tempo é contínuo e indiviso. Assim, ao isolar um instante

de outro, fragmentamos o tempo. Segundo Bergson, isto não é o tempo, mas o

espaço. Os procedimentos científicos medem o espaço quando afirmam medir

o tempo.

Os instantes temporais, que formam o passado, o presente e o futuro

estão de tal modo interligados que não podem ser separados por força da

faculdade da memória que os mantêm ligados. A memória será apresentada

como estrutura que permite que “estados-de-coisa-contraditórios” aconteçam.

As contradições são entendidas aqui, como fenômenos que acontecem

em regiões de limite, entorno, vizinhança e movimento. O Dialeteismo é a tese

que afirma que as dialetéias (contradições) ocorrem em regiões onde a lei da

Continuidade está presente. Grahan Priest, criador da tese do Dialeteismo aliou

em suas investigações as definições de Hegel sobre a contradição como móvel

da vida e as ideias de Leibniz, sobre a lei da Continuidade. Nas regiões de

vizinhança e movimento de um estado-de coisas para outro, onde a lei da

continuidade está presente e o contínuo temporal é considerado um conjunto

contínuo formando de infinitos pontos, as contradições aparecem.

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Abstract

This study presents the hypothesis of relativizing the Principle of Non-

Contradiction (PNC) from the definition of temporal moments as "accumulation

points". Aristotle's PNC was examined by the mathematician Bernard Bolzano.

Bolzano's considerations have set that in each part of the minimum time, ie at

each instant of time, "can not assign two contradictory properties to the same

object" thus, time resembles a straight line formed of points that follow one

another. Viewed as cardinal units, the moments are already in the form of

archetypal "geometrical points", which gives a character "spatialized" without

the commitment to show up as a real image of the timestep (temporal moment)

in its structure within the continuum of time.

I show the notion of time "duration" of Henri Bergson allied to the notion

of "accumulation point" of Georg Cantor, saying that time is like a "continuum

set" that offers infinite points among its elements; the duration admits that time

is continuous and undivided. Thus, by isolating a moment (an instant) from the

other, we break up time into fragments. According to Bergson, this is not time

but space. The scientific procedures measure the space when they claim to

measure time.

The temporal moments or timestep, which form the past, the present and

the future times are so intertwined that they can not be separated under the

faculty of memory that keeps them connected. Memory will be presented as a

structure that allows "states-of-contradictory-things" to happen.

These contradictions are understood here as phenomena that occur in

regions of boundary, environment, neighborhood and movement. The

Dialetheism is the thesis which states that dialethics (contradictions) occur in

regions where the law of continuity is present. Graham Priest, creator of the

thesis of Dialetheism allied, in his research, Hegel's definitions on contradiction

as a fitment of life and ideas of Leibniz, on the law of Continuity. Contradictions

appear then in the regions of neighborhood and motion from a state of things to

another, where the law of continuity is present and the temporal continuum is

considered a continuous set of infinite points.

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Introdução

Minha pesquisa de dissertação de mestrado apresenta uma hipótese de

relativização do princípio clássico de Não Contradição, que se aplica a

qualquer teoria que se destine à compreensão do mundo contemporâneo, no

que diz respeito aos domínios em que a lei da continuidade estiver presente,

domínios em que se admitem fluxos contínuos na estrutura temporal.

Meu tema está circunscrito ao campo da Filosofia da Linguagem e da

Lógica, com o intuito de uma interface com a Filosofia da Ciência,

apresentando exemplos que abrangem as Artes, para uma visualização dos

domínios empíricos em que se aplicam a teoria proposta. A Filosofia da

Ciência é o expediente solicitado para a realização da interface entre as áreas

do saber, para o propósito de uma pesquisa e metodologia especificamente

bibliográficas, partindo de autores, obras e conceitos definidores da postura

fundamentalmente teórica. A edificação argumentativa do discurso obedece à

conduta das regras definidas pela Lógica, sendo a Filosofia tomada como

ferramenta para o desenvolvimento rigoroso das idéias.

Apresentarei no primeiro capítulo as definições de Aristóteles e de

Bernard Bolzano acerca do princípio de Não Contradição. Tal princípio interdita

que propriedades ou atributos contraditórios sejam predicados a um mesmo

objeto, ao mesmo tempo. Sob a forma de um princípio regulativo para a lógica

proposicional, o princípio de Não Contradição “proíbe”, por assim dizer, que um

enunciado e seu contraditório sejam simultaneamente verdadeiros.

Tratarei da estrutura interna do “contínuo”, usando para tanto a noção de

“tipo ordinal”, de Cantor. Será mostrado que o tempo, principalmente na

abordagem feita por Bolzano, é um segmento próprio daquilo que o próprio

Bolzano chamou de “eternidade”. Esta “eternidade” bolzaniana é tomada como

o conjunto de todos os instantes de tempo, sendo que estes, uma vez

dispostos no “tempo inteiro” (outro nome que Bolzano atribui à “eternidade”), se

comportam como unidades cardinais. Entretanto, sob esta condição, as

unidades de tempo estão “isoladas” uma das outras, o que elimina a natureza

intrínseca dos instantes temporais que busco apresentar sob a forma de

“pontos de acumulação” de um segmento de reta.

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De fato, os instantes de tempo, vistos como unidades cardinais, já estão

sob a forma arquetípica de “pontos geométricos”, o que lhes dá um caráter

“espacializado”, sem o compromisso de se mostrarem como uma real imagem

do instante temporal em sua estruturação dentro do contínuo do tempo.

No segundo capítulo será apresentada a negação da noção de tempo

“espacializado” realizada pelo francês Henri Bergson. Bergson procurou

demonstrar que o tempo é um fluxo indiviso e contínuo que não oferece a

possibilidade de fragmentar-se e ser pulverizado em instantes “geométricos”.

Bergson quis mostrar que o tempo, em sua dimensão originária, não coincide

com o tempo das medições físicas. Coube também a postura bergsoniana

defender a ideia de que não é possível medir o tempo sem reduzi-lo a

analogias com aspectos propriamente presentes nas grandezas espaciais,

pois, para medir o tempo, é necessário compreendê-lo como um todo feito pela

justaposição de partes, transformando o tempo em um compósito

“espacializado”. O tempo não se parte e não se divide; não se acelera e muito

menos se retrocede. Convencionamos o relógio, instrumento que possui a

função de medir a passagem dos períodos de tempo, as horas, os minutos e

segundos, definindo-os por blocos, partes e partículas de tempo, que não são

nada mais do que partes e fragmentos do espaço. O pino do relógio percorre o

deslocamento dos corpos no espaço em períodos de tempo.

Será apresentada a teoria bergsoniana, que oferece a noção de tempo

contínuo e apresenta a melodia musical como exemplo para o tempo que flui.

As críticas a Bergson destinadas estarão presentes nas considerações de Gillo

Dorfles a respeito da ausência da espacialidade na definição do tempo de

Bergson e as implicações dessa, bem como o alerta de Suzanne Langer a

partir da noção de ritmo na concepção de tempo musical e da metáfora da

melodia. A tese de Gaston Bachelard também será ressaltada, pois acentua a

importância do ritmo no tempo através de seu entendimento do tempo como

sistemas de instantes numa dialética reguladora.

No terceiro e conclusivo capítulo, serão analisados exemplos de domínios

em que o fluxo temporal não é visto como uma sucessão de instantes

“isolados”, mas, ao contrário, a imagem que aí se tem do tempo é a de uma

diacronia baseada em vizinhanças que se interconectam, o que gera a

impossibilidade de “separar” radicalmente os instantes de tempo.

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Nestes domínios vale, conforme nos diz o filósofo inglês Graham Priest, a

condição de continuidade de Leibniz e, portanto, também são verificadas

contradições instantâneas – as chamadas dialetéias. Será apresentada a lei da

continuidade elabora por Leibniz, corroborada por Priest, levando em conta a

teoria de Hegel, segundo a qual, a dialética que ocorre em eventos que

transcorrem no tempo estão condicionados pela natureza da continuidade, e

pela presença intrínseca da lei do movimento: geradora de contradições. A

contradição está nos fenômenos que se dão no tempo.

Uma especial atenção será dada à memória e seu fluxo contínuo e

indiviso, conforme enfatiza Bergson. Neste campo de análise, o princípio de

Não Contradição, em sua formulação aristotélico-bolzaniana, é nitidamente

enfraquecido, permitindo o postulado de que, em domínios “verdadeiramente

contínuos” (em que os instantes preservam a propriedade topológica de serem

“pontos de acumulação”), não há razões a priori para dar ao princípio de Não

Contradição o caráter de um interdito absoluto.

A música será apresentada como campo de análise que mais se aproxima

da noção de temporalidade proposta nesta pesquisa. A melodia musical está

verdadeiramente próxima no que se entende por fluir rítmico e contínuo da

consciência. Busco apresentar a música e a consciência como domínios em

que ocorrem as situações nomeadas por Grahan Priest como próprias ao

dialeteísmo. Eduardo Seincman será visto por sua investigação da obra

Noturno op. 15 n° 3 de Chopin e por seu estudo fazer referência à Bergson e

Bachelard.

Em apêndice, apresento a reflexão sobre a música Continuum de György

Ligeti. O exemplo mais evidente da temporalidade musical defendida neste

trabalho, que sustenta a noção de “ponto de acumulação” em que o princípio

de Não Contradição é atenuado.

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Capítulo 1 Aristóteles e Bernard Bolzano

O que testemunha, de modo mais convincente, a constante e difundida, ainda que dissimulada, relação do nada em nosso ser-aí, que a negação? Mas, de nenhum modo, esta aproxima o “não”, como meio de distinção e oposição do que é dado, para, por assim dizer, colocá-lo entre ambos. Como poderia a negação também produzir por si o “não” se ela somente pode negar se lhe foi previamente dado algo que pode ser negado? Como pode, entretanto, ser descoberto algo que pode ser negado e que deve sê-lo enquanto afetado pelo “não” se não fosse realidade que todo o pensamento enquanto tal já de antemão, tem visado o “não”? (HEIDEGGER, 1969).

1. A Lógica de Aristóteles

Aristóteles é considerado o pai da Lógica Clássica. Os princípios da

Lógica por ele elaborados são usados e rediscutidos por filósofos, matemáticos

e lógicos até os dias atuais. Conhecido por seus escritos constituírem

originariamente muitos temas filosóficos discutidos na Política e na Poética, na

Física e na Metafísica e por estudiosos da Filosofia em todos os tempos, os

estudos de Aristóteles juntamente com os de Platão são considerados

paradigmáticos.

Nosso tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraços (ARISTÓTELES, 1973, 100a §18).

A citação acima retirada do Livro I dos Tópicos, Dos argumentos

sofísticos, corresponde ao primeiro parágrafo da obra e demonstra que muitas

das preocupações do pensamento lógico encontram-se nesse primeiro

parágrafo. A necessidade de um método investigativo que direcione o

raciocínio de qualquer enunciado ou proposição a respeito de qualquer assunto

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capaz de evitar o “embaraço” na formulação dos argumentos e suas réplicas é

seguida como regra de importância capital. Aristóteles deixou um legado para a

análise dos argumentos para todos os lógicos: a exigência de evitar que esses

“embaraços” - compreendidos como “contradições” - venham ocorrer no

discurso científico. Deste modo, a contradição é para o pensamento lógico a

incapacidade de raciocinar de maneira coerente e eficaz. A lógica procura

então, ao analisar um enunciado e seu valor de verdade, verificar a “coerência

formal do raciocínio” (REALE, 1994: 451).

A construção de um argumento depende da conclusão necessária que

advém da estrutura formal das premissas. As premissas e a conclusão

compõem um argumento (MORTARI, 2001: 9) e estas “... devem ser coisas

que podem ser afirmadas ou negadas: ou seja, coisas que podem ser

consideradas verdadeiras ou falsas (MORTARI, 2001: 11)”. A lógica se

preocupa em analisar o valor de verdade das conclusões resultantes desse

esquema de construção discursiva, pois será um argumento válido aquele que

sendo verdadeiras as premissas terá verdadeira sua conclusão e sendo falsas

as premissas será falsa sua conclusão. Desta forma, não será possível

considerar válido um argumento que possui premissas falsas e conclusão

verdadeira, ou premissas verdadeiras e conclusão falsa. Aristóteles

desenvolveu longamente essas regras para a construção do discurso, para a

refutação de argumentos falaciosos e técnicas de retórica.

Quanto ao termo “lógica”, segundo Giovanni Reale, foi introduzido por

Alexandre de Afrodisia, pois Aristóteles se referia à lógica como Analítica (do

grego Análysis), com o propósito de “fornecer, justamente, os instrumentos

mentais necessários para afrontar qualquer pesquisa (WAITZ, 1844-1846: 293

apud REALE, 1994: 449).

A Lógica considerada como Analítica, se dedica ao discurso, a estrutura

do raciocínio que o inferiu e a seus procedimentos formais de demonstração.

Este é o objetivo da doutrina do silogismo aristotélico que compõe o “Corpus

aristotelicum” (REALE, 1994: 317), no conjunto dos tratados de lógica,

Organon. A lógica, portanto, constitui “um estudo preliminar, isto é, uma

propedêutica geral a todas as ciências (REALE, 1994: 449)”.

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A lógica aristotélica pretendeu desconstruir argumentos geralmente

aceitos por todos e que à luz da resolução analítica seriam apenas

probabilísticos ou simples falácias. Nas palavras de Giovanni Reale:

A lógica aristotélica tem uma gênese tipicamente filosófica: ela assinala o momento no qual o logos filosófico, depois de ter amadurecido completamente através da estruturação de todos os problemas, (...), torna-se capaz de assim, depois de ter aprendido a raciocinar, chega a estabelecer o que é a própria razão, ou seja, como se raciocina, quando e sobre o que é possível raciocinar (REALE,1994: 452).

O critério para um pensamento racional, coerente e consistente é

fornecido então, pela lógica. Neste ponto Aristóteles influenciou o Ocidente de

um modo peculiar, pois o conhecimento cientificamente válido prescreve a

observância do crivo da lógica aristotélica. Deste modo a lógica foi entendida e

apresentada como ciência inicial para qualquer estudo que o conhecimento

humano se destine, tornando imprescindível iniciar o aprendizado tendo-a

como propedêutica. Além disso, sendo a lógica base para um pensamento em

construção, ela exerce a postura de crivo para legitimação de que as teorias

provenientes desse aprendizado estejam corretas, pois fornece os critérios

segundo os quais os procedimentos teoréticos sejam racionalmente válidos.

1.1 O princípio de Não Contradição em Aristóteles

Os princípios e postulados da lógica aristotélica se aplicam a toda e

qualquer ciência, desde que esta tenha seu objeto de estudo definido

juntamente com seus termos. Sobre isso afirma Giovanni Reale: “... cada

ciência assumirá, antes de tudo, premissas e princípios próprios, vale dizer,

premissas e princípios peculiares a ela e somente a ela” (REALE, 1994: 464).

Deste modo, como exemplifica o próprio Reale, cabe à geometria as grandezas

espaciais como objeto e as definições dos conceitos de mensurabilidade e

imensurabilidade. Cabe à aritmética a unidade e o número, bem como as

definições de paridade e imparidade. Assim devem ser nas demais ciências.

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Reale ressalta que no conjunto dos princípios1

De todos os princípios fundamentais que Aristóteles apresenta como

básicos à argumentação racional

e postulados da lógica

aristotélica, existem alguns, entre eles o Princípio de Não Contradição (PNC)

deve ser obedecido por todas as ciências: Entre os axiomas, há alguns que são “comuns” a mais de uma ciência (...), outros a todas as ciências sem exceção, como o princípio de não-contradição (não se pode afirmar e negar do mesmo objeto, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, dois predicados contraditórios), e o princípio do terceiro excluído, estreitamente conexo ao de não-contradição (não é possível que exista um termo médio entre dois contraditórios). São os famosos princípios transcendentais, isto é, válidos para toda forma de pensamento enquanto tal (porque válidos para todo ente enquanto tal), conhecidos por si e, portanto, primeiros, sobre os quais Aristóteles, de maneira expressa e ampla, discute no célebre quarto livro da Metafísica (REALE, 1994: 465).

2

O Princípio de Não Contradição em Aristóteles tem uma dimensão

ontológica, psicológica e lógica

, o mais fundamental de todos é o Princípio

de Não Contradição (PNC), presente na Metafísica, Γ3, 1005 b: “Não é

possível para uma mesma coisa, ao mesmo tempo, pertencer e não pertencer

à mesma coisa e sob o mesmo aspecto”.

3

1 Estes princípios, postulados e regras da lógica clássica são também apresentados na obra Primeiros Analíticos. Ver Organon, tradução do grego e notas de Edson BINI, Bauru: EDIPRO, 2005. 2 Ao lado do Princípio de não-Contradição, Aristóteles também elenca os princípios de identidade e do terceiro excluído. 3 Apresentação do aspecto ontológico, psicológico e lógico de um argumento, especificamente na falácia da não contradição, ver artigo de Guilherme Wyllie sob a lógica de Raimundo Llúllio, Revista Aquinate, n. 14, (2011) 63-77.

(BERTO, 2006: 21). O aspecto ontológico

constitui um impedimento, no sentido de interditar que um objeto receba a

atribuição de propriedades contraditórias. Não pode haver uma substância que

possua um par de contraditórios. O aspecto psicológico é a impossibilidade de

o entendimento humano conceber substâncias com propriedades

contraditórias, ou seja, não é da ordem do pensar humano, a concepção de

que um dado objeto possua e não possua algo, simultaneamente. O aspecto

lógico corresponde à estrutura semântico-sintática do discurso.

Semanticamente, o princípio de Não Contradição é posto em exercício quando

verificamos que, sendo dado um enunciado qualquer α, a conjunção entre α e

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seu contraditório ¬α - isto é, (α ∧ ¬α) - é sempre falsa. Sintaticamente, o PNC

mostra seu interdito quando aponta como um desiderato - um cálculo qualquer

não deva demonstrar teoremas contraditórios.

No presente trabalho, o aspecto de tal princípio que vai ser enfatizado é o

ontológico. Sob o viés ontológico, tal princípio pode ser anunciado da forma

seguinte: um par de propriedades contraditórias não pode ser atribuído a um

objeto, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Para iniciar a análise do

aspecto ontológico, trago uma afirmação de Giovanni Reale a respeito das

críticas que a lógica de Aristóteles recebeu, dentre elas, a de que “é, de algum

modo, defasada com relação ao real”.

(...) a lógica, com efeito, refere-se ao universal, a realidade, ao invés, é individual e particular; o universal não é real, o real não é passível de ser submetido à lógica. Se fosse assim, o real escaparia por inteiro às malhas da lógica. Na verdade, não é assim; de fato, a interpretação supõe que a aristotélica substância primeira seja o indivíduo empírico, o que não é verdade, como sabemos. O indivíduo é composto de matéria e forma. E, se, num sentido, substância é o composto, em sentido forte (em sentido propriamente ontológico e metafísico e, portanto, primário) substância é a forma ou a essência que determina a matéria4

Giovanni Reale refere-se ao composto como aquilo que podemos

determinar empiricamente, a matéria. O indivíduo empírico tomado somente

como matéria ou mesmo substância, seria apenas, nos termos da ciência hoje,

um corpo, uma massa, ou um aglomerado de átomos. No entanto, o alerta de

Reale é que a forma também faz parte deste composto determinado

empiricamente, pelo fato de ser algo inteligivelmente determinado (REALE,

1994: 469). Este processo do entendimento de captar a forma e a matéria de

um objeto diz respeito ao modo como concebemos ontologicamente as

substâncias e como as definimos logicamente. É o ordenamento do

pensamento. “A forma ontológica torna-se, assim, espécie lógica”. Deste modo,

quando vemos um triângulo não vemos somente uma figura geométrica

composta de três lados, mas um pouco mais do que isso; vemos a

triangularidade, que é a forma captada do objeto observado empiricamente,

(REALE, 1994: 468).

4 In Metafísica, Z 7, 1032 b 1ss. Aristóteles diz, sem meios termos: “Chamo ‘forma’ (eidos) a essência de cada coisa e a substância primeira; apud REALE, 1994: 468.

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portanto, ontologicamente, que se tornou conceito, “capaz de referir-se a uma

pluralidade de coisas e, portanto, capaz de predicar-se de vários sujeitos”

(REALE, 1994: 469) - de todos os que têm aquela estrutura.

Reale nos faz entender que o estudo da lógica aristotélica está situado

sobre a base da doutrina da substância-forma, que se encontra no livro Z da

Metafísica. O modo como a substância aristotélica se apresenta na estrutura

ontológica, portanto, na realidade, será discutida nesta pesquisa segundo o

Princípio de Não Contradição, pois, é a partir deste enfoque ontológico que o

PNC se mostra como impeditivo da ocorrência de “estados de coisas

contraditórios”.

Na mesma linha impeditiva do surgimento de tais estados, encontra-se a

formulação do princípio de Não Contradição no pensamento de Bernard

Bolzano, que posteriormente a Aristóteles se dedicou a análise do Princípio de

Não contradição em relação ao mesmo momento no tempo, portanto, a

simultaneidade.

1.2 Bernard Bolzano e o infinito matemático: o infinito tratado como uma grandeza matemática.

Sem dúvida alguma, o nome de Bernard Bolzano aparece como um dos

mais importantes matemáticos do período que compreende o final do século

XVIII e a primeira metade do século XIX. Além de ser um dos pioneiros no

estudo da Análise (ramo da matemática que estuda as propriedades dos

conjuntos contínuos5

Bernard Bolzano (1781 -1848) foi um dos matemáticos mais importantes

considerados pelos lógicos e filósofos da Matemática no período que

), Bolzano foi um dos primeiros pensadores a estudar o

infinito dentro de uma perspectiva propriamente matemática.

5 Por conjunto contínuo, entende-se aqueles conjuntos que são densos (entre dois elementos quaisquer do conjunto, há sempre uma infinidade de outros elementos pertencentes ao conjunto, de tal forma que estes possam ser dispostos em uma seqüência) e que, além da densidade, tenham a propriedade de ser perfeitos: toda seqüência construída em um conjunto contínuo, se tiver limite, tal limite se insere dentro do conjunto e todo elemento de um conjunto contínuo é limite de alguma seqüência construída com elementos do próprio conjunto. Essa definição de conjunto contínuo é um esboço da definição de Cantor que será apresentada no capítulo 2.

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compreende Leibniz a Frege. Ocupou-se em suas reflexões, em demonstrar as

proposições matemáticas gerais aprovadas como evidentes e em esclarecer os

fundamentos das diferentes áreas como aritmética, álgebra, análise, geometria,

teoria das funções, etc. Suas reflexões se estendem por vários campos do

conhecimento: “os sujeitos vão da lógica à sociologia, passam pelas

matemáticas, a física, a filosofia, a religião, etc 6 (BOLZANO, 1993: 15) 7”, e

todo esse esforço resultou em uma obra de quatro volumes Wissenschaftslehre

([B 1837]8

6 Todas as citações de Bolzano em português são traduções da versão francesa Les Paradoxes de L’Infini, cuja tradução do alemão para o francês e introdução foram feitas por Hourya Sinaceur, editada pela Éditions du Seuil, Paris: 1993. 7 “des sujets allant de la logique à la sociologie, em passant par les mathématiques, la physique, la philosophie, la religion, etc”. 8 As obras publicadas de Bolzano são identificadas por um B seguido da data da primeira publicação.

). Bolzano concebia a Matemática como a estrutura que abarcava

todos os campos do conhecimento e suas idéias provenientes desta postura e

do modo como a matemática guiava suas pesquisas, resultaram na

antecipação de teorias da lógica moderna.

Segundo a concepção bolzaniana, qualquer tentativa de definir o infinito

metafísico passa necessariamente pela compreensão matemática de tal

conceito – à análise da infinitude em sua mais íntima essência. À matemática

caberia um papel propedêutico, assim como cabe à lógica em relação a

estrutura formal do discurso.

