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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA (ECCO) A FESTA DO PESCADOR EM BONSUCESSO: A PRODUÇÃO SOCIAL DA FESTA LUCAS DE ALBUQUERQUE OLIVEIRA CUIABÁ-MT 2012/1

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PÓS-GRADUAÇÃO – MESTRADO EM ESTUDOS DE CULTURA

CONTEMPORÂNEA (ECCO)

A FESTA DO PESCADOR EM BONSUCESSO: A PRODUÇÃO SOCIAL DA

FESTA

LUCAS DE ALBUQUERQUE OLIVEIRA

CUIABÁ-MT

2012/1

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LUCAS DE ALBUQUERQUE OLIVEIRA

A FESTA DO PESCADOR EM BONSUCESSO: A PRODUÇÃO SOCIAL DA

FESTA.

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação do Instituto de

Linguagens, Mestrado em Estudos de

Cultura Contemporânea (ECCO), da

Universidade Federal de Mato Grosso

(UFMT), para a obtenção do título de

Mestre em Estudos de Cultura

Contemporânea.

Área de Concentração: Poéticas

Contemporâneas

Orientadora: Professora Doutora Patrícia Silva Osório

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT

Instituto de Linguagens

CUIABÁ-MT

2012/1

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O48f Oliveira, Lucas de Albuquerque.

A FESTA DO PESCADOR EM BONSUCESSO : A PRODUÇÃO

SOCIAL DA FESTA / Lucas de Albuquerque Oliveira. -- 2012

88 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientadora: Patrícia Silva Osório.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso

Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de

Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2012.

Inclui bibliografia.

1. festa. 2. dinâmicas identitárias. 3. associação. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos

pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

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Resumo:

Nesta dissertação será apresentado o processo criativo que transforma "Festa de

São Pedro", realizada nas margens do rio Cuiabá, no Mato Grosso, na "Festa do

Pescador". A intenção é a de considerar dinâmicas identitárias, a partir de uma pesquisa

de campo sobre o processo de execução da festa. A realização da Festa do Pescador

coloca-se como uma tentativa dos organizadores de torná-lo um grande evento, não só

para consolidar a identidade local e regional, mas também para desenvolver a venda

maciça de bens turísticos produzidos na comunidade.

Palavras chave: festa, dinâmicas identitárias e associação.

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Abstract:

In this dissertation it will be presented the creative process that transforms "Festa

de São Pedro" (Saint Peter's Festivity), performed on the banks of Cuiabá river in Mato

Grosso, in "Festa do Pescador" (The Fisherman's Festivity). Our intention is to consider

identitary dynamics, starting from the point of view of the ethnography about the

process of the execution of the Festivity. The realization of Festa do Pescador is an

attempt of the organizers to make it a big event, not only to consolidate the local and

regional identity but also to develop massive tourist expenditure on goods made in the

community.

Keywords: festivity, identitary dynamics and association.

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Lista de Figuras:

Figura 01: Via de acesso a Bonsucesso 22

Figura 02: A rua enfeitada 24

Figura 03: Engenho de rapadura do seu Neco 24

Figura 04: Bonsucesso com a rua enfeitada para a festa do Pescador 26

Figura 05: As peixarias de Bonsucesso 28

Figura 06: A rua no dia da missa do dia 29 de junho 34

Figura 07: O levantamento do mastro da Festa de São Pedro 34

Figura 08: Procissão terrestre 36

Figura 09: Descendo o barranco para adentrar o rio Cuiabá 36

Figura 10: A procissão de São Pedro no Rio Cuiabá 38

Figura 11: A multidão recepcionando os festeiros 38

Figura 12: Moradores e visitantes agradecendo aos festeiros 39

Figura 13: A missa campal 39

Figura 14: O banquete, a peixada cuiabana 40

Figura 15: A multidão que vem para assistir os shows 41

Figura 16: Construção do barracão da cozinha 51

Figura 17: Construção dos barracões 51

Figura 18: Igreja da comunidade 52

Figura 19: O trabalho em grupo 52

Figura 21: Em foco o trabalho coletivo 57

Figura 22: Hora do banquete 58

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Sumário:

Resumo 4

Abstract 5

Lista de Figuras 7

Sumário 8

Introdução 9

O ribeirinho de Bonsucesso 12

Metodologia 16

A escrita compartilhada 19

A dissertação 20

Capítulo I: A Festa do Pescador em Bonsucesso 22

Bonsucesso e o peixe 26

As festas em Bonsucesso e a Festa do Pescador 30

Capítulo II: Os vários momentos da festa e sua dinâmica de troca 42

Capitulo III: Festa e dinâmicas identitárias 63

A Festa em suas várias dimensões: identidades para dentro e para fora 65

Capitulo IV: A Associação e a Festa 71

A Associação de Pescadores: o profissionalismo da Festa 71

A representação social e a teatralização da identidade 74

Considerações finais: 82

Referências Bibliográficas 84

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Introdução:

Bonsucesso foi um de muitos povoados que surgiu às margens do rio Cuiabá na

época da exploração do açúcar e da mineração no século XIX. Atualmente Bonsucesso

possui 2.211 habitantes (IBGE, 2000) e completa pelo menos 100 anos de ocupação,

pois não há uma data certa de sua fundação. Em seu contexto municipal foi a primeira

“comunidade” a ser elevada a distrito do município de Várzea Grande, com a Lei

Estadual de nº. 126, de 23-09-1948. O distrito de Bom Sucesso1 englobaria ainda as

vilas de Souza Lima, Pai André e Praia Grande, tratadas pelo IBGE como lugarejos.

Segundo contam os moradores mais antigos2, estes povoados compunham uma

área de sesmaria, lugar onde os recursos naturais, bem como a terra eram utilizados e

divididos segundo normativas locais de parentesco e compadrio. Alguns estudos

apontam que estas normativas fizeram com que algumas destas sesmarias que existiam

ao longo do rio Cuiabá se desdobrassem em localidades popularmente conhecidas na

região como “comunidades ribeirinhas”. Portanto, a formação social e econômica dessas

“comunidades” deu-se fundamentalmente pelo trabalho e permanência nas terras de

beira-rio (DIEGUES, 1996). Tal vivência serve como mote utilizado pelos moradores

para se inserirem na cidade e no contexto regional, atuando junto à mídia e as redes

sociais e sites de venda coletiva.

Os moradores mais antigos desta localidade a denominam de vila. Esta “vila”

desenvolveu no passado ligações sociais e históricas com o abastecimento de Cuiabá,

através da produção agrícola e com a pesca no rio Cuiabá, os ribeirinhos constituíram,

assim, um modo de vida particular.

Bonsucesso é formado por uma rua principal, que segue paralelamente o curso

do rio, distante deste apenas pelas casas dos moradores, seus quintais, mangueirais,

canaviais e portos de canoas. No meio dela nos deparamos com a Igreja da localidade, e

em frente o centro comunitário, sendo a igreja católica da localidade o palco das

1 O nome da localidade é popularmente escrito com n, e sem separação, Bonsucesso. Esta nomenclatura

aparece principalmente nas camisetas de festas que a comunidade realiza, e na camiseta do time de

futebol. Na criação do Distrito de Bom Sucesso o Estado reescreve o nome da comunidade,

transformando a grafia em um nome composto, ou seja, com a grafia diferenciada. No meu estudo me

atenho à grafia popular, a qual é utilizada ao longo do texto.

2 Situação que é contada por uma das mais antigas famílias que compõem a localidade, e, que foi

registrada em 1987 por Ubaldo Monteiro, falecido político do município, e que teve como intuito escrever

na época um compêndio das estórias das primeiras povoações de Várzea Grande.

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principais festas e manifestações religiosas, como as novenas, as missas de domingo e

as reuniões do grupo de jovens. Dentre as manifestações de Bonsucesso, a festa de São

Pedro, também chamada de Festa do Pescador, fez-se objeto de estudo neste trabalho.

As festas são momentos importantes para Bonsucesso, e essa característica se

estende por outros bairros da região ribeirinha e pantaneira do Pantanal Norte-

matogrossense. E foi ao longo de alguns anos morando em Cuiabá que enveredei por

este universo em particular. Vivenciei e até trabalhei em manifestações da cultura

popular. Ao entrar em contato com estas manifestações populares considerei que a festa

de São Pedro de Bonsucesso3 seria um possível objeto pela forma como ela mobiliza a

localidade trazendo à tona símbolos como o peixe, o pescador e o rio, fortes referências

para se pensar como é trabalhado este mote identitário no contexto local e regional. A

associação de São Pedro com o sentido de ser pescador do rio Cuiabá me instigou

muito. Esta pesquisa visa a partir de uma pesquisa etnográfica junto aos moradores de

Bonsucesso, refletir sobre como são utilizadas algumas categorias e símbolos que estão

por detrás da Festa de do Pescador.

Visando perceber quais movimentos se intercalam no que tange à produção,

difusão e propagação cultural diante das práticas exercidas nas festas populares na

Baixada Cuiabana, foi meu objetivo acompanhar e analisar as estratégias, atitudes e

discursos que essa população empreende para por em voga a “Festa do Pescador”,

buscando uma re-significação da festa religiosa enquanto possibilidade de gerar renda,

trabalho, diversão e fé.

Pretendemos trabalhar aqui também com os discursos múltiplos sobre a festa,

apresentamos as narrativas sobre a fundação da festa, sobre o associativismo como

forma de se fazer representar perante o poder público, a ênfase no turismo local, e como

se manifestam neste processo as construções e exibições de “identidades”. Enfim, como

a “Festa de Santo” se coloca como um sistema ritual de ação social dentro de uma

dinâmica própria da região. Nesse sentido pode-se ressaltar o que Mariza Peirano

(2003) fala a respeito dos rituais, destacando-os por suas características de forma e

repetição; questões que se tornam frutíferas para a investigação. O ritual seria um

“fenômeno especial da sociedade, que nos aponta e revela expressões e valores de uma

3 Esta festa, também é conhecida como “Festa do Pescador”, termo que trouxe à tona a necessidade de

verificar as “denominações da festa”, algo que será apreciado mais adiante neste trabalho. Neste sentido

estarei me referindo à Festa do Pescador como enfoque da discussão pela forma em que ela é produzida

pelos grupos familiares de Bonsucesso.

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sociedade, mas o ritual expande, ilumina e ressalta o que já é comum a determinado

grupo.” (PEIRANO, op. cit., p. 10). A autora Mariza Peirano baseia o seu conceito de

ritual em outro antropólogo, Stanley Tambiah, para quem um ritual é um “sistema de

comunicação simbólica”, ou seja, uma convenção que repetidas vezes expõe as mesmas

palavras e atos. Ainda para Tambiah é a “performance” que faz dos rituais um objeto

interessante. Os autores se referem a três traços performativos do ritual: a sua

“convencionalidade”, a multiplicidade dos meios de comunicação que são

experimentados na “performance”, e, os valores e sentidos que são criados durante a

“performance” (ibidem). Neste sentido, a Festa aqui abordada enquanto ritual se

constitui através de um valor identitário que ela promove e pelas conexões de dentro

para fora (e vice-versa) da localidade; assuntos que serão abordados posteriormente.

Bonsucesso apresenta hoje uma composição heterogênea em sua paisagem.

Encontram-se lá, além das moradias da população remanescente de sesmaria,

edificações de veraneio, indústrias, comércios. Os moradores costumam dizer que a

cidade já chegou a Bonsucesso, e isso aconteceu a partir do momento em que o acesso

ao centro de Várzea Grande se tornou mais fácil. Antes para ir à cidade “só a pé ou a

cavalo”. Com a precariedade em que se apresentam as modalidades de trabalho

“tradicionais” do ribeirinho, tais como a pesca, a agricultura de várzea e a pequena

produção doméstica que compunham o uso e formação do espaço, faz-se necessário

indagar: como as pessoas se mobilizam para viver neste local, quais perspectivas são

mantidas em relação à terra de beira-rio e principalmente a sua forma de ação social e

cultural.

Portanto, nesta pesquisa tratei de questões relativas à modernidade e à tradição

em torno do mundo associativo e das festas, noções relevantes no cotidiano da

localidade. Como contribuição deste trabalho são lançados alguns apontamentos de

como Bonsucesso se apresenta na contemporaneidade, quais articulações são traçadas e

quais os discursos proferidos no entorno da festa.

Fugindo um pouco da Sociologia do Trabalho, temática que trabalhei em minha

monografia de Graduação em Ciências Sociais (UFMT) intitulada, “Caminhos e

descaminhos do trabalho nos engenhos de rapadura da comunidade ribeirinha de

Bonsucesso – Várzea Grande/MT” (OLIVEIRA, 2008), nesta pesquisa enveredo pelo

mundo das festas populares, mantendo a temática de permanência e mudança que se

apresenta nelas e intensamente no universo social dos pesquisados. É, portanto, objetivo

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central deste trabalho tencionar uma noção de “pureza da tradição”4 e “da identidade

ribeirinha”, usando como exemplo a manifestação chamada de “Festa do Pescador” uma

nova versão da festa de São Pedro do bairro de Bonsucesso empreendida como modo de

ação social ritualiza. Em certo sentido, tento defrontar-me com a reconfiguração das

poéticas5 tradicionais mediante a uma série de processos sociais, como o turismo, o

associativismo, processos identitários, a copa do mundo, a reconfiguração econômica e

social da localidade, entre outros. Interessa-me saber como a produção atual das

manifestações populares da Baixada Cuiabana se compõem com a incorporação de

novas práticas.

O ribeirinho de Bonsucesso:

Os moradores de Bonsucesso são conhecidos popularmente como ribeirinhos, e

que acionam elementos identitários que os remetem à história da Baixada Cuiabana. De

pele morena são as pessoas que guardam práticas e saberes dos primeiros moradores das

margens do rio Cuiabá. O termo “ribeirinho” é uma conotação um tanto genérica a ser

aplicada aos moradores de Bonsucesso. Este termo é também banalizado na literatura

regional sobre o tema. Portanto, antes de refletirmos sobre como tal categoria é

acionada nos processos de construção de identidades, é importante pensar esta categoria

e o que ela implica nesta investigação.

Inicialmente ribeirinho é aquele morador da ribeira, da margem do rio, o qual a

autora Martina Neuburger (1994) atrelou às práticas de subsistência e de inter-relação

com o ambiente natural do rio. Ao apontar isso, a autora conecta o ribeirinho à pesca e

ao rio, sem se preocupar com a ocupação de outros espaços naturais que constituem o

4 A noção de “tradição” é alvo de diversas discussões dentro das Ciências Humanas e Sociais, tendo sido

potencializada neste trabalho pela forma em que a manifestação toma seu sentido atual na tentativa de

resolução da dicotomia tradição-modernidade; e, na medida em que os próprios atores se utilizam da

categoria “tradição” como símbolo de sua identidade, reunindo forças para atuar social e politicamente

como grupo e de certa maneira acabam por (re)inventar a sua tradição na contemporaneidade.

5 A festa como poética é vista no sentido em que Luigi Pareyson o estende de Aristóteles, agora, uma

poética significa criação, uma série de procedimentos que geram o que Pareyson chama de

“formatividade”. Neste sentido a poética opera como um sistema, “um determinado gosto convertido em

programa de arte” (1997, p. 17). A poética diz respeito à singularidade e originalidade das obras

conseguidas, pois cada uma em si possui um complexo de informações e técnicas, as marcas do autor e

uma repercussão inimaginável. A formatividade é a junção do fazer executivo ao caráter inventivo que é

intensificado na atividade. Para o executor, o fazer de uma obra inclui fazer-se a si próprio e à obra,

inventar, figurar, descobrir é ao mesmo tempo executar e realizar.

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meio ambiente da região e outras atividades que esses moradores desenvolvem. Assim

como Neuburger, outros pesquisadores (JANUÁRIO, 2006; GUTBERLET, 1994; COY

& LUCKER, 1996) acabam por relacionar o termo “ribeirinho” a uma forma de vida

ligada à autonomia e ao isolamento espacial, por onde o rio seria a porta de entrada do

mundo dos ribeirinhos.

A autora Ana Carolina da Silva Borges (2010) chama atenção em sua obra “Nas

Margens da História” à pluralidade de atividades que os moradores da região do

Pantanal Norte mato-grossense6, os “ribeirinhos”, exerciam entre os anos de 1870 e

1930 e de como naquele momento histórico se atribuiu uma identidade a essas pessoas

através do seu modo de vida. Segundo a autora atrelar aos “ribeirinhos” a atividade da

pesca é uma tendência recorrente de muitos autores, e, que não diferencia a pluralidade

de moradores e de atividades exercidas pelos mesmos de acordo com seu espaço e

tempo. A autora discorda da idéia de que os ribeirinhos foram um dia isolados. Ao

longo da sua historiografia ela demonstra como as práticas dos mesmos estavam

relacionadas ao sistema econômico mais amplo do estado de Mato Grosso. Há muito

tempo que o auto-consumo e o trabalho agrícola convivem com outras atividades

comerciais e de funcionalismo público.

A idéia de ribeirinho enquanto pescador é criticada pelas autoras Carolina Joana

da Silva e Joana A. Fernandes Silva (1994) ao afirmarem que a especialização na

atividade pesqueira pelos moradores da região norte do Pantanal se refere às

transformações no espaço e hábitos destas pessoas e de certa forma, tais transformações

são recentes. A perda de terras, de empregos e a quebra das relações sociais de

compadrio ligadas às antigas terras de sesmaria fizeram com que as pessoas se

voltassem para a pesca como atividade profissional.

Borges (2010) trata de desenvolver a idéia de identidade ribeirinha através da

análise de documentos do século XIX, onde é mencionado o termo “ribeirinho” para

denominar uma parcela da população local. Ela chega à conclusão que eram atribuídos a

esta população uma idéia de primitivismo, opondo-se aos postulados de sociedade

moderna e “civilizada” que se ansiava para a capital Cuiabá. De certo modo o tom

pejorativo e nada inocente tomados por viajantes e autoridades locais partiam de um

viés interessado em uma mudança estrutural que se contrapunha ao ambiente, valores e

6 Região que se estende da planície pantaneira até a capital Cuiabá e a cidade de Várzea Grande

(COUTRO & OLIVEIRA, 2010).

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atitudes dos ribeirinhos. A sustentabilidade familiar gerada pela utilização de recursos

naturais disponíveis, próximos ao ambiente de moradia, era vista com maus olhos

porque não se enquadrava na visão utilitarista e capitalista empregada pelos viajantes e

administradores. Borges demonstra isso quando cita as proibições legais do município

quanto à manutenção de terrenos alagados e tanques nos terrenos dos alagadiços. Situar

esta parcela como ribeirinho significava rotulá-los e vê-los à margem do processo de

circulação de bens materiais e do processo econômico tomado na região, ou seja, à

margem do progresso. Mesmo assim a autora comprova que esta população não se

encontrava isolada das relações econômicas e sociais tecidas em Mato Grosso. Muito

pelo contrário eles apresentavam-se como minifundiários e agricultores que

ressignificavam seus conceitos ao se adaptarem aos diferentes processos exploratórios e

produtivos. Aos poucos, em sua obra, a autora busca notar como se dava a relativa

autonomia deste grupo frente às estruturas sociais e econômicas mais amplas,

percebendo, então, atividades que geraram transformações de dentro para fora do grupo

(BORGES, 2010, p. 46). Como aconteceu com o comércio de peles da região. Em certo

período este se tornou uma atividade lucrativa, sendo realizada por peões, indígenas,

agricultores, atendendo a uma demanda do mercado externo, assim a caça predatória

começou a ser largamente praticada. Os ribeirinhos ajudavam a compor um ambiente

heterogêneo e complexo, que abarcava uma variedade de atividades agrárias,

participando do trabalho em usinas, engenhos, fazendas, sítios e vendendo subprodutos

de suas próprias plantações. Pensando como a autora Borges, tratamos o termo

ribeirinho em referência a esta parcela da população que se mantém como referencial

cultural da região. Mesmo assim vamos nos ater a como o termo é empregado pelos

moradores dessa localidade como “mote identitário”7.

