tradução em revista n 2

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TRADUÇÃO EM REVISTA Uma publicação da área de Estudos da Tradução Departamento de Letras PUC-Rio n. 2 Intervenções Organização Maria Paula Frota e Marcia A. P. Martins

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Edição n. 2 de Tradução em Revista, PUC-Rio

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TRADUÇÃO EM REVISTA

Uma publicação da área de Estudos da Tradução

Departamento de Letras

PUC-Rion. 2

Intervenções

OrganizaçãoMaria Paula Frota e Marcia A. P. Martins

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2 | Tradução em Revista

PUBLIT SOLUÇÕES EDITORIAISRua Miguel Lemos, 41 sala 605Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.071-000Telefone: (21) 2525-3936E-mail: [email protected]ço Eletrônico: www.publit.com.br

Copyright © 2005 por Maria Paula Frota e Marcia MartinsTítulo Original: Tradução em Revista

EditorTomaz Adour

Editoração EletrônicaLuciana Figueiredo

ISSN 1808-5989

Page 3: Tradução Em Revista n 2

Comissão EditorialMarcia A. P. Martins

Maria Paula FrotaPaulo Henriques Britto

Conselho EditorialCristina Carneiro Rodrigues, UNESP-S. José do Rio Preto

Heloisa Gonçalves Barbosa, UFRJJoão Azenha, USP

Lawrence Venuti, Temple UniversityMaria Clara Castellões de Oliveira, UFJF

Maria Lúcia Vasconcellos, UFSCRosemary Arrojo, SUNY-Binghamton

Endereço para correspondênciaDepartamento de Letras, PUC-RioRua Marquês de S. Vicente, 22522450-900 Rio de Janeiro, RJTels.: 55 21 3114-1444/1445/1447Fax: 55 21 3114-1446Contato: [email protected], [email protected],[email protected]://www.letras.puc-rio.br/Traducao/index.htm

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Sumário

Autores ..................................................................................................... 7

Resumos/Abstracts/Resumés ...................................................................... 9

Apresentação ........................................................................................... 17

Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador e os meandros da visibilidade 19Lauro Maia Amorim

A (não) relação entre tradutores e copidesques no processo de edição de obraestrangeira ............................................................................................... 37Flávia Carneiro Anderson

A crítica de traduções .............................................................................. 69Ivone C. Benedetti

Traduttore, traditore: as traduções brasileiras dos romances-folhetins naimprensa carioca do século XIX ............................................................... 77Pina Coco

O uso de corpora para o estudo da tradução: objetivos e pressupostos ....... 87Carmen Dayrell

Memória de tradução: auxílio ou empecilho? .........................................103Adriana Ceschin Rieche

Como criar identidades com traduções, ou quando traduzir é intervir numateoria .....................................................................................................129Daniel do Nascimento e Silva

Tradução, corpos nus e troca de roupas ...................................................147Ben Van Wyke

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AUTORES

Lauro Maia AMORIM é bacharel em Letras com habilitação de Tradutor pelaUNESP de São José do Rio Preto, São Paulo, e mestre em Lingüística Aplicada- Estudos da Tradução pela mesma instituição. Sua dissertação, em fase depublicação pela Editora da Unesp, examina as múltiplas relações entre o tradu-zir e o adaptar, no campo da literatura, focalizando as diferenças, aproxima-ções e entrecruzamentos que caracterizam essas relações, tanto em obrastraduzidas e adaptadas quanto nos discursos de estudiosos da tradução. Recen-temente ingressou como doutorando no Programa de PhD in TranslationStudies, da Universidade Estadual de Nova York (SUNY), em Binghamton,Estados Unidos. Atualmente é professor no curso de Tradutor e Intérprete daUnião das Faculdades dos Grandes Lagos — UNILAGO em São José do [email protected]

Flávia Carneiro ANDERSON é formada em Ciências Sociais pela Universi-dade Federal do Rio de Janeiro. Concluiu os cursos de Formação de Traduto-res Inglês-Português (2004) e de Especialização em Tradução Inglês-Português(2005) na PUC-Rio. É tradutora profissional de inglês e espanhol e atua prin-cipalmente nas áreas de tradução literária e tradução para [email protected]

Ivone C. BENEDETTI, tradutora desde 1987 e professora de português, la-tim e francês, tem doutorado em Língua e Literatura Francesa pela FFLCH-USP, com trabalho sobre Charles d’Orléans, poeta francês medieval. Traduzautores como Maquiavel, Voltaire, Montaigne e Barthes, entre muitos outros.Organizou o Dicionário de Italiano-Português Martins Fontes (S. Paulo: MartinsFontes, 2004) e do livro Conversas com tradutores (Parábola, S. Paulo, 2003). Éprofessora de gramática contrastiva e tradução prática na FFLCH-USP, juntoao [email protected]

Pina COCO é doutora em Letras, área de Literatura Brasileira, pela PUC-Rio,onde atua em cursos de graduação e pós-graduação. O texto publicado nestenúmero foi extraído de sua tese de doutorado, O triunfo do bastardo: umaleitura dos romances-folhetins na imprensa carioca do século XIX (PUC-Rio, 1990),

Autores | 7

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inédita. Teve traduções encenadas pelo Grupo TAPA (Rio e São Paulo) e porGilles Gwizdek. É afiliada à [email protected]

Carmen DAYRELL é doutora em Estudos da Tradução pelo Center forTranslation and Intercultural Studies (CTIS) da Universidade de Manchester(Inglaterra). Tem mestrado em Lingüística Aplicada, na área de Tradução, pelaFaculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Étradutora (inglês-português) há mais de 10 [email protected]

Adriana Ceschin RIECHE graduou-se bacharel em Letras em 1988 e, desdeentão, atua como tradutora técnica e intérprete de conferências, à frente daArquitexto Ltda., estando encarregada da supervisão e execução de projetos detradução, versão, revisão lingüística e atualização de textos técnicos e comerci-ais de diversas empresas. É professora de Prática de Tradução de Informáticano curso de especialização em tradução da PUC-Rio. Em 2004, concluiu omestrado em Estudos da Linguagem pela [email protected]

Daniel do Nascimento e SILVA é tradutor da Fundação CPqD – Centro dePesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações. Mestre em Lingüística peloInstituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, sob orientação do professorKanavillil Rajagopalan, desenvolve pesquisas sobre a relação entre linguagem eidentidade, numa abordagem pragmática, em diferentes domínios [email protected]

Ben VAN WYKE é mestre em Literatura Comparada pela BinghamtonUniversity, estado de Nova York, Estados Unidos, e administra o TranslationReferral Service da mesma universidade. Publicou traduções de poesia, ficção etextos acadêmicos do espanhol e do português, e tem interesse pela filosofiacontemporânea e teorias pós-coloniais, bem como pela relação dessas discipli-nas com a teorização e a prática da traduçã[email protected]

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RESUMOS/ABSTRACTS/RESUMÉS

OS LUGARES DISCURSIVOS DO TRADUTOR E DO ADAPTADOR EOS MEANDROS DA VISIBILIDADE

THE DISCURSIVE LOCATIONS OF TRANSLATORS AND ADAPTORSAND THE MEANDERS OF VISIBILITY

Lauro Maia AMORIM

O presente trabalho desenvolve uma reflexão sobre a tradução e a adaptação eos lugares discursivos de onde “falam” tradutores e adaptadores das obras Alice’sadventures in Wonderland, de Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling, para oportuguês brasileiro. É discutida a questão da visibilidade do tradutor e doadaptador em relação ao modo como seus trabalhos são divulgados, levando-se em consideração aspectos relacionados à autoridade de quem traduz ou adaptae às expectativas que os termos “tradução” e “adaptação” podem suscitar juntoaos leitores.

This paper proposes a reflection on the concepts of translation and adaptationand the discursive locations from which translators and adaptors “speak”, byconsidering different Brazilian Portuguese versions of Lewis Carroll’s Alice’sAdventures in Wonderland and Rudyard Kipling’s Kim. The issue of thetranslator’s and the adaptor’s visibility is discussed in connection to the waytheir works are presented to the public, by taking into account both the au-thority associated with translators and adaptors and the expectations the terms“translation” and “adaptation” may raise among readers.