Onde quer que o infinito apareça, este sempre terá algo que nos permite

identificá-lo como tal e esta propriedade comum de todas as suas aparições é o

que revela o estudo matemático do infinito. Além disso, mesmo sendo de

caráter matemático, a compreensão do infinito pode ser feita não de forma

completamente isenta, mas a partir de referências metafísicas. Por

conseguinte, um perfeito diálogo entre a matemática e a metafísica se

estabelece na formulação do que precisamente devemos entender por

“infinitude”. A Metafísica do Infinito era para Bernard Bolzano o extremo grau

da abstração, um esforço grande da razão humana pensar essa esfera.

Somente a Matemática com sua linguagem algébrica, traria os símbolos que

representam os elementos e as operações que erguerão os argumentos. A

Matemática será a base para o estudo da Metafísica do infinito e o analisará

pelas orientações fornecidas pelas motivações metafísicas.

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Conforme nos diz o pesquisador francês Hourya Sinaceur:

[...] a matemática abstrata servirá, portanto de propedêutica ao exercício de um pensamento reto em outros domínios. A metafísica do infinito será estabelecida sobre um solo matemático, que não impede sem dúvida a análise matemática de ser orientada por motivações metafísicas9

Mais especificamente, Bolzano admitia que o infinito quantitativo fosse um

tipo especial de grandeza: que é maior que qualquer justaposição finita de uma

unidade tomada como base da medição. Segundo Bolzano: “[Por] uma

grandeza infinitamente grande se entende uma grandeza que seja, em relação

a uma unidade escolhida, uma totalidade cujo todo conjunto finito de unidades

não seja mais que uma parte (BOLZANO, 1993: § 16)”. O infinito quantitativo

faz parte daquelas grandezas que não satisfazem o axioma de Arquimedes.

Segundo tal princípio, dadas duas grandezas a e b, se é o caso de a ser menor

do que b (isto é, se a < b), então existe um número natural m, tal que ma > b.

Mas isto não ocorre com as grandezas infinitas: se a é finito e b é infinito,

então podemos multiplicar a por qualquer número natural m que sempre a

desigualdade ma < b é satisfeita; se tomarmos a como uma unidade de

medida, isto significa que podemos justapor esta unidade quantas vezes

. (SINACEUR, apud BOLZANO, 1993: 18)

A obra célebre de Bolzano em que o infinito é tratado sistematicamente

por meio de instrumentos matemáticos é Paradoxos do Infinito (Paradoxien des

Unendlichen), publicada originalmente em 1853, cinco anos após a morte de

seu autor. Em tal obra, a matemática é vista como a “ciência das grandezas”.

Por “grandeza”, Bolzano compreende quaisquer objetos que admitam entre si

relações de ordem (BOLZANO, 1993: 6). De fato, consoante a visão

bolzaniana, a função básica da matemática é estabelecer parâmetros que

permitam comparar as grandezas umas com as outras a partir de um ponto

comum de medida. Tal ponto comum se estabelece pela adoção de uma

unidade de medida (SINACEUR apud BOLZANO, 1993: 22). Desta maneira,

toda uma teoria do infinito se erige a partir de uma teoria das grandezas.

9 [Chez Bolzano], la mathematique abstraite servira donc de propédeutique à l’exercice d’une penseé droite dans les autres domaines. La métaphysiques de l’infini sera etablie sur um sol mathématique, ce qui n’empêche sans doute pas l’analyse mathématique d’être orientée par des motiviations méthaphysiques.

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quisermos (pressupondo que esta justaposição seja feita um número finito de

vezes) que nunca conseguiremos igualar tal justaposição à magnitude de b.

Sendo uma grandeza infinita b é uma totalidade sempre maior que qualquer

totalidade finita de unidades. Dentre as grandezas infinitas apresentadas por

Bolzano, duas merecem especial atenção: o espaço e o tempo.

Tempo e espaço são uma espécie muito importante de grandezas infinitamente grandes que, sendo determinações do real, não pertencem, portanto ao seu domínio. Nem o tempo nem o espaço são qualquer coisa de real, uma vez que não são nem substâncias nem propriedades das substâncias; elas entram em jogo somente como determinações de todas as substâncias imperfeitas limitadas, finitas, ou, o que dá no mesmo, dependentes, criadas), pelo fato que cada uma delas se encontra sempre em um tempo e um lugar determinados. Em efeito, cada substância simples ocupa necessariamente em cada ponto do tempo, isto é, em cada parte simples ou pontos, assim, tanto do espaço como do tempo, é infinito (BOLZANO, 1993: §18).

Tanto o espaço quanto o tempo são infinitos na concepção bolzaniana. De

fato, a totalidade de pontos de espaço e de instantes de tempo não pode ser

exaurida por uma suposta justaposição finita, por maior que seja de intervalos

arbitrários de espaço ou de tempo que tomemos como unidades de medida.

Bolzano percebe que a Metafísica do Infinito só pode se desenvolver com o

balizamento da Matemática. Deste modo, vê-se que o espaço e o tempo,

considerados como grandezas infinitamente grandes em suas respectivas

inteirezas, são radicalmente infinitos. Mesmo que agrupados todos os seus

elementos, não poderemos concluir um número final que seja a expressão da

grandeza do infinito, pois conjuntos como estes possuem a propriedade de

serem maiores que qualquer pluralidade numérica (finita) concebível.

Como exemplo de conjuntos infinitos, Bolzano apresenta o tempo tomado

em sua inteireza: o tempo inteiro ou eternidade. Esta é a totalidade de todos os

instantes, ou seja, o tempo em sua absoluta infinitude (BOLZANO, 1993: 136-

137). Bolzano chega a afirmar que não opõe tempo à eternidade. A inteireza do

tempo (ou a totalidade dos instantes) merece especial atenção por ser

especificamente aos instantes de tempo que se pode afirmar o Princípio lógico

de Não Contradição (PNC). Por conseguinte, a radical diferença entre tempo e

eternidade não existe em Bolzano. No entanto, isto não significa que a

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distinção entre “eterno” e “temporal”, não apareça em Bolzano; tais adjetivos

serão usados às substâncias conforme a disposição das mesmas dentro do

tempo. Deus e os seres criados correspondem a duas diferentes maneiras de

estar no tempo. As criaturas são mutáveis no tempo. Deus, por sua vez, está

no tempo de forma absolutamente imutável. Por esse motivo que

denominamos Deus como eterno e as coisas do mundo como temporais.

Bolzano conclui então que o tempo não é algo que existe; ele não passa

nem há de passar, não possui existência e o presente por si mesmo não existe.

A instantaneidade é como um “piscar de olhos”, um “Blick mit dem Auge”, um

“clin d’œil” (BOLZANO, 1993: 136). Porém não é correto afirmar que o tempo

não é nada. No § 40 de seus Paradoxos, Bolzano apresenta que o tempo

determina as substâncias, que estas saiam de um estado de coisas para outro,

que propriedades sejam perdidas e outras adquiridas, sem que haja

contradição, que em um mesmo instante, que dois atributos contraditórios não

recaiam sobre a mesma substância. Para que possamos entender o modo

como Bolzano aponta a obediência ao princípio de Não Contradição (PNC) é

necessário detalhar a definição de “tempo” e de “espaço” no pensamento

bolzaniano.

Antes de definir o espaço, Bolzano apresenta os equívocos atribuídos a

tal conceito, até mesmo por importantes nomes da ciência, como Newton, que

definiu o espaço como “sensório da divindade10” (BOLZANO, 1993: 138).

Bolzano aponta a representação dos pontos do espaço sob a forma de um

plano coordenado (representação esta devida a Descartes e a Fermat, no

século XVI), quando descobrimos que poderíamos localizar as substâncias em

qualquer ponto do espaço11

A respeito da definição de espaço, Bolzano considerou a definição de

Kant a mais infeliz, pelo fato de não atribuir uma substância propriamente dita,

qualquer coisa objetiva, material, empírica ao espaço, e sim, subjetiva, pura e

abstrata da intuição

por meio de um sistema de coordenadas.

12

10 “et grand Newton lui-même, eut l’idée de definir l’espace comme sensorium de la divinitè”. 11 “On crut découvir avec Descartes seules les substances dites matérielles se trouvent dans l’espace”. 12 “Kant, enfin, eut la malhereuse idée, reprise encore aujord’hui par de nombreaux penseurs, de considèree léspace ou le temps nom comme quelque chose d’objetif, mais comme une form purement subjetive de notre intuition”.

. Na Crítica da Razão Pura Kant demonstra duas formas

de conhecer, uma pura à priori, e outra a partir da experiência à posteriori. Na

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obra Estética Transcendental Kant atribuía ao espaço e ao tempo a definição

de formas a priori da sensibilidade, “procurando demonstrar que são formas

apriorísticas e, portanto, independentes da experiência sensível13

Chamo lugares as determinações das substâncias criadas que indicam as razões para que elas estejam aqui, em um tempo que determine tais qualidades, dando umas das outras tais mudanças precisamente; e chamo espaço, espaço total, a coleção de todos os lugares

(CHAUÍ,

apud KANT, 2000: 9). Bolzano mantinha uma postura oposta a de Kant em

vários pontos estruturantes das teorias de ambos, sendo que, para Bolzano, o

espaço é a condição de apresentação das substâncias, não podendo ser

compreendido como “espaço subjetivo”. Desta forma, o espaço não é objetivo

materialmente, pois não é substância; e não é subjetivo, pois não é a priori. O

espaço é a condição imprescindível na localização das substâncias.

Bolzano foi o primeiro pensador a afirmar a configuração do espaço em

três dimensões, assim como sustentou a tese de que o espaço não possui

propriedades materiais, mas caracteriza-se como um dos aspectos

determinantes das substâncias: é o espaço que nos dá o lugar em que as

substâncias se encontram. O espaço, deste modo, não possui características

empíricas, mas é a condição de possibilidade para que as mesmas se

apresentem.

14

13 Este esclarecimento consta na Coleção Os Pensadores, na qual Marilena Chauí faz os comentários da Vida e Obra de Immanuel Kant. 14“J’appelle lieux les determinations des substances créees qui indiquent, la raison pour laquelle celles-ci, ayant en un temps determine telles qualités, apportent les unes aux autres précisément tells changements: et j’appelle espace, espace total, la collection de tous ces lieux.

(BOLZANO, 1993: 138).

O lugar é a determinação da localização das substâncias. A coleção de

todos os lugares forma o espaço em sua totalidade.

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1.3 O princípio de Não Contradição em Bernard Bolzano e a definição bolzaniana de tempo

No §39 dos Paradoxos, Bolzano formula a pergunta sobre a realidade do

tempo: se é o tempo alguma coisa real, se é uma substância ou atributo, e se

for substância, se seria uma substância criada ou não criada. É fato que o

interesse de Bolzano pelo conceito de tempo reside na estrutura ontológica do

infinito, e para tanto, era fundamental entender a configuração do tempo na

realidade15

15 “La question fut soulevée de savoir si le temps est quelque chose de réel, et, dans l’affirmative, s’il est substance créée ou incréée”.

(BOLZANO, 1993: 135).

Bolzano se depara com questões relativas à natureza do real, assim

como com questões relativas ao que seja o mundo e o que é perceptível a

intuição. Juntamente a isso, a questão da criação do tempo como uma

substância ou atributo do mundo mostra a preocupação de Bolzano com as

considerações teológicas. Quando a criação divina entra na definição do

tempo, o tempo passa a ter sido criado em um começo determinado por Deus e

assim segue para um dia ter seu fim. O tempo sofreria transformações.

Cairíamos, critica Bolzano, no ditado popular: “os tempos mudam”, um

absurdo, pois o tempo precisamente é tempo porque não muda. As coisas do

mundo é que mudam com o tempo. Não possui o tempo a propriedade de

transformar-se e sim de possibilitar a transformação.

Bolzano afirma que o tempo não é real, no sentido de não ser uma

substância e nem um atributo dela. Contudo, o tempo é perceptível à intuição,

pois é a condição que possibilita que as coisas do mundo mudem. O tempo

não é qualquer coisa de variável, mas onde há toda a variação das coisas do

mundo. Refutando inteiramente a tese que afirma a realidade do tempo como

substância (criada ou não) ou como um atributo desta, Bolzano entende que o

tempo é uma determinação das substâncias, assim como o espaço. Para

definir o tempo há de se ressaltar que ele é um “princípio de determinação das

substâncias”, ou seja, sem essa ressalva a definição do tempo ficaria

incompleta, pois, é no tempo que as substâncias mudam e se transformam.

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O tempo é a condição de possibilidade de qualquer mudança e, além

disto, propicia que as substâncias sejam situadas localmente em relação às

mudanças. Cabe ao instante de tempo situar uma substância em um processo

de mudança. Nos “Paradoxos do Infinito”, Bolzano diz o seguinte:

[O] tempo, para mim, não é qualquer coisa variável, mas certamente [isto em que toda variação tem lugar]. Quando se diz o contrário – como no provérbio: os tempos mudam, entende-se por tempo as coisas que nele se encontram e seus atributos (...). O tempo, em si mesmo, é a determinação inerente a toda substância [que] varia dependente do variável, (o que dá na mesma), dependente do tempo16

16 “C’est pourquoi le temps n’est pas non plus, pour moi, quelque chose de variable, mais biên plutôt ce em quoi toute varaiation a lieu. Lorsqu on dit le contraire, comme dans le proverbe: les tampes changent; on entende alors par temps les choses qui s’y trouventet leurs états(…) Le temps lui-même, préciserons-nous, est la détermination inhérente à toute substance variable, ou (ce qui revient au meme) dépendante”.

(BOLZANO, 1993: 136).

Além de ser onde toda mudança tem lugar, o tempo, sob a forma do

instante, permite que as substâncias se determinem como não-contraditórias. É

neste sentido que a noção de instante de tempo é fundamental para a

formulação do princípio de Não Contradição; é em relação ao instante de

tempo que está interditada a presença de atributos contraditórios a uma

substância qualquer. Da noção de instante e de simultaneidade, surge a

análise bolzaniana do Princípio de Não Contradição (PNC). Bolzano argumenta

que a representação do tempo deve adicionar àquela da substância, o que

significa que o tempo, na forma de instantaneidade, é um princípio de

determinação das substâncias do mundo. Isto significa em outras palavras, que

sendo dada uma dupla qualquer de propriedades contraditórias, digamos b e

não–b, relativamente a um instante determinado, apenas uma das

propriedades pode ser atribuída a certa substância, qualquer que seja. Tal

princípio nada mais é do que o Princípio de Não Contradição (PNC).

Desta maneira, a formulação de Bolzano do princípio de Não Contradição

se dá como segue:

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[A] representação do tempo deve se ajustar a da substância, a fim de permitir que, sendo dado um par de propriedades contraditórias b e não-b, possamos atribuir uma em detrimento da outra. Mais precisamente, a determinação da qual falo é uma única parte de tempo, um ponto no tempo17

17 “la représentation du temps doit s’ajouter à celle de la substance, afin de permettre, étant donné um couple quelconque de proprieétés contradictoires b et non-b, d’attribuer une em vérité à ladite substance, et de lui refuser l’autre. Plus excatement, la détermination dsont jê parle est une unique partie simple du temps, um point dans le temps (...).

(...) (BOLZANO, 1993: 136).

O instante é apresentado por Bolzano como um ponto no tempo, um

ponto na linha do tempo. Cada ponto corresponde a um único instante. Pode-

se fazer a escolha de um instante qualquer da linha e afirmar: “neste instante

não é possível b e não-b”. Sendo assim, não é possível desassociar o princípio

de Não Contradição da noção de um instante “isolado” de tempo.

1.4 A noção de instante isolado

De acordo com as definições a respeito do tempo apresentadas por

Bolzano, o instante é análogo a um ponto geométrico em uma linha reta. A

linha reta pontilhada de instantes é a representação da concepção ocidental do

tempo. O tempo então é entendido como a sucessão dos instantes, pontilhados

um a um na linha reta. Formulado deste modo, no tempo linearmente

representado, cada instante equivale a um único ponto. Sendo o tempo assim

definido, não há possibilidade de desobediência ao princípio aristotélico de Não

Contradição. Dito de outra maneira: como o instante é um ponto na reta, é

impossível que seja atribuído a qualquer objeto situado neste ponto, sob o

mesmo aspecto, duas propriedades contraditórias.

A contradição é uma interdição que as substâncias recebem quando

vistas “paradas em instantes fotográficos”. A contribuição de Bolzano está em

apontar a obediência ao princípio aristotélico de Não Contradição com relação

ao conceito de simultaneidade – de certo modo implícito em Aristóteles. O que

fez Bolzano, portanto, foi explicitá-lo.

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1.5 O instante como “ponto de acumulação” em oposição ao instante como “ponto isolado”.

Usarei o conceito de “ponto de acumulação” para que a noção de instante

seja apresentada não como um ponto geométrico isolado, mas como sendo

algo indissociável de sua vizinhança. Tal conceito é corriqueiro em topologia, e

será aqui definido conforme o fez o matemático Georg Cantor, criador da teoria

dos números transfinitos. Segundo Cantor:

Um ponto da linha de tal forma situado que, [qualquer que seja a sua vizinhança em um conjunto P], nesta pode-se encontrar infinitos outros pontos de P (...) Por vizinhança de um ponto, entende-se qualquer intervalo que contém tal ponto em seu interior (CANTOR apud: KATZ, 1993: 661).

Para entender a estrutura ontológica dos instantes do tempo, admitirei que

estes mesmos instantes formam um conjunto linearmente dado e contínuo18

1) Todo elemento de A é um ponto de acumulação;

.

Cantor definiu três condições fundamentais para que um conjunto qualquer A

seja chamado de “contínuo”, a saber:

2) Entre dois elementos quaisquer de A existe uma quantidade

infinita de elementos.

3) Todo ponto de acumulação de A está em A19

Consideremos as condições:

.

1) Segundo tal critério, em um contínuo linear não há elemento que

não seja ponto de acumulação. Qualquer segmento de tempo, em

18 Sobre o conceito de conjunto linear e de conjunto contínuo, ver Cantor, pg. 110 e 133, 1941. 19As três condições definidoras do “contínuo’ não são exatamente as mesmas de Cantor. A definição original de Cantor foi suprimida a fim de evitar tecnicismos desnecessários para o presente estudo; na realidade, apenas a condição 1), idêntica à de Cantor, será de fundamental importância para o estudo do princípio de não contradição.

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sua representação usual como segmento de reta é um contínuo

linear e, portanto, satisfaz a condição.

2) Desta maneira, todo instante de tempo situado em um contínuo

linear é um ponto de acumulação. Os instantes dentro do contínuo

temporal são todos pontos de acumulação; isolá-los com uma “pinça”

para indexá-los em proposições, o que de fato é feito na formulação

bolzaniana do princípio de Não Contradição (PNC), é tratar o instante

fora do seu contexto de origem.

3) A terceira condição para um conjunto ser considerado como

contínuo diz que toda seqüência de elementos definida no contínuo,

uma vez que tenha limite, este se encontrará dentro do contínuo.

Sendo admitido que o instante é um ponto de acumulação, infere-se que

não existem instantes isolados no contínuo linear. O que se pretende com esta

afirmação é demonstrar que os instantes isolados são independentes uns dos

outros e os instantes como “pontos de acumulação” não são.

Se todo instante possui uma vizinhança de instantes, então cada

momento de tempo, dentro do contínuo temporal, apresenta um entorno de

instantes passados e futuros, que orbitam no momento presente. Pensando na

experiência humana, na estrutura cognitiva com os instantes não posso deixar

de considerar a faculdade da memória. Estes instantes que se sucederam são

concedidos pela memória, que organiza a sucessão e os liga através de um fio

condutor, de modo que ocorre uma correspondência, um intercâmbio, uma

inter-penetrabilidade entre todos esses instantes.

O instante representado como “ponto de acumulação” admite, entorno de

si, os instantes passados, juntamente com os instantes futuros em função da

expectativa gerada pela própria continuidade, pelo próprio movimento da

sucessão.

A vivência do momento presente concilia os instantes há pouco vividos

transformando-os em passado e sincronicamente faz expectativas para os

momentos que serão vividos, os instantes futuros. Por meio desse

ordenamento interno da memória que é possível afirmar a interdependência

entre os instantes e defender que sejam admitidos como “pontos de

acumulação”. Vistos como “pontos de acumulação”, é possível formar imagens

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metafóricas ilustrativas desses instantes, onde cada instante imerso em sua

vizinhança, se aproxima da imagem intuitiva de um “cacho de uvas”, ou ainda

como sugeriu Henri Bergson, como um “novelo” (BERGSON, 1979: 16 apud

CORREIA, 2009: 61) 20

20A respeito da referência mencionada, conferir BERGSON, H. Introdução à Metafísica. São Paulo: 1991.

.

Agostinho de Hipona, outro filósofo extremamente significativo para o

estudo do tempo, formulou em sua obra Confissões importantes definições

sobre a natureza do tempo, dividindo-o em três partes: o que passou, passado;

o que há de passar, futuro e, o que se dá no momento atual, presente. Sobre o

instante, Agostinho sugeriu que fosse como uma âncora, um lugar em torno do

qual orbitam o passado e o futuro, idéia assimilada posteriormente por

Bergson.

1.6 O princípio de Não Contradição admitido somente pela mensurabilidade

Com base no pensamento de Agostinho pode-se inferir que a noção de

instante que fundamenta a obediência estrita ao princípio de Não Contradição

não é possível dentro do contínuo temporal. O instante isolado não existe. A

instantaneidade, contudo, existe como lugar de acumulação de infinitos pontos

ligados pela ponte da memória, cabendo a esta ligar o passado ao futuro, pelo

ponto intermédio do presente. Agostinho afirma:

(...) medimos os tempos ao decorrerem. E se alguém disser: “Como sabeis?”, responder-lhe-ei: “Sei porque medimos”. Não medimos o que não existe. Ora, as coisas pretéritas ou futuras não existem. Como medimos nós o tempo presente, se não tem espaço? Mede-se quando passa. Porém, quando já tiver passado, não se mede, porque já não será possível medi-lo.

... Mas de onde se origina ele? Por onde e para onde passa, quando se mede? De onde se origina senão do futuro? Por onde caminha, senão pelo presente? Para onde se dirige, senão para o passado? Portanto, nasce naquilo que ainda não existe, atravessando aquilo que carece de dimensão, para ir para aquilo que já não existe.

...

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Porém, que medimos nós senão o tempo em algum espaço? (AGOSTINHO, 2000: § 27, cap. 21, 328) 21

21 Conferir referência: AGOSTINHO. Confissões, Capítulo 21 Novas dificuldades: como pode medir-se o tempo? Nova Cultural, Livro XI, 2000.

.

Agostinho como grande pensador que era percorreu a Física e a

Metafísica procurando as respostas para suas reflexões filosóficas e intuições

religiosas. Discutiremos no próximo capítulo o pensamento de Henri Bergson e

a grande influência que Agostinho seguramente provocou nas teorias

bergsonianas. Uma delas certamente foi à respeito da medição do tempo em

detrimento do espaço, como mostra a citação acima mencionada.

A análise que busco neste ponto direciona a discussão para o princípio de

Não Contradição e o tempo vivido pela consciência, organizado pela memória.

Pois o princípio de Não Contradição só é admitido se pensarmos numa

definição de tempo sem memória e sem consciência. A pergunta que proponho

é: como fica então o princípio de não contradição, num tempo real, da

consciência, da memória, o único de fato experienciado, vivido?

Tempo é tempo como tal, onde existe a memória que marca o instante

inicial - o antes - e sucessivamente aqueles que virão no decorrer - o depois.

Onde existe a consciência, ali passará o tempo. Sem a memória e a

consciência não existe o entendimento da sucessão do tempo. O agora, o

eterno hoje, - como afirmou Agostinho de Hipona -, só é experimentado por um

único ser que se encontra fora do tempo, que se encontra na eternidade, Deus.

O agora, não é experimentado pelos seres que estão no tempo, estes são

temporais.

O presente do qual Agostinho se refere é um momento breve, tão breve

que não há como medi-lo, pois se confunde com o futuro de onde vem e com o

passado que já se foi.

Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço. (AGOSTINHO, 2000: § 20, cap. 15 : 324).

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O tempo agostiniano é fundamentalmente um tempo subjetivo. Os

instantes são interligados, e esta imagem nos sugere a perspectiva apontada

por Cantor e sua definição de “pontos de acumulação”, que utilizo para definir

os instantes como conjuntos contínuos. A mensurabilidade do tempo é uma

das questões discutidas por Agostinho e levantada aqui.