Esta população acabou por formar pequenas localidades em toda a região do

Vale do Rio Cuiabá e Pantanal Norte mato-grossense. O Bonsucesso é uma dessas áreas

ribeirinhas e que está intimamente ligada ao que vamos chamar de “imaginário do

abastecimento da Capital”. O primeiro relato desta população em situação camponesa

foi feito por Barbosa de Sá, cronista do século XVIII. Ele conta que já no ano de 1724

se realizaram as primeiras iniciativas de plantio de roças na região da baixada cuiabana,

por parte de uma população que vivia nas margens do rio, da caça e da agricultura; e

que veio a abastecer inicialmente aos garimpos e se constituiu como fornecedora do

7 Esta questão será retomada no Capítulo II.

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mercado local de víveres (SÁ, 1975). O bairro é, então, fruto de uma territorialização

através do trabalho com a terra, utilização dos recursos naturais e com a pesca.

Pesquisas atuais indicam a necessidade de se estudar a construção da territorialidade dos

espaços ditos como “tradicionais” ou “comunais” (LITTLE, 2002) com a finalidade de

encontrar semelhanças importantes na diversidade fundiária do país. Portanto, me ative

ao fato de que a adequação à vida na beira rio denomina nestas pessoas um modo de

pensar baseado no seu território, a margem do rio, considerando-a como símbolo de

fonte de vida.

A prática agrícola permaneceu durante longo tempo e conseguiu manter as

pessoas ligadas a seus territórios. Isso pode ser constatado pelos Anais da Associação

dos Geógrafos Brasileiros, publicados nos anos de 1952 e 1953, onde aparecem

referências a Bonsucesso como um local produtor de víveres. Nos Anais, Azevedo

(1957) e Petrone (1957) trabalham a idéia de que a área rural no entorno do aglomerado

urbano de Cuiabá e Várzea Grande formava um cinturão verde ao longo do rio Cuiabá,

que abastecia o mercado local de víveres, principalmente através do “Mercado do

Porto”:

É principalmente através desse rio que os núcleos, “bairros” e

propriedades de beira-rio comunicam-se com a capital, sendo ele o

meio mais utilizado para o escoamento de grande parte da produção

rural que abastece a cidade. (PETRONE, 1957, p. 124).

Estes autores descrevem o escoamento da produção como comércio ribeirinho,

que abastecia Cuiabá com produtos agrícolas, o pescado e produtos artesanais;

comercializados nas feiras populares e embarcações que trafegavam no rio Cuiabá. O

geógrafo Azevedo (1957, p.64) afirma que em relação ao abastecimento de Cuiabá, as

comunidades ribeirinhas eram as principais fontes de fornecimento de hortaliças,

frangos, peixes, rapadura, etc. O autor descreve o universo de sociabilidade e de troca

que ocorria no antigo “Mercado do Porto” na década de 1950:

Ao visitante que atinge a área do porto alta madrugada impressiona,

além da chegada do pescado, a abundância e variedade de hortaliças,

trazidas também como o peixe, em embarcações do mesmo tipo.

Tomates avantajados, couve, rabanete, feijão-fava, pimentão, quiabo,

cebolinha, etc., enchem as canoas e são vendidos à luz de lamparinas

direta e livremente aos carrinheiros, ali chegam a aglomerar uma frota

de cerca de 50 carrinhos.

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Porém, com a concorrência dos produtos agrícolas vindos do Sudeste, sobretudo

de São Paulo, e com abertura das estradas de rodagem que atravessam o Brasil, a

produção de gêneros agrícolas nas margens do rio Cuiabá entrou em declínio,

desarticulando o comércio ribeirinho. Além disso, as modificações na forma jurídica da

propriedade das terras também solaparam as antigas atividades agrícolas das terras de

sesmaria da beira do rio Cuiabá, rio Paraguai, Chapada dos Guimarães e do Pantanal.

“A grande disponibilidade de terras em Mato Grosso antes da década de 1960 é seguida

por um processo de expulsão dos moradores de beira-rio ou à limitação ao acesso de

terras agricultáveis” (SILVA & SILVA, 1995, p.7).

Assim Bonsucesso foi se transformando e os moradores acabaram

desenvolvendo outras atividades na localidade além das agrícolas. Um pequeno número

de pessoas atua hoje como servidores públicos, mas a maioria está trabalhando para a

iniciativa privada como trabalhadores assalariados. Em termos de identidade, Bauman

(2005) afirma que em contraponto à frouxidão e plasticidade dos laços sociais na

contemporaneidade existe um reforço à sociabilidade comunitária e familiar como

forma de proteção ao “mal-estar da humanidade” em nossas vivências. Se por um lado

está presente na festa um poder de congregação das famílias do bairro, de afirmação de

sua religiosidade e identidade, por outro lado, algumas transformações chamam atenção.

Para Canclini (2003) transformações na cultura popular se devem a algumas causas:

pela necessidade do mercado de incluir as estruturas e bens simbólicos tradicionais nos

circuitos massivos de comunicação, pelo interesse dos sistemas políticos em levar em

conta o folclore para fortalecer sua hegemonia e pela própria continuidade da produção

cultural destes setores populares através de adaptações, negociações e hibridismos.

Metodologia:

Para alcançar os objetivos pretendidos por este autor lançou-se mão de um

trabalho de campo que se estendeu de Novembro de 2010 à Julho de 2011. Através de

visitas periódicas tratou-se da Festa do Pescador e dos processos de socialização8 que se

8 O modo como Georg Simmel concebe a relação indivíduo-sociedade proporcionou a concepção de

processos de socialização, onde qualquer forma de interação é vista como uma forma de socialização.

Nesse sentido o ser humano pode ser visto como um complexo de possibilidades, conteúdos e

potencialidades com base na sua experiência de mundo (SIMMEL, 1977). Ao socializar-se o ser humano

se modela e remodela as práticas culturais. Neste caso, a coleta de dados somente foi possível pela forma

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passam em torno da festa, com diversas pessoas: moradores comuns e outros

emblemáticos, lideranças e pessoas de fora da comunidade com forte interação com a

localidade, como agentes culturais, funcionários públicos, professores, entre outros. Os

percursos que foram traçados em campo foram previamente planejados, embora como

em toda pesquisa alguns imprevistos nos movem a caminhos impensados. Estes

caminhos foram cruciais para desenrolar a pesquisa; a partir do momento em que foram

eles que constituíram a situação do percurso do trabalho de campo em Bonsucesso.9

A autora Alba Zaluar (2004) nos faz pensar sobre as características centrais que

compõem o trabalho de campo, dentre elas as autoras elencam a observação-

participante. A observação proporciona perceber as superfícies sociais, as relações

sociais e regras, a atualização das normas; e a participação capta as atitudes mentais, os

sentimentos dos sujeitos. Estes desdobramentos de “observação” e “participação” só

fazem sentido enquanto unidade metodológica10

. No caso de Bonsucesso deve-se levar

em consideração que o desenvolvimento do trabalho dependeu não somente de

observação, mas também da participação, num conjunto que pode me levar a perceber

as práticas e representações dos festeiros.

Quando comecei o contato com a gestão organizadora da festa no final de 2010,

logo expirou o seu prazo de atuação, e tive que esperar de Dezembro de 2010 até Março

de 2011 para as atividades dos festeiros retornarem a serem ativadas. Nesse entretempo

tive que me socializar com os “novos” e “velhos” atuantes da festa, visto que a festa

estava em fase de transição. Naquele momento obtive relatos da festa e surgiram várias

concepções que foram investigadas durante a pesquisa. Interessei-me em conhecer o

mito de fundação, quais os papéis na realização da festa, as opiniões sobre a festa. As

questões que eu tinha sobre a preparação da festa, propriamente dita, não apareciam.

Enfim cheguei ao grupo familiar que realizaria a festa naquele ano. Eram filhos

da proprietária de uma bem sucedida peixaria de Bonsucesso, e, que juntos com seus

colaborativa da pesquisa, minhas experiências com o grupo estudado se deram na medida em que fui

“engolido” pela festa.

9 Para o autor Hélio Silva o conceito de situação, ou, o situar-se do pesquisador deve ser pensado na

relação entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa, bem como aos trajetos que ele deve percorrer em

campo. Assim: “A situação é, ao mesmo tempo, a circunstância na qual a condição, o ensejo e a

oportunidade que o etnógrafo deve tornar favoráveis à obtenção dos dados e informações pertinentes ao

seu projeto de pesquisa. Portanto, situação é circunstância e localização.” (SILVA, 2009, p.172) 10

A questão da observação participante não é introduzida por Alba Zaluar, mas a importância da

observação associada à observação participante foi destacada por Bronislaw Malinowski em Argonautas

do Pacífico Ocidental, obra publicada em 1922.

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parentes e amigos do bairro formaram a diretoria da Associação de Pescadores de

Bonsucesso e Pai André do ano de 2011. Foram eles que me cederam entrada no

universo da pesquisa, e que, me abriram as portas para a colaboração com a realização

da festa. Foi com o presidente da Associação de Pescadores de Bonsucesso e Pai André

e sua família que trabalham em uma peixaria, que consegui acesso ao universo da festa.

A conquista da parceira demorou a acontecer. Até este momento o que eu tinha eram

somente impressões, categorias, símbolos da e sobre a festa. Portanto, tive que recorrer

à minha imagem de professor da Várzea Grande. Esta acabou sendo a maneira em que

eu fui aceito, e, que para mim acabou sendo a maneira mais confortável. A figura de

pesquisador era sobreposta de uma imagem, de alguém que naquele ano antes de

qualquer coisa estava “participando” da festa11

. Esta ação foi definitiva para a coleta de

dados.

Ocasionalmente algumas pessoas nos apontaram direções que foram seguidas ao

longo da pesquisa. Outras vezes dei voltas e voltas no mesmo lugar. Principalmente ao

tentar entrar no grupo de trabalho da Associação por via de uma pesquisa objetiva. Foi

somente no momento em que minha participação se tornou colaborativa12

, adentrando o

universo da festa, que obtive bons dados. O incentivo dos organizadores em vir

participar das reuniões da Associação e sempre ligar (estar em contato) foi o que me

manteve num fluxo com a festa, e que culminou no auge quando fui chamado para

acompanhá-los na ida aos órgãos públicos visando à reivindicação por recursos a serem

utilizados na festa, trabalhar no preparo do peixe, da comida, e outras atividades de

organização das atrações no dia da festa.

Um detalhe que me tocou para esta reflexão foi que ao receber a camisa de

organizador, veio com ela uma série de tarefas, impulsionando ainda mais a minha

interação com o universo da festa.

11

Assunto que será abordado posteriormente em outro momento desta dissertação.

12 Como exemplo, Gonçalves (2008) destaca o trabalho de Jean Rouch. Na antropologia compartilhada de

Jean Rouch releva-se o potencial do encontro etnográfico como lugar de produção de sentidos, tanto do

pesquisador como dos pesquisados.

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A escrita compartilhada:

A escolha da etnografia para o estudo da festa não é por acaso, como diz

Clifford Geertz (2009) as etnografias devem ser descrições densas. E para Geertz uma

boa descrição implica em interpretação. A cultura para Geertz é pública, pois o

comportamento é uma ação simbólica, e seu sentido é explicitado no momento da ação.

Portanto, a cultura é um texto, que pode ser lido e interpretado, são teias de significação,

que conduzem o homem e a sua ação. O etnógrafo deve atingir o ambiente

microscópico, olhar as situações concretas - levando em consideração que a análise

cultural é sempre incompleta - e quanto mais microscópica, maior a profundidade dos

abismos em que nos lançamos em nossas interpretações. Por isso, a escolha por

traçarmos aqui um panorama da complexidade em que se encontra a Festa do Pescador.

Esta descrição densa visou atingir as articulações entre os festeiros da

comunidade e os outros elementos que compõem a produção da festa. Através do

caderno de campo, gravações de áudio e vídeo, fotografias extraiu-se as falas e

discursos de nossos colaboradores. Entrevistei as pessoas da comunidade que são

articuladores da festa, enveredando saber e interpretar como se dá a tensão entre os

festeiros, os setores políticos, turísticos, empresas e pessoas influentes da Baixada

Cuiabana, que permitem que a Festa do Pescador seja um evento expressivo na região.

Internamente à localidade deu-se como objetivo entremear o universo da festa através

da observação-participante junto a um número de pessoas que participa ou tem opiniões

sobre esta prática.

George Marcus (2009) chama atenção para a configuração estética presente nas

pesquisas etnográficas. Mais do que “método”, a etnografia carrega um apelo estético.

O autor elenca por trás desta questão, a importância da mediação cultural que o

antropólogo realiza ao imergir em um grupo, e, ao traçar a ponte entre o eu

(pesquisador), o outro e o seu leitor. A Antropologia tem como um de seus eixos a

mediação cultural:

(...) porque ela mesma se apóia nas observações de tipo etnográfico da

antropologia, como instituição, e assume plenamente a natureza de

uma prática diferenciada de pesquisa, como uma tecnologia, uma

estética e um conhecimento que traz poder. (MARCUS, 2009, p. 19).

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20

As etnografias contemporâneas encontram fôlego em Clifford Geertz e James

Clifford ao propor o “trabalhar as forças culturais como textos” (GEERTZ, 1989, p.

316), “auto-modeladas” (CLIFFORD, 1998) pelo etnógrafo e inesgotáveis enquanto

forma de conhecimento. A idéia de texto está para Geertz (2009) como a constituição

antropológica de obras imaginativas (não imaginárias ou fictícias) construídas a partir

de materiais sociais.

A preocupação de Geertz se dá, portanto, em um nível semântico, onde o que

importa são os símbolos, seus significados e o caráter público da cultura. Para Geertz a

análise simbólica que o nativo faz de sua própria sociedade entra como material que

retroalimenta o texto do antropólogo. Os símbolos e significados encenados no trabalho

de campo são contextuais e referenciais, onde a cultura enquanto texto é conteúdo de

transmissão a partir do imaginário das pessoas. “A cultura de um povo é um conjunto de

textos, eles mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros

daqueles a quem pertencem.” (GEERTZ, 1998, p.32) Olhar e pensar estes conjuntos é

fazer uma forma inesgotável de análise social, diferente de fórmulas e métodos

enquadrados sobre os grupos pesquisados.

A dissertação:

O presente estudo é dividido em quatro capítulos. As análises desenvolvidas no

primeiro capítulo se referem ao trabalho etnográfico em si, ou seja, a uma descrição da

Festa, trazendo alguns apontamentos iniciais. Falo sobre os espaços estudados, o

cotidiano dos sujeitos da pesquisa, tentando ressaltar as nuances da atualidade que

compõe a vida dos ribeirinhos, como o crescimento da atividade turística. Trago

também uma descrição da festa e a análise de como ela se forma através de vários

momentos que compõe um todo.

A discussão se inicia no segundo capítulo, onde apresento dados relevantes para

a contextualização do pesquisador em campo. Neste capítulo apresento como a festa é

permeada por um universo com uma importante dinâmica de trocas. Pretendo mostrar

que a troca é um ingrediente fundamental da sociabilidade festiva em Bonsucesso e

particularmente da Festa do Pescador.

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No capítulo terceiro mergulhamos finalmente nas dinâmicas identitárias.

Apresentamos um pouco sobre o universo festivo dos ribeirinhos, focando em sua

produção a teatralidade e a projeção de identidades para dentro e fora da localidade.

Por fim, no capítulo quarto trago como as dinâmicas de troca e o associativismo,

e como que através da figura da Associação de Pescadores, se completa uma amálgama

na produção social desta manifestação cultural e o drama social da Festa do Pescador.

Através de entrevistas organizadas e conversas informais, foi dada liberdade

para os festeiros discorrerem tanto sobre questões objetivas para este trabalho, quanto

para questões subjetivas relacionadas com a singularidade de cada um. Além das

questões próprias relacionadas à atividade, procurei saber quem são esses festeiros,

como operam, quais são seus anseios, angústias e sonhos.

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Capítulo I: A Festa do Pescador em Bonsucesso

Neste capítulo pretendo caracterizar o universo de pesquisa. Trago uma

descrição de Bonsucesso, bem como apresento e problematizo os traços identitários

acionados no processo de produção e realização da Festa aqui estudada, tais como o

“peixe”, o “ribeirinho” e a própria “festa”.

Bonsucesso é um bairro situado na zona rural do município de Várzea Grande-

MT, cidade em conurbação com a capital Cuiabá. Juntamente com outros onze

municípios, as cidades formam a Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá13

. A rua

principal tem acesso através do Rodoanel viário, ou BR-364, que é uma das rotas de

escoamento da produção agrícola de grãos e bovinos do estado de Mato Grosso. Saindo

da cidade de Várzea Grande, passando por toda a periferia e conjuntos habitacionais,

chega-se ao Rodoanel e posteriormente à via asfaltada que dá acesso ao local. Logo no

início da via existe uma grande placa com os dizeres: “Bem-Vindo a Bonsucesso: Rota

do Peixe”. Esta via de acesso leva à rua principal de Bonsucesso.

Via de acesso a Bonsucesso.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

O bairro de Bonsucesso é um desses típicos bairros do Vale do Rio Cuiabá; fruto

de antigas ondas de migração para o estado. Pesquisas historiográficas recentes apontam 13

A região foi criada segundo a lei 359 de 28 de Maio de 2009, que visa à elevação de metrópole a região

denominada anteriormente como Baixada Cuiabana. A Região Metropolitana do Vale do Rio é composta

pelos municípios de Cuiabá, Várzea Grande, Nossa Senhora do Livramento, Santo Antônio do Leverger,

Acorizal, Barão de Melgaço, Chapada dos Guimarães, Jangada, Nobres, Nova Brasilândia, Planalto da

Serra, Poconé e Rosário Oeste. Em 2010, contava com uma população de 859 130 habitantes.

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para a ocupação inicial em torno de uma sesmaria. Documentos apontam para o

reconhecimento da ocupação através de escrituras datadas de 1866, e já com o nome

“sesmaria Bonsucesso” (TAVARES, 2011). Uma das famílias reconhecidas como um

dos troncos familiares principais da formação do bairro detém consigo os títulos de

posse e afirma ser descendente direto do antigo dono da sesmaria.

Deste tempo se herdou o fazer da rapadura e o plantio da cana-de-açúcar que

muito alimentou as usinas do Rio Cuiabá. Além da rapadura artesanal, as redes-de-

dormir, lavradas à mão; doces caseiros e a pesca; que mesmo sendo atividades com uma

produção pequena ainda geram divisas para as famílias da localidade que se dividem

entre trabalho agrícola e o assalariado, numa composição mista da renda familiar

(OLIVEIRA, 2008).

Quando se chega a Bonsucesso o visitante fica embevecido pelo ar bucólico e

rural da localidade. Jardins e árvores enfeitam a parte da frente das casas. Muitas

residências possuem árvores frutíferas nos quintais, principalmente mangueiras e

cajueiros. Na rua, calçada com paralelepípedos, carros de bois e reses dividem espaço

com carros, motos e bicicletas. A maioria das casas não possui muros, sendo a porta da

sala diretamente ligada às calçadas, onde muitos moradores colocam suas cadeiras e

põem-se a conversar horas a fio.

Ao caminhar pela rua o visitante entra em contato diretamente com as pessoas

do bairro a todo o momento. Um intenso fluxo se dá nas calçadas, nas casas, nos

galpões, nas ruelas e nos pontos de ônibus. A localidade é marcadamente católica e ao

longo dos percursos percebemos diversos traços da religiosidade. Em certas épocas do

ano, a rua encontra-se enfeitada com fitas, decoração que se estende por toda a

localidade.

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A rua principal da localidade enfeitada para a celebração de São João, em meados de Junho.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Dentre os lugares de “encontros” e socialização mais importantes da localidade

podemos citar: as igrejas, o centro comunitário, os restaurantes, a calçada, os engenhos

de rapadura e os portos de canoa. Passando pela rua principal podemos ver os velhos

engenhos de rapadura, alguns ainda em funcionamento e sem muros; o que permite ver

o trabalho das pessoas quando estão em produção. Os engenhos são tocados por

senhoras e senhores de avançada idade.

Engenho de rapadura do seu Neco, o dono do local onde ocorre a festa investigada.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

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É pouca a possibilidade de pessoas forasteiras residirem neste tipo de localidade,

ela se mantém majoritariamente com moradores nascidos e criados na região. Desta

forma se cria uma oposição para os moradores de Bonsucesso, que vai do contato, por

um lado, com a vida urbana (em Várzea Grande e Cuiabá); pelo outro, a vida social na

“comunidade”.

