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1 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE UMA CONTRIBUIÇÃO MATEMÁTICO-COGNITIVA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL: O SENSO NUMÉRICO por MARIA ANTONIETA NETO RAMOS Orientador: Prof. MS. NILSON GUEDES DE FREITAS Rio de Janeiro Abril/2005

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

UMA CONTRIBUIÇÃO MATEMÁTICO-COGNITIVA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL: O SENSO NUMÉRICO

por MARIA ANTONIETA NETO RAMOS

Orientador: Prof. MS. NILSON GUEDES DE FREITAS

Rio de Janeiro Abril/2005

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

UMA CONTRIBUIÇÃO MATEMÁTICO-COGNITIVA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL: O SENSO NUMÉRICO

por MARIA ANTONIETA NETO RAMOS

Trabalho monográfico apresentado como requisito parcial para a obtenção

do grau de especialista em PSICOPEDAGOGIA.

Orientador: Prof. MS. NILSON GUEDES DE FREITAS

Rio de Janeiro Abril/2005

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AGRADECIMENTO

A meus pais, pois sem eles não haveria o aqui e agora,

em especial à minha mãe Otília,pelos ensinamentos de fé, coragem e perseverança

e a todos os que em mim deixaram sementes de bondade.

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DEDICATÓRIA

A todos os que com amor ajudaram

a construir a professora que sou.

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EPÍGRAFE

Toda a criação existe dentro de você, e tudo o que existe em você também existe na Criação.

Não existem fronteiras entre você e um objeto que esteja bem perto, assim como não há distância entre você e os objetos que estão muito longe.

Todas as coisas, as menores e as maiores, as inferiores e as superiores, estão à sua disposição dentro de você, uma vez que são inatas.

Um único átomo contém todos os elementos da terra. Um único movimento do espírito contém todas as leis da vida.

Numa única gota de água encontramos o segredo do oceano sem fim. Acima de tudo, uma única manifestação sua

contém todas as formas de manifestação da própria vida.

Kahlil Gibran (disponível em: http://luizcd.sites.uol.com.br/Philaletheus.htm)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1. UM POUCO DA HISTÓRIA DOS NÚMEROS 12

2. A PERCEPÇÃO NUMÉRICA DOS ANIMAIS 17

3. DISCRIMINANDO NUMEROSIDADES 25

4. O CÉREBRO A E MATEMÁTICA 32

5. A APRENDIZAGEM E O MÓDULO NUMÉRICO 38

CONCLUSÃO 47

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 50

ANEXO I 53

ANEXO II 54

ANEXO III 55

ANEXO IV 56

ÍNDICE 57

FOLHA DE AVALIAÇÃO 59

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RESUMO Esta monografia é o resultado da pesquisa bibliográfica realizada com o propósito de constituir elementos para solucionar o problema: De que forma o saber sobre a habilidade natural do cérebro ao processar números pode ajudar professores a ensinar fatos, procedimentos e conceitos matemáticos? Tomou-se como delimitação o Ensino Fundamental no município do Rio de Janeiro. O objetivo geral foi o de mostrar que há em todo ser humano uma faculdade numérica que se encontra geneticamente impressa no cérebro – senso numérico ou módulo numérico-, e que é o resultado de um processo evolutivo de adaptação por seleção natural, servindo de base intuitiva para a aquisição e manipulação das noções aritméticas elementares. O desenvolvimento e os resultados de pesquisas feitas por neuropsicólogos como Stanislas Dehaene e Brian Butterworth, e também do psicólogo David C. Geary, sustentam as linhas traçadas neste trabalho para elucidar o complexo problema de como compreendemos e executamos mentalmente tarefas aritméticas. As pesquisas sobre o senso numérico em animais e bebês humanos, aliadas aos recursos tecnológicos das neurociências trazem novas evidências sobre a arquitetura e o funcionamento cerebral no domínio numérico. O “módulo numérico” é inato no homem e lhe confere a capacidade para o pensamento matemático. Sua expansão, porém, depende de como e quanto conhecimento é adquirido da cultura em que se vive através da aprendizagem. A compreensão desse assunto pode trazer importantes reflexões acerca da concepção que os professores têm do que seja aprender matemática.

Palavras chaves: Matemática. Educação. Cérebro. Cognição.

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INTRODUÇÃO

É fato corriqueiro em nossa cultura, e já considerado tradicional, ver a

matemática como um sistema de processamento simbólico, assim como a

linguagem, que caracteriza e distingue o homem dos animais. Assim associamos a

aritmética e a linguagem, e justificamos a idéia de que no aprendizado o uso dos

números é dependente da capacidade da fala humana.

Todo o ensino da aritmética admite-se, portanto, é organizado em torno de

nossa fala, tal como, por exemplo, o recitar dos números e a memorização da

tabuada como listas de frases.

Uma nova visão do problema surgiu na última década do século XX,

conhecida como a Década do Cérebro, motivada pelo desenvolvimento das

neurociências, para as quais o conhecimento e o uso dos números são processos

resultantes da evolução biológica do homem na terra e suportada por circuitos

neurais específicos.

Nosso sentido numérico é inato ou adquirido? Como é feita a

representação dos números em nosso sistema cognitivo? Como funciona nosso

cérebro quando resolvemos um problema de álgebra ou de geometria? Que

circuitos neurais se associam com a aritmética mental?

Na tentativa de responder a perguntas como estas, recentes pesquisas da

neurobiologia e da neuropsicologia derramaram luz sobre o complexo problema

de como compreendemos e executamos mentalmente tarefas matemáticas.

Os resultados das pesquisas provêem de estudos e investigações feitas

através de experiências cognitivo-condutoras, estudos de pacientes com lesões

cerebrais e o uso de técnicas de imagens cerebrais executadas enquanto o cérebro

está realizando alguma operação aritmética.

Com base em estudos e experiências dois neuropsicólogos, Stanislas

Dehaene (1997) e Brian Butterworth (1999) demonstraram a existência de

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faculdades cognitivas inatas no cérebro humano. Dehaene desenvolve seus

trabalhos e estudos no Service Hospitalier Frederic Joliot de Orsay, na França e

junto com outros cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT)

apresentou, na revista Science de 7 de maio de 1999, a primeira forte evidência da

existência de duas modalidades de atividades cerebrais completamente diferentes

que subjazem nossa capacidade inata para a matemática. Uma delas se concentra

no lobo frontal esquerdo e é responsável pelo controle das representações

lingüísticas dos valores numéricos exatos. Já a outra modalidade de atividade

cerebral está concentrada no lobo parietal e controla as representações visuo-

espaciais, à qual Dehaene (1997), inspirado em Tobias Dantzig (1970) denominou

de “Senso Numérico”.

Concomitantemente, um outro cientista, Brian Butterworth, professor de

neuropsicologia cognitiva da University College of London chega à mesma

conclusão de seu colega francês e referencia como “Módulo Numérico” esta

última modalidade cerebral.

Diante deste novo quadro teórico Keith Devlin (2004), diretor executivo

do Centro de Estudos de Linguagem e Informação e professor do Departamento

de Matemática da Universidade da Stanford destaca a contradição com a proposta

piagetiana segundo a qual o cérebro humano, partindo de zero, constrói todas as

suas estruturas cognitivas por meio de um processo dialético de interação com o

mundo circundante.

Esse “Senso Numérico” como querem uns ou “Módulo Numérico” como

querem outros é um conjunto de circuitos neurais altamente especializados que

nos capacita a categorizar pequenas coleções em termos de numerosidades (até 4

no máximo), pois perceber- las ao nosso redor é tão básico quanto enxergar o

mundo em cores. As cores não estão no mundo físico, elas são um atributo

construído pelo nosso cérebro assim como os números (Dehaene, 1997,

Butterworth, 1999).

O objetivo geral desta monografia é mostrar que o “Senso Numérico” é o

resultado de um processo evolutivo de adaptação por seleção natural servindo de

base intuitiva para a aquisição e manipulação das noções aritméticas elementares.

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Tomou-se como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica para

desenvolver a resposta para o problema: “De que forma o saber sobre a habilidade

natural do cérebro ao processar números pode ajudar os professores do Ensino

Fundamental no município do Rio de Janeiro a ensinar fatos, procedimentos e

conceitos matemáticos?”.

No primeiro capítulo delineamos alguns aspectos históricos que permeiam

a evolução e criação do um, dois, três, quatro e até o cinco, como elementos

protonuméricos e sua intrínseca relação com o senso numérico. Para isso,

buscamos os registros de historiadores como Carl Boyer e matemáticos como

Tobias Dantzig e Malba Tahan.

No segmento seguinte abordamos alguns experimentos com animais,

relatados por DEHAENE (1997), BUTTERWORTH (1999) e DEVLIN (2004),

que demonstram serem aqueles capazes de discriminar conjuntos com pequenas

numerosidades (até 4 no máximo), ou seja, serem possuidores de senso numérico;

e capazes, também, de realizar somas e subtrações.

Relatamos no terceiro capítulo experimentos realizados a partir de 1980

sobre a competência numérica dos bebês (DEHAENE, 1997; BUTTERWORTH,

1999) mostrando que eles nascem com senso numérico e podem até participar de

atividades de adição e subtração com numerosidades até o máximo de 4

elementos. Apresentamos, também, o modelo evolucionário do psicólogo e

professor da Universidade do Missouri, David C. Geary, que estabelece princípios

para a compreensão das influências biológicas e culturais no desenvolvimento

cognitivo e cultural das crianças.

Prosseguindo, no quarto capítulo, apresentamos vários estudos com

pacientes cujos casos neurológicos embasam a nova teoria cognitiva e abordamos

os aspectos relativos às áreas do cérebro envolvidas com a matemática

(DEHAENE, 1997; BUTTERWORTH, 1999; ROCHA E ROCHA, 2000

ALONSO & FUENTES, 2001; DEVLIN, 2004).

Por fim, no quinto capítulo, focalizamos a relação entre o “Módulo

Cerebral Numérico” com a aprendizagem. Destacamos a importância pedagógica

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que tem o saber sobre a existência de um mecanismo mental bidirecional –

consciente e inconsciente – atuando na aprendizagem da matemática (DEHAENE,

1997; BUTTERWORTH, 1999).

Assim, pretendemos apresentar uma pesquisa bibliográfica atualizada dos

resultados mais importantes na área matemático-cognitiva com o sentido de

proporcionar novos conhecimentos implicados na realização de tarefas aritméticas

e oferecer subsídios à reflexão psicopedagógica para o ensino-aprendizagem da

matemática no Ensino Fundamental.

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1. UM POUCO DA HISTÓRIA DOS NÚMEROS

Pode-se chegar de maneira lógica à noção de número sem recorrer aos

artifícios da contagem. Imaginemos a seguinte situação: entramos numa sala de

teatro, temos diante de nós dois conjuntos, o das poltronas da sala e o dos

espectadores. Sem contar, é possível afirmar se os dois conjuntos têm ou não igual

número de elementos e, se não o têm, qual é o de maior ou menor número, visto

que se todas as cadeiras estiverem tomadas e parte da audiência estiver de pé,

sabemos sem contar que existem mais pessoas do que poltronas.