Se o tempo caracterizado como reta linear é uma construção ideal

elaborada pela ciência, pela matemática e pela física, para permitir a medida

dos deslocamentos dos corpos no espaço, o que devemos considerar a

respeito do princípio de Não Contradição? Como entender o interdito da

atribuição simultânea de propriedades contraditórias em um tempo real, vivido

e experimentado pela faculdade humana da memória, e que de fato possibilita

a experiência do antes e do depois, a experiência da sucessão, do mover-se

contínuo do tempo, da ininterrupção da fluidez dos instantes e da

correspondência que existe entre os instantes que se sucedem?

Afirmo efetivamente, se o tempo real é o tempo da consciência, da

memória, do contínuo temporal, e do instante como “ponto de acumulação” em

frontal oposição ao instante isolado, fragmentado e caracterizado como ponto

geométrico numa reta linear, então, o princípio de Não Contradição poderá ser

atenuado, perdendo assim sua postura de inviolabilidade e seu caráter

ontológico absoluto.

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Capítulo 2 Henri Bergson, Agostinho e os procedimentos para medir o tempo

O tempo que dura não é mensurável.

(BERGSON, 2006)

O que permanece, o que dura? Apenas aquilo que tem razões para começar.

(BACHELARD,1988).

2. Críticas à ciência

O filósofo francês Henri Bergson (1859 – 1941) apresenta seus

argumentos no sentido de uma crítica às metodologias científicas que

pretendem explicar a dimensão do homem a partir da previsibilidade e

manipulação de aspectos naturais, biológicos e sociais. Sua filosofia baseada

em uma fenomenologia do espírito, busca compreender melhor a experiência

da consciência, rediscutindo os conceitos de intuição, espaço e tempo. Trago a

referência de Bergson neste capítulo com o objetivo de apoiar-me em sua

definição de tempo para pensar na relação do tempo com o Princípio de Não

Contradição (PNC).

Em sua obra Duração e Simultaneidade Bergson analisa uma noção de

tempo sustentada pela experiência análoga ao fluxo interno de nossa

consciência e procurou entender a noção de tempo de Einstein e da Teoria da

Relatividade Geral e Restrita22

22 Bergson, em seu livro Duração e Simultaneidade procurou mostrar que o tempo abordado pelas teorias da relatividade especial (a teoria einsteniana que diz respeito aos invariantes físicos de medições feitas em sistemas de referência inerciais (sem aceleração de qualquer espécie)) e pela teoria da relatividade geral (a teoria da gravitação de Einstein) é basicamente um tempo coordenada, isto é, um tempo que se relaciona coordenada em um espaço semi-euclidiano denominado de espaço de Minkowski. Na realidade, nesta clássica obra de Bergson, os aspectos teóricos da relatividade geral não são tão enfatizados, sendo que a crítica bergsoniana do tempo da relatividade é mais direcionada à relatividade restrita.

. A ciência, segundo Bergson, assumiu o

compromisso de apresentar fielmente a realidade do mundo através de seus

procedimentos. Contudo, o mundo admitido pela ciência é adaptado aos seus

procedimentos para que possa ser estudado, ao invés de seus procedimentos

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se adaptarem à realidade do mundo. Uma das questões explícitas com relação

a essa afirmação é justamente a questão do tempo.

A faculdade da inteligência e o raciocínio procuram, através do método

analítico, medir a passagem do tempo e, desta forma, tomam-no como uma

grandeza a ser medida, como uma extensão a ser mensurada. Surge então a

pergunta: é o tempo uma grandeza a ser medida? É exatamente aos

procedimentos da medição científica que Bergson lançou sua resposta,

afirmando que o tempo não pode ser medido, pois a mensurabilidade destina-

se aos deslocamentos dos corpos no “espaço”. Medir o tempo, portanto, é

medir o espaço, e assim atribuímos unidades de medidas ao tempo em estrita

analogia ao que fazemos quando mensuramos grandezas espaciais. Medir o

tempo com as regras das unidades de medidas das grandezas é uma prática

da ciência, logo, uma convenção, atribuindo ao tempo características próprias

do espaço.

Tudo que é mensurável, medido, tomado como grandeza, escapa a

definição de tempo para Bergson e passa a ser considerado por ele como

“justaposição” (BERGSON, 2006: 75), ou seja, os instantes de tempo

posicionados um ao lado do outro, tomados em sua infinitude contínua, formam

um segmento de reta. Bergson chega a afirmar que o tempo real não possui

instantes, “pois toda a duração é espessa”. Adquirimos naturalmente a idéia de

instantaneidade e simultaneidade porque tomamos o hábito de “converter o

tempo em espaço” (BERGSON, 2006: 62). Toda a construção da noção de

tempo em Bergson gira em torno da desconstrução do tempo adotado pela

ciência que se acostumou a considerar o tempo como grandeza espacial e

portanto, mensurável.

E, a partir do momento em que a uma duração fazemos corresponder uma linha, a porções da linha deverão corresponder “porções de duração” e a uma extremidade da linha uma “extremidade de duração”: será esse o instante – algo que não existe realmente, mas virtualmente. O instante é o que terminaria uma duração se ela se detivesse. Mas ela não se detém. O tempo real não poderia, portanto fornecer o instante; este provém do ponto matemático, isto é, do espaço. (BERGSON, 2006: 62).

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Com estas críticas de Bergson à ciência e ao positivismo23

Bergson percebeu que na noção do tempo científica havia um aspecto de

“impessoalidade”, impessoalidade esta que o senso comum, ao pensar sobre o

tempo, também atribui ao fluxo temporal: “todas as consciências humanas são

da mesma natureza, percebem da mesma maneira, de certa forma andam no

mesmo passo e vivem a mesma duração” (BERGSON, 2006: 54). A explicação

para essa noção é levantada por Bergson na seguinte questão: “como

passamos desse tempo interior para o tempo das coisas?” (BERGSON, 2006:

52). A percepção nos apresenta concomitantemente o que está em nós e fora

de nós: estados que se dão em nossa estrutura humana e estados que se dão

ao nosso redor, num contexto simultâneo; o mundo interior e exterior, algo

como uma observação contínua, da qual Bergson denominou duração

consciente

, posso

também criticar a noção de tempo admitida por Bolzano, que tomava a

definição de “uma única parte simples do tempo”, como a definição para

“instante”, aceitando-o como um ponto na linha, como a parte mais simples do

tempo. Bergson assim refuta inteiramente a noção de ponto matemático,

chamando este tipo de tempo espacializado de “tempo ressecado” (BERGSON,

2006: 71).

No exemplo da estrela cadente que forma aos nossos olhos uma nítida

linha de fogo, da qual dividimos à vontade, Bergson afirma que algo é

indivisível, sua mobilidade. Nesse sentido, o que podemos dividir é o espaço

que ela deixa como rastro e não podemos dividir o fluxo que é provocado por

sua mobilidade; “essa mobilidade é a pura duração”. O tempo bergsonia no é o

“desenrolar” e o espaço é o “desenrolado” (BERGSON, 2006: 58).

24

23 Por « positismo », entende-se nesta pesquisa qualquer posição intelectual ou filosófica que atribui à ciência um valor epistemológico ou heurístico superior aos das outras formas de saber. Ver Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris, 1889, principalmente caps. II e III; Matière et Mémoires, Paris, 1896, caps. I e IV; L’Evolution créatice, passim. Cf. Introduction à la métaphysique,1903; e La perception du changement, Oxford, 1911, apud BERGSON, 2006: 52 24 Ver Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris, 1889, principalmente caps. II e III; Matière et Mémoires, Paris, 1896, caps. I e IV; L’Evolution créatice, passim. Cf. Introduction à la métaphysique,1903; e La perception du changement, Oxford, 1911, apud BERGSON, 2006: 52.

. Ocorre que Bergson faz uma ressalva sobre a percepção que

observamos em nosso entorno e nos estados dados em nós e fora de nós.

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Gradualmente, estendemos essa duração ao conjunto do mundo material, porque não vemos nenhum motivo para limitá-la à vizinhança25

A hipótese de graus distintos de consciência entre os seres vivos e uma

multiplicidade de durações ao longo do reino animal não é a opção pretendida

por Bergson. “Optaríamos, no estado atual de nossos conhecimentos pela

hipótese de um tempo material, uno e universal” (BERGSON, 2006: 54). O

tempo único e impessoal que se configura no tecido desenhado pela malha das

experiências exteriores e na pretendida identidade das durações internas,

“essa é a hipótese do senso comum” (BERGSON, 2006: 55), uma duração que

perpassa internamente, circunda externamente e é expandida indefinidamente.

imediata de nosso corpo; o universo nos parece formar um único todo, e, se a parte que está à nossa volta dura à nossa maneira, o mesmo deve acontecer, pensamos nós, com aquela que a rodeia por sua vez, e assim indefinidamente (BERGSON, 2006: 52).

Compreendemos a duração de nossa consciência individual e supomos

que as demais consciências apresentem um ritmo mais ou menos aproximado

com o fluxo admitido por nossa percepção. Algo partilhado por todos. Esta é a

origem do aspecto impessoal que atribuímos ao tempo, que nasce no senso

comum e é identificado no interior do conhecimento científico. Bergson explica

que nosso entorno e a percepção que temos dele são fatos da experiência,

fatos estes permeados pelo tempo duração. Como se no mundo diversificado,

em que vários contextos distintos coexistam, um observador pudesse notar, em

todos eles, o mesmo ritmo de mudança e de variação de estados. Essa é uma

ideia difundida no pensamento científico e também corrente no senso comum,

fruto da tradição ocidental da concepção e definição do tempo.

“Que há de verídico, que há de ilusório nesse modo de conceber as

coisas? (BERGSON, 2006: 53). Bergson quer saber onde começa a

experiência com o tempo e a partir de que ponto essa experiência passa a ser

hipótese.

25 A noção de “entorno” e “vizinhança” aqui apresentada por Bergson não é a mesma que foi anteriormente apresentada por meio das definições de Cantor. Chamo a atenção para isso, justamente para poder desconstruir o caráter impessoal da consciência, do qual pretende Bergson e me aproxima da teoria do estudo de Cantor.

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Bergson aponta uma nova hipótese: ao falarmos de uma realidade que

dura, numa experiência de duração com mundo real, precisamos introduzir a

consciência nesse contexto. Uma consciência que não é somente um

observador, mas um olho que percebe e uma mente que organiza

cognitivamente aquilo que vê, relaciona e atribui significado num esforço

reflexivo. Pois é muito fácil imaginar que num contexto onde não está presente

a consciência o tempo não passa. Onde está a mente consciente, ali passará o

tempo, pelo simples fato de que temos a compreensão do antes e do depois,

da operacionalização da memória no fluxo temporal. Da sucessão organizada

pela memória em um estado ativo da consciência. De um instante primeiro ao

seguinte, marcando dois pontos num período de tempo; antecedente e

conseqüente.

Caso não seja possível compreender a determinação causal, do antes e

do depois e seu desenrolar, – própria da compreensão ocidental do ser

humano com o tempo no mundo – tomaríamos o tempo como “puro

instantâneo”. Um instante sem começo e nem fim.

O tempo do antes e do depois apropriado pela epistemologia ocidental se

compromete dessa forma com a presença de um elemento fundamental, de um

arquivo central e organizativo chamado: memória. Memória pressupõe

consciência.

Eis aí, o tempo real, ou seja, percebido e vivido. Eis também qualquer tempo concebido, pois não se pode conceber um tempo sem representá-lo percebido e vivido. Duração implica, portanto consciência no fundo das coisas pelo próprio fato de lhes atribuirmos um tempo que dura (BERGSON, 2006: 57).

Como Bergson chega a essas conclusões? Qual é então a noção de

tempo bergsoniana? “Não há dúvida de que o tempo, para nós, confunde-se

inicialmente com a continuidade de nossa vida interior” (BERGSON, 2006: 51).

O fluxo de nossa vida interior é o exemplo mais aproximado que dispomos para

compreender o que é o tempo. O tempo é um fluxo, uma passagem, um

escoamento, uma continuidade. A experiência humana com o tempo é

naturalmente entendida como uma duração.

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2.1 O tempo como duração

Bergson acreditava no grande poder da faculdade da intuição

(THONNARD, 1968: 921 apud CORREIA, 2009: 43) que alcança a realidade

pelo lado de dentro assim como na metáfora da “melodia” (BERGSON, 2006:

51), com a qual podemos acessar a realidade do mundo e a fluidez do tempo.

Uma fluidez que quase coincide com a fluidez da melodia que percebemos de

olhos fechados, a melodia interior do fluxo de nossa consciência, seu

escoamento, sua passagem, sua continuidade.

O que é essa continuidade? A de um escoamento ou de uma passagem, mas de um escoamento e de uma passagem que se bastam a si mesmos, uma vez que o escoamento não implica uma coisa que se escoa e a passagem não pressupõe estados pelos quais se passa: a coisa e o estado não são mais que instantâneos da transição artificialmente captados; e essa transição, a única que é naturalmente experimentada, é a própria duração. (BERGSON, 2006: 51).

Essa continuidade não é acessível por meio dos procedimentos objetivos

da ciência. Essa continuidade é o tempo bergsoniano que é essencialmente

“subjetivo”. O tempo impessoal, uno e universal pretendido pela ciência e

conjecturado pelo senso comum é “objetivo”.

A transição que Bergson se refere - da citação acima -, é a continuidade

temporal, a duração contínua, diferente da expansão uniformizadora do

entorno, anteriormente mencionada. A transição é a marca do desenrolar. O

posicionamento de Bergson é, portanto, contrário, no que diz respeito a

uniformização do entorno e a uniformização da duração.

A continuidade é o prolongamento do que já passou no que está se

desenrolando26

26 Vale aqui citar Aristóteles: ‘... [o tempo] é um todo contínuo: o presente, o passado e futuro estão vinculados’ (Aristóteles, Categorias, 5 a1 – 10). Nesta passagem, Aristóteles endossa a tese de que os instantes de tempo, por força da continuidade que se encontra no tempo enquanto agregado, não podem ser isolados.

. O prolongamento só é permitido pela presença da faculdade

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da memória, pois, sem a memória, não teríamos como identificar o antes e não

entenderíamos o agora; tampouco esperaríamos o depois. A memória é a fonte

gerenciadora da experiência humana com o tempo e, segundo Bergson é a

partir da memória que devemos estudá-lo e defini-lo.

Quando observamos o vôo de um pássaro de uma árvore para outra,

sabemos que no ponto inicial ele estava inerte e se moveu para o ponto

seguinte, onde parou. A memória nos fornece o dado inicial - o ponto onde

estava o pássaro inicialmente, assim é possível medir o seu deslocamento e

saber quantos intervalos de tempo levou o pássaro para chegar ao seu ponto

final. Esse deslocamento significa a trajetória no espaço, portanto, a

mensuração é um procedimento que convencionamos para medir os

deslocamentos dos corpos. Usamos instrumentos de medida das grandezas

geométricas que reforçam esse argumento, por exemplo: o relógio que marca a

seqüência das horas na trajetória angular do pino em uma circunferência. No

caso do pássaro usamos a linha reta e a régua escalonada com índices

geométricos.

Bergson explica que o tempo que vem se prolongando do “momento do

desenrolar do universo”, num devir contínuo, atualizando-se até ter um fim,

constitui-se de um todo inteiro e que suas partes são precisamente os pedaços

que nossa percepção partiu para medi-lo, ao parti-lo medimos o espaço que a

extensão das coisas possui.

Como compreendemos o tempo de forma mensurável não nos damos

conta da inversão que Bergson pretende. Mas é simples. Bergson apresenta

um exemplo muito ilustrativo.

Se passar meu dedo sobre uma folha de papel sem olhar para ela, o movimento que realizo percebido de dentro, é uma continuidade de consciência, algo de meu próprio fluxo, duração, enfim. Se agora, abrir os olhos verei que meu dedo traça sobre a folha de papel uma linha que se conserva, onde tudo é justaposição e não mais sucessão; tenho aí algo da ordem do desenrolado, que é o efeito do movimento e que também será seu símbolo (BERGSON, 2006: 58).

Cada vez que medimos algo como na trajetória de um corpo,

estabelecemos um antes e um depois. Atribuímos a esses instantes a definição

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de ponto, que designa a posição, o lugar, logo, o espaço. Provém da

matemática, em especial da geometria essa definição de tempo. Para Bergson

este é o tempo matemático; “o tempo que dura não é mensurável” (BERGSON,

2006: 57).

2.2 Desconstruindo a noção de “instante” a partir da ideia de solidariedade ininterrupta

O modo como Henri Bergson entende a configuração dos instantes

reforça sua tese de combate ao tempo geometrizado, pretensamente objetivo.

Admitir os instantes de modo isolado é tomá-los como “puros instantâneos que

aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantemente”

(BERGSON, 2006: 51). Bergson buscou garantir que através da memória

ocorre o prolongamento e a continuidade do antes no depois, impedindo que o

momento inicial e o momento posterior, sejam entendidos isoladamente e

independentemente. O antes não é um instante puro que nasce e

imediatamente morre, sem deixar resíduo, conteúdo algum no depois. Mesmo

que Bergson defenda que cada instante é único e novo, este sempre carrega

atrás de si o conteúdo já vivido, daí a imagem do “novelo”.

A memória é a base elementar para fazer a ligação entre os dois pontos, e

caso se objetasse para um aspecto pessoal de cada consciência, Bergson

refuta o sentido antropomórfico (BERGSON, 2006: 56) dado à memória ou

aquilo que poderia ser visto como pessoalidade, dizendo que se pudéssemos

conceber o primeiro instante do desenrolar do universo e seu instante

imediatamente sucedido, - momento este totalmente desprovido de consciência

-, ainda assim pressuporíamos uma memória, pois o instante posterior se

desdobrou necessariamente do que ocorreu no instante inicial e assim há uma

ordem nesse desenrolar. O primeiro momento evolui para outro imediatamente

sucedido entrando o tempo na história do universo, reiterando que, ainda assim

aparecerá a memória porque ela é que ligará o antes e o depois.

Mais uma vez é o presente que permite a possibilidade de base inicial

para o passado e de condição para o contínuo daquilo que está por vir.

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Bergson defende ainda, que mesmo que não seja levado do passado seu

conteúdo inteiro, ou seja, que este não seja armazenado inteiramente, ele

prolonga parcialmente seu compósito no instante posterior, único e

completamente novo.

Este é o ordenamento da duração, como apresentado por Bergson:

Pode-se conceder a essa memória o estritamente necessário para fazer a ligação; será, se quiserem, essa própria ligação prolongamento do antes no depois imediato com um esquecimento perpetuamente renovado do que não for o momento imediatamente anterior. Nem por isso se terá deixado de introduzir a memória. A bem dizer, é impossível distinguir entre a duração por mais curta que seja, que separa dois instantes e uma memória que os ligasse entre si, pois a duração é essencialmente uma continuação do que não é mais no que é (BERGSON, 2006: 57).

O esquecimento perpétuo e o renovado único e original são

características que permitem a ligação, pelo fato de não levar do passado seu

conteúdo todo e assim esgotar o presente, permitindo a abertura para uma

experiência totalmente nova. O fio condutor que os liga é a chance da memória

relembrar e presentificar o passado, que já não existe mais.

Os instantes configurados desta maneira são interconectados,

interpenetrados e interdependentes, porque possuem a solidariedade que os

mantêm, impedindo que sejam então divididos, fracionados e concebidos como

isolados. Assim como a melodia que não se parte, Bergson apresenta outra

importante metáfora para exprimir a melodia, a metáfora da “chama”, que

mesmo atravessada por uma lâmina, não se parte; “quando tentamos cortá-la,

é como se passássemos bruscamente uma lâmina através de uma chama:

dividimos apenas o espaço ocupado por ela” (BERGSON, 2006: 58).

Assim Bergson afirma:

Mas, quando se trata do tempo, só é possível contar as extremidades: será simplesmente uma convenção dizer que desse modo mediu-se o intervalo. Se, todavia, observamos que a ciência opera exclusivamente com medidas, percebemos que no que concerne ao tempo a ciência conta instantes, anota simultaneidades, mas continua sem domínio sobre o que se passa nos intervalos (BERGSON, 2006: 68).

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Contar instantes é tomá-los justapostos, como pontos geométricos

inseridos numa reta linear, pontos isolados e independentes entre si. Anotar

simultaneidades é correlacionar o deslocamento de um corpo no espaço ao

deslocamento angular do pino de um relógio em uma circunferência. Eis os

procedimentos científicos para medir o tempo.

A noção de instante oferecida por Bolzano é contraposta nesta pesquisa

às definições de Bergson do tempo contínuo vivido pela consciência, o tempo

duração. Compreendo que a crítica que Bergson lançou aos métodos de

mensuração do tempo pode ser estendida a Bolzano, pois para Bergson o

instante, na qualidade de algo “isolado”, não é oferecido pelo tempo real, pela

duração. O instante é o expediente que a ciência usa por convenção para

determinar pontos a serem medidos e, assim, necessita de “congelá-los”, de

“separá-los” radicalmente da estrutura contínua da qual eles, os instantes, se

originam. Mas, uma vez que Bergson fala sobre o tempo, é mister que o

pensamento bergsoniano se depare com a questão da simultaneidade e a

defina a contento, dentro do quadro referencial do tempo duração, o tempo da

consciência. A simultaneidade diz respeito a eventos que são contemporâneos

entre si, podem ser percebidos simultaneamente pela consciência, ou seja,

podem ser percebidos sem ruptura do ato da atenção:

Chamo “contemporâneos” dois fluxos que são para minha consciência um ou dois, indiferentemente: minha consciência os percebe juntos como um escoamento único caso queira realizar um ato indiviso de atenção, distingue-os ao contrário de longo a longo se preferir dividir sua atenção entre eles, fazendo inclusive ambas as coisas concomitantemente se decidir dividir sua atenção, mas não cortá-las em dois. Chamo “simultâneas” duas percepções instantâneas apreendidas num único e mesmo ato mental, podendo a atenção mais uma vez fazer delas uma ou duas, à vontade (BERGSON, 2006: 60).

Bergson afirma que ao observarmos um fenômeno qualquer de nossa

escolha, decidimos marcar o instante inicial e o final, e se for ainda de nossa

vontade, podemos pontilhar esse fenômeno de instantes para medi-lo. O que

fica evidente então é que conhecemos os pontos marcados arbitrariamente e

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desconhecemos os intervalos entre os pontos escolhidos. A questão da

simultaneidade ou da contemporaneidade dos instantes é fundamental: é a

partir desta noção que o princípio de Não Contradição, na abordagem

bolzaniana, ganha toda sua dimensão coercitiva, posto que, em Bolzano, ser

simultâneo é relativo “a um mesmo e único instante isolado de tempo”.

2.3 O princípio de não contradição e o tempo bolzaniano.

Bergson e Agostinho estudaram a faculdade da memória para pensar o

tempo e são inúmeras as simetrias27

O modo como fazemos a experiência com o tempo está ligado na

dinâmica do antes e do depois, a sucessão, e o ordenamento dessa passagem

temporal é realizado pela memória. Memória pressupõe sujeito consciente. O

entre suas idéias. Ambos procuram

responder aos seus interlocutores; ambos entendiam que a divisão do tempo

em três partes - passado, presente e futuro - só seria aceitável se fosse o

presente tomado como referencial onde as outras duas partes do tempo se

mantêm ligadas, dando ao presente o caráter de “núcleo central temporal”; e

principalmente, ambos entendiam o tempo como algo oposto a exterioridade

objetiva, de modo que o tempo era essencialmente subjetivo, mas com um

liame na realidade objetiva: o presente dado e apreendido pela intuição

imediata do momento atual.

Com relação ao aspecto de oposição à objetividade do tempo em Bergson

e Agostinho apresento a referência de Fábio Correia:

...o problema do tempo, tanto para Agostinho quanto para Bergson é um problema de conhecimento e não ontológico. Isto é, o tempo não é um “ser” existente e independentemente da existência humana, fora dele, mas ao contrário, só pode ser encontrado em sua consciência (CORREIA, 2009: 18).