Em Bonsucesso as casas são todas muito próximas umas das outras, existindo

pouco espaço para a expansão de moradias. Quando optam por residir na localidade, os

filhos constroem moradias no fundo das casas dos pais.

A escola de ensino fundamental começou recentemente ofertar o supletivo no

período noturno. Assim a escolaridade vem aumentando gradativamente, principalmente

com o funcionamento dos ônibus escolares. Para um bairro rural da região o transporte

público tem uma boa frequência, principalmente nos chamados horários de pico,

transportando trabalhadores e estudantes para o centro da cidade. Os moradores mais

bem sucedidos optam por ter veículos próprios.

Em alguns pontos da rua principal é possível ver o rio Cuiabá, os portos de

canoa e os pescadores em atividade. Os pescadores passam o tempo todo com seus

apetrechos em direção ao rio, a pé ou de bicicleta. Algumas mercearias também vendem

varas de pescar e iscas para o visitante que chega para se divertir, embora esta forma de

turismo de pesca não gere muita renda para a localidade.

Essa paisagem chama atenção pelo aspecto rural e pelo cuidado que os

moradores têm com a aparência das residências (CORADINI, 2006). De Bonsucesso é

possível ver o grande Morro de Santo Antônio, tornando ainda mais bela a paisagem da

localidade.

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Bonsucesso e o peixe

Bonsucesso com a rua enfeitada para a Festa do Pescador, ao fundo o Morro de Santo Antonio.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Este bairro e outros da região metropolitana14

vêm implementando atividades

voltadas para o turismo onde se destaca a culinária, artesanato, e, agora as festas vem

conquistando cada vez mais espaço dentro deste leque. Existe na localidade uma

Associação de Cultura e Turismo de Bonsucesso. Algumas dessas atividades citadas

acima são apoiadas pelo poder público, universidades, iniciativa privada e setores

políticos, mas tem em seu cerne a vontade desses atores de se afirmar perante a

urbanização que ocorre na região, e também em relação à reestruturação produtiva do

estado de Mato Grosso após as últimas ondas de migração15

.

14

Como São Gonçalo Beira-rio, Limpo Grande, Praia Grande, Pai André, Engordador, e Passagem da

Conceição, todos situados às margens do rio Cuiabá, exceto Capela do Piçarrão, Capão Grande e Limpo

Grande, mas que são bairros muito antigos e popularmente atribui-se a eles a idéia de ancestralidade da

cultura cuiabana e várzea-grandense.

15 Até a segunda metade do século XX, os moradores mais antigos dizem que havia aproximadamente 60

engenhos de rapadura em Bonsucesso, tocados por grupos domésticos bem definidos, todos de madeira,

movidos por tração animal, com bois. O rio Cuiabá era a via de circulação dos produtos agrícolas e

manufaturados, pois através dele, os homens e mulheres seguiam de canoa até o Mercado do Porto, ou

para as feiras de Cuiabá e Várzea Grande para vender verduras, cereais, animais de criação e a rapadura.

Em Bonsucesso havia também uma grande produção de hortaliças, que eram comercializadas com as

embarcações que trafegavam no rio. A pesca era outra grande fonte de renda, mas a partir dos anos 1960 e

1970, a região começa a passar por uma reestruturação do perfil da agricultura. Segundo COY &

LÜCKER (1996) a reestruturação produtiva no estado de Mato Grosso que se deu na década de 1970

privilegiou a produção nas grandes empresas, e quase faliu a pequena produção local.

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Um grande fluxo turístico invade Bonsucesso através das peixarias, galpões de

rapadura e casas que produzem doces16

. Todo ano a mídia procura estes locais e os

expõe de diversas formas. A televisão e os jornais levam aos espectadores estes “itens”

os “iconizando” como representantes da identidade regional. Ao longo do ano são

gravadas entrevistas com moradores sobre o saber-fazer de doces e pratos da culinária

local para serem exibidas na televisão. Existem também aqueles programas que

ressaltam a identidade regional, que se servem do visual de Bonsucesso para filmar um

programa televisivo, ou expõe aquelas pessoas emblemáticas ou os mais velhos, ao

contar as estórias do bairro e da cidade. Muitos fotógrafos passam o ano todo, tirando

fotos do rio, das pessoas, da natureza, da pesca, dos carros de boi; para serem vendidas

em propagandas.

Um dos grandes símbolos dentro do universo ribeirinho da região é o peixe. Em

Bonsucesso encontra-se em voga a atividade turística através da culinária servida nos 11

restaurantes especializados em servir peixe. Ela se constitui como a localidade que tem

o maior número destes restaurantes. Esta atividade data de aproximadamente 25 anos de

experiência. Pode-se dizer que o universo da pesquisa é altamente “iconizado” a partir

da idéia de que a pesca é uma das principais atividades e característica cultural dos

moradores. Os restaurantes são, portanto, chamados de peixarias, pois o atrativo

principal é o peixe feito com receitas “tradicionais”. As peixarias possuem os mais

variados preços e arquiteturas, dependendo da organização de cada dono. Elas levam o

nome de peixes, árvores e do rio Cuiabá. Algumas se situam bem nas margens do rio,

sendo estas as mais procuradas pelos clientes. O cardápio não muda muito de um

estabelecimento para o outro, havendo o predomínio das receitas locais com alguma

adaptação ao paladar dos clientes.

16

Ver também o estudo de CORADINI (2006) onde a autora percebe as mesmas manifestações aqui

estudadas em relação ao turismo e à produção cultural de Bonsucesso.

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Em foco a quantidade de peixarias, todas vizinhas umas das outras.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Essas peixarias são dirigidas geralmente por mulheres de pescadores, que

congregam seus filhos e parentes na microempresa. As receitas são passadas pelas avós.

O peixe é servido frito, cozido e assado, inclusive tem-se optado por servir o rodízio de

peixes, que apresenta as três modalidades de pratos, sendo mais lucrativo para os donos,

pois os cozinheiros afirmam que assim o ganho com a refeição “por pessoa” é maior.

Estes restaurantes são empreendimentos das famílias que buscam uma alternativa de

renda e trabalho.

O apelo ao turismo é muito forte em Bonsucesso e a vontade de estruturar

melhor estes empreendimentos é latente. Por isso foi em 2004 que se fundou a

Associação de Turismo e Cultura de Bonsucesso. Em 2009 o Governo do Estado criou

uma linha de financiamento de empréstimos especialmente para estas iniciativas. Mas

os donos das peixarias não utilizam muito estes empréstimos, alegando que não há

necessidade de se endividar para fazer o negócio crescer. Com o intento de aumentar o

potencial das peixarias em meados dos anos 1990 foi realizada uma capacitação junto

ao SEBRAE, e que trouxe à tona a nomenclatura “Rota do Peixe”. Esta acabou por se

tornar uma nomenclatura êmica usada para denominar a identidade regional17

, situando

as localidades que são o foco do investimento no turismo, sendo utilizada em vários

trabalhos do poder púbico e das universidades sobre o turismo na região.

Em Bonsucesso a pesca já foi uma das principais fontes de renda para a

localidade até o final da década de 1990, quando os pescadores atribuem à construção e

17

Atualmente é o órgão chamado “MT Fomento” com a linha de financiamento “Rota do Peixe”, que,

visando atender a demanda das peixarias, agricultores e pescadores do município de Várzea Grande traz à

tona esta nomenclatura.

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ao funcionamento da hidroelétrica de Manso18

uma alteração no ciclo das águas, e,

portanto, na procriação dos cardumes do Rio Cuiabá. Hoje a pesca é uma atividade que

encontra dificuldades, e não é difícil ouvir dos pescadores a vontade de que seus filhos

não sigam a profissão, que busquem o estudo e trabalho assalariado fora do bairro. A

pesca é considerada atividade que não proporciona renda frequente, e que está associada

a outras atividades, como bicos, trabalhos em roças, cerâmicas, fazendas, construção

civil19

. É muito comum que as famílias tenham uma composição mista da renda, entre

trabalho agrícola e assalariado. Como é proibido por lei que o pescador desenvolva

atividades complementares, correndo o risco de perder seu registro no órgão competente

e assim os seus benefícios, os pescadores tentam desenvolver estas atividades informais

se marginalizando do mercado formal de trabalho. Alguns pescadores abandonam a

pesca para trabalhar com alevinos, pois o mercado de peixes de tanque cresce no estado.

Para algumas famílias de pescadores as peixarias foram a melhor saída, e o seu

“sucesso”, principalmente nos finais de semana, contagia os outros moradores que se

sentem estimulados a abrir seus próprios negócios. Um exemplo de empreendimento

turístico é o de uma doceira, que cansada de circular nas peixarias carregando as

compotas de doces, montou uma barraca em frente a sua casa, fazendo muito sucesso.

Além disso, os pescadores podem alimentar as peixarias com o seu pescado. Esse

movimento faz com que a maioria dos pescadores pare de sair da comunidade para

vender peixe. A pesca acaba sendo absorvida ali mesmo nos restaurantes, pois o

consumo turístico é relativamente grande. Portanto, as peixarias não extinguiram ou

substituíram o trabalho com a pesca, pelo contrário estes empreendimentos ampliaram a

18

A Usina de Manso fica no município de Chapada dos Guimarães. Um dos principais afluentes do

Cuiabá, o Rio Manso era um local que abrigava diversas localidades rurais e quilombolas, se

transformando agora em lago do Manso, onde se construíram diversos condomínios de luxo. À ela é

atribuído um impacto sobre o ciclo das águas e de reprodução dos peixes na região, sendo esta principal

reclamação dos pescadores da região do Vale do Rio Cuiabá.

19Pluriactivité é o termo francês que foi utilizado pela literatura da Sociologia Rural da década de 70, o

qual designa propriedades que desempenhavam múltiplas atividades produtivas, atualmente este termo

foi adaptado ao português-brasileiro, como pluriatividade (SCHNEIDER, 2004). Segundo os moradores,

“antigamente” o trabalho predominante na comunidade era com a terra. Assim, “tudo se produzia” na

comunidade, ou seja, predominava a pluriatividade do trabalho,

por exemplo: o plantio de gêneros

alimentícios, que abasteciam os garimpos e cidades próximas, dois dias da semana se trabalhava com a

rapadura, em outras temporadas trabalhavam em fazendas do Pantanal. A pesca era realizada o ano todo,

mas quando as águas do rio começam a baixar, no que se chama a “época da vazante”, esta atividade era

realizada com maior ênfase, pois a quantidade de peixes no rio é maior. O consorciamento das atividades

era dado por múltiplos fatores, como aparentemente percebi nos relatos dos moradores. Nesse

consorciamento aparecem eventos como: o ciclo de produtividades das plantas, sua época de colheita, a

irrigação natural causada pela enchente do rio Cuiabá, entre outros, como a educação, que iriam

colocando as possibilidades de aquisição de fonte de renda.

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ação da atividade, trazendo uma nova possibilidade de venda, que não ficasse somente

com os mercados municipais e com a rede pessoal de clientela que cada pescador

possui.

Além disso, e, algo que se revela como atrativo para o nosso trabalho é como o

comércio da culinária tem causado uma espécie de reforço identitário, sendo um grande

reforço de símbolos da cultura local como o peixe, o ribeirinho, o rio, a pesca, a

tradição.

As festas em Bonsucesso e a Festa do Pescador

A população de Bonsucesso é marcadamente católica, realizando as chamadas

festas de santo, comemorações religiosas em homenagem a determinados santos, como

podemos citar: São Benedito, Divino Espírito Santo e a de São Pedro20

. Segundo relatos

dos moradores, no início do século XX as festas eram ofertadas por algumas famílias,

eram acompanhadas de bailes de cururu21

e por um grande banquete. Estas eram

chamadas de festas de santo. Em geral as festas são elementos muito importantes da

cultura brasileira. Segundo Rita do Amaral as festas são momentos que transpõem

elementos que servem para os estudos de nossa sociedade. Sobre o festejar no Brasil ela

conclui que:

Todas as festas não apenas atualizam mitos, como revivem e colocam

em cena a história do povo, contada sob seu ponto de vista. Ela é

como vimos, desde os primeiros tempos da colonização, um dos

lugares ocupados pelo povo na história brasileira, talvez uma de suas

primeiras conquistas reais, e nela ele se vê e se representa em papéis

ativos. Desfilando pelas ruas a riqueza de suas relações com outros

grupos, o privilégio de suas relações com as divindades todas que

ouvem suas preces e lhe entregam milagres, ele se reconhece. Como

se reconhece em força nas massas que caminham por grandes

avenidas, empurrando carros alegóricos com símbolos de sua historia,

empurrando a própria história, em toda sua riqueza, levando em frente

suas paixões e suas utopias. (AMARAL, 1998, p.274).

20

Segundo os próprios moradores, no caso da localidade estudada estas são as três festas de santo mais

importantes.

21 O cururu é um ritmo regional entoado por violas feitas manualmente e por canções religiosas e sobre o

cotidiano. Geralmente ele é realizado por uma roda de tocadores homens onde também são executadas

algumas brincadeiras.

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31

Atualmente as festas da Baixada Cuiabana são elementos híbridos. No caso da

localidade e sua festa em questão, existe uma amálgama entre o mundo religioso e o

mundo social. Em Cuiabá e Várzea Grande, além de movimentar o calendário religioso,

as festas movimentam também a cidade. As festas como as de São Benedito e do Divino

Espírito Santo são realizadas no Centro Comunitário de Bonsucesso, contando com a

presença de boa parte dos moradores. Além deste público, fiéis saem de todos os cantos

da cidade para socializar-se com a localidade. Segundo os relatos dos moradores estas

duas festas citadas acima são muito antigas embora recentemente não sejam as mais

importantes. A Festa do Pescador, que inicialmente era somente denominada como festa

de São Pedro, tomou o gosto dos moradores de Bonsucesso e de Várzea Grande

(CORADINI, 2006).

As festas são parte integrante do cotidiano dos colaboradores desta pesquisa e

movimenta tempo, dinheiro e investimento pessoal. Outro traço percebido é que as

festas se colocam como um movimento cultural fortemente arraigado à idealização do

senso comunitário local e da identidade ribeirinha. Todo ano as festas mobilizam boa

parte da localidade, que tem suas ruas fechadas para os eventos. É como se os

moradores parassem a sua rotina para viver um tempo22

de homenagens a São Pedro,

São Benedito, etc. A esse respeito Cavalcanti (2002 e 2000) e DaMatta (1979) falam

sobre a suspensão da rotina para viver o tempo das festas, este tempo “se trata de um

rito individualizador e democratizante no seio de uma sociedade em muitos aspectos

fortemente hierárquica” (CAVALCANTI, 2002, p.47)

As festas envolvem trabalhos ao longo de todo o ano. Elas possuem um

calendário rígido, e com regras fortes que envolvem a religião e a socialização local.

Nesta localidade podemos perceber como as festas adquirem o que Rita do Amaral

chamou de “festa à brasileira”, ou seja, ela acaba se tornando uma forma de

concentração e redistribuição de riqueza, um produto turístico capaz de organizar social

e politicamente a localidade. Além disso, as festas são capazes de mediar valores numa

sociedade pluricultural como a nossa, “ela se revela como poderoso instrumento de

interação, compreensão, expressão da diversidade” (AMARAL, 1998, p.279).

22

Em relação a como o tempo se apresenta nas festas, Cavalcanti (2002, p. 58) afirma que: “o

cristianismo católico dos ibéricos – que diante dos demais povos teriam enfatizado, acima de sua

condição europeia e nacional, sua condição sociologicamente cristã – os teria aproximado dos povos não

europeus por meio de um tempo que não era simples adequação ao trabalho contínuo, com apenas o

domingo dedicado ao descanso, mas um tempo em que muita alternação entre trabalho e lazer, dança e

labor, era propiciada pela própria igreja. Produziu-se assim uma temporalidade que, mais do que

histórica, remeteria a uma série de ritos míticos relacionados à renovação da vida, uma vida qualitativa,

mais do que uma série de atividades lógicas e quantitativamente valoráveis.”

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A Festa do Pescador pode ser considerada especial dentre as outras festas que

ocorrem na localidade por dois aspectos, o primeiro pelos seus hibridismos23

e depois

pela sua dinâmica de apresentação que utiliza a “tradição” como mote identitário24

. Ela

é composta por diversos grupos, dentre eles podemos citar os principais: a Associação

Turística e Cultural de Bonsucesso, a Associação de Pescadores de Pai André e

Bonsucesso, a comunidade ecumênica de Bonsucesso, a Secretaria Municipal de

Cultura e Esporte; e, apoiada pela Prefeitura Municipal, órgãos regionais do Meio

Ambiente, pelo corpo de Bombeiros e a Polícia Militar. Estaremos tratando ao longo

das próximas páginas de reflexões a partir dos discursos e da forma de apresentação da

questão identitária por partes dos integrantes de alguns destes grupos que compõe a

produção da Festa do Pescador.

Assim, a festa põe em ação elementos do catolicismo, da relação dos homens

com os santos, da relação dos homens com o rio e da relação da localidade com a

cidade. Sendo São Pedro o padroeiro dos pescadores, os festeiros não tiveram

dificuldade em relacionar religião com reivindicação social. Esse âmbito religioso se

associa atualmente a outros elementos como: a música pop regional, o turismo, a

política local, o lazer, a dança e identidade.

É uma prática corriqueira da localidade que a Festa do Pescador seja celebrada

no dia de São Pedro, 29 de junho. Apesar disso, pelo que pude perceber nas narrativas

das festas, sempre houve uma divisão entre dois momentos: o sagrado (a missa) e o

profano (o baile). Pelo que acompanhamos a parte religiosa da festa ocorre na igreja da

localidade, onde a maioria dos presentes são moradores que se congregam na missa

católica em homenagem ao santo. Este momento é marcadamente comunitário, na

medida em que as atividades que precedem a “festa para o turista” são voltadas para a

23

Para Néstor Canclini (2003) o processo de hibridação cultural da América Latina decorre da

inexistência de uma política reguladora ancorada nos princípios da modernidade e se caracteriza como o

processo sócio-cultural em que estruturas ou práticas, que existiam em formas separadas, combinam-se

para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Esse hibridismo, desencadeador de combinatórias e

sínteses imprevistas, marcou o século XX nas mais diferentes áreas.

24 A pesquisadora Cavalcanti (2002) afirma que as festas se utilizam de uma diversidade de meios de

comunicação, evento também percebido nas festas de santo, onde pudemos perceber diversas

performances que utilizam de vários meios de comunicação, canto, danças, música, rituais religiosos, etc.,

e que serão relatados logo abaixo.

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integração social dos moradores com as “pessoas da cidade”25

e para o comércio

turístico.

A missa em homenagem a São Pedro é realizada à noite. No período da tarde as

ruas da localidade são enfeitadas com velas e fitas com as cores do Santo. A missa é um

evento muito grande, as pessoas ficam amontoadas na porta e nas laterais da igreja.

Aponto abaixo alguns aspectos que me chamaram atenção durante a realização da

missa, pois são a incorporação do discurso identitário inseridos na liturgia católica.

Durante a missa, em dois momentos sobem ao altar figuras que, num domingo

qualquer, não estariam lá. Elas são o diretor da escola e um senhor, Seu F., o contador

de histórias. É explícito em suas falas o enaltecimento da festa. O diretor começa a parte

da missa dedicada à festa. Ele fala sobre a tradição da festa. Seu F. é aquele que sobe ao

palco depois, ele evoca o mito de fundação da Festa do Pescador26

. Assim, ele diz quem

é o ribeirinho, de como ele se encontra prejudicado agora com a poluição do rio, e que

por isso o peixe não pode mais ser ofertado gratuitamente como era antigamente. Ao

final de sua fala ele enfatiza que mesmo assim, a festa não é só para o ribeirinho, agora

ela é para o mundo.

Depois das falas o padre chama, então, os festeiros de São Pedro para trazer uma

oferenda ao Santo. Nesta performance27

os organizadores da festa trazem consigo uma

canoa em miniatura, um remo, a bandeira de São Pedro e um pacú assado, prato típico

da culinária regional. A performance do ribeirinhos prossegue com o levantamento do

mastro, seguido de cururu, e, um banquete com comida típica. A socialização segue

com o anúncio da madrinha da festa, uma cantora regional que em seu repertório

sempre canta uma música dedicada a São Pedro e às festas de santo.