Esse conhecimento é derivado de um processo que domina toda a

Matemática e que é denominado de correspondência um a um. Consiste em

designar para cada objeto de uma coleção um objeto da outra, continuamente até

que uma das coleções, ou ambas, estejam esgotadas.

Muitos povos primitivos desenvolveram suas técnicas numéricas a partir

de uma comparação ou equiparação semelhantes. Mantinham o registro de seus

rebanhos ou exércitos através de marcas feitas numa árvore ou seixos arrumados

numa pilha. Isto é facilmente deduzido quando se verifica a etiologia das palavras

talha e calcular. A primeira vem do latim talea, que significa corte, e a segunda,

também do latim, cálculos, que vem a ser seixo, pedra (DANTZIG, 1970).

O homem pré-histórico amontoava pedras para registrar e conservar as

informações numéricas, o que lhe trazia dificuldades de manuseio, então passou a

fazer seus registros, com marcas, num bastão ou pedaço de osso.

Na Tchecoslováquia foi achado um osso de lobo com profundas incisões, em número de cinqüenta e cinco; estavam dispostos em duas séries, com vinte e cinco numa e trinta na outra, com os riscos em cada série, dispostos em grupo de cinco. (BOYER, 1974, p.3).

Descobertas arqueológicas como esta, nos dão provas de que a idéia de

número é muito mais antiga do que o uso de metais ou de veículos com rodas,

“precede a civilização e a escrita, no sentido usual da palavra, pois artefatos com

significado numérico (...) vêm de um período cerca de trinta mil anos atrás”. (Id.

ibid., p.3)

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Esse processo de correspondência um a um permite apenas um meio de

comparação de duas coleções, mas é inoperante para a criação de números, no

sentido absoluto da palavra.

Fazer a transição de números relativos para absolutos não foi difícil. A

tarefa foi, então, criar coleções modelo, cada uma representando uma possível

coleção. No começo, as noções primitivas de número, grandeza e forma

relacionavam-se muito mais com contrastes do que com semelhanças, pois a

diferença entre um lobo e muitos, a desigualdade do tamanho entre uma sardinha

e uma baleia, a diferença entre a forma redonda da lua e a retilínea de uma árvore,

eram constatações que se evidenciavam de imediato. As próprias diferenças

podem ter indicado semelhanças, pois o contraste entre um lobo e muitos, um

carneiro e um rebanho, entre uma árvore e uma floresta, indicam que um lobo, um

carneiro e uma árvore têm algo em comum, isso é, sua unicidade. Do mesmo

modo era observável que certos grupos, como os pares, podem ser postos em

correspondência um a um; as mãos podem ser relacionadas com os pés, os olhos,

as orelhas ou as narinas. Assim, a partir de seu ambiente imediato os homens

primitivos foram em busca de modelos representativos: as asas de um pássaro

podiam simbolizar o número dois, um trevo, três, as pernas de um animal, quatro,

seus próprios dedos, cinco.

Chegar a essa percepção, de uma propriedade abstrata que certos grupos

têm em comum, foi o grande passo para alcançar-se a concepção atual de número

e a criação de novas possibilidades que permitiram a evolução da Matemática.

Entretanto, esse processo foi longo e gradual e pode ter ocorrido “tão cedo no

desenvolvimento cultural do homem quanto o uso do fogo, talvez há 300 000

anos” (BOYER, 1974, p.1).

Há registros de que certas línguas como o grego, por exemplo,

conservaram na sua gramática uma distinção tripartite entre um, dois e mais de

dois. Isto evidencia que nossos mais antigos antepassados a princípio contavam só

até dois, para qualquer conjunto de elementos acima desse nível era denominado

como ‘muitos’.

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Conta-nos o professor Agliberto Xavier (apud TAHAN, 1969) que

Pitágoras - filósofo, geômetra e moralista, que viveu na Grécia cinco séculos antes

de Cristo - convencera-se de que a nossa inteligência era regida por leis numéricas

mas que ele não dispunha de recursos para formular, esclarecer e explicar essas

leis. Como para Pitágoras o mundo era regido pelos números, então ele devia

sentir por toda parte a sua influência. Entretanto, foi com a Teoria Subjetiva dos

Números de Augusto Comte, já agora no século IXX, que a intuição do mestre

Pitágoras encontrou explicação, conforme nos esclarece Agliberto:

Toda essa doutrina repousa nas propriedades filosóficas dos três primeiros números, únicos comuns aos animais e ao homem, e únicos suscetíveis, mesmo no homem, de ser abstratamente concebidos sem nenhuma linguagem, sem nenhum artifício especial. Um representa toda sistematização, porque toda construção em que não prevalece a unidade do princípio é viciosa. Dois distingue sempre a combinação, pois que a nossa inteligência é de tal modo formada que não comporta combinação mais que binária. Três caracteriza sempre a progressão que, não sendo ternária, se torna ilusória. (TAHAN, 1969, p.9)

Nos hieróglifos egípcios primitivos era o número um representado por um

dedo esticado, apontado para cima; esse mesmo dedo, sem mudar de posição

passou, em inscrições posteriores, a representar o número mil. Nas escritas antigas

(chinesa, árabe, persa, etc.), o algarismo um limitava-se a uma pequena barra e,

algumas vezes, por um simples ponto. Os gregos e os hebreus adotavam a

primeira letra do respectivo alfabeto para representar o um.

O número dois, na Antiguidade, era, em geral, simbolizado por duas

pequenas barras (cada uma delas representando a unidade), ou, então, por dois

pequenos pontos. Na antiga numeração dos maias, indígenas da América Central,

o número dois era representado por um par simétrico de pequenos círculos.

É de supor que o dois tenha sido representado primitivamente por um sinal resultante da letra Z. Com o correr do tempo esse sinal foi-se modificando, tomando a forma que tem atualmente. (TAHAN, 1969, p.43, grifo nosso)

O vocábulo três se origina de uma forma existente na língua sânscrita. Os

antigos brâmanes (na Índia) usavam o sânscrito como língua sagrada e contavam

do seguinte modo: eka, dva, tri. A tradução perfeita desses vocábulos seria: um,

dois, excede (três) (Tahan M., 1969). O tri (três) era chamado de excede por

exceder o termo antecedente dois. Nisto há uma estranha e curiosa explicação.

Primitivamente a contagem de coisas era feita pelos dedos da mão, dos quais o

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terceiro dedo excede os outros. Assim, o nome do dedo tri passou a designar o

número três. A língua sânscrita foi usada na Índia 1500 anos antes de Cristo. O

sânscrito deu origem a várias línguas e dialetos falados atualmente.

Sobre a origem remota do número três, diz-nos o professor Antonio

Aniceto Monteiro, ilustre matemático português:

Na língua francesa existem duas palavras trois (três) e très (muito) próximas parentas, talvez vestígios de época em que o homem não contava além de dois; mais notável é o caso da palavra inglesa thrice que tem duas significações – três vezes e extremamente. De certo ainda existem sociedades em que só há nomes para os números um e dois. (TAHAN, 1969 – p.70, grifo do autor)

Já vimos que durante um período imemorial da infância de nossa espécie,

não se contava além de três. Assim, muito provavelmente, o quatro surge

tardiamente, ou por meio do dois, ou por intermédio do cinco e do um, haja vista a

notação romana IV, que vem a ser cinco menos um. Note-se que o sinal romano V

parece ser uma representação simplificada de uma mão aberta com o polegar

afastado. Segundo essa origem, o advento do quatro como cinco menos um

constitui a primeira manifestação teórica da subtração.

A transição rumo a um sistema de numeração mais avançado parece ter

envolvido partes do corpo humano no processo de contagem. Em partes da Nova

Guiné, por exemplo, esse sistema é utilizado. A contagem começa com o polegar

de uma mão e prossegue por 29 locais distintos do nosso corpo antes de alcançar a

extremidade da outra mão. (FLAVELL, 1999). Historicamente, portanto, dedos e

outras partes do corpo humano serviram de base para a linguagem dos números.

Entretanto, nossos dedos formam um conjunto finito, na verdade até bem

pequeno, mesmo que lhes acrescentemos outras partes de nosso corpo estaremos

limitados a números no entorno de trinta. Torna-se impraticável aprender nomes

diferenciados e arbitrários para cada número. A solução estruturou-se na medida

em que foi sendo criada uma sintaxe que permitiu expressar números maiores

através da combinação dos menores. Assim, chegou-se ao processo da contagem.

Foi a contagem que consolidou o concreto e, portanto as noções heterogêneas de

pluralidade, tão características do homem primitivo. E foi através do uso dos

dedos que o homem encontrou o artifício que lhe permitiu passar

imperceptivelmente dos números cardinais para os ordinais. Seus dez dedos

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articulados o ensinaram a contar, permitiram-lhe ampliar sua percepção numérica

rudimentar, isto é, seu senso numérico, e lançar-se rumo ao progresso material e

intelectual.

Os aspectos históricos delineados até aqui permitem estabelecer dois

processos distintos relativos à capacidade humana:

a. A capacidade inata, inconsciente, de reconhecer pequenas quantidades sem

o auxílio de qualquer artifício (no caso, a contagem), o senso numérico;

b. O processo mental consciente denominado contagem, e que é sustentado

pela linguagem simbólica, atributo exclusivamente humano.

Como vemos, a noção de número e suas extraordinárias generalizações

estão intimamente ligadas à história evolutiva do homem, a qual se mescla com a

evolução histórica do número. Talvez, por isso, intuitivamente Dantzig (1954,

p.15) evocou que:

O homem, mesmo nas mais baixas etapas de desenvolvimento, possui uma faculdade que, por falta de um nome melhor, chamarei de Senso Numérico. Essa faculdade permite-lhe reconhecer que alguma coisa mudou numa pequena coleção quando, sem seu conhecimento direto, um objeto foi retirado ou adicionado à coleção.

O sentido do número, em sua significação primitiva e no seu papel

intuitivo, não se confunde com a capacidade de contar, que exige um fenômeno

mental mais complexo. A contagem é um atributo exclusivamente humano,

entretanto algumas espécies irracionais parecem possuir um rudimentar senso

numérico semelhante ao nosso. É deste último aspecto que nos ocuparemos no

próximo capítulo.

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2. A PERCEPÇÃO NUMÉRICA DOS ANIMAIS

Para verificarmos o senso de numerosidade dos animais não-humanos

dispomos basicamente de dois métodos: treiná- los para responder à numerosidade

ou verificar se um comportamento animal é governado pela numerosidade no seu

habitat natural independente de treino. Vejamos alguns casos de experiências

realizadas com algumas dessas espécies.

2.1 Experimentos com animais treinados

No início do século vinte, Wilhelm von Osten (DEHAENE, 1997), um

alemão treinador de cavalos, influenciado pelas idéias de Darwin dedicou-se a

demonstrar a inteligência de seu cavalo chamado Hans. Por mais de dez anos, ele

ensinou matemática ao cavalo e os resultados foram surpreendentes. Em suas

demonstrações, quando lhe era perguntado ‘Quanto é 5 mais 2’, von Osten

mostrava-lhe 5 objetos alinhados em um a mesa e outros 2 em outra mesa, ao que

Hans respondia batendo sete vezes com a pata no chão. As habilidades

matemáticas de Hans não ficavam só nisso. Alguns problemas eram propostos

pelo público ou escritos num quadro em notação digital, outros envolviam

operações com frações ou ainda a determinação dos divisores de um número.

