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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA JULIANA CRISTINA CURVO A POÉTICA DA CRIAÇÃO NO PROCESSO DE UM FILME: O CASO DOS FAMOSOS E OS DUENDES DA MORTE CUIABÁ, 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE

CULTURA CONTEMPORÂNEA

JULIANA CRISTINA CURVO

A POÉTICA DA CRIAÇÃO NO PROCESSO DE UM FILME: O CASO DOS FAMOSOS E OS DUENDES DA MORTE

CUIABÁ, 2012

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JULIANA CRISTINA CURVO

A POÉTICA DA CRIAÇÃO NO PROCESSO DE UM FILME: O CASO DOS FAMOSOS E OS DUENDES DA MORTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa em Poéticas Contemporâneas.

Orientadora: Prof. Dra. Maria Thereza Azevedo

CUIABÁ, 2012

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JULIANA CRISTINA CURVO

A POÉTICA DA CRIAÇÃO NO PROCESSO DE UM FILME: O CASO DOS FAMOSOS E OS DUENDES DA MORTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa em Poéticas Contemporâneas. APROVADO: BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo (Ecco/UFMT) ______________________________________________________________ Profa. Cecília Almeida Salles (Pós-graduação em comunicação e semiótica – PUC/SP) ______________________________________________________________ Profa. Ludmila de Lima Brandão (Ecco/UFMT)

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RESUMO

O Processo de criação cinematográfico é o foco deste trabalho, quando este é exposto

na internet, um estudo de caso com o filme brasileiro "Os Famosos e os Duendes da

Morte" (2009). Procedimento que pode ser característico da arte contemporânea, a

exposição do processo disponível na internet traz a idéia de que as coisas se

expandem e se convergem para a elaboração de um novo fazer cinematográfico, com

uma poética contemporânea, onde o resultado final é elaborado em conjunto, cheio de

sobreposições e contaminações. Os indícios de criação disponíveis na internet

levaram ao acesso dos documentos de criação do filme e às misturas de atividades que

gerou a obra, dando idéia de um procedimento que apresenta linguagem originada

pela colaboração artística e é polifônica com a supressão de autoridade na relação

entre autor e personagem. Com a observação do processo, reconhece-se um fazer

cinematográfico não representativo e abrangente, recolhendo outras manifestações

artísticas no seu percurso. Neste trabalho é abordado o processo de criação, mais

precisamente, na análise dos rastros que a obra deixou em aberto pelo mundo virtual,

pelo ciberespaço, com base em Almeida Salles. A crítica genética foi o método

escolhido para cercar a criação.

Palavras-chave: processo de criação, cinema, cinema contemporâneo

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ABSTRACT The process of creating film is the focus of this work, when it is exposed on the

Internet, a case study with the Brazilian film "The Famous and the Dead" (2009).

Procedure that may be characteristic of contemporary art, the exhibition process

available on the Internet brings the idea that things expand and converge to the

development of a new filmmaking, with a contemporary poetics, where the end result

is drawn together , full of overlapping and contamination. The evidence provided in

the following internet access of documents led to the creation of the film and mixtures

of activities that generated the work, giving the idea of a procedure that has caused

the language is polyphonic and artistic collaboration with the abolition of authority in

the relationship between author and character. With the observation of the process, it

is acknowledged making a film that is not representative and comprehensive,

collecting other artistic events on your route. This paper addresses the creation

process, more precisely, the analysis of traces that the work has left open the virtual

world, in cyberspace, based in Almeida Salles. The genetic criticism was the method

chosen to surround the building.

Key-words: process of creation, cinema, contemporary film

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AGRADECIMENTOS Aos meus pais, que me ajudaram a chegar até aqui; Ao meu filho, pela parceria de vida; Ao Fernando Pires, por todo o cuidado, amor e generosidade; Aos meus amigos, pela intimidade e força, em especial Inara Fonseca, Caroline Soares, Viviane Rocha, Hugo e Rodolfo Polzin, que são meu bando, meu coletivo; Aos professores do Ecco; Aos meus colegas de estudo, aos grupos de pesquisa que participo; A Cecília Almeida Salles e Ludmila L. Brandão, por terem aceito analisar o trabalho e por toda a colaboração que fizeram; Ao Esmir Filho e Ismael Caneppelle, pelo filme e por todo o processo; E A Maria Thereza Azevedo, minha orientadora, por toda a troca que permitiu, por todos os limites em que me levou e por ter permitido meu aprendizado.

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SUMÁRIO RESUMO .................................................................................................. 4 ÍNDICE DE IMAGENS .......................................................................... 8 CAP. 1 - O PROCESSO DE UM FILME ............................................ 17

CAP. 2. A EXPERIÊNCIA COMO METODOLOGIA ..................... 43

Cap. 3 – PENSAMENTOS COMPARTILHADOS ........................... 51

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... 67 5. BIBLIOGRAFIA ............................................................................... 71

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ÍNDICE DE IMAGENS Imagem 1: fotolog de tuane, com uma maquiagem como a da personagem. Foto realizada no ano de 2008, anterior às filmagens. ......................................................... 20 Imagem 2: Frame (captura de imagem) do filme, onde Tuane aparece com a mesma maquiagem. .................................................................................................................. 21 Imagem 3: o canal no youtube criado por J. Jingle Jangle (personagem interpretada por Tuane Eggers) ........................................................................................................ 27 Imagem 4: resposta do youtube sobre a procura pelo canal de vídeos de Tuane Eggers...................................................................................................................................... 28 Imagem 5: fotografia realizada por Tuane Eggers, antes de participar do filme ......... 31 Imagem 6: o convite feito pelo diretor Esmir Filho para Henrique Larré fazer um teste para o filme Os famosos e os duendes da morte .......................................................... 34 Imagem 7: foto dos participantes finais da oficina de preparação de elenco ............... 35

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INTRODUÇÃO O filme Os famosos e os duendes da morte (2009), de Esmir Filho, pode ser lido

como um filme melancólico, de um adolescente triste, em uma cidade do interior do

Brasil. Neste ambiente há a falta de perspectiva para o futuro do adolescente em

questão. Há as suas vontades que não poderiam ser saciadas no pequeno vilarejo onde

vive. Ainda, o filme aborda as primeiras descobertas e medos do personagem

adolescente, com a sua consciência da solidão, da solidão da sua mãe, das ausências,

dos desejos. Mas, neste trabalho a análise do filme não será sobre o seu conteúdo.

O filme de Esmir serve como estudo de caso para este trabalho, pois deixou latente o

seu percurso no ambiente virtual da internet, sendo inevitável olhar e refletir sobre o

trajeto, os documentos processuais e as singularidades da formação da obra. Seguindo

uma certa tendência do cinema contemporâneo independente, Os Famosos e os

duendes da morte mistura texturas (vídeo, película 35mm e película super-8), utiliza

atores não-profissionais (atores locais) e vídeos e fotografias digitais. Dialogo, a partir

disso, com conceitos do contemporâneo que aborda as misturas, hibridismos e

polifonia. E como método de pesquisa utilizo a critica genética, com a análise do

processo criativo.

São muitas as maneiras de se nomear o objeto de um estudo que parte do processo:

aquilo que está em elaboração, inacabado, processo contínuo, trabalho em rede,

dialógico, colaborativo. E são muitos os trabalhos que oferecem indícios de sua

criação, como acentua Cecília Salles: “Muitos artistas oferecem uma grande

diversidade de explorações desses limites.” (Salles, 2010, p. 222)

Neste trabalho, ainda, parte-se de um filme pronto para o seu processo e da

observação do espaço de criação, para as teorias que abordam as poéticas

contemporâneas e os pensamentos compartilhados. O espaço de criação, no estudo de

caso deste trabalho está além dos limites físicos (estúdio, escritório, ateliê, set de

filmagem), envolvendo também a memória e o imaginário do artista (Salles, 2009).

Perpassa-se, nesse espaço não delimitado e exposto com a internet, questões do

contemporâneo, da arte, das subjetividades coletivas e múltiplas até a expansão das

coisas, em uma interface cérebro-máquina utilizada para aumentar o alcance do ser

humano.

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Todo o trabalho começou ao tentar encontrar características de uma criação artística

contemporânea em filmes de ficção brasileiros. Não estava no foco de interesse

videoarte, videoinstalação, ou transcinema. A maior parte do interesse estava naquele

cinema classificado de nicho por Hadija Chalupe

Diz respeito a um tipo de filme que atende a um segmento restrito de público e de mercado. Ele também pode ser chamado de ‘miúra’, devido à sua dificuldade de inserção no mercado. É um filme que, geralmente, não é atendido pelas ações tradicionais de marketing. Isso não significa que seja um filme com baixo ‘potencial comercial’, pelo contrario, pode se revelar um grande sucesso. (CHALUPE, 2011 p. 18)

A procura pelo objeto do estudo de caso, o filme, já é parte da investigação inicial. A

vontade era encontrar entre os filmes de “nicho”, algum número de obras de longa-

metragem, de ficção que se utilizasse de novas tecnologias, em uma rede de

transformações, em busca por novas possibilidades, experimentando novas narrativas.

Uma espécie de Transcinema popular, ou seja, um "cinema como interface, isto é,

como uma superfície na qual podemos ir através" (MACIEL, 2003, p. 33) e que tenha

sido exibido em salas comerciais, com um público considerável.

Desta maneira, comecei a leitura de algumas obras. Passei por diversos diretores

como José Eduardo Belmonte, Cláudio Assis, Marcelo Gomes e Karin Ainouz, Laiz

Bodansky, Felipe Hirsch e Daniela Thomaz, até, em uma manhã de primavera, eu

conhecer a obra do diretor paulistano Esmir Filho. Seu primeiro longa-metragem,

depois de uma carreira considerável como curta-metragista, diretor de um dos vídeos

mais acessados no canal do youtube no ano de 2008: “Tapa na Pantera”, além de

prêmios e consagrações em festivais de cinema espalhados por aí. Com este, apareceu

o que eu pensava que seria o objeto de pesquisa: a criação cinematográfica em várias

frentes, plataformas, redes sensoriais, mídias. Mas, o fato é que o processo de criação

estava exposto na internet, graças ao blog do roteirista, ao canal no youtube do

diretor, ao fotolog de alguns atores do elenco principal. O objeto saltou aos meus

olhos, com a sua exposição dos documentos de criação. E algumas primeiras

perguntas surgiram: por que expor o processo de uma narrativa? O que é isso que a

internet expõe? O processo na rede coloca o filme dialogando com a rede?

O filme Os famosos e os duendes da morte foi “adaptado” de um romance, mas, o

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romance só foi lançado oficialmente após a existência do filme. O roteirista do filme é

autor do romance. É ator, também, no filme. Fotografias que uma jovem disponibiliza

na internet, fazem parte da narrativa do filme e, por sua vez, vão aparecer no romance.

Para dar conta dessas relações, um tanto confusas, estabelecidas no filme, utilizo

Bourriaud (2004), com o conceito de pós-produção:

Pode-se dizer que esses artistas que inserem seu trabalho no dos outros contribuem para abolir a distinção tradicional entre produção e consumo, criação e cópia, ready-made e a obra original. Já não lidam com uma matéria-prima. Para eles, não se trata de elaborar uma forma a partir de um material bruto, e sim de trabalho com objetos atuais em circulação no mercado cultural, isto é, que já possuem uma forma dada por outrem.” (BOURRIADU, 2004, p. 8)

O método de observação utilizado neste trabalho, para dar conta das relações

construídas no processo de criação do filme é a critica genética. O desejo de conhecer

a fabricação de uma obra de arte pode estar em função do fascínio que ela exerce, o

encantamento que leva à descoberta dos passos que o artista deu até alcançar o que

expôs como resultado. A razão das suas escolhas, o fato de ter tomado um caminho e

não outro. Não é ao acaso que biografias, diários de escritores e rascunhos de artistas

visuais são vendidos e lidos por muitos, sendo quase sucesso popular. Ao menos,

pode-se dizer que o gosto por estes é grande. Contudo, ao trabalho científico, ao

mergulho e sobressaltos do pesquisador no processo, é resguardado o conceito de

crítica genética, segundo Salles (2009, p. 15) "que lida com os documentos de

processos criativos na arte e na ciência”.

A função da critica genética está justamente na relação ciência e arte: pesquisa

científica em arte sendo abordada e tratada de forma diferente da “pesquisa de grupos

de artistas”. A idéia do trabalho científico não é a criação de objeto de arte, mas sim

demonstração, ou ao menos tentativa de mostrar as suas metamorfoses, permitindo

conhecê-lo melhor através do seu processo. Os documentos de criação, os rastros da

obra do cineasta paulistano, bem como do romance, estão disponíveis na internet, com

blog do roteirista, canal no Youtube do diretor, fotolog da jovem, que vem ser atriz

na trama fílmica, alem das entrevistas concedidas pela equipe de realização. Neste

trabalho, não se entrou em contato direto com o diretor ou o roteirista do filme. Não Sitio eletrônico que permite usuários carregando, assistindo e compartilhando vídeos em formato digital. Foi considerado, pela revista americana Time, um site de grande prestígio, em 2006, para depois sem comprado pelo grupo Google, no mesmo ano.

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tive acesso aos diários de Esmir, nem se sabe se ele fez algum, nunca o ví

pessoalmente, não sei o seu cheiro, nunca encostei-lhe as mãos, como andas, não sei,

como comes, ou se gosta de café. A aproximação e as descobertas feitas sobre o filme

Os famosos e os duendes da morte foram possibilitadas pela internet. Em contatos por

mensagens em Rede Social, aproximei-me virtualmente de Esmir Filho (alem disso

trocamos um único e-mail). Este me falou das vantagens da internet, que eu

encontraria muita coisa por aí, por lá. Que ele conheceu o roteirista, Ismael Canapelle

por um blog, daí nasceu uma amizade e o filme todo foi pensado nesse ambiente, não

delimitado fisicamente. Na interface virtual, no ciberspaço os rastros foram sendo

desvendados, aproximando a obra final, pronta, com seus traços inacabados,

desvendando seus limites, ou a falta deles, e o trabalho compartilhado entre o diretor e

o roteirista.

Ciberespaço para André Lemos “é um espaço não-físico ou territorial composto por

um conjunto de redes de computadores através das quais todas as informações (sob as

suas mais diversas formas) circulam”. (2010, p. 127). Cabe dizer, também, que nesse

não-lugar geográfico, onde a possibilidade de produção e trocas de imagens, sons e

sensações é ilimitada, os processos foram preservados para um tempo além. Como se

aquilo que estivesse na tela, o filme pronto, não fosse uma obra acabada, fechada. No

sítio eletrônico do filme, na página em redes sociais, em vídeos, em fotos, em textos

de blogs, o filme continua. A ação continua até este dado momento, lguém pode

assistir ao filme em casa e depois entrar na internet e navegar pelos seus rastros,

braços, trocas. E, nestes mares, percebe-se as misturas, contaminações, hibridismos e

um processo aberto de realização.

O fazer colaborativo, que também aparece no processo do filme, pode ser

contaminado e híbrido e está muito alem de um mero esforço em conjunto. Busca-se

um fazer que tire o peso (ou o foco) dos ombros (ou face) de um diretor central, para

o espectador conhecer uma obra fruto de um processo compartilhado. Como acentua o

diretor teatral e pesquisador de teatro Araújo Silva,

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Cada um dos integrantes (de uma determinada equipe fílmica), a partir de suas feituras artísticas específicas, tem espaço propositado garantido. Alem disso, ela não se estrutura sobre hierarquias rígidas, produzindo, ao final uma obra cuja autoria é dividida por todos. (ARAÚJO SILVA, 2008, p. 5 – grifo meu)

Claramente, tal definição se contrapõe a idéia de um diretor uno, que centra todas as

funções em si. Agora, como observar tais traços no cinema? É possível, talvez, que os

filmes apresentem possibilidades de compartilhamento, mas, como observar o

processo de criação, onde o diretor não ocupa uma função central? Tomando-se

conceitos de desterritorialidade, hibridismo e mestiçagem, pode-se falar em um

processo de criação de um cinema compartilhado, onde os indícios da criação estão

disponíveis e acessíveis. Aí, entra a disponibilidade da internet, explorada e utilizada

na criação do estudo de caso deste trabalho. Contudo, uma nova questão surge a

exposição era proposital, ou mero acaso?

Com base nas definições sobre os estudos de critica genética a suposta visibilidade do

processo do diretor paulistano, não estava tão claramente exposta, havia espaços

obscuros, onde o que estava sendo visto, poderia indicar uma coisa e ser outra.