25

Nomenclatura assimilada ao trabalho na coleta das narrativas das festas, onde se percebeu a

diferenciação entre a festa comunitária e a festa turística.

26 Falaremos deste mito posteriormente.

27 Segundo Victor Turner (1987) a performance estaria em momentos que fogem do cotidiano, são

momentos extraordinários que nos saltam aos olhos e que podem dizer muito sobre a cultura observada.

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A rua da localidade enfeitada para a missa do dia 29 de junho, dia de São Pedro.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

O levantamento do mastro da Festa de São Pedro, momento em que se consagra o início do

festejo.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

No final de semana seguinte ao da missa, os moradores realizam outra festa, que

mesmo que consideremos que seja a mesma festa ela adquire outro tom. Esta festa

abrange um público maior e é realizada no terreno de um rapadureiro, visto que este é

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um dos únicos que comporta a multidão que vem até a localidade para acompanhar o

evento. Este momento é o que eles chamam de festa para os turistas, para “as pessoas da

cidade”. E que criou uma distinção entre este e outros eventos, o nome de Festa do

Pescador. Consideramos a Festa do Pescador como uma festa diferente da de São Pedro,

que é realizada em vários locais do Brasil no mês de junho.

Ao acompanhar as reuniões da Associação de Pescadores de Bonsucesso e Pai

André uma pauta discutida várias vezes no ano de 2011 foi a do formato da festa. Neste

ano os realizadores propuseram uma separação explícita dos dois momentos da festa,

uma festa para a localidade e outra para os turistas. Embora essa separação já fosse uma

prática dentro do ritual, ela se dava no âmbito sagrado-profano. A justificativa para se

realizar a tal separação se embasada no turismo, principalmente através da ocorrência da

copa do mundo de futebol de 2014, onde então Bonsucesso “se lançaria ao mundo”. Ao

passo que foi no ano de 2011 que começaram vários projetos e preparações para a copa,

fundou-se a Secretaria Especial da Copa, uma série de construções de infraestrutura e o

projeto turístico começaram a acontecer. A festa então poderia ser um chamariz para as

melhorias de infraestrutura no bairro.

No final de semana, a festa para os turistas se inicia com uma queima de fogos, é

a chamada alvorada, que se dá logo no amanhecer do dia. A alvorada é seguida por uma

procissão, onde os festeiros marcham pela localidade em um cortejo terrestre e que

depois se torna fluvial até atingir o local da festa turística. A procissão terrestre se inicia

no local da festa, de onde uma banda sai recolhendo os festeiros em suas casas. A banda

para, soltam-se fogos, e o festeiro sai de sua casa e une-se à procissão de acordo com a

sua posição diante da composição da procissão. São várias as categorias dentre os

festeiros. O alferes de bandeira é o responsável por cortar a madeira e fazer um mastro

com a bandeira do santo. Juízes e juízas seguram coroas e adornos que enfeitarão o altar

do Santo. O rei acompanha a rainha que segura a imagem de São Pedro. Em cada casa

se recolhe um membro com enorme salva de fogos. A procissão é um dos principais

elementos escolhidos pela mídia para ser filmado e registrado.

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Procissão Terrestre.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

É hábito que os festeiros percorram toda a rua principal da localidade. Logo em

seguida, os festeiros e convidados entram no rio e começam a segunda parte da

procissão, de via fluvial. Esta faz o grupo percorrer novamente o caminho, só que

através do rio. O ponto final da procissão é em uma das peixarias da localidade. Lá a

procissão faz uma pausa para o café da manhã. A banda começa a tocar música

dançante. Os jornalistas que acompanham a procissão aproveitam para entrevistar o rei

e a rainha da festa, que mais uma vez relembram a tradição da festa, e de como ela é

importante para a localidade.

Descendo o barranco para adentrar o Rio Cuiabá.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

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A procissão fluvial pelo Rio Cuiabá percorre cerca de quatro quilômetros. No

ano de 2011 a equipe organizadora contratou uma empresa para filmar um

documentário sobre a festa. Ao longo deste caminho as pessoas rezam e também

apreciam a navegação. Os barqueiros são da Secretaria Estadual de Meio Ambiente.

Quando chegam então ao porto de canoas do local da festa são recebidos por uma

grande queima de fogos. A rainha desce primeiro, e, lava o santo, purificando-o. A

madrinha da festa recebe os festeiros que descem dos barcos.

Eventualmente políticos e apoiadores são convidados a participar deste momento

solene, onde somente os festeiros intitulados no ano anterior participam. Um ritual é

realizado para homenagear os festeiros, as pessoas levantam as mãos e em reza ao São

Pedro ecoa uma oração.

Percebi que os festeiros são grandes figuras de atuação dentro das festas, e, não

somente meras simbologias diante de uma configuração religiosa de papéis

representados no momento da procissão. Neste momento os festeiros exibem a imagem

do santo e a sua bandeira. Até este instante é o padre que rege a festa. Ele saúda aqueles

moradores mais antigos, figuras do ribeirinho, que se sentam em uma mesa separada,

são os homenageados. O padre chama então os festeiros ao palco, onde será realizada a

missa campal. A missa campal, realizada ao ar livre, é similar aquela do dia 29 de

junho, referida anteriormente. Nesse momento, a rainha da festa devolve o santo nas

mãos do padre.

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A procissão de São Pedro no Rio Cuiabá.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

A multidão recepcionando os festeiros.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

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Moradores e visitantes agradecendo aos festeiros.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

A imagem do santo é entregue ao padre e devolvida ao seu âmbito sagrado. A

missa realizada no local da festa ecoa votos de oração para a família e pedindo

generosidade, paz e prosperidade. O grande pedido se dá pela benção sobre o rio, sendo

assim, o fruto do trabalho dos pescadores é lembrado em tempos de tanta poluição do

Rio Cuiabá.

A missa campal.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Depois da missa, sobe ao palco o locutor da festa que transforma o palco em

local de atrações musicais. Inicialmente ele faz a passagem do santo, anunciando os

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festeiros do ano seguinte. Depois é servido o almoço nas margens do Rio Cuiabá.

Atualmente, o momento da refeição é o auge da festa. A peixada nos moldes da

culinária local é o principal prato do cardápio. No local da festa se espalham diversas

mesas pelas sombras das árvores. Em todo lugar da localidade, as varandas das pessoas

se tornam pequenas peixarias, servindo vários peixes utilizados na culinária local. A

festa se espalha pela localidade. Logo após o almoço, a festa se concentra ao redor do

palco novamente. Começam as apresentações culturais, como shows musicais, teatro,

danças e brincadeiras, tudo depende da gestão e organização da festa.

A abundância de alimento e ênfase na alegria são predicados para a avaliação

positiva ou negativa da festa. Essa comemoração é uma combinação de festejos que

oscilam entre a missa, procissão dos festeiros com o santo, a refeição e o baile. Depois

da missa os convidados se organizam numa enorme fila para comprar suas refeições. As

mesas congregam as famílias na beira do rio.

O banquete, a peixada cuiabana.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Depois que o almoço é servido logo começa o baile. Este se coloca como grande

atração da festa, pois reúne mais pessoas do que nos momentos religiosos da festa. O

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baile se dá ao som de ritmos regionais, as bandas em sua maioria tocam o lambadão28

, a

festa agora só termina na segunda de manhã.

A multidão que vem para assistir os shows.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Neste capítulo levantamos os três símbolos que se encadeiam na Festa do

Pescador, o peixe, a Festa e o ribeirinho; que se misturam dando à Festa uma

característica chave do ritual, uma composição de um sistema ritual posto como modo

de ação e neste caso como mote identitário. No próximo capítulo veremos como a Festa

é composta de diversos “momentos” que encadeiam estes símbolos naquilo que chamei

de “dinâmica da troca” da Festa do Pescador, uma categoria que engole os atores e

colaboradores.

28

Ritmo regional e que faz muito sucesso pela dança.

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Capítulo II: Os vários momentos da festa e sua dinâmica de troca

Pretendo abordar aqui a forma (PAREYSON, 1997) que a festa adquire quando

se considera os vários momentos que a compõem. Tento analisar dados recolhidos que

demonstram estes momentos de ação e produção da festa, refletindo também sobre a

atuação do pesquisador em campo.

Trarei aqui alguns momentos que passei junto aos produtores da festa.

Posteriormente dentre estes diversos momentos nos concentraremos em alguns dias

anteriores à festa para termos uma idéia mais geral sobre seu contexto e seus

significados. Incluso a esta narrativa estão os acontecimentos que tencionaram minha

participação em campo, e que puseram à prova minha proximidade com os

interlocutores. São eles os dias 28 e 29 de junho e 2 e 3 de julho do ano de 2011. Eles

correspondem, respectivamente, ao dia em que se começam as preparações internas no

espaço da comunidade, a missa em homenagem a São Pedro, e o final de semana em

que é feita a festa para o público de fora da comunidade. Estes momentos e seus

registros compõem assim a descrição da “Festa de Santo” em sua complexidade.

Foi entre novembro de 2010 e fevereiro de 2011 que eu conheci os atores da

festa. Este foi um momento exploratório do universo da festa. Neste entretempo estive

em contato com algumas pessoas, a presidente da gestão de 2009-2011 da Associação

de Pescadores de Bonsucesso, V.29

, e dona T., a primeira festeira da Festa de São Pedro.

Também mantive contato com alguns membros da Associação de Cultura e Turismo de

Bonsucesso: A., “Professor” T. e Assessor de Cultura da Várzea Grande, G.

Foram elaboradas entrevistas sobre o surgimento da festa, de como se dava a

organização na década de 1980 e um mapeamento das pessoas e grupos envolvidos com

este evento. A princípio as moradoras mais antigas dizem que a festa surgiu como uma

homenagem ao padroeiro das águas e aos pescadores, ao longo do tempo o seu

crescimento surgiu em função da oferta gratuita e em abundância de pescado. Portanto,

com o tempo foi necessário que a Associação de Pescadores tomasse conta da festa pela

sua magnitude, assim a festa se tornou uma mistura entre associativismo, religião e

festa.

29

Inicialmente quando comecei o trabalho de campo a presidente era V., que foi substituída por F., o

presidente com quem mais tive contato na pesquisa.

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Quanto à organização da festa esta foi detalhadamente relatada por V., a

presidente da Associação de Pescadores, que me descreveu como foi realizada a festa

nos dois anos de sua gestão. Percebe-se em suas falas a importância dada à formalização

do processo, bem como ao envolvimento no associativismo, à necessidade de maior

participação dos pescadores. Para ela tudo deve ser bem democrático e isso se daria

através de eleições das gestões e da prestação de contas com a “comunidade”. Ela vê

neste evento uma possibilidade de organização e união do grupo, no caso dos

pescadores. Ela se refere ao evento como Festa do Pescador (o Assessor de Cultura se

refere à festa como Festa do Peixe). Percebe-se um reforço à identidade de pescador e

da sociabilidade da “comunidade”.

Dona A. vê com tristeza o fato de a Associação dos Pescadores tomar para si a

festa, e que o não envolvimento desta com a Associação de Moradores e com a

Associação de Cultura, molda um panorama de desunião e desorganização comunitária.

Tendo como resultado um isolamento do grupo, não se aproveitando tudo o que a festa

poderia gerar. Percebi posteriormente que a desunião era parcial e que se dava

majoritariamente devido a rixas internas à localidade.

O professor T., diretor da escola da localidade, age como um agente externo,

mas que mora na “comunidade”, ele fora absorvido por este universo. Em suas falas

nota-se a importância da institucionalização da Associação de Pescadores, do

despreparo em relação à articulação que eles fazem com o poder público. Percebe-se

também a grande importância dada à formalização dos meandros da organização da

festa, visando o sucesso e a qualidade do evento. Para ele a festa precisa do

envolvimento da Associação de Cultura também (da qual ele é membro), principalmente

porque para ele apenas os moradores, sem o auxílio do poder público, não dão conta de

realizar a festa diante de sua magnitude.

O assessor G. tem uma visão política e estratégica do evento. Para ele a festa

causa visibilidade por enaltecer o peixe e a identidade várzea-grandense, e, portanto,

necessita ser mais bem trabalhada pelo poder público. Uma das suas preocupações é

com a chegada da Copa do Mundo de 2014 e de como este evento pode situar Várzea

Grande como ponto turístico do estado de Mato Grosso. Assim como para ele o evento

deve ser ampliado e estendido ao longo de vários dias. Ele enaltece a potencialidade de

geração de renda promovida pelo evento.

Depois destes meses me concentrei em conhecer a atual gestão da festa, feita

pela Associação de Pescadores, agora que sabia que era ela a maior responsável pela

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produção e organização do evento. Quando fui até o Bonsucesso no dia primeiro de

maio de 2011 para ver as atividades do Dia do Trabalhador, realizada pela Federação

das Indústrias e do Comércio, tinha a intenção de encontrar o pessoal da Associação e o

festeiro. Foi na peixaria Beira-rio, de Dona A., que encontrei com F., o atual presidente

da Associação (Gestão 2011-2013).

F. começa a nossa conversa falando do drama que ele está vivendo com a

Associação: sem dinheiro para fazer a festa, com muitas dificuldades em conseguir

patrocínio e com poucas pessoas o ajudando. Ele diz que o presidente tem que “fazer a

frente”, que o pessoal da diretoria ou os moradores de forma geral, só saem juntos

quando o grupo vai à Prefeitura, ou eventualmente quando alguma pessoa tem

disponibilidade o acompanha até uma empresa, mas que todo o dinheiro de gasolina e

tempo foram basicamente despendido por ele.

Além de ser pescador, F. é dono de uma lan-house e quando precisa estabelecer

contatos fora da comunidade para a realização da festa deixa algum “menino

trabalhando” em seu lugar. Reforça em sua fala que uma vez por semana ele tira o dia

todo para ir até aos empresários, mas que tem sido muito difícil, ninguém oferece verba,

os empresários oferecem produtos.

Você acredita, como pode ser isso né? A festa é importante para o

município e até para o Estado. Ela é uma festa tradicional, já se tornou

um patrimônio cultural, e a prefeitura, o governo, as empresas não

estão nem aí pra gente, nem para o nosso bairro.

A festa é desenhada como um drama (TURNER, 2008) a partir de determinadas

questões elencadas pelos atores da festa: do enfrentamento com o poder público; da

possibilidade de visibilidade da comunidade; da insignificância dada à festa pelo poder

público e pelos empresários, da exibição da desunião e dos conflitos que se tornam

latentes na preparação da festa.

F. diz que a gestão dele se propõe a ser uma gestão “nova”, que quer traçar

parcerias externas permanentes, pois percebeu que, sozinhos, os moradores de

Bonsucesso são incapazes de promover o evento do tamanho que ele é almejado

atualmente. Na busca por parcerias para fazer a festa, em nossas conversas, sou

envolvido. Ele pede para mim uma “parceria”: gostaria que eu pudesse arrumar alguém

para filmar a festa e produzir um DVD, visando a utilização deste material junto a

órgãos patrocinadores. Complementando a utilidade do vídeo, F. expõe sua intenção de

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mandar o DVD para o programa televisivo da Ana Maria Braga. Ressalta que no ano

que vem gostaria que tivesse um link da Rede Globo em Bonsucesso, uma exibição no

programa da Ana Maria, para mostrar o preparo do peixe, e quem sabe, até conseguir

que a emissora abrace a “causa” deles. Tais expectativas talvez possam ser visualizadas

na faixa que ele colocou na entrada da comunidade: “Festa do Pescador – A maior festa

gastronômica do Mato Grosso”.

Ele queria também que eu tentasse articular alguma “ponte” com a universidade.

Além da filmagem, ele diz que seria muito importante para eles se a universidade

pudesse fazer um “mapa cultural das áreas ribeirinhas”, assim o governo poderia saber

em que investir, e que essas tradições e conhecimentos não devem acabar: “A gente tem

que mostrar que existe”. Para esclarecer seu argumento, ele menciona as novas

propagandas do governo estadual veiculadas nos canais de televisão. Seus comentários

enfatizam que nas propagandas se vê mais o interior do estado, a política do estado tem

sido esta, de investir no interior, até a música da propaganda é direcionada, é uma

música sertaneja e não um rasqueado. Ele diz ainda que hoje em dia não existe “nada

voltado para a Baixada Cuiabana em termos culturais, muito menos das festas”. Em sua

opinião, apenas o bairro de São Gonçalo tem conseguido fazer alguma coisa e por estar

mais próximo do centro de Cuiabá eles tiveram o apoio da Secretaria Estadual de

Turismo em sua Festa do Peixe.

Para ajudar na divulgação, o presidente da Associação montou um site. A idéia

do site é promover Bonsucesso e mostrar as fotos da festa. F. fez questão de me mostrar

o site e mais uma vez acionando “parcerias” me entregou alguns cartazes da Festa do

Pescador para eu colar na universidade. Desta forma fui sendo incorporado na festa, na

dinâmica de trocas que existe nela30

. Ele diz que todo mundo está preocupado em usar

da festa, usurpar, jornalistas, fotógrafos, políticos, comerciantes, tanqueiros de peixe,

agentes culturais. Mas que na realidade a localidade precisa de colaboradores, de ajuda

externa e que seja fixa, permanente, assim como o professor T. que se afeiçoou tanto

pela localidade que acabou morando lá.

Nas semanas anteriores à festa passei diversos dias indo a órgãos públicos

juntamente com o grupo da Associação, pedindo alvarás e a colaboração. Dentre estes

dias, ressalto um, o dia 18 de maio de 2011. Fui convidado a ir à reunião com o

presidente da Assembleia Legislativa, em Cuiabá. Da Associação, estavam presentes o

30

Assunto que será explicitado mais abaixo.

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presidente, F.; seu vice, J.; o assessor, G.; o presidente da Associação de Cultura e

Turismo de Bonsucesso, G.; e o primo de F., que é jornalista e professor em uma

universidade particular. Alguns eu já conhecia, outros cheguei a conhecer naquele

momento, nos reunimos no saguão central da Assembleia, esperamos o primo de F. que

fez o contato com a assessoria do deputado. Eles estavam discutindo os resultados dos

projetos no Conselho Estadual de Cultura. G. afirmava que em Cuiabá haviam sido

contemplados 16 projetos totalizando três milhões de reais. A cidade de Várzea Grande

tinha sido contemplada com três projetos, em um valor de 150 mil reais, e que entre eles

tinha um destinado à gravação de um CD de lambadão com os maiores hits do

momento, e que aquilo não era “cultura de valor”. Sua interpretação era a de que o

Conselho operava por um engajamento político, um engajamento não compartilhado por

ele, uma vez que não trabalhava mais na Secretaria Municipal de Cultura de Várzea

Grande. Ele disse que havia protocolado um pedido de esclarecimento no Conselho de

Cultura e que iria lutar para revogar a questão. F. disse que estava muito chateado, pois

a festa é “tradição” de Várzea Grande: “Como que pode o lambadão, uma coisa que tem

todo final de semana, passar na frente da festa de São Pedro?”.

Entramos nos corredores da Presidência da Assembleia, com várias salinhas, e as

pessoas nos olharam. Entramos então em uma sala apertada, éramos seis, para conversar

com o assessor direto do presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Mato

Grosso. Reproduzo o diálogo estabelecido:

[assessor]: Então senhores, o que é que nós podemos fazer por vocês?

[G.] Bom senhor assessor nós viemos aqui hoje por conta de uma

demanda da Associação dos Pescadores de Bonsucesso e Pai André,

de onde o presidente é o senhor F. Nós necessitamos de um apoio para

a nossa Festa de São Pedro, a Festa do Pescador. Esta é uma festa

“tradicional” da Várzea Grande, do Bonsucesso, ela tem 31 anos de

existência (nesse momento F. sacou um cartaz e entregou ao assessor),

mas por mais importante que ela seja, nós não temos um apoio dos

órgãos públicos, e todo ano é este corre-corre atrás de patrocínio.

[assessor] Mas vocês já foram atrás do Conselho Estadual de cultura?

Porque isso aqui se resolve lá.