Hans ficou tão famoso que em 1904, um grupo de especialistas liderado

pelo psicólogo Carl Stump decidiu estudar o fenômeno. Apesar de o grupo ter

concluído que não havia manipulação nem trapaça por parte do treinador e que era

o próprio cavalo que chegava às respostas, um participante do grupo de nome

Stumpf não se deu por convencido e insistiu com seu mestre em fazerem um

estudo sistemático das habilidades de Hans. Concluíram por fim que, embora o

treinador estivesse sendo extremamente honesto, o cavalo possuía uma singular

habilidade de detectar minúsculos movimentos inconscientes e involuntários na

fisionomia de von Osten identificando o momento de parar de bater com a pata.

Mesmo na ausência do treinador, Hans ainda era capaz de identificar os mesmos

sinais no público que o assistia. Esse acontecimento deixou conseqüências

negativas, trouxe uma onda de suspeição para posteriores pesquisas sobre a

inteligência matemática animal e mostrou a necessidade de critérios mais

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rigorosos que evitassem as influências inconscientes dos pesquisadores nos

experimentos.

Um dos primeiros a perceber que os animais têm senso numérico foi o

psicólogo alemão Otto Koehler (DEVLIN, 2004; BUTTERWORTH, 1999), entre

1940 e 1950 ele realizou uma série de experimentos importantes sobre as

habilidades matemáticas de aves. Koehler acreditava que os humanos nunca

teriam chegado a contar sem duas habilidades pré- linguísticas que partilhamos

com os pássaros: a habilidade de comparar numerosidades, e a habilidade de

guardar o registro dessas numerosidades. Para mostrar que os pássaros têm ambas

as capacidades ele treinou um corvo chamado Jacob colocando-o repetidamente

diante de duas caixas, uma das quais contendo alimento; nas tampas havia

números diferentes de pontos arrumados aleatoriamente e ao lado de cada caixa

fora colocado um cartão com pontos registrados também aleatoriamente. Depois

de muitas repetições, o corvo aprendeu que, para obter alimento deveria abrir a

caixa cujo número de pontos da tampa era idêntico ao do cartão. Assim, o corvo

Jacob aprendeu a distinguir dois, três, quatro, cinco e até seis pontos.

Temos ainda o experimento realizado com a gralha Lana. Dada uma fileira

de caixas com iscas, ela era capaz de abrir as caixas até apanhar um total pré-

estabelecido de iscas. Certa vez, foram distribuídas 1, 2, 1, 0 e 1 nas cinco

primeiras caixas de uma fileira de caixas e sua tarefa era apanhar cinco delas.

Lana abriu as três primeiras caixas pegando, portanto, apenas 4 iscas. Koehler já

estava concluindo que a gralha havia falhado quando ela volta ao início da fileira

de caixas, bica uma vez a primeira (agora vazia), bica duas vezes a segunda, uma

vez a terceira, abre a quarta caixa (não encontra comida), parte para a quinta

caixa, abre-a, come a única isca nela contida e despreza o resto da fileira de caixas

dando por terminada a sua tarefa. A gralha Lana demonstrou neste experimento

que até mesmo as aves são capazes de obter representações mentais de

numerosidades.

Diz-nos Butterworth (1999) que os pássaros e os ratos têm cérebros muito

pequenos mesmo levando-se em conta o tamanho dos seus corpos e que os

humanos são os animais que possuem o maior cérebro proporcionalmente ao

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corpo. Em seguida, logo após os humanos, os golfinhos são os que possuem o

maior cérebro em relação ao corpo. Contudo, pouquíssimas são as pesquisas sobre

as habilidades matemáticas destes. Sabe-se apenas que alguns deles já foram

treinados para associar objetos arbitrários a um determinado número de peixes.

Alguns estudos realizados com critérios e cuidados têm demonstrado que

certos animais podem, na realidade, realizar certas operações aritméticas. Relata-

nos Devlin (2004) que várias demonstrações convincentes foram realizadas nas

décadas de 1950 e 1960 pelos psicólogos americanos Francis Mechner e Laurence

Guevrekian. Dentre elas destacamos o experimento realizado com um rato que foi

privado de alimento por um curto período de tempo e depois colocado em uma

caixa fechada preparada com um equipamento que possuía duas alavancas

internas A e B. Uma pequena quantidade de comida era liberada quando a

alavanca B era acionada pelo rato, mas este precisava apertar primeiro a alavanca

A um determinado número (n) de vezes. Caso o rato apertasse a alavanca A um

número de vezes menor que n, e depois a alavanca B, ele recebia um suave

choque elétrico e nenhum alimento. Logo, para comer era preciso que o rato

aprendesse a apertar o número certo de vezes a alavanca A, e em seguida a

alavanca B. Por tentativa e erro os ratos gradualmente aprenderam o processo. Os

pesquisadores variavam o número de compressões associadas à alavanca A, por

exemplo, se estas eram em número de quatro, então os ratos comprimiam a

alavanca A quatro vezes, antes de apertar a alavanca B. Eles nunca aprenderam a

apertar a alavanca A exatamente quatro vezes em cada tentativa, eles tendiam a

superestimar, apertando a alavanca quatro, cinco, ou mais, visto que recebiam um

choque elétrico se o número de compressões fosse menor do que quatro. Em

algumas ocasiões, pareceu mesmo que os ratos podiam calcular o número certo de

compressões da alavanca A.

No sentido de evitar que os ratos se condicionassem ao tempo decorrido,

em vez do número de vezes que a alavanca devesse ser apertada, os pesquisadores

variavam o tempo decorrido em que os ratos ficavam privados de alimento.

Quanto mais famintos, mais rapidamente eles comprimiam a alavanca A.

Entretanto, os que haviam sido treinados em apertar a alavanca quatro vezes

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continuavam a fazê- lo, havendo um efeito similar com os que foram treinados

com outro número de vezes.

Num outro experimento, Russel Church e Warren Meck, pesquisadores da

Brown University (DEHAENE,1997) demonstraram que os ratos

espontâneamente prestam tanta atenção ao número de eventos quanto à duração

dos mesmos. Eles colocaram um alto falante na gaiola dos ratos para produzir

duas seqüências sonoras distintas. A sequência A er composta de 2 notas musicais

e durava 2 segundos, enquanto a sequência B era formada de 8 notas musicais e

durava 8 segundos. Os ratos tinham que discriminar entre as duas melodias.

Depois de cada melodia duas alavancas eram introduzidas na gaiola. Os ratos

tinham que apertar a alavanca da esquerda (E) ao ouvirem a sequência A e a da

direita (D) ao ouvirem a sequência B para receberem comida.

Após vários treinos, o experimento mostrou que os ratos usados nesta

situação rapidamente aprenderam a apertar corretamente as alavancas. Eles

podiam usar dois parâmetros distintos para distinguir A de B: a duração total da

sequência (dois contra oito segundos) ou o número de notas musicais (duas contra

oito notas). A fim de verificar se os ratos prestavam atenção à duração, ao número

de notas musicais ou a ambos, os pesquisadores variavam as seqüências de testes,

ora fixavam a duração enquanto o número de notas variava, ora acontecia o

inverso. No primeiro caso a duração foi fixada em 4 segundos acompanhada de 2

a 8 notas . No segundo caso, as sequências tinham o tempo variando entre 2 a 8

segundos enquanto eram fixas em 4 as notas musicais. Em todas essas seqüências

os ratos eram premiados com comida mesmo que apertassem erradamente as

alavancas.

Assim, os pesquisadores estavam simplesmente querendo saber quais

desses novos estímulos eram observados pelos ratos sem que a recompensa

interferisse na decisão. O experimento avaliava, portanto, a habilidade dos ratos

em generalizar previamente comportamentos aprendidos diante de uma nova

situação. Os resultados foram positivos, tanto no aspecto da duração quanto no

numérico. Os pesquisadores também experimentaram valores intermediários. Os

ratos aparentemente os aproximavam para os valores dos estímulos mais próximos

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por eles aprendidos; a sequência de 3 notas musicais recebia a mesma resposta da

sequência de 2 notas usadas no treino, enquanto as de 5 ou 6 notas eram

classificadas do mesmo modo que as de 8 notas treinadas. Curioso foi quando a

sequência foi composta de 4 notas musicais,os ratos ficavam indecisos entre uma

alavanca e a outra. Para um rato, 4 pareceria estar subjetivamente no ponto médio

entre 2 e 8, concluíram os pesquisadores.

Portanto, este experimento mostra que quando um rato ouve uma melodia,

seu cérebro registra simultaneamente tanto a duração quanto os sons. Seria um

equívoco pensar que o condicionamento usado nestas experiências de certo modo

ensina os ratos a contar. Ratos não sabem contar, como nós, mas eles representam

as mais atualizadas e avançadas fontes de dados relativos à visão, audição,

sensibilidade e percepção numérica. O condicionamento meramente ensina o

animal a associar percepções que são sempre experimentadas como as

representações de estímulos relativos à duração de tempo, sons, numerosidade ou

cor, com novas ações como as de apertar a alavanca.

E mais adiante conclui Devlin:

O que o experimento mostrou é que, por meio de treinamento, ratos podem ajustar seu comportamento para apertar uma alavanca aproximadamente um certo número de vezes. Eles podem ter contado, embora de maneira canhestra. Mas não há provas disso. Acho que é bem mais provável que eles estivessem simplesmente julgando e estimando o número de vezes das compressões, e fazendo isso tão bem quanto nós o faríamos, se não contássemos.(...) Ratos têm um senso numérico. (DEVLIN, 2004, p.42)

E quanto aos chipanzés? Existem muitos estudos e experimentos

realizados com nossos parentes próximos os chipanzés. Uma demonstração

bastante interessante das habilidades numéricas dos macacos foi realizado por

Sarah Boysen (DEHAENE, 1997) que treinou sua chipanzé de nome Sheba para

executar adições com algarismos indo-arábicos de 0 a 9 e comparar

numerosidades usando-os até 4. Sheba também era capaz de procurar laranjas

escondidas em três lugares de sua jaula e determinar o total de laranjas

encontradas usando símbolos numéricos. “Nunca um animal tinha chegado tão

próximo das habilidades de cálculo simbólico exibido pela humanidade”

(DEHAENE, 1997, p.37). Curiosamente, durante o treinamento para identificar o

menor de dois números, a treinadora mostrava a Sheba dois conjuntos de balas de

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goma (suas preferidas) e quando a chipanzé apontava para a de valor maior a

treinadora dava-o para um outro chipanzé, e assim, Sheba ficava com a aquela que

não havia apontado. Sheba não conseguia apontar para a menor numerosidade e,

por tanto, ficar com a maior. Somente quando as balas foram trocadas pelos

correspondentes numerais indo-arábicos é que ela imediatamente apontou para o

menor deles.