Resumos/Abstracts/Resumés | 9

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A (NÃO) RELAÇÃO ENTRE TRADUTORES E COPIDESQUES NOPROCESSO DE EDIÇÃO DE OBRA ESTRANGEIRA

THE (NON) RELATIONSHIP BETWEEN TRANSLATORS AND EDITORSIN THE EDITING PROCESS OF FOREIGN LITERATURE

Flávia Carneiro ANDERSON

Este estudo visa a analisar a relação entre tradutores e copidesques no processoeditorial, a partir das mesmas bases utilizadas pelos teóricos da tradução paraavaliar a relação entre autores e tradutores. Procura entender o que os traduto-res e os copidesques pensam a respeito de seus papéis e o motivo das queixaspor parte de tradutores quanto a copidescagens tidas como desnecessárias ouincorretas. Procura também demonstrar que as editoras poderiam realizarmodificações no processo de edição que em muito contribuiriam para aharmonização da relação entre tradutores e copidesques e para a melhoria dequalidade das obras traduzidas.

This study aims to analyse the relationship between translators and editors inthe editing process, on the same bases used by translation theorists to evaluatethe relationship between authors and translators. It aims to understand howtranslators and editors see their own roles and the reason for translators’ com-plaints about what they consider to be unnecessary or incorrect changes. Italso aims to demonstrate that publishing houses could introduce changes inthe editing process that would greatly contribute to the harmonization of therelationship between translators and editors and to the improved quality oftranslated works.

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A CRÍTICA DE TRADUÇÕES

LA CRITIQUE DES TRADUCTIONS

Ivone C. BENEDETTI

Este texto foi lido na PUC-Rio em 5 de outubro de 2004, em uma mesa-redonda que discutiu a crítica de traduções e que foi realizada por ocasião dolançamento do primeiro número do presente periódico. Nele são discutidosdiversos conceitos de “crítica”: crítica do texto por traduzir, feita pelo própriotradutor, crítica do texto traduzido feita por um terceiro, crítica como julga-mento, crítica como condenação etc. Conclui-se que no Brasil não há críticade tradução especializada, perguntando quem poderia produzi-la, se um críti-co ou um tradutor.

Ce texte a été lu à PUC-Rio le 5 octobre 2004, au cours d’une table-ronde surla critique des traductions tenue à l’occasion de la sortie de la revue Traduçãoem Revista. On y traite des divers concepts de « critique » : la critique du texteà traduire faite par le traducteur lui-même, celle du texte traduit faite par untiers, la critique en tant que jugement, la critique en tant que condamnationetc. On y conclut qu’au Brésil il n’y a pas de critique de traduction specialisée,et on y pose la question de savoir qui pourrait la produire : un critique ou untraducteur.

Resumos/Abstracts/Resumés | 11

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TRADUTTORE, TRADITORE: AS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DOSROMANCES-FOLHETINS NA IMPRENSA CARIOCA DO SÉCULO XIXTRADUTTORE, TRADITORE : LES TRADUCTIONS BRÉSILIENNESDES FEUILLETONS DANS LA PRESSE DE RIO DE JANEIRO AU XIXème

SIÈCLE

Pina COCO

Se na morosa Corte portuguesa do Rio de Janeiro, no século dezenove, ostítulos literários franceses tardam a chegar, é surpreendente o surgimento, qua-se simultâneo à publicação parisiense, dos romances populares em tradução.Dois aspectos dessa questão merecem ser analisados — por um lado, objeto einstrumental, ou seja, o que e como é traduzido; por outro, a questão da recep-ção: a que público se destinam as traduções, o que introduz a rediscussão dacategoria “romance popular”, que, se na Europa é bastante definida, transpostapara o Brasil de 1800 simplesmente inexiste. Tomando como base publicaçõesna imprensa carioca entre 1840 e 1880, tentaremos mapear essas questões.

Si dans la paresseuse Cour portugaise de Rio de Janeiro au XIXème les titreslittéraires français tardent à arriver, on est surpris par le surgissement presquesimultané à leur parution parisienne de romans populaires traduits. Deux as-pects de cette constation méritent d´être analysés : d’un côté, l’objet et sontraitement — le matériel traduit et la qualité de la traduction. D’un autre, laquestion de la réception : le public auquel ces traductions se destinent, intro-duit la rediscussion de la catégorie de « roman populaire », bien définie enEurope mais simplement inexistante, une fois transposée au Brésil de 1800.En prenant comme base d’étude les publications de la presse de Rio entre1840 et 1880, nous essayerons de parcourir ces questions.

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O USO DE CORPORA PARA O ESTUDO DA TRADUÇÃO: OBJETIVOSE PRESSUPOSTOS

USING CORPORA TO STUDY TRANSLATION: AIMS ANDASSUMPTIONS

Carmen DAYRELL

O principal objetivo deste artigo é discutir as propostas, objetivos e pressupos-tos da disciplina Estudos de Tradução com base em Corpora (ETC). Mais espe-cificamente, este artigo visa a explicar a importância, benefícios e aplicações douso de corpora nas esferas teórica e pedagógica da disciplina. Ele inclui aindauma descrição dos tipos de corpora usados atualmente em pesquisas dos Estu-dos da Tradução, bem como alguns exemplos para ilustrar como metodologiasbaseadas em corpora podem ser usadas para o estudo da tradução.

This paper aims to discuss the objectives, proposals, and rationale behindCorpus-based Translation Studies (CTS). More specifically, it aims to explainthe relevance, benefits, and applications of corpora in the theoretical and peda-gogical branches of the discipline. The paper discusses the types of corporawhich are currently used in translation studies and provides some examples toillustrate how corpus-based methodologies can be used to study translation.

Resumos/Abstracts/Resumés | 13

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MEMÓRIA DE TRADUÇÃO: AUXÍLIO OU EMPECILHO?

TRANSLATION MEMORY: AID OR HANDICAP?

Adriana Ceschin RIECHE

O presente estudo analisa os principais fatores que levam a problemas de quali-dade nos sistemas de memória de tradução e apresenta sugestões para melhoraro controle de qualidade, ressaltando a necessidade de manutenção e revisãodas memórias para que realmente sirvam ao propósito de serem ferramentas enão empecilhos para o tradutor. Essas questões são analisadas no contexto domercado de localização de software, segmento em que as memórias de traduçãosão amplamente utilizadas, à luz das abordagens contemporâneas sobre quali-dade de tradução.

This study analyzes the major factors leading to quality problems in transla-tion memory systems and suggests ways to enhance quality control, emphasiz-ing the need for updating and reviewing the translation memories so that theycan actually serve as translation aids rather than handicaps. These issues areanalyzed in the context of the software localization market, a segment in whichtranslation memories are widely used, in the light of contemporary approachesto translation quality assessment.

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COMO CRIAR IDENTIDADES COM TRADUÇÕES, OU QUANDOTRADUZIR É INTERVIR NUMA TEORIA

HOW TO MAKE IDENTITIES WITH TRANSLATIONS, OR WHENTRANSLATING IS INTERVENING IN A THEORY

Daniel do Nascimento e SILVA

Partindo da hipótese de que, em se tratando da teoria dos atos de fala, associ-ada ao pensamento de J. L. Austin, o trabalho de tradução de seus textos seassemelha ao trabalho de interpretação de seu pensamento e de intervençãonele, assumindo, assim, o status de atividade de reconstrução da teoria, lançoum olhar neste ensaio para as escolhas lingüístico-discursivas do tradutor bra-sileiro, o filósofo Danilo Marcondes, de modo a delinear, simultaneamente, aintervenção no texto e no pensamento austiniano e a reivindicação de certaidentidade para Austin e sua filosofia.