Citando Dietmar Kamper:

Ver é permanecer na superfície. A profundeza do mundo não é atingível pelo olho. E quando o olho se intromete, aumentam apenas os planos, as superfícies e as superficialidades. A era ótica o provou ex negativo. Seu lema "tornar visível tudo o que é invisível" era duplamente falaciosos. Não atingiu o antigo invisível e produziu uma nova invisibilidade. Está preso à visão um ofuscamento específico: quanto mais visibilidade, tanto mais invisibilidade (KAMPER, 1993, p. 57)

Nos espaços de pouca visibilidade surgem questões que vão delimitar o problema da

pesquisa: Por que deixar alguns documentos de criação expostos? Que documentos

são esses que a internet expõe? O processo na rede coloca o filme em dialógo com a

rede? O elenco principal só se formou por que estava tudo exposto na internet?

Alguns procedimentos observados no processo criativo de Esmir Filho e equipe

tornaram-se próprios de obras contemporâneas: uso de novas tecnologias, câmeras

digitais, uso de não atores profissionais no elenco principal, uma montagem dialógica,

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a trilha sonora é original, composta apenas para o filme e com valorização do som

ambiente. Utiliza-se na noção de continuidade espacial, definida por Noel Burch

“cada mudança de plano define-se, efetivamente, por dois parâmetros: um temporal e

um espacial” (2008, p. 32), mas, vai além, modificando a noção de tempo cronológico

e linear na obra. Tal noção, raramente se torna possível, na prática, de ser observado

em uma obra eletrônica, visto que a velocidade das linhas de varredura ultrapassa a

nossa capacidade de percepção. Poderíamos falar, assim, com o cinema que se utiliza

de tecnologias digitais, não mais na existência do tempo como medida de

cumprimento. Há apenas o tempo da narrativa, para ser inventado e experimentado

pelo criador artístico, para nos apresentar, observadores participantes do resultado

final. Ele não tem a obrigação de responder ao espectador: quanto tempo passou entre

esta e aquela ação? Com isto, deixa espaço para quem assiste a obra, é oferecido ao

olhar que assiste uma outra oportunidade de ler a passagem do tempo.

Além disso, este mesmo cinema acaba por ter uma inserção em novas tecnologias de

tratamento de imagens, utilizando a fotografia, o vídeo e a finalização (edição) digital.

Uma possível conseqüência deste traço é a sobreposição de procedimentos diversos,

que gera uma, também diferente, abordagem do tempo, com a simultaneidade de

imagens disponibilizadas para o espectador. Sobre esta nova configuração que o

espectador observa, Arlindo Machado (2007) acentua:

Toda essa simultaneidade, essa multiplicidade e essa velocidade com que os elementos audiovisuais são processados na tela podem dar a impressão, sobretudo a um espectador mais afinado com os planos limpos, unívocos e contemplativos do cinema convencional, de uma certa frivolidade ou de uma certa superficialidade, numa palavra, algo assim como uma irresponsabilidade, nada mais, enfim, do que um jogo de pirotécnica com as possibilidades de intervenção das máquinas (...) Mas essa maneira de encarar as coisas é simplória, para não dizer comodista e conservadora. Na meidada mesmo em que nos pomos hoje a navegar em ambientes multimídiaticos ou hipermídiaticos, qualquer nostalgia de pureza e simplicidade corre o risco de esconder uma certa incompetência para encarar a(s) realidade(s) sob uma ótica mais complexa ou menos inocente do que aquela que ainda acredita que a imagem registrada pela câmera pode nos dar alguma espécie de “revelação” primordial, que uma intervenção brutal das máquinas de processamento poderia destruir. (MACHADO, 2007, p. 241)

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Em relação aos métodos utilizados para este trabalho, recorreu-se à pesquisa

bibliográfica, principalmente na abordagem dos aspectos históricos, da crítica

genética, da criação coletiva e do cinema contemporâneo. Alem de conceitos do

contemporâneo que operam neste estudo de caso, como rizoma, subjetividade,

labirinto, dispositivo e mestiçagem. No recolhimento de dados empíricos, foram

acessados os blogs do roteirista, criados no momento da filmagem, os canais do

youtube do diretor, fotolog da atriz Tuane Eggers. Além de se ter lido o romance de

Ismael, que deu origem ao filme Os famosos e os Duendes da Morte. Os registros em

vídeo, as entrevistas, os textos postados e comentários nos blogs, bem como os

depoimentos dos participantes fundamentaram os estudos do processo artístico, a

crítica genética. Esta é a fonte principal do trabalho, para justo, a partir dela, ou a

partir da poética, do modo de fazer, discutir as características do cinema

contemporâneo e a possibilidade desse cinema ser consumido pelo público.

No primeiro capítulo, apresento a experiência do processo do filme. Como me

apropriei do material de estudo e como cheguei aos documentos do processo de

criação, as redes de criação e o processo do filme. No percurso do filme são vistos o

trajeto poético, a montagem, o processo coletivo, lembrando que "sem a interação a

obra não se concretiza", a relação com o receptor, a tradução de uma obra na outra

(romance no filme e filme no romance). Como o escrito no blog se parece com o

romance, que se parece com o filme, que “adaptou” o livro, que só virou obra lançada

depois da película no cinema.

No segundo capítulo, apresento uma discussão sobre a metodologia deste trabalho

com a critico genética, a razão da análise de processo, em especial a razão de tal

análise no tempo presente, em que os manuscritos são digitais, em que lugar fica a

critica do processo para a arte e o cinema contemporâneo é uma das questões

abordadas no capítulo.

No terceiro capítulo se discute sobre as questões do contemporâneo, trabalhando com

conceitos de rizoma, dispositivo, complexidade e labirinto, além de conceitos que

abordam a questão da arte, dialogismo, adaptação e tradução. Este capítulo é

basicamente teórico, criando um corpus que sirva de base para as transformações que

a arte contemporânea postula, e, neste caso, os novos procedimentos aplicados ao

cinema.

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Ao final são realizados alguns apontamentos, aproximando a teoria da análise do

processo. A intenção destes apontamentos é afunilar as questões do contemporâneo e

observar como alguns procedimentos vistos no processo podem ser considerados de

uma poética contemporânea.

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CAP. 1 - O PROCESSO DE UM FILME

1.1 SOBRE A CRIAÇÃO DOS FAMOSOS E SEUS DUENDES

Em um trabalho que utiliza como método a crítica genética, ou a crítica do processo, é

inevitável ao pesquisador mergulhar no processo e sofrer os mesmos "sobressaltos"

do seu objeto. É olhar o caminho do artista, mas percorrendo-o em um outro tempo.

Um trabalho prático onde cabe o papel de bisbilhotar, procurar, ver, ler e recolher

material como um detetive, aquilo que meu filho de quatro anos diz que será quando

crescer. Assim, separo "provas" de um filme que ocorreu, ou melhor, separo "provas"

do tempo em que o filme ainda não seria conhecido no seu formato fílmico. Olho um

outro tempo, como se ele ainda estivesse vivo, em função das possibilidades das

novas tecnologias: é como se eu olhasse o gerar da idéia. Após o momento de

bisbilhotar, aparece o de encontrar um corpus teórico que dê respaldo científico ao

trabalho de detetive, um pensar que vem a posteriori. O trabalho de recolher

documentos do processo de criação do filme Os famosos e os duendes da morte, de

Esmir Filho, começou quando eu pensava em fazer análise fílmica, para falar sobre o

cinema contemporâneo e a sua relação com outras artes e mídias. Eu ainda não havia

visto o filme quando me disseram sobre. Foi um colega, professor universitário, que

no início do ano de 2010 me indicou e recomendou para assistir Os famosos. Esmir

Filho eu já conhecia como diretor de dois curtas: Tapa na pantera (2007) e Saliva

(2006). Só consegui uma cópia do filme Os famosos, já em DVD, em meados do ano

de 2010, visto que o filme não entrou em cartaz nos cinemas de Cuiabá.

Eu assisti ao filme na primavera de 2010, sendo que até então eu seguia um outro

caminho para a minha pesquisa de mestrado. Estudávamos até, na época, a

possibilidade de realizar uma cartografia do cinema brasileiro de ficção. Assisti ao

filme sozinha, em casa e achei que ele fosse apenas mais uma obra que aborda a

temática adolescente, até eu perceber algo de diferente: talvez os vídeos, a mistura de

texturas, a trilha sonora, a fotografia, os diálogos, o elenco formado por rostos

desconhecidos, o sotaque gaúcho sem incomodar, ou melhor, o regionalismo gaúcho

me sendo tão próximo, me envolvendo na narrativa. A partir da primeira vez que

assisti, eu resolvi buscar mais sobre o filme e o primeiro passo foi a internet, os sítios

de busca, as entrevistas com o diretor e equipe, as criticas. Ainda neste momento a

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ideia era Os famosos ser mais um exemplo de um “novo” cinema brasileiro.

Ao começar a fazer algumas anotações, como se eu estivesse criando um mapa do

caminho percorrido por Esmir até chegar ao seu produto final, percebi que o processo

de criação do cineasta já era suficiente para uma dissertação de mestrado, bem como

para trabalhos posteriores. Foi olhando o processo de criação dele, que o foco e o

problema de pesquisa ficaram mais claros: a exposição do processo de criação de um

filme através da internet. Os documentos de criação estavam compartilhados através

da internet e qualquer curioso poderia olhar e descobrir algumas opções e

características da criação do filme. Qual a razão para se expor tanto o processo? Pode-

se definir o trabalho do filme como um work-in-process? Ou um work-in-progress?

Há o trabalho colaborativo da criação, onde o diretor Esmir Filho permite que as

fotografias e os vídeos de Tuane Eggers criem novas possibilidades para a narrativa.

E há o compartilhamento do processo. E é esta exposição e compartilhar na rede

mundial de computadores, bem como criar utilizando o que já estava pronto e

exposto, o foco deste trabalho, sendo o problema de pesquisa pensar a função e a

razão de tal exposição (ela seria característica do cinema contemporâneo? A forma

contemporânea é processual?)

O primeiro ponto de parada no trajeto do processo de criação dos Famosos foi o blog

do roteirista, ator e autor do romance que deu origem ao filme, Ismael Canepelle:

. Cheguei ao blog através de uma matéria no

jornal “Folha de São Paulo”, do dia 03/10/2010 (link para a material:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/videocasts/ult10038u714082.shtml) em que o

jornalista cita Ismael e diz que foi ele quem apresentou o romance ao diretor Esmir

Filho. Procurei no site de buscas google o nome de Ismael, em princípio para dar um

rosto ao nome e depois para saber mais sobre ele e o romance que deu origem ao

filme. Abri três janelas consecutivas, após a pesquisa no google:

http://texassucks.wordpress.com/ ,

http://www.flickr.com/photos/23857844@N03/page4/, e o blog “manifesto silencio”.

No primeiro comecei a ler os textos postados e alguns comentários e identifiquei-me

com alguns gostos em comum (eu e Ismael): Bob Dylan, Cat Power, bandas de indie

rock. A minha primeira impressão foi a de que eu gostei dele, que se eu morasse na

mesma cidade iria gostar de conhecê-lo. No Segundo blog vi fotos e no terceiro olhei

apenas os vídeos. Naquele momento, eu não tinha a menor ideia de que aquilo era

uma pesquisa ou de que iria me servir para esta dissertação, estava guiada apenas por

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uma curiosidade.

Depois do blog, comecei a procurar vídeos no youtube sobre o filme, para tentar

assistir ao “making off”. A partir de então, cheguei aos vídeos realizados por Tuane

Eggers e Ismael Canepelle e logo em seguida ao blog de fotografias (flirckr) de

Tuane. Ela é atriz no filme Os famosos e os duendes da morte, faz um papel de uma

garota misteriosa que faz vídeos e tira fotografias que postava na internet. No filme

ela morre, suicidando-se, ao pular de uma ponte. Os vídeos que a personagem

interpretada por Tuane postava em seu blog, juntamente com as fotografias, são

semelhantes às fotografias e vídeos que Tuane fazia anterior à sua participação no

filme. Os vídeos realizados por Tuane, são em verdade uma parceria com Ismael

Caneppelle, que atua no filme Os famosos como o namorado da personagem de

Tuane. Os vídeos serve como marcar, indícios e documentos do processo de pré-

filmagem, como se fosse um laboratório realizado por Ismael e Tuane.

Em um dos poucos contatos que tive com Esmir Filho, através da internet, da rede

social Facebook, ele me disse sobre os videos:

Pode-se dizer que os vídeos são os registros do laboratório de Tuane e Ismael ao encotnro de seus personagens, inspirados no universo das fotos de Tuane Eggers que já existiam na internet. Portanto, foi um processo de busca que, editado e colocado no longa, espelha a trajetória da personagem antes de se atirar da ponte - metáfora para a atriz antes de mergulhar nas filmagens. (FILHO, declaração dada por mensagem eletrônica, em 03.02.2012)

Como se percebe os vídeos são indícios do momento anterior às filmagens, no

processo de preparação do elenco, de preparação dos atores, para viverem seus

personagens. Esmir afirma que os vídeos foram inspirados nas fotografias de Tuane

Eggers, que já fotografava e postava suas fotos na internet desde o ano de 2005.

Algumas dessas fotografias aparecem no filme, aliás, o fotolog acessado pelo

personagem principal dos Famosos (Henrique Larré interpreta o Mr. Tamborine

man) é o fotolog da Tuane, sem nenhuma modificação, nem o seu nickname

(apelido).

Assim sendo, as fotografias dão conta de um período anterior até mesmo a pré-

filmagem, dão conta de um tempo em que o filme era somente um projeto. Esmir

filho olhou o fotolog de Tuane antes de convidá-la para participar do filme e talvez só

tenha feito o convite em função das fotografias que ela postou.

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A maquiagem que a personagem interpretada por Tuane usa no filme é a mesma

maquiagem que ela usa no dia a dia. Nas duas imagens subseqüentes temos, na

imagem 1, a Tuane Eggers antes do filme e na imagem 2 um frame (captura de

imagem) do filme, com a personagem que ela interpreta.

: fotolog de tuane, com uma maquiagem como a da personagem. Foto realizada no ano de 2008, anterior às filmagens.

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: Frame (captura de imagem) do filme, onde Tuane aparece com a mesma maquiagem.

Pode-se observar que a maquiagem feita por Tuane é a mesma da personagem e

olhando o blog percebe-se que os vídeos realizados por Tuane e Ismael tem o mesmo

ambiente que as fotografias que a atriz tirava e postava. Busquei algumas entrevistas

com Tuane e com Esmir Filho, após esta observação, ainda utilizando o ambiente

virtual, neste caso o canal de vídeos Youtube. Em uma entrevista para a TV Univates,

do Rio Grande do Sul, do dia 31 de julho de 2009, Tuane afirma ao jornalista que não

foi difícil “atuar” no filme, visto que o diretor pediu para ela ser o que ela já vinha

sendo. (link da entrevista: http://www.youtube.com/watch?v=D4GuvUX1BwE) Uma

pista de que, como Bourriaud (2004) conceitua, Esmir filho recolheu o que estava

pronto e disponível para a criação do filme:

Os artistas atuais não compõem, mas programam formas em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado. Evoluindo num universo de produtos à venda, de formas preexistentes, de sinais já emitidos, de prédios já construídos, de itinerários balizados por seus desbravadores, eles não consideram mais o campo artístico (e poderíamos acrescentar a eleveis˜ao, o cinema e a literatura) como um museu com obras que devem ser citadas ou "superadas", como pretendia a ideologia modernista do novo, mas sim como um loja cheia de ferramentas

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para usar, estoques de dados para manipular, reordenar e lançar. (BOURRIAUD, 2004, p. 13)

Em um outro vídeo, este gravado no debate sobre o filme Os Famosos, realizado no

Festival de Cinema do Rio de Janeiro, no ano de 2009, Esmir afirma que as fotos

utilizadas no filme são da Tuane, bem como os vídeos foram gravados e editados por

ela. Eles também afirmam terem se encontrado pela internet, através do fotolog e blog

de Tuane (link para o vídeo: ).

A partir das entrevistas assistidas e das afirmações de Esmir e Tuane, o problema da

pesquisa ficou mais aparente: a exposição do processo de criação de um filme através

da internet e a critica genética passou a fazer parte da pesquisa, de uma forma

consistente e não apenas como curiosidade. Asim, atenho mais para analisar o que dizem os documentos processuais do que a

obra finalizada. Na situação específica deste estudo de caso, com o filme Os Famosos

e os duendes da morte, deve-se levar em consideração que o filme pronto, no seu

formato final, como é exibido ao público, é resultado de uma elaboração progressiva,

de uma transformação, onde alguns indícios do processo de pré-filmagem e filmagem

estão expostos na internet.