Um excelente exemplo de habilidades abstratas de adição num animal nos

é relatado por Dehaene (1997) e refere-se ao trabalho desenvolvido por Guy

Woodruff e David Premack da Universidade da Pensilvânia com chipanzés que

realizavam operações aritméticas com frações. Inicialmente, mostravam aos

animais um copo com um líquido azul até a metade para que eles apontassem

outro copo com a mesma quantidade do líquido e depois, um copo com ¾ do

líquido para que apontassem outro idêntico. Aumentando progressivamente o

nível de abstração da tarefa, mostravam-lhes novamente um copo com líquido

azul pela metade e davam-lhes como opções metade de uma maçã ou ¾ dela. Os

chipanzés alcançaram sucesso em todas essas tarefas mostrando serem capazes de

saber que ¼ de torta está para a torta inteira assim como ¼ de um copo de leite

está para o copo cheio de leite. E, por fim, quando lhes mostravam ¼ de maçã

junto com ½ de um copo de leite oferecendo como opções um disco inteiro ou ¾

do disco, eles optavam por ¾ do disco, na maioria das vezes (afinal, ¼ +1/2 = ¾ ).

A respeito disso, esclarece Dehaene (1997, p.25):

Presumivelmente, eles não usaram algoritmos com cálculo simbólico sofisticado como nós gostaríamos. Mas eles tinham claro entendimento intuitivo de como essas proporcionalidades devem se combinar.

2.2 Os estudos com os animais selvagens

Entre os relatos de evidências de comportamento animal governado pela

numerosidade em seu ambiente natural, Butterworth (1999) nos apresenta o

experimento realizado com macacos rhesus em Porto Rico que demonstravam

surpresa quando os pesquisadores faziam, através de manipulação experimental,

com que 1 pedaço de planta mais outro não resultasse em 2 pedaços de planta; ou

quando 2 pedaços menos 1 pedaço não resultava em 1 pedaço. Tal estudo

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demonstra que esses macacos são capazes de usar numerosidades para estimar

suprimento de comida (planta).

Outro experimento é o de um zoólogo suíço que ao observar Brutus, o

líder de um grupo de chipanzés, pode perceber que o uso de habilidades

numéricas também faz parte da cultura desses animais (BUTTERWORTH, 1999).

Quando o grupo de dez chipanzés saía em busca de alimentos, Brutus usava um

código simbólico baseado no número de suas batidas nas árvores com um pedaço

de pau, enviando mensagens ao grupo como, por exemplo, 2 batidas na mesma

árvore significavam descansar por uma hora. Aqui, mais uma vez temos

evidências que os chipanzés usavam sua capacidade numérica para distinguir

numerosidades e se comunicar.

Uma expressiva demonstração que sugere que a percepção numérica nos

animais é inteiramente abstrata vem de um experimento realizado com leões do

Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia (BUTTERWORTH, 1999). Ao

anoitecer, quando uma leoa voltava sozinha para o seu grupo, pesquisadores

emitiram um único rugido por um alto-falante. Ela parou e, não reconhecendo o

rugido do intruso, retornou silenciosamente ao seu grupo, evitando assim uma

disputa de um para um. Na semana seguinte, novamente ao anoitecer, quando ela

retornava acompanhada com mais quatro leoas, os pesquisadores emitiram três

rugidos. Desta vez, após ouvir os sons, a líder seguida das demais resolveu

prosseguir e afugentar os intrusos, pois, agora eram 3 contra 5. Ao tomar a

decisão de atacar a leoa líder apoiou-se na enumeração dos intrusos – percepção

auditiva -, daquelas que estavam com ela – percepção visual ou memória -, na

abstração da numerosidade dos dois conjuntos – intrusos e defensores – e na

comparação dessas numerosidades abstratas.

2.3 Os limites da matemática dos animais

É importante ressaltar que a aritmética dos animais não humanos é

imprecisa, melhor dizendo, é aproximada. “É como se trabalhássemos com os

seguintes números: 1, 2, 3, em torno de 5, em torno de 8, etc.”, afirma Rocha e

Rocha (2000, p.45). A aritmética filogenética é precisa quando as operações

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envolvem conjuntos pequenos e é aproximada quando contém muitos elementos.

Por isso a resposta de um animal é mais precisa quanto menor forem as

numerosidades envolvidas e também sua performance será tanto melhor quanto

maior for a distância entre os números envolvidos.

Todos esses relatos mostram que animais treinados são capazes de

apreender quantidades numéricas, memorizá- las, compará-las e até mesmo

realizar operações aritméticas simples. Além disso, sugerem também que eles não

só podem como usam numerosidades em seu habitat natural para sobreviver aos

predadores e se comunicarem uns com os outros em busca de alimento. Pois, a

partir de estudos como esses, pode-se inferir que:

Para essa capacidade ter sido preservada por milhões de anos, ela deve ter oferecido alguma vantagem para aquelas espécies que as possuíam. Mas qual poderia ser? A vida do animal individual – o fenótipo – depende de alimento e segurança contra os predadores. Assegurá-los ajuda a todos os membros de uma espécie similarmente dotada – o genótipo – a sobreviver e reproduzir-se melhor e, outras coisas permanecendo iguais, a procriar-se mais que membros da espécie sem tal herança. Desse modo, a valiosa capacidade de realizar essas simples tarefas numéricas permanecerá no pool genético. (BUTTERWORTH, 1999, p.139).

Se nossos primos próximos, os chipanzés, possuem habilidades numéricas

e se espécies tão diferentes quanto pássaros e ratos não estão desprovidos de senso

numérico, então, muito provavelmente o Homo sapiens recebeu herança similar.

Nossos cérebros, bem como o desses animais, parecem ter vindo equipados com

um acumulador que nos capacita a perceber, memorizar e comparar magnitudes

numéricas (DEHAENE, 1997).

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3. DISCRIMINANDO NUMEROSIDADES

Estudos sobre a competência numérica dos bebês realizados a partir de

1980 por psicólogos como Rochel Gelman, Prentice Starkey, Elizabeth Spelke e

Meck, entre outros, demonstraram que inclusive recém-nascidos possuem uma

compreensão intuitiva de número – senso numérico –, a mesma capacidade

encontrada nos animais. Esses estudos trouxeram evidências de que as habilidades

numéricas básicas podem constituir habilidades naturais e universais para os

membros da espécie humana. Na interpretação de Gelman o número é como a

linguagem: um conjunto de habilidades para cuja aquisição a espécie humana

desenvolveu uma aptidão e uma disposição especiais (FLAVELL,

MILLER&MILLER, 1999). Depreende-se, então, que o desenvolvimento da

competência numérica é construído a partir de uma linha mestra de princípios

inatos específicos a cada domínio, não aprendidos, e que funcionam como o ponto

de partida para tornar a aprendizagem possível. Talvez seja por isso que os seres

humanos parecem sempre estar dispostos e aptos a processar informações

numéricas desde muito cedo, bem antes da linguagem, bem antes da educação

formal ou de experiências mais relevantes.

3.1 Os Experimentos com Bebês

Um dos primeiros experimentos foi realizado na Universidade da

Pensilvânia em 1980, por Prentice Starkey e seus colegas (DEHAENE, 1997;

DEVLIN, 2004), com 72 bebês entre 16 e 30 semanas de vida, os quais sentados

no colo das mães observavam slides com dois grandes pontos pretos ou com dois

objetos domésticos (fruta, pente, caneta, etc.) dispostos de maneira diferente a

cada projeção. Ao mesmo tempo, uma câmera de vídeo filmava os olhos do bebê

registrando o tempo que ele fixava sua atenção na imagem. À medida que os

slides com dois elementos eram passados, os bebês olhavam cada vez menos para

eles até que a imagem era substituída por outras contendo três pontos pretos ou

três objetos domésticos, quando, então, os bebês voltavam imediatamente a fixar o

olhar por mais tempo na figura. O tempo de fixação, que era de 1,9 segundos na

sequência anterior, pulou para 2,5 segundos na sequência contendo os três

elementos. Inicialmente esses experimentos foram realizados com crianças de seis

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a sete meses de vida, mas poucos anos depois Sue Ellen Antell e Daniel Keating,

da Universidade de Maryland (DEVLIN, 2004), usando técnica similar,

demonstraram que recém-nascidos também foram capazes de discriminar

perceptualmente (subitizing) conjuntos com 2 e 3 elementos.

Para não deixar dúvidas quanto aos bebês estarem reconhecendo o padrão

visual dos arranjos dos objetos ao invés de sua numerosidade – 1 objeto é um

ponto, 2 formam uma linha, 3 um triângulo -, Starkey e Cooper (DEHAENE,

1997) ao realizarem seus experimentos, realinharam os pontos e variaram os

espaços entre estes, e os resultados continuaram indicando que os bebês realmente

discriminavam a numerosidade dos conjuntos.

Em outra experiência, realizada por Ranka Bijeljac e seus colegas do

Laboratório de Ciência Cognitiva e Psicolingüística, em Paris (DEVLIN, 2004),

bebês de apenas quatro dias de vida foram submetidos a estímulos auditivos, em

vez de estímulos visuais. Para medir a atenção dos bebês eles deram a cada bebê

uma chupeta ligada a um transdutor de pressão, e daí a um computador. Com isto,

através dos reflexos de sugar, eles mediam a atenção dos bebês aos estímulos

auditivos emitidos pelo computador. Quando o bebê sugava o bico, o computador

emitia uma palavra sem sentido, de um número fixo de sílabas.

De início, os bebês mostravam grande interesse no fato de que seu ato de

sugar produzia sons, e então eles sugavam vigorosamente. Depois de certo tempo,

o interesse diminuía e a taxa de sugação diminuía. O computador, detectando isso,

imediatamente mudava imitindo palavras com apenas duas sílabas. Os bebês

voltavam a sugar com vigor novamente.

Mudanças para palavras com o mesmo número de sílabas não produziam o

aumento de interesse nos bebês. O mesmo aconteceu com alterações na

velocidade com que cada palavra era pronunciada. Era necessária uma mudança

no número de sílabas para gerar a reação.

A experiência de Bijeljac (DEVLIN, 2004) e sua equipe mostram mais do

que o fato de que bebês de quatro dias podem distinguir entre dois e três. Ela

também evidencia que, até mesmo nessa idade, bebês podem reconhecer uma

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estrutura silábica num conjunto contínuo de sons, e, de certo modo inato e

subconsciente, podem detectar diferenças no número de sílabas.

Karen Winn (DEHAENE, 1997; BUTTERWORTH, 1999; DEVLIN,

2004), uma psicóloga e brilhante pesquisadora do Laboratório de Cognição

Infantil da Universidade do Arizona, acredita ainda que os bebês sejam também

sensíveis a conjuntos de ações. Usando um teatrinho de marionetes, ela mostrava

repetidamente um boneco dando 2 pulos e a cada vez o interesse do bebê

diminuía. Assim que o boneco deu 3 pulos, o tempo de atenção do bebê no evento

quase dobrou. O inverso foi usado como controle: 3 pulos seguidos de 2 pulos

surtiam o mesmo efeito, o interesse do bebê era reavivado diante da mudança na

numerosidade do conjunto de ações.