Starting from the hypothesis that, as regards J. L. Austin’s speech act theory,the act of translating his texts is similar to the act of interpreting and interveningin his thought, implying as well a reconstruction of the theory, I take a look atthe linguistic-discursive strategies of the Brazilian translator, the philosopherDanilo Marcondes, so as to delineate, simultaneously, the intervention inAustin’s text and thought and the demand for a certain identity for Austin andhis philosophy.

Resumos/Abstracts/Resumés | 15

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TRADUÇÃO, CORPOS NUS E TROCA DE ROUPAS

TRANSLATION, NAKED BODIES AND CHANGE OF CLOTHES

Ben VAN WYKE

A tradução é freqüentemente discutida e explicada através de metáforas. Umadessas metáforas, utilizada no discurso tradutório desde Cícero até o presente,é a da vestimenta: a língua é como uma roupa que cobrisse e apresentasse ocorpo do significado. A tradução, segundo essa metáfora, é compreendida comoa mudança da vestimenta lingüística ou a criação de novas roupas para revestiro corpo/original. Essa metáfora da vestimenta baseia-se numa distinção radicalentre o sentido e o texto em que ele supostamente seria encontrado, entresignificado e significante, o que implica a impossibilidade de pensar a relaçãoentre as entidades que a tradição denomina forma e conteúdo senão comocoisas separadas e independentes uma da outra. No presente trabalho, exploroa metáfora do corpo como significado e o que ela implica para a suposta ope-ração de troca de roupa que seria a tradução. Em seguida, examino maneirasalternativas de pensar a tradução utilizando essa metáfora tradicional.

Translation is often discussed and explained by way of metaphors. One ofthese metaphors, employed in translation discourse from Cicero to the present,is that of dress: clothes being like a language that covers and presents a body ofmeaning. Translation, according to this metaphor, is understood as the chang-ing of the language dress or the designing of new clothes in which the body/original can be presented. This clothing metaphor depends on a very sharpdistinction between meaning and the text in which it is said to be found, thesignified and the signifier, which implies the impossibility of thinking of therelationship between what tradition calls form and content as anything butseparate and independent from each other. In this paper I will explore themetaphor of the body as meaning and what this means for the supposed re-dressing that is translation. I will then explore alternative ways of thinkingabout translation using this traditional metaphor.

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APRESENTAÇÃO

É com muito prazer que lançamos este segundo número de Tradução emRevista, para o qual colaboraram oito autores, todos eles de algum modo rela-cionados à nossa área de Tradução na PUC do Rio – alunas da especialização edo mestrado; companheiros em congressos realizados aqui e no exterior; colegasdesta e de outras instituições que participaram de algumas iniciativas nossas.

O tema deste número é Intervenções: diferentes formas de se intervir emum texto durante o processo de sua tradução. Nestes tempos em que pelomenos entre nós, estudiosos da área, já não mais impera a crença em supostaneutralidade da operação tradutória, cabe sempre investigarmos por que moti-vos, de que maneiras e através de que agentes podem se dar essas inevitáveis(mas não quaisquer) intervenções.

Cada um dos trabalhos aborda o tema sob um ângulo específico. LauroAmorim, a partir da análise comparativa de diferentes traduções, adaptações etraduções-adaptações dos romances Kim e Alice’s adventures in Wonderland,apresenta o quadro de “confusão” que há, entre editoras e tradutores brasilei-ros, relativamente àqueles conceitos: ao contrário do que esperaríamos, os tex-tos vendidos como traduções por vezes revelam um grau consideravelmentemaior de intervenção no original do que aqueles que são anunciados comoadaptações. Flávia Anderson reflete sobre as reações dos tradutores face às in-tervenções que os copidesques operam em seus textos – será que exigimosdestes uma neutralidade que afirmamos impossível no nosso caso? IvoneBenedetti, ao sugerir uma crítica de traduções de melhor qualidade, traz con-ceitos de Umberto Eco que propõem um limite entre o que seria uma “inter-pretação semântica” e uma “interpretação crítica”, isto é, um limite justamenteentre a ausência e a presença de intervenção por parte do intérprete. Pina Coconos traz uma série de curiosidades a respeito da imprensa carioca no séculodezenove, entre elas as drásticas intervenções feitas por tradutores de roman-ces-folhetins para que fosse preservada a pureza das “amáveis leitoras”. O textode Carmen Dayrell, que faz uma apresentação dos estudos de tradução com

Apresentação | 17

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base em corpora, também vincula-se ao tema da intervenção, ainda que deforma menos óbvia – afinal, toda e qualquer metodologia de pesquisa necessa-riamente intervém na constituição do objeto enfocado. Já no trabalho deAdriana Rieche, os agentes das intervenções tradutórias são os programas dememória de tradução, os quais, como enfatiza a autora, requerem manutençãoe revisão para que possam de fato intervir positivamente, sem risco de se torna-rem empecilhos para o tradutor. Daniel Silva, por sua vez, aborda o tema daintervenção no âmbito da tradução de textos teóricos, em particular da tradu-ção brasileira de How to do things with words de John L. Austin, procurandodemonstrar como ela participa de “um movimento de (re)construção da teoriados atos de fala”. Ben Van Wyke desconstrói a metáfora do corpo e da roupa,usada no discurso que prega a possibilidade de se traduzir sem intervir, ou seja,que crê na idéia de que traduzir consiste em desnudar o significado-corpo deum texto tirando as suas roupas-palavras originais e trocando-as por um novotraje lingüístico.

Feita essa breve apresentação, só nos resta agradecer aos autores e convi-dar os leitores a desfrutarem de suas reflexões.

Maria Paula Frota e Marcia A. P. MartinsRio de Janeiro, novembro de 2005

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OS LUGARES DISCURSIVOS DO TRADUTOR E DOADAPTADOR E OS MEANDROS DA VISIBILIDADE1

Lauro Maia Amorim

IntroduçãoO presente trabalho discute a relação entre tradução e adaptação refletin-

do sobre as diferenças, aproximações e entrecruzamentos entre os dois conceitosno campo da tradução literária. O trabalho busca criar um espaço de reflexão noqual os conceitos de “tradução” e de “adaptação” sejam pensados como frutostanto da relação entre as diferenças culturais e lingüísticas como também depráticas discursivas que constituem as fronteiras entre os dois conceitos.

A reflexão que aqui se propõe baseia-se, em parte, na proposta de Toury(1995), segundo a qual o conceito de tradução não representa uma identidadefixa, na medida em que depende de fatores diversos, tais como as diferençasculturais e históricas que possibilitam a formação de diferentes expectativasacerca de como uma tradução pode ser produzida para atender diferentes ob-jetivos. Uma vez que o conceito de tradução constitui-se de uma rede comple-xa de relações, ele será caracterizado por múltiplas identidades, dependentesdas “forças que governam as decisões a serem tomadas em uma determinadaépoca” (Gentzler, 1993: 128). A tradução não poderia ser, assim, facilmentereduzida a um conceito apenas, mas poderia ser concebida como umatextualidade marcada por uma certa “mobilidade” cujas margens sãoestabelecidas na relação entre práticas discursivas heterogêneas, que incluem asrecepções do texto original e os lugares discursivos atribuídos ao tradutor e aoadaptador em determinados espaços institucionais.