27 A respeito das simetrias entre o pensamento de Agostinho e de Bergson ver: CORREIA, 2009: 137-141.

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medieval Agostinho e o contemporâneo Bergson possuíam o entendimento de

que a questão do tempo é uma questão epistêmica28

Em um primeiro momento, tal distinção entre as visões de Bolzano e

Bergson parecem se situar somente no nível teorético, sem maiores

desdobramentos. Mas isto é somente em um primeiro momento. Se

analisarmos o Princípio de Não Contradição (PNC) em sua formulação

bolzaniana - formulação esta que pode ser tomada como a que é corrente no

pensamento lógico clássico -, vemos que aí está o instante geométrico como

índice fundamental da tese de que propriedades contraditórias devem ser

mutuamente excludentes quando atribuídas a uma única e mesma substância;

. A Teoria do

Conhecimento poderia responder com mais propriedade esta questão. Para

Bernard Bolzano que tomava o tempo a partir de seu aspecto ontológico, o

tempo tinha uma característica objetiva, pois determinava as substâncias na

realidade.

Ao compararmos a noção de tempo em Bolzano e Bergson, uma

diferença fundamental salta aos olhos. Enquanto em Bolzano o tempo é um

todo contínuo composto de partes mínimas, portanto, um todo fragmentado em

instantes geométricos, em Bergson o tempo duração é um contínuo indiviso

que não admite fragmentação alguma em unidades menores - tal qual o

movimento ígneo de uma chama.

Na concepção bolzaniana, na qualidade de princípio de determinação das

substâncias, o tempo deve ser visto como totalidade composta de instantes,

isto é, o tempo inteiro de Bolzano é um compósito que admite a fragmentação

até o paroxismo do instante isolado; para Bergson, o tempo assim analisado já

está em estrita analogia com o espaço, e sua única função é metrificar ou

medir processos temporais por meio de índices geométricos.

Para Bergson a essência do tempo é ser um fluxo inteiro, sem divisões

em partes menores, divisões estas cuja imagem é do instante temporal - o

ponto geométrico. Este tempo real bergsoniano é apercebido pelo homem uma

vez que se intua o dinamismo da consciência, das variações dos estados da

vida interior.

28 Acredito que a questão do tempo envolva duas esferas: a epistemológica e a epistêmica. Epistemológica no sentido da análise teórico-científica da definição de tempo. Epistêmica no sentido da experiência idiossincrática.

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o contínuo fragmentado em instantes exerce papel precípuo na compreensão e

no caráter coercitivo de tal princípio.

Surge novamente a questão: tal princípio continuaria sendo intuitivo e

imperativo em um contínuo, como aquele associado à duração bergsoniana?

Seria possível postularmos o enfraquecimento ou mesmo a anulação da diretriz

lógica da não-contradição onde o tempo é vivido como na analogia da “chama

inteira” e não como num “segmento de reta composto de pontos”? Responder a

tal pergunta implica em delimitar ou mesmo decantar o alcance do pensamento

clássico baseado no Princípio de Não Contradição (PNC), formulado com a

intrínseca presença do instante geométrico e, ao mesmo tempo, sugerir um

pensamento lógico que atenue a força da contradição e que seja mais

adequado a estes contextos em que o tempo flui como uma chama.

O princípio de Não Contradição, como na sua formulação bolzaniana (um

objeto não pode, em um mesmo instante, ter duas propriedades contraditórias),

só é valido indubitavelmente sob a consideração de instantes isolados,

justapostos e desconectados entre si. Entretanto, se o tempo não é um

apanhado de partículas mínimas (os instantes), e sim um contínuo temporal

como apreendido pela consciência, como fica o princípio de Não Contradição?

A pressuposição de que os objetos possam ser “paralisados” em

momentos e, por sua vez, seriam “pinçados” de um fluxo temporal contínuo,

admite o instante fotográfico, retirado do contínuo temporal, e é neste tempo

paralisado que a interdição dada pelo princípio de Não Contradição se faz de

forma veemente.

No entanto, uma vez que a impossibilidade de atribuição simultânea de

contraditórios se fundamente na noção de instante isolado, então nada garante

que tal princípio continue com sua força coercitiva intacta em um domínio

temporal não fragmentável em instantes isolados; um domínio desta natureza,

como facilmente se verifica, poderia ser o próprio fluxo da consciência: no

tempo duração bergsoniano, pode-se perfeitamente postular a vivência de

“estados de coisas contraditórios”, como a atribuição simultânea de

propriedades contraditórias a um objeto.

Tal atenuamento do princípio de não-contradição em domínios temporais

contínuos será discutido no terceiro e último capítulo.

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2.4 Críticas à Bergson

A repercussão em torno da crítica de Bergson ao positivismo científico,

aos procedimentos de mensuração do tempo e à teoria de Einstein foram

intensos. Estendeu-se evidentemente até a Estética, posto que Bergson usou a

metáfora da melodia para pensar o tempo como duração; dentre alguns

críticos, pensadores da arte e filósofos, podemos citar três: Gillo Dorfles,

Susanne Langer e Gaston Bachelard.

2.4.1 Gillo Dorfles

Gillo Dorfles, ao definir “imagem musical”, lança a pergunta, se não seria:

“a soma das múltiplas percepções sonoras, que juntas, constituem a melodia e

sem as quais viria a cair por terra toda a nossa possibilidade de compreender e

de fruir o fato musical? (DORFLES, 1992: 131). Segundo Dorfles, os elementos

típicos da linguagem musical, - ritmo, tempo, medida, colorido, harmonia,

contraponto, etc -, estão estruturados sob a compreensão partilhada por todos

que, não nos é possível reter todos os componentes musicais que formam a

composição da melodia. E ainda mais, que o chamado “vazio” entre um

intervalo e outro, não possuiria nenhum valor. Com isso, a formação da

lembrança na “memória musical”, seria algo como a sucessão e a justaposição

de sons, aliada a capacidade do nosso ouvido - no sentido musical (DORFLES,

1992: 132) de prognosticar e antecipar frases musicais em detrimento do fluxo

musical, do porvir inerente à melodia.

Dorfles faz essas considerações para afirmar justamente a identidade que

Bergson atribui entre a “dureé pure” e a melodia. “Segundo Bergson, como é

sabido, a própria melodia é “duração pura”, livre de toda a espacialidade, pelo

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que as notas da espacialidade acabam fundindo-se entre si com a mesma

indivisibilidade da duração 29

O tempo musical, diferentemente do tempo psicológico e do tempo

matemático como distinguiu Koechlin

(DORFLES, 1992: 132)”.

Estava claro para Dorfles que Bergson não pretendia realizar uma teoria

acerca da natureza do tempo musical, mas, utilizou a metáfora da melodia para

fundamentar seu conceito de duração pura. Segundo Dorfles a definição de

Bergson atende parcialmente à noção de duração musical.

30 é de fato o mais próximo da duração e

neste ponto Bergson acertou, no entanto: “o erro por ele [Bergson] cometido foi

não levar em conta o fato de que o tempo jamais é pura sucessão, sendo, ao

contrário, cheio de dimensões múltiplas, e de que o tempo musical é mais que

qualquer outro, organizado e estruturado31

Dorfles explica o seu raciocínio com o exemplo da leitura de uma partitura,

de um trecho musical escolhido qualquer sem executá-lo. Essa experiência

basta para esclarecer que o tempo cronológico não serve como parâmetro para

modificar ou alterar a duração musical, de modo que a leitura tem o seu tempo

próprio, bem como a execução se fosse feita. E ambas as atividades não se

” (DORFLES, 1992: 133).

Dorfles afirma que o tempo na música é entendido a partir de sua

natureza em si mesma, como que em uma realidade artística peculiar e

diferente de todas as outras artes. Na literatura encontra-se o tempo poético e

no teatro, o tempo psicológico; o tempo musical tem uma natureza ainda mais

singular.

Na música, que tem como seu principal “meio expressivo” justamente o tempo encarnado no som – ou o som vivo no tempo -, este fator deverá ser considerado como um verdadeiro material construtivo. Por essa razão, jamais será possível uma superposição exata e científica na duração pura, ou do tempo cronológico, ao tempo musical (DORFLES, 1992: 133).

29 A respeito da discussão do tempo musical definido por Bergson e as estas definições, ver críticas: Gabriel Marcel, Revue Musicale, III, 1925; e Henri Delacroix, Psychologie de l’art, 1927 apud DORFLES, 1992: 132. 30 Le temps et la musique, “Revue Musicale”, VII, 3, 1926. 31 Dorfles refere-se aqui, as considerações feitas por Bachelard na obra Dialética da duração, Paris, 1936.

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pautam pelo decorrer dos minutos estipulados pelo relógio, ou seja, existe aí,

algo que afasta a noção de tempo mensurável matemático da noção de tempo

musical, artístico. Dorfles chega a ressaltar que talvez exista uma “entidade

musical desvinculada do tempo real, em certo sentido, até mesmo

espacializada numa duração imóvel” (DORFLES, 1992: 134). Algo como um

campo no espaço onde se localiza a emissão musical, uma dimensão paralela

ao tempo real, - diferente do real bergsoniano -, onde se admite uma duração

plasmada, inalterada, imóvel.

O que Dorfles quer dizer com espacialidade musical?

Com relação a outras artes como a arquitetura e a pintura, a tonalidade

“pode ser concebida como uma cristalização da espacialidade musical em uma

perspectiva geométrica euclidiana”. A espacialidade musical seria um período

de tempo que permite afirmar ser uma duração, pois se desenrola no tempo e

ocupa um espaço. Mas não é o tempo real, a duração real, ou mesmo o tempo

cronológico. Ainda nessa linha, a dimensão vertical e horizontal não são as

únicas possibilidades de compreender a espacialidade musical; o timbre,

considerado a terceira dimensão responsável pela ampliação e especificação

do som deve ser analisado a partir do conceito de espacialidade. Com isso

demonstrava Dorfles a importância de se analisar a espacialidade musical.

Sem adentrar nos meandros da teoria musical acerca do timbre e da

harmonia, apresento as palavras de Dorfles: “podemos, (...), reconhecer essa

necessidade que tem a música de hoje não só de desvincular-se da harmonia,

como também apoderar-se de uma real construtividade tímbrica que lhe

permita desenvolver-se em uma “multidimensionalidade espacial” (DORFLES,

1992: 135). O propósito de Dorfles é admitir uma realidade fora do tempo do

relógio, do tempo mensurável. Tal sugestão comporia uma experiência onde a

realidade musical está além da realidade, de toda a duração e até mesmo da

percepção e da memória, abrindo a compreensão para a despercepção, ou

seja, para aquilo que ocorreu como lapso, escapou a percepção, ou mesmo

não possui referencial algum armazenado na memória -; e pode ser concebida

em um momento no tempo, o que ele chama de instantâneo, pois se dá no

espaço mas subjaz ao tempo. Um momento que exigiria um presente

prolongado. Tal espaço para Dorfles se equipararia ao “espaço formativo”,

semelhante ao espaço utilizado pelas artes visuais.

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Se, de fato, nos colocarmos diante do conceito de espaço musical, não como diante de um vazio, de uma lacuna, mas de um continuum, cuja essência esteja carregada de qualidades formativas, então poderemos identificar, nesse continuum espacial, a presença tanto dos elementos positivos como dos elementos negativos da trama musical, ou seja, poderemos conceber melhor o peso e a necessidade do intervalo entre as notas. Esse intervalo não deverá ser considerado como interrupção e suspensão temporal – como negatividade musical -, mas antes como continuidade musical (ainda que descontinuidade sonora) (DORFLES, 1992: 135 -136).

Dorfles menciona Theodor Adorno32

Henri Bergson buscou esclarecer que o instante temporal concebido pela

ciência era correlato ao ponto geométrico, pois o tempo real não fornece o

instante. O instante é um artifício da razão para congelar o tempo em pontos,

pelo simples fato de que a mobilidade, o fluir, e a continuidade não permitem

ser apreendidos em partes desconexas entre si: o afã da análise racional, da

separação lógica em partes distintas uma das outras, colocou em segundo

que admitiu a perspectiva musical

como elemento essencial e não somente como recurso metafórico para estudar

a música; não confundindo o espaço musical com o espaço existencial,

afirmando sua importância e presença na harmonia e no timbre. O que Dorfles

pretendeu, era alertar para que a música contemporânea, mais do que

qualquer outra feita em épocas anteriores, possui a dimensão da

“consistência”, que é o elemento espacial. E ademais, os músicos que se

destinaram a inovar acentuando um elemento, seja ele o ritmo, a harmonia ou

o timbre, precisam estar prontos para entenderem as dimensões da música sob

um enfoque orgânico: tempo e espaço musicais são solidários na construção

de uma imagem musical dinâmica.

Dorfles indicou que Bergson poderia ter pensado na questão da

descontinuidade, mas preferiu admitir a melodia como idealização da duração

pura. Bergson afirmou que a ciência positiva anota instantes e mede intervalos.

É pensando nesses mesmos intervalos que Dorfles afirmou que Bergson, no

afã de extirpar o espaço na definição de tempo, submeteu a melodia à duração

pura.

32 Theodor Wiesengrund Adorno, Über das gegenwärtige Verhältnis Von Philosophie und Musik, “Archivio di Filosofia”, I, 1953. in p. 223) apud DORFLES, 1993: 136).

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plano a perspectiva orgânica do tempo, na qual as partes se solidarizam umas

com as outras, sem que estas se distingam de forma nítida.

No entanto, as críticas destinadas a Bergson afirmam que esta mobilidade

contínua e indivisa é idealizada, em certo sentido. A percepção para Bergson

captaria todos os componentes sonoros, o que Dorfles discutiria, acentuando a

possibilidade da ‘despercepção’ atuar e modificar este conjunto. Dorfles

demonstra que a melodia é composta de continuidade e descontinuidade.

Penso que Bergson compreendia este aspecto, entretanto, o que buscava era

uma espécie de duração plena, algo que não permite vacilação. O tempo e seu

fluir são especificamente os objetos que se moldam a estes critérios. Bergson

buscava a noção de constância, de um fluir constante, sem oscilações. Uma

continuidade próxima realmente da horizontalidade, mas é nessa espécie de

continuidade que existe a mobilidade ininterrupta, indivisa e imensurável.

Penso também, que o que deveria ser questionado em Bergson é se o

fluir da consciência, estendido em analogia ao fluir temporal, pressupõe

também esta continuidade ininterrupta, indivisa e imensurável. Como apontou

Dorfles, sem adentrar demasiado nos campos experimentais da psicologia, a

“atividade pensante”, - portanto, presente na consciência - “tende sempre a

completar as nossas percepções defeituosas ou faltantes mediante os dados

extraídos da nossa experiência passada, das nossas ilações e expectativas

(DORFLES, 1992: 132). As percepções, ilações e expectativas como nomeou

Dorfles são completadas pela atividade pensante. É então, um exercício da

consciência buscar entender como este completar-se ocorre.

Fica claro que é um processo da consciência, portanto, não evidente ou

simples. Exige um esforço. A consciência precisa buscar formar-se de si

mesma, torna-se a si mesma e neste sentido, oscilaria. Possivelmente esta

seria a preocupação de Dorfles, de que Bergson tentaria escapar da

espacialidade, mas que para isso atribuiria uma linearidade à música e à

consciência, pois as atividades pensantes também fazem parte do contínuo e

do descontínuo. Para Dorfles, Bergson toma-os como “duração pura”.

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2.4.2 Susanne Langer

Susanne Langer afirma que as artes plásticas fornecem a nós a

percepção do espaço visível, e a música por sua vez, nos lança a um “reino

diferente” (LANGER, 1980: 111). A música estaria localizada em um “espaço

invisível”, mas inteiramente preenchido de formas, com seus movimentos

próprios, tornando a beleza do mundo audível que se “apodera de toda a nossa

consciência”. O espaço musical é denso, possui movimento e é perceptível.

O estudo da música sempre teve junto a si o caráter abstrato e por esse

motivo recebeu entre os estudiosos a definição de área que comporta

demasiada transparência e intangibilidade. Langer acentua que as pesquisas

científicas buscaram explicar então a música como fenômeno físico, fisiológico

e psicológico (LANGER, 1980: 111); bem como seus métodos de composição e

das leis matemáticas acerca da freqüência dos tons e da estrutura sonora, no

intuito de tornar palpável esta massa musical, o que motivou inclusive

teorizações excêntricas a respeito do conjunto de elementos que eram

necessários para uma tonalidade adequada e uma harmonia perfeita;

(discussões esdrúxulas a respeito do estatuto da música e de quais aspectos

uma dada sonoridade deveria ser constituída para que fosse considerada como

portadora de valor artístico).

Dentre tantas teorias, Langer considera Heinrich Schenker33 e Basil de

Selincourt 34

33 Langer indica a teoria de SCHENKER Heinrich. Tonwille, 5, considerada válida e valiosa para servir de referencial de pesquisa acerca da natureza composta da tonalidade. 34 Music and Letters,I, nº. 4 (1920), 286-293.

como referências pertinentes e confiáveis ressaltando que a

seriedade da pesquisa em torno da música e da pergunta filosófica “O que é a

música?” (LANGER, 1980: 113) deve conceder a máxima compreensão que for

possível quando detalhar seus elementos, mas não cabe a ela dar qualquer

tipo de receita. O valor da investigação e da análise científica “(...) reside

grandemente no fato de que ela sempre permanece uma análise e jamais

pretende ter qualquer função sintática. Uma obra de arte é uma unidade

originalmente, e não pela síntese de fatores independentes (LANGER, 1980:

112).

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Os estudos da música e de uma teoria musical se estenderam por

diversas áreas do conhecimento, no entanto, como toda teoria que se estrutura

sob a ótica do experimento físico, a música também foi submetida

à física do som.

O fato de as proporções tonais figurarem entre as primeiras leis físicas e serem matematicamente expressas, experimentadas e sistematizadas, deu à música o nome de uma ciência, até mesmo de um modelo científico para a cosmologia, desde os tempos antigos até nossos dias (LANGER, 1980:133).

Susanne Langer define que o tom e o som não são a música. A

composição formada de sons, basicamente a mobilidade, o movimento dos

sons é a música. Uma dança de sons. Assim, “o movimento é a essência da

música” (LANGER, 1980: 115). As formas perceptíveis à audição, que são,

portanto, invisíveis. A natureza do som, segundo Langer difere da natureza da

luz. As formas do som, não são como as formas visíveis pela luz, simplesmente

pelo fato de que mesmo que as formas do som ocupem o espaço, assim como

as formas visíveis que absorvem e refletem a luz35

Susanne Langer explica que o movimento musical é muito diferente do

deslocamento físico, e que as vibrações de tons, não apresentam locomoção

de fato, são extremamente curtas e o repouso é imediato tão logo a execução

cesse. Esta é a explicação para o que se pode chamar de “repouso

sustentado” (LANGER, 1980: 116). Langer pretende com esta exposição

, o som, quando é emitido e

ecoado, não altera sua estrutura, como faz a luz. Quando a luz encontra as

formas visíveis, altera-se e se faz ver. O som se altera também, mas de modo

algum se faz ver. As formas da luz se alteram, mas as formas do som mesmo

ao se alterarem não se fazem ver, dando ao som a transparência intrínseca e

sua invisibilidade.

35 Essa diferença funcional entre luz e som foi observada por Josefh Goddard faz uns cinqüenta anos. “De uma única fonte central, a luz procede continuamente, sendo que essa luz refletida pelas superfícies de objetos de maneira correspondente às características destes... Embora o som musical seja mais ou menos refletido e absorvido enquanto se move entre objetos, o resultado é uma modificação de seu caráter e volume geral – como quando a música é executada numa sala vazia ou numa sala cheia – para não dar-nos impressões de tais objetos”, On Beauty and Expression in Music, p. 25-27 apud LANGER, 1980: 115.

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técnica a respeito da mobilidade dos tons, do repouso e do silêncio sonoro,

explicar sua compreensão da “duração”, que é o nosso interesse. “Os

elementos da música são formas moventes de som; mas em seu movimento

nada é removido. A esfera em que as entidades tonais se movem é uma esfera

de pura duração” (LANGER, 1980: 116). A experiência com a música, e com a

duração que Susanne Langer apresenta busca claramente diferenciá-la da

experiência quotidiana com o tempo.

(...) essa duração não é um fenômeno real. Não é um período de tempo – dez minutos ou meia hora, alguma fração do dia -, mas é algo radicalmente diferente do tempo em que decorre nossa vida pública e prática. É completamente incomensurável em relação à seqüência dos assuntos comuns. A duração musical é uma imagem daquilo que poderia ser denominado de tempo “vivido” ou “experienciado” – a passagem da vida que sentimos à medida que as expectativas se tornam “agora” e “agora” em termos de sensibilidades, tensões e emoções; e não tem meramente uma medida diferente, mas uma estrutura completamente diferente do tempo prático ou científico. (LANGER, 1980: 116).

O conceito de “tempo virtual” elaborado por Susanne Langer, busca definir

o tempo próprio da música, onde esta se desenvolve. Ressaltando que este

tempo é diferente do tempo científico e do tempo social. Seu conceito de tempo

virtual possui a característica de ser um tempo vital (LANGER, 1980: 116), que

de fato é experienciado, o que nos permite afirmar a proximidade com a

definição de tempo vivido pela memória elaborado por Bergson. Contudo, a

postura de Langer é que este tempo virtual está no espaço, em uma região

sonora, pois é de fato audível, colocando-se assim ao lado de Gillo Dorfles.

Susanne Langer afirma que o tempo musical que se desenvolve em um

tempo considerado como fluxo, como passagem, é uma ilusão (LANGER,

1980: 128); essa passagem é preenchida pelo conteúdo audível em movimento

e esse intervalo de uma coisa a outra é uma experiência tão ilusória quanto o

tempo mensurável do relógio.

A música se dá no tempo, assim como a literatura e o teatro se dão no

espaço, entretanto, a música é a arte do tempo e também do espaço. Seu lugar

existe desde o momento de sua concepção, como inspiração do compositor e

está já localizada por assim dizer, na mente de seu autor. O modo como vai

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surgindo percorre estágios que dispõem da imaginação, da intuição, do insight

até a idéia da peça musical em todas as suas partes. “Os princípios de

articulação da música são tão variados que cada compositor encontra sua

própria linguagem, mesmo dentro da tradição que ele casualmente pode

herdar” (LANGER, 1980: 130). Deste modo, Langer busca demonstrar o

processo de individuação da peça musical e a presença de elementos36

36 Noção que define a “Ideia” musical que se busca demonstrar, de modo que a música encontra sua linguagem, seu modo de expressar. Contudo a Urlinie representa a marca do tipo especial de criação musical (LANGER, 1980: 131).

que

conceituem a expressão musical como obra de arte.

Susanne Langer define a essência da música a partir do tempo musical,

que por sua vez, se caracteriza como tempo virtual. “Qual, então, é a essência

de toda música? A criação do tempo virtual e sua determinação completa pelo

movimento de formas audíveis (LANGER, 1980: 132). A música é uma imagem

do tempo no som, determinada como forma que ocupa o espaço e perceptível

à audição. A música é uma produção do espírito humano em um espaço e

tempo próprios; díspares do tempo matemático e do tempo social, muito

próximos até da noção de espaço e tempo psicológicos, ou como Bergson

definiria, do tempo da consciência. A duração musical quase se confunde com

a duração da consciência tal sua aproximação dela, e nesse ponto tanto

Langer como Dorfles concordam com Bergson. No entanto, a ressalva está na

exclusão do espaço segundo Dorfles e na ausência do ritmo segundo Langer,

como princípio intrínseco a música, e a vida.

A música em sua composição é expressão da vida.

A essência de toda composição – tonal ou atonal, vocal ou instrumental, mesmo puramente percussiva, se se quiser – é a semelhança de movimento orgânico, a ilusão de um todo indivisível. A organização vital é a estrutura de todo sentimento, porque o sentimento existe apenas em organismos vivos; e a lógica de todos os símbolos que podem expressar sentimento é a lógica dos processos orgânicos. Toda vida é rítmica. (...) Esse caráter rítmico do organismo permeia a música, porque a música é uma apresentação simbólica da mais alta resposta orgânica, a vida emocional dos seres humanos (LANGER, 1980: 133).