O processo de elaboração no cinema divide-se em pré-produção, produção e pós-

produção. Durante os dois primeiros períodos, em especial na pré-produção, onde é

escrito o roteiro, o diretor se lança, por exemplo, à pesquisa de documentos,

informações, tira fotografia de lugares, se prepara para a filmagem, que é considerado

o momento de produção. Nesta etapa, o diretor trabalha com uma equipe grande,

geralmente com mais de 20 (vinte) pessoas. Após esse período a equipe se desfaz, os

técnicos partem para novos filmes e o diretor junto à equipe de montagem e mixagem

de som, finaliza o trabalho. A crítica genética, que é utilizada neste trabalho como

metodologia, tem por objeto essa dimensão temporal do filme em formação e parte da

hipótese de que a obra, dentro de sua aparição final, não guarda menos o efeito de sua

gênese. Mas, para poder se transformar em objeto de estudo, essa gênese da obra,

deve, evidentemente, deixar "traços". São esses traços materiais que o geneticista se

propõe a encontrar e elucidar, essas pistas ou marcas que o autor deixa no decorrer de

seu trabalho de criação, os manuscritos, ou os documentos de processo.

Os documentos de criação do filme Os famosos e os duendes da morte estão expostos

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na internet, ao alcance de qualquer pessoa, não precisando ser um pesquisador. A

forma de trabalho do diretor visto no seu processo foi de criar relações, pela internet,

com as pessoas que iriam participar do filme. Esmir criou uma relação com os outros

participantes do filme, mas não no sentindo denotativo, podemos dizer que ele impôs

restrições para a formação do elenco e reduziu de maneira seletiva, através de uma

regra ou uma restrição, a formação do produto fílmico. Assim, Esmir Filho, em Os

famosos e os duendes da morte cria um emparelhamento condicional, sendo a

condicional para o elenco: ser jovem, ser gaúcho, estar conectado com o mundo pela

internet, fazer uso de computador, gostar de se fotografar, mais do que fotografar a

paisagem.

No emparelhamento estabelecido, Esmir se utiliza de uma rede (a internet) e

estabelece outra: a equipe de trabalho do filme. Sem a primeira ele não formaria a

segunda e sem a segunda, não chegaria ao seu resultado final. Os contatos realizados

através da internet com a equipe continuam até este momento, expostos na internet. É

possível ir ao fotolog do ator Henrique Larré e ver o convite que ele recebeu, para o

teste de elenco do filme e participar de uma oficina de formação de elenco. É possível

também ver os comentários sobre os vídeos e as fotografias de Tuane, bem como os

comentários sobre os escritos de Ismael, em seu blog. A enunciação do processo é

exposta pela rede o que leva para a pergunta: qual seria o manuscrito de um filme que

se utiliza de novas tecnologias? Que se utiliza da internet para ser criado? É

necessário o documento de processo ser fechado, guardado, não exposto? A

autenticidade do manuscrito é tão volátil, frágil e cambiante quanto a autoria do

diretor de um filme no contemporâneo.

Eu, pesquisadora do processo, não tive posse dos "manuscritos" dos Famosos e pensei

estar diante apenas de indícios de um processo, deixados por ele na internet, e não o

próprio processo. Questionava a autenticidade do que eu via, pensando que tudo

poderia ter sido "manipulado" para estar daquela maneira. Contudo, novamente, qual

seria o "manuscrito" oficial de um filme que se utilizou e se criou através da internet?

Não haveria maneira dos documentos de processo de Esmir Filho, no filme Os

famosos e os duendes da morte, estarem em outro lugar, há não ser na internet. Sem

contar que entre o visível e o não exposto há uma longa distância. Citando Dietmar

Kamper:

Ver é permanecer na superfície. A profundeza do mundo não é

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atingível pelo olho. E quando o olho se intromete, aumentam apenas os planos, as superfícies e as superficialidades. A era ótica o provou ser negativo. Seu lema "tornar visível tudo o que é invisível" era duplamente falacioso. Não atingiu o antigo invisível e produziu uma nova inviabilidade. Está preso à visão um ofuscamento específico: quanto mais visibilidade, tanto mais inviabilidade (KAMPER, 1993, p. 57)

A internet engloba recursos de hipertexto e de multimídia, sendo o hipertexto um tipo

de documento digital não-linear, que permite ligações cruzadas entre diversas partes

de um mesmo documento ou por intermédio de documentos diferentes. Essas ligações

são feitas pelos links. A hipermídia é a incorporação de informações diversas como

sons, textos, imagens, vídeos etc, em uma mesma tecnologia: o computador. Diante

de tais afirmativas, pode-se dizer que os manuscritos dos Famosos estão como links

do filme, que seria o hipertexto. Não há, assim, como questionar a legitimidade de tais

manuscritos.

No processo criativo do filme Os famosos e os duendes da morte, de Esmir Filho, que

teve seus indícios expostos na internet, um dos elementos interessantes a se pensar é a

memória dos arquivos, que continuam até este momento exposta, o prazo de validade

dos manuscritos do filme é incógnito, pois não há como afirmar quanto tempo ele

dura. Os arquivos podem ser modificados e delatados a qualquer momento, bem como

podem permanecer na internet

No processo em análise neste trabalho, os vídeos de Tuanne Eggers que aparecem no

filme, o blog, o roteiro e o romance de Ismael Caneppelle fogem do padrão do

dispositivo do cinema narrativo moderno. Pensando o cinema moderno e narrativo

como aquele que segue um padrão na forma de contar a história, como um dispositivo

regulador. O filme em questão, até por este ter sua formação mestiça, não pode se

limitar e impor ordens de forma direta, como os outros dispositivos de poder tal qual

escola, família e religião.

Assim, de posse dos documentos, era necessário pensar o que se fazer com eles, que

análises, que diálogos, que buscas eles estariam ofertando. Diante disso, elenquei

alguns pontos para serem analisados no processo: os vídeos de Tuane e Ismael, as

fotografias de Tuane e o uso de oficina de formação de elenco.

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1.1.1. Os Vídeos

O uso de vídeos no cinema é uma prática recorrente, na produção contemporânea, em

especial pela mobilidade e peso das câmeras e também o valor da película que é,

ainda, alto. Contudo, no caso do filme Os Famosos e os duendes da morte, os vídeos

estão como um ato de enunciação, como aquilo que há para ser enunciado. A presença

do vídeo já é um potencial para um cinema que deixa o processo de criação visível.

Essas descrições correspondem, em outros termos, a dois tipos básicos de discurso: há um tipo de discurso que se esforça para ocultar sua condição de discurso e há um outro que, ao contrário, revela-se deliberadamente como tal. Se, genericamente, a enunciação está para o enunciado assim como a produção está para o produto, pode-se entender, associar tais discursos a dois grandes modelos enunciativos: um que mascara e outro que desmascara as marcas do ato de realização naquilo que foi realizado. O primeiro pode ser relacionado ao cinema clássico e o segundo, mais diretamente, ao vídeo de criação. (BRUSCKY, 2003, p. 108)

Ou ainda, como traz Arlindo Machado:

A arte do vídeo se caracteriza, antes de mais nada, por uma ruptura com os cânones pictóricos do renascimento e por uma retomada do espírito demolidor das vanguardas históricas, fazendo voltar sua fúria descontrutiva sobretudo contra a figura realista que o modelo fotográfico logrou perpetuar. (MACHADO, 1988, p. 13)

Desde o cinema de Godard e os procedimentos do cinema direto, nos anos 60, há uma

relação com essa espécie de criação audiovisual, que mistura a produção fílmica (em

película) com o vídeo e que se deixa mostrar no procedimento. Aliás, a hibridação

entre o cinema e o vídeo aparece, desde então, como um caminho potencial para as

formas que se apresentam como processuais. Como nos aponta Ivana Bentes:

As câmeras de cinema portáteis de 16mm, com som direto, vão florescer o cinema de intervenção (o documentário, o cinema militante de 'câmera na mão' e corpo-a-corpo com o real), assim como, posteriormente, o super-8, reservado ao registro doméstico, vai nos anos 70, criar um cinema individual e subjetivo, que transforma o consumo de imagens domésticas num movimento de resistência e criação" (BENTES, 2003, p. 115)

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E ainda, Christine Mello ressalta: Seu fio condutor parte do princípio que o video é uma linguagem híbrida, uma arte situada nas extremidades de outros campos, um processo de interferencias no sistema, uma fenda, desvio, ou estranhamento que impulsiona o projeto de desmaterialização nas práticas estéticas. (MELLO, 2003, p. 144)

Há uma retórica da espontaneidade, ainda segundo Bentes (2003), que deixa o vídeo

na obra fílmica com tais características. Olhando, neste estudo de caso, os vídeos que

aparecem no filme Os famosos e os duendes da morte, são também documentos

processuais onde percebe-se uma tentativa de indefinição de fronteira, entre o que é o

vídeo, o que é do filme, o que não é. Esmir Filho, afirma que os vídeos foram criados

por Tuane, em entrevistas que publicou após o lançamento dos Famosos. Como a

declaração abaixo:

Ao ler o manuscrito de Ismael Caneppele que chegou nas minhas mãos, intitulada Os famosos e os duendes da morte, algo tomou conta de mim. As palavras do autor me encontraram e foi sua sensibilidade e poesia que me convidaram a adentrar seu universo. O livro traz em si sentimentos escondidos de um adolescente que vive o conflito entre ficar e partir, pertencer e negar. Convidei-o para escrever o roteiro comigo, partindo do universo do livro. A ideia não era adaptá-lo, e sim criar um dialogo entre as palavras do livro e as imagens do filme, buscando sentimentos análogos para o leitor/espectador. É por isso que não existe essa bobeira de ler o livro primeiro, para depois ver o filme, ou saber o final, etc. É mais do que isso. Tudo dialoga e se complementa. Um retrato das inquietações do adolescente atual e sua relação com a internet, na eterna busca de uma identidade, onde os pixels são uma realidade e vida real não tem fronteiras. Enquanto Ismael mergulhava em seu próprio universo, descobrindo coisas que não ousava pensar, eu entrava em um mundo frio e nebuloso, em um inverno rigoroso do sul alemão de um país tropical. Ismael me apresentou Nelo Johann e suas musicas, que fizeram parte desde o desenvolvimento do roteiro atá a trilha sonora final. E foi na internet que encontramos os protagonistas Henrique Larré e Tuane Eggers. Ela, tão jovem, já sabia como queria clicar o mundo. As fotos no filme foram todas tiradas por ela, que emprestou seu universo à trama e aos vídeos realizados por ela mesma e Ismael. Essa sucessão de encontros resulta em um MOVIMENTO, chamado Os famosos e os duendes da morte. É um livro, um filme, fotos, vídeos e musica. (FILHO, IN: CANEPPELE, 2010, contra-capa)

Esta afirmação está na contra-capa do romance Os famosos e os duendes da Morte,

lançado por Ismael Caneppele, mas, quais seriam esses vídeos? Como seriam os

vídeos da Tuane, antes das filmagens?

Os vídeos que aparecem no filme Os famosos são basicamente sem falas, em alguns

há música de fundo e em outros, nem isso. Tuane, que é a criadora dos vídeos, se

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utiliza de uma estética que se apresenta também nas fotografias que ela fez, com um

ambiente verde, ou aberto e ermo. Esmir afirma que os vídeos foram postados por ela,

que foram criados por ela, contudo como ele mesmo afirmou para mim, em

declaração dada por mensagem eletrônica, os vídeos são resultados de um “mergulho”

de Tuane e Ismael, para criarem os personagens que viveram no filme. Nisto houve de

alguma maneira indicações dadas para Tuane e Ismael na hora da produção dos

vídeos, por mais que o resultado foi estabelecido por eles, não há como negar uma

interferência.

: o canal no youtube criado por J. Jingle Jangle (personagem interpretada por Tuane Eggers)

Interessante notar que Tuane Eggers possuía um canal no youtube, que foi fechado

após o lançamento do filme, conforme a próxima imagem.

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resposta do youtube sobre a procura pelo canal de vídeos de Tuane Eggers

Um site com as fotografias e os vídeos de Tuane foi criado, após o lançamento do

filme (http://cargocollective.com/tuaneeggers), mas, o flickr (fotolog) da atriz está lá

com todas as suas imagens e aparece o mesmo nome fantasia (Nick name) da

personagem no filme: J. Jingle Jangle. O fotolog está montado desde o ano de 2005 e

basicamente comporta apenas as fotografias de Tuane e olhando as fotografias, nos

anos de 2007 e 2008, percebe-se nos comentários as aparição de Ismael Caneppelle,

que é o roteirista do filme e foi quem apresentou o esboço do romance ao Esmir.

Possivelmente ele fez a ponte entre Tuane e o diretor do filme. Interessante que olhar

as fotografias, desde 2005 até o ano de 2008 (quando possivelmente Esmir entrou em

contato com Tuane) é um período longo e cansativo, mas é possível lapidar um perfil

da Tuane, do que ela gosta, olhando as fotografias e o cansaço de olhar todas as fotos

deve ter sido o mesmo vivido por Esmir, forço-me a fazer o mesmo caminho que ele,

olhando cada uma das fotos, até o mês de março de 2008. Neste mês Esmir convidou

Henrique Larré para fazer um teste para o elenco do filme, convite feito através do

fotolog do garoto. Percebo que até o mês demarcado (março de 2008), não há

referência aos vídeos no fotolog de Tuane. Assim, os vídeos não podem ser lidos

como um documento processual do período anterior à filmagem, mas sim de um

documento já do momento de criação do filme. Os vídeos são indícios de processo,

que o próprio diretor optou por deixar exposto, afinal a própria presença de vídeo no

filme, de um canal do youtube na obra, já é de caráter processual.

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O caráter processual do vídeo é justo o estar entre: ser apenas mais um vídeo para

internet, ou ser um traço do filme Os famosos e os duendes da morte. Há nos vídeos

realizados por Tuane marcas de uma etnografia experimental sobre si mesmo. As

ações do vídeo, as narrativas que eles propõem, podem ser entendidas como "práticas

poéticas entendidas como ações performáticas, captadas em tempo real e criadas

especialmente para o vídeo" (MELLO, 2003, p. 147).

Os experimentos e performances estão relacionados com o corpo, que está em

relação direta com a câmera, que é digital e leve, podendo ser carregada com apenas

uma das mãos, por exemplo. Mesmo os vídeos sendo apenas um indício escolhido

para demonstrar o processo, pode-se ler os vídeos como hipertexto, ou melhor como

hiperfilme. Um texto que leva para outro, um vídeo que leva para outros, para

fotografias e para o filme Os famosos e os duendes da morte. Uma ponte que se

utiliza, na sua narrativa, basicamente de uma câmera digital e do corpo de Tuane e

Ismael. O corpo, o estranho do corpo, acaba sendo absorvido pelo câmera e

transformado em um traço dos vídeos realizados pela dupla (Tuane e Ismael

Caneppelle). Sobre o limite entre o corpo, as personagens e os vídeos, Mello (2003)

acentua:

O corpo passa a ser modelado e transformado com os recursos propiciados pelos meios digitais. Toda ordem de artifício é possibilitada à imagem, e sua veracidade passa a ser questionada. Com a inserção das câmeras de vídeo e dos computadores na cena cotidiano, intensificam-se as relações entre o homem e as máquinas de modo geral, e passa a ser notada também a ampliação do uso de câmeras de vigilância dentro dos trabalhos de arte. Verifica-se o aumento de interfaces propiciadas por todo o universo da informática e pelas redes de comunicação, por intermédio da internet e da telefonia celular. Com base nos recurso oferecidos pelos meios digitais, as experiências de arte intensificam a partilha do gesto criador com o próprio espectador de forma simultânea, presencial e em tempo real." (MELLO, 2003, p. 150)

Tuane busca identificar um corpo, que torna-se sujeito de um discurso, um corpo que

descola-se, que muda de função e estabelece para o vídeo uma relação de afeto com a

sua criadora, que se mostra, se grava, se experimenta. A exposição do seu próprio

corpo, a exposição dos vídeos que ela monta, no intento de saber de si, para depois

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tentar saber do outro, ou do mundo é a parte principal da experiência. O granulado do

vídeo online com o real é o YouTube visto como passado e presente, o registro ao

mesmo tempo efêmero e definitivo da existência. Mundo real e digital se misturam,

sem pudor. Qual a sensação é a de sentir-se prisioneiro na própria pele? A emoção

estaria na base orgânica ou no estado de ser? Ou ambas as experiências?