[G.] Sim, nós entramos com um projeto, muito bem feito, enfatizando

isso que eu disse para o senhor, mas lá nós fomos reprovados, eu creio

que existe um entrave político conosco, eu não sei bem por que, mas o

estado e a prefeitura não facilitam as coisas para nós. Eu tenho certeza

que existe alguma questão política, inclusive eu vou entrar com um

pedido de esclarecimento, pois esta é uma festa de relevância. O

Bonsucesso é um bairro muito antigo, um bairro de raiz da Várzea

Grande.

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[assessor] É eu sei que o Conselho é muito complicado, mas depois

que saem as decisões não tem como mexer, nem adianta, é o Conselho

que delibera.

Ao sairmos da sala F. falou:

Olha, toda vez que for para alguma reunião tem que ser assim de

comitiva mesmo, senão não adianta nada, ninguém bota fé no negócio,

tem que ser assim, igual foi no dia de hoje, ele não teve nem cadeira

para receber a gente, nem que a gente fique em pé, mas ele viu que a

coisa é séria.

A ideia de seriedade se relaciona com a necessidade de se seguir procedimentos

formais, como alvarás, projetos, assessoria, concepções que são fruto da modernidade.

Nota-se assim a importância dos fluxos internos e externos da localidade. Estes

fluxos, como diria Canclini (2003), trazem para a festa uma composição híbrida, onde

se misturam vários elementos como o lazer e a política local. Além disso, observa-se a

formalização do processo de produção da festa, que deixa de ser somente algo interno à

localidade, e perpassa meandros políticos regionais, além de mexer com categorias

sociais como tradição, formalização e participação coletiva. Adquirindo assim a

característica de formatividade como ressaltou Pareyson (1997), onde ao fazer a festa,

os indivíduos fazem a si próprios, se tornando os elementos (indivíduo e festa)

indissociáveis.

Além destas tarefas exigidas para a realização da festa que implicam na busca

por colaborações de órgãos públicos, observar e participar das atividades de preparação

da festa que envolvem trabalhos internos da comunidade permitem descortinar outros

sentidos deste festejo. Para expor tais questões inicio com relatos de campo, registrados

no dia 28 de julho de 2011.

No dia 28, os trabalhos se davam em vários pontos da comunidade: na igreja

pessoas enfeitavam para a missa do dia seguinte, homens levantavam barracas para a

festa. Mas a maioria das pessoas estava trabalhando na descamação do peixe, já que

havia mais de dois mil quilos para preparar. A organização se sucedeu através de grupos

de trabalho, cada um responsável por uma devida parte. Eles começaram a se formar

pela manhã, este tipo de organização soma-se ao associativismo, realçando os laços

sociais internos da localidade. Os moradores dividem um café da manhã, neste

entretempo as pessoas dividem suas opiniões sobre a festa, e a comparam com outras

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festas anteriores. O grupo responsável pelo processamento do pescado busca em uma

propriedade as primeiras sacolas com peixe. O trabalho com o peixe se estende pela

manhã e os jovens chegaram para acompanhar o acontecimento. Foi este o grupo que

escolhi para acompanhar, justamente por estarem lidando com o peixe, símbolo mor da

festa. Pessoas da comunidade também observavam o trabalho, geralmente eram

convidados a ajudar e se não aderiam ao grupo eram caçoados ou alvo de algum

comentário, e logo se retiravam do local.

Naquele porto, próximo a seus pais, as crianças brincavam de pescaria.

Conforme os restos do peixe eram jogados pelos trabalhadores na água, os lambaris

começavam a se concentrar perto do grupo. Os pequenos faziam armadilhas para fisgar

os peixes. Os adultos os colocavam a ajudar, carregar uma coisa daqui para lá, mandar

recados. Daqui a pouco chega mais um farto café com pão, bolo, guaraná. Na hora do

almoço chegaram umas latinhas de cerveja. O vice-presidente da Associação esqueceu-

se da grelha para assar o peixe para o almoço. E assim manda-se mais um menino ir

buscar o material esquecido, e outro menino para levar a cerveja para casa de alguém

para não esquentar até o peixe ficar pronto. As crianças são envolvidas no trabalho

desde cedo, ao acompanhar os pais, avós, tios e tias no trabalho coletivo. É no trabalho

coletivo que se faz a idéia de coletividade da localidade, pois sempre que se referem ao

trabalho coletivo os moradores acionam a noção de comunidade. E, portanto, a

participação nestas modalidades de trabalho e também no calendário religioso e festivo

põe em relevo quem pertence à “comunidade” e diferencia o morador de Bonsucesso, o

“ribeirinho” do forasteiro, “a pessoa da cidade”. Foi por isso que fiz muita questão de

participar mais do que somente observar ou entrevistar, pois neste caso a participação

faz a diferença.

A minha participação é sempre posta em questão pelos grupos, na medida em

que me aproximo sou chamado a participar no grupo de trabalho de descamação do

peixe. Perguntei a um morador o que ele achava da mídia, que já havia passado ali

através de vários jornalistas locais. Ele disse que achava muito bom para a divulgação

da festa. Mas reclamou da “usura” por parte dos “outros” que só queriam se promover

em cima da festa. Foi quando ele exclamou: “Professor, o senhor tem medo de entrar na

água para descamar o peixe?”. Respondi que não e achei naquele convite uma grande

oportunidade para me envolver melhor. Percebi então uma diferenciação entre dois tipos

de “outros”, ou seja, pessoas de fora da localidade: os “colaboradores” e os

“usurpadores”. E é lógico que eu queria me inserir como colaborador, mesmo não

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sabendo que já havia sido incluído pela organização dentro desta figura. Como naquele

momento minha prioridade era tentar acompanhar a dinâmica de trocas e de trabalho

nos diferentes grupos, e, portanto, circular pela localidade, deixei a oportunidade de

participar deste trabalho com o peixe para o dia seguinte (29 de Junho), na segunda fase

do trabalho.

Para me aproximar do grupo tento uma conversa com o festeiro, confundindo

com uma entrevista, ele diz que agora não dá tempo nem de dar entrevista, só de

trabalhar. Neste momento percebo que o meu envolvimento com o grupo era parcial,

pois ninguém queria interagir comigo, todos estavam preocupados com o trabalho

coletivo.

O assessor cultural chega, nós tiramos fotos do trabalho, ele me diz que vai

publicar no site da prefeitura e em um jornal. Os festeiros e devotos o recebem e

oferecem café, pedem para ele entrar na água e participar da atividade. Ele se recusa

dizendo que tem outros trabalhos a fazer, e me convida para almoçarmos juntos. Senti-

me na mesma posição do assessor cultural, de colaborador, mas que era mal visto por

parte da localidade, pois estes achavam que nós apenas queríamos ganhar com a festa.

Decidi ir almoçar com o assessor cultural que colabora há anos com a festa.

Ninguém melhor do que ele poderia me dar algumas noções sobre como fortalecer o

contato com a localidade. Comecei a especular sobre os andamentos finais e sobre o seu

papel de mediador entre as formalidades exigidas para a realização de uma festa nos

formatos atuais e da informalidade dos organizadores. Ele me mostrou a pasta que

dedica para arquivar as “coisas da festa”: ofícios, o projeto cultural que era apresentado

para concorrer a financiamentos. Ele disse que como o presidente da Associação está à

frente da festa este ano, eles dividiram estas questões formais, pois este já era um

pescador bem esclarecido; e que não tem todos os ofícios e todos os procedimentos

anotados como nos anos anteriores quando ele estava “à frente da festa”. E resto do

trabalho fica com a “comunidade”.

O trabalho coletivo se divide em etapas e setores. Muito antes da festa o trabalho

da associação é construído coletivamente, todos os detalhes da festa são pensados em

reuniões, em visitas a moradores importantes, arrecadando opiniões. O grupo de

diretores da associação vai a órgãos e empresas angariar fundos e na prefeitura recolher

alvarás. Internamente a localidade os trabalhos se dividem em três setores, a construção

dos barracões, um grupo serve para enfeitar a localidade e a igreja, e um último para

lidar com o pescado.

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O trabalho com os barracões e feito pelos homens, que junto com seus filhos vão

até uma área de mata próxima para cortar madeira e palha para levantar os barracões,

que posteriormente se transformarão em vendas de doces, peixes, artesanato, bebida,

etc. Estes barracões são construídos em frente a casa de moradores, em cima da calçada.

Existe ainda um barracão maior, o da cozinha da festa, onde o pescado é preparado e

servido. Este local exige um maior número de pessoas e, portanto, necessita de um

grupo de trabalho somente para ele. A decoração da rua é feita por homens e mulheres,

algumas cortam as fitas, mas são os homens que sobem em escadas lançando sobre os

fios de energia elétrica uma fita maior que segura todas as fitas com as cores do santo.

Para a decoração da igreja existe a participação de dois grupos, o grupo eclesial

e alguns festeiros eleitos, ambos ficam responsáveis por comprar aquilo que seria

necessário para enfeitar a igreja, flores, tapetes, fitas. Leva-se a bandeira do santo,

fazem camisetas exclusivas para o grupo que organiza a igreja, pois estes são

funcionários da fé, sentimento que mobiliza a paixão e o sentimento de ser “ribeirinho”.

Neste ano em que a festa foi observada montou-se uma encenação para levar a “oferta”

ao santo. Três moradores constituíam o grupo. Um levava um remo, ferramenta de

trabalho do pescador, outro levava a bandeira de São Pedro e o ultimo levava o

oferenda, um peixe frito em uma bandeja toda decorada.

Por último existe o trabalho com o pescado este é claramente dividido por

gênero. Este demanda mais tempo que os outros, pois começa com a compra do peixe

semanas antes da festa e dura de três a quatro dias somente no processamento do

pescado.

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Construção do Barracão da cozinha, o trabalho coletivo é posto em relevo.

Foto Lucas Oliveira, 2011.

Construção dos barracões dos moradores que iam montar vendinhas em frente a suas casas, aos

poucos essas barracas vão reconstruindo a paisagem da localidade.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

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Igreja da comunidade é atrás dela que se dá o trabalho com o peixe.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

A noção de “comunidade” acionada no mutirão para o preparo do peixe envolve

as noções de “tradição” e “identidade”. Ali a conversa é o deleite do trabalho, pois

exercitando a paciência as palavras vêm, e todo tipo de estórias aparecem. Conversas

sobre acidentes, brigas, casos da localidade, herança e até casamento. Todos estão bem

entrosados embora se formem dois grupos, dos homens e das mulheres, onde além do

trabalho o assunto também varia. Os homens ficam com a escamação do peixe, as

mulheres destrincham e transformam em ventrecha as costelas do peixe que serão fritas

e servidas com arroz e salada.

.

O trabalho em grupo.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

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No dia seguinte, 29 de junho, dia de São Pedro, fui para campo com uma

determinação: “Hoje é dia de entrar mais a fundo no trabalho dos devotos”. Cheguei e

fui logo para a beira do rio. Parecendo ser a ética do ribeirinho, a necessidade de trocar,

fui logo chamado para trabalhar, desta vez não tinha como recusar. Procurei uma faca,

que foi difícil achar, pois todos trazem as suas facas de casa, as mulheres as da cozinha,

os homens as de trabalho. Achando uma faca, que aparentemente havia sido deixada ali

por alguém que estivera limpando o peixe e fora descansar, fui sentar perto de um

senhor, que cuidava de seu neto. Pensei que ele seria a pessoa mais indicada para me

contar umas estórias, e trocar uma conversa, visto ser esse um senhor de idade que devia

saber muito sobre a “comunidade”; além disso, havia uma vaga para sentar ao seu lado.

Seu neto corria muito, então foi difícil começar uma conversa, ele estava sempre

avisando o menino: “não pule na água você está gripado, vou já levar você para sua

avó”. Consegui um contato maior com ele quando este reparou no meu fazer da

atividade, pois o jeito que eu tirava a escama do peixe era diferente, além de estar

perdendo o controle do animal a todo tempo, por ele ser escorregadio. O senhor me

mostrou como cravar as unhas no peixe e com o corte certo retirar todo o couro do

animal, às escamas iam junto com esta primeira camada da pele, depois os cortes

necessários para passar o peixe para a próxima etapa da escamação, responsável pelas

mulheres.

Segundo aquele senhor, aquela união que os pescadores tinham quando ele era

jovem estava se perdendo. Antigamente o pescado não era comprado e sim pescado no

próprio rio e armazenado em tanques para ser destrinchado nas vésperas da festa.

Segundo ele, o lugar se tornou só mais um bairro da cidade, onde os vizinhos brigam,

não mantém mais aquela coesão que existia quando Bonsucesso era apenas a zona rural,

uma área ribeirinha. Ele fala da importância de inserir os jovens dentro da festa porque

ela não é só uma festa de santo, ela traz as pessoas para junto das outras, ela reforça a

“tradição” e a “identidade”. E ao final de nossa conversa ele pede para eu tirar uma foto

sua segurando um belo peixe. Esta foto demonstrou para ele o orgulho de ser o que ele

é, um pescador, envolvido pelo rio Cuiabá.

O almoço chega e sou convidado a ir comprar o refrigerante, cervejas, ou seja,

colaborar com o trabalho coletivo. Sentamos todos na barranca do rio, o almoço foi

sendo trazido aos poucos por outro grupo de trabalho, o mesmo peixe que será utilizado

na festa é preparado na hora para quem está trabalhando na descamação. As pessoas

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falam como um peixe fresco é mais saboroso. Um velho “chacoteia” um homem de

meia idade, dizendo da briga dele com um parente.

O vice-presidente passava a mão na cabeça, perguntei a ele qual a preocupação:

ele queria um celular com crédito para ligar para o presidente da Associação de

Pescadores. Ofereci o meu e ele ligou e acertou os últimos preparativos. O presidente

ainda ia aos órgãos pegar as licenças para a realização da festa, os alvarás, e o vice ficou

tomando conta dos trabalhos dentro da localidade, junto com o festeiro, estes se

ocupariam do trabalho com o peixe.

“Agora vamos buscar o peixe!”, disse o vice-presidente para mim, e eu pensei

que já estava todo enlameado, e ainda por cima ir buscar peixe, assim ficaria exalando

aquele cheiro até no outro dia. Não teve jeito, fomos até uma chácara nos fundos da

comunidade, onde um empresário, o “amigo” da localidade, negociou doar uma parte e

vender outra do pescado. Quando chegamos lá, os homens que trabalhavam na chácara,

e que eram todos pescadores de Bonsucesso, lamentavam não poder estar ajudando no

trabalho coletivo. Enchemos o meu carro com pescado até a suspensão abaixar. O

funcionário da fazenda de tanques perguntou ao organizador: “Cadê o dinheiro?”, ele

respondeu: “Esse é na conta do seu patrão, anota pra mim que depois eu resolvo”. Eles

dão muitas gargalhadas, pois ambos são pescadores da Associação, e riem pelo fato de

um grande empresário fornecer para eles o peixe da Festa do Pescador. Fomos embora

para o local do mutirão e os funcionários dos tanques vieram atrás com mais um

caminhãozinho cheio de peixe.

Voltando ao trabalho coletivo passo a conversar mais com as mulheres, elas me

ensinam os truques de tirar as espinhas e deixar o peixe limpinho, me ensinaram o

tempero local. Enfim, terminamos a descamação. Agora só falta embalar e por no

freezer, um velho chega com seu carro para levar o peixe para o local da festa. É hora de

se arrumar para ir à missa. Como eu moro mais longe, em outro município, tenho que

sair mais cedo. Na hora em que saíamos do barranco, a TV Centro America chega às 5

da tarde, neste momento não havia mais nada o que ser filmado ali. Os organizadores

reclamam, pois esta é a televisão de maior audiência na região. Marca-se a reportagem

para o outro dia, juntamente com a madrinha da festa: Flor Morena31

. Só que agora os

organizadores irão performar a descamação do peixe para a televisão. A madrinha

31

Flor Morena é uma cantora regional que participa de diversos eventos festivos da religião católica,

canta canções sobre seus santos, e que, portanto se torna importante para a localidade de Bonsucesso por

cantar uma canção para São Pedro.

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trouxe consigo alguns tocadores de viola para dar um ar “tradicional” à atividade, a

impressão é de que se trabalha e canta ao mesmo tempo.

Na saída da localidade vejo as pessoas arrumando a igreja, os últimos

preparativos para a missa, um grupo espalha velas pela rua da comunidade, outro

pendura bandeirolas coloridas que haviam sido confeccionadas à tarde.

Cheguei um pouco atrasado, a missa já havia começado e parto para conversar

com os cururueiros32

. Disseram que numa festa de santo eles nunca pedem dinheiro, só

cobram em apresentações mais formais, ou seja, fora do contexto “tradicional” deste

ritmo musical. “Aquilo ali é para manter viva a tradição, porque o papel do cururueiro é

esse de animar a festa, e no momento de levantar o mastro, entoar as cantigas

religiosas”. Decido ver a missa mais de perto, porque alguns pontos me interessavam: o

ofertório, onde seria levado o peixe ao altar e apresentado ao padre; a fala do diretor da

escola e a fala de seu F., o contador de estórias da localidade.

Dentre os elementos que eu visava observar na missa o ofertório acontece

primeiro. Aquelas mesmas pessoas que trabalharam no “destrinchamento” do peixe

foram escolhidas para em certo momento da missa entrar pela igreja e oferecer a comida

local ao Santo. Este é o momento em que se erige a “identidade” que quer ser mostrada

e que liga os moradores diretamente ao São Pedro, sendo este o padroeiro dos

pescadores.

Logo depois deste ofertório o diretor da escola fala à frente de todos: primeiro da

importância da cultura, de se manter as tradições e que isso implica em se manter a

união dentro da “comunidade de Bonsucesso”. Ele fala das dificuldades em que se

encontra a profissão de pescador, e da grandeza da festa, de como ela hoje promove o

Bonsucesso e mostra como ele é um polo importante da cultura mato-grossense, mais

do que simplesmente várzea-grandense. Ele reclama dos maus tratos dos políticos, pois

a festa é oficial no estado, mas não tem apoio do governo, só de particulares. Ele fala da

ancestralidade do Bonsucesso, dos resultados publicados pelo seu livro33

, da sesmaria e

do tempo da rapadura, e de que se morava ali e não se precisava ir ao centro, como as

pessoas fazem atualmente para chegar ao trabalho diariamente.

32

Os mesmos que foram chamados para aparecer na reportagem de descamação do peixe pela manhã

daquele mesmo dia.

33 O livro Passado e Presente de Várzea Grande - Confrontos, de Ubaldo Monteiro foi publicado

autonomamente em 1987.

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Ele então chama seu F., a pessoa que representa o tronco familiar dos primeiros

donos de terras no Bonsucesso, e, quem também lhe cedeu a documentação e contribuiu

na produção do livro, contando estórias e versos. Conforme já destacado anteriormente,

Seu F. funciona como um ícone no Bonsucesso aparece nos programas de televisão

quando saem matérias sobre a vida de beira-rio. Nesses programas ele conta estórias,

poesias, anda de carro de boi, faz rapadura junto com suas irmãs. Ele também já até

participou de propagandas junto com dois humoristas locais, políticos e cantores

regionais.

A idéia de seu F. estar ali é de legitimar a “tradição” e ancestralidade de

Bonsucesso. Ele é a memória viva, pois ele evoca os mitos do passado, como o

surgimento da festa. Ele fala do trabalho com a rapadura, de quando o “ribeirinho” subia

o rio para vender sua produção no Porto de Cuiabá.

Depois da missa há o levantamento de mastro, o presidente tira fotos com

pessoas ilustres, me chamaram para levantar o mastro. Neste momento senti que meu

trabalho fora reconhecido, pelo fato de que os moradores acreditam que quem levanta o

mastro é fortemente abençoado pelo santo. Os cururueiros se põem a tocar, uma criança

começa a dançar com eles,depois me contam que é assim que a “tradição” está sendo

“preservada”. Depois da missa e desses rituais religiosos é servida uma janta de graça e

a madrinha Flor Morena se apresenta no fundo da igreja, umas pessoas ensaiam uns

passos de lambadão, já demonstrando o que seria a festa, muita alegria, as pessoas

festejando, dançando e se divertindo em família.