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O ritmo é um princípio organizativo da vida em sua estrutura biológica. A

música é expressão dos sentimentos, dessa parte da vida partilhada pelos

seres humanos. Susanne Langer aponta que a periodicidade caracteriza os

eventos que regularizam uma recorrência, estipulando padrões orgânicos de

funcionamento, como por exemplo, a respiração, a freqüência cardíaca e os

processos metabólicos e dão a impressão de que o ritmo possui uma cadência

repetitiva como fundamento primordial, no entanto, “o caráter óbvio dessas

repetições tem feito com que as pessoas as considerem como a essência do

ritmo, o que elas não são (LANGER, 1980: 133). A ressalva de Langer é no

sentido de que até mesmo o relógio possui ritmo, regularidade e repetição; mas

está fechado neste esquema. O que caracteriza o ritmo é a abertura para um

novo acontecimento juntamente com elementos do acontecimento anterior. “A

essência do ritmo é a preparação de um novo evento pelo término de um

evento anterior” (LANGER, 198: 133).

Penso que Henri Bergson pontuou este aspecto quando definia que os

instantes não poderiam ser entendidos como isolados em função da

solidariedade ininterrupta entre eles. Um evento se desdobra em outro em

detrimento do presente vivido, guardado, e gerado como expectativa, sem

carregar consigo o conteúdo inteiro esgotando a experiência e fornecendo a

abertura para uma experiência nova. Bergson estava atento a isso, mas não

nomeou este aspecto. O ritmo estava presente no conceito de duração de

Bergson, e possivelmente o que Susanne Langer busca salientar é a

necessidade de maior importância deste fundamento da vida e da música.

Possivelmente entenderíamos melhor como Bergson concebia a duração e a

própria consciência. A falta, portanto, de uma análise mais aprofundada do

ritmo na definição do tempo, deixa uma lacuna fundamental, posto que o

elemento rítmico - como foi demonstrado - é intrínseco a vida e a música.

A ciência que admite o tempo como sucessão pouco se dedica a estudar

o ritmo nos organismos, de modo que idealizar os objetos paralisados,

justapostos em pontos determinados, se torna metodologicamente mais fácil,

entretanto, desloca-se o objeto de seu contexto e de seu estado original. Toda

experiência é de fato, uma interferência.

Susanne Langer apresenta o princípio da continuidade rítmica como “base

da unidade orgânica que dá permanência aos corpos vivos (...) é na realidade

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um padrão de mudanças (LANGER, 1980: 134). Este princípio quando rompido

torna inviável assegurar a vitalidade do organismo, de modo que até nas

atividades intelectuais e espirituais ele está presente. Vejamos o que Susanne

Langer afirma a respeito do modo como esse princípio afeta a “transformação

simbólica das percepções”:

Onde o processo simbólico é altamente desenvolvido, ele praticamente se apossa do domínio da percepção e memória, e imprime sua marca em todas as funções mentais. Mas, mesmo em suas operações mais elevadas, a mente ainda segue o ritmo orgânico que é a fonte da unidade vital: o levantamento de uma nova Gestalt dinâmica no próprio processo de desaparecimento de uma anterior (LANGER, 1980: 135).

O princípio da continuidade rítmica é regulador dos processos orgânicos e

também inorgânicos, assim, até mesmo o quebrar de ondas - considerado por

Susanne Langer um acontecimento inorgânico, de modo que se constitui de um

fenômeno mecânico dos oceanos37

Susanne Langer afirma que os processos vitais são geridos pelo princípio

de continuidade rítmica e que os reconhecemos nos fenômenos da natureza

transformando-os em símbolos provenientes de nossas percepções, - e não da

memória. O que é importante aprofundar é a relação desse princípio com o

tempo

-, nos traz a nítida compreensão da

presença de tal princípio dentro e fora de nós.

Mas o exemplo mais impressionante de ritmo conhecido pela maioria das pessoas é o quebrar das ondas numa rebentação constante. Cada novo vagalhão que se aproxima é formado pelo repuxo que flui no sentido contrário e, por sua vez, na realidade apressa a recessão da onda precedente pela sucção. Não há linha divisória entre os dois eventos. Uma onda quebrando, porém, é um evento tão definido quanto se poderia querer encontrar – uma verdadeira Gestalt dinâmica. (LANGER, 1980: 135).

38

37 Penso que até os oceanos são grandes estruturas que organizam a vida de todo o planeta e se não são vivos estão intimamente ligados a vida. Questão que não será abordada aqui, mas extremamente importante quando se vê a ciência contemporânea sob uma perspectiva holística. 38 O Principio de Continuidade, em sua forma lógica, geral, será abordado posteriormente, no terceiro capítulo.

. Evidente no exemplo do quebrar das ondas, que nos contextos onde

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o princípio de continuidade rítmica está imanente, os eventos são de tal modo

imbricados que não é possível separá-los. Não há linha divisória entre o

quebrar da onda e o passo seguinte para formar uma nova onda. São dois

eventos em um só, contínuo, que leva consigo o anterior, mas não inteiro,

permitindo o novo. Existe uma ligação entre um e outro que é estabelecida pela

presença do princípio de continuidade e esta continuidade é organizada pelo

ritmo. Langer aponta como o princípio da continuidade rítmica está presente na

música: Tudo o que prepara um futuro cria ritmo; tudo o que gera ou intensifica expectativas, inclusive expectativa de pura continuidade, prepara o futuro (“batidas” regulares são uma fonte óbvia e importante de organização rítmica); e tudo o que cumpre o futuro prometido, de maneiras previstas ou imprevistas, articula o símbolo do sentimento. Seja qual for o espírito especial da peça, ou sua significação emocional, o ritmo vital do tempo subjetivo (o tempo “vivido” que Bergson nos conjura a encontrar na experiência pura) permeia o símbolo musical, complexo, multidimensional como sua lógica interna, que relaciona a música à vida de maneira íntima e evidente por si mesma. (LANGER, 1980: 136).

Para Langer o ritmo é mais do que um divisor de períodos temporais. Ele

organiza “as progressões harmônicas, resoluções de dissonâncias, direções de

passagens correntes e ‘tons de tendência’ na melodia” sendo que todos estes

elementos sirvam como “agentes rítmicos”. Mas o ritmo não deixa de ser

repetição, e a repetição também é princípio estrutural da vida e da música. A

repetição “que dá à composição musical a aparência de crescimento vital”

(LANGER, 1980: 136). Ocorre na música, no processo de formação da

composição musical, uma observância da permanência da noção de

“vitalismo”, que torna o crescimento da obra musical semelhante ao

crescimento dos organismos vivos. As obras de arte são, deste modo,

“orgânicas” (LANGER, 1980: 137).

A repetição começa com o compasso, e continua na melodia e em cada frase ou item no qual podemos resolvê-la. O crescimento de uma composição musical pode ser comparado ao de uma planta que floresce, (...) onde não só as folhas se repetem umas às outras, como as folhas repetem as flores, e os próprios rabos e ramos são como folhas não-abertas. (...) Ao padrão da flor corresponde um

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outro padrão desenvolvido na colocação e agrupamento das flores ao longo dos ramos, e os próprios ramos dividem-se e sobressaem-se em proporção equilibrada, sob o impulso vital controlador. (...) A expressão musical segue a mesma lei (SELINCOURT: Music and Duration, 288; apud LANGER, 1980: 137).

Bergson em sua formulação do tempo, segundo Susanne Langer, usou

a metáfora da melodia para expressar sua ideia de duração. No entanto, o

contínuo temporal permite a noção de ritmo, pelo fato de que o princípio da

continuidade rítmica abarca o tempo, o contínuo e o ritmo. No último capítulo

apresentarei a lei da continuidade, elaborada inicialmente por Leibniz, e sua

relação com o Princípio de Não Contradição, antes disso veremos as

considerações de Bachelard a respeito do bergsonismo.

2.4.3. Gaston Bachelard

Gaston Bachelard discute na obra Dialética da Duração (1988), a teoria do

elã vital apresentada por Bergson em sua obra Evolução Criadora (2006), além

da posição contrária à tese bergsoniana da duração, apresentada na obra

Duração e Simultaneidade (2006), afirmando que existem “lacunas na duração”

(BACHELARD, 1988: 7). Para Bachelard o elã vital assegura um processo

positivo ao desenvolvimento do ser, onde todo e qualquer obstáculo é admitido

como parte de sua história e, deste modo, não haveria nenhum traço negativo,

donde parte toda uma doutrina de compensações ontológicas (BACHELARD,

1988: 14). Bachelard critica o conceito de elã vital, pois é a partir dele que a

ideia de tempo se estrutura em Bergson; o elã vital define o tempo como um

contínuo em direção à plenitude do ser, o tempo como duração ininterrupta,

perpetuamente contínua. A crítica de Bachelard afirma que Bergson não admite

interrupções, vazios, silêncios ou pausas.

Parar de transcorrer seria parar de subsistir; ao deixar-se o curso do mundo, deixar-se-ia a vida. Imobilizar-se é morrer. Assim, acredita-se romper com a concepção substancialista da alma e reveste-se, com um tecido inteiriço, o ser íntimo em sua duração indestrutível. O

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panpsiquismo nada mais é do que o pancronismo. A continuidade da substância pensante não é mais que a continuidade da substância temporal. O tempo é vivo e a matéria é temporal. Antes de Bergson, nunca se havia realizado tão bem a equação entre o ser e o devir. Entretanto, (...) para o bergsonismo o valor criador do devir é limitado pelo próprio fato de ter uma continuidade fundamental. (BACHELARD, 1988: 12).

Bachelard chama o bergsonismo de doutrina do repouso e da busca da

plenitude do ser. A consciência é tomada como doutrina da interioridade, que

ao contrário do que afirma Bergson sobre a importância do presente, se

assentaria no passado onde sua originalidade está: na “lembrança, não da

descoberta”. Bachelard não concorda com a teoria da continuidade, pois a

continuidade tenderia ao repouso e assim, a solidariedade entre os instantes

de Bergson, soa como “viscosidade da duração” (BACHELARD, 1988: 12).

Somente um ser que admite o fluxo do contínuo ao descontínuo poderia

ritmicamente fomentar o movimento. Sem o ritmo a vida perderia a força, e os

fenômenos então não durariam. A própria ideia de consciência é vista por

Bachelard através da noção de ritmanálise, ou seja, a psicanálise a partir do

estudo do ritmo.

Em suma, a continuidade psíquica coloca, em nossa opinião, um problema, e parece-nos impossível não reconhecer a necessidade de basear a vida complexa numa pluralidade de durações que não têm nem o mesmo ritmo, nem a mesma solidez de encadeamento, nem o mesmo poder de continuidade (BACHELARD, 1988: 7).

É evidente que a crítica de Susanne Langer foi motivada pela tese

bachelariana. A noção de ritmo constitui a “base da eficácia temporal”

(BACHELARD, 1988: 8). Se para Bergson pensar o tempo significa analisá-lo a

partir da memória, para Bachelard assim como para Langer e até mesmo para

Dorfles, a noção temporal fundamental é o ritmo.

A duração bachelariana se forma de uma dialética regulada. Ao invés de

os ritmos serem formados seguindo encadeamentos regulares, são os

fenômenos da duração que se constroem com os ritmos. Estes se alternam do

contínuo para o descontínuo, de modo que o ritmo não está no início do

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movimento, mas surge39

39 Esse surgimento pode ser apresentado como a percepção de algo inédito, inaudito. Algo que escapa totalmente da memória, pois não se forma como lembrança e sim como descoberta.

com desenvolvimento dele. As apresentações de

Bachelard e Susanne Langer se aproximam bastante no que tange os

conceitos de ritmo, consciência, continuidade e repetição. O ritmo obedece

aos princípios apresentados por Langer, de continuidade rítmica e de repetição,

permeando a vida orgânica, os eventos de modo geral, a música e a

consciência.

É possível afirmar a simetria nestes pontos entre Bachelard e Langer.

Para durarmos, é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, em sistemas de instantes. Os acontecimentos excepcionais devem encontrar ressonâncias em nós para marcar-nos profundamente. Desta frase banal – “a vida é harmonia” -, ousaríamos então finalmente fazer uma verdade. Sem harmonia, sem dialética regulada, sem ritmo, nenhuma vida, nenhum pensamento pode ser estável e seguro: o repouso é uma vibração feliz. (BACHELARD, 1980: 9).

O que propõe Bachelard? Revisar o tecido temporal, os ritmos

considerados por ele como forçados e longos demais, observando o ser em

seu devir, entre aquilo que denominou “passagem do ser ao nada e passagem

do nada ao ser” (BACHELARD, 1988: 7) e compreender o ritmo temporal de

acordo com os “sistemas de instantes” que se organizam segundo a dialética

reguladora.

Até mesmo na vida intelectual, nas investigações analíticas poderíamos

encontrar, - evitando a “nossa pobre cultura abstrata”-, aquilo que Bachelard

encontrou em seus estudos: “as meditações ritmicanalíticas nos traziam uma

espécie de eco filosófico das alegrias poéticas” (BACHELARD, 1988: 10).

Bachelard pergunta:

Então a poesia não seria mais um simples acidente, um detalhe, um divertimento do ser? Poderia constituir o princípio da evolução criadora? O homem teria um destino poético? Estaria no mundo para cantar a dialética das alegrias e das dores? (BACHELARD, 1980: 10).

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A poesia sim expressaria a dialética do ser. Mas um ser diferente do ser

proposto por Bergson. O ser bergsoniano conduzido pela teoria do elã vital

estaria submetido a uma linearidade e agiria mesmo quando não nada faz sob

a alavanca do passado.

Nosso propósito de modo algum é adentrar profundamente nas críticas de

Bachelard no intuito de uma apologia a Bergson. O que encontrei é demasiado

significativo para ignorar. Gillo Dorfles, Susanne Langer e Gaston Bachelard se

afinam quando discutem a noção de duração elaborada por Henri Bergson.

Cada um de seu ponto. Dorfles questiona a ausência da espacialidade na

definição de melodia no tempo musical; Langer apresenta o tempo virtual como

espaço musical com o intuito de respeitar a dupla natureza da música –

espacial e temporal-, sustentada pela noção de ritmo; e Bachelard, que

considera a consciência a partir da ritmanálise, a vida como dialética

reguladora e a poesia como possível mola propulsora do ser. Todos

extremamente significativos para a análise da música, do ritmo, da consciência

e da duração.

Como mencionei anteriormente Bergson buscava a plenitude da duração,

sem oscilações. Bachelard fez esta afirmação ganhar intensidade. Para

Bachelard pensar a vida de maneira rítmica é modificar inteiramente a

dimensão ontológica do ser, retirando a ideia de plenitude e construindo essa

ontologia levando em conta também as noções de risco, vertigem, à deriva,

morte e nada.

A tese da evolução criadora, instruída nesta obscura, tenaz e longa evolução que é a evolução biológica, afastou, portanto, tudo o que corresponde à vontade de destruir, à luta pela luta. De imediato, ela atribuiu ao ser um crescimento contínuo, à espécie, uma vida contínua pelo germe, ao destino, um elã obrigatoriamente isento de interrupções, pois uma parada rompe ainda mais seguramente um elã do que qualquer outra coisa. Assim, é a mesma ideia fundamental sempre em toda a parte, que guia o pensamento bergsoniano: o ser, o movimento, o espaço e a duração não podem comportar lacunas; não podem ser negados pelo nada, pelo repouso, pelo ponto, pelo instante; ao menos, essas negações estão condenadas a ser indiretas e verbais, superficiais e efêmeras. (BACHELARD, 1980: 16).

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Bachelard considera que a dialética é a forma estrutural da construção do

real. A realidade do mundo é formada dialeticamente, de modo algum, pela

continuidade. Bachelard defende a “dialética fundamental do ser e do não ser”

(BACHELARD, 1988: 16). A pergunta trazida da Grécia arcaica: como se dá a

passagem entre o ser e o nada? O ritmo entre o sim e o não que corresponde à

alternância temporal forma o tempo, desenvolve o ser e o pensamento. “O

tempo é então contínuo como possibilidade, como nada. Ele é descontínuo

como ser” (BACHELARD, 1988: 31). O tempo contínuo de Bergson é refutado

e Bachelard afirma que “o tempo é hesitação”.

Bachelard admite a duração como metáfora e as ligações dos instantes a

partir do significado que atribuímos às experiências vividas, ou seja, os

instantes existem e se ligam porque nossa consciência assim procede. Essa

noção é encontrada em Bergson, como atividade própria da memória.

No plano musical, por exemplo, será necessário mostrar que aquilo que faz a continuidade é sempre uma dialética obscura que evoca sentimentos a propósito de impressões, recordações a propósito de sensações.

(...)

As sensações não estão ligadas; é nossa alma que as liga. (BACHELARD, 1988: 105).

Usamos as metáforas para formar imagens do tempo: “ligação nos

domínios mais variados: vida, música, pensamento, sentimentos e história”

(BACHELARD, 1988: 104). Ao analisarmos esses domínios que supostamente

durariam continuamente encontraríamos “hachuras de descontínuo”

(BACHELARD, 1988: 105). Pausas e paradas entre uma continuidade e outra,

atividades que a consciência realiza. O espírito humano se expressa agindo

com o mesmo regulamento. A melodia e a poesia se estruturariam

dialeticamente. Bachelard investigou “a espessura musical e poética”e concluiu

que a continuidade só poderia ser admitida como parte do processo dialético.

A ideia de que nossa alma costura uma sensação na outra, sendo que

uma sensação se desdobrou de outra e vivenciou um momento novo é

semelhante à ideia do “quebrar de ondas”. O que há nestes dois fenômenos de

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comum? Há o movimento intrínseco á vida, a continuidade rítmica. A presença

do elemento rítmico nos fenômenos que se dão em nós e fora de nós, tanto no

empírico e objetivo; como na consciência, no subjetivo.

As críticas de Bergson ao positivismo científico e ao tempo matemático se

destinam ao isolamento dos instantes em pontos geométricos, supondo a

cardinalidade como fundamento da sucessão temporal. Nem Dorfles, nem

Langer, nem Bachelard – a meu ver -, discordam de Bergson neste ponto.

Bergson buscou esclarecer que o tempo matemático artificializa os momentos

de tempo em instantes, ignorando a natureza intrínseca dos instantes como

pontos de acumulação. Nossa pesquisa visa objetivamente refutar os instantes

como isolados, e afirmar que a ligação entre eles é estabelecida pela faculdade

da memória, pois a memória liga-os e permite estabelecer um entorno, uma

vizinhança.

As críticas pontuais destinadas à Bergson são perfeitamente aceitáveis.

No entanto, Bachelard admite que a ligação entre as sensações é realizada

pela alma. As sensações, percepções e vivências formam as expressões

humanas, o pensamento analítico e a sensibilidade estética; a racionalidade e

a arte. De acordo com a postura bachelariana este processo é dialético, assim,

e a continuidade só é aceitável dentro de tal processo, regulada pelo ritmo,

permitindo o descontínuo. Susanne Langer admite a lei da continuidade rítmica

e a dinâmica da gestalt. Dorfles alertou para a espacialidade musical, a

percepção e a despercepção. Bergson admitiu a continuidade na memória, no

tempo e na melodia, e essa continuidade ininterrupta que foi alvo das críticas.

Se o tempo for visto como um “conjunto contínuo”, ou seja, que obedece a

lei da continuidade, não há lugar para os instantes isolados, assim, como a

música é vista como um tecido sonoro que se compõe de uma “rede ampla de

solidariedades”, formando uma “continuidade de conjunto”, busco afirmar que o

tempo como tal, é composto de um “tecido temporal” - semelhante ao “tecido

musical” - e se configura como um “conjunto contínuo”.

Nosso propósito é revisar o Princípio de Não contradição (PNC) e esta

análise passa pela localização das substâncias na realidade (espaço) no

transcorrer dos momentos experienciados (tempo). A vivência com o tempo no

mundo permite afirmar que existe uma lei que organiza o fluxo dessa vivência

de modo contínuo, onde os instantes devem estar ligados entre si, -

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obedecendo como queira Bachelard, Langer e Dorfles, uma melodia rítmica

num espaço musical -; e este tempo não pode ser o tempo matemático, que

considera os instantes como momentos paralisados, como uma “galeria de

quadros a se suceder”. O tempo é semelhante a um filme cinematográfico, é

fluxo contínuo, pois obedece a lei da continuidade.

Vejamos outra referência de Bachelard com relação à possibilidade de

“fazer nascer simetrias poéticas e musicais a partir de formas dissimétricas

subalternas40

“dois versos se sucedem; suponho que no interior de cada um deles haja, entre os dois hemistíquios, desigualdade no número de sílabas; se essa desigualdade se reproduz no mesmo verso e na mesma direção, o mesmo desenho rítmico se reformará, a desigualdade interna se transformará numa igualdade externa”. Em outras palavras, a identidade do complexo transcenderá a diversidade do detalhe; alguma coisa será, de certo modo, acabada pelo seu simétrico. A continuidade se fará em favor do agrupamento. E é assim que a poesia, ou mais genericamente a melodia, dura porque retoma. A melodia joga dialeticamente consigo mesma; ela se perde para se reencontrar; sabe que se reabsorverá em seu tema inicial

” (BACHELARD, 1988: 106).

41

A poesia se move conforme a dialética e mesmo que faça digressões, que

são fundamentais ao seu curso, retoma o seu início, como que caminha com os

elementos vividos e com elementos por viver. Não existe linha que divide um e

outro. Este movimento melódico é uma duração ilusória. Nestas palavras de

Bachelard pode-se visualizar o que ele denominou de “passagem do ser ao

. Ela se dá assim, não verdadeiramente uma duração, mas a ilusão de uma duração. (BACHELARD, 1988: 106).

Nesta citação Bachelard expõe o desenvolvimento do tema poético e da

construção dos versos. Os elementos que se repetem são aqueles que dão

identidade ao tema, acolhem a duração e sempre se retomam. Juntamente a

esse movimento existe mais um, correlato e concomitante a ele, que busca o

novo, o imprevisto, o que ainda não foi vivido. Algo inesperado, temeroso, mas

novo e instigante.

40 Bachelard se refere pesquisa realizada por Rauol de la Grassie, De l’élément psychique dans le rythme, 1922: 2. 41 Cf. G. Urbain, La mélodie, Journal de Psychologie, 1926: 201. Georges Urbain apresenta como princípio o de que “um movimento melódico retorna sempre à sua origem” (BACHELARD, 1988: 106).

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nada e passagem do nada ao ser”, consentindo na continuidade sob a

orientação da dinâmica dialética. Essa dinâmica se encontra na vida, na

consciência, na música, na poesia, na intelectualidade.

O instante existe para Bachelard, para Bergson é um artifício; no entanto,

o prolongar-se entre um instante e outro, a ligação de um evento ao outro é um

aspecto simétrico no pensamento de ambos, contudo, a dialética reguladora

deve atuar ritmando a continuidade e a descontinuidade.

No próximo e último capítulo apresentarei a concepção de Eduardo

Seincman sobre a música, sobre questões entre Bergson e Bachelard, e sobre

temas musicais que comportam essa tensão entre o ser e o não ser.

O filósofo Grahan Priest será utilizado para entender a dialética sob uma

perspectiva lógica, sob o estudo das contradições, dos domínios

fenomenológicos que possibilitam as contradições e a lei da continuidade como

princípio sustentador entre eventos ligados de modo contínuo. Onde se

localizam esses domínios, como aparecem as contradições e o que é o

dialeteísmo. A relação do tempo com a afirmação de que existem contradições

efetivas prescreve a lei da continuidade.

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Capítulo 3 As dialetéias, a música e a consciência como domínios da contradição

Se todas as palavras de Heráclito exprimem o orgulho e a majestade da verdade, mas de uma verdade que ele aprende em intuições e que não conquista na escada de corda da lógica, se contempla, num êxtase sibílico, mas não observa, se conhecer, as não calcula, o seu contemporâneo Parmênides é o seu contrário; também ele é um profeta da verdade, mas parece feito de gelo e não de fogo, e irradia à sua volta uma luz fria que queima (NIETSZCHE, 2002).