Uma entrevista com Swami Ramakrishnananda, discípulo da lider espiritual indiana

Sri Mata Amritanandamayi Devi na Revista Bons Fluídos, Ed. Abril, Julho de 2011,

diz algo interessante sobre a busca de Tuane (em seus vídeos):

O sucesso supremo é quando você conquista algo que lhe traz plenitude. Então, você se sente completo. Depois disso, não precisa de mais nada, está satisfeito. Do ponto de vista espiritual, o verdadeiro sucesso é saber quem somos. Os mestres chamam esse estado de autorrealização ou realização da consciência. Nesse sentido, a pessoa que se realiza identifica a mesma consciência em tudo, e por isso, é capaz de amar tudo e todos. Quem atinge esse patamar não se importa se é amado ou criticado. Os sentimentos não se alteram. A pessoa é apenas o que é e isso é suficiente, isso lhe basta (RAMAKRISHNANANDA, 2011, p. 30)

Com as fotografias, Tuane cria um ambiente similar ao dos vídeos e, novamente, o

corpo dela é o grande foco das imagens e desta vez, estaremos diante de um

manuscrito anterior às filmagens do filme Os famosos e os duendes da morte.

1.1.2. As Fotografias

Nas fotografias, todas realizadas com câmeras digitais e postadas em seu flickr

(fotolog) desde o ano de 2005, Tuane não explora realismos ou imagens fortes. Ao

contrário, como nos vídeos, há uma busca pelo sinestésico, por mistérios. No começo

das suas postagens, nos anos de 2005 e 2006, Tuane postava muitas fotos dela, sem

maquiagem, das coisas que ela gostava (leitura, banda de rock e café). A partir de

2007 observa-se que ela começa experimentar as fotografias, fotografando até mesmo

outras pessoas, alem de si própria. Eu me questionava se ela realmente fazia as

fotografias sozinhas, algumas claramente sim e as primeiras (2005 e 2006) são muito

parecidas com as fotografias de qualquer jovem, que gosta de postar fotos em redes

sociais e fotologs. Contudo, com a mudança de perfil e as maiores experimentações, a

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partir de 2007, comecei me questionar: será que ela realmente trabalhava sozinha?

Não tive outra opção a não ser perguntar para a própria Tuane como ela tirava as

fotografias, em especial, antes de participar do filme. Entrei em contato com Tuane

através da rede social Facebook, em dezembro de 2010, e perguntei se ela trabalhava

sozinha e a resposta foi: “Sim, tirava as fotos sozinha antes do filme. Continuo assim

até agora, na verdade, fazendo as coisas desse jeito DIY”. A abreviação DIY, da frase

em inglês Do It Yourself, que significa: Faça você mesmo, ou seja, experimente

sozinho, tente sozinho, abra você o seu caminho.

Tuane abriu o seu caminho tirando fotografias sozinha, sem interferência de alguém

dizendo para fazer desta ou de outra maneira. Trabalhava com uma paleta de cores

que lembram a ferrugem, o marrom e passando, também, pelo branco e verde musgo.

Utilizava papel celofane colorido como filtro de cor. Criando um jogo de imagens

digitalizadas, com revelação de tristezas, que trazem ao observador de suas

fotografias uma sensação de descoberta de um ambiente frio, porém muito bonito,

como a imagem abaixo, pode exemplificar:

: fotografia realizada por Tuane Eggers, antes de participar do filme

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As cores exploradas, dão mostras do quão misteriosa é a natureza, como adentrá-la

pode se parecer com a viagem interior, o buscar a si mais importante do que qualquer

outra coisa. Dá-se conta de uma fotografia, onde o descobrir-se para encontrar o

mundo é o mais importante. A fotografia acima, também retirada do blog de

fotografias de Tuane foi postada em data anterior às filmagens, tem um tom de

ferrugem, que lembra em muito a cor da ponte, que aparece no filme e tem um papel

fundamental na narrativa. E as fotografias de Tuane estão como uma ponte, um elo

entre os vídeos e o filme. Como também um elo entre o que ela era antes e o que se

torna depois do mergulho, depois da ponte, depois do filme.

As cores exploradas por Tuane foi um dos fatores que chamou a atenção de Esmir

Filho, visto que a indicação dele para os vídeos foi de que abordassem o mesmo

universo das fotografias (na resposta que Esmir me encaminha por mensagem

eletrônica há essa referência).

E, ainda, a busca por encontrar-se ou fugir da cidade do interior está intimamente

ligada à ponte, na narrativa do filme Os famosos e os duendes da morte. E o

interessante é que Tuane, com suas fotografias faz a ligação, não saiu da sua cidade,

Lajeado, no Rio Grande do Sul, até hoje. Apenas com a internet ela faz a ligação

necessária com o resto do mundo. A maior descoberta e viagem ainda seria olhar a si-

mesma e nesta tarefa a fotografia, também tem papel fundamental. Como salienta

Barthes (1984):

A fotografia pertence a essa classe de objetos folhados cujas duas folhas não podem ser separadas sem destruí-los: a vidraça e a paisagem, e por que não: O bem e o Mal, o desejo e seu objeto: dualidades que podemos conceber, mas não perceber (eu ainda não sabia que, dessa teimosia do Referente em estar sempre presente, iria surgir a essência que eu buscava) (BARTHES,1984, p. 16)

Esse conhecer-se, tão explorado no processo do filme, passa por se assistir, uma idéia

do dramaturgo francês, Antonin Artaud. As fotografias de Tuane trazem a

possibilidade do duplo, no caso das fotografias (a própria Tuane, o seu próprio corpo

e o que faz dele para as fotografias) não está como mimese do cotidiano apenas, ao

contrario, duplo de um outro lugar, onde são visíveis diversas paisagens imagináveis,

criadas na mentalidade do personagem e que seriam diferente do mundo em que

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habitavas. Duplo como possibilidade de ser mais, de se co-existir muitas vezes na

ordem e no caos, continuamente, inseparavelmente, indissoluvelmente.

O duplo, só existe, só está para tornar sensível e possível a vida em toda a sua

multiplicidade. A afinidade misteriosa do mundo, que a arte pode revelar como uma

peste salvadora, que atinge qualquer um, não separa entre fazer arte e a análise do

mundo (ou a tentativa de decifrá-lo). A duplicidade, que as várias criações,

compartilhamentos, operam para a construção do filme Os famosos e os duendes da

morte, fala e toca a nossa natureza composta, nossa alma que recolhe a angústia da

morte e o amor por si.

Com a natureza dupla, heterogênea e dividida, com a quebra da unidade, como o ser

humano pode aceitar-se a ser ele mesmo na sociedade? Aliás, ele é apenas o

fenômeno de que? Se não vai alcançar o conceito do mundo, a consciência de tal

impossibilidade (sofredora, melancólica) e o papel desempenhado no ambiente e no

mundo traz a grande presença de duplicidade colocada nas fotografias de Tuane.

Como nos aponta Brunel: “A nostalgia do infinito provoca uma cisão dolorosa do ser”

(BRUNEL, 1998, p. 281)

E as fotografias de Tuane fazem parte desse processo, de criação de duplicidade. Pois

é quando ela diz que faz sozinha, por conta própria que ela cria em si um duplo: são

nas fotografias dela que ele se vê e enxerga o mundo que está ao seu redor. Como

acentua Barthes, “pois a fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma

dissociação astuciosa da consciência de identidade” (BARTHES,1984, p. 25).

Alem disso é através dessa duplo que Tuane irá conseguir montar a personagem do

filme. Da mesma maneira, foi necessário para o resto do elenco, formado por atores

não profissionais a criação, o mergulho para a narrativa fílmica. Um outro indício de

processo é a oficina de formação de elenco, que a equipe do filme ofereceu em Porto

Alegre, em período anterior ao começo do filme, foi a partir dessa oficina que o

elenco foi formado.

1.1.3. A formação do elenco

O elenco principal do filme Os famosos e os duendes da morte é composto por

Henrique Larré, Tuane Eggers, Samuel Reginatto e Ismael Caneppelle. Destes apenas

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Reginatto já havia participado de um outro filme (Antes que o mundo acabe, de Ana

Luiza Azevedo, 2009) e um seriado para uma emissora de televisão local, no Rio

Grande do Sul. Para formar esse elenco, Esmir buscou jovens com as características:

ser gaúcho, estar conectado com o mundo pela internet, fazer uso de computador,

gostar de se fotografar, mais do que fotografar a paisagem. Assim, ele pesquina na

internet em blogs e fotologs jovens com o perfil citado. Através dos blogs e fotologs

Esmir encaminhou convite para que o escolhido participasse de uma oficina de

formação de elenco. É assim que ele descobre Henrique Larré, através do blog do

garoto e por lá mesmo faz o convite para um teste. Na imagem abaixo há o convite

feito pela equipe de produção de Esmir ao Larré.

: o convite feito pelo diretor Esmir Filho para Henrique Larré fazer um teste para o filme Os famosos e os duendes da morte

Na imagem abaixo há uma fotografia do final da oficina de formação de elenco:

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: foto dos participantes finais da oficina de preparação de elenco

Na figura há o momento final, em que o ator participa de uma oficina, realizada pela

equipe do filme, para a formação do elenco principal. Com setas vermelhas marquei

aqueles que estão na obra cinematográfica. Com a seta maior, do lado direito da foto

está o diretor Esmir filho. Perto dele, também marcado por uma seta, está Henrique

Larré, que interpreta o personagem principal, que não possui um nome na narrativa,

apenas o codinome usado no ambiente virtual de “Mr. Tambourine Man”, fazendo

referência a composição da musica do compositor americano Bob Dylan, de mesmo

nome. Aliás, a música de Dylan é como um personagem, tanto no filme, quanto no

romance. Próximo de Larré está Samuel Reginatto, que irá interpretar no filme o

personagem Diego, que é o amigo mais próximo de Mr. Tambourine. Por fim, a

garota marcada com a seta é Tuane Eggers, que interpreta uma personagem

misteriosa, que já não existe mais, a não ser na memória virtual.

O uso de oficina de formação de atores é, também, um traço de uma criação

colaborativa, podemos dizer, segundo Bonfitto, que a atuação após uma oficina de

elenco, está mais para a presentação, do que a representação. Sendo a presentação o

fato da atuação não estar presa à dramaturgia, ou ao roteiro, já que ele contribui com o

seu universo para aquilo que o diretor gostaria de realizar no filme. Como afirma,

ainda Bonfitto: “Eles exploram movimentos, ações e gestos a fim de reduzir a função

utilitária normalmente assumida pela palavra” (BONFITTO, 2009, pg. 7)

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Há a possibilidade do ator improvisar nas sequências, visto que eles, os adolescentes

que atuaram no filme, conheciam o universo abordado tanto ou mais que o diretor.

Não havia um desafio tão grande para a atuação, nem tamanha dramaturgia para ser

preservada, mesmo porque o romance ainda estava em fase de finalização e podia

modificar-se com as contribuições que surgissem durante as filmagens e a presentação

do elenco formado quase exclusivamente para o filme.

Os atores quando se formam nas oficinas, costumam seguir o que lhes foi passado

durante a aula. É possível levar, com a oficina os atores para uma atuação lenta, sem

muita ação física, seguindo uma interpretação que, como Sílvia Fernandes acentua em

sua obra “O teatro pós-dramático”, (2008, p. 25) “privilegia o silêncio, o vazio e a

redução minimalista dos gestos e dos movimentos, cria elipses a serem preenchidas

pelos espectador”. É o que parece, a busca do diretor, inclusive pelo perfil dos

selecionados para o elenco. Como aponta Salles:

Não se pode, no entanto, cair no relativismo. É importante que esses dados, que levam a determinadas hipóteses sobre o processo estudado, retornem ao texto ou à proposta da curadoria. Por mais que os objetos gerem uma grande diversidade de modos de serem abordados, esses olhares foram viabilizados por características da documentação estudada. No caso específico do critico interessado em processos de criação, vimos aqui (nos arquivos de criação) uma expansão também no que diz respeito a suas atividades, que não são excludentes. Sob esse ponto de vista, há o trabalho como foco nos arquivos dos artistas, o acompanhamento de processos, quando o critico passa a fazer parta da rede de criação do artista ou do grupo de artistas, e a curadoria de processo. (SALLES, 2010, p. 230)

A improvisação poderá seguir as próprias mudanças no roteiro, os elementos do filme

vão se modificando ao longo da filmagem. “O texto, visto enquanto material oral a ser

incorporado (embodied) pelo ator, não é necessariamente escrito a priori, antes do

processo de atuação”. (Bonfitto, 2008, pg. 89) O roteiro está apenas como um guia do

que deve ser, mas, não necessariamente as cenas acontecerão como se marca. Veja a

marcação de uma cena do roteiro, como em si, já admite a variação, com versão final

de vinte e sete de junho de 2008, publicado pela imprensa oficial, em 2010, em seu

décimo sexto tratamento.

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CENA 7 – INT. QUARTO DE BERNARDO – NOITE A música continua. Bernardo está em frente ao seu computador, escutando a música de uma rádio de Londres (XFM) que pode ser ouvida através de um site da internet. BERNARDO (PARA SI MESMO) Good morning, folks! Na tela do computador, a flecha passa pelo seu MSN Messenger, que está dividido em dois grupos: Cu do Mundo e Longe Daqui. Há muitos con- tatos online no grupo Longe Daqui e ninguém online no grupo Cu do Mundo. No grupo Longe Daqui, ninguém tem nome normal, todos são nicknames estranhos, em inglês, com símbolos complicados de se entender. O nick de Bernardo é MR. TAMBOURINE MAN. Ele abre diversas janelas de diálogos e envia a seguinte frase para seus amigos de Longe Daqui. MR. TAMBOURINE MAN: Good morning, folks! Uma janela de diálogo responde. É NIEL. NIEL: The sun is up! Vc tá ouvindo? XFM é foda. MR. TAMBOURINE MAN: É de outro mundo! Outro barulho de janela de diálogo do MSN. É LOOOU, de Longe Daqui. LOOOU: A noite é longa... MR. TAMBOURINE MAN: Tu vai sair? LOOOU: Tem festa hoje. MR. TAMBOURINE MAN: Me leva!!! LOOOU Vem! :) Outra janela de MSN se abre. É E.F., do grupo Longe Daqui. E.F.: Hey Mr. Tambourine Man, play a song for me MR. TAMBOURINE MAN (ícones de notas musicais e um ícone de Bob Dylan) E.F.: Lindo o que você escreveu no seu blog hoje. Já viu o meu? Bernardo clica em cima no nome de E.F. e isso faz abrir em outra janela a Minha Página de E.F. A página tem uma animação com fotos de Bob Dylan segurando cartazes com coisas escritas. Ele vai jogando os cartazes no chão à medida que se lê: Bob Dylan, No Brasil, Imperdível, Você vem?. Bernardo abre a janela de diálogo de E.F., meio desanimado. MR. TAMBOURINE MAN: Tu sabe que não dá pra eu ir. E.F.: Mas ele vem. Eu tô aqui. Eu sei que você vem. MR TAMBOURINE MAN: É muito longe de mim... E.F.: Longe é o lugar onde a gente pode viver

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de verdade. Neste momento, uma janela de diálogo do MSN invade a tela. É Diego, do grupo Cu do Mundo. DIEGO: Que tu tá fazendo, véio? Bernardo fecha a janela de diálogo de Diego, sem dar muita bola. Volta a olhar a página com a fotomontagem de Bob Dylan feita por E.F.. A janela de diálogo volta a abrir. DIEGO (CONT.): Velho, tu tá aí, porra? (vemos um ícone chulo) MR. TAMBOURINE MAN: Não... tô longe... DIEGO: Tô saindo de casa, te encontro lá em 10! MR. TAMBOURINE MAN: Tô sem bike, vou demorar mais... Bernardo fecha a janela do computador com a foto de Dylan. Corta: (CANEPPELE & FILHO, 2010, p. 32)

O personagem principal ainda aparece no roteiro com o nome de Bernardo, para

apenas na versão fílmica ser retirado, ficando apenas o apelido virtual de Tamborine

Man. A mesma coisa acontece com a personagem interpretada por Tuane Eggers. No

roteiro aparece com o nome de Jordana, para, depois, na versão final não ter mais

nome, apenas o apelido que a própria Tuane utiliza em seu blog de fotografias (j.