Em 1992, Wynn (DEHAENE, 1997; BUTTERWORTH, 1999; DEVLIN,

2004) escreveu um famoso artigo para o jornal Nature sobre os experimentos de

adição e subtração com crianças de 4 e 5 meses. Ela utilizou um simples, porém

engenhoso plano de transferência da habilidade dos bebês em detectar eventos

fisicamente impossíveis. Vários experimentos anteriores mostravam que, durante

o primeiro ano de vida as crianças demonstram perplexidade quando percebem

que algum evento “mágico” viola as leis fundamentais da física. Por exemplo, se

eles vêem um objeto permanecer suspenso em pleno ar sem estar preso a nada,

eles observam isto demonstrando espanto. Do mesmo modo, eles expressam

surpresa quando uma cena sugere que dois objetos físicos ocupam o mesmo lugar

no espaço, e se alguém esconde um objeto atrás de uma cortina, os bebês

estranham quando não o vêem após a abertura da cortina. A habilidade de Wynn

residiu na adaptação desta idéia para provar o senso numérico destas crianças. Ela

criou eventos que podiam ser interpretados como transformações numéricas – por

exemplo, um objeto mais outro objeto – e testou a expectativa dos bebês quanto à

aparição do número preciso de dois objetos. Em um laboratório, esses bebês de 4

e 5 meses observavam uma mão que colocava um boneco Mickey Mouse no palco

de um pequeno teatrinho de marionetes oculto por uma tela; a mão mostrava mais

um boneco e o colocava atrás da tela. Sempre que a tela era levantada mostrando

o resultado correto (1 boneco + 1 boneco = 2 bonecos), os bebês mostravam

pouco interesse, mas quando o resultado era alterado sem que eles percebessem,

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mostrando que 1 + 1 = 1 boneco, eles olhavam atentamente e por um intervalo

maior de tempo para esse evento aritmeticamente impossível. Para Butterworth

(1999, p.07):

Essa é uma boa evidência de que os bebês nascem com a capacidade de formar expectativas aritméticas, possuem um senso de numerosidade e podem engajar-se em atividades de adição e subtração de pequenas numerosidades, provavelmente até quatro.

Conforme as observações de Wynn (DEHAENE, 1997), estes resultados

não implicam que os bebês podem fazer cálculos exatos. Eles podem saber

exatamente que a numerosidade de um conjunto muda quando objetos são

acrescentados ou removidos. Portanto, eles podem perceber que 1 + 1 não pode

ser igual a 1, nem 2-1 igual a 2, mesmo sem ter consciência do resultado exato

dessas operações.

Este conhecimento coloca os bebês humanos para a par com os ratos ou

até mesmo com a chipanzé Sheba, sobre cujas experiências já mencionamos antes.

Obviamente, os bebês humanos são mais bem dotados do que seus primos

animais, no que diz respeito à aritmética, confirmando que os cálculos numéricos

elementares podem ser feitos até mesmo pelos organismos desprovidos de

linguagem.

Embora as habilidades numéricas dos bebês sejam reais, elas são

rigorosamente limitadas à parte mais elementar da aritmética, não parecem ir além

dos números 1, 2, 3, e talvez até 4. Entretanto, não se pode concluir que o

universo aritmético dos bebês esteja confinado até o quatro. É que os dados

disponíveis dos experimentos já realizados até então, estão concentrados na exata

representação na mente dos bebês desses números inteiros.

Todas essas evidências empíricas relatadas até aqui sugerem, portanto,

que as habilidades numéricas são inerentes ao ser humano.

3.2 Habilidades Matemáticas Inatas

Modelos construídos a partir dos princípios da seleção evolucionária têm

proporcionado importantes elucidações com relação à estrutura da cognição e

percepção humanas, conseqüentemente, a evolução pode também ser considerada

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uma perspectiva teórica viável para o entendimento cognitivo das crianças e de

seu desenvolvimento acadêmico.

David C. Geary, professor titular de Ciência Psicológica da Universidade

do Missouri, apresentou, em 1995, na revista American Psychologist, um sistema

baseado na evolução para a compreensão das influências biológicas e culturais no

desenvolvimento cognitivo e cultural das crianças.

Em seu modelo, Geary considera que a maior parte das formas cognitivas

tanto humanas quanto animais dependem do funcionamento dos sistemas

neurobiológicos que estão envolvidos na base ecológica ou social do ser e que

atendem a alguma, ou algumas, funções relacionadas à reprodução ou à

sobrevivência. Há, entretanto, uma importante diferença entre os seres humanos e

os animais, é a facilidade com que os sistemas neurocognitivos altamente

especializados estabelecem coligações para tarefas não específicas à sua função

evolucionária original.

As maneiras como os genes moldam a percepção do indivíduo e suas capacidades cognitivas influenciam a propagação desses genes no nicho ecológico da espécie da mesma maneira que esses genes determinam a altura, estrutura física e coloração do indivíduo. Ao mesmo tempo, fatores culturais influenciam a percepção e a cognição de uma forma independente das pressões que moldam a evolução dos sistemas associados. (...) O entendimento completo da cognição das crianças e seu crescimento acadêmico deveria considerar tanto as influências biológicas quanto as culturais. (GEARY, 1995, p.2)

Baseia-se este sistema evolucionário na aquisição de habilidades

cognitivas biologicamente primárias e biologicamente secundárias. No primeiro

nível, as biologicamente primárias, estão a percepção e as capacidades cognitivas

básicas intrínsecas relacionadas às funções neurobiológicas, como por exemplo, a

linguagem e o senso de numerosidade para pequenas quantidades; no segundo

nível estão as formas sociais e culturais que advém da instrução formal, por

exemplo, a leitura, a escrita e a aritmética complexa.

3.2.1 Habilidades Matemáticas Biologicamente Primárias

· Numerosidade: Consiste na habilidade de determinar com precisão a

quantidade de elementos de pequenos conjuntos ou eventos (em torno

de 4 elementos) sem o uso da contagem (subitizing).

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· Ordinalidade: Consiste na habilidade de compreender as noções

básicas de “maior que” e “menor que” para situações envolvendo

quantidades menores do que 5.

· Contagem: Consiste na capacidade inata de usar o princípio de

correspondência um a um que guiaram a aquisição das habilidades de

contagem verbal.

· Aritmética Simples: Consiste na habilidade de perceber acréscimos

(adições) e decréscimos (subtrações) na quantidade de elementos de

pequenos conjuntos, em torno de 3 ou 4.

(adaptado de GEARY, 1995, p.7).

3.3 Piaget e as Habilidades Numéricas na Infância

Todos esses experimentos apresentados colocam à prova a noção

piagetiana de que,

Um bebê recém-nascido entra no mundo com uma lousa cognitiva vazia e, observando o mundo a sua volta, ele vai, gradualmente, montando uma compreensão cada vez maior e mais coerente desse mundo. Em outras palavras, a criança constrói um modelo mental ou uma conceitualização do mundo” (DEVLIN, 2004, p.46; grifo do autor).

Obviamente, crianças pequenas têm muito para aprender sobre aritmética,

e sua compreensão do conceito de número depende da idade e da educação, tanto

no aspecto social quanto no escolar. Mas elas não estão desprovidas de genuínas

representações mentais de números, mesmo ao nascerem.

Na verdade, Piaget (BUTTERWORTH, 1999) não negava que bebês são

capazes de discriminar conjuntos com 2 ou 3 elementos, mas ele não considerava

essa habilidade como uma prova do conhecimento de número. Ele afirmava que o

conceito de número emerge aos 4 ou 5 anos de idade (DEVLIN, 2004). Isto é,

para ele a idéia de numerosidade estava construída sobre conceitos lógicos

considerados como pré-requisitos: o raciocínio transitivo, a conservação do

número e a habilidade de abstração.

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Segundo Piaget (DEHAENE, 1997), as crianças nascem sem nenhuma

idéia pré-concebida sobre aritmética levando anos de observação atenta antes que

elas realmente entendam o que é número. Logo, o conceito de número, assim

como qualquer representação abstrata do mundo, deveria ser construído nas

interações sensório-motoras com o ambiente. Para Butterworth (1999), no entanto,

o entendimento de número exige antecipadamente o conhecimento de duas outras

idéias: primeiro, a idéia de que um objeto é algo que pode ser individualizado e

formar uma coleção que possui uma numerosidade; e segundo, ser capaz de

determinar quando dois conjuntos possuem a mesma numerosidade e quando um

conjunto possui a numerosidade maior do que outro conjunto. E mais, tal conceito

deve ser aplicável a conjuntos com qualquer quantidade de elementos. Os bebês e

os animais, portanto, parecem realmente possuir o conceito de numerosidade só

que limitado a pequenas quantidades.

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4. O CÉREBRO E A MATEMÁTICA

Os estudos sobre o senso numérico dos animais e bebês humanos aliados

às modernas técnicas de mapeamento cerebral “in vivo” (durante a execução de

operações aritméticas) e às investigações sobre os danos causados à atividade

cognitiva em lesados cerebrais permitiram a determinação das áreas do cérebro

humano envolvidas no pensamento matemático.

As primeiras imagens do cérebro ativo datam de 1970 sendo que somente

em 1985 iniciaram-se os trabalhos das buscas de imagens do cérebro matemático.

Sobre isto, diz Butterworth (1999, p.196):

Métodos de imageamento estão ainda nos seus estágios iniciais de desenvolvimento, e nós não sabemos ainda exatamente o que estamos vendo através das câmaras de escaneamento. Nós estamos em uma posição similar a de Galileu ao usar os primeiros telescópios.

4.1 O Módulo Cerebral Numérico

Butterworth (1999) acredita que o genoma humano contém instruções para

construir circuitos no cérebro especializados em processar a informação numérica,

o qual ele denomina de Módulo Numérico. Este módulo seria o representante do

núcleo inato das habilidades numéricas humanas e sua tarefa é a de categorizar o

mundo em termos de numerosidades fazendo-nos sensíveis ao número de

elementos de um conjunto. Assim, ao vermos três cavalos marrons no pasto não

podemos deixar de ver que eles são marrons e que são três, pois isso ocorre

involuntariamente como um reflexo.

Como é, então, feita a representação interna dos números? De acordo com

Alonso & Fuentes (2001), a resposta para esta pergunta baseia-se em três

importantes propriedades:

4.1.1 O efeito da distância

É o fenômeno que resulta da comparação de números: o tempo que se

gasta para identificar qual entre dois números é o maior ou o menor depende da

diferença entre estes números (que é a distância entre eles). Quanto mais distantes

entre si forem estes números relacionados na comparação, menor é o tempo gasto

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na escolha. Ou seja, por exemplo, que se demora mais em responder qual é o

maior entre o par de números 9 e 8, do que entre o par 9 e 1. Este mesmo

fenômeno é observado quando os pares de números envolvidos possuem dois ou

mais dígitos.

4.1.2 O efeito do tamanho

Refere-se à descoberta que, para igual distância numérica, a discriminação

envolvendo dois números torna-se mais difícil conforme aumentam os valores

absolutos desses números. Isto significa que, numa tarefa de comparação entre

números é mais difícil decidir entre 9 e 8 do que entre 3 e 2, por exemplo.