No próximo final de semana (ao dia de São Pedro) é então que se mistura à festa

religiosa, comunitária, a festa turística. Esta divisão aparente é recheada de signos

locais, e alguns que se modificam para abranger um público mais massivo. No dia 02 de

julho a festa é composta por dois momentos, a refeição e o baile, apenas ensaiam o que

está por vir no dia seguinte, a enorme lotação pelo público de fora da localidade. Nesse

dia o que chamou mais a atenção foi a intensidade do trabalho coletivo posto em prática

para realizar a festa na magnitude desejada pelos organizadores.

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Em foco o trabalho coletivo.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Segundo constatei em minha participação em campo a dinâmica da festa envolve

duas noções muito importantes para os ribeirinhos, a de participação no fazer, e a noção

de grandeza na avaliação. A participação é um critério que diferencia quem é um

morador ativo nas questões da localidade e quem fica de fora. Moradores participantes

são louvados, se tornam referência e ícones de Bonsucesso. Aqueles que não participam

são mal vistos, chamados de preguiçosos ou egoístas. A noção de grandeza é um

predicado importante para julgar se a festa foi boa ou ruim. Quanto maior o público e a

refeição, mais bem vista é a gestão organizadora. Em várias falas dentre entrevistados e

colaboradores é ressaltada a idéia de “sucesso” da festa. “A festa do ano (...) foi um

sucesso!”, “Já a festa feita pelo (...) não foi boa”. A falha ocorreria na festa sem uma

presença massiva de “pessoas da cidade”. Ao passo que em relação ao dia da missa,

momento inicial da festa, no dia 29 de junho, não se atribui necessariamente um

julgamento de valor; pois não há uma diferenciação explicita entre o “eu” e o “outro”.

Na festa de 2011, mudanças climáticas, ou seja, a chegada de uma frente fria

colocou-se como inimiga do sucesso do evento, os organizadores sentiram-se

preocupados com o decorrer das atividades do final de semana. No primeiro dia não se

vendeu muitos almoços, e nem mesmo ao baile as pessoas compareceram.

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É hora do almoço, e as mesas se estendem pelo gramado.

Foto: Lucas Oliveira, 2011.

Portanto ficou para o segundo dia de festa turística a expectativa do sucesso para

este ano. Ao mesmo tempo foi no dia 03 de julho que fui mais uma vez absorvido pela

dinâmica da troca empreendida pelos ribeirinhos. Neste dia de festa fazia um pouco

menos de frio, mas a expectativa para a presença de um grande número de pessoas era

ampla, pelos atrativos dos rituais religiosos, principalmente da procissão fluvial. O dia

começou com a alvorada, este é o momento em que os devotos soltam fogos nas

margens do rio para chamar as pessoas para a festa. São também organizados locais

para a soltura de fogos nos vários pontos por onde passara a procissão tanto terrestre

quanto fluvial. Arrumou-se a cozinha; e o palco foi transformado em altar, as cadeiras

foram todas organizadas para a missa. A performance empreendida na procissão e a

missa campal formam uma composição não só de rituais necessários na festa, mas agora

esses rituais são absorvidos porque neste dia a festa é direcionada ao turista. Portanto,

mesmo que a missa seja necessariamente realizada no dia 29, dia de São Pedro, ela é

novamente realizada, no local da festa e num palco grande para abarcar este público. A

missa se torna um show, ela é espetacularizada34

. Antes da missa, outro momento

espetacularizado que vem do âmbito religioso é a procissão.

Da igreja da localidade partiu a procissão com um pequeno número de festeiros.

Ao passar em frente à casa de cada festeiro se fazia uma parada, fogos eram soltos no

34

Em relação às transformações mais recentes das culturas populares, Nestor Canclini (2003) destaca a

espetacularização de alguns elementos simbólicos, ou de toda uma manifestação, como também explicita

Rita do Amaral (1998), ao estudar festas que acabaram por se tornar grandes festivais regionais e

nacionais.

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quintal e a procissão continuava. Aos poucos cada um ocupava o seu lugar, com o

festeiro, o rei e a rainha à frente. Três canais de televisão e uma rádio acompanhavam a

procissão, fotógrafos e a equipe de filmagem do DVD da festa também. As pessoas

abrem as janelas para olhar. Nos bares os bêbados levantam copos e riem animados com

a procissão. Ao chegar ao final da rua principal a marcha retorna até uma peixaria. Lá a

procissão é recebida com um café da manha. A banda que tocava hinos católicos toca

agora um rasqueado35

, as pessoas dançam, comem e a alegria toma conta do local. A

televisão entrevista os festeiros, pergunta-se qual o sentido da festa, e a resposta parece

óbvia, para manter a tradição. O festeiro aproveita e fala da condição dos pescadores,

que o rio está muito poluído e faz uma fala reivindicatória ao público. O santo é posto

em um altar, acende-se uma vela e a dona da peixaria faz um discurso, agradecendo por

todo ano receber a procissão na peixaria de sua família.

Os barcos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (MT) nos esperam nas

margens do rio. Logo procuro um barco para descer em procissão fluvial. Chovia no rio.

Mas foi bonito ver as pessoas em seus portos olhando a procissão, vez ou outra se ouvia

um “viva” São Pedro. São dois barcos, um contendo os festeiros, e outro, contendo os

amigos, colaboradores. Normalmente neste segundo barco encontram-se os políticos

que apoiam a festa. Mas este ano nenhum deles participou. Somos recebidos por uma

grande soltura de fogos e uma multidão na margem do rio. Logo escuto o locutor

avisando que a madrinha da festa iria receber os festeiros e encaminhá-los até o altar.

Antes todos esticam as mãos e fazem uma prece a São Pedro, pedindo que este melhore

a vida dos pescadores e abra as portas da felicidade para todos os presentes.

Na mesa do ofertório ao santo encontram-se as pessoas mais ilustres da

comunidade, seu F., o contador de estórias e a primeira professora da localidade. Antes

da missa eles são aplaudidos e homenageados. O festeiro entrega o santo ao padre para

que este o mostre para todos. A bandeira do santo também é erguida e agitada no palco.

Alguém corre para a cozinha para buscar o prato de peixe para o ofertório. A missa é

celebrada e ao seu final são revelados os festeiros de 2012, que sobem ao palco para

receber o santo.

Ao final da missa vou à cozinha ajudar. O almoço começa a ser servido. Desde

as cinco da manhã começou-se a descongelar e temperar o peixe. Fazia muito frio e os

homens tomavam pinga. Uma repórter vem pedir para eu deixá-la entrar na cozinha, ela

35

Ritmo muito apreciado pela população regional.

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estava fazendo uma matéria sobre a festa e queria apresentar o prato típico cuiabano no

site do jornal, digo a ela no que consiste a comida, ventrecha de pacu, arroz branco,

vinagrete e farofa de banana. O dinheiro pago pela comida vai para a Associação de

Pescadores, indiquei que ela deveria entrevistar o presidente, seu vice e a dona de uma

peixaria, dona A., a equipe de fotografia vem tirar fotos, pedem que eu os mostre a

cozinha. Perguntaram-me se eu era o assessor de imprensa, digo que não, sou apenas

um colaborador. A fotógrafa pede para experimentar o peixe, digo a ela que se dirija ao

grupo que está fritando o peixe, lhe é servido um grande prato de comida.

O padre vem almoçar na cozinha, ele quer saber do peixe. As pessoas o recebem

com abraços e muita satisfação, principalmente as mulheres. Decido sair um pouco da

cozinha e ver a movimentação da festa, o almoço e as barracas, a circulação da

multidão. Muitas pessoas bebem desde cedo, outras se lambuzam com comida. O

ambiente é muito familiar, mesas compridas se estendem com toda a família, dos velhos

aos novos. Embora muitos homens jovens viessem à festa para conseguir uma garota,e

as jovens se enfeitam com a mesma intenção. Uma fila enorme se forma na frente da

cozinha.

De repente sou parado pelo presidente da Associação, ele me pede para ajudar

em algumas coisas, ser o juiz da corrida de canoa e dar os prêmios das brincadeiras no

palco. Ele me dá uma camisa e pede que eu a vista, é a camiseta da organização da

festa. Logo corro para a beira do rio, onde um barqueiro me espera. Informo o barqueiro

que eu seria o responsável por ali. Retorno ao palco para avisar ao locutor para fazer a

chamada da corrida.

O barqueiro pede as instruções, e partimos para estender a fita até o meio do rio.

Logo descem os corredores rio abaixo. Uma dupla de jovens vence e pula na água. Subo

como os jovens até o palco para a entrega dos troféus. Os vencedores são louvados com

salva de palmas e gritos. Ao descer o principal interesse dos vencedores é para pegar o

dinheiro do prêmio. Os outros colocados também querem saber dos prêmios, seriam 500

tijolos e um deles já pensava em erguer um banheiro em sua casa. Os jornalistas os

entrevistam como se fossem artistas, logo surgem flashes e luzes em cima dos

corredores. Aos poucos as pessoas começam a chegar na festa e o lambadão começa a

ser tocado, pessoas dançam e cantam em todos os cantos da festa.

Decido sair um pouco da área do palco para ir ver o movimento nas peixarias. O

que me interessa lá é o a gastronomia, que atrai as “pessoas da cidade”. Vou até a

peixaria da família do presidente da Associação. O movimento era intenso, como eu

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acreditava isso se deu em todas as peixarias. Fiquei ali parado, mas em certo momento,

fui chamado pela dona da peixaria para ajudá-la a servir a polícia e aos bombeiros que

trabalham na festa. Naquele dia separaram-se dois ambientes na peixaria um para quem

está trabalhando e outro dos consumidores, que no dia pagam mais caro. A irmã do

presidente me oferece umas cervejas e pede que eu a ajude, os garçons são meninos

jovens. Ela estava grávida e ficando um pouco confusa com aquela situação. Quando o

movimento cessa um pouco, escuto o som do lambadão parando, é a chamada para mais

uma brincadeira, a competição de quem come mais “ventrechas”. Logo vem alguém lá

do palco e pede que eu leve o peixe e algumas toalhas, algumas mesas são levadas da

peixaria.

Quando cheguei ao palco os candidatos já estão todos atrás de uma grande mesa.

O locutor pede que eu ajude a vigiar as possíveis trapaças. Várias câmeras sobem ao

palco, junto com as equipes de televisão. Começa um movimento louco e engraçado,

alguns participantes se engasgam com as espinhas e gritam: “Água!” Um picolezeiro

desafia os candidatos e anuncia que se ele ganhar vai dar um carrinho com 200 picolés,

o público começa a gritar: “Picolezeiro, Picolezeiro!”. Mas quem ganha é um cuiabano,

um filho de ribeirinhos, e se utilizou de certa técnica para ganhar, tirando o couro do

peixe primeiro, depois separou as espinhas com a mão, assim ele evitava o trabalho de

retirar as espinhas da boca. A televisão o cerca e pergunta se ele está satisfeito. O

vencedor responde que sempre vem àquela festa, e que apesar de comer tanto peixe em

Bonsucesso, sempre leva um pouco para jantar em casa, e que naquele momento ele

ainda iria saborear um peixe cozido com a sua família. Ele levanta o troféu e sai do

palco.

O lambadão recomeça. Neste momento o se formava uma grande fila para

comprar a peixada da festa. Cada vez mais o número de pessoas crescia, e uma larga

multidão ocupa todo o gramado da festa. Volto para a peixaria com o material que fora

utilizado nas brincadeiras, sou chamado novamente para o trabalho como garçom. Ao

final a irmã do presidente me oferece uma marmita com bastante peixe em

agradecimento pela ajuda. Os jovens dançam até a segunda-feira pela manhã, neste

momento bebida e a dança tomam conta da festa. É o momento das paqueras, de

conhecer pessoas, ou simplesmente se divertir com os amigos.

A dinâmica da troca é um ingrediente fundamental da sociabilidade do local e

das Festas, esta troca também faz pensar sobre minha inserção em campo. Fui inserido

nas dinâmicas das trocas, de modo que diversas vezes minha presença é ressaltada, ora

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como professor, ora como um representante da universidade, nos encontros com

políticos, ou para ajudar a formular perguntas para o vídeo que se pretendia divulgar a

comunidade para o turismo. As trocas também se dão pela exigência de participação

através de múltiplas funções durante a festa: armar o rancho, fritar peixe, ser locutor, ser

juiz da corrida de canoa, etc.; todas essas situações revelam a dinâmica da troca que se

dá nas festas. E eu, enquanto pesquisador fui capturado por ela, e para trocar é preciso

dominar os códigos da troca.

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Capitulo III: Festa e dinâmicas identitárias

As abordagens atuais, principalmente aquelas advindas das pesquisas

etnográficas acerca de temas como festas, congados, batuques, procuram enfatizar não a

permanência das formas, mas o sentido, a articulação entre forma e cognição, as

singularidades culturais dos processos sociais (SEGATO, 1992, p. 20).

Embora vista por um prisma renovado, a cultura popular é ainda abordada em

muitos trabalhos por um viés romântico. Portanto, pensar as mudanças, reinvenções e

fluxos que se fazem neste âmbito, é uma alternativa qualitativa para dar contribuições

para o estudo das manifestações populares. Cada pessoa envolvida nestas manifestações

atua de forma ativa, recombinando retalhos. As formas e conteúdos navegam e são

incorporados seletivamente de acordo com a proposta dos atores. As manifestações

populares são constantemente reinventadas e transformadas, simplesmente pelo caráter

dinâmico que a própria cultura possui (VIANNA, 2005).

Partilhando das perspectivas teóricas acima apontadas, refletiremos neste

capítulo sobre o processo inventivo no qual a “Festa de São Pedro”, realizada em uma

área rural às margens do rio Cuiabá, Mato Grosso, torna-se a “Festa do Pescador”. A

intenção é apresentar algumas dinâmicas identitárias. A produção e realização da Festa

do Pescador colocam-se como uma tentativa dos organizadores de situá-la como grande

evento não só para balizar a identidade local e regional, mas para potencializar o

consumo turístico e massivo dos bens produzidos em Bonsucesso.

Exemplo de catolicismo popular, a Festa de São Pedro, também chamada de

Festa do Pescador, traz a bagagem cultural dos ribeirinhos, misturada a elementos

diversos, como a música pop regional, o turismo e a política local. A Festa aqui

analisada pode ser considerada especial dentre outras festas que ocorrem na localidade,

pois ela é promovida por um grupo de pescadores organizados em uma Associação

formalizada.

A produção-realização da Festa pode ser vista como um processo ritual, pois tem

uma forma específica, constituindo um sistema cultural de comunicação simbólica

(PEIRANO, 2003). A Festa é o canal privilegiado por meio do qual a comunicação é

estabelecida entre os moradores da localidade e entre estes e a sociedade envolvente. O

festejo consegue congregar pessoas num duplo sentido: os moradores; e numa outra

esfera, os visitantes e representantes das esferas administrativas da cidade, uma vez que

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a Festa se apresenta como uma forma de acesso ao poder público, à iniciativa privada e

aos agentes culturais, chamados para apoiar a festividade. No processo de construção da

Festa se faz necessário a formação de redes sociais. E são nestas redes estabelecidas que

emergem os fluxos entre a localidade e a cidade e vice-versa.

O que faz a produção da Festa poder ser vista como um evento especial é a sua

potencialidade de edificar e comunicar imagens, de expressar representações sociais.

Nas narrativas sobre o evento são construídas imagens que se referem à afirmação

identitária, à idealização da forma de convívio em Bonsucesso, bem como ao

acionamento da idéia de tradição, muito enfatizada pelos organizadores e moradores.

Nos últimos anos a noção de identidade tem sido amplamente reexaminada a

partir de estudos que visam aproximar-se dos hibridismos, sincretismos, mestiçagens,

enfim, manifestações que tendem a trazer à tona dinâmicas de globalização, localismos

e processos culturais multifacetados e complexos (HALL, 2005; CANCLINI, 2003). A

opção por traçar este caminho coloca-se como relevante na medida em que o que

importa no contexto contemporâneo são as trocas, as mudanças e os choques culturais.

Falar da Festa de São Pedro ou Festa do Pescador de Bonsucesso é poder adentrar em

tais questões. A Festa veicula uma imagem associada a um local, Bonsucesso, e a um

estrato social, os ribeirinhos à beira do rio Cuiabá, mas ao mesmo tempo alimenta o

calendário de lazer das cidades de Várzea Grande e Cuiabá, reunindo pessoas da

comunidade e de fora dela. Portanto, aqui a identidade será tratada numa perspectiva

que ressalte o caráter social e simbólico das dinâmicas identitárias, mas também de sua

ação enquanto algo denotativo de contraste e de identificação formulada num

determinado processo social mais amplo.

Cabe observar que uma forma relacional de produção de identidades é conhecida

na literatura antropológica através da obra, publicada nos anos 40, de Evans-Pritchard

(1993), Os Nuer. O sistema político deste povo baseia-se num processo de articulação

das fragmentações, que num plano micro-social se opõe em segmentos familiares e da

aldeia, mas que dependendo da situação podem-se unir como povo em relação a seus

vizinhos, os Dinka.

Ao final da década de 1960, Fredrik Barth publicou Grupos Étnicos e suas

Fronteiras, um ensaio que tem sido ao longo destes 50 anos amplamente citado e

repensado. Inicialmente Barth (1998) aponta que muitos têm se enganado ao pensar as

diferentes culturas e processos sociais em termos de perdas culturais. Estes estudos

enfatizam a morte das sociedades tribais, as consequências nefastas do capitalismo para

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os grupos tradicionais e a insurgência de uma homogeneidade cultural causada pela

globalização. Para Barth toda e qualquer variação cultural é descontínua, e, portanto, a

cultura é dinâmica e enfrenta diversos processos ao longo do tempo. Em essência,

segundo as afirmações do autor, as agregações humanas compartilham semelhanças e

diferenças culturais que as distinguem. É na auto-atribuição e identificação como

pertencentes a determinados grupos que os próprios atores conseguem se organizar

como tais e interagir. Portanto, o contraste entre os grupos é relevante como fator de

organização social. A identidade está, então, no processo íntimo de reconhecimento e no

processo relacional de diferenciação e organização.

As relações entre identidade e o conceito de comunidade continuam como

questões abertas e controversas. George Marcus (1991) problematiza o conceito de

comunidade referindo-se a uma localidade e identidade específicas, dissolvendo a

solidez destes conceitos para propor uma análise dos processos identitários em

múltiplos planos e espaços. Tal formação de identidades em múltiplos planos e espaços

pode ser observada na Festa de São Pedro - Festa do Pescador.

Na Festa, observamos a erupção de identidades para dentro do âmbito da

localidade, de forma interna à constituição da produção da festa. E para tal é necessário

perceber como se organizam os ribeirinhos, quais figuras se destacam, as narrativas da

festa, a vida cotidiana, os saberes que implicam no fazer da festa. Numa segunda

instância, será observada a construção de identidades para fora, nos fluxos que os

moradores tecem para realizar a festa, seja com o poder público, com agentes culturais,

com a iniciativa privada e com a mídia. Quais discursos são proferidos, quais noções

são acionadas como os organizadores querem ser vistos através da festa? Como estas

imagens identitárias, para dentro e para fora, se cruzam, se alteram ou mutuamente se

constroem? Trata-se, portanto, de perceber o que une os indivíduos e os fazem pensar

como pertencentes a uma “comunidade ribeirinha”, que a cada ano se integra às cidades

de Cuiabá e Várzea Grande, pois o fluxo de trabalhadores assalariados que vão trabalhar

no centro destas cidades é cada vez maior.

A Festa em suas várias dimensões: identidades para dentro e para fora

Para refletir sobre tais questões, trazemos aqui alguns dados etnográficos

referentes às narrativas sobre a Festa. A primeira narrativa é de uma senhora, que se

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constrói como a primeira idealizadora e festeira da Festa de São Pedro. Em 1979, ela e

duas colegas foram até o barranco localizado atrás da igreja para comprarem peixe para

a preparação do almoço. No barranco, às margens do rio, encontraram um tarrafeiro

com uns curimbatás e piaus muito bonitos, a claridade reluzia nas escamas dos peixes.