Jingle Jangle). Na cena acima, no roteiro há uma conversa com dois personagens Niel

e Looou, que no filme, não aparecem, são cortadas. Outro fator interessante é que o

apelido E.F. são as letras iniciais do diretor Esmir Filho e no filme, ele interpreta essa

personagem. Como o próprio afirma na apresentação do roteiro:

O melhor amigo virtual do menino no filme era | E.F | (Esmir Filho). Eu me materializava na ficção para instigá-lo, provocá- lo, testar seus limites. No livro, | E.F | também surgiu. Da mesma forma, os vídeos de Jingle Jangle postados na internet (www.youtube. com/JJingleJangle) tornaram-se acessíveis para o menino, tanto no filme quanto no livro. As barreiras estavam sendo rompidas. Real e virtual, ficção e vida, misturavam-se. (CANEPPELE & FILHO, 2010, p. 21)

Sobre os nomes dos personagens “Bernardo” e “Jordana”:

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A primeira coisa que irão notar no roteiro é que o menino sem nome tinha um nome e era Bernardo. Na verdade, foi no meio do processo que cheguei à conclusão que ele não precisaria de um nome real, só de um nickname, que se- ria Mr. Tambourine Man. O mesmo aconteceu com a menina que no roteiro se chama Jordana, mas no filme é a virtual Jingle Jangle, trecho da música de Bob Dylan. Resolvemos deixar no roteiro para que nos facilitasse a compreensão da história. Mas não queríamos dar nomes reais a esses personagens que habitavam a internet. (CANEPPELE & FILHO, 2010, p. 21)

Quanto mais observamos um objeto de perto, mais conseguimos perceber as suas

diferenças internas. Quanto mais eu olho as outras criações que abarcaram o filme,

mais tenho a sensação de que cada uma destas criações estava desintegrando-se,

perdendo a suposta força que teriam se analisadas sozinhas. Como acentua Bonfitto

(BONFITTO, 2008, p. 87) “como se a progressiva expansão de elementos e

associações produzidos durante esse processo prevalecesse sobre o todo, destruindo

desse modo as fronteiras que constituem, ou constituíam, a identidade do objeto

observado.”

Assim, a própria improvisação, neste caso, perde a sua força visto que ela já era um

elemento esperado pela atuação dos jovens não-atores profissionais, existindo,

necessariamente, um espaço de ambigüidade entre o que ele (adolescente) é em sua

vida privada e o que deveria representar no filme. Sendo o inesperado o aguardado

pelo diretor: “atores que lançam mão de uma improvisação, como um método criativo

e como uma técnica teatral, desenvolvem fundamentalmente uma capacidade de

responder a gestos, ações e intenções inesperadas dos companheiros em cena”. (DA

COSTA, 2009, p. 91)

O material que o elenco tinha em mãos para atuar era o mesmo manipulado

cotidianamente, fazendo desta relação ator/materiais uma estreita forma de apoio,

onde se sobressai, como já foi dito, a presentação, uma característica de uma atuação

pós-dramática, ainda conforme Bonfitto:

Desta forma, o nível de relação que o ator pós-dramático deve estabelecer com os próprios materiais de atuação se diferencia daquele explorado pelo ator dramático, envolvendo dessa maneira processo técnicos e subjetivos mais complexos, os quais podem estar relacionados, por sua vez, à esfera de presentação.”

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(BONFITTO, 2009, p. 95)

Segundo o diretor Esmir Filho, quando ele encontrou Tuane Eggers disse: “Me

empresta você? Me empresta você para o meu filme?”2 As fotografias já faziam parte

do cotidiano da garota, era a sua forma de enxergar e compartilhar o seu mundo.

Deste universo, Isamel aproximou-se, por identificar-se e Esmir também embarcou,

trazendo, assim, o que ela criava para o seu filme. A oficina de elenco foi o último

passo para marcar o processo da obra com bastante mobilidade, deixando espaço

aberto para modificações no roteiro, dando um tom processual para o que o filme viria

ser. Sobre a oficina de formação de elenco, Esmir Filho disse que:

Por meio da internet, eu entenderia o olhar de cada um perante o mundo através de suas fotos, vídeos e sentimentos escondidos nos blogs com nicknames que protegiam sua real identidade. Primeiramente, eu estava interessado em descobrir o eu virtual. Só depois entrei em contato com eles para conhecer pessoalmente o eu real de cada um. Junto com a produtora de elenco Patrícia Faria, entrevistei cerca de 400 adolescentes pessoalmente. Selecionamos 40 para uma oficina de atores junto ao preparador e ator Roberto Audio. Dos últimos dez garotos, eu dizia que não iria escolher ninguém. Que eles mesmos se escolheriam, através da verdade que cada um transmitia. Os personagens já estavam neles. Henrique Larré era o menino sem nome, personagem principal do filme. Tuane Eggers, a misteriosa menina virtual Jingle Jangle; e Samuel Reginatto, seu irmão Diego. A escolha de Ismael Caneppele para interpretar o personagem Julian se deu durante o roteiro. No livro, o encontro entre Julian e Mr. Tambourine Man é surpreendente, obscuro, magnético. É como se o menino encontrasse ele mesmo, anos mais velho, estendendo-lhe a mão. Natural que eu convidasse Ismael para o papel, pois é como se ele visitasse no cinema seu próprio eu do livro. É o autor do livro encontrando a si mesmo no filme. Da mesma forma, o movimento contrário também aconteceu. O melhor amigo virtual do menino no filme era | E.F | (Esmir Filho). Eu me materializava na ficção para instigá-lo, provocálo, testar seus limites. No livro, | E.F | também surgiu. Da mesma forma, os vídeos de Jingle Jangle postados na internet (www.youtube. com/JJingleJangle) tornaram-se acessíveis para o menino, tanto no filme quanto no livro. As barreiras estavam sendo rompidas. Real e virtual, ficção e vida, misturavam-se. (CANEPPELE & FILHO, 2010, p. 13)

Segundo entrevista que Esmir Filho deu, sobre o lançamento do filme, no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, disponível no endereço:

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Uma outra afirmação de Esmir Filho sobre a oficina de formação de elencos foi uma

resposta interessante que ele me deu por mensagem eletrônica:

Como o filme aborda o universo de adolescentes que vivem a vida virtual como uma verdade, queria encontrá-los dentro desse mundo através do qual eles se comunicam, escrevem, tiram suas fotos, fazem seus vídeos. Pesquisei na internet meninos e meninas da região do sul do brasil que explorassem um olhar interessante sobre seu estado no mundo. A partir daí, encontrei-os pessoalmente e pude entender melhor a complexidade de cada um. Tanto a menina quanto o menino foram escolhidos a partir desse conceito. Na verdade, eles se escolheram. Foi um lindo processo de entrega e conjunção de fluxos. Realizamos uma oficinia, eu e o ator Roberto Áudio. Juntos, conduzimos o elenco no processo de busca dos sentimentos interiores para exteriorizá-los diante das câmeras. Nunca daria na mão de nenhum preparador. Participo de todo processo. Acredito na proximidade e conexão entre diretor e ator. Os meninos nunca leram o roteiro, líamos páginas e páginas do livro do caneppele para que eles mergulhassem no turbilhão de sentimentos dos personagens. A partir daí, trabalhávamos juntos cena a cena. Não foi improvisação. Havia texto. Mas não líamos, nem decorávamos, verbo que abomino. (FILHO, mensagem eletrônica enviada para mim)

Como pode se observar Esmir conscientemente criou uma poética diferenciada para a

formação do elenco. Utilizou-se de novas poéticas teatrais, com auxilio de um

profissional de teatro. E nesta formação Esmir mistura o romance de Ismael ao filme,

visto que os atores não tiveram contato com o roteiro, aliás, este para o filme Os

famosos e os duendes da morte está mais como um dispositivo regulador, visto que

para apoio nas leis de incentivo é necessário o roteiro, do que necessariamente um

requisito da filmagem.

Fazer uso de uma oficina para formação de elenco é comum, para filmes que

trabalham com atores não profissionais, o interessante no processo de criação dos

famosos é que os indícios desta estavam, também disponíveis na internet com as

fotografias que os participantes do elenco, como Henrique Larré, postaram na

internet. Para descobrir esses indícios bastava olhar o passado, a memória virtual que

fica disponível na internet. E olhar esse outro tempo do filme, seguindo os seus

indícios me aproximou do trabalho de um filólogo, mas observando as etapas de

produção de um filme e não de um documento literário.

Ainda, seguindo esse pensamento, na poética contemporânea a arte tem um caráter

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processual como os indícios do processo do filme Os famosos e os duendes da morte

estão expostos, assim, há uma questão para se pensar? Qual a razão da critica

genética? Por que se pensar a experiência do processo, quando ele está exposto? Qual

a razão da escolha da crítica genética como metodologia deste trabalho? Tais questões

serão abordadas no próximo capítulo. As perguntas referentes a função/razão da

exposição do processo (ela seria característica do cinema contemporâneo? A forma

contemporânea é processual?) será trabalhada nas análises finais.

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CAP. 2. A EXPERIÊNCIA COMO METODOLOGIA

2.1 – O PROCESSO NO CONTEMPORÂNEO

O início dos estudos genéticos é localizado na França, em 1968, com o Centre

National de La Recherche Scientifique (CNRS). Este criou uma pequena equipe de

pesquisadores, em sua maioria de origem alemã, encarregados de organizar os

manuscritos do poeta Heinrich Heine, que estavam na biblioteca Nacional da França.

Introduzida no Brasil por Philippe Willemart, as discussões sobre crítica genética

foram alvo de um colóquio de crítica textual (1985) do qual originou a APML -

Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário (Salles, 2010). Ganhou várias

frentes de pesquisa, com a construção do Centro de Estudos de Crítica Genética do

Programa de Pós Graduação da PUC-SP, que saiu do foco originário (literário) para

outros, possibilitando, inclusive, ferramentas para a finalização deste trabalho. De

caráter fundamentalmente Transdisciplinar, a discussão sobre a abordagem da criação

a partir da ótica processual abrange mais do que o olhar retrospectivo e curioso sobre

os documentos de construção de uma obra artística. Mais do que analisar o

movimento do que "já foi realizado", a crítica de processo buscar contemplar a

complexidade da relação obra/conceito/procedimentos/poética. Também proposta por

Salles, esta idéia amplia o campo da crítica do "Work in progress" e apresenta a

criação como rede, refletindo sobre a construção do ponto de vista de uma constante

troca, com múltiplas interações e conexões existentes em todos os processos. Sendo,

ainda, no caso do objeto de pesquisa deste trabalho, as várias plataformas por onde

passeia a obra.

O artista cria um sistema a partir de determinadas características que vai atribuindo em um processo de apropriações, transformações e ajustes; que vai ganhando complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas. O que buscamos é a compreensão da tessitura desse movimento, para assim entrar na complexidade do processo (SALLES, 2010, p. 33)

A obra final não é o que ganha destaque, mas sim o seu processo gerador. Como

afirma o pesquisador Roberto Zular (2002):

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É preciso tomar a forma "final" como ponto de chegada e não de partida dos estudos genéticos, sendo que a análise do processo permite entender exatamente as transformações - e a inegável arte de recusas - que possibilitam chegar à forma. (ZULAR, 2002, p. 20)

Olhar o processo significa, também, afirmar que a criação é processual, ver o

objeto fílmico em movimento, de ir e vir e não parado no tempo. Para tanto o

pesquisador do processo, que se vale da critica genética, necessita entrar em

contato com os documentos do processo criativo, com os manuscritos do ato

criador. Como afirma Cecília Salles:

Os documentos de processo são, portanto, registros materiais do processo - retratos temporais de uma gênese que agem como índices do percurso (…) Documentos desempenham dois grandes papéis ao longo do processo criador: armazenamento e experimentação (2009, p. 17)

Assim, a critica será resultado de um trabalho investigativo das seleções e opções

realizadas pelo criador, como traz ainda Salles:

O estudo destes documentos dos processos de criação, isto é, da materialidade dos índices destes processos foge à mitificação da criação, pois se sustenta na constatação de que a obra de arte surge como resultado do trabalho do criador. No entanto, é importante ressaltar que os estudos genéticos vêm nos mostrando que todo o seu percurso de trabalho é executado em meio ao diálogo entre o sensível e o intelectual. (2009, p. 59)

Contemplar e ser um observador do mundo é uma tarefa que exige mergulho e

aprofundar-se em mares distintos, ir alem do próprio ser. É silenciar-se e partir para o

que está ao redor. O primeiro momento da critica genética é esse: silenciar-se para

olhar o que está ao redor da obra, ou melhor, o que está em outro tempo, não o tempo

presente da obra. Articulado a partir de diversas instancias narrativas (um blog, um

romance, fotografias e vídeos) o filme Os famosos e os duendes da morte, possuiu um

modelo de criação que se aproxima da criação coletiva e tem os seus indícios de

processo expostos na internet.

No modelo de criação coletiva que se formula próximo do "work in progress", se

inclui o risco, a processualidade, a encampação da complexidade e o cineasta deste

novo modelo cria contexto e não mais texto e obra. Para o filme de Esmir Filho, pode-

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se dizer que ele não é um “work in progress” de fato, mas sim filme que expõe seus

índices do processo. Para ser um “work in progress” seria necessário o objetivo inicial

para tanto, deixando possibilidades e potencialidades de mudanças na estrutura de

todas as instâncias narrativas do filme (blog, romance, fotografias e vídeos), em todas

as etapas do processo (pré-produção, produção e pós-produção) abertas. Como nos

apresenta o teatrólogo Renato Cohen:

A criação pelo Work in Progress opera-se através de redes de leitmotive, da superposição de estruturas, de procedimentos gerativos, da hibridização de conteúdos em que o processo, o risco, a permeação, o entremeio curador-obra, a interatividade de construção e a possibilidade de incorporação de acontecimentos de percurso são ontologias da linguagem. (COHEN, 2006, p. 14)

Os indícios de processo exposto podem dar a falsa impressão de que uma obra é um

procedimento de superposição. Em Os famosos e os duendes da morte, insemina-se a

voz do espectador, através da colaboração criativa de Tuane Eggers, Ismael

Caneppelle e o resto do jovem elenco. O mesmo ocorre com as fotografias e os vídeos

de Tuane e o blog de Ismael. Mas, como ainda acentua Renato Cohen:

O procedimento work in progress está associado a paradigmas emergentes da ciência e do campo da linguagem, e se, por um lado, desconstrói sistemas clássicos de narrativa (construção aristotélica, uso de trama, dramaturgia, personagens, desenlace, casualidades), está, de outro modo, norteado por estruturas de organização (uso de leitmotive, sincronicidades, aleatoriedade, linguagens "irracionais" e outros procedimentos nomeáveis). Conceitualmente a expressão "work in progress" carrega a noção de trabalho e de processo: como trabalho, tanto no termo original quanto na tradução, acumulam-se dois momentos: um, de obra acabada, como resultado, produto, e, outro, do percurso, processo, obra em feitura. Como processo implica interatividade, permeação e risco, este último próprio de o processo não se fechar enquanto produto final. " (COHEN, p. 20-21)

No filme Os Famosos e os duendes da morte, do diretor Esmir Filho tem-se a noção

de trabalho finalizado e o percurso, sendo a crítica genética, ou a análise processual, o

único caminho para conhecer as duas noções: a obra pronta e o seu processo de

criação. E de que serve se valer da experiência do processo para a arte contemporânea

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que é processual? Como aponta Cecília Salles “ao assumir uma postura que privilegia

a obra, a critica precisa, permanentemente, criar novas ferramentas capazes de

compreeender as provocações da arte contemporânea.”

O crítico genético terá uma função semelhante, contudo não lida apenas com palavras

ou com a literatura e, novamente, o que fazer quando os documentos de processo são

digitais, quando a arte é processual? Ou, ainda, o que seria verdade ou ficção no

processo? Salles aponta um outro caminho para a discussão:

São casos que colocam a olho nu a mediação (não temos acesso direto à dita realidade), tirando a certeza que alguns têm (e a ela se agarram) de que há algo que se chama ficção, feita da imaginação (como se esta não fosse alimentada pelo mundo externo ao universo ficcional), e algo do universo da não ficção: este sim seria a realidade, pois não estaria “contaminado” pela imaginação. Se partirmos da representação, da mediação, o que nos interessa compreender é de que natureza são esses filtros e o modo como se dão as transformações, no contexto de cada projeto artístico (jornalístico científico etc). O que quero enfatizar é que essa questão não pode ser vista de modo isolado, pois, além de não ampliar a compreensão de tais obras, pode nos deixar ficar estancados nesse impasse, diante do desejo de definir fronteiras. (SALLES, 2010, p. 227)

Sem contar que o crítico genético não estuda apenas o manuscrito e sim o processo de

construção de uma obra e os meios digitais fazem parte do processo de criação da arte

contemporânea, como exemplo o caso do filme Os famosos e os duendes da morte.