Estas duas propriedades sugerem que a compreensão do significado

numérico supõe que o cérebro humano lida com os números de forma parecida ao

que é feito com quantidades pertencentes às magnitudes físicas tais como peso,

longitude e volume, satisfazendo à lei de Weber. Sobre esta relação linear de

grande precisão em psicologia, esclarece Devlin (2004, p.62) :

Se um indivíduo pode diferençar um conjunto de 13 pontos de um conjunto de referência de 10 pontos com uma taxa de sucesso de 90 por cento, então o mesmo indivíduo conseguirá diferenciar 26 pontos de um conjunto de referência de 20 pontos com o mesmo grau de precisão. Enquanto a proporção entre o conjunto de teste e o conjunto de referência for mantida constante, a taxa de sucesso do indivíduo também se mantém constante.

Com relação a estas propriedades, Dehaene (1997) afirma que diante de

um número, o cérebro humano, automaticamente, o converte em quantidade,

mesmo que esta conversão não seja útil para o contexto em questão.

4.1.3 O efeito SNARC

Nos experimentos de valoração de tempo/reação com números, verificou-

se que os indivíduos diante de um número de valor absoluto alto respondem mais

rapidamente com a mão direita do que com a esquerda. Acontecendo o contrário

diante de um número de valor absoluto baixo. Esse efeito foi denominado de

SNARC-Spatial-Numerical Association of Response Codes.

Esta relação entre números e espaço foi verificada também com indivíduos

canhotos e em destros com as mãos cruzadas.

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Quando o teste foi feito com estudantes iranianos, que aprenderam a ler e

escrever da direita para a esquerda, o resultado se inverteu o que denota que a

direção da associação números/espaço é influída pela cultura.

Estes três efeitos sustentam a hipótese de que os números naturais podem

ser representados por distribuições de ativação num contínuo interno,

inconsciente, similar a uma linha numérica orientada da esquerda para a direita –

começando pelo zero e avançando de modo crescente pela direita. Esta

representação quantitativa dos números é apenas um entre os vários e distintos

códigos – o mais importante – elaborados pelo cérebro humano. Assim, por

exemplo, os resultados de alguns estudos neuropsicológicos e até mesmo outros

realizados com técnicas de imagem cerebral sugerem que a tabuada é armazenada

em um código não semântico, ou seja, uma sequência rotineira de palavras

(ALONSO & FUENTES, 2001)

4.2 Localização do Módulo Numérico no Cérebro

O estudo de imagens obtidas através de MRI (magnetic resonance imaging),

fMRI (functional magnetic resonance imaging), PET (positron emission

tomography), SPECT (single photon emission tomography) e EEG

(eletroencefalografia) permitiram a localização do Módulo Numérico no cérebro

humano: parte inferior esquerda do lobo parietal. O lobo parietal é, na verdade,

uma grande área do cérebro e, portanto, nem toda ela é dedicada aos números. De

acordo com Butterworth (1999), acredita-se que uma parte inferior relativamente

pequena é o núcleo de nossa habilidade numérica. (Anexo I)

Uma circunvolução posterior do lobo parietal chamada de “giro angular”

(área 39 de Broadman) desempenha um papel crucial na representação mental dos

números. “Talvez ela seja a área onde se localiza o nosso senso numérico”, diz

Dehaene (1997, p.189). A posição do giro angular é privilegiada. É uma área de

associação polissensorial para onde convergem informações de outras áreas

associativas como, por exemplo, visuais, auditivas e táteis e, portanto, segundo

Dehaene (1997, p.189) “um local ideal para a aritmética porque o conceito de

números se aplica igualmente a todas as modalidades sensoriais”.

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O lobo parietal esquerdo é importante para a representação de posições e

movimentos das mãos e dedos e também tem uma participação importante em

várias tarefas que envolvem manipulação do espaço (ROCHA & ROCHA, 2000;

DEHAENE, 1997). É tal a importância dessa área que uma lesão nela pode causar

a síndrome de Gerstmann responsável por déficits tão diversos quanto: acalculia

ou discalculia, dificuldades em escrever (agrafia ou disgrafia), impossibilidade de

distinguir direita de esquerda e incapacidade de envolver os dedos das mãos em

processos mentais tais como o de contar (DEHAENE, 1997; ALONSO &

FUENTES, 2001). Portanto, a região parietal esquerda se subdivide em

microrregiões altamente especializadas para os números, a escrita, o espaço e os

dedos.

Acidentes cerebrais são utilizados como um recurso para a localização do

Módulo Numérico. Um dos casos citados por Butterworth (1999) é o da Sra.

Gaddi, 59 anos, que sofreu um derrame causando uma lesão no lobo parietal

esquerdo do seu cérebro. Em conseqüência, ela não consegue mais determinar,

num relance e sem contar (subitizing), o número de elementos de uma coleção

mesmo quando são apenas dois ao todo. Para recordar-se quantas rodas há em um

carro, ela precisa evocar a imagem mental de um carro e contar em voz alta as

rodas que ela vê na sua mente. Além disso, a Sra. Gaddi não consegue julgar qual

é o maior de dois numerais acima de quatro, mesmo quando os algarismos são

substituídos por pontos representando a quantidade. Ela também é incapaz de

dizer quantos dias há em uma semana, seu número de telefone ou sua idade. No

caso da Sra. Gaddi, a linguagem foi igualmente afetada, porém recuperada mais

tarde o que não aconteceu com suas habilidades numéricas. Entretanto, e é válido

acrescentar que, nos testes de raciocínio lógico, como “se Paulo é mais alto do

que Carlos, e Pedro é mais baixo do que Carlos, então quem é o mais alto dos

três?”, e de memória (fatos históricos e geográficos que não envolvam números) a

Sra. Gaddi saiu-se perfeitamente bem, o que para Butterworth(1999) sugere que

linguagem, memória e raciocínio intactos não são por si só suficientes para um

bom desempenho numérico.

Um caso oposto a este último é o do Sr.Van (Butterworth, 1999), com 86

anos, que provavelmente devido à doença de Alzheimer passou a sofrer de

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amnésia. Sua memória semântica foi severamente comprometida, apresentando

grande dificuldade de raciocínio e incapacidade para realizar as tarefas piagetianas

que são pré-requisitos para a aquisição da idéia de numerosidade: raciocínio

transitivo, conservação do número e habilidade de abstração. No entanto, ele era

capaz de estimar o número de elementos de um conjunto, comparar números e

sair-se excepcionalmente bem em cálculos difíceis como, por exemplo, escolher

dentre os números 42, 61, 62 ou 68 qual é a raiz quadrada de 3844.

O Sr. Bell (Butterworth, 1999), por sua vez, possui uma doença cerebral

degenerativa que atingiu seu lobo parietal esquerdo poupando- lhe apenas a região

inferior (possível localização do Módulo Numérico) e fazendo-o perder a

linguagem quase por completo. Contudo, ele ainda é capaz de reconhecer os

algarismos indo-arábicos, somar e subtrair com precisão e, apesar de ter perdido

alguns fatos multiplicativos (resultados de tabuada), ainda mostra um bom

entendimento de que multiplicar é adicionar parcelas iguais. Comparativamente,

já no caso da Sra. Huber (Butterworeth, 1999), que apresentou um tumor no lobo

parietal, os resultados da tabuada foram preservados, mas seu desempenho em

adições e subtrações foi severamente afetado. Quando era solicitada a contar nos

dedos, ela simplesmente dizia que não sabia como eles poderiam lhe ser úteis. A

lesão cerebral da Sra. Huber poupou-lhe todo conhecimento matemático

aprendido verbalmente como, por exemplo, os resultados decorados da tabuada,

mas roubou- lhe o principal: a compreensão dos números e da aritmética. Portanto,

“Sem compreensão, esses fatos verbais são de bem pouco uso. Fatos matemáticos

armazenados verbalmente não se conectam a outras partes da aritmética”

(BUTTERWORTH, 1999, p.157).

Como se pode ver a parte inferior do lobo parietal esquerdo desempenha um

papel crucial no processamento numérico. Entretanto, esta não é a única região

cerebral requisitada para essa tarefa. Pelo contrário, a capacidade para o cálculo é

uma função cerebral altamente complexa que requer a participação de várias áreas

formando redes de circuitos neurais. Entretanto, para a aritmética simples, lesões

no hemisfério esquerdo causam acalculia severa em 16% dos pacientes, enquanto

lesões no hemisfério direito não causam perdas tão significativas (Butterworth,

1999).

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No entanto, há evidências de que nossa habilidade numérica mais básica, o

subitizing, possa estar representada em ambos os hemisférios cerebrais uma vez

que, em alguns casos, lesões no lobo parietal direito ocasionam deterioração dessa

habilidade. Para exemplificar, (ALONSO & FUENTES, 2001) cabe citar o caso

de um veterano do Vietnã que perdeu a maior parte de seu hemisfério esquerdo

em combate. Passou a viver de uma forma semi- independente com apenas o

hemisfério direito (do hemisfério esquerdo restou o lobo occipital). Suas

capacidades verbais – produção e compreensão – ficaram gravemente

deterioradas; não podia ler nem escrever, nem nomear objetos. Apesar de sua

capacidade numérica ter desaparecido quase por completo, ainda assim, podia

identificar o número de objetos de uma coleção, reconhecer algarismos e até

compará- los.

Estudos com pacientes cujo corpo caloso foi rompido mostraram também

que ambos os hemisférios cerebrais reconhecem visualmente os números na forma

de dígitos, bem como conseguem converte-los em quantidades e compara- los.

Contudo, somente o hemisfério esquerdo é capaz de identificar os números

quando escritos por extenso, ter acesso à memória verbal para tabuadas e realizar

cálculos exatos, enquanto o direito é incapaz de efetuar cálculos mentais e produz

apenas respostas aproximadas dos cálculos aritméticos (DEHAENE, 1997).

Apesar de ambos os hemisférios representarem quantitativamente os

números do mesmo modo que comparamos o nível de água de dois copos, apenas

o hemisfério esquerdo pode representar numerosidades. Essa é, inclusive, a

provável razão para o hemisfério direito ser aproximativo e apenas o hemisfério

esquerdo realizar cálculos com precisão. Mesmo assim, para Butterworth (1999),

nosso Módulo Cerebral Numérico está localizado no lobo parietal esquerdo.

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5. A APRENDIZAGEM E O MÓDULO NUMÉRICO

São muitas as diferenças relevantes que separam as habilidades cognitivas

humanas das dos animais. A principal delas é a habilidade de desenvolver

sistemas simbólicos, que capacitam o homem a expressar seus pensamentos e

dividi- los com outros membros da sua espécie. Este é o diferencial que torna

possível o surgimento de habilidades matemáticas mais avançadas do que as

proporcionadas pela herança genética.