3. O dialeteísmo e a possibilidade da ocorrência de efetivas contradições

Esta pesquisa até aqui apresentou a concepção do tempo como “duração”

em oposição ao “tempo mensurável” e afirmou que este tema tem uma postura

fundamentalmente epistemológica – alertada por Agostinho e Bergson. Sendo

assim, o tempo é definido através da realização de uma experiência

epistêmica. Entretanto, a relação entre o princípio de Não Contradição e o

tempo se dá na dimensão ontológica. Posto isso, o atenuamento da obediência

do princípio de Não Contradição em um contexto onde o tempo é contínuo e

indivisível favorece a defesa de contradições efetivas, tese defendida pelo

inglês Grahan Priest. Priest apresenta em sua obra In Contradiction a tese de que as

contradições existem e que são fenômenos peculiares presentes ao movimento

das coisas. A noção de Priest é que possivelmente podemos conceber

situações singulares, em que não se pode contar com o Princípio de não

contradição (PNC).

A discussão parte da configuração ontológica que admite essas situações.

Mais especificamente, Priest defende no conceito de “dialetéia” e na “tese do

dialeteísmo”, que seja possível a presença de uma conjunção contraditória em

um contexto específico e que de algum modo um par de atributos contraditórios

possa recair sobre o mesmo objeto. O conceito de dialeteísmo formulado por

Grahan Priest se dá como segue:

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Dialeteísmo é simplesmente a visão de que algumas contradições são verdadeiras. Isto é, há algumas sentenças (enunciados, proposições, ou qualquer coisa que tenha valores de verdade), α, tais que ambas α e ¬α são verdadeiras. [...] Pode -se perguntar se “segue disto que há contradições reais no mundo?”. Em um sentido nada problemático, pode-se dizer que sim42

Sendo assim, é notável apresentar que a hipótese de Priest fundamenta-

se da Lei da continuidade elabora por Leibiniz, que vai assegurar a ligação

entre os pontos. Antes de adentrar propriamente na lei da continuidade é

importante resgatar as definições de Georg Cantor, sobre as propriedades

isomórficas de um conjunto contínuo. Cantor analisou as propriedades que

compõe necessariamente a estrutura isomórfica do contínuo, que compõe

(PRIEST, 2006: 299).

As questões que envolvem o dialeteísmo de Priest estão intrinsecamente

relacionadas com o tempo e o espaço, onde se encontram as substâncias.

Questões fundamentais acerca do atenuamento do princípio de Não

Contradição em domínios ontológicos, situações reais e imersas em um

contínuo temporal, sob um olhar epistêmico do tempo.

Encontra-se em Priest um aspecto importante a respeito do espaço, ou

seja, como se dá a localização das substâncias em sua estrutura ontológica,

apoiado pelo “Princípio de continuidade”. Priest compreende as substâncias

inseridas em um contexto que admite um entorno, uma vizinhança entre os

elementos do conjunto e desta forma, compõem-se cercado de infinitos pontos.

Este posicionamento é apresentado nesta pesquisa como correlato as

definições de Georg Cantor a respeito da estrutura isomórfica de qualquer

conjunto contínuo. As conjunções contraditórias, nomeadas “dialetéias”

ocorrem em um contexto espaço-temporal específico: regiões-limite, entorno e

vizinhança. Ou seja, para que possamos compreender onde ocorrem as

dialetéias, precisamos inicialmente saber que o arranjo contextual próprio

dessas ocorrências diz respeito, á uma região de entorno, compondo

vizinhança entre os pontos observados.

42Dialetheism is simply the view that some contradictions are true. That is, there are some sentences (statements, propositions, or whatever one takes truth bearers to be), α, such that both α and ¬α are true […]. One may therefore ask “does it follow that are contradictions in the world”? In one quite unproblematic sense is does.

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qualquer conjunto contínuo, independente da proximidade ou distância entre os

elementos envolvidos, bem como o número máximo ou mínimo de elementos.

Dados dois elementos em um segmento de reta, dois números como, por

exemplo, 0 (zero) e 1(um); ao analisá-los Cantor concluiu que em conjuntos de

natureza contínua, três propriedades são elementares:

1) Qualquer elemento que pertence a um conjunto contínuo é um

ponto de acumulação.

2) Sendo 0 (zero) elemento de um conjunto contínuo e 1 (um) sendo

elemento deste mesmo conjunto contínuo, existem infinitos outros

elementos entre eles.

3) Todo elemento desse conjunto contínuo está inserido em seu

interior, por mais extremo que esteja.

A noção de “ponto de acumulação”, busca a imagem intuitiva do entorno,

região de vizinhança entre os elementos de um conjunto contínuo. A noção de

“ponto de acumulação” é o argumento utilizado para refutar a noção de tempo

onde os instantes possam ser isolados. Analogamente aos conjuntos

contínuos, o tempo também é um contínuo, um fluxo temporal contínuo, e seus

elementos, os instantes formam um conjunto contínuo. Se os instantes não se

apresentam de forma isolada, paralisados em cada ponto de modo

fragmentado, a noção de “ponto de acumulação” favorece a relativização do

princípio de Não Contradição, pois, em domínios contínuos, os elementos

podem ter a si atribuídos duas propriedades contraditórias. O modo como isso

ocorre diz respeito à natureza das propriedades atribuídas, uma natureza que

se apresenta indefinida e que comporta principalmente a noção de movimento.

Afirmo o entendimento de que o Princípio de Não Contradição não vale nestes

domínios.

Vejamos o esquema apresentado por Priest acerca de um sistema S que

se movimenta, percorrendo estados físicos, no tempo:

Antes de um tempo t0, um sistema s está no estado s0, descrito por α. Depois de t0 ele está no estado s1, descrito por ¬α. Em qual estado ele está em t0? A priori há quatro possibilidades.

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(A) s está em s0 somente. (B) s está em s1 somente. (Γ) s não está nem em s0, e nem em s1. (∆) s está em s0 e em s1. Naturalmente não deve haver uma resposta uniforme. Mudanças diferentes podem ser mudanças de vários tipos. A questão crucial que eu gostaria de propor é se há mudanças do tipo ∆, isto é, mudanças dialéticas [...]. Argumentei que há algumas mudanças que são do tipo ∆43

Estou em uma sala. Enquanto eu caminho através da porta, eu estou dentro ou não dentro da sala? Para enfatizar que isto não é um

(PRIEST, 2006: 160).

Priest defende que o movimento é a condição para que um objeto possua

propriedades que se modifiquem no tempo, de tal modo, que não é seguro

afirmar quando o objeto possui a mencionada propriedade e quando está

deixando de possui. Algo como se o objeto em parte possuísse e em parte não

possuísse a mencionada propriedade. O limite entre um estado e outro nessa

mudança interna, é apresentado como região-limite, ou topologicamente, ponto

de intermédio entre um estado e outro. Tal ponto pode ser ilustrado através dos

instantes temporais que admitimos como “pontos de acumulação” de um

conjunto contínuo definem o fluxo no qual as propriedades transitam de um

“estado-de-coisas” a outro.

Para entender o esquema descrito pelo movimento do sistema S, Priest

apresenta o exemplo de um homem que atravessa uma porta do interior para o

exterior de um quarto. Antes de vago e corriqueiro o exemplo demonstra que

haverá um momento em que o homem estará dentro e não dentro do quarto.

43 “Before a time t0, a system is in a state s0, described by α. After t0 it is in a state s1, described by ¬α. What state is it in at t0? A priori, there are four possibilities:

(A) s is in s0 and so only. (B) s is in s1 and s1 only. (Γ) s is in neither s0 nor s1. (∆) s is in s0 and s1. Of course, there may be no uniform question. Different changes may be changes of different kinds. The crucial question I wish to ask is whether there are any changes in class ∆, that is, dialetheic changes. […] I shall argue that are some changes of type ∆”.

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problema de vagueza, suponha que identifique minha posição com meu centro de gravidade, e a porta com o plano vertical que passa pelo centro. Enquanto eu deixo a sala, deve haver um instante para o qual o ponto se situa no plano. Em relação a este instante, estou dentro ou não dentro [da sala]? Claramente, não há razão para afirmar um caso em detrimento do outro44

Priest argumenta que as contradições não são fenômenos extravagantes.

Como exemplo da lei da continuidade geradora de contradição, tomemos o

seguinte caso: consideremos uma maçã situada no instante t’. Neste exato

instante, podemos afirmar que a maçã tem a propriedade de “estar situada no

cesto y com outras maçãs”. Imediatamente ao instante t’, a maçã é retirada do

cesto y e, para qualquer instante t’’> t’, à maçã pode ser atribuída a

propriedade de “não estar situada no cesto y com outras maçãs”. Em um

instante final t’’’, obviamente podemos atribuir à maçã a propriedade “de não

estar no cesto y com outras maçãs”. Esta propriedade é atribuível à maçã em

qualquer instante que se situe no intervalo [t’,t’’’] e, pela lei da continuidade,

também pode ser predicada da maçã nos termos interpolares deste intervalo,

isto é, vale em t’ e t’’’ a afirmação de que a maçã não está no cesto y com

(PRIEST, 2006: 161).

Tal exemplo é modelado por Priest e sua demonstração é

exaustivamente explicitada por meio de regras lógico-matemáticas (PRIEST,

2006: 163-164), o que não será feito nesta pesquisa. Todavia, a imagem que

construímos desse exemplo é perfeitamente compreensível. E a regra vale,

também, para um “estado de consciência inicial”, que atravessa todo um fluxo

de continuidade e encontra o “estado de consciência final”. Como os instantes

são interconectados, são admitidos como “pontos de acumulação”, o “estado

de consciência inicial” se dá como atributo que vale como propriedade de um

contínuo, de um fluxo contínuo temporal e assim será válido no “estado de

consciência final”. O que se infere a partir disso é que situações que admitem

lei da continuidade permitem “estados-de-coisas-contraditórios”, pois estão

arranjadas em um contexto de vizinhança. Acumulação, vizinhança e

continuidade favorecem o aparecimento de contradições.

44 “I am in a room. As I walk through the door, am I in the room or out of (not in) it? To emphasize that this is not a problem of vagueness, suppose we identify my position with that of my centre of gravity, and the door with the vertical plane passing through its centre of gravity. As I leave the room there must be an instant at which the point lies on the plane. At that instant am I in or out? Clearly, there is no reason for saying one rather the other”.

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outras maçãs. Mas foi determinado que, em t’, a maçã estava com outras

maçãs no cesto y. Então, pela lei da continuidade, em t’, podemos afirmar tanto

que a maçã está no cesto y com outras maçãs, como também podemos dizer

que a maçã não está no cesto y com outras maçãs – contradição efetiva

gerada pela lei de continuidade de Leibniz.

Esta definição de permanência de uma propriedade em todos os pontos

interpolares e conseqüentemente, pontos extremos, inicias e finais, permite

inúmeros outros exemplos, cujo fundamento está na Lei da Continuidade de

Leibniz (The Leibniz Condition of Continuity (LCC)).

Quando a diferença entre duas grandezas em uma dada série [...] pode ser diminuída até se tornar menor do que qualquer quantidade dada, a correspondente diferença é [...] necessariamente diminuída e menor do que qualquer grandeza dada (LEIBINIZ apud PRIEST, 2006: 165).

Os deslocamentos produzidos pelo movimento viabilizam a

indeterminação das propriedades, de modo que a imagem que podemos aludir

é de que estão constantemente “prolongando-se”, “espalhando-se”. Essas

considerações realizadas por Priest se deram com relação ao estudo de

Leibniz sobre os “infinitesimais”. O que se depreende isso, é que não é

possível “isolar as coisas a ponto de precisar com rigor onde elas estão”

(PRIEST, 2006: 214). Priest cita as teorias de Hegel sobre a dialética para

enfatizar que o movimento advém da força motriz básica da vida e da história:

“[A] contradição é a raiz de todo o movimento e vitalidade; e é somente na

medida em que algo contém uma contradição dentro de si que ela se move”

(...) (HEGEL apud PRIEST, 2006: 170). O entendimento da definição de Hegel

sobre a dialética e a contradição interna que movimenta a vida permite a

relacioná-lo com os argumentos encontrados na lei da continuidade rítmica

apresentados por Susanne Langer, e também da construção da melodia na

música e na poesia em Bachelard. O ritmo, a melodia musical e a poesia são

regulados segundo o movimento dialético, que manifesta em seu interior a

contradição.

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O dialeteísmo de Grahan Priest é formulado como força básica do

movimento, que repete a forma, mas que se abre para o novo provocando a

mudança, que dissolve a permanência da identidade, favorecendo o

surgimento de contradições. Este argumento é facilmente relacionado com a

organização da duração rítmica nos versos poéticos, no sentido que a poesia

se perde e se retoma, ou seja, ao passo ela que se repete afirmando-se,

correlato a esse movimento, ela se esvai, rompe com o mesmo e forma-se de

uma situação nova, diferente, e totalmente inversa, contraditória.

O Princípio de Não Contradição é rigorosamente obrigatório sob um

tempo imóvel, mensurável, com instantes pinçados e justapostos, desprezados

os elementos que se colocam no entorno de sua vizinhança. Assim a lógica de

Aristóteles concebe o Princípio de Não Contradição em um tempo puro e

inalterado, um tempo ideal.

Bergson salientou que o tempo real, que dura e é experimentado pela

memória é um tempo que flui indiviso e contínuo.

Leibniz pensou a continuidade, supondo o tempo ilustrado em uma

parábola de infinitesimais.

Cantor determinou a estrutura fundamental isomórfica dos conjuntos

contínuos, sendo que pensar a continuidade como “elementos que formam

conjuntos” pressupõe a interligação destes elementos, de modo algum mera

sucessão entre eles. Elementos que formam conjuntos devem estar

necessariamente ordenados, e não arbitrariamente agregados, a menos que

isto esteja discriminado, - senão não serão denominados como contínuos.

Priest demonstrou a noção de vizinhança, de entorno entre um elemento e

outro em um conjunto contínuo.

Esta pesquisa busca um elo de convergência entre todos estes

pensadores e principalmente por meio do conceito de “ponto de acumulação”,

que constitui o argumento sólido para afirmação de que em “domínios

contínuos” o princípio de Não Contradição perde a força coercitiva e

ontologicamente absoluta que possui. Para ilustrar situações em que podemos

conceber a presença de contradições, sem necessariamente nos determos nos

exemplos matemáticos e exaustivamente técnicos demonstrados por Priest,

apresentarei a música como exemplo.

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3.1 A consciência e a escuta na compreensão do tempo e da música

Trago a referência de Eduardo Seincman, a respeito da análise realizada

na obra Do tempo musical, em que a música é investigada sob a perspectiva

das teorias de Henri Bergson, tendo em vista as críticas de Gastón Bachelard.

Seincman acentua a importância da faculdade da memória para a experiência

com a música e alerta que esta noção foi possível a partir das considerações

de Bergson.

O que me interessou em Bergson não foram, propriamente, as exemplificações musicais que ele abundantemente utiliza em sua obra, mas seu ponto de vista sobre o relacionamento do ser humano com a realidade que o cerca. A realidade é, para Bergson, uma relação de imanência, de experimentação do objeto, pelo sujeito, não “de fora”, mas “de dentro”; a realidade é, ao mesmo tempo, uma durée e uma experiência dada “imediatamente à nossa consciência” (SEINCMAN, 2001: 8).

Seincman afirma que a música deve ser admitida a partir dessa realidade

interna, pressupondo o sujeito inseparável do objeto. Que sentido teria a obra

musical sem o ouvinte? Bergson alertou Seincman para a importância do

sujeito na construção da noção de realidade e de realidade musical, pois a

música é um “fenômeno temporal por excelência” (SEINCMAN, 2001: 13). As

definições de Agostinho são retomadas para pensar a temporalidade de modo

a considerá-la como tema investigativo no estudo da música. A incapacidade

de mensurar o tempo, a dificuldade de estudar a musicalidade no contexto

temporal e a percepção do ouvinte inserida nesse contexto são alguns

enfoques agostinianos e bergsonianos revisados por Seincman:

Será que a duração cronológica da música, a que habitualmente estamos nos referimos como duração “real”, coincide com a impressão de duração que experimentamos ao escutá-la? (...) Outra dificuldade reside no fato de o tempo ser fugidio: esquecemo-nos, ao menos aparentemente, de sua presença e passamos a estudar ou analisar a música como se fosse uma mera sucessão de instantes, fragmentos e segmentos. São inúmeros os artigos, ensaios, análises

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e tratados teóricos de harmonia, contraponto, formas musicais etc., que não levam em consideração a percepção temporal do ouvinte. A análise de uma obra é fruto de uma escuta e, em geral, esquecemos de refletir a respeito de nossa própria escuta da obra (SEINCMAN, 2001: 14).

A música não pode ser tomada como uma soma de trechos sonoros que

possuem melodia, harmonia e ritmo. Seincman pontua o papel da consciência

na experiência musical. A música é sempre um fenômeno estético que adquire

sentido a partir das valorações que o sujeito atribui. Estas atribuições

nitidamente apresentam – como demonstrou Bachelard - as ligações que a

alma escolheu, de modo que não se formam com o ato de agrupar elementos

que se sucedem cronologicamente.

Na realidade, estas duas dificuldades apontadas – a questão da duração cronológica e a transformação do tempo em mera sucessão de segmentos sucessivos – são de uma mesma natureza: não levam em conta a qualidade e o processo de recepção temporal. Dizer que um acorde dura tantos segundos, que tal nota é a terceira de uma série dodecafônica ou que a forma rondó é um A B C B A, é, em essência, mera descrição, como se a estrutura do objeto independesse do observador.

(...) A técnica musical não é senão uma ferramenta de diálogo, de interação dinâmica entre obra e ouvinte. Quando Henri Bergson alerta para o fato de que o todo, a durée, representa mais do que a somatória das partes tomadas isoladamente, está constatando que a noção de tempo, sua consistência, não se dá fora da consciência, e neste sentido o papel da memória é fundamental. (SEINCMAN, 2001: 14)

Artificializar a música como sucessão de sons é o mesmo que artificializar

o tempo na sucessão de instantes. Foi que Bergson fez, quando usou a

melodia para exprimir a duração. Bergson estava focado na definição do tempo

e usou a melodia como exemplo para ilustrar, sem adentrar nas definições

estéticas e assim equivocou-se a respeito da teoria musical da melodia.

Contudo, mostrou que o tempo deve ser concebido por meio da memória - que

organiza o antes e o depois -, Seincman acentua a importância de que não

podemos ignorar o “processo de recepção musical”, o modo como o ouvinte

recebe a música na consciência.

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“A análise musical não pode ter como ponto de partida a escrita,

simulacro, que é, da realidade auditiva” (SEINCMAN, 2001: 15). A escrita se

torna descrição, enquanto a escuta é participação do fenômeno musical. A

realidade musical pressupõe o sujeito ouvinte, assim como a realidade

temporal pressupõe o sujeito consciente.

Seincman apresenta as intenções bergsonianas e ressalta a importância

do sujeito nessas definições, pois, a construção ontológica buscada pela

investigação científica não pode ignorar a experiência epistêmica. Essas

preocupações já haviam sido demonstradas por Santo Agostinho, como

mencionei anteriormente. O tempo, a memória, a consciência e a música

devem levar a subjetividade em consideração quando analisadas, pois

tomadas objetivamente, serão vistas como descrição. Seincman retoma

Agostinho e o relaciona a Bergson.

Essa abordagem do tempo como relação, recepção, interação entre objeto e sujeito, é fundamental. Por meio dela, criamos condições de tratar algumas das questões suscitadas pelo tema, e duas delas, de caráter estético e histórico, são, neste momento, prioritárias: • a partir de que momento histórico amadurece a preocupação mais aguda com a questão do tempo nas artes e, mais especificamente, na linguagem musical? • como é que este determinado momento histórico concebe a questão do tempo na música? (SEINCMAN, 2001: 16-17).

Seincman faz uma contextualização da História da música, que em sua

fase barroca tomava inicialmente a música como a “imitação da natureza”

(SEINCMAN, 2001: 19), acentuando que os sons dos animais, o vento, a

chuva, enfim, eram expressões do mundo externo e as emoções humanas

expressariam os sons interiores, da psique humana, do mundo interno. O

iluminismo do século XVIII buscava a saída do mundo imitável, a

transcendência à mímesis, do real ordinário, elevando a música até a

“linguagem filosófica e metafísica” (SEINCMAN, 2001: 20), com o propósito de

afirmá-la como expressão artística elevada.

A música era executada por meio da obediência ao texto musical e este

se impunha para garantir então uma boa execução, assim, o improviso estava

destinado a momentos de divagação. Seincman descreve também que o

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Romantismo que conseguiu desvencilhar a música da imposição do texto, “teria

que transpor, igualmente, uma segunda barreira: a da música como

‘representação dos sentimentos’ (SEINCMAN, 2001: 22)”. Acentua-se a busca

por elevar cada vez mais a música no sentido da assemanticidade e este

estágio, ocorreu, segundo Seincman, quando Edward Hanslick publicou seu

livro Do belo musical (1854). Hanslick se opõe à noção clássica da arte como

“representação da natureza”, da mímese como reflexo fiel da realidade.

...a música compõe-se de séries de sons, de formas sonoras; estas não têm outro conteúdo senão elas mesmas. Lembram, mais uma vez, a arquitetura e a dança, que também nos apresentam belas relações sem conteúdo determinado [...]. Toda tentativa prática de separar, em um tema, a forma do conteúdo, leva a contradição ou ao arbítrio. Por exemplo: um motivo que se repete num outro instrumento ou numa oitava mais alta muda de conteúdo ou forma? Respondendo afirmativamente à segunda hipótese, como acontece na maior parte das vezes, resta como conteúdo do motivo a simples série de intervalos como tal, como esquema de notas escritas, tal qual se apresentam aos olhos na partitura. Mas esta não é uma característica musical, é uma abstração (HANSLICK, 1854: pp. 155 e 160 apud SEINCMAN, 2001: 22).

De acordo com Seincman, Hanslick buscou entender a música como

fenômeno que está a serviço de si mesma, não ao texto, não aos sentimentos,

só a si. O texto, a descrição, é uma tradução abstrata, não a música por ela

mesma. Mas então, como compreender as palavras de Hanslick de que a

música não traduz o sentimento, a expressão da composição musical

carregada de vivência e inspirada por ela? O argumento que afasta a música

dos sentimentos e inspirações é motivado pela ausência de regras fixas das

quais a música mesma se desprende e a si se conduz. Se a música não está a

serviço do texto e obrigatoriamente não está veiculada aos sentimentos e

à representação mimética, ela deve obedecer somente ao seu próprio

movimento e desenvolvimento melódico. O conceito de movimento elaborado

por Hanslick é “dinâmico e maleável” (SEINCMAN, 2001: 23) e é por meio dele

que podemos ligar a música aos sentimentos. O movimento,

... constitui o fator que a música tem em comum com os estados sentimentais e aos quais ela pode dar forma, criatividade, em

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milhares de gradações e contrastes. O conceito de movimento tem sido, até aqui, negligenciado de modo surpreendente nos estudos sobre a essência e o efeito da música; este conceito afigura-se-nos como o mais importante e o mais produtivo (HANSLICK, 1854: 38 apud SEINCMAN, 2001: 23).

É preciso então, repensar o conceito de tempo e de movimento. O

conceito de movimento elaborado por Hanslick distancia o sujeito da música

quando permite que o único elo de ligação entre a música e o sentimento seja

o movimento. A música compartilha o “movimento” com os sentimentos. No

entanto, torna a aproximá-la do sujeito quando permite à música conduzir-se a

si mesma, ser o seu próprio referencial. Garantindo a ela que encontre o seu

curso, ou seja, se fazer expressar pelo compositor e se fazer sentir pelo

ouvinte. Este é o propósito da música.

Como vemos, a música não é mais uma representação dos sentimentos – o movimento é o que ela tem em comum com os estados sentimentais. Mas o abandono da visão subjetivista não significa um apelo ao pragmatismo. Em momento algum, Hanslick desvincula a análise do objeto musical de sua recepção. Mesmo afirmando que a consideração estética deve ater-se somente à própria arte, faz a ressalva de que... ... essa obra de arte independente se revela como um meio ativo entre duas forças vivas: a de onde provém e para onde se dirige, ou seja, o compositor e o ouvinte (HANSLICK, 1854: 91 apud SEINCMAN, 2001: 23).