Essa preocupação com a certeza do manuscrito, ou a verdade dele, nos remete ao

conceito de “paixão pelo Real”, desenvolvido pelo filósofo Slavoj Zizek :

O problema com a “paixão pelo Real” do século XX não é o fato de ela ser uma paixão pelo Real, mas sim o fato de ser uma paixão falsa em que a implacável busca pelo Real que há por detrás das aparências é o estratagema definitivo para se evitar o confronto com ele. (2003, p. 39)

Se a “paixão pelo Real” é uma paixão “falsa”, em função do caráter selvagem, trau-

mático ou excessivo do Real – cuja impossibilidade de integrá-lo ao que tomamos por

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realidade nos faz senti-lo como um efeito, como um semblante ficcional – é porque a

“paixão pelo Real” recusa aquilo mesmo que deseja, sem com isso perder sua

validade ou fragilizar-se como enunciado. É possível que “a paixão pelo Real” possa

ser também pensada como uma “estrutura paradoxal da racionalidade cínica” (Slavoj

Zizek), estrutura normativa dual que impede qualquer fixação ou determinação de

sentido.

E uma reinvenção não seria tão simples, não sendo suficiente dizer que a critica é uma

análise do processo, ou de uma obra que deixa seus indícios de processo expostos,

para que ela seja considerada uma critica de uma obra de arte contemporânea, ou que

seja considerada uma critica contemporânea. Nem com isso, também, pode-se afirmar

que a obra que tem traços processuais, que a fronteira entre realidade e ficção existe

até nos documentos processuais, é contemporânea.

Na construção do processo do filme Os famosos e os duendes da morte, o

inacabamento e as relações estabelecidas servem para ampliar capacidade de

observação das frestas e dos silêncios. Onde a obra dá continuidade, onde aparece o

trabalho em conjunto, colaborativo e uma poética que permite trocas. Não é

meramente para levantar características da arte contemporânea, ao menos neste

trabalho, que se fez uso da crítica genética, mas, alem disso, para dar conhecimento

ao contínuo, a totalidade, no filme e nas outras instancias narrativas que o formam.

Como acentua Valéry:

Ao nosso conhecimento falta a continuidade dessa totalidade, de como nela se desvanecem esses informes farrapos de espaço que separam objetos conhecidos, e arrastam após si, ao acaso, intervalos; de como se perdem a cada instante miríades de fatos, salvo o pequeno numero daqueles que a linguagem desperta. (VALÉRY, 1998, p. 11)

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2.2 – A IDEIA DE PROCESSO

Afastando-se das idéias de “genialidade”, “inspiração” e “obra-prima”, o filme Os

famosos e os duendes da morte instaura um processo de produção e recepção,

caracterizado por elementos de precariedade, transitório, inacabado e processual. A

critica genética permite olhar o processo do filme em questão e ver o trabalho do

diretor Esmir Filho como um antídoto às mistificações do lugar do diretor

cinematográfico. O deslocamento do olhar dado ao produto final, para o seu processo,

em especial nas duas primeiras etapas do filme (pré-produção e filmagem), percebe-se

as marcas do transitório, permitindo o filme estar aberto a novos desdobramentos.

O cinema tem um caráter de reversibilidade na sua escritura, enquanto ele ainda não

está acabado, no seu formato final. Até chegar à filmagem, geralmente o roteirista deu

vários tratamentos para o roteiro. Ainda nas filmagens mudanças são possíveis, visto

que ainda não há uma fixidez de suporte, há apenas um caminho para o término do

filme. Antes que o filme esteja “na lata” (termo utilizado para designar o término das

filmagens) está em jogo uma “obra-em-aberto”, inacabada e transitória. A

possibilidade que lanço mão neste trabalho para dar conta da análise do processo de

criação é utilizando a critica genética.

Porém, é preciso afirmar que cada vez mais a etapa “em aberto” aparece no produto

fílmico final, sejam nos extras dos DVD’s , nos “making off’s”, nos sites para

internet, nos canais do youtube, em blogs, em livros sobre o processo de construção

do filme, a etapa da construção-reconstrução resvala de alguma maneira no produto

que estaria em sua “versão final”.

Ao se pensar o percurso da criação – ou trazê-lo para o primeiro plano – direciona-se

o olhar para os meios materiais e o modo de produção do fazer cinematográfico. Essa

abordagem cria também uma tensão entre processo e produto, que acaba sendo

iluminadora para ambos. Isso no sentido de que a ênfase na discussão sobre os

procedimentos de trabalhão e sobre a trajetória de construção da obra não elimina ou

abole a instância da critica cinematográfica, da análise fílmica ou dos estudos sobre o

produto final: o filme acabado.

Desta maneira, discutir a trajetória de construção do filme Os famosos e os duendes

da morte não se restringe a uma instância umbilical e auto-centrada, isolada da obra

final, mas, ao contrario, pressupõe, planeja e estimula o lugar e ação do diretor do

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filme, bem como o papel do espectador. Ou seja, o ato criativo não se completa sem a

sua comunicação.

Assim, amparado pela discussão estabelecida pela critica genética, podemos pensar o

período de pré-produção do filme Os famosos e os duendes da morte como um “texto

móvel”, que Philippe Willemart (In: Zular, 2002) diz que “carregado de sentidos

desconhecidos do escritor, o texto móvel insiste até estar completamente esvaziado e

tornando-se um espaço oco sem mais poder sobre o escritor, a ponto de liberá-lo e

deixando-o entregar o texto ao editor” (In: ZULAR, 2002, p. 78). O roteiro é entregue

ao romancista (Ismael Caneppelle), que escreve e apaga, junto com Esmir Filho, o

roteiro e depois o romance e eles ainda re-escrevem e re-apagam junto com as mãos

dos outros artistas envolvidos no processo de filmagem – como Roberto Áudio, que

realiza a oficina de preparação de elenco e como Tuane Eggers com as suas

fotografias. É um período turbulento e instável que produz um “escritura” de igual

natureza. Fica mais fácil e fecundo pensar o processo de filmagem como um “texto”,

com elementos estruturais operadores e dispositivos e até mesmo com precipitações

estéticas.

O processo de escrever um texto, qualquer que seja passa pelo movimento de se fazer,

desfazer e refazer. Ele é regido pelo princípio da incerteza. No desenrolar da escritura

da filmagem do filme Os famosos e os duendes da morte, os poucos marcos de

orientação (nome dos personagens, determinação de falas, determinação de posição

de câmera e posição dos atores diante da câmera) sinalizam, às vezes, algo que não se

quer (como o nome para os personagem de Henrique Larré – Bernardo – e Tuane

Eggers – Jordana – que acabam sendo substituídos). Essas sinalizações estão ali

apenas para se tornarem um descarte, um “não”, uma recusa. Com isso, a forma vai

surgindo de uma dinâmica de exclusões, o set de filmagem não é democrático e não

acolhe tudo, ele expele e regurgita, põe para fora, elimina e fica com apenas o

essencial para conseguir terminar a filmagem.

Interessante notar, por outro lado, quando Esmir Filho opta por não atores

profissionais, por uma escolha de elenco através de uma oficina de formação de

atores, por permitir improvisação, ou ao menos que as idéias sejam discutidas ou

experimentadas, ele assume um caráter profundamente democratizante. E neste lugar

paradoxal, o diretor do filme Os famosos e os duendes da morte, cria um ambiente

que lembra o processo colaborativo das artes cênicas.

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O processo colaborativo, segundo o teatrólogo Antônio Araújo e Silva seria aquele

processo de criação sem hierarquias desnecessárias. Uma metodologia de criação em

que todos os integrantes de grupos teatrais tem uma função. Como Araújo e Silva

explicita:

A expressão processo colaborativo começou a ser usada na segunda metade de década de 90 dentro de um contexto de retomada do movimento de teatro de grupo na cena paulistana. O retorno desta perspectiva grupal, que aparece quase como um contraponto à hegemonia do encenador no teatro brasileiro da década anterior, vai, pouco a pouco, ganhando uma dimensão nacional (...) como uma forma de nomear uma retomada da perspectiva compartilhada de criação. (ARAÚJO E SILVA, 2008, p. 57)

Cecília Salles acrescenta um aspecto importante, na critica do processo, sobre a

“falha”, ou “fracasso”. Para Salles, “o movimento criativo mostra-se, também, como

um percurso falível. As rasuras dão a conhecer as diversas nuances de erros e das

diferentes maneiras de enfrentamento dessa possibilidade de erros.” (p. 186). Deste

ponto nasce, como aponta o teatrólogo Antonio Araújo, citando Salles, “a dificuldade

de se concluir a obra, de se considerar que ela esteja pronta. O fim do processo

representa, apenas, um ponto final suportável na medida em que o artista se vê diante

da impossibilidade de determinar o último absoluto”. (p. 86)

Para encerrar a questão sobre a experiência do processo, cabe falar sobre a mistura e o

híbrido que o inacabamento remete. O diretor de cinema trabalha de forma híbrida

quando ele faz uma montagem de coisas díspares, quando ele agrupa elementos

distantes, dentro de um mesmo processo que vai canalizar em um resultado final

único, que é o filme. E há sempre uma diferença grande entre aquilo que o

diretor/cineasta deseja filmar e aquilo que de fato ele consegue. Daí, olhar o processo

– e o objeto dele resultante – está próximo de uma compreensão complexa de mundo.

Alem disso, escapa enquanto dispositivo regulador de mundo e escapa, também, aos

dispositivos reguladores do “como fazer” cinema de ficção, ou como “analisar” um

filme. São pensamentos compartilhados do tempo contemporâneo, que serão

abordados no próximo capítulo.

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Cap. 3 – PENSAMENTOS COMPARTILHADOS

3.1 DISPOSITIVOS E SUBJETIVIDADES

Quando fiz oito anos de idade, ganhei um diário da minha avó. Era verde, de capa

dura, com folhas desenhadas no seu interior. As garotas que tinham a mesma idade,

costumavam escrever o que lhes aconteciam durante o dia. Eu resolvi inventar um

cotidiano, repleto de sensações, por achar que este seria mais interessante que o

comum, por ser mais interessante que o hábito. Marcel Proust, romancista francês, fez

da nostalgia, da memória, um caminho para vencer o que o hábito poderia apagar.

Como se pudesse dar ao tempo, ou fazer do tempo, outro uso, tratando-o de maneira

diferenciada, percorrendo-o pelo afeto.

Pode se dizer que o romance criado por Proust e, guardada as devidas proporções, o

diário inventado por uma criança são como dispositivos produzidos pela

subjetividade. Antes destes, a própria memória, ou o que se alcança dela, está como

uma linha do dispositivo, como definido por Deleuze, com base em pensamento sobre

a filosofia de Foucault, concebido como a força de voltar-se para sí-mesmo.

Esta dimensão do ‘Si Próprio’ (Soi) não é de maneira nenhuma uma determinação preexistente que se possa encontrar já acabada. Pois também uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela está pra se fazer, na medida em que o dispositivo o deixe ou torne possível. É uma linha de fuga. Escapa às outras linhas, escapa-se-lhes. O ‘Si Próprio’ (Soi) não é nem um saber nem um poder. (DELEUZE, 1996, p. 2)

Como o objeto de estudo deste trabalho é o processo criativo do filme Os famosos

e os duendes da morte, que tem os seus manuscritos expostos na internet, é

necessário falar sobre alguns conceitos do contemporâneo, começando pelo

dispositivo e indo para o rizoma, dialogismo, complexidade e labirintos.

O processo do filme, escapa ao dispositivo regulador de como se fazer cinema

moderno, ao mesmo tempo em que é um dispositivo formador da subjetividade,

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com o voltar-se para si-mesmo de Deleuze (supracitado). Contudo, é preciso

discorrer que o conceito de dispositivo para Agamben (2009, p. 4) aparece como

Qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (AGAMBEN, 2009, P. 4)

O que há no processo de criação do filme Os famosos e os duendes da morte é

uma aproximação com o pensamento da contemporaneidade, é a formação de

sujeitos espectrais. Como acentua Agamben, poderíamos dividir tudo o que existe

entre “os viventes” e “os dispositivos”. E Agamben ainda acentua a relação entre

as duas categorias: “chamo sujeito o que resulta da relação, e por assim dizer, do

corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos.” (2009, p. 13)

Os sujeitos são sempre sujeitados ao poder, contudo, ainda segundo Agamben:

Diferentemente do que acontecia com os dispositivos ditos tradicionais (a confissão, a prisão, as escolas etc.), isto é, um ciclo completo de subjetivação (um novo sujeito que se constitui a partir da negação de um velho), nos dispositivos hodiernos (internet, os telefones celulares, a televisão, as câmeras de monitoramento urbano etc.), não é mais possível constatar a produção de um sujeito real, mas uma recíproca indiferenciação entre subjetivação, da qual não surge se não um sujeito espectral.” (AGAMBEN, 2009, p. 3)

Como nas novas formas de dispositivos, que Agamben chama de “dispositivos

hodiernos” o cinema no tempo presente, o cinema contemporâneo, não consegue

regular completamente o fazer cinematográfico, mas cria uma capacidade de cópia

e re-criação, discutindo autoria, por exemplo. Dá-se a impressão de que a tentativa

de controle gera um outro território, com novas ordens, que por sua vez foge

novamente deste novo território e cria outras e novas formas e segue o mesmo

ciclo. Mas, é possível identificar a forma narrativa hegemônica, contudo o poder

de controle está diluído em diversos outros núcleos. Um exemplo interessante

seria a questão da cópia na criação cinematográfica, ou até mesmo a re-filmagem

de alguns filmes.

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O processo de criação do Os famosos e os duendes da morte copia formas que já

foram testadas e obtiveram um bom resultado em outra da mesma espécie: o uso

de câmeras digitais, a mistura de animação e documentário com histórias de

ficção. Uso de um elenco formado por não-atores profissionais, curso de formação

de elenco.

Sobre a questão da cópia é interessante fazer uso de Bourriaud (2004), que aponta

a criação artística como algo que não nasce apenas do papel em branco:

“Não se trata mais de fazer tábula rasa ou de criar a partir de um material virgem,

e sim de encontrar um modo de inserção nos inúmeros fluxos da produção.”

(2004, p. 13)

Ou ainda, quando afirma:

Evoluindo num universo de produtos à venda, de formas preexistentes, de sinais já emitidos, de prédios já construídos, de itinerários balizados por seus desbravadores, eles não consideram mais o campo artístico (e poderíamos acrescentar a televisão, o cinema e a literatura) como um museu com obras que devem ser citadas ou “superadas”, como pretendia a ideologia modernista do novo, mas sim como uma loja cheia de ferramentas para usar, estoques de dados para manipular, reordenar e lançar. (2004, p. 13)

Há uma criação de caminhos, dentro da “loja de ferramentas para usar”. Como

ainda acentua Bourriaud,

Essa reciclagem de sons, imagens ou formas implica uma navegação incessante pelos meandros da história cultural – navegação que acaba se tornando o próprio tema da prática artística. pois não é a arte, segundo Marcel Duchamp, “um jogo entre todos os homens de todas as épocas”? A pós-produção é a forma contemporânea desse jogo.” (2004, p. 15)

Com as novas formas para o já existente, a arte, segundo Agamben, “pode ser

pensada como produtora de um saber prático que antes de mais nada é também

uma maneira de pensar as relações de poder.” (2009, p. 18)

E num esquema de formação do sujeito espectral, acompanhada de um gesto que

gera uma suspensão. Como acentua ainda Agamben:

Um Olhar para o não-vivido no que é vivido, tal como a vida do contemporâneo. O voltar-se para trás, suspender o passo, ver o escuro na

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luz, entrever um limiar inapreensível entre um ainda não e um não mais e compreender a modernidade como imemorial e pré-histórica são algumas das fraturas, das cisões no tempo com as quais o sujeito, o poeta, tem que lidar. (2009, p. 20)

Nesta nova perspectiva, a arte escapa ao dispositivo controlador moderno, mesmo

que crie novos, fazendo visitas e análises ao tempo que passou, questionando os

dispositivos que existiam, re-estabelecendo novas fronteiras para eles, novas

posições, ao mesmo tempo em que re-estabelece uma nova forma de se mostrar

arte. Nesse aspecto, cabe o “deixar exposto” o processo de criação, compartilhar a

autoria, criar em conjunto, criar baseado no que outros já fizeram. Ainda se

utilizando de Bourriaud (2004) ele traz que “criar é inserir um objeto num novo

enredo, considerá-lo como personagem numa narrativa” (2004, p. 22). E ainda,

mais adiante corrobora:

O artista consome o mundo em lugar e em nome do espectador. Ele dispõe os objetos em vitrines que neutralizam a noção de uso em favor de uma espécie de troca interrompida em que o momento da apresentação surge sacralizado. (2004, p. 25)

A subjetividade, que também é um dispositivo regulador, segundo Rolnik (1989), é a

desnaturalização, a saída do pensamento instintivo, do que seria o natural ou o

habitual, para formas diferentes de sensibilidades, buscando uma espécie de ligação

com algo superior, ou repostas para questões ainda não respondidas. A subjetividade,

ainda, quando formada e arquitetada é sempre plural e polifônica produzindo

universos que:

Afetam as subjetividades, traduzindo-se como sensações que mobilizam um investimento de desejo em diferentes graus de intensidade. Relações se estabelecem entre as várias sensações que vibram na subjetividade a cada momento, formando constelações de forças cambiantes. O contorno de uma subjetividade delineia-se a partir de uma composição singular de forças, um certo mapa de sensações. (ROLNIK, 1989, p. 2)

A ligação com algo superior, apresentada por Rolnik como subjetividade, estaria justo

nas relações estabelecidas entre as sensações, que formam a subjetividade. Se

pensarmos que um filme é formador do dispositivo da subjetividade, o filme Os

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famosos e os duendes da morte, cria um novo desenho para esse dispositivo, criando

novas relações entre as sensações dos participantes do filme, que tem papéis de

colaboração.