Como ressalta Hermans (1997), a tradução é uma prática concebida emum universo institucional marcado pelo entrecruzamento de normas e discur-sos que podem ser conflituosos, possibilitando ou não a legitimação de certaspossibilidades tradutórias, pois

as normas não são independentes [...] das relações sociais no interior dascomunidades, quer essas relações sejam materiais (econômicas, legais oufinanceiras), quer sejam o que Pierre Bourdieu chama de “simbólicas”, isto

Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 19

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é, relações vinculadas ao status, à legitimidade e a quem a confere. É eviden-te que em sociedades complexas e diferenciadas, coexiste uma multiplicidadede diferentes normas que coincidem, mas que, também, com freqüência,entram em conflito. O trabalho do tradutor inevitavelmente enreda-se nadiversidade dessas tramas, [na medida em que] o tradutor se inscreve narede das relações sociais e discursivas existentes. (Hermans, 1997: 10)2

Para o desenvolvimento da reflexão proposta serão comentadas algumasdas traduções e adaptações das obras Alice’s adventures in Wonderland, de LewisCarroll, e Kim, de Rudyard Kipling, para a língua portuguesa do Brasil. Aanálise proposta não defende a busca, seja para a “tradução” ou para a “adapta-ção”, de uma identidade unívoca fundamentada em limites absolutos, suposta-mente objetivos ou universais, que não levam em consideração o contexto deformulação daqueles conceitos. Nesta pesquisa, partimos do pressuposto deque as fronteiras entre os dois conceitos não são intrínsecas — o que nãosignifica dizer que não haja fronteiras. Defender a inexistência de limites seriaum gesto tão ingênuo quanto reafirmar a possibilidade de se fixarem limitesanteriores a qualquer contextualização. É desejável que a reflexão sobre as fron-teiras entre o traduzir e o adaptar possa levar em consideração os meandrosdiscursivos que atuam sobre as condições que levam uma obra a ser classificadacomo adaptação ou como tradução. Essas condições são variáveis, implicandoalgum tipo de mobilidade na constituição dessas fronteiras. Algumas das ques-tões que este trabalho pretende discutir são, a saber: 1) em que medida o “au-tor/escritor” por trás do tradutor/adaptador pode ser um elemento que, emvirtude de uma certa autoridade, torna possível a legitimação de determinadasopções interpretativas?; 2) o termo “adaptação”, visível na capa de uma obra,poderia ser considerado um meio mais “ético” de se veicularem certas interpre-tações ou transformações textuais?; 3) a identificação de uma obra como “tra-dução”, “adaptação” ou “tradução e adaptação” depende apenas de elementostextuais ou abrange também uma dimensão discursiva que se inscreve no modocomo essa obra é classificada/percebida? Essas questões são pontos de partidapara uma reflexão sobre as fronteiras que participam da (in)visibilidade dotradutor e do lugar discursivo do “adaptador”, no qual se indicia, com fre-qüência, o desejo pela vinculação de uma dimensão “autoral” (ou “co-autoral”)à textualidade da escritura adaptada.

Tradução e adaptação: histórias recontadasA adaptação de obras clássicas da literatura nacional e mundial é um

tema que desperta polêmica, dividindo opiniões. Não poderia ser diferente, já

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que a noção de adaptação não se reduz a um sentido consensual: ela pode serassociada tanto à noção de “enriquecimento” quanto de “empobrecimento”.Por um lado, argumenta-se que ela empobreceria as literaturas clássicas emvirtude de um processo de atualização e de simplificação que visaria atender apúblicos específicos, como o infanto-juvenil. Por outro, ela tornaria possível oenriquecimento da formação educativa desses públicos, introduzindo obras de di-fícil acesso, cuja linguagem seria complexa ou temporalmente distante da realidadecom a qual tais leitores estariam habituados. Em ambos os casos, a adaptação seriaum conceito amplo que abarca as mais diversas formas de linguagem, como histó-ria em quadrinhos, adaptações cinematográficas e televisivas, desenhos animados,audio-books, e os trabalhos conhecidos como “histórias recontadas” ou “adapta-ções” literárias em forma narrativa (um dos objetos desta pesquisa).

Neste contexto, os adaptadores cumprem um papel particularmentediverso do tradutor. Institucionalmente, concebe-se que o adaptador não éapenas um profissional que “atualiza” a linguagem de uma obra, mas que tam-bém assumiria, parcialmente, o lugar discursivo reservado ao “autor”. Em ou-tros termos, com freqüência pressupõe-se que a narrativa, em uma adaptação,seja “compartilhada” entre o autor original e o adaptador-“autor”, que a “reconta”conferindo um “toque” especial à narrativa. Não é mera coincidência o fato deque muitos adaptadores já são autores/escritores renomados. Quem adquireuma adaptação pode esperar que o adaptador seja “fiel” à “história”, sem dei-xar, porém, de se fazer “presente” na sua própria composição – presença queconta uma história, como a figura de um adulto que se faz presente, com todoo seu modo particular, nas histórias contadas à criança . Essa situação delegaresponsabilidades ao adaptador, tornando seu trabalho consideravelmente com-plexo, apesar de ser considerado uma forma de simplificação3 . Não é à toa queestudiosos alertam para a necessidade de se avaliar e valorizar a qualidade dasadaptações, pois “a cada adaptação bem realizada de um clássico (nas váriaslinguagens) é grande o número de leitores que se dirige aos textos originais”(Ceccantini, 1997: 7, grifo meu).

No entanto, levanta-se uma questão: o original, ao qual se refereCeccantini, seria a “tradução” ou o texto original em língua estrangeira? Épouco provável que a maioria daqueles leitores que foram introduzidos aosclássicos por meio das adaptações tenham contato com a leitura dos textosestrangeiros posteriormente. Esse contato posterior se dará, muito provavel-mente, por meio de trabalhos publicados como “traduções” – os “originais” deque fala Ceccantini. Quanto a isso, é importante ressaltar que muitos traba-lhos publicados como traduções, como por exemplo as da série “Eu Leio”, da

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editora Ática, mesmo sendo considerados “integrais”, promovem umdirecionamento editorial e interpretativo dos textos originais, tendo em vistafatores relacionados ao público adolescente. No entanto, o termo “tradução”se inscreve numa rede discursiva que institucionalmente regula o papel dotradutor como aquele que apenas “espelharia” o que lê (sem considerar fatoresda ordem da recepção) fazendo-se “ausente”, ao contrário do adaptador, que,se fazendo “presente”, “contaria” uma narrativa clássica, como um bom conta-dor de histórias que leva em consideração o perfil dos seus ouvintes/leitores.

A oposição entre “espelhar” e “recontar”, “ausência” do tradutor e “presen-ça” do adaptador mostram-se, no entanto, inadequadas quando nos deparamoscom as traduções e adaptações analisadas aqui. O tradutor torna seu texto tãoacessível quanto o faz o adaptador. Isso não quer dizer que as transformaçõesoperadas possam ser aceitas indiferentemente como traduções ou adaptações: háespaços institucionais, dimensões discursivas, princípios de coerência que possi-bilitam ou autorizam, por um lado, certas interpretações sob o rótulo de tradu-ção, sem deixar de direcioná-las a um determinado público, como se a obra em“si mesma” já fosse delineada para aqueles leitores; por outro lado, certas inter-pretações podem ser autorizadas sob o conceito de “adaptação” na medida emque, mesmo com alterações consideráveis, a transformação empreendida sejagarantida por profissionais experientes em manter a “verdade” mítica das obrasque adapta por meio da fluidez de sua suposta sensibilidade “autoral”.

Este trabalho, no entanto, focaliza certas particularidades da relação entrea figura autoral e as versões4 aqui analisadas. A experiência pregressa de autores/escritores renomados, algo comum a muitos adaptadores, é o que caracterizaparticularmente o trabalho do escritor Monteiro Lobato, tradutor de Kim, e otrabalho de Ana Maria Machado, tradutora de Alice no País das Maravilhas. Ambosos tradutores são escritores de renome, com uma história intimamente ligada àliteratura infanto-juvenil no Brasil. Seus “nomes” conferem às traduções queproduziram uma determinada força discursiva que, aliada à política editorial,indicia a mobilidade das fronteiras entre o traduzir e o adaptar, assim como alegitimação de certas opções interpretativas sob o rótulo “tradução”, quando emoutras circunstâncias poderiam ser consideradas ou rotuladas de “adaptação”.