Foi aí que ela fez uma proposta ao pescador: ele daria os peixes e elas preparariam uma

peixada em homenagem a São Pedro, pois era o dia do santo, 29 de junho. O pescador

disse que se fosse para fazer uma homenagem ao santo, elas poderiam escolher qualquer

peixe. Outros pescadores que lá se encontravam também ofereceram seus melhores

pescados para a comemoração. Subindo de volta para a rua da comunidade, elas

convidaram os moradores da comunidade para a peixada. O alvoroço estava feito, as

mulheres logo se colocaram a preparar a comida, cada uma trouxe um ingrediente. Mais

tarde quando o comprador de peixes chegou para buscar o pescado do dia, viu aquele

“furdunço”. Ele e o gerente da empresa que comprava os peixes dos ribeirinhos

decidiram doar chope e uma vaca para a comemoração. No ano seguinte este gerente,

oriundo de uma localidade próxima a Bonsucesso, doou uma imagem de São Pedro para

a igreja. As narrativas das outras senhoras, envolvidas no episódio, reproduzem a

história contada, sempre ressaltando em seus relatos o apelo às trocas, à reciprocidade, à

comunhão local e à construção coletiva da Festa.

Conforme já mencionado anteriormente, sua produção se diferencia do cenário

de realização das primeiras festas de São Pedro. Atualmente, a Festa é organizada pela

Associação dos Pescadores de Bonsucesso. E quando adentramos nos relatos sobre a

Festa produzidos por integrantes da Associação outras questões são inseridas nas

dinâmicas identitárias atualizadas na comunidade. A ex-presidente da Associação é uma

das pessoas indicadas pelos moradores para “falar sobre a Festa”. Nos relatos desta

mulher de aproximadamente 40 anos há referências à organização da Associação, aos

problemas que enfrentava em sua gestão pela desunião dos pescadores para fazer a

Festa e pela falta de participação nos papéis formais da Associação. Ela também ressalta

que em seu mandato houve uma ruptura com a Prefeitura de Várzea Grande. Ela não

conseguiu apoio institucional nos dois anos de sua gestão, fato que acarretou dívidas

para a Associação, destacando que foi muito difícil organizar a Festa. Segundo ela, sem

o apoio do poder público, fazer a Festa se resume em pagar os gastos com a mesma.

Entre os anos de 2005 e 2008, a Festa obteve apoio da Secretaria Estadual de

Cultura de Mato Grosso e foi amplamente divulgada na mídia, além de contar com um

grande número de pessoas nestas edições. Em 2009, 2010 e 2011 os organizadores não

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conseguiram a aprovação de seus projetos no Edital de Financiamento de Projetos

Culturais de Mato Grosso e, portanto, o evento foi realizado sem um capital prévio,

necessário para o pagamento das atrações e da infra-estrutura do evento. É relevante

notar que a busca de financiamento público e apoio de políticos acaba se tornando uma

busca por reconhecimento do Estado e por ele fazer cumprir seu papel de gestor da

cultura.

A transição de gestão da Associação de Pescadores foi marcada por uma disputa

de campanhas um tanto quanto familiares, onde se apresentavam relações de parentesco

e de compadrio. A fala dos candidatos era a mesma, se resumia em conseguir a

aprovação do projeto da Festa, e fazer uma festa “maior” e “melhor” que as dos anos

anteriores, enfatizando que a grandiosidade do evento festivo seria fundamental para

propagar e enaltecer Bonsucesso. Após a votação, a chapa vencedora se reuniu no

restaurante da família do presidente eleito onde tomaram cervejas e soltaram fogos de

artifício. A princípio, o candidato derrotado parecia o mais preparado para liderar a

Associação, pois já havia sido presidente da Associação de Moradores e trabalhava com

uma cooperativa que vende pescado para mercados locais. No entanto, as pessoas que

votaram no candidato eleito apostaram em duas coisas: primeiro, no “novo”, o

candidato eleito nos debates reforçou que iria fazer um “novo modelo de festa”; e

segundo, em seus contatos políticos, uma vez que trabalhou na campanha de um político

influente, além de ter amigos que trabalham em uma rádio da cidade e de conhecer

fornecedores de peixe, elemento crucial para a realização da Festa.

Estes dados demonstram que para a produção da Festa não basta o acionamento

de laços sociais mais próximos como o parentesco e o compadrio. A Festa, em sua atual

configuração, exige mobilizações que não se esgotam nas trocas entre vizinhos e

mutirões como fora citado no relato do surgimento da Festa de São Pedro contado pela

primeira festeira. É por isso que para ser “presidente dos pescadores” deve-se estar apto

para construir redes sociais mais amplas com pessoas de fora da comunidade,

simplesmente porque as redes sociais mais próximas são limitadas e não conseguem

suprir as demandas de capital e infra-estruturas necessários para a construção da Festa

nas proporções que ela atinge hoje.

A religião, que era o foco principal da Festa em seu início, agora se mescla a

outros elementos, como o turismo, o lazer - não somente para os moradores de

Bonsucesso, mas para os habitantes das cidades de Várzea Grande e Cuiabá - e o

consumo. Como um micro-sistema dentro da Festa, a religião é elevada à categoria de

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“tradição”; é o momento tradicional da Festa; a parte que não pode mudar; é referência

de memória, da localidade de pescadores que necessitam da benção de São Pedro. No

relato mítico da Festa de São Pedro, citado inicialmente, a homenagem ao santo através

do banquete era o motivo da manifestação, não havia uma relação com políticas

culturais, visibilidade e mídia. A proposta da festa enquanto Festa do Pescador vem

suprir uma demanda pela expansão e por visibilidade do bairro localizado em uma área

rural e a demanda por fontes de renda para a localidade, como o turismo. Fazer a festa

hoje expõe a necessidade de notoriedade da Associação e da localidade.

Embora se perceba uma reconfiguração nos modos de produzir a Festa, os

discursos dos candidatos ao cargo de presidente da Associação recaem em uma imagem

muito presente nas representações dos moradores: a idéia de união. Os candidatos

apresentam como proposta unir a comunidade e a “categoria dos pescadores”, trazendo

assim benefícios para a comunidade e para o turismo local. Portanto, saber fazer a Festa

do Pescador, diferente da festa de São Pedro, é saber tecer redes sociais mais amplas, e,

além disso, é saber reforçar uma idéia que a localidade tem de si, de ser unida.

A Festa de São Pedro quando ela surgiu pode ter sido uma manifestação que

encontrava sentido na organização interna das relações pessoais. Atualmente, num

contexto mais complexo de relações pessoais, interessa para os moradores também

realizar uma Festa do Pescador na medida em que seu enfoque é justamente a extensão

das relações com diversos setores da sociedade.

A Associação conseguiu se tornar uma figura importante da Festa, dedicando

maior atenção e sendo responsável pela condução de momentos específicos da Festa: as

refeições e os bailes. Enquanto que os ritos religiosos e a comunhão com o santo

colocam-se como algo interno à própria localidade, de cunho mais restrito. Podemos

perceber uma festa com diferentes campos simbólicos atuando e com diferentes

extensões.

Mesmo com toda a importância que a Associação ocupa, existe um universo na

Festa que está além da Associação, a “comissão da igreja”, pessoas que cuidam das

questões religiosas locais, que organizam as festas da igreja, e que escolhem os festeiros

de São Pedro. Esta extensão da Festa constitui o terreno religioso da festividade em que

são dinamizados movimentos internos à própria localidade. Para os moradores a parte

religiosa da Festa não deve mudar; e nem se envolver diretamente nos fluxos que a

Associação tece com os órgãos públicos e privados da região. Deste terreno só se

participa quem é da “comunidade” e quem é “pescador”, atuando de forma a reafirmar

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constantemente a sua identidade, num movimento em que a dinâmica da troca abarca o

universo da festa.

Agora quem faz a festa aqui é o presidente, ele tem que estar junto, ir

para os órgãos. A gente vai junto quando pode, quando é para ir na

prefeitura assim eu até vou pedir dispensa para ir. Mas eu vou ficar

mesmo com o serviço braçal, reunir as equipes pra montar o barracão,

cortar o bambu, vou chamar meus colegas, aquelas pessoas que eu sei

que vão trabalhar. Esse serviço não muda. No dia da festa, o festeiro

não trabalha, a gente só se prepara para fazer a procissão, descer o rio

Cuiabá. A comunidade escolheu o festeiro, então a gente tem que estar

lá, presente.

Para mim que é a primeira vez que eu vou ser festeiro significa

representar a comunidade. Você vai vestido com o que a “comissão”

elege, se tiver que alugar um terno eu vou ter que alugar.

Eu acho que o papel do festeiro não mudou nada, ficou a mesma

coisa. E tem que ser sério, tem que representar.

(Seu C., Rei da festa de 2011)

Aqui se apresenta o “universo festivo” de São Pedro, uma parte da festa que está

dentro da Festa do Pescador e que exige toda uma hierarquia de papéis desempenhados

pelos festeiros que seguem uma “tradição”.

Em entrevistas com os festeiros, eles falam sobre os seus papéis, o seu trabalho,

este é bem definido e a ele não se acrescentam outras etapas. Quando inquiridos sobre

os significados dos ritos dos festeiros, estes não se interessam em responder. Creio que

mais importante do que se preocupar com questões do tipo: por que o nome “alferes da

bandeira”; é saber o que o alferes faz com a bandeira. Em certa ocasião perguntei ao

festeiro do ano de 2011, o que significa “lavar o santo”? Passear com ele na rua? Ele me

afirmou que não sabia que sempre era feito assim, e que perguntasse à sua mulher que

possivelmente poderia me dar uma resposta. É evidente que dentro deste universo de

conhecimentos religiosos as mulheres se destacam muito mais do que os homens.

Quando inquirida a mulher do festeiro remeteu aos conhecimentos de sua mãe, a

senhora foi ensinada que lavar o santo abre as portas para os pobres, além é claro de

trazer boas chuvas no próximo ciclo de plantio agrícola. Andar com o santo na rua ela

não sabia, mas o marido logo respondeu que o sentido era de representar a categoria dos

pescadores. Ao contrário da consciência da cultura que se tem em relação ao turismo, a

parte religiosa da festa impõe um caráter totalmente sistematizado e que é internalizado

de tal maneira que o que se faz é tradição, e não se discute.

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O rei e a rainha ficam à frente na procissão e nas atividades, o alferes de

bandeira leva a bandeira, o capitão do mastro fica responsável por cortar a madeira,

orná-la e afixá-la no dia da Festa, os juízes levam as coroas que vão enfeitar o altar do

santo no dia da missa. Alguns dias antes da Festa, o rei e rainha, que foram escolhidos

na missa do ano anterior, organizam grupos de trabalho para executar algumas tarefas.

São elas: o ornamento da igreja, o qual é pago pelos festeiros, são flores, tapetes, fitas; a

formação dos grupos de trabalho que vão preparar o peixe, construir a cozinha, feita

com bambus e palha, etc. A todo o momento em que as pessoas estão preparando a

comida ou trabalhando, os festeiros ficam responsáveis por alimentá-las, preparar os

lanches, levar o almoço para as pessoas que estão cortando os peixes na beira do rio.

No dia da Festa as figuras mais prestigiadas são os festeiros, neste dia é dito que

eles não trabalham. Eles se resguardam para realizar a procissão terrestre e fluvial,

carregando o santo e representando os pescadores. Ao contrário da direção da

Associação que tenta angariar a participação de pessoas com diferentes ocupações

oriundas da comunidade na formação das chapas, os festeiros continuam sendo

exclusivamente pescadores. São estas as pessoas que põem o santo na rua, que o

carregam, o lavam, o passando adiante ao fim da procissão fluvial para os festeiros do

ano seguinte.

A Festa opera em dois âmbitos, num plano mais interno que engloba as relações

religiosas, as relações sociais entre os moradores; e outro mais externo que põe em ação

a Associação e suas dinâmicas de troca para além de Bonsucesso, costurando redes

entre a localidade com esferas administrativas das cidades de Cuiabá e Várzea Grande.

Tais planos estão refletidos no próprio calendário da Festa. Conforme vimos nos

capítulos anteriores a Festa é realizada em finais de semana diferentes. O evento festivo

que tem a centralidade nas dinâmicas religiosas e nas relações internas da comunidade é

realizado no dia do santo, ou seja, dia 29 de junho, dia de São Pedro, a Festa de São

Pedro, ou seja, a festa é destinada à comunidade, aos de “dentro”. No final de semana

seguinte o evento ganha outra amplitude, recebe um maior número de visitantes e de

autoridades políticas, são realizados os shows e o grande almoço, ou seja, a festa é feita

para um público de “fora”. Tais desdobramentos refletem nas dinâmicas sociais que

estão sendo dramatizadas na Festa.

No próximo capitulo, continuaremos abordando tais dinâmicas, enfocando de

forma mais específica a relação da Festa com a Associação dos Pescadores de

Bonsucesso.

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Capitulo IV: A Associação e a Festa

Neste capítulo serão abordados a relação entre a Associação e a Festa e as

dinâmicas de profissionalização da mesma. Serão analisados ainda os desdobramentos

deste processo de profissionalização nas formas de produzir e realizar a Festa e

consequentemente na construção e exibição de identidades.

A Associação de Pescadores: o profissionalismo da Festa

Passemos a falar um pouco mais sobre a Associação dos Pescadores, pois ela é

fundamental para a compreensão da passagem de Festa de São Pedro para Festa do

Pescador. A idéia que os organizadores têm é a de que a organização em associação

proporciona legitimidade de representação, uma vez que se constitui em uma

representação formalizada, principalmente quando se concorrem aos apoios financeiros

públicos ou privados.

A Associação de Pescadores atua de forma central na Festa. Portanto, o discurso

que se apresenta hoje na Festa parte do pressuposto da busca por uma sociedade civil,

por cidadania. Além disso, a Festa se torna um mote usado para a representação da

categoria de trabalho, “os pescadores” abençoados por São Pedro, onde no momento do

preparo e da realização da festa coloca-se a possibilidade do acesso ao poder público.

No momento em que as leis de pesca são instituídas no Mato Grosso,

modificações aparecem (SILVA & SILVA, 1997). Os moradores da localidade contam

que se criou este aparato de associativismo para um melhor controle da atividade que é

executada em diversas localidades do Vale do Rio Cuiabá. O culto ao padroeiro dos

pescadores é incorporado como uma das atuações da Associação de Pescadores de

Bonsucesso e Pai André. Como a festa é uma das “tradições” locais das mais

enaltecidas pelos moradores, fazendo parte do calendário e das rotinas religiosas não foi

difícil a associação entre “culto ao santo” e “participação” na Associação de Pescadores.

A categoria “participação” é pensada como algo necessário para os moradores, não

importa se a participação é na Associação de Cultura e Turismo, na de Pescadores, de

Moradores de Bairro, é a participação na vida social do bairro que é diferencia o

“ribeirinho” do “outro”.

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Nesse sentido outra categoria se associa à anterior, a preservação da tradição

que é enfatizada pelos mais antigos, e que dizem estar se perdendo para o

individualismo da geração jovem. Esta necessidade de “tradição” se torna uma

prerrogativa para a realização da festa. Portanto, na medida em que se incorpora a

necessidade de processos formais para a realização da festa causa-se uma abertura para

a participação política.

Minha percepção é a de que em Bonsucesso tudo sugere que política e religião

andam juntas. Igreja e as Associações são espaços primordiais de convívio e atuação

social nesta localidade, e estão localizadas espacialmente frente à frente. Portanto,

minha participação na Festa foi uma estratégia para perceber que, fluxos entre arenas

diversas da vida social tornam-se altamente estimulados através das festas36

, e, no caso

dos dados coletados percebemos que através da Festa aparece um grande jogo de troca,

reciprocidade e representação. A organização em Associação proporciona legitimidade

de representação, pois é uma representação formalizada, principalmente quando se

concorre a apoio financeiro. Além disso, usa-se o nome da Associação como fator de

representação também perante a sociedade de forma geral.

No realizar da Festa esses atores tornam-se sujeitos políticos organizados,

tentando estabelecer um diálogo crescente com o setor público. Embora este coletivo

organizado surja como grupo de interesses, ou como um grupo de pressão que atua

segundo regras exclusivas de financiamento para projetos culturais, seus resultados e

impactos não são parciais. Esta forma de atuação pode alterar progressivamente o

comportamento deste setor da sociedade civil frente ao Estado. Esse movimento, por

exemplo, possibilita que num determinado período o “presidente dos pescadores” possa

ser representante das demandas e interesses da comunidade, implicando na realização

mediações para a aquisição de melhorias para a população do bairro. Como ocorreu no

dia do lançamento da Festa, momento em que o presidente pediu a um deputado uma

camada asfáltica para melhor receber os visitantes, pedido que foi atendido.

Sem um contingente significativo de representantes da “classe dos pescadores”

de Bonsucesso, a Associação dos Pescadores reivindica o apoio de toda a comunidade

na produção da Festa. O estatuto da Associação foi reformulado em 2011, permitindo

que todo e qualquer morador de Bonsucesso possa votar, bem como se candidatar à

diretoria da Associação. A participação na eleição e candidatura era permitida apenas

36

Conforme afirma Rita do Amaral (1998)

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àqueles que possuíam a carteira de pescador profissional, aparentemente restringindo

esta atividade política apenas aos homens37

.

A pesca no Rio Cuiabá é uma atividade em declínio. A escassez do pescado é

atribuída à instalação de uma barragem de energia elétrica rio acima, que segundo os

pescadores alterou o fluxo das águas, prejudicando a reprodução dos cardumes. Não se

pode pensar em fazer uma festa com peixes doados pelos pescadores, como era feito até

a década de 1990. E ao final das reuniões da Associação há sempre discussões sobre a

situação da pesca, os fluxos do rio, a situação dos pescadores. A Associação também se

coloca como um espaço em que se atualizam os assuntos do cotidiano e do pescador.

A Associação de Pescadores de Bonsucesso surgiu em 1980, por intervenção da

Colônia de Pescadores Z1, órgão que cuida das questões legais dos pescadores. Na

época o presidente era o mesmo que estava por trás do início da festa de São Pedro, e

que era também fiscal da superintendência de pesca, no tocante a questões de pesca no

rio Cuiabá. O órgão criou uma série de reservas pesqueiras ao longo do rio, territórios

onde se concentravam o maior número de pescadores, e consequentemente nas

comunidades ribeirinhas. Nestes locais só era permitido pescar com anzol, ou seja, a

idéia era criar áreas que fossem preservadas e fiscalizadas pelos próprios moradores. Ao

longo da comunidade de Bonsucesso, em 1 km de rio não se poderia jogar rede ou

tarrafa, tentando evitar a pesca predatória. Para cuidar das reservas, o presidente foi até

as comunidades e criou uma série de associações. Hoje em dia, a competência sobre a

pesca não fica mais somente com o IBAMA e foi passada a fiscalização para a

Secretaria Estadual de Meio Ambiente, tendo uma subsecretaria voltada para a pesca.

As reservas pesqueiras também não funcionam mais. Em Bonsucesso ao contrário das

outras localidades, a Associação não morreu, ela tomou outro significado e outra

função, fazer a Festa do Pescador. Não se sabe ao certo quando a Associação tomou esta

função para si, mas foi logo no início da festa na década de 1980. Naquela época ela

exercia as duas funções, cuidar da reserva pesqueira e buscar apoio para a festa, que era

pequena e que, portanto, não exigia um grande dispêndio de tempo e trabalho como

37

É evidente o domínio masculino dentro do universo da Associação, e, apenas uma mulher conseguiu até

hoje ser presidente da Associação. Embora neste caso “Festa de São Pedro a Festa do Pescador”

apresente-se o tempo todo considerações sobre o gênero nas narrativas das festas, não as abordaremos

aqui. Haveria necessidade de uma extensão da pesquisa para avaliar os papéis de gênero tanto na

Associação, quanto na organização da festa, bem como tal questão se apresenta no mito fundacional do

festejo.

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demanda hoje. Conforme a festa foi crescendo essa demanda de tempo e trabalho foi

aumentando, e consequentemente foi aumentando a importância da Associação.

Com a Associação surge a figura da “diretoria”, é ela que vai atrás dos

patrocínios, dos agentes culturais para elaboração de projetos, da contratação de bandas,

incentivo de comerciantes, da prefeitura para viabilizar infraestrutura, etc. O presidente

da diretoria é a figura central do processo, dele se exige a maior parte do trabalho e do

tempo necessários à realização do evento. O presidente acaba sendo enquadrado como o

responsável pela manifestação e como principal mediador entre o planejamento dos

organizadores e o contato com os fornecedores de pescado e órgãos públicos.