Em todo momento, estamos dialogando com outras formas, nos relacionando com

elas. Nós, humanos, podemos realizar a travessia do rio imaginário em uma obra de

arte, em diversos momentos da vida. Podemos nos fazer mestiços em diversificadas

situações. Diante de tal constatação, quase óbvia, de tão simples, como almejarmos

uma arte que alcance os interesses do espírito ou que provoque o sublime? Ou que

seja a única e grande responsável pelo rompimento, atravessamento da subjetividade?

Esmir Filho, na sua obra Os famosos e os duendes da morte opta por contaminá-la

com fontes diversas, criando uma rede de criação.

Em uma ação libertadora, talvez, por permitir pensar o processo fílmico como

múltiplo, facetado, como o casaco de um Arlequim. E ter assim diversas

possibilidades de olhares e leituras, criando como desenho rizomático do filme Os

famosos e os duendes da morte.

3.2 RIZOMA

A arte, como o privilégio de criação do dispositivo da subjetivação, base para

autonomia, como foi dito, está, segundo Cauquelin (2005, p. 33), como o meio mais

direto de se reunir ao absoluto, ao Um, ao princípio de todas as coisas. "A arte se abre

sobre uma visão do todo. A beleza é a chave da compreensão."

Mas, esta abertura, não é uma função, é além uma liberação da arte do domínio das

aparências, para fazer dela o instrumento de uma visão da natureza. Não deve seguir

um conceito comum de belo, sem designar nenhuma pureza ou beleza extrema. Como

traz Abbagnano:

No uso comum e mesmo no erudito (próprio dos críticos de arte e dos filósofos), a noção de “belo” é suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizada, ainda que represente coisas ou pessoas que, por si mesmas, não poderiam ser chamadas de “belas” com base nos cânones correntes. (ABBAGNANO, 2003, p. 368)

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Não importa se o filme Os famosos e os duendes da morte é mais bonito ou mais feio

do que outros. Esse julgamento estético não interfere nas suas construções, do

dispositivo da subjetividade e de escapar do dispositivo regulador do cinema narrativo

moderno. Tendo, assim, neste âmbito, maior relevância a proposta de Paul Valéry

(1998), de distinguir da estética uma poética, trazendo reflexões do artista sobre o seu

processo criativo e sobre a arte de forma geral. Tal proposta, claramente contribui

para enxergar outra formação, constituição de uma obra artística, no caso que afeta

este trabalho, a obra fílmica.

Na obra Mil platôs, Deleuze e Guattari propõem uma simbiose e aliança entre homem

e natureza e natureza e indústria. A obra é considerada e apresentada por François

Ewald, em sua primeira edição, como positivista, seguindo Comte e não se preocupa

em buscar o absoluto, mas sim se ater ao processo de busca.

É no primeiro platô que o conceito de rizoma aparece como aquilo que está no meio,

não começa e nem termina, complexo e múltiplo. E “toda vez que uma multiplicidade

se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das

leis de combinação”. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 13)

O mundo e a natureza estão como caos, no sentido de "um sistema ao mesmo tempo

determinista (em teoria) e imprevisível (na prática): o conhecimento que podemos ter

do seu estado atual nunca será suficientemente preciso, de fato, para possibilitar a

previsão dos seus estados um pouco distantes.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.

89)

Para tanto, os Deleuze & Guattari criaram os princípios do rizoma, daquilo que pode

sê-lo:

1o e 2o - Princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. 3.o - Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as

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pseudomultiplicidades arborescentes. Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade). (DELEUZE & GUATTARI, 1955, pg. 15)

Assim o desenho do processo criativo do filme Os famosos e os duendes da morte é

rizomático. Sendo que neste desenho existem somente linhas (como o dispositivo) e o

agenciamento é a atualização da máquina abstrata, ou seja, a atualização do

“diagrama” como mapa das relações de forças que constituem o poder. Deleuze reduz

assim o “dispositivo” de Foucault a uma atualização do diagrama. Mas só o faz

porque ele pensa a ligação entre a máquina/diagrama e o agenciamento/dispositivo

como um processo de atualização, repensando, desta maneira a pluralidade dos modos

de existência.

As multiplicidades no filme Os famosos e os duendes da morte se definem pelo fora:

pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas

mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o

fora de todas as multiplicidades. A linha de fuga é, ao mesmo tempo: a realidade de

um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a

impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se

transforme segundo esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas

multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam

quais forem suas dimensões.

Seguindo, ainda, os demais princípios:

4° - Princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. 5o e 6o - Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer idéia de eixo genético ou de estrutura profunda. (DELEUZE & GUATTARI, 1955, p. 17)

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Com isto, tem que o dispositivo da subjetividade – que também é o normativo –

alcançado com o filme Os famosos e os duendes da morte tem o desenho do rizoma.

O dispositivo está como o agenciamento e o rizoma se refere a um mapa que deve ser

produzido, construído, “sempre desmontável, conectável, reversível, modificável,

com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga.” (DELEUZE &

GUATTARI, 1955, p. 32) como, novamente, um casaco de arlequim-lunar, como

apresentado na filosofia mestiça de Michel Serres.

Além de ter um desenho rizomático e de se servir para a construção do dispositivo da

subjetividade o processo de criação do filme Os famosos e os duendes da morte se

demonstra mestiço, conforme o conceito de M. Serres.

Em uma espécie de epígrafe do livro “Filosofia Mestiça”, Serres, nos apresenta uma

palavra que tem relevância para o entendimento das suas idéias: Hemiplégicos.

Segundo o dicionário Houaiss (2001, p. 350) Hemiplégicos é aquele que sofre de uma

paralisia total ou parcial da metade lateral do corpo. “Meio-ferido, meio-quebrado”. É

este ponto, uma espécie de opção pelo caminho do meio que perpassa toda a escrita

da obra do filósofo francês. Seria o caminho de um pensamento científico híbrido e

misturado, com uma arquitetura rizomática, distante de uma suposta tentativa de

purificação. Serres critica a possibilidade de “purificação da filosofia”, como um

conceito kantiano. Contudo, sua critica não se atem a revisão textual, releitura de

determinadas obras, o questionamento é indireto.

O Arlequim, no conto que inicia a obra de Serres, como também ao processo de

criação do filme Os famosos e os duendes da morte é uma espécie de chave para o

entendimento da proposta de critica ao pensamento que busca a pureza. Chave, pela

simples razão de abrir o caminho. O autor nos apresenta Arlequim, que afirma algo,

mas sua vestimenta e seu corpo dizem outro (imagem do incoerente). Como falar em

pureza, comprovação de verdades, resolução de paradoxos, se somos seres-humanos

com uma formação múltipla? Temos sangue, epiderme, ossos, cartilagem, enzimas,

proteínas, bactérias, veias, artérias, explosões de metabolismos e metamorfoses

ocorrendo a cada momento em que continuamos vivos. Em nosso processo de criação

somos múltiplos e irresolutos, podemos pregar, estudar, ansiar pela pureza e

perfeição, contudo o resultado final, do humano, é mestiço.

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Da mesma maneira, como querer saber a verdade de um manuscrito de processo que

esta disponível na internet? Como comprovar essa verdade? Alem disso, como

observar um processo de criação que é múltiplo, como no filme Os famosos e os

duendes da morte?

O Arlequim é resumido como híbrido, e por isso, com desenho de rizoma, assim

como o filme Os famosos e os duendes da morte irá apresentar em seu resultado final.

Este nos aparenta pela tradição histórica do nosso pensamento, como monstro. A

esfinge, por exemplo. Tal nos define Grimal:

Monstro feminino a quem se atribuía cabeça de mulher, peito, patas e cauda de leão, mas que estava provida de assas como uma ave de rapina. A esfinge está ligada à lenda de édito e ao ciclo tebano. figura na teogonia hesiódica. (…) esse monstro foi enviado por Hera contra Tebas para castigar a cidade pelo crime de Laio, que amara o filho de Pélops, Crisipo, em amores culpados. estabeleceu-se numa montanha, nas proximidades da cidade. daí, assolava a região devorando os moradores que passavam ao seu alcance. sobretudo apresentava enigmas aos viajantes, que não os conseguiam decifrar. então, matava-os. somente Édipo conseguiu responder-lhe. desesperando, o monstro atirou-se de um rochedo e matou-se. Dizia-se também que Édipo o trespassara com a sua lança. (GRIMAL, 1992, P. 125)

No processo de criação de um filme, o diretor passa por uma passagem, entre a pré-

produção e a pós-produção há uma grande distância, repleta de escolhas. Neste

trabalho pode-se observar o “atravessar o rio” do diretor Esmir Filho, com o filme Os

famosos e os duendes da morte, suas escolhas e o que formou o casado de arlequim

que é o resultado final, o filme pronto.

Mas, Serres diz ser no meio o local de onde nasce um saber mestiço. Idéia que

complementa, mais uma vez, o conceito de rizoma, É, a partir do nada, do meio do

rio, distante das duas margens, onde o pensamento mestiço, híbrido, rizomático ganha

forças. O desenho, a arquitetura do processo de criação do filme Os famosos e os

duendes da morte é esse: rizomatico, mestiço e híbrido. Mistura o que encontrou

pronto na internet (fotografias e vídeos) com o imprevisível de um elenco formado

basicamente por não-atores profissionais e escolhido através de uma oficina de

formação de elenco.

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A idéia de múltiplo está no processo de criação do filme Os famosos e os duendes da

morte. A consciência de si, necessita passar pelo múltiplo. Contudo, para o

pensamento cartesiano, newtoniano, o que prevalece são postulados de validade

absoluta, que nada aproximam-se da idéia de multiplicidade, que tem força e objetivo

no mestiço.

Serres apresenta os falsos mestiços, que estiveram em falsos meios. Que não

reconhecem a força do canhoto, do hermafrodita, de parasitas que não trocam e ainda

necessitam da moral. No filme Os famosos e os duendes da morte tem-se a

consciência do múltiplo, sem questionar o que seria moralmente um privilégio.

A prática cinematográfica, que faz parte do universo do objeto de estudo deste

trabalho, é compreendida como uma produção artística e tem no seu histórico as

referências como ponto principal da possibilidade de sensibilizar o espectador. É uma

criação múltipla (recolhe musica, teatro, literatura, fotografia, artes visuais) que

expõem, cada vez mais, suas misturas como fator de força, como se fosse mestiça,

híbrida e rizomática a sua natureza, demonstrando uma capacidade de pensamento e

exposição de mundo, dialógica e complexa. Capacidade de dialogismo (Bakhtin) e

complexidade (Morin) que está presente no processo de criação do filme Os famosos

e os duendes da morte, especialmente no dialogo entre autores (Esmir Filho e Ismael

Caneppele) e personagens. Para se aprofundar mais nestas questões é imprescindível

discutir, à frente, com maior empenho, os conceitos propostos por Bakhtin e Morin.

3.3 DIALOGISMO E COMPLEXIDADE

Dialogismo, seguindo o pensamento de Bakhtin (2003) é a supressão de uma relação

de força ou hierárquica entre o autor, criador, e personagem, colocando a criação do

segundo como um diálogo com o primeiro. O filme Os famosos e os duendes da

morte tem um processo de criação dialógico, visto que, segundo Bakhtin, o autor deve

criar dentro de seu meio de vivência a sua obra, ou daquilo que domina, para

conseguir convencer. É justo o que o diretor Esmir Filho tece na rede de

compartilhamento que construiu no período de pré-produção do filme em questão.

Neste meio axiológico o personagem estaria em pé de igualdade com o autor. A

multiplicidade de pontos de vista, gerada por tal igualdade, leva o autor, criador, à

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impossibilidade de se tomar um partido ou uma postura absoluta. O diálogo não torna

o personagem independente, apenas aumenta o número de vozes escutadas na obra. O diretor Esmir cria, dentro do universo do seu conhecimento, como salienta Bakhtin:

“O autor não pode inventar uma personagem desprovida de qualquer independência

em relação ao ato criador do autor, ato esse que afirma e informa.” (BAKHTIN, 2003,

p. 183) Esmir Filho está presente como organizador do diálogo, no processo de criação do

filme Os famosos e os duendes da morte. O conhecimento desta função é necessário

para cruzar os diferentes pontos de vista e permitir um resultado polifônico. A

polifonia, aparente no resultado final, evidencia a subjetividade da obra, deixando

maiores espaços em branco, para que o espectador-leitor complete da maneira que lhe

convier, trazendo memórias ou referenciando o tempo presente, o instante. Já a complexidade, ou o pensamento complexo, para Edgard Morin, traz que a

problemática epistemológica baseia-se nas noções de pluralidade e complexidade dos

sistemas físicos, biológicos e antropossociológicos, cuja compreensão requer um

outro paradigma – o da complexidade – o que, por sua vez, funda-se numa outra razão

– razão aberta – que se caracteriza por ser evolutiva, residual, complexa e dialógica e,

por que não, rizomática.

É complexa, porque reconhece a complexidade da relação sujeito/objeto,

ordem/desordem, reconhecendo, também em si própria, uma zona obscura, irracional

e incerta, abrindo-se ao acaso, à álea, à desordem, ao anômico e ao não-estrutural. Na

observação do processo de criação do filme Os famosos e os duendes da morte tem-se

a complexidade da relação diretor/equipe, filme o objeto a ser filmado, ficção e

realidade.

O paradigma da complexidade (que se opõe ao paradigma da simplificação)

encaminha um pensamento complexo que, segundo Morin (2000, p. 387), “(...) parte

de fenômenos, ao mesmo tempo, complementares, concorrentes e antagonistas,

respeita as coerências diversas que se unem em dialógicas e polilógicas e, com isso,

enfrenta a contradição por várias vias”.

Para Morin (2002, p. 133), a organização é “(...) o encadeamento de relações entre

componentes ou indivíduos que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de

qualidades desconhecidas quanto aos componentes ou indivíduos.” Pelo qual uma

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organização ativa produz os elementos e efeitos que são necessários a sua própria

geração ou existência, processo circular pelo qual o produto ou o efeito último se

torna elemento primeiro e a causa primeira (MORIN, 2002, p. 186).

O conceito de ordem extrapola as idéias de estabilidade, rigidez, repetição e

regularidade, unindo-se à idéia de interação, e, recursivamente, da desordem, que

comporta dois pólos: um objetivo e outro subjetivo. O período turbulento da pré-

produção (anterior às filmagens) do filme Os famosos e os duendes da morte

extrapola as idéias de estabilidade e rigidez. O objetivo deste período é o pólo das

agitações, dispersões, colisões, irregularidades e instabilidades, em suma, os ruídos e

os erros. Sendo a partir destes traços que o filme se constrói. O pólo subjetivo é “... o

da imprevisibilidade ou da relativa indeterminabilidade. A desordem, para o espírito,

traduz-se pela incerteza” (MORIN, 2000, p. 200); traz consigo o acaso, ingrediente

inevitável de tudo que nos surge como desordem (MORIN, 2000, p. 178).

Como todo fenômeno de consumo de energia, de combustão térmica, provoca-a,

acentua-a e o ser vivo combate a entropia reabastecendo-se de energia e informação,

no exterior, no ambiente e, esvaziando no exterior, sob forma de resíduos degradados

que não pode assimilar ao mesmo tempo, a vida se reorganiza, sofrendo interiormente

o caráter desorganizador mortal da entropia. A entropia faz parte do processo de

criação d’os Famosos no seu Período turbulento de pré-produção.