As versões de Kim, de Rudyard KiplingA escolha da obra Kim de Rudyard Kipling para a pesquisa justificou-se

na medida em que a análise de duas de suas reescrituras para a língua portu-guesa revela a complexa relação entre os problemas suscitados pelo colonialismoe a própria dimensão discursiva que permeia os conceitos de tradução e de

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adaptação. Na tradução de Kim por Monteiro Lobato (originalmente publicadapela Companhia Editora Nacional em 1945) e na sua adaptação por ElianaSabino (Editora Scipione, 1993) emergem conflitos a partir dos discursos emque essas reescrituras se inscrevem, enquanto promotoras de um determinadomodo de se ler o Oriente, a partir dos olhos do Ocidente. A adaptação deSabino condensa o romance, de aproximadamente 300 páginas, para em tornode 120, omitindo tanto passagens da própria narrativa quanto poemas queintroduzem cada capítulo no texto-fonte. Além disso, todos os capítulos sãomantidos, com a inserção de ilustrações não presentes na edição original eminglês. De modo geral, as reedições das traduções de Lobato, sem ilustrações,mantêm-se entre 240 e 300 páginas, embora também omita os poemasintrodutórios e assimile o quarto capítulo do original ao terceiro, de forma quea tradução passa a ter 14 capítulos em vez de 15, como no original. Essa assi-milação apenas altera o número de capítulos, unindo a passagem final do ter-ceiro capítulo e o princípio do quarto.

Kim foi originalmente publicado em 1901. A primeira tradução da obrano Brasil é de 1934, realizada por Antonio Batista Pereira e editada pela Edito-ra Companhia Nacional. Lobato realizou a segunda tradução da obra, publicadaem 1945 e apresentada como “3a. edição” pela mesma editora, não utilizadanas análises deste trabalho. Após essa data, houve reimpressões da tradução deLobato, sendo o exemplar de 1956 e outro, sem data, os que tomei como duasdas três referências para a realização das comparações entre texto original etexto traduzido desta pesquisa. O exemplar de 1956 e o sem data não apresen-tam número de edição. Nos últimos anos, a tradução de Lobato esteve esgota-da até que, em 2002, a editora Nacional a relançou no mercado, com “a atua-lização lingüística de Alípio Correia de Franca Neto” (Kipling, 2002, fichacatalográfica). Apesar da “atualização lingüística” e da inserção de notas feitaspor Franca Neto na publicação de 2002, na ficha catalográfica afirma-se “1.ed” (primeira edição). No entanto, na parte superior da folha de rosto encon-tra-se a seguinte informação: “© Companhia Editora Nacional, 1945, 2002”.A substituição de expressões idiomáticas, como “conto da carocha” por “contoda carochinha”, seria um dos poucos exemplos de atualização lingüística nanarrativa feita por Franca Neto na publicação de 2002. Por outro lado, algu-mas passagens traduzidas presentes no exemplar sem data e no de 1956, quepoderiam levantar verdadeiras polêmicas, foram relidas provavelmente comoerros de tradução ou de impressão e, portanto, corrigidas, como é o caso datradução de “beautiful impartiality” por “horrível imparcialidade” (traduzidaagora, em 2002, como “louvável imparcialidade”) e a tradução de “Perhaps

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they will make me a king” por “Talvez até me façam rir” (substituída por “Tal-vez até me façam rei”). A edição de 2002 traz, ainda, notas de rodapé queexplicam o significado dos termos empregados por Lobato. O que chama maisa atenção é que a grande maioria das notas explicativas não se refere a termosda cultura indiana, mas a expressões que não são comuns à língua portuguesabrasileira, como “surrão”, “odre”, “refolho”, “marafona”, “parolagem” etc. Otexto original, utilizado como referência para esta pesquisa e publicado pelaeditora Penguin, diferentemente da tradução de 2002, traz notas para explicartanto eventos históricos quanto aspectos culturais locais. Diante das modifica-ções empreendidas na tradução de 2002, interpretamos essa publicação como,no mínimo, uma quarta edição, ainda que a editora a considere como primeiraedição na ficha catalográfica.5

Kim é um clássico da literatura inglesa e o romance mais destacado deRudyard Kipling, autor geralmente lembrado por suas posições imperialistaspró-britânicas. A questão do imperialismo em Kipling só é focalizada na intro-dução à adaptação de Sabino, enquanto a orelha da tradução de Lobato, de1956, realizada quando a Índia acabava de se “desvincular” do domínio britâ-nico, ressalta apenas a grandeza literária da narrativa de Kipling. A adaptaçãoda editora Scipione apresenta uma breve introdução, não assinada,contextualizando historicamente o autor e sua obra. Nessa introdução, desen-volve-se uma argumentação que é particularmente reveladora, não somente deuma certa concepção do que representaria a obra do autor, já indiciando pro-blemas relativos a questões coloniais, mas também de um determinado discur-so que se posiciona opositivamente, ainda que de forma indireta, em relação aoutras interpretações ou reescrituras da obra de Kipling em português:

Apesar do patriotismo de Kipling, que o impediu, talvez, de considerarcriticamente a política colonialista, as primeiras traduções de Kim para alíngua portuguesa reforçaram o ideário da superioridade dos brancos aoacrescentar no texto supostos aspectos negativos dos nativos, onde seu au-tor não o fez. Esta edição procura levar ao público leitor a Índia que Kiplingconheceu e registrou, através de Kim, esse fruto do contato entre as culturasocidental e oriental. (Kipling, 1993: 4, “introdução”)

A tradução de Kim por Antonio Pereira Batista, em 1934, e a realizada porLobato, em 1945, estão entre as primeiras traduções do romance de Kipling noBrasil. Estaria a tradução de Lobato inclusa entre aquelas “primeiras traduções”de Kim criticadas, na introdução não assinada à adaptação de Sabino, por refor-çarem “o ideário da superioridade dos brancos” (Kipling,1993: 4, “introdução”)?

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Não poderemos discutir essa questão no espaço deste trabalho, mas certamentea tradução de Lobato, apesar de se aproximar do que se chamaria de uma tradu-ção “integral”, apresenta opções tradutórias muito mais polêmicas do que o pro-cesso de condensação efetuado na adaptação de Eliana Sabino. É interessanteobservar que a tradução de Lobato reeditada pela Companhia Editora Nacionalem 2002 mantém integralmente os trechos que observaremos a seguir.

A passagem abaixo focaliza o narrador retratando a senhora de Kulu,uma das personagens que o garoto Kim e o Lama encontram caminhandojuntos pelas estradas da Índia:

KiplingSo all about India, in the most remote places, as in the most public, youfind some knot of grizzled servitors in nominal charge of an old lady who ismore or less curtained and hid away in a bullock-cart. Such men are staidand discreet, and when a European or a high-caste native is near will nettheir charge with most elaborate precautions; but in the ordinary haphaz-ard chances of pilgrimage the precautions are not taken. The old lady is,after all, intensily human, and lives to look upon life. (Kipling, 1989: 113)

Tradução de Monteiro LobatoÉ comum por toda a Índia o encontro de carros de boi fechados de corti-nas, guardados por numerosos servos e com uma exigente velha dentro.Esses servos mostram-se prudentes e discretos. Quando se aproxima umeuropeu ou um indiano de casta alta, dissimulam habilmente a presença davelha ama no carro. Mas durante as romarias, a extrema aglomeração inuti-liza tais cuidados — e as velhas são vistas. A curiosidade feminina faz queelas mesmas se deixem ver. (Kipling, 2002: 59)

Adaptação de Eliana SabinoAssim, não era raro encontrar por toda parte da Índia, um punhado deempregados velhos escoltando uma senhora mais ou menos oculta numacarroça puxada por bois. Diante de um europeu ou de um nativo de castaelevada, a senhora e seus empregados observam o protocolo mais estrito,porém durante a maior parte da viagem essas precauções eram esquecidas.(Kipling, 1993: 34)

Observando o texto de Kipling, em inglês, naquelas circunstâncias emque não havia europeus ou nativos de casta alta por perto, a velha senhora deKulu não se escondia permanentemente. Segundo o narrador, por ser “inten-samente humana”, ela estima a vida. Estimar a vida seria vivê-la sem seguir à

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risca certas convenções sociais que, para aquele momento, não faziam sentidoalgum. Ser “intensamente humana” seria voltar-se para a própria contempla-ção da vida, sem importar-se com certas regras de comportamento.