O movimento liga as esferas compositor-ouvinte, e torna a música um

fenômeno possível de ser percebido e vivenciado. Faz com que haja nos sons

em movimento uma forma que se organize e se apresente originando a música.

O que é a música? A música é o movimento dos sons, ela não deve

representar nada, traduzir nada. Mas por que a música não deve ser portadora

de tais conteúdos? Porque o ouvinte possui sua recepção, percepção e

sentimentos próprios, e por meio deles fará a experiência com a música.

Ocorre um encontro entre a obra e o ouvinte, cada um com sua autonomia.

Cada um com o compromisso que lhe cabe. A relação proveniente de tal

encontro é dialética.

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Esta concepção do fenômeno musical como relação dialética entre obra e ouvinte é fundamental. O belo musical não está mais situado além da música, mas nas próprias relações sonoras, entre si, relações estas que, percebidas pelo ouvinte, exprimem idéias musicais autônomas (SEINCMAN, 2001: 23).

Poderíamos pensar que a música então é vazia. Hanslick explica que “o

conteúdo da música são formas sonoras em movimento” (HANSLICK, 1854: 62

apud SEINCMAN, 2001: 24). O fato de a música possuir uma postura

independente do compositor e do ouvinte confere a ela a obediência a sua

própria natureza, em ser portadora de formas sonoras que se movem sem

estar vinculada a conteúdos determinados. Esta autonomia permite à música

tornar-se o meio que liga o compositor às formas sonoras e ao ouvinte que

sentirá estas mesmas formas. Ela deve ser autônoma, com sua neutralidade

conectar um e outro. Hanslick afirmou ser inteiramente necessária a

participação ativa, da vontade do ouvinte em interagir com a obra musical de

modo contemplativo e não somente uma escuta passiva. Este exercício fará

toda a diferença para a experiência de esforço, ação e criação da música no

tempo. Seincman menciona Bergson:

...o fator mais importante no processo psíquico que acompanha a compreensão de uma peça musical e que causa prazer [...] é a satisfação espiritual que o ouvinte experimenta ao seguir e percorrer ininterruptamente as intenções do compositor e ao se descobrir, ora corroborado, ora agradavelmente surpreso em suas suposições. Compreende-se que este ir e vir da corrente intelectual, este contínuo dar e receber ocorra conscientemente e de maneira velocíssima [...]. Esta forma de atividade espiritual é, no entanto, particularmente própria da música, porque suas obras não se apresentam imóveis e de chofre, mas vão se urdindo sucessivamente diante do ouvinte (BERGSON, 1974: 127 apud SEINCMAN, 2001: 25).

Seincman entende que a relação entre o sujeito e objeto é fundamental

para a compreensão da realidade móvel do fenômeno musical. A música é

movimento de formas sonoras. Sem o ouvinte não há o elo final entre a música

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e o compositor. O fenômeno musical deve ser entendido como experiência

epistêmica e segundo sua contextualização espaço temporal. “A observação do

fenômeno musical como contínua relação de troca entre sujeito e objeto, no

tempo, é essencial” (SEINCMAN, 2001: 25). A questão levantada por

Seincman retoma Agostinho no ponto da indeterminação do momento presente

e da imprecisão objetiva dos limites que separam o passado, presente e futuro,

pelo fato de que o fenômeno musical se desenvolve desde o primeiro momento

da inspiração do compositor, durante a execução da obra e no momento da

recepção ativa do ouvinte. Estes estágios estão interconectados no fenômeno

musical e na experiência epistêmica com o tempo.

Bergson é resgatado também no que abrange a importância do sujeito, da

consciência e do tempo. Mensurar instantes e metrificar melodias são

experiências passivas e artificiais que não necessitam de uma participação

ativa do sujeito, pois qualquer equipamento pode fazê-lo. Agostinho e Bergson

mostram a Seincman “... a questão da duração do tempo como o paradoxo de

tentar reconstituir a realidade temporal a partir de conceitos imóveis e estáticos,

tais como passado, presente e futuro (SEINCMAN, 2001: 26). Bergson afirma

que tomar o tempo e a música como estáticos é considerá-los a partir da noção

de espacialidade.

A análise musical tem de resgatar, dessa forma, não o próprio tempo, algo impossível, mas o conteúdo que os elementos musicais adquirem na consciência do ouvinte no transcorrer do tempo. Isto significa uma retomada do sujeito como objeto de si próprio – que ele se implique no fenômeno como objeto de sua própria escuta (SEINCMAN, 2001: 29).

Música e tempo pressupõem o sujeito ouvinte e consciente, sendo assim,

não há outra forma de definir estes conceitos e entender estas realidades sem

analisar a experiência auditiva e a recepção musical. Não aprofundar a

investigação a respeito da recepção é para o estudo da música, o mesmo que

elaborar o conceito de tempo sem a consciência.

O que existe entre a consciência e a escuta que as liga para entender o

tempo? Existe a memória. “Se a memória é o estofo do tempo, então não pode

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estar situado fora da consciência. E, se o tempo é um dado imediato da

consciência, sua objetividade é de ordem subjetiva, é uma duração interior

(SEICMAN, 2001: 32)”. O tempo pode ser definido de um modo totalmente

novo quando se entende que a consciência recebe os elementos musicais no

transcorrer do tempo, e esta vivência é o conteúdo do ouvinte.

3.2 Seincman analisa Bergson e Bachelard

A questão que envolve a articulação da melodia, do qual anteriormente

tocamos com Bachelard e da relação dialética entre os princípios de repetição

e continuidade, é investigada por Seincman:

...a questão da repetição e a diferença no corpo do tempo [...] e da continuidade. A presença de duas progressões distintas [...] realça o problema de articulação, ou seja, de como a consciência lida com as partes de um todo que deveria ser um único estado contínuo e indivisível (SEINCMAN, 2001: 35).

Esta questão sobre a articulação é o modo como a consciência organiza a

passagem do tempo e confere sentido a cada uma das partes que compõe a

melodia. Se existem partes, foi porque a consciência as partiu, assim como

partiu os instantes do tempo. Contudo, mesmo partidas, as conexões entre elas

continuam existindo, e Seincman chama estas conexões de “‘pontos de

articulação’, que seriam responsáveis pela impressão de continuidade no

descontínuo e de descontinuidade no contínuo. Eles seriam, exatamente, os

pontos de convergência entre o passado e futuro (SEINCMAN, 2001: 36)”.

Assim, localiza-se nas conexões a lei de continuidade rítmica, que articula as

partes, os elementos uns com os outros. A relação entre as partes se dá no

“entre”, pressupondo necessariamente, o movimento, o trânsito, o ritmo. A

dialética da consciência e da música obedece às mesmas regras e tem sempre

presente a repetição e a diferença, a identidade e contradição. A dialética

reguladora se localiza no “entre”.

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Seincman afirma que o problema em Bergson é não admitir a

descontinuidade na dureé. Dorfles, Langer e Bachelard também concordam

com isto. A pausa, o descontínuo, a interrupção favorecem a criação, pois a

duração pura não proporcionaria novos atos de criação, mas um primeiro e

único. Toda pausa, todo descontínuo e toda interrupção possibilitam novos atos

de criação. O ritmo é ressaltado igualmente em Seincman. “O próprio fluir

ininterrupto de nota após nota em uma obra musical é, também, um ato de

criação, pois sua impressão resulta da constante tensão entre a espacialização

do tempo e a temporalização do espaço” (SEINCMAN, 2001: 37). O “tempo

vivido” elaborado por Bergson não deixa de ser “tempo pensado” elaborado por

Bachelard e assim, os momentos vividos são participantes na consciência

percorrendo o pensamento, produzindo o enlace entre os instantes, as

lembranças, a criação no momento presente e as expectativas futuras.

Seincman relaciona as ideias de Bergson em discussão com as ideias de

Bachelard:

...se a experiência é filtrada pelos conceitos, e, portanto simbolizada, há uma rede interligando os eventos significativos. Haveria, assim, por um lado, a presença de sínteses simbólicas instantâneas e, por outro, uma impressão temporal oriunda desta interconexão dos eventos entre si. Se o tempo vivido bergsoniano fala, notadamente, de uma memória do passado no presente, o tempo passado, por sua vez diz respeito à memória do futuro e do passado que habita o presente (SEINCMAN, 2001: 39-40).

.

A lacuna, a interrupção existe porque há lacunas na consciência, ela não

fluiria ininterruptamente. Alternar-se-ia entre o fluir contínuo e o descontínuo.

Para Seincman a contribuição de Bergson foi de que o passado constitui a

retomada das vivências anteriores no presente; no entanto, a repetição não

pressupõe identidade integral, pois no tempo nada é idêntico, e sim

semelhante. Um trecho musical pode ser executado com as mesmas notas no

compasso seguinte, imediato ao primeiro e ainda assim, não será o mesmo,

não será idêntico. A tensão da primeira execução refletirá acumulada na

execução posterior e estará presente, dando a este segundo momento uma

sonoridade diferente da sonoridade inicial.

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O fluir do tempo forma a ilusão de continuidade – como afirmava

Bachelard (1988: 39) -, contudo, essa continuidade não possui uma força

perene e eterna. Por meio da continuidade, a repetição carrega o passado que

se depara com o desconhecido e o novo que mora no futuro. Deste modo,

mesmo que o passado possa ser retomado, será no máximo semelhante e não

idêntico.

Assim, o que chamamos de repetição não é mais somente o presente de uma ou mais ocorrências similares do passado, mas um conflito de um futuro que, no presente, coloca o ser diante de um duplo. Este fato coloca em cena um outro viés diferente daquele bergsoniano sobre o “tempo vivido”, a partir do qual se constatou que no tempo não há identidade, mas apenas semelhança; quando se trata do segundo enfoque, o do “tempo pensado”, constata-se que a repetição vem recheada de conteúdos provenientes do próprio estranhamento de se perceber que o real é lacunar, fruto de uma construção (SEINCMAN, 2001:42-43).

Seincman afirma com base nas considerações de Bachelard que a

repetição nunca é exata, a retomada nunca é total. Bergson pensou nisso

quando descreveu que não é possível retomar o conteúdo inteiro. O fio

condutor que ligava o presente no passado era o traço de união entre eles e

viabilizava o arremesso da nova experiência para o futuro. Bergson pensava,

contudo, que até mesmo essas lacunas formavam a duração, como errâncias

fortuitas e breves, mas no momento seguinte a duração resgataria seu fluxo.

Bachelard alertou para o fato de que, segundo Bergson, a duração realizaria o

ser e o erro só poderia ser um acaso infeliz e despropositado.

Seincman analisou ambos em conjunto, percebeu que a duração é

fundamental no que diz respeito à importância do fluir da consciência do

ouvinte na experiência musical. No entanto, também entende as ressalvas de

Bachelard de que o descontínuo interrompe a duração e forma a lacuna.

Seincman exemplifica este ponto quando analisa a repetição.

...a repetição é um dado mais paradoxal e problemático do que comumente aparenta. Ela tem de ser vista como o estofo da própria construção e ordenação, como o fator que permite à consciência relacionar, entre si, os instantes ativos, do contrário não haveria a impressão do tempo. E cada obra, cada trecho em particular,

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colocar-nos-á diante de uma nova ambigüidade, deste encontro consigo mesmo, deste duplo. Este estranhamento é o gatilho da interpretação (SEINCMAN, 2001: 46).

A repetição é o paradoxo entre unidade e duplicidade. Consigo visualizar

nesta citação, o espaço musical onde o paradoxo da repetição se forma

ressaltado por Dorfles. Vejo o ritmo que Susanne Langer descreveu ocorrendo

em um tempo virtual, com instantes que se relacionam entre si. Observo

também a dialética reguladora que se move entre ambigüidades, dando

abertura para a interrupção da duração proposta por Bachelard. Posso ver

Bergson com a noção de memória que organiza o tempo subjetivo e que lança

a vivência recheada do passado para uma interpretação, fundindo a lembrança,

a vivência atual e a expectativa. Bergson, entretanto, não admitiria a

previsibilidade do futuro, mas concordaria que o estranhamento já se constitui

um traço de imprecisão.

A questão da repetição é para esta pesquisa de grande importância, no

sentido de defender que a repetição é uma das condições para o surgimento

de contradições.

3.3 Seincman e a composição de Frèderic Chopin: Noturno op.15 n°3

Seincman apresenta ainda uma análise muito pertinente sobre a obra

Noturno op. 15 nº 3 (1834), obra que foi composta por Chopin depois da leitura

de Hamlet de Willian Shakespeare. A investigação de Seincman revela o modo

como na música os elementos obedecem a repetição, se desenvolvem para o

novo e se contrastam.

A composição de Noturno foi feita baseada nas intensas contradições

vividas pelo personagem de Hamlet. A música é repleta de elementos que

exprimem as angústias, emoções conflitantes e sentimentos perturbadores.

Para compreender a música de Chopin baseada em Hamlet, é prudente

entender a construção daquilo que Seincman chama de “duplo”, “ambíguo”. O

duplo que ao mesmo tempo, confere unidade e fornece a ruptura (SEINCMAN,

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2001: 52), é rearranjado pelo ouvinte, que deve buscar a coerência entre essas

esferas. Vejamos o exemplo proposto por Seincman:

Vamos imaginar o caso hipotético de uma forma-canção com Trio: a Seção A (que pode ser uma forma-canção binária ou ternária - não importa) estará atuante, na consciência do ouvinte, durante a Seção B (Trio). O mesmo ocorrerá com as Seções A e B na reexposição da Seção A. Portanto, o que geralmente chamamos de forma A B A não é, pura e simplesmente, a ocorrência de um A, seguido de um B, seguido, por sua vez, de um novo A. Isto seria apenas uma descrição de uma forma e não propriamente a forma viva resultante do objeto e sujeito em constante reciprocidade. A B A é, pois, pura descrição, pura espacialidade dissociada do fenômeno estético (em que a memória humana tem participação decisiva): os As como diria Bergson, não são idênticos, mas, no máximo, semelhantes (SEINCMAN, 2001: 53).

O efeito paradoxal entre unidade e ruptura ao qual Seincman se refere,

lembra muito a dialética reguladora proposta por Bachelard, bem como o

desenvolver rítmico da melodia. A lei que perpassa pelas estruturas da flor da

música e do quebrar de ondas, mencionadas por Langer, por sua vez, fora

adotadas de Leibniz por Grahan Priest. Todos estes vértices encontram-se

num ponto em comum: o tempo que flui ritmicamente e a experiência musical

que se produz numa escuta consciente.

O exemplo que Seincman apresenta diz que a retomada de A,

posteriormente a B, não significa retomar o mesmo A, e que este primeiro A

possui subjacente a si, ele mesmo, fruto de sua vivência. O B posterior, do

mesmo modo apresenta subjacente a si, ele mesmo, juntamente com o

primeiro A e seu A subjacente. Assim, A e B possuem subjacente a si, eles

mesmos. Logo, o último A herdará todo este esquema e seu A subjacente, de

sua própria vivência.

Seincman apresenta o seguinte esquema:

A B A

A A + B A + B+ A

A A B

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Se pensarmos que o tempo é uma justaposição de instantes e não

questionarmos a necessidade da consciência e da escuta, muito

provavelmente só a primeira linha A B A, fará sentido. Seincman alerta para a

importância da memória, que concomitante aos instantes vividos ativamente,

produz instantes correlatos aos ativos, que chamo de “latentes”.

Se olharmos apenas a coluna horizontal superior, temos a visão de senso comum: a forma musical como mera sucessão no tempo, um simples A B A. Mas, ao considerar a escuta parte do processo de recepção estética, a equação é, no mínimo, outra: enquanto o primeiro A ocorre, seus próprios elementos, já retidos pela memória, projetam-se nos elementos do presente e daí A/A. Quando B se inicia, o mesmo processo ocorre; além de A/A, haverá a projeção dos próprios elementos de B sobre si mesmo, e daí

B A + B A

Ao ser reexposto, A terá, sobre si, os conteúdos de A/A + B/B + A. Assim, só na superfície é que o primeiro e o segundo As são idênticos, pois: A ≠ A

A A + B+ A

A B

Mesmo que a estrutura musical e a duração cronológica de ambos os As sejam as mesmas, isso não vai ocorrer na recepção estética (SEINCMAN, 2001: 53-54).

Na descrição escrita os As são os mesmos. Mas na escuta musical não

são. O tempo é totalmente outro, quando considerado pelo viés da consciência

e da escuta musical. Seincman lembra o exemplo exposto por Bergson, do

copo d’água com açúcar. A espera da absorção do açúcar não se dá de forma

imediata, nem de acordo com a sucessão cronológica. Esse tempo não é

reduzido ao tempo matemático, este é o tempo vivido. Seincman argumenta

ainda que Bachelard discordaria de Bergson, dizendo que este tempo é o

tempo pensado.

O que interessa aqui é o posicionamento de Bergson frente à experiência

com o tempo. O próprio sujeito é objeto da experiência, e a realidade passa

pela análise deste sujeito que pode “considerar a si próprio como parte do

fenômeno analisado” (SEINCMAN, 2001: 55). E mais do que isso, enquanto o

fenômeno for considerado a partir da descrição objetiva, sem a participação da

consciência e do sujeito, consideraremos o tempo como sucessão sem

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entender que os momentos retomados não são idênticos. Só partindo da

memória para compreender que a consciência constrói concomitante aos

instantes ativos, instantes latentes. Na escuta musical, além dos A’s não serem

idênticos, podem ser contraditórios, pois primeiro A/A é ≠ do segundo A/A +

B/B + A.

Seincman une os pontos entre Bergson e Bachelard e afirma que: “... o

tempo não é uma cadeia unívoca e contínua, uma durée, mas produto de uma

dialética fundamental que permeia o fenômeno da fruição estética. O tempo é

pluridimensional, possui várias camadas e cadeias simultâneas” (SEINCMAN,

2001: 60). A identidade é refutada quando introduzida num contexto temporal

rítmico. Dentro do tempo, o novo está sempre atualizando o conteúdo

retomado. “Assim sendo, o passado é retomado, reatualizado e

ressemantizado: o que fora ouvido como antes e depois, como “isto então

aquilo”, torna-se “isso e ao mesmo tempo aquilo” (SEINCMAN, 2001: 66).

Existe a vivência do “isso” concomitante com o “aquilo”. O presente é que

oferece essa condição, pois a lei da continuidade se dá no presente, no que

chamamos de entre. O presente é a chave para o enigma: o laço entre a

lembrança e a expectativa é o continuo viabilizado pelo presente, fugidio,

rápido, ritmado entre continuidade e descontinuidade. O presente é o “entre”,

claro, está localizado “entre” o passado e o futuro. No presente, portanto,

ocorre a repetição, o trânsito da unidade para a duplicidade, logo, da

ocorrência das contradições.

Seincman afirma que a discussão sobre o tempo e sua importância na

organização social e na construção da linguagem artística, ocorreu por vários

motivos: a Revolução Industrial que modificou as relações de produção,

consumo e serviço; a Revolução Francesa que levantou as lutas ideológicas e

políticas; e o movimento literário conhecido como Sturm and Drung que foi

decisivo na arte e na cultura (SEINCMAN, 2001:75). Na raiz dessas

transformações estava a intenção de alcançar a manipulação do tempo, ou

seja, a conquista do domínio do fluxo temporal.

Gradativamente, o homem do século XIX foi tomando consciência de que a realidade temporal poderia ser manipulada, controlada. Se as normas sociais relativas à monarquia e ao absolutismo podiam ser

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derrubadas, por que não o seriam, igualmente, as artísticas e acadêmicas? Se o tempo histórico e social se transformava, não seria possível tal mudança nas obras de arte? (SEINCMAN, 2001: 76).

Surge a possibilidade de mistura de gêneros, algo que era impensável

para as escolas tradicionais que impunham a obediência aos padrões clássicos

e racionalistas. A motivação deste ímpeto entre os artistas se deve ao marco

que a obra de Willian Shakespeare produziu na História, e este movimento

conhecido como Romantismo, iniciou-se no século XVIII.

A música do Romantismo deixa de ser regida pelos padrões tonais e formais estabelecidos nos séculos anteriores. Ela se organiza a partir de um discurso mais aberto, ambíguo, que confirma sua realidade temporal pluridimensional.

(...)

O domínio técnico da sintaxe musical permite, agora, que o compositor possa tanto efetuar rupturas na estrutura formal clássica, quanto mantê-la, de acordo com sua vontade. Ele pode gerar a impressão de um tempo contínuo, uma espécie de eterno devir ou, ao invés, de um tempo descontínuo, formado de instantes em permanente conflito (SEINCMAN, 2001: 87).

O tempo pode ser manuseado de modo contínuo e descontínuo, segundo

o que Seincman chamou de: “jogo de uma realidade temporal infinita”

(SEINCMAN, 2001: 87). A utilização da música para este manuseio com a

temporalidade permite o domínio do tempo - antes almejado. Mas um tipo de

domínio com ressalvas: considerar o tempo em suas dimensões múltiplas e ter

o sujeito ouvinte e consciente, objeto de si mesmo numa construção melódica

alternando unidade e diversidade.

As obras de Shakespeare motivaram muitas criações, e os exemplos

citados por Seincman passam por Paul Mies, Mendelssohn, Schumann,

Beethoven, Schubert, Liszt, Brahms, Mahler, Bruckner, Wagner, Strauss e

Chopin. Estes autores buscaram desvencilharem-se das regras do classicismo

e dos ordenamentos histórico-filosóficos. A música do Romantismo com este

viés abre as portas para novas considerações:

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...exatamente por permitir o livre trânsito de uma ideia a outra, sem qualquer respeito pelas fronteiras da lógica tradicional; por isto ignora qualquer limite, em particular os limites do ‘tempo e do princípio de não-contradição. Ignora os limites do tempo: um fato vivido hoje pode reavivar uma lembrança da semana passada e um desejo infantil, produzindo com estes ingredientes o sonho de hoje à noite. E ignora o princípio da não-contradição, alicerce de todo o pensamento racional: segundo este princípio, A não pode ser simultaneamente não - A; ou é A ou não é A, excluindo-se toda outra possibilidade45

Essa atmosfera contraditória fez parte da vida do compositor polonês

Frédéric Chopin que chegou à cidade de Paris em França, num período de

“ebulição cultural” (SEINCMAN, 2001: 146), repleta das novas tendências

românticas e dos defensores fiéis do classicismo. Chopin expressa a atmosfera

efervescente da época em suas obras e a noção de duplo, de duplicidade entre

as realidades. Seincman cita a influência de Chateaubriand e de Mme de Stäel,

na obra de Victor Hugo

(MEZAN, 1987, 141 apud SEINCMAN, 2001: 114-115).

Seincman se refere à temporalidade e à espacialidade conforme Bergson,

sem pressupor uma estrutura de conexões causais objetivas. A estrutura

temporal deve ser pensada como uma malha, onde os eventos são formados

por associações carregadas de significados e misturadas de acordo com seus

critérios; que podem ser disformes, contraditórios e irregulares, sem as

formalidades da sucessão.

Ao comentar a obra Noturno op. 15 n°3 de Chopin, Seincman afirma que

ocorre “um equilíbrio entre realidades simétricas e assimétricas, contínua e

descontínua, formal e não-formal, que ocorrem no limite da manutenção de

uma unidade e sua dissolução” (SEINCMAN, 2001: 121). Algo como um

“estado-de-coisas paritário” – se posso assim dizer, entre realidades que não

“poderiam” coexistir.

46

45 Renato Mezan. Psicanálise, judaísmo: ressonâncias. São Paulo, Escuta, 1987. 46 Chateaubriand (Gênio do Cristianismo, 2ª e 3ª partes) e Mme. de Stäel (Da literatura) em Victor Hugo. Do grotesco e do sublime (prefácio a Cromwel). Col. Elos n° 5, São Paulo, Perspectiva, 41-42.