A representação social e a teatralização da identidade

Podemos dizer que angariar fundos para a elaboração da festa é uma tarefa árdua

e que para os organizadores acaba por se traduzir num drama social na concepção de

Victor Turner (2008) onde o drama tem como ponto essencial uma ação que rompe com

o que é vivido cotidianamente quase que de modo automático, e, que desencadeiam

processos compensatórios. De certa forma, os organizadores enxergam seu trabalho

como um drama, sendo a festa um rompimento com a rotina e sua ênfase na alegria se

dá através de alguns momentos em que o lazer prevalece sobre aquele árduo trabalho. A

cada ano, seis meses antes da festa eles começam a procurar pessoas que possam

elaborar projetos culturais, que possam fazer mediações políticas, acompanhá-los à

Assembleia Legislativa, que façam a publicidade, que financiem gasolina, enfim, uma

série de tarefas que exige muita negociação e dispêndio de tempo. E a cada grupo que

passa pela Associação alimenta-a de experiências, de contatos e dramas.

Em 2011, após dois anos sem apoio do poder público, a Associação decidiu

contratar um agente cultural para ajudá-los a organizar o evento. A idéia é a de que a

necessidade de profissionalismo para a realização do evento é algo necessário para

situá-lo como evento turístico e de visibilidade no cenário da região. E, portanto, os

organizadores se põem a aprender com alguém que possa mostrar-lhes alguns meandros

necessários ao profissionalismo do evento. Principalmente porque cada vez mais se

pretende a construção de um evento mais bem estruturado, e assim até o ano da Copa do

Mundo de 2014, que no caso coincidirá com o mês da festa, junho, que para os

envolvidos com a organização será o auge da visibilidade da festa, quando irão “lançá-la

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para o mundo”. Parte-se do pressuposto de que para projetar a Festa para fora da

comunidade é necessário organizar o discurso e as idéias.

A busca pela “profissionalização” da Festa não é incompatível com o

acionamento das noções de tradição e patrimônio. Em meu contato com os moradores,

organizadores e festeiros, o principal argumento que se percebe no discurso sobre a

festa é o argumento da tradição, isso consta claramente no projeto cultural que foi

construído em 2011 para apresentação na Secretaria Estadual de Cultura de Mato

Grosso. Além disso, é amplamente acionada nas falas dos entrevistados a ideia de que a

festa é tradicional, de que o Bonsucesso é a raiz de Várzea Grande, pois são filhos de

ribeirinhos, pessoas que foram do campo e que ergueram a cidade, além da construção

da noção de que Bonsucesso é uma comunidade unida.

“A festa é tradicional”; “Bonsucesso é a raiz de Várzea Grande”; “Somos filhos

de ribeirinhos, pessoas que vieram do campo e que ergueram a cidade”; “A comunidade

é unida”, são frases bastante proferidas quando o assunto é a Festa do Pescador. Ao

relatar as dificuldades de financiamento e apoio, o presidente da Associação se queixa:

Ninguém oferece verba, os empresários só oferecem produtos, como

se a gente não tivesse outros gastos com a festa, só com arroz. Você

acredita, como pode ser isso, né? A festa é importante para o

município e até para o Estado. Ela é uma festa tradicional, já se

tornou um patrimônio cultural, e a prefeitura, o governo, as empresas

não estão nem aí pra gente, nem para o nosso bairro.

Ao empregar algumas noções exploradas no campo científico e pelas políticas

culturais, o presidente da Associação dá um uso singular a elas, re-significando as

noções para legitimar o seu discurso. As noções que permeiam a caracterização do

evento como tradicional e patrimônio cultural estão embasadas em concepções

temporais, ou seja, a festa remete a um passado longínquo. Passado longínquo este que

não se remete necessariamente ao período de existência da Festa, quando inquiridos os

moradores afirmam que o evento tem 31 anos. O que a qualifica como tradicional é o

lugar da festa, Bonsucesso, uma localidade “antiga”, originada de uma sesmaria, cuja

população é ribeirinha e, portanto tudo que é produzido lá seria “tradicional” e um

“patrimônio cultural”.

A idéia de que a Festa não é simplesmente uma festa, mas sim uma manifestação

da tradição, um patrimônio, revela que é necessário para os organizadores enfatizar o

lugar social e político que a comunidade adquire quando situada em relação ao

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município de Várzea Grande. Assim, o presidente da Associação se constrói também

como pessoa “importante”, alicerçado no jeitinho brasileiro, onde sua autoridade é

afirmada no sentido de demonstrar que o sistema é hierárquico e inapelável

(DAMATTA, 1986, p.101). A maneira de me receber propõe isso, ele sempre marca os

dias de encontro, de maneira que seja reservado um tempo só para mim, mesmo que

curto, mas que ele possa dedicar total atenção a minhas indagações, formalizando assim

nossos encontros. A maneira com que ele se apresenta nos órgãos públicos, sempre

enfatizando ser o “presidente”, também é bastante reveladora. Nestes eventos, ele é o

primeiro a entrar, o primeiro a falar, e em sua fala sempre faz menção ao “coletivo”,

usando expressões como “nós viemos aqui hoje”, “nós estamos indo atrás de tal

pessoa”.

Mas dizer que a festa é tradicional, e que, portanto, todas as demandas devem ser

supridas pelo poder público não implica em resultados objetivos. O presidente tem

consciência de que não é tão simples assim, por isso a necessidade de aprovar um

projeto cultural, de busca por suporte na iniciativa privada, de busca por “padrinhos” da

festa, escolhidos entre os comerciantes do município.

E neste movimento a utilização das noções de tradição e patrimônio é muito

importante, pois cativam os contatados e constroem o apelo emocional. Elas

contextualizam a manifestação sendo o ponto de partida do apelo, seguidos dos

argumentos como o descomprometimento do poder público, o descaso com uma

localidade importante como Bonsucesso. Construir a Festa como patrimônio e tradição

coloca Bonsucesso em situação privilegiada. Mesmo com todas as dificuldades para a

realização da Festa, a Associação recebe algum tipo de apoio. Outros bairros de Várzea

Grande encontram grandes dificuldades para executar “projetos culturais”, não

conseguindo apoio nem na esfera pública nem na privada.

Recentemente a noção de “patrimônio imaterial” tem sido enfatizada pelos

órgãos públicos partindo da premissa de que há uma série de manifestações que não

eram contempladas em termos de um amparo legal de modo a assegurar sua

manutenção:

Durante 12 anos essa imaterialidade foi, de certa forma, inapreensível

pela lei. De 1988 em diante um grupo ligado ao estado pôs-se a

trabalhar na construção de uma regulamentação de políticas para a

área. O esforço resultou no Decreto 3.551 de 4/8/00, que institui dois

instrumentos de salvaguarda e proteção do patrimônio imaterial: o

registro e o programa que dão ao inventário cultural de bens imateriais

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ênfase e centralidade. Passam, assim, a existir “novos” mecanismos,

importantes para a valorização e proteção do patrimônio cultural,

sobretudo das culturas populares. (VIANNA, 2004, p.15.)

Trata-se de festas, folguedos, modos de fazer de artesanato, culinária, etc., ou

seja, um conjunto amplo e pouco delimitado de manifestações e saberes que requerem

medidas de proteção que ainda não tinham sido estabelecidas. Estes modos de ser e de

fazer certamente constituem diferenças sociais e são encarados pelos órgãos como um

meio de acesso a direitos e cidadania.

Temos assistidos nos últimos anos inúmeros movimentos e processos

de construção de identidades, revitalização de expressões culturais,

enfim, ações que apontam para um conjunto de representações que

designam um momento de resgate das tradições culturais. É sabido

que, para que uma tradição permaneça existindo ela deve modificar-

se. Neste sentido, uma justificativa para a retomada da tradição, da

memória e dos processos de construção identitária, por meio do

patrimônio imaterial, sem que isso signifique uma volta ao modelo

folclorista, consiste no peso dado à criatividade (ROCHA, 2009,

p.230).

Segundo Gilmar Rocha (2009) noções como a de tradição e patrimônio são

operacionalizadas por atores da cultura popular na medida em que se tornam

instrumento dentro de suas realizações. O discurso do presidente é construído a partir de

uma abstração desta discussão.

Para valorizar a Festa, é necessário categorizá-la como um patrimônio para que

seja reconhecida e assim alcançar os resultados. Construírem-se como detentores de um

patrimônio e de uma tradição colocam-nos em situação privilegiada. Eles acabam sendo

apoiados, mesmo que passem por dificuldades, constituindo-se num setor diferencial da

cidade, já que pessoas de outros bairros encontram grandes dificuldades para executar

projetos culturais, não conseguindo apoio nem na esfera pública nem na privada.

Outro ponto que ressalto trata-se do que acaba acontecendo com a(s)

imagem(ns) que a Festa expõe. A visibilidade dela também pode implicar em riscos e

conflitos. O presidente da Associação enfatiza que todo mundo está preocupado em

“usar da festa”, usurpar os ribeirinhos como era feito no passado: jornalistas, fotógrafos,

políticos, comerciantes, tanqueiros de peixe, agentes culturais. Ele diz que já foram

procurados por quatro tanqueiros, cada um com propostas de vendas diferente. Mas

enfatiza que todos querem vender o pescado, nenhum se propõe a doar nem sequer um

quilo de peixe. Ele conta que no dia da Festa o número de repórteres querendo

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entrevistar os moradores é tão grande, que eles nem desfrutam do lazer. E que os flashes

chegam a incomodar os moradores e pessoas que almoçam.

Mais uma vez aqui a produção da festa coloca-se como um drama repleto de

ambiguidades e conflitos. No entanto, neste novo formato da festa, que pressupõe busca

por apoio, por recursos financeiros e por visibilidade, é preciso assumir os riscos da

“usurpação”. E uma das estratégias para superá-los é o acionamento da dinâmica da

troca, já ressaltada em outro momento desta dissertação. A fala abaixo é do presidente

da Associação e constitui-se num apelo para a inserção do próprio pesquisador nesta

dinâmica:

Agora é o momento de fazer aparecer a demanda, a população, já

selecionei alguns políticos eleitos, vereadores e deputados para onde

vou levar o projeto da festa, fotos e quero que você vá também, um

pesquisador, para eles verem que o negócio é importante. Eu vou em

alguns comitês, e se for necessário vou ficar lá até a pessoa aparecer,

vou vencer estes políticos pelo cansaço, porque eles tem que ajudar.

Podemos perceber a importância da noção de visibilidade da Festa. Para isso ele

criou um site para divulgar o evento e as peixarias da localidade. Ele também quer

investir numa produção fílmica da festa, a gravação de um DVD que ele enviará para as

televisões buscando apoio para o ano de 2012. Quando ele diz: “Agora é o momento de

fazer aparecer a demanda, a população”, refere-se à necessidade de visibilidade para

consecução do evento. Ele então tenta buscar os meios para consegui-la, visitas a

políticos e comitês de partidos, empresas; sempre munido de fotos, de sua direção, de

um pesquisador, objetos que legitimem a “tradição”. Essa narrativa demonstra a

compreensão das potencialidades que a mídia e a visibilidade podem dar à festa, de que

se inserir no espaço midiático e político é reestruturar aquela festa “autêntica”, onde

atualmente devem ser buscados elementos que a impulsione perante estes setores,

demonstrando assim que os fenômenos culturais folk ou tradicionais são produtos

multideterminados de agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos. Por

conseguinte é possível pensar este popular como um processo híbrido e complexo,

procedentes de diversas classes e grupos (CANCLINI, 2003, p 221).

Conforme destacado no Capítulo III, a religião, que era o foco principal da festa

em seu início, agora se mescla a outros elementos, como o turismo, o lazer para a

cidade, o consumo. Como um micro-sistema dentro da festa a religião é elevada a

“tradição” que não pode mudar, ela é referência de memória, da localidade de

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pescadores que necessitam da bênção de São Pedro. A festa ainda que possuindo

fortemente o seu lado católico não é apenas uma manifestação do catolicismo, mesclam-

se políticas culturais, visibilidade e mídia. A sua proposta enquanto Festa do Pescador

vem suprir uma demanda pela expansão e por visibilidade da localidade e a sua

demanda por turismo e renovação da produção da localidade. Fazer a festa hoje

transparece uma necessidade de ter cada vez mais alcance e notoriedade, e que, por

conseguinte seria também a visibilidade da localidade. A Associação ocupa um lugar

fundamental nestas dinâmicas.

Portanto, saber fazer a Festa do Pescador, diferente da festa de São Pedro, é

saber tecer redes sociais mais amplas, para além da comunidade, ao mesmo tempo em

que é também saber reforçar no discurso uma idéia que a localidade tem de si,

principalmente calcada no ideal de união e harmonia. A “Festa de São Pedro” quando

ela surgiu pode ter sido uma manifestação que encontrava sentido na organização

interna das relações pessoais. Atualmente, num contexto mais complexo de relações

sociais, interessa para os moradores realizar também uma “Festa do Pescador” na

medida em que seu enfoque é justamente a extensão das relações com diversos setores

da sociedade, e de se afirmar a identidade do ribeirinho perante a sociedade várzea-

grandense e cuiabana, promovendo a produção local do pescado.

A Associação conseguiu se tornar uma figura central da festa, dedicando maior

atenção à comensalidade e ao baile, momentos que são comerciais. Os ritos religiosos, e

a comunhão com o santo colocam-se como algo interno à própria localidade, de cunho

mais restrito. A procissão seria nesse sentido um desfile da identidade, uma mediação

entre os momentos sagrados e profanos.

Um dos elementos que impulsionam a Festa enquanto manifestação turística e de

lazer é o peixe, cardápio principal da Festa e momento mais esperado e explorado em

termos de visibilidade pelos organizadores. De fato várias emissoras de televisão vêm à

comunidade para filmar a limpeza e fritura do pescado. É nesse momento que

percebemos claramente processos próximos àqueles nomeados por Marshall Sahlins

(1996), de indigenização da modernidade, onde a consciência da cultura é tomada como

partido para a ação social. Os organizadores espetacularizam o momento dispondo o

peixe frito dentro de uma canoa para ser fotografado.

Em entrevista com a dona da primeira peixaria da localidade, Dona A., a mãe do

presidente da Associação, ela se diz sentida em relação a algumas coisas na Festa,

“coisas que se perderam”. Ela diz que naquele tempo (quando a festa começou) era

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bonito ver o festeiro organizando as pescarias, ele ia atrás dos pescadores formava os

grupos. As mulheres todas ficavam esperando os homens voltar na beira do rio, depois

escamavam os peixes. Ela disse que neste ano de 2011, o filho dela quer comprar o

peixe já fatiado, e que vai comprar uns 200 quilos só para a televisão vir filmar. Mesmo

com o crescimento da festa, com o aumento do número de fregueses, ela diz que seria

bom se ainda fosse possível dar o peixe. Por trás deste manejo com o pescado e o seu

caráter de dádiva reside a idéia de autonomia da comunidade:

Se o rio pudesse dar o peixe para o povão, ai continuaria tradicional

como era antigamente, ai não estaria incomodando ninguém, nem

pedindo nada para ninguém, e a comunidade ia estar envolvida para

fazer a festa, pois não ia sair caro, não teriam esses luxos, essas coisas

que cada um cobra uma coisa. (Dona A.)

Em relação à tradição da culinária local, ela diz:

O que eu faço de comida é aquilo que os cuiabanos faziam, e nós

estamos usando até agora. A única coisa que mudou foi que antes o

peixe era acompanhado de arroz sem sal, e agora tem sal, e alguns

nomes também mudaram, como escabeche, na realidade é peixe ao

molho, esse foi clientes que colocaram, mas, por exemplo, a mujica é

a mesma coisinha. O peixe é o que garante a festa de São Pedro.

A idéia de que o peixe garante a presença das pessoas está no imaginário dos

moradores de Cuiabá e Várzea Grande: se você quiser comer um bom peixe, nos moldes

“tradicionais”, deve-se ir até estas localidades ribeirinhas. O momento da festa é uma

oportunidade ímpar, pois o preço acessível a uma grande quantidade de pescado salta

aos olhos das pessoas. Portanto o “peixe” enquanto categoria simbólica, e aquilo que ele

representa enquanto mote identitário é um símbolo prestigiado em Bonsucesso.

Conforme já enfatizado, um dos elementos que impulsionam a Festa é o peixe,

cardápio principal do evento. A peixada é o momento mais esperado e explorado em

termos de visibilidade pelos organizadores. Ao passo que as televisões vêm à

comunidade para filmar a limpeza e fritura do pescado, os organizadores também

espetacularizam o momento dispondo o peixe frito dentro de canoas para ser

fotografado.

Portanto, conforme se pode perceber a diferenciação da Festa perpassa pelas

novas imagens que ela edifica, bem como pela dinâmica social que ela incorpora. Desta

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forma a cultura é posta em ação através dos cruzamentos dos diversos setores que

compõem a cultura de Bonsucesso.

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Considerações finais:

Hoje em dia o evento reúne moradores das cidades de Cuiabá e Várzea Grande.

Mesmo com todas as alterações no formato, o evento é um momento privilegiado para a

exibição da identidade do ribeirinho pescador e de um local abençoado por São Pedro,

capaz de oferecer em abundância refeições para o público. Bonsucesso afirma-se a nível

regional como um pólo na área do turismo por sua história e tradição. A categoria

tradição atua neste universo social, visto que constitui uma categoria êmica dos

colaboradores deste trabalho.

O cardápio principal de nossa festa é o peixe; servido em comércios montados,

em espaços privados - residências de moradores - que se tornam públicos com a grande

circulação de gente que se aglutina para um lazer de final de semana. Este espaço

intersticial se torna híbrido: reúne a família, o trabalho, o turismo, religião e no âmbito

político um complexo jogo de identidades.

Visando perceber quais movimentos se intercalam no que tange à produção,

difusão e propagação cultural diante das práticas exercidas nas festas populares na

Baixada Cuiabana, objetivou-se acompanhar e analisar as estratégias, atitudes e

discursos que essa população empreende para por em voga a Festa de São Pedro,

buscando uma re-significação da festa religiosa, na Festa do Pescador enquanto

possibilidade de gerar renda, trabalho, além de diversão e fé.

Os discursos sobre a festa aqui apresentados exibem as forma de se fazer

representar perante o poder público, a ênfase no turismo local, e como se manifestam

neste processo as construções e exibições de “identidades”.

As identidades são construídas em dois âmbitos que não são excludentes, mas

sim complementares: para dentro – relações e dinâmicas internas da “comunidade”, e

para fora – relações estabelecidas entre a localidade e as cidades de Cuiabá e Várzea

Grande (visitantes, turistas, políticos, empresários, jornalistas, pesquisadores).

Atuando nas dinâmicas da Festa para fora, notamos o papel central da

Associação dos Pescadores, com destaque para o lugar ocupado pelo presidente. Na

realização da festividade que transita entre a Festa São Pedro e a Festa do Pescador,

algumas pessoas destacam-se, tornando-se lideranças comunitárias, efetivando o diálogo

com o poder público, tratando nesses “encontros” de questões para além da festa, como

melhorias para o bairro, acesso à cidade, busca por fontes de renda.

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A realização de uma “boa” festa coloca-se como fator de prestígio para aqueles

que estão diretamente nela envolvidos. Nas festas de santo da região podemos perceber

uma riqueza nos fluxos e fronteiras, onde dependendo das imagens envolvidas diversos

elementos podem se aliar e misturar-se. Um traço que podemos salientar é o fato de

algumas pessoas se destacarem por se tornar lideranças comunitárias efetivando um

papel cívico de organização social e política da localidade.

A festa também constrói um imaginário sobre as relações que são tecidas

internamente na localidade, positivam a participação e restringem socialmente aqueles

que não participam da construção do evento. Além de se constituir como fator de

prestígio para aqueles que estão diretamente envolvidos.

Constrói também uma imagem do local, de sua importância social, cultural e

política e a reatualiza perante a cidade. As festas servem então, como um fator de

mediação entre a cultura e ação, entre a representação social da tradição e o representar-

se a si próprio e o representar-se para os outros. Fazendo com que a produção de

identidades para dentro e para fora da localidade se cruzem e se misturem na dinâmica

do evento festivo.

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