O trecho “the old lady is, after all, intensely human, and lives to look uponlife” é traduzido por Lobato como “A curiosidade feminina faz que elas mes-mas se deixem ver”. Se, no texto original, a velha senhora é caracterizada comosendo “intensamente humana”, na tradução ela caracteriza-se por traços quesão apresentados como características de toda mulher. Teria Lobato interpreta-do “intensely human” ou “lives to look upon life” como “ações” que se traduziri-am em “curiosidade feminina”? Se levarmos em consideração que a velha se-nhora encontrava-se curiosa para conhecer o Lama — já que este e Kim segui-am de perto sua escolta pela estrada — talvez a opção de Lobato seja aceitável;porém, há, também, a possibilidade de se ler aí a própria configuração danoção de estereótipo, pois em que sentido a “curiosidade feminina” seria subs-tancialmente distinta da “curiosidade masculina”?

Na adaptação de Sabino não há nenhuma referência a essa passagem,focalizando-se apenas o abandono do “protocolo mais estrito” quando não sefazem presentes um europeu ou um nativo de casta elevada. Sabino não apre-senta, nesse trecho, qualquer característica psicológica da senhora de Kulu, aopasso que Lobato descreve-a como “exigente” — atributo que não é descritono original, mas que poderia ser interpretado com base nos gestos da senhora.Tendo realizado uma condensação, Sabino pode ter considerado esse trechocomo “secundário”, já que, mais à frente, o próprio Kim descreve a senhora demodo semelhante ao narrador. Essa descrição é mantida pela adaptadora.

Como se pode notar, apesar de ter sido publicada como uma tradução,a versão de Kim (em princípio, integral) realizada por Lobato é muito maispolêmica em algumas de suas passagens do que a transformação estruturalpromovida na adaptação de Eliana Sabino. Ao ter seu trabalho publicado como“adaptação”, as mudanças estruturais empreendidas parecem adquirir uma certaaceitabilidade: o termo “adaptação” presente na capa do livro implicitamenteindicaria ao leitor, mesmo antes de lê-lo, que a obra em questão teria sidosubmetida a um processo de transformação. A presença do termo “adaptação”,já na capa, parece sugerir também “transparência” por parte da editora, já quenão estaria oferecendo ao leitor o que geralmente se espera de uma tradução.No entanto, o discurso da introdução não assinada à adaptação de Sabino nãoabandona a noção de fidelidade, reafirmando a posição crítica (da editora e daadaptadora) a outras traduções que teriam deturpado aspectos fundamentaisda narrativa de Kipling.

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Diante desta e de outras análises desenvolvidas, pode-se afirmar que asopções de Lobato revelam um gesto tão ousado quanto conservador em rela-ção ao texto-fonte. A leitura de Lobato sugere uma certa ousadia, na medidaem que opta por uma tradução que supera as próprias afirmações do narradore mesmo das personagens, intensificando, no caso, uma certa postura machista.Por outro lado, essa leitura é tão conservadora quanto ousada, já que “adapta”as supostas fronteiras do Oriente aos conceitos e aos limites do conhecimentoe da percepção do homem ocidental colonizador – em pleno acordo com aqueleKipling considerado, com freqüência, um defensor convicto da missãocivilizatória do homem branco colonizador, europeu e britânico. É importanteconsiderar, no entanto, que a ousadia que caracteriza certas passagens de suatradução foi autorizada por meio da publicação recente, atualizada e revisadapela editora Nacional. A figura do escritor Lobato, cujo nome é apresentadona capa da tradução, confere à mesma uma sustentação discursiva que, mesmoem face das passagens mais polêmicas da tradução, conduz o leitor à “certeza”de estar lendo uma obra traduzida pela pena de um escritor consagrado, cujasparticularidades estilísticas poderiam, quem sabe, ter direcionado os caminhosda tradução que ele ou ela pretende ler.

A tradutora Eliana Sabino, por sua vez, encaminha sua adaptação nosentido de apresentar um Kipling sem conflitos, como se estivesse oferecendoao leitor a Índia que Kipling realmente teria conhecido, sem contradições.Esse gesto afigura-se como uma intervenção incisiva na escrita de Kipling, aoomitir ou abrandar passagens que sugerem o preconceito colonialista. Mas aintervenção desse gesto é posta em “suspensão” pelo discurso da editora, namedida em que a noção de adaptação serve, nesse caso, a um propósito educa-cional (cf. MILTON, 2002: 113). Essa espécie de “suspensão” é a face conserva-dora do discurso que sustenta o texto de introdução à adaptação. Uma vezpublicada com o termo “adaptação” já na capa, cria-se, para o trabalho deSabino, um espaço discursivo que possibilita tanto a transformação do texto-fonte, em nome de certas propostas educacionais implícitas, como uma justi-ficativa que legitima suas opções, oferecendo ao leitor uma perspectiva que(supostamente) opõe-se às transformações efetuadas em outras traduções.

As versões de Alice no País das Maravilhas, de Lewis CarrollAs versões de Alice’s adventures in Wonderland trazem à tona a problemá-

tica dos limites entre traduzir e adaptar de modo muito mais intenso do quenas versões de Kim. A obra é tradicionalmente considerada “intraduzível”, de-vido aos trocadilhos e referências culturais e intertextuais do texto-fonte. A

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noção de adaptação, no contexto dessa obra, teria, pelo menos, dois significa-dos. Por um lado, uma vez que a obra é tida como “intraduzível”, adaptá-lasignificaria realizar uma condensação e/ou simplificação da mesma, “contor-nando”, como afirma Uchoa Leite (1980: 06), os problemas de linguagem etornando a história acessível a determinados públicos, como o infantil – nessecaso, o termo “adaptação” seria, com freqüência, tomado como sinônimo decondensação. Por outro lado, a adaptação seria o que justamente tornaria“traduzível” o texto original, “recriando”, para utilizar o termo comum nodiscurso dos tradutores e poetas Augusto e Haroldo de Campos, situações etrocadilhos que re-estabeleceriam efeitos de sentido numa relação de reciproci-dade com o texto-fonte. O público leitor é outro fator que torna ainda maiscomplexa a relação entre traduzir e adaptar e a obra de Carroll, sendo umelemento fundamental para compreender a forma como os tradutores ouadaptadores concebem a obra original.

Na tradução de Uchoa Leite (Editora Summus, 1980), por exemplo,argumenta-se que a obra em questão não se confunde com literatura infantil,sendo efetivamente um objeto de leitura para leitores “adultos”. Essa leitura deCarroll vai ter uma influência decisiva em sua tradução de 1980 (não analisadaaqui), já que até hoje ela permanece como uma referência nos meios acadêmi-cos. Por outro lado, na visão da tradutora Ana Maria Machado (Editora Ática,1997), Carroll é, ao contrário, o “fundador da literatura infantil de verdade”(Machado, 1997: 08), e sua tradução caminharia no sentido de recuperar essacondição. No entanto, sua tradução tem como alvo o leitor juvenil. Apesar defazer parte de uma série voltada para pré-adolescentes, entre 11 e 12 anos, aadaptação de Sevcenko (Editora Scipione, 1995)6 não promove a condensaçãoda obra original, recurso por meio do qual se efetivam omissões consideráveisem relação ao texto de partida — o que nos leva a considerar que a noção decondensação é apenas um traço, dentre outros possíveis, que poderia ser utili-zado para caracterizar as adaptações.