, que expõe o duplo no íntimo de cada homem:

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Do dia em que o Cristianismo disse ao homem: “Você é duplo, é composto de dois seres, um perecível, o outro imortal; um carnal, o outro etéreo; um prisioneiro dos apetites, necessidades e paixões, o outro levado pelas asas do entusiasmo e da fantasia: aquele, enfim, sempre curvado para a terra, sua mãe, estoutro lançado sem cessar para o céu, sua pátria”; desde este dia foi criado o drama. Será, com efeito, outra coisa este contraste de todos os dias, esta luta de todos os instantes entre dois princípios opostos que sempre estão em presença na vida, e que reivindicam o homem desde o berço até a sepultura? (V. HUGO, 41-42 apud SEINCMAN, 2001: 146-147).

Este drama humano é retratado por Chopin, baseando-se nos conflitos

que afligiam Hamlet. Chopin o fez pensando em traduzir musicalmente a

reflexão pessoal, e individual de cada sujeito para consigo mesmo, juntamente

como o questionamento metafísico que se eleva do eu, que atinge a esfera

comum entre todos os seres humanos. Esse caráter filosófico é próprio da

postura de Chopin, que encontrou na emblemática frase de Hamlet: “Ser ou

não ser, eis a questão”, a inspiração para Noturno.

O famoso monólogo sintetiza, de maneira magistral, a essência da temática filosófica de Hamlet: o limiar entre o real e o irreal, a presença e a ausência, a verdade e a mentira, a razão e a loucura, a lucidez e o obscurantismo, o amor e o ódio, a fidelidade e a traição, o realismo e a representação. (SEINCMAN, 2001: 148).

Seincman afirma que a forma geral da obra é evolutiva, “tal como um A B

A, um A B A C A ou, até mesmo A B C D C B A (SEINCMAN, 2001: 149),

resultado do conflito moral e vacilante de Hamlet, repleto de idas e vindas. Tal

como Shakespeare, Chopin buscou ressaltar o mesmo ser vivenciando suas

contradições, onde a mudança e a transformação estão presentes em todos os

pensamentos e atos. O agir de Hamlet, fruto de seu pensar, estava

emaranhado de um futuro apavorante. Em seu íntimo há uma unidade a todo o

momento retomada, mas que nunca é a mesma, desdobrada em múltiplas

faces. Hamlet oscila: ora é piedoso, ora cruel. Por vezes compreensivo, e em

seguida cheio de cinismo. As emoções mudam e lançam Hamlet de um lado a

outro, em torvelinho, que beira a razão, tão logo se exalte, estremece em

insensatez.

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E, realmente, constata-se que, a despeito dos conflitos, cada seção carrega, em si, os elementos do passado que lhe conferiram a identidade: o que dá origem a uma seção já se encontrava, pois, embrionariamente presente na anterior. Deste modo, Chopin unifica a forma geral da obra de dentro para fora: a unidade é obtida por meio de um processo orgânico parcialmente semelhante à técnica de elaboração temática do allegro-de-sonata. Há, pois, um equilíbrio entre a fragmentação e a unidade (SEINCMAN, 2001: 150).

Seincman diz que a obra de Chopin se volta para a discussão da

semanticidade, pois, ao ouvir cada uma das seções da peça, pode-se

compreendê-las individualizadas, mas os limites entre elas são ambíguos, são

gradações que permitem a coexistência do que chamamos nesta pesquisa de

“estados-de-coisa-contraditórios”. A continuidade e a descontinuidade

encontradas na análise de Seincman a respeito da obra de Chopin é um

exemplo do que esta pesquisa defende: as contradições existem sempre que a

lei da continuidade estiver presente. Sempre que considerarmos o tempo

fluindo ritmicamente. A música e a consciência são os elementos que dão

condição para visualizarmos a presença da lei da continuidade, como em

Hamlet de Shakespeare e no Noturno de Chopin.

A unidade e sua dissolução ocorrem pelos graus localizados entre as

fronteiras que compõem as partes de um todo. O tempo formado por “pontos

de acumulação” é análogo aos compassos musicais de uma peça. Tais

exemplos foram utilizados nesta pesquisa como suportes para a ilustração do

atenuamento do princípio de Não Contradição em domínios onde a lei da

continuidade encontra-se vigente.

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Apêndice György Ligeti e a obra “Continuun”

György Ligeti nasceu na Transilvânia, em 1923, e formou-se em música

contra a vontade do pai. De família judia não praticante, sofreu com o

sentimento que varreu toda a Europa, o anti-semitismo. Salvou-se dos campos

de concentração em trabalhos forçados, mas perdeu parte da família que não

teve a mesma sorte. Seus estudos superiores iniciaram no ano de 1944, na

Academia de Franz Litsz, quando se mudou para Budapeste. Teve uma

formação clássica, mas sempre buscava seu estilo próprio, libertando-se das

regras e enquadramentos do pensamento acadêmico (CASNOK: 2003: 140).

Entre os motivos escolhidos para analisar a obra de György Ligeti, Yara

Borges Caznok em seu livro Música: entre o audível e o visível (2003),

escolheu-o pela postura de Ligeti a respeito da “recepção” musical e a

importância dada à escuta juntamente a sensorialidade própria ao homem

contemporâneo.

Ligeti possuía uma independência e autonomia de criação e composição

que foi construída desde sua formação.

Sua produção esteve sempre endereçada ao homem contemporâneo, que convive tanto com as ciências dos fractais e da teoria do caos quanto com as formas de pensamento de culturas pré-tecnológicas.

(...)

...Ligeti, mesmo não sendo adepto de nenhuma corrente descritivista, programática ou cênica, admite que a audição seja um complexo psíquico-emocional ontologicamente híbrido e sinestésico. (CASNOK, 2003: 132).

A audição é o campo experimental privilegiado ao qual Ligeti se volta,

considerando-a como condição peculiar para uma percepção do ouvinte repleta

de potencialidades de ordem psíquica e emocional, que se constrói por meio da

concepção do real múltiplo. O suporte ontológico é baseado em uma realidade

híbrida, ou seja, algo que cresce sustentado por vários elementos hibridizados.

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Ligeti pensava no valor fundamental da escuta, mas vai além dela. A

consciência de uma experiência musical se forma a partir do conjunto de

elementos sensoriais, não exclusivamente auditivos. A multissensorialidade

proposta por Ligeti pretende aliar a escuta aos aspectos corporais e mentais

que produzem uma experiência estética formada de complexidade. A

complexidade e a multiplicidade são aspectos presentes na obra musical, na

escuta e na temporalidade. Ligeti valoriza o múltiplo. A sensorialidade é

múltipla, a temporalidade é múltipla e a música é múltipla.

A obra Éjszaka (Noite) 1955, segundo Yara B. Casnok tem a forma de um

bloco sonoro construído, próximo da imagem de um “empilhamento”, que dá a

impressão de que “o conjunto parece não se mover, permanece” (CASNOK,

2003: 133). A obra de Ligeti discute a construção melódica que se desenvolve

na relação unidade/duplicidade, aparecer/ocultar.

... a maior “contradição” vem do fato de existirem linhas melódicas que não são ouvidas como tais: o bloco “traga” todos os sons para dentro de si, como se fosse um poderoso imã, e não lhes dá a menor chance de aparecer. Daí um paradoxo, como presentificar algo objetivando seu desaparecimento? As vozes estão, portanto, presentes ou ausentes, ao mesmo tempo? Vale a pena se esforçar para ouvir algo cujo destino é ocultar-se? (CASNOK, 2003: 133).

Casnok argumenta que a proposta de Ligeti é provocar uma nova forma

perceptiva de escuta. Ao colocar a disposição do ouvinte uma situação

paradoxal, a audição se depara com a necessidade de perceber de um modo

ampliado, diferenciado do habitual e somando os elementos perceptíveis de

outros sentidos. A música de Ligeti busca atingir o ouvinte como um todo, como

sujeito cognoscente, tocando-o integralmente, em seu aparato físico, psíquico e

emocional. Uma obra multidimensional necessita de uma recepção

multissensorial.

Como explicar que essa “massa” sonora tenha um corpo, uma densidade, uma textura, uma presença visual e uma espacialidade senão pelas sensações globais e totais do nosso corpo?

(...)

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...a percepção musical não se restringe apenas a ouvir sons. Trata-se de uma nova forma de conceber o ouvir, que abrange uma série de cruzamentos e transferências dos domínios sensoriais: imbrincam-se, contaminam-se e misturam-se diferentes modalidades perceptivas tais como as sensações visuais, táteis, corporais, sinestésicas (de movimento), entre outras, de modo que a polissensorialidade aflore em sua totalidade. (CASNOK, 2003: 133-134).

Ligeti usava sua técnica para projetos experimentais com o intuito de

descobrir até onde sua criação e inspiração poderiam chegar. A música

eletrônica foi uma das experiências que por um período Ligeti pesquisou. Com

as técnicas da música eletrônica, Ligeti descobriu que era possível pensar em

novas formas de recepção.

...a técnica eletrônica lhe permitiu trabalhar com a superposição de inúmeras camadas sonoras que, embora se movimentassem internamente, soam quase estáticas em seu aspecto global. Quanto maior for o grau de movimentação de uma voz ou camada, tanto mais estática ela aparecerá em termos receptivos (CASNOK, 2003: 143-144).

A temporalidade e a espacialidade tornam-se plásticas e voláteis para

Ligeti. A flexibilidade viabilizada pela multidimensionalidade da música e a

multissensorialidade do ouvinte favorecem para que ocorram “expressões

musicais contrastantes”: uma que se caracteriza pela vivência de estaticidade,

do continuun sonoro, e outra que se apreende por seu caráter episódico de

evento, de acontecimento descontínuo (CASNOK, 2003 : 144). A ambivalência

entre contínuo e descontínuo é fundamento da proposta ligetiana.

O reconhecimento internacional surgiu com a técnica do brouillage47

47 Brouillage, do verbo brouiller, misturar. O termo vem do vocabulário da eletrônica e significa a superposição de uma emissão radiofônica sobre outra, tornando-as ininteligíveis. Em música, é o resultado sonoro da superposição cerrada de uma quantidade muito grande de vozes que anula a percepção das linhas individuais e das alturas, realçando o timbre do conjunto. Os efeitos de brouillage introduzem o ouvido nos chamados “campos sonoros”, nos quais se percebem massas de sons que se movem e se transformam em seu aspecto global e não em detalhes internos (CASNOK, 2003: 141).

, a

mistura de sonoridades desfazendo a noção de onde estão nitidamente os

elementos que compõe o conjunto sonoro. O resultado foi a micropolifonia.

Durante o período que esteve em Estocolmo (1972) Ligeti participou do grupo

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Fluxus e utilizou em suas produções as discussões entre os conteudistas e

formalistas, provocadas por John Cage. O silêncio, as pausas sonoras foram

abordadas sob a influência de Cage, e Ligeti se aproveitou dessas discussões

de modo crítico e irônico, experimentando a despeito da reprovação das

escolas e críticos ortodoxos. Seus trabalhos posteriores e pesquisas buscavam

menos densidade e extensionalidade. Casnok afirma ter Ligeti chegado a

“tramas polifônicas mais leves” (CASNOK, 2003: 154), se despedindo do

brouillage. “O Continuun para cravo é uma obra exemplar a esse respeito.

Nela, revela-se de forma clara a maneira pela qual o compositor desenvolveu a

ideia de tornar audíveis as alturas e as durações sem sequer aludir à melodia e

à harmonia tonais” (CASNOK, 2003: 157). Ligeti opta por explorar os aspectos

das alturas e durações, através do que Yara B. Casnok chama de “princípio da

defasagem temporal” . A noção de temporalidade se desarranja.

Ligeti descobriu depois de ministrar cursos na Universidade de Stanford,

Califórnia, que a Europa havia mantido sempre um posicionamento autoritário e

superior. Fechada em si, sustentada pelo discurso de oferecer ao mundo “o

modelo” a ser copiado (CASNOK, 2003: 164), desprezando tudo ao seu redor.

As discussões do pensamento europeu se esgotaram em si mesmas, sem o

diálogo e a abertura para o novo. Ligeti sentiu a força dessas considerações e

voltou-se para sua própria vida.

Os resultados desses encontros foram decisivos no encaminhamento de sua produção. Primeiramente, intensificaram suas buscas por músicas de outras culturas, que o levaram, mesmo que indiretamente, ao conhecimento e à admiração da música africana e latino-americana. Em seguida provocaram o estímulo que lhe faltava para se libertar do autoritarismo imposto pela vanguarda: por que não usar materiais e elementos banidos da composição dita “moderna”, tais como formas clássicas e temas, sem temer a execração dos críticos e colegas? Por último, reaproximaram-no da Hungria de uma forma mais consciente e valorativa. Percebeu que havia tentado, durante muito tempo, superar internamente sua condição de imigrante oriundo de uma cultura considerada periférica e inferior, e que o sentimento de desvalorização de suas origens era um equívoco e uma contradição (CASNOK, 2003: 165).

Essa situação particular na vida de György Ligeti levou-o a maior abertura

e reencontro consigo, com sua formação, com o desenvolvimento de suas

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ideias, que o fizeram declarar seu entusiasmo por sonoridades consideradas

“primitivas” e culturas consideradas “exóticas”. Um desafio surgiu quando

pretendeu aceitar o pedido da Antoniette Vischer, cravista suíça que solicitou

uma peça para cravo solo. Casnok nos faz compreender a dimensão da tarefa:

“como compor uma sonoridade contínua em um instrumento que, ao contrário

do órgão, não permite que os sons se sustentem durante muito tempo?

(CASNOK, 2003: 183). Ligeti entendia que o cravo, essencialmente era um

instrumento que suscitava o descontínuo, de modo, que o interesse em compor

uma peça contínua para um instrumento com o caráter originalmente

descontínuo, o motivou. Essa proposta para o cravo exige uma dedicação e

entrega entre o compositor, o instrumento e a execução.

Quando ouvi a obra Continuum de Ligeti, não tive certeza de tê-la

entendido. A primeira sensação é de um turbilhão de sons que se repetem.

Depois de alguns instantes, algumas notas modificam-se, mas retorna a

sensação de desenrolar, de prolongamento. As quebras são rápidas e

intermitentes de modo que depois de dois minutos a impressão que me ocorreu

foi de imobilidade. Os motivos se repetem ou não? Não consegui responder. “O

primeiro paradoxo perceptivo trazido por essa situação é que a mobilidade

máxima dos sons produz sua fusão e resulta na sensação de imobilidade

sonora (CASNOK, 2003: 184). Essa imobilidade sonora é sustentada pela

proximidade máxima entre as notas e a velocidade de sua execução. O

cravista não pode retirar as mãos do teclado para mudar a registração,

somente por meio dos pedais. Busquei a música nos sites da web e encontrei

um cravista executando a peça, e fiquei impressionada pelo modo quase

imóvel que tocava. O que me causou espanto, pois a música parecia

desenvolver-se como um turbilhão de sons se movendo, um vendaval sonoro.

A diferença entre a escuta habitual e a escuta de uma obra de Ligeti é

brutal. Não há um tema inicial, seguido de um refrão e de um tema final,

seguido da expectativa do retorno do refrão. Não há duração, não há ritmo.

Entretanto, para mim, senti que mesmo sem uma melodia convencional - ou

aquilo que meus ouvidos iniciantes e latino-americanos conhecem a respeito

de música -, existe noção de continuidade frenética inesperadamente

interrompida e imediatamente prolongada. O tempo se esfarelou. O começo, o

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meio e o fim não possuíam fronteiras geográficas bem definidas, na

experiência auditiva que eu fizera.

Os “compassos” não são reais: conforme as instruções do compositor, as barras pontilhadas que dividem as pautas são apenas um recurso facilitador da leitura e da orientação. A inexistência de pontos de referência rítmicos e métricos provoca uma sensação de fluxo sonoro ininterrupto, indivisível e desenfreado, como se fosse um moto-contínuo realizado por um mecanismo di precione (CASNOK, 2003: 184).

A regularidade na execução é reivindicada com veemência para que

seja possível atingir o resultado duplo de continuidade e estaticidade sonora.

A técnica com as mãos foi pensada por Ligeti para que a execução

fornecesse a experiência tátil para o intérprete, de modo que as notas e

movimentos são curtos e rápidos, produzindo além da experiência tátil, a

sensação de que existe a imobilidade, mesmo que necessariamente haja a

velocidade máxima na execução: novo paradoxo.

Tudo está sob os dedos, nos dedos. Eu pensei nas notas como se elas saíssem dos dedos. Eu obtenho facilmente essa rapidez fulgurante porque não há baixos e a posição das mãos é sempre a mesma. Há somente o afastamento dos dedos. Eu quis compor para as duas mãos do cravista como se elas fossem dois objetos imóveis (LIGETI48

Antes da leitura da análise de Continnum, ouvi a música. Fiquei chocada.

Pensei que não sabia compreender tal expressão musical. Ouvi novamente,

fechei os olhos e pensei nos instantes temporais como pontos de acumulação.

Fiquei tonta. Muitas imagens se formaram mentalmente e com os olhos da

mente tentei enxergar os sons dançando como se estivessem desdobrados uns

dos outros. O dia estava claro e saí porta a fora. Vi os raios de sol dançado

misturados com as notas finais de Continuum, pingos de sons, chuviscos de

sons. Subitamente, parou. Fiquei calada pensando em tudo que havia escrito

sobre a música, sobre o tempo e sobre o Princípio de Não Contradição. Eu

estava parada e a minha mente estava girando sem parar. Foi o que eu senti:

, 1996 b: 12 apud CASNOK, 2003: 185).

48 LIGETI, G. Works for piano (encarte de CD) Sony György Ligeti Edition, v. 3, p. 11-2, 1996b.

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novo paradoxo. Como poderia estar eu mesma parada e girando ao mesmo

tempo? Uma certeza me passou como um relâmpago: esta é a música que eu

procurava. Ela é tudo que estou tentando dizer. Fiquei alguns dias receosa em

ouvi-la novamente. Me esqueci dela. Mas lá no fundo guardei-a dentro do

estupor estético que vivi, quando da primeira vez.

Continuum é para mim um mistério. Não foi composta para expressar a

relação entre o tempo e o princípio de Não Contradição. Foi composta para que

a experiência com a música fosse além da escuta convencional, para além da

execução clássica; para a noção de engendrar paradoxo entre

contínuo/descontínuo, mobilidade/imobilidade, aparecimento/ocultamento

pudesse ser discutida.

Nesta pesquisa, a obra Continuum é o corolário da ideia de que os

instantes não são metrificados, são pontos de acumulação. A música é a

mobilidade e imobilidade sonora, que se desenvolve numa estrutura ontológica

muldimensional. A percepção é a união da polissensorialidade. A receptividade

de uma obra desta natureza faz com que o ouvinte oscile entre elementos que

aparecem e se sobrepõem, concomitantes a elementos que se ocultam e

desaparecem. Efetiva contradição.

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Conclusão

Nesta pesquisa de dissertação de mestrado procurei analisar a possível

relativização do Princípio de Não Contradição formulado por Aristóteles,

considerado um dos princípios estruturantes da racionalidade ocidental. Para

tal tarefa, as considerações do matemático Bernard Bolzano, foram

introduzidas posto que Bolzano salientou que a obediência ao Princípio de Não

Contradição se dá de modo incisivo quando os instantes são admitidos como

pequenas partes simples de tempo, “pontos de tempo”, como chamo aqui,

partículas de tempo. Retirados de uma linha que se desenrola formando assim

a noção clássica de tempo linear. Cada instante seria então um ponto na reta,

visto como “ponto geométrico”.

A análise da relação do Principio de Não Contradição com o tempo

começa, portanto, em Bolzano, sendo estritamente necessária a observação do

Principio de Não Contradição em uma noção de tempo onde o instante é a

parte mais simples do “tempo inteiro”. Aspecto este que estava presente de

modo subjacente na Metafísica de Aristóteles e estudado por Bolzano em suas

pesquisas sobre a eternidade e o infinito.

Henri Bergson contribui para o esclarecimento do alcance limitado da

metodologia científica na definição do tempo, e sendo as práticas científicas

mensurações do espaço e das grandezas extensas. Bergson afirma que o

tempo é uma duração em oposição ao tempo da justaposição de instantes

sucessivos entendidos como “pontos geométricos”, portanto, espacializados.

Da seqüência argumentativa de Bolzano para a de Bergson é feita através

da apresentação de outra noção de tempo, onde o Princípio de Não

Contradição possa ser relativizado. O tempo que flui ininterrupto é análogo ao

fluxo de nossa consciência e reclama então, a marcação do instante inicial para

o seu instante subseqüente, pressupondo então a memória, como

gerenciadora e operadora do fluxo temporal.

O tempo bergsoniano, influenciado pelas iniciais teorias de Agostinho de

Hipona a respeito da natureza do tempo, é um tempo subjetivo e deve ser

definido baseado na faculdade da memória. A questão do tempo é uma

questão epistêmica. No entanto, o tema proposto por esta pesquisa, é a

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relação do tempo com o Princípio de Não Contradição, e esta relação ocorre no

âmbito ontológico, na estrutura onde as substâncias se dão.

A ontologia como estudo do “ser”, da natureza do “ser” e das coisas que

são no mundo, traz uma pergunta fundamental: disto que foi afirmado, há

contradições reais? A resposta é discutida contemporaneamente por Grahan

Priest em sua tese sobre o Dialeteísmo. Na presença de contradições efetivas

em algumas situações singulares, em contextos específicos vistos como fluxos

contínuos onde algumas contradições são verdadeiras e ocorrem de fato.

Para demonstrar como são estes fluxos contínuos Priest lança mão do

“Princípio de continuidade” de Leibniz e da definição hegeliana da contradição

como raiz do movimento e da vitalidade. A noção de contínuo e continuidade

tornou-se mais consistente com a introdução dos critérios de Georg Cantor

sobre a estrutura isomórfica dos conjuntos contínuos. Admitindo que cada

elemento de um conjunto contínuo é um “ponto de acumulação” que possui no

entorno de si infinitos elementos, a noção de “vizinhança”, permite formar

intuitivamente a imagem de uma nuvem de elementos. O conceito de

vizinhança aliado ao conceito de ponto de acumulação são os argumentos que

permitem a refutação dos instantes vistos de modo isolado como concebidos

por Bolzano.

Em contextos estruturalmente definidos como contínuos, como por

exemplo, o fluxo temporal indiviso, a questão que foi levantada é: “o princípio

de Não contradição possui o mesmo caráter ontológico absoluto?”

Com base nos argumentos de Priest busquei responder que não, o

Princípio de Não Contradição não sustenta sua postura absoluta e pode ser

relativizado em contextos verdadeiramente contínuos. A contradição se faz

presente, este é o modo como as coisas se dão no mundo, em função de sua

natureza expandida, sendo impossível isolar as substâncias. De modo que a

presença da lei da continuidade de Grahan Priest está em oposição explicita

com a noção de isolamento. Corroborada por Bergson e também Agostinho.

O exemplo da experiência musical foi utilizado para visualização de um

domínio onde se aplica a lei da continuidade e a noção de tempo musical é

perfeitamente correlata a um conjunto contínuo. As considerações de Gillo

Dorfles, Susanne Langer e Gaston Bachelard a respeito da duração,

enriqueceram o trabalho e tornaram-no mais instigante. A noção de duração

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ficou mais bem entendida e a introdução da descontinuidade no processo de

composição-execução-recepção musical, permitiu que o ritmo fosse

considerado um princípio estruturante da continuidade assim como a repetição.

A referência à György Ligeti proporcionou um feliz encontro entre a idea

dessa pesquisa defendida e a peça Continuum para cravo solo. A noção de

unidade/duplicidade foi investigada e reelaborou-se a compreensão do jogo

paradoxal entre continuidade/descontinuidade, mobilidade/imobilidade

aparecimento/ocultalmento. A música de Ligeti permitiu uma nova noção de

percepção, escuta e sensorialidade. A multidimensão da música a

polissensorialidade do ouvinte propõe um sujeito ativo epistemologicamente. A

possibilidade de afirmar que “ouço e não ouço”, “move-se e não move-se”,

“estou aqui e não estou aqui”, sofreu um atenuamento. A pesquisa em torno

das efetivas contradições, dos paradoxos e “estados-de-coisa contraditórios”

torna-se atual e pertinente para um ouvinte contemporâneo, como muito bem

nos fez entender a música de György Ligeti.

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