Butterworth (1999) denomina de Módulo Numérico o núcleo das

habilidades numéricas básicas humanas ancestralmente adquiridas. Graças a ele

pode o homem extrair numerosidades do mundo ao seu redor, compará- las e

realizar adições e subtrações com pequenos conjuntos (até quatro ou cinco

elementos). Para ir além de cinco foi o homem impelido a construir habilidades

matemáticas mais avançadas sobre o Módulo Numérico utilizando ferramentas

conceituais fornecidas culturalmente. Assim, essas novas habilidades passaram a

ser acrescidas através da aprendizagem ao que já era conhecido sobre números e

matemática.

De acordo com Butterworth (1999) as ferramentas conceituais foram se

organizando em quatro níveis:

1. Representações através de partes do corpo.

Utilizar os dedos para contar ou mesmo partes do corpo para representar

números foram verificados nos sistemas de numeração de povos

primitivos.

2. Representações lingüísticas.

Palavras criadas especificamente para representar números e contar

3. Numerais.

Símbolos escritos especificamente criados para representar os números e

registrar quantidades com precisão.

4. Representações externas.

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Marcas nas paredes das cavernas ou em pedaços de osso, pedrinhas para

contar o rebanho, ábaco, métodos de cálculo e algoritmos, calculadoras,

computadores, etc., para registrar quantidades e executar cálculos.

De posse dessas ferramentas conceituais, a habilidade numérica humana

passou a depender de três fatores: Módulo Numérico – núcleo inato das

habilidades numéricas básicas; Recursos Matemáticos Culturais – nível de

conhecimento matemático da cultura na qual está inserido o indivíduo e,

Aprendizagem – processo de desenvolvimento da habilidade individual para

adquirir esse conhecimento.

O Módulo Numérico, ainda segundo Butterworth (1999) é altamente

projetado e especializado sendo que lesões cerebrais precoces ou falhas na sua

construção ou desenvolvimento podem ocasionar dificuldades na aprendizagem,

pois nenhuma outra área do cérebro pode assumir satisfatoriamente as funções

deste núcleo cerebral específico.

Supondo que o Módulo Numérico tenha se desenvolvido naturalmente no

cérebro, as diferenças individuais na habilidade matemática resultam somente da

aquisição das ferramentas conceituais culturais. Isso não significa, porém, que não

haja alguma diferença essencial e inata entre as crianças que se saem bem em

matemática na escola e aquelas que se saem mal. Contudo, Butterworth (1999),

Dehaene (1997) e Geary (1995) acreditam que essa diferença não está na

capacidade inata especificamente matemática, mas sim na capacidade de

concentração na execução da tarefa ou em realizar uma atividade que a criança

considera interessante. Dehaene (1997) argumenta que o talento para as atividades

de cálculo parece emergir mais do treinamento precoce acompanhado de uma

excepcional (ou, às vezes, até mesmo patológica) capacidade para concentrar-se

nos números, do que num dom inato.

Ao contrário das habilidades matemáticas biologicamente primárias cujo

desenvolvimento está ligado à integridade física do cérebro, do envolvimento

espontâneo da criança em atividades como brincar e dos estímulos naturais do

meio, o desenvolvimento das atividades biologicamente secundárias – habilidades

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matemáticas mais avançadas – é geralmente lento, requer esforço e muita prática e

acontece apenas mediante educação formal (GEARY, 1995).

A escola é o primeiro contexto dentro do qual as crianças são expostas a

domínios cognitivos mais avançados, do tipo que Geary (1995) classifica como

biologicamente secundários, como por exemplo : a leitura, a escrita e a aritmética

complexa. É quando as diferenças individuais nas habilidades matemáticas se

devem, portanto, a diferenças culturais nos métodos de ensino. Geary (1995)

demonstra esse fato a partir da constatação de que praticamente não há diferenças

em habilidades biologicamente primárias entre crianças asiáticas e norte-

americanas, porém, uma vantagem asiática substancial em habilidades

matemáticas biologicamente secundárias. Butterworth (1999) relata sobre um

trabalho de pesquisa recente em que foi feita uma comparação internacional de

desenvoltura matemática entre crianças de 12 anos: 89% das crianças de Xangai

foram melhores do que a média americana. Elas se saíram tão bem quanto os

norte-americanos de 17 anos.

Indo mais além, a motivação para adquirir habilidades biologicamente

secundárias é intrinsecamente dependente do valor que a sociedade em geral lhe

atribui e ao nível de motivação individual para essas atividades. Contudo, a crença

de que habilidades intelectuais são biologicamente determinadas faz parte do

pensamento ocidental. Psicólogos constataram que pais norte-americanos e até

mesmo as crianças consideram que o sucesso em matemática depende

principalmente de talentos inatos individuais, enquanto pais japoneses acreditam

que o esforço e a qualidade do ensino são os parâmetros mais importantes

(DEHAENE, 1997).

Sob o ponto de vista de Geary (1995), a prática que aprimora o

desempenho não é inerentemente agradável mesmo para os experts. Ele analisa

também que o construtivismo – reflexo das crenças culturais americanas – trata

toda a matemática como se ela fosse um domínio composto exclusivamente por

habilidades biologicamente primárias, isto é, dados um contexto e materiais

apropriados, as crianças estarão naturalmente motivadas e aptas a construir o

conhecimento matemático por elas mesmas. Ele vê nisso uma necessidade, porém,

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não uma suficiência, pois a aquisição e manutenção de habilidades matemáticas

biologicamente secundárias requerem certamente, ao longo do tempo, uma prática

constante; valores culturais que dêem suporte ao envolvimento do aluno nessa

prática também são essenciais.

Infelizmente, exceto para conceitos básicos e atividades de contagem, o engajamento na maior parte das atividades matemáticas não parece ser inerentemente interessante para a maior parte dos indivíduos, asiáticos ou americanos. Não parece que a aquisição de complexas habilidades matemáticas biologicamente secundárias ocorrerá para um largo segmento de qualquer sociedade sem fortes valores culturais que valorizem o desenvolvimento matemático e uma forte ênfase na educação matemática na escola. (GEARY, 1995, p.12)

Vários estudos têm sido realizados com prodígios calculistas (DEHAENE,

1997) a fim de determinar os fatores que levam a uma elevada performance na

matemática. E os resultados indicam que ser um prodígio calculista não requer

grande inteligência. Uma excelente demonstração desse fato é o experimento

realizado pelo psicólogo francês Alfred Binet na virada do século

(BUTTERWORTH, 1999). Ele comparou dois prodígios com três estudantes

universitários e com quatro caixas de uma loja de departamento, cada qual com 14

anos de experiência. Ao realizar cálculos aritméticos, os prodígios foram muito

mais rápidos do que os estudantes, mas aqueles, na maioria dos testes foram mais

lentos do que os caixas. Vale ressaltar que o trabalho de um caixa naquela época

exigia muito mais habilidades de cálculo do que os da atualidade.

Dehaene (1997) argumenta que o que difere prodígios calculistas e

matemáticos talentosos das demais pessoas é o tamanho do repertório de fatos

numéricos que eles podem mobilizar mentalmente numa fração de segundos. Ao

verem o número 82, por exemplo, eles evocam instantaneamente 2x41, ou 100-18,

ou 92 + 12 tão facilmente quanto a maior parte das pessoas pensa “menor do que

100”. Normalmente, grandes calculistas são tão apaixonados por números que

preferem sua companhia à dos humanos, muito parecido com o que ocorre com os

autistas. Qualquer um que dedique tanto tempo aos números, só pode aumentar

consideravelmente sua memória, descobrir infinitas relações entre os números

além de métodos de cálculo mais eficazes.

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Com relação ao talento matemático, Dehaene (1997) sugere que os genes

provavelmente se encarregam de uma parte, pois “fatores biológicos, entretanto,

não pesam muito quando comparados ao poder da aprendizagem, estimulada pela

paixão pelos números” (DEHAENE, 1997, p.163).

Estudos sobre plasticidade cerebral têm revelado que a experiência pode

modificar profundamente a organização de áreas do cérebro. Nas palavras de

Dehaene (1997, p.157), “o tempo e o esforço que alguém dedica a um domínio

modula a extensão de sua representação no córtex”. Isto pode ser constatado

através do seguinte experimento. Um psicólogo ensinou a um grupo de estudantes

várias estratégias para cálculos rápidos. Após 300 horas de treinamento, ao longo

de dois a três anos, a velocidade de cálculos deles quadruplicou. Eles passaram a

levar apenas 30 segundos para calcular mentalmente 59 451 x 86 (DEHAENE,

1997).

Butterworth (1999) explica que há, na verdade, um círculo virtuoso: um

bom desempenho em matemática provoca encorajamento externo, que por sua vez

conduz ao encorajamento interno, que acarreta entusiasmo e prazer com a

atividade matemática, que conduz a mais trabalho, maior compreensão e melhor

desempenho; e um círculo vicioso: má performance em matemática provoca

desencorajamento externo e interno, que desencadeia ansiedade, condutas

evitativas, nenhuma melhora e novamente má performance.

5.1 Aprendendo aritmética

Tal qual qualquer habilidade inata, as numericamente elementares

desabrocham com o desenvolvimento e a educação infantil. O aprendizado da

matemática impulsiona a criança para se exceder em sua habilidade inata em fazer

aproximações. Ou seja, elas se tornam capazes de discriminar entre 46 e 47 seja

diante de símbolos visuais (os números arábicos) ou palavras escritas (quarenta e

seis e quarenta e sete).

Stanislas Dehaene apresentou no fórum da OECD-CERI, em junho de

2000, um modelo cerebral simples que denominou de Modelo do Código Triplo.

Este modelo descreve um sistema de áreas ativas do cérebro quando a criança está

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lendo ou realizando operações aritméticas tais como adição, subtração,

multiplicação ou divisão. Sintetiza, conforme suas palavras nessa conferência,

“um trabalho em progresso do que está acontecendo no cérebro durante operações

matemáticas” (DEHAENE in OECD-CERI, 2004). (Anexo II)

Neste modelo quando a criança está manipulando um número, ela realiza uma

dentre as três ações a seguir:

· (A) Executa alguma manipulação visual (como quando vê um número na

forma de dígito “3”).

· (B) Executa alguma manipulação lingüística (como quando ouve ou lê

usando a palavra “três”).

· (C) Representa este elemento (dígito ou palavra) como uma quantidade (3

é maior do que 1).

Cada uma dessas ações envolve uma região diferente do cérebro:

· (A) Um subsistema visual localizado em ambos os lados do cérebro, atrás

do ouvido e por baixo do cérebro – áreas correspondentes ao giro

fusiforme.

· (B) Um subsistema verbal situado em regiões distribuídas pelo hemisfério

esquerdo – área perisilviana.

· (C) Um subsistema quantitativo situado em ambos os lados do cérebro em

diagonal com o ouvido – áreas correspondendo aos lobos interparietais.

Conforme o modelo, dependendo do processo aritmético que está ocorrendo, a

informação circula dentro desses subsistemas recrutando um, dois ou todos eles.

Para exemplificar, Dehaene citou, naquele congresso, dois cálculos aparentemente

similares que recrutam diferentes subsistemas do Modelo de Código Triplo, uma

delas ligada ao subsistema verbal e a outra ligada ao subsistema quantitativo.