Neste trabalho focalizaremos especificamente a tradução da escritoraAna Maria Machado e a adaptação de Nicolau Sevcenko. A tradutora tem onome presente na capa do livro (tal como Lobato, em sua tradução de Kimpublicada em 2002, incluindo também as edições anteriores), ao lado daafirmação “texto integral”. No catálogo da editora, direcionado aos professo-res do ensino médio e fundamental, a única tradução da série “Eu leio” emque se destaca o nome do tradutor é justamente a que é realizada pela autora,renomada escritora de literatura infanto-juvenil. O catálogo apresenta a sé-rie afirmando que

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as traduções são de alta qualidade, com uma linguagem bastante cuidada eacessível ao jovem. Um ponto importante: o texto é sempre integral, aocontrário das condensações e adaptações que se encontram nas livrarias eque costumam descaracterizar a obra dos grandes escritores (Juvenis, 1997)

A editora, assim como a tradutora em seu posfácio, assume um discursoefetivamente crítico em relação às adaptações. No entanto, o termo “adaptação”não pressupõe um significado consensual, pois tanto a editora quanto a tradutoraparecem se referir ao termo em seu sentido de “condensação”, em que o objetivodo adaptador seria direcionado para a história ou tema geral da narrativa e não paraaspectos formais ou estilísticos da obra original. Apesar de assumir uma posiçãocrítica perante as adaptações como forma de condensação, a tradutora faz uso deestratégias que muito provavelmente seriam consideradas “adaptações” num senti-do diferente. Suas opções e a própria linha editorial promovem um direcionamentointerpretativo que explora os entremeios da relação entre tradução e adaptação. Asilustrações realizadas para a tradução de Machado são inspiradas nas xilogravurasusadas nos cordéis. Essas ilustrações se relacionam com a concepção global dotexto, na medida em que a tradução como um todo privilegia uma leitura que fazuso de canções e poemas conhecidos da cultura brasileira, além de outras passagensque envolvem certas expressões lingüísticas populares. A contracapa da tradução jáinsinua essas transformações: “nesta edição, as originais soluções encontradas pelatradutora Ana Maria Machado e as ilustrações de Jô de Oliveira, inspiradas naxilogravura usada nos cordéis, dão um sabor bem brasileiro a Alice no País dasMaravilhas” (Carroll, 1997: contracapa, grifos meus).

Considero as opções de Machado tão “ousadas” quanto as empreendi-das por Nicolau Sevcenko em sua “adaptação” (ou talvez mais “polêmicas”,embora num sentido diferente do que ocorre na tradução de Kim feita porLobato). Essa “ousadia” se deve à forma como a tradutora propõe a leitura dascanções e paródias da obra de Carroll, utilizando canções folclóricas e poemasbrasileiros que são “parodiados” pela personagem Alice, o que não é propostona “adaptação” de Sevcenko. No trecho a seguir, ao ser convidada a cantar umacanção para seus companheiros, a Tartaruga Falsa e o Grifo, Alice acaba tro-cando as palavras e cantando uma “nova” canção em virtude do seu esqueci-mento. Como se pode observar, Nicolau Sevcenko não propõe grandes modi-ficações em sua adaptação. Pelo contrário, poderíamos dizer que o adaptadorsegue “de perto” o original, possibilitando uma versão tão “próxima” quantopossível da estrutura da canção. Já Ana Maria Machado, em sua tradução,“transgride” não somente a “estrutura” do original, mas toda e qualquer refe-rência cultural que a canção-fonte poderia, eventualmente, evocar:

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Os recursos empregados por Ana Maria Machado — os quais não serestringem aos utilizados nesses exemplos — não fizeram com que a obra fossepublicada como uma adaptação, não somente porque a própria editora, nasérie em questão, assume um discurso “crítico” em relação às adaptações/condensações, mas também porque está em jogo, no discurso da tradutora e daeditora, um certo conceito de tradução articulado indiretamente à figura “auto-ral” da escritora/tradutora Ana Maria Machado — o que pode ser um elementode legitimação das opções realizadas (algo semelhante ao que ocorre com a tra-dução de Kim feita por Lobato). Vale lembrar que, no catálogo da editora Ática,Ana Maria Machado é a única tradutora cujo nome é mencionado ao lado dastraduções publicadas sob a série “Eu Leio”, o que sugere a importância do seuperfil como escritora aliado ao seu papel como tradutora de Carroll.

As versões observadas não se apresentam como uma unidade textual quepoderia ser rotulada a partir de critérios absolutos. Embora seja apresentadacomo tradução, a versão de Uchoa Leite não é menos direcionada ao públicoacadêmico quanto é a adaptação de Sevcenko ao público infanto-juvenil. Poroutro lado, a adaptação de Sevcenko mantém-se tão “próxima” quanto possí-vel dos poemas e das canções — se comparada à tradução de Machado. Isso,entretanto, não deve nos levar a crer que a tradução de Machado é apenasproduto de “manipulação” – seria uma saída muito redutora: a editora e atradutora fazem uso de um aparato argumentativo que se alia à celebridade da

Carroll (Carroll, 1987:73)

Adaptação de Sevcenko (Carroll, 1995:102)

Tradução de Ana Maria Machado (Carroll, 1997: 107)

‘’Tis the voice of the sluggard’ ’Tis the voice of the Lobster; I heard him declare,

“You have baked me too brown, I must sugar my hair.” As a duck with its eyelids, so he with his nose Trims his belt and his buttons, and turns out his toes. When the sands are all dry, he is gay as a lark, And will talk in contemptuous tones of the Shark: But, when the tide rises and sharks are around, His voice has a timid and tremulous sound.’

“Eis a opinião do preguiçoso” Eis a opinião da lagosta, aqui declarada: – “Ai! vocês me assaram demais, fiquei tostada! O pato exibe a sobrancelha, ela, o nariz; Ajeita o cinto e os botões, e sai tão feliz. N’areia seca, saltita qual cotovia, E o tubarão, com desprezo, ela calunia. Mas quando ele volta com a maré montante... Ah! Sua voz soa tímida e tremulante.

“Minha terra tem palmeiras” “Minha perna tem pauleiras Onda espanta o sal do mar. Azar vir aqui com cheia Não coceira acumular”

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escritora/tradutora no sentido de caracterizar sua tradução tão “fiel” à obra deCarroll, por meio de soluções “ousadas”. Soluções essas que certamente divi-dem opiniões quanto ao trabalho da tradutora, que tanto pode receber elogiospela sua inegável criatividade e seu engenho lingüístico, quanto ser alvo decríticas à “adaptação” cultural que sua tradução promove.

O tradutor e o adaptador: os lugares da visibilidadeA complexidade das relações entre tradução e adaptação, focalizadas a

partir das versões analisadas, guarda uma relação íntima com práticas discursivas,pois nem o adaptador nem o tradutor estão livres da rede institucional queabarca a confluência entre políticas editoriais, da recepção crítica do autor dotexto-fonte na cultura de chegada, do papel tradicionalmente reservado aostradutores e adaptadores, da autoridade de quem traduz ou adapta, e dos con-ceitos de tradução e de adaptação vigentes — ambos sujeitos a possíveis trans-formações no espaço de uma determinada aceitabilidade. Essa transformação ésinalizada pelo modo como se constrói o universo imaginário em torno dasinterpretações e estratégias empreendidas pelos tradutores e a sua legitimaçãoem relação às possibilidades de leitura (e de tradução/adaptação) que a obraoriginal tornaria possível. O trabalho de Ana Maria Machado, por exemplo, éclassificado como “tradução e adaptação” na edição comentada por MartinGardner de Alice’s adventures in Wonderland, traduzido por Maria Luiza Borgese publicado em 2002 pela editora Jorge Zahar – uma nova versão que vem“disputar” com a tradução de Uchoa Leite o lugar de obra de referência juntoà comunidade acadêmica. Do ponto de vista do discurso que informa a tradu-ção da edição comentada, apresentada como a “versão definitiva” de Alice’sadventures in Wonderland, não parece ser legítima a versão de Ana Maria Ma-chado como uma possibilidade de tradução. Foi preciso classificá-la como “tra-dução e adaptação”, o que certamente provoca efeitos diversos do que preten-deria Ana Maria Machado e sua editora, já que se posicionam de forma críticaem relação às adaptações. Por outro lado, a inserção de elementos referenciaisda cultura brasileira na tradução de Ana Maria Machado não representa, noespaço discursivo no qual se inscreve, uma transformação desmedida: as estra-tégias seriam supostamente legítimas, como tradução, até mesmo porque mui-tos poderiam considerá-las como meios eficazes de “reproduzir” efeitos de sen-tido característicos à intertextualidade da obra de Carroll.