Sobre os conceitos de ordem e desordem, Morin considera não ser mais possível o

paradoxo: de um lado, o segundo princípio da termodinâmica indicando que o

universo tende à entropia geral, à desordem máxima, e de outro, neste mesmo

universo, as coisas se organizando, se complexificando, se desenvolvendo. Conclui-

se, assim, que a agitação, o encontro ao acaso (como o encontro do diretor Esmir

Filho e o roteirista Ismael Caneppelle), são necessários à organização do universo e

que é desintegrando-se que o mundo se organiza – esta é uma idéia tipicamente

complexa por unir as duas noções, ordem e desordem.

Essa idéia de complexidade não pretende, segundo Morin (2000), substituir conceitos

de clareza, certeza, determinação e coerência pelos de ambiguidade, incerteza e

contradição, mas fundamenta-se na necessidade de convivência, interação e trabalho

mútuo entre tais princípios.

A noção de sistema se caracteriza como unidade complexa, um todo que não se reduz

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à soma de suas partes constitutivas, que no contato mútuo se modificam e,

conseqüentemente, modificam o todo. Quando afirmo que o filme Os famosos e os

duendes da morte teceu uma rede de compartilhamento, em seu processo de criação,

estou pautando-me no conceito de sistema que Morin discorre. Esse sistema traz a

consciência da multidimensionalidade do si-próprio, e, em contrapartida, nos conduz

à constatação de que toda visão parcial, unidimensional é pobre, porque está isolada

de outras dimensões (econômica, social, biológica, psicológica, cultural, etc.), por não

reconhecer também que somos seres simultaneamente físicos, biológicos, culturais,

sociais e psíquicos, ou seja, seres complexos. O processo de criação do filme em

questão é complexo, compreendendo simultaneamente vários outros processos.

Nestes termos, as sociedades mantém invariantes seus princípios básicos

fundamentais, mas se diferenciam por meio da linguagem, dos costumes, das leis, dos

sistemas hierárquicos, dos mitos etc. (MORIN, 1973, p. 202).

Assim, uma sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas essas

interações produzem um todo organizado que retro-atua sobre os indivíduos, para os

co-produzir em sua qualidade de indivíduos humanos, o que eles não seriam se não

dispusessem da educação, da linguagem e da cultura.

A necessidade de pensar em conjunto na sua complementaridade, na sua coerência e

no seu antagonismo as noções de ordem, de desordem e de organização obriga-nos a

respeitar a complexidade física, biológica, humana. Pensar não é servir às idéias de

ordem ou de desordem, é servir-se delas de forma organizadora, e por vezes

desorganizadora, para conceber nossa realidade. A palavra complexidade é palavra

que nos empurra para que exploremos tudo e o pensamento complexo é o pensamento

que, armado dos princípios de ordem, leis, algorítimos, certezas, idéias claras,

patrulha no nevoeiro o incerto, o confuso, o indizível.

Complexus significa o que foi tecido junto, de fato, há complexidade quando

elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o

político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e no processo de

criação do filme Os famosos e os duendes da morte há um tecido interdependente,

interativo e retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o

todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso a complexidade é a união entre a

unidade e a multiplicidade e também serve de conceito fundamental para esta

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dissertação. A educação deve promover a inteligência geral apta e referir-se ao

complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global.

Interessante unir o conceito de Morin com a pesquisa do neurocientista brasileiro

Miguel Nicolelis. Em entrevista ao programa ciência e tecnologia do programa

GloboNews, no dia 04 de julho de 2011, sobre o lançamento do seu mais recente livro

"Muito Além do nosso eu", o cientista brasileiro traz interessantes contribuições sobre

a capacidade do cérebro humano se libertar dos limites físicos do corpo, em uma

interface cerebro-máquina, sendo utilizado para aumentar o alcance do ser humano. O

cérebro humano, segundo Nicolelis, funciona como um simulador, escultor da nossa

realidade, definindo uma opinião do que é o mundo e do senso de ser de cada um de

nós. Sendo que tudo o que observamos é uma ilusão construída dentro da nossa

cabeça.

Com a quantidade de estímulos e informações que temos dado ao nosso cérebro,

estamos modificando a maneira como ele funciona, criando um novo paradigma e

uma outra realidade. As próprias ferramentas que utilizamos, como celulares,

computadores pessoais, carro entre outros, são lidos como extensão do nosso eu.

Assim, o cérebro agiria como uma espécie de camaleão, incorporando o relativismo, e

como o conceito de complexidade de Morin, fundindo tempo e espaço, aberto e

fechado, certo e errado, obscuro e iluminado, sendo esta a única maneira de lidar com

a complexidade do universo. E este novo paradigma influencia um outro tipo de

criação artística, processual, como a criação do filme Os famosos e os duendes da

morte, que deixa exposto na internet seus indícios de processo.

Para expandirmos a capacidade cerebral, é necessário saber que o limite para o

humano está na capacidade energética. Não utilizamos toda a capacidade cerebral,

porque nosso corpo não manda toda energia, não tem uma bateria extra, não tem a

capacidade de mandar a quantidade sangüínea necessária. As máquinas seriam a

nossa capacidade de expansão, segundo o neurocientista, por elas ampliarem a

energia. Contudo, não existe a possibilidade de reduzir o cérebro humano, a

criatividade humana, ao algorítimo computacional. Criar poesia o robô não consegue,

esta complexidade, apenas o cérebro humano.

A fusão do incerto e certo, no meio, com um pensamento complexo, como apresenta o

processo de criação do filme Os famosos e os duendes da morte, aparenta um estado

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caótico, que levaria para labirintos, como tratado por Omar Calabrese.

3.4 – LABIRINTOS

A caoticidade é provocada justamente pela superposição das informações advindas

das artes, como Morin o exemplifica, advinda dos poemas/poetas, que se configuram

como labirintos de espelhos. Ao tentarmos compreender a lógica de um dos espelhos,

o outro espelho modifica e complexifica a informação daquele, e assim ad infinitum.

O labirinto, segundo Calabrese, "é apenas uma das formas do caos, entendido como

complexidade, cuja ordem existe, mas é complicada ou oculta" (1999, p. 30). Essa

ordem "oculta" produz a perda do referencial acarretando o que Calabrese chama de

"prazer da obnubilação", ou seja, o prazer de ver-se perdido e ser instigado a

encontrar o centro do labirinto. O prazer motivado por essa desorientação e pelo

"mistério do enigma" é semelhante ao prazer sentido por mim ao me defrontar com a

obra de Esmir Filho. Da mesma forma é o prazer do período turbulento da pré-

produção do filme Os famosos e os duendes da morte, como é observado por seus

indícios e documentos de processuais.

O nó e o labirinto são imagens recorrentes no movimento estético conhecido como

Barroco histórico, assim como a descrição de casos - ou histórias - em que a agudeza

e perspicácia do espírito humano conseguiu vencê-los e restabelecer a ordem nas

coisas-do-mundo. Para Calabrese, "onde quer que ressurja o espírito da perda em si,

da argúcia, da agudeza, aí reencontramos pontualmente labirintos" (CALABRESE,

1999, p. 146). O nó e o labirinto são complexidades que trazem em si a existência de

uma linearidade, de um conjunto, ou mesmo de várias linearidades e vários conjuntos:

o nó é uma dobra ou redobra de uma linha - ou mesmo várias - e o labirinto, um

emaranhado de percursos, dos quais apenas um leva à saída, ou à solução do

problema. Para resolvê-los e desemaranhar o nó e também sair do labirinto é preciso

encará-los com a “ambigüidade de quem observa a globalidade do sistema em questão

e ainda o microcosmo do nó ou do labirinto” (CALABRESE, 1999, p. 147).

Na busca por algo que signifique, o processo de criação d’os famosos, no seu universo

particular, quase inexplicável e pouco inatingível acarreta processos que são

complexos e labirínticos, apesar de, em alguns casos, a saída ser bastante clara e

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exposta. Dentre as diversas manifestações artísticas, o cinema traz algo interessante

que é a supressão do tempo, de quem o assiste e admira, o espectador desliga-se do

que ocorre fora da sala de projeção. Contudo em uma obra expandida, com seus

indícios de processo expostos na internet, o espectador é convidado a participar,

seguindo esses rastros. Se ele entra ou não é uma escolha que lhe cabe. Ir alem de tais

indícios e chegar aos documentos processuais foi o caminho feito nesta dissertação.

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4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurei ao longo do trabalho descrever e analisar algumas experiências do processo

de criação do filme Os famosos e os duendes da morte. Parti, inicialmente dos

indícios de processo que ficaram expostos na internet através do blog do roteirista

Ismael Caneppelle, do fotolog dos atores Tuane Eggers e de Henrique Larré e do

canal no youtube do diretor Esmir Filho. Nessa etapa identifiquei três matrizes

fundamentais de análise do processo: as fotografias e os vídeos de Tuane e a oficina

de formação de elenco. Nas três experiências o papel do diretor moderno e autocrático

foi, de certa forma, redimensionado, sendo que Esmir Filho cria mais uma rede de

colaboração, do que uma equipe para seguir suas ordens. Pode-se falar em um projeto

utópico de direção coletiva no cinema, no qual o diretor coordenaria apenas as ações

dos outros núcleos criativos.

A pré-existência de um projeto grupal ou comum permite, também, que as autorias

individuais possam se constituir, sem colocar em risco a prática da filmagem, sem

atrasar o processo de filmagem do roteiro. A vida pessoal, ou aquilo que se

disponibiliza para exibição, também faz parte da criação do filme Os famosos e os

duendes da morte. São fotografias pessoais da Tuane Eggers e os vídeos em que ela

estaria experimentando.

De fato, como nos lembra André Brasil (2010, p. 3), dos shows de realidade aos

vídeos pessoais na internet, das redes sociais aos games, dos documentários às

experiências de arte contemporânea, “a vida ordinária é convocada, estimulada,

provocada a participar e interagir, em uma constante performance de si mesma”.

Nesse panorama em que os biopoderes, como tão bem cartografou Foucault,

microfísicos e capilarizados por todo o corpo social, produtivos e não mais

repressivos ou punitivos, cada vez mais seduzem, solicitam e convocam nossa ativa

colaboração – seja por meio de renovadas estratégias de interação, seja por meio de

nossa voluntária observação –, o espectador é tornado um colaborador, que, por suas

próprias mãos e seus próprios dispositivos, fará o jogo se ramificar por todo lugar.

Em Os famosos e os duendes da morte, o espectador pode ser mais que um

colaborador se ele tiver a curiosidade de seguir os indícios do processo de criação que

ficaram expostos pela internet. Chega-se no ponto onde se questiona o que é de fato

um documento processual, ou o que foi colocado ali para parecer que era. O que é de

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fato o crível, o real e o que está sendo manipulado e, em Os famosos, ainda não se

difunde a ideia de um real opressor ou que funcione como um dispositivo regulador.

Aliás, o próprio filme foge do que seria o dispositivo, o manual, do fazer

cinematográfico moderno no momento em que cria as suas próprias redes de troca,

compartilhamento e criação através da internet e do ciberespaço.

Ativo, interativo e, sobretudo, participativo, o outrora espectador, com o filme Os

famosos e os duendes da morte, se torna o grande produtor contemporâneo: produz

experiências, valor, imagens, formas de vida, gestos performativos e palavras de

ordem. Modifica roteiros, insere vídeos e foto em um filme pronto. Quanto mais crê

ser livre para interagir, escolher e decidir, e, do mesmo modo, quanto mais crê ser

livre para se desengajar ou desistir, quando assim lhe for conveniente, mais o

espectador-colaborador contemporâneo se coloca disponível aos desígnios de um jogo

que, como tal, pretende excluir toda distância, perspectiva e exterioridade da imagem,

em que não haveria mais posicionamento e julgamento de fato. Pois, para que se

possa ver, avaliar e valorar é preciso, ao tomarmos uma posição, que algo permaneça

excluído. “Uma perspectiva é não apenas o que limita nosso campo de visão, mas,

sobretudo, o que o torna possível: pretender suprimi-la para alcançar as coisas ‘em si

mesmas’ seria um absurdo comparável a querer suprimir os olhos para ver melhor”,

escreve Silvia Pimenta Velloso (2003, p. 215), salientando que é inútil pretender saber

o que há para além das perspectivas, porque essa investigação, por sua vez, teria lugar

no interior de uma perspectiva.

No processo de construção desta dissertação, em alguns momentos eu agi como se

estivesse com um texto móvel, podendo ser modificado conforme os rastros do filme

Os famosos e os duendes da morte fossem encontrados e conforme outras e novas

leituras eu iria fazendo. Já no final do ano de 2010 participei de um mini-curso sobre

o filósofo Vilém Flusser e percebi que, quando Flusser (2002) conceitua a imagem

como código que traduz eventos em situações e processos em cenas, ele estava se

referindo ao tempo pontual característico da fotografia. Um questionamento constante

da fotografia contemporânea é o de sua temporalidade: a imagem fotográfica congela,

interrompe e imobiliza um único instante na cadeia extensiva do tempo. Qual função

teria uma fotografia em um filme? Mais do pixializar imagens, mais do que inovações

estéticas, as fotografias da garota Tuane Eggers traz uma mistura de texturas (filme e

imagem digital) e uma possibilidade de congelar o tempo da narrativa, desacelerar os

conflitos de outros personagens.

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Aliás, a imagem não é mais tomada como algo dado, para ser lida em profundidade e

contextualizada. Na produção atual da Media Art, as estruturas temporais das imagens

tornam-se visíveis não como mera disposições narrativas, mas como programas que

precisam ser executados e assim atualizados pelo espectador. Nesse contexto não

existem superfícies limitadas, cobertas por uma construção visual – existem imagens

dinâmicas, atualizadas e constantemente modificadas em tempo real.

Mas, a grande questão que levou este trabalho até aqui é: qual a razão da exposição de

alguns indícios de processo pelo filme Os famosos e os duendes da morte? Para quem

trabalha com cinema, há uma brincadeira: o que acontece no set de filmagem, fica no

set de filmagem. Dali sai apenas o filme na lata, que será montado depois pelo diretor

e uma outra equipe. O que vemos em Makking-off é aquilo que o diretor e equipe

permitem que vejamos, um outro material editado e montado para nos dar uma ideia

do que foi a feitura do filme. Contudo, quando se utiliza a internet como espaço de

criação, como ferramenta de criação, o ciberespaço torna-se o ambiente dos

manuscritos da obra. Não temos mais apenas o estúdio, os escritórios, os diários do

diretor: temos o blog do roteirista, temos o canal no youtube do diretor de um filme.

Mas, ainda, qual a razão de se expor? Aprofundando na pergunta: o que vai de Esmir

Filho e de Ismael Caneppelle nessa exposição? Ou o que eles buscam com isso? Na

junção e na rede criada por Esmir, há de se observar o quanto o personagem vivido

por Henrique Larré lembra fisicamente o diretor, é como se pudéssemos observar o

Esmir adolescente. A presença de Esmir no filme como um amigo virtual (com o

nickname E.F.) do personagem de Larré é uma metáfora de um seu “eu” no futuro

chamando o seu “eu” do passado para fugir, mudar, sair do lugar. A exposição está

em uma forma de tentarmos descobrir mais sobre o filme Os famosos e os duendes da

morte, para com que Esmir Filho e sua equipe se diluam no ciberespaço e nele mesmo

se encontrem, fazendo o movimento (como o da respiração) de contrair e expandir e

sendo esta movimentação um traço característico do contemporâneo. Ser processual,

disforme, mestiço e híbrido seria uma característica dessa movimentação, de se

mostrar e de calar. E neste movimento, com a utopia de um diretor coletivo de

cinema, o trabalho do diretor Esmir Filho pressupõe, em alguma medida, um processo

compartilhado de criação, referindo-se, portanto, a uma poética de criação em que a

função do diretor esteja presente e assumida, porém operando num campo múltiplo e

híbrido de criação. Com esta nova função, neste novo espaço, tem-se um cinema

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provocador, com uma narrativa contaminada e marcada por uma autonomia relativa

de cada participante do filme, em uma cinematografia desterritorializada. O que seria

invisível e o que seria visível convergem-se na contradição e na consonância sem um

anular o outro. (o corpo na vida cotidiana, o corpo no vídeo, no youtube) Se há algum

conflito está na ordem da vida que se manifesta, na força intrínseca de ter a carne

exposta, mesmo quando disfarçada. O desnudamento, neste caso, está também no ato

de cobrir-se. Ser e estar, agir e pensar.

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