(ANEXO III)

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Experimentalmente, ele apresentou questões com exatamente o mesmo

problema aditivo (4+5), mas em dois contextos diferentes. Num deles os sujeitos

tinham que encontrar o resultado exato, escolhendo entre dois resultados que eram

ambos muito próximos ao resultado correto (eles eram obrigados a fazer o cálculo

exato). Na outra situação eles tinham que dar dois resultados falsos, sendo um

deles muito distante e o outro próximo ao correto. A evidência mostrou que a

despeito da superficial similaridade entre as duas tarefas, diferentes regiões

cerebrais foram recrutadas. A região mais ativa durante a tarefa aproximativa foi o

subsistema quantitativo enquanto a mais ativa durante o processamento do cálculo

exato foi o subsistema verbal.

Uma interessante e importante conseqüência educacional advinda deste

modelo é que ele proporciona uma possibilidade de explicar a dificuldade que a

maioria das crianças tem quando inicia o aprendizado da matemática na escola.

Conforme Dehaene (OECD-CERI, 2004):

Existem duas causas para as dificuldades com a matemática. Uma possível causa é que alguma rede de interconexão, como o subsistema quantitativo, pode estar debilitada ou desorganizada, e como resultado a pessoa pode perder acesso à informação sobre a inclusão de números. Outra possível causa, sendo a mais comum, é que o sujeito tem que aprender a conectar a representação quantitativa com a representação verbal e a representação visual simbólica.

Esta conexão é estabelecida vagarosamente, e é difícil porque ela envolve

transformações simbólicas que ocorrerão em função das experiências

educacionais e culturais. Por isso, o processamento rápido e flexível de

movimentação de um sistema representativo ao outro parece ser, conforme aludiu

Dehaene (in OECD-CERI, 2004), a fonte de dificuldade para muitas crianças.

E, concluindo, o Modelo de Código Triplo além de poder indicar a

provável origem da dificuldade com a matemática, torna válidas duas

propriedades muito gerais do raciocínio matemático: a possibilidade de pensar

sem linguagem, e a existência do processo inconsciente na matemática.

A característica deste modelo que sustenta a propriedade do raciocínio

matemático inconsciente deve-se ao fato, conforme Dehaene (in OECD-CERI,

2004):

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Que o acesso ao significado quantitativo de um número é um processo completamente automático no cérebro humano, é extremamente rápido, e ocorre sem que você tenha qualquer ciência de que ele está acontecendo.

5.2 Implicações pedagógicas

As implicações pedagógicas da assunção do módulo numérico são

enormes. Põe em evidencia a existência de um mecanismo bidirecional na

aprendizagem da matemática que se move entre a mente consciente e

inconsciente.

Ao nível da mente consciente a criança codifica os conceitos aritméticos

através do uso da linguagem simbólica e da memorização de algoritmos

numéricos. Entretanto, existe um substrato localizado na profundidade do

inconsciente – o módulo numérico ou senso numérico -, onde se encontram

representadas as faculdades protonuméricas, funcionando como um acumulador

numérico primitivo que sustenta a aquisição das primeiras noções numéricas.

Este acumulador permite que estas noções básicas se realizem com

naturalidade, dando tempo a que novos conceitos se infiltrem desde a mente

consciente até o subconsciente. Conceitos estes que intuitivamente codificados

poderão, então, servir de apoio para a aquisição de outros conceitos. Trata-se de

um processo dinâmico, complexo e estimulante que permite a aquisição

progressiva dos conhecimentos matemáticos.

A perda da continuidade deste processo se dá quando o foco da

aprendizagem for feito com ênfase demasiada nos conceitos abstratos e na

memorização rotineira de algoritmos. Dessa forma, se estará estancando o

desenvolvimento do módulo numérico e, com isso, derrubando o suporte intuitivo

para a aquisição de novos conceitos. Como conseqüência há a perda de motivação

da criança diante de tarefas que lhe parecerão cada vez mais difíceis, levando-a a

memorização tediosa dos conceitos. A partir daqui o fracasso na aprendizagem da

matemática é inevitável.

Tanto Dehaene (1997) quanto Butterworth (1999) defendem a necessidade

de que os métodos de ensino permitam que a criança tenha contato com seus

recursos intuitivos. Destacam que é preciso fundamentar os conhecimentos

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matemáticos através de situações concretas, com a ajuda de recursos gráficos e

geométricos, ao invés do uso exagerado de conceitos abstratos.

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CONCLUSÃO

Neste trabalho tomou-se como proposição responder ao problema: De que

forma o saber sobre a habilidade natural do cérebro ao processar números pode

ajudar professores a ensinar fatos, procedimentos e conceitos matemáticos?

Estabeleceu-se como hipótese para tentar responder ao problema levantado

que: No domínio da aritmética elementar nosso cérebro utiliza ao menos duas

formas para representar os números. Uma forma simbólica –que pertence à

mente consciente-, sustentada pela nossa faculdade lingüística, para a

manipulação exata de sinais e algoritmos numéricos e uma outra forma que é

independente da linguagem –pertencendo ao inconsciente-, que está localizada

nos circuitos do cérebro associados com o visual e o espacial (lobo parietal

esquerdo), que é usado para o cálculo aproximado de quantidades numéricas

(senso numérico ou módulo cerebral numérico). Então, a habilidade de uma

criança em aritmética elementar é o resultado da integração dinâmica destas

duas formas de representação.

Esta hipótese encontra-se testada e justificada tendo em vista que:

Os registros históricos sobre a evolução e criação dos números conduzem

à identificação da existência de dois processos distintos relacionados à capacidade

numérica humana: o senso numérico, capacidade inata, inconsciente e a

contagem, processo consciente, produto da linguagem simbólica.

Os experimentos com os animais, em laboratório ou no habitat natural,

demonstram empiricamente que muitas espécies, especialmente os primatas, são

dotadas de um senso numérico, haja vista que eles discriminam conjuntos com

pequenas numerosidades, possivelmente até 4, e até realizam as operações

aritméticas simples, de somar e subtrair, com elas.

Psicólogos e neurocientistas, através de seus estudos e experimentos,

sugerem que os bebês são igualmente dotados desse senso numérico e que essa

capacidade pode ser algo natural e universal entre os seres humanos que a

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herdaram de seus ancestrais próximos ou distantes em decorrência da sua função

evolutiva – otimizar a sobrevivência e reprodução.

As novas técnicas de imagens cerebrais, descritas no quarto capítulo,

permitiram avanços nos estudos neurológicos com lesionados cerebrais os quais

proporcionaram informações sobre as áreas envolvidas nas atividades

operacionais não só relativas aos números como também de cunho lingüístico.

Cientistas como Stanislas Dehaene (1997), Brian Butterworth (1999), entre

outros, concluíram que todo ser humano nasce com um Módulo Numérico (termo

de autoria de Butterworth) que o torna sensível a numerosidades e que o dota,

segundo o psicólogo David Geary (1995) de habilidades matemáticas

biologicamente primárias que são: a numerosidade, a ordinalidade, os princípios

de contagem e a sensibilidade a acréscimos (adições) e decréscimos (subtrações)

sempre com pequenas numerosidades (4 ou 5). Estas habilidades dependem da

integridade física do cérebro, da motivação inerente à criança pequena e dos

estímulos naturais do meio. Já, as habilidades matemáticas biologicamente

secundárias, segundo o modelo cognitivo de Geary (1995), ocorrem apenas

mediante instrução, prática, concentração, esforço, entusiasmo e motivação.

O Módulo Numérico foi localizado, através de modernos recursos de

imageamento cerebral, no lobo parietal esquerdo, mais precisamente na parte

inferior, numa região denominada giro angular, a qual é uma área associativa

estratégica, onde convergem informações de várias modalidades como as visuais,

as auditivas e as táteis. Todavia, processamentos tão complexos como os que

estão ligados à matemática, não se restringem a uma única área cerebral, mas

resultam da colaboração de diversas outras áreas cerebrais.

O Modelo de Código Triplo de Dehaene (in OECD-CERI, 2004),

possibilita a verificação da existência desse mecanismo da aprendizagem da

matemática que se move entre a mente inconsciente –o senso numérico ou módulo

numérico- e a consciente –a codificação simbólica dos conceitos aritméticos.

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Portanto, ao longo dos segmentos que constituem este trabalho, foram

apresentados estudos, experimentos e modelos teóricos que fundamentam e

verificam aquela hipótese.

Tendo a certeza de que este trabalho não se encerra nele mesmo,

apresentamos algumas sugestões para estudos de aprofundamento relacionados ao

tema presente: 1) A Relação entre Número e Linguagem na Criança Pequena,

que, sob o foco da neuropsicologia poderia elucidar os processos de aprendizagem

envolvendo número e linguagem; 2) A Relação entre Discalculia e Dislexia. São

muitos os estudos sobre dislexia, mas pouco se conhece sobre discalculia; 3) A

Relação entre Capacidade Numérica e Memória na Criança Pequena. Os

estudos com este foco trariam informações complementares à abordagem deste

trabalho.

As considerações feitas nesta pesquisa deixam evidências suficientes sobre

a necessidade de fundamentar e direcionar a escolha dos conteúdos e dos métodos

de ensino da matemática que devem estar sempre associados a situações

concretas, auxiliadas, sempre que possível, com recursos gráficos e geométricos.

Pois é desta forma que estaremos reforçando os conceitos intuitivamente

codificados que servem de apoio para a aquisição de novos conceitos.

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ANEXO I

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ANEXO II

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ANEXO III

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ANEXO IV

ATIVIDADES EXTRACLASSE

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ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO

AGRADECIMENTO

DEDICATÓRIA

EPÍGRAFE

RESUMO

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1. UM POUCO DA HISTÓRIA DOS NÚMEROS 12

2. A PERCEPÇÃO NUMÉRICA DOS ANIMAIS 17

2.1 Experimentos com animais treinados 17

2.2 Os estudos com animais selvagens 22

2.3 Os limites da matemática dos animais 23

3. DISCRIMINANDO NUMEROSIDADES 25

3.1 Os experimentos com bebês 25

3.2 Habilidades matemáticas inatas 29

3.2.1 Habilidades matemáticas biologicamente primárias 30

3.3 Piaget e as habilidades numéricas na infância 30

4. O CÉREBRO E A MATEMÁTICA 32

4.1 O Módulo Cerebral Numérico 32

4.1.1 O efeito da distância 32

4.1.2 O efeito do tamanho 33

4.1.3 O efeito SNARC 33

4.2 Localização do Módulo Numérico no cérebro 34

5. A APRENDIZAGEM E O MÓDULO NUMÉRICO 38

5.1 Aprendendo aritmética 42

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5.2 Implicações pedagógicas 45

CONCLUSÃO 47

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 50

ANEXO I 53

ANEXO II 54

ANEXO III 55

ANEXO IV 56

ÍNDICE 57

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FOLHA DE AVALIAÇÃO

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

Título da Monografia: Uma Contribuição Matemático-Cognitiva para o Ensino Fundamental: o Senso Numérico.

Autora: Maria Antonieta Neto Ramos

Data da Entrega: 09 de abril de 2005

Avaliação do orientador, com comentários:

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Avaliado por: _________________________________Grau:_______

Rio de Janeiro (RJ), _________de _______________de 2005.