As análises da tradução de Lobato e da adaptação de Sabino levam-nos arefletir sobre as limitações da lógica binária que tradicionalmente sustenta asrelações entre tradução e adaptação. Não há uma relação intrínseca entre uma

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posição conservadora e uma tradução que se aproxima do que se chamacomumente de “versão integral”, como no caso da tradução de Lobato;tampouco há uma relação necessária entre “ousadia” e a realização de transfor-mações “consideráveis” em relação ao texto-fonte, como no caso da adaptaçãode Sabino. Em ambas as reescrituras, os extremos da dicotomia entrecruzam-se, trazendo à tona a constituição discursiva de suas fronteiras.

A publicação dos trabalhos de Sevcenko e de Eliana Sabino como “adap-tação” parece tornar suas opções menos polêmicas, uma vez que, geralmente, otermo “adaptação” pressupõe a ocorrência de modificações para atender a umdeterminado público. No entanto, no caso de Sevcenko, há uma dimensão“tradutória” reconhecida em seu trabalho, referido apenas como “tradução”, porexemplo, em Borba (1997) e na apresentação dos dados biográficos de Sevcenkoem um artigo seu publicado no livro Pós-modernidade, organizado por Oliveira(1995: 44)8 . O termo “adaptação”, nesse contexto, legitima as opções do profis-sional tornando possível uma maior vinculação entre a suposta figura autoral doadaptador à escrita da adaptação, criando um espaço desejável para a apresenta-ção dos dados biográficos do adaptador. Há, assim, uma face “tradutória” dotrabalho de Sevcenko que, ao que parece, deve permanecer parcialmente silenci-ada para que a “voz do contador” possa insurgir na sua visibilidade.

Tanto Ana Maria Machado quanto Monteiro Lobato, seja em virtudedo valor discursivo que seus nomes evocam, seja em razão da leitura particularque imprimem em seus textos, produziram uma escrita que se mostra tão po-lêmica e ousada quanto as adaptações aqui discutidas. Todas as versões analisa-das neste trabalho, porém, trazem à tona a problemática da visibilidade dotradutor e do adaptador. Os adaptadores (Nicolau Sevcenko e Eliana Sabino)e tradutores (Monteiro Lobato e Ana Maria Machado) se fazem visíveis nosentido de que seus trabalhos materializam determinadas leituras, marcadaspela trama de valores, normas e relações de sentido que ora se aproximam, orase diferenciam quanto aos pressupostos que subjazem às práticas dos traduto-res e dos adaptadores estudados.

Essa visibilidade, porém, como se pôde observar, não se efetiva da mes-ma forma: há particularidades que conferem valores distintos a cada uma dasversões estudadas, e os lugares que ocupam na trama das relações sociais ediscursivas da leitura não podem ser reduzidos segundo uma regra econômicae universal. Em razão disso, é necessário afirmar que o estudo das relaçõesentre tradução e adaptação com base nas versões aqui analisadas não deve ser“aplicado” a qualquer tradução ou adaptação literária. Em última análise, cadatradução e adaptação literárias apresentam características próprias e suscitamrelações que, apenas superficialmente, poderiam ser, talvez, generalizadas.

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Estudar os meandros que recortam o contato entre a tradução e a adap-tação, revelando as superfícies irregulares desse contato, é, talvez, uma possibi-lidade de se refletir sobre os lugares que o tradutor e o adaptador podem ocu-par, sem recorrer ao relativismo conceitual que defenderia a indiferença desseslugares e, tampouco, ao positivismo teórico que reivindicaria a rigidez (ilusó-ria) de limites conceituais universais.

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1 Este artigo é uma versão parcialmente modificada do trabalho apresentado no III Congresso Ibero-Americano de Tradução e Interpretação na cidade de São Paulo, em maio de 2004, na mesa-redonda“Os limites da tradução”, da qual também participaram Cristina Rodrigues, Maria Paula Frota eCarolina A. de Carvalho.2 A tradução desta citação foi realizada por mim.3 No trecho de uma resenha publicada no jornal Estado de São Paulo, “Um clássico para jovensleitores” (21/9/2002), testemunha-se o longo período que consumiu a “tradução e adaptação” deDon Quixote de Cervantes pelo renomado poeta Ferreira Gullar: “A animação tomou conta de Gullar,que durante seis meses se debruçou sobre o texto original de Miguel de Cervantes para fazer a suaadaptação: ‘O livro guarda as características de uma época distante, com um vocabulário próprio,cheio de descrições, com muitas notas, que o tornam complicado para o jovem leitor’.”4 Faço uso do termo “versão” como um conceito genérico que engloba tanto livros publicados comotraduções quanto aqueles publicados como adaptações.5 Nossa interpretação é amparada no conceito de edição empregado pela Associação Brasileira deNormas Técnicas (NBR 6023 – Ago/2002). Segundo a ABNT, “edição” corresponde a “todos osexemplares produzidos a partir de um original ou matriz. Pertencem à mesma edição de uma obratodas as suas impressões, reimpressões, tiragens, etc., produzidas diretamente ou por outros méto-dos, sem modificações, independentemente do período decorrido desde a primeira publicação” (p.2,grifo nosso). Como a tradução de Kim publicada em 2002 apresenta modificações em relação àsdemais traduções analisadas (uma sem data e outra de 1956), seria justificável, de acordo com aABNT, sua classificação como uma nova edição (4a edição, no caso). No entanto, em entrevista pore-mail ([email protected]), Tânia Andrade, Assistente de Curadoria da CompanhiaEditora Nacional, informou-me que as revisões e atualizações presentes na publicação de 2002 aten-dem especialmente a um projeto do Fundo do Desenvolvimento da Educação. Segundo Andrade, olivro não é uma “reedição”, porque ainda corresponderia à (3a edição) de 1945, apenas revisada eatualizada com a data de 2002. Pode-se concluir que a editora não considera tais revisões e atualiza-ções como modificações que justificariam a classificação do livro como uma quarta edição, o queparece contrariar o conceito de edição empregado pela ABNT. Com o objetivo de simplificar aeventual consulta bibliográfica pelo leitor deste artigo, considerarei apenas, nas referências biblio-gráficas, as informações editorais contidas nos livros efetivamente publicados, independentementedas normas da ABNT.6 Apesar de ter impresso na capa o termo “adaptação”, o trabalho de Sevcenko apresenta, na folha derosto, a expressão “tradução e adaptação”, o que vem sugerir a complexa distribuição das fronteirasque delimitariam os dois conceitos em seu trabalho.7 Eis o poema original “Canção do Exílio”, do poeta brasileiro Gonçalves Dias, no qual se baseia a“adaptação”/“tradução” de Ana Maria Machado: “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá./As aves, que aqui gorjeiam/Não gorjeiam como lá.” (Gonçalves Dias, Obras Poéticas, I, p.21).8 Esses exemplos sugerem a existência de discursos, concepções de tradução e de adaptação, deleitura e mesmo de escrita que “extrapolam” o espaço de uma capa ou mesmo de um livro.

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A (NÃO) RELAÇÃO ENTRE TRADUTORES ECOPIDESQUES NO PROCESSO DE EDIÇÃO DE

OBRA ESTRANGEIRA1

Flávia Carneiro Anderson

I. IntroduçãoO revisor tem de ser neutro pela natureza de seu trabalho. Se ele nãoconseguir manter neutralidade desde o início, não pode ser revisor. Eu,como tradutora, cobro respeito pela minha escolha de tradução.(Regina Motta, tradutora)

A complexa relação autor-tradutor vem sendo exaustivamente discutida pelosteóricos da tradução. Questionam-se, por um lado, as noções de autoria e de origi-nalidade e, por outro, as de fidelidade e neutralidade tradutórias; discutem-se asquestões da (in)visibilidade do tradutor e dos direitos autorais, além de inúmerosoutros aspectos. Como resultado, pode-se dizer que, no que tange às questões maisbásicas, a relação autor-tradutor é algo resolvido entre os estudiosos que acreditamque a tradução envolve transformação. Sob essa ótica, o autor não é visto comodono absoluto do texto e o tradutor, por sua vez, não é tido como um mero copista,já que a tradução é concebida como uma reescrita. Entretanto, outras relaçõesfundamentais no processo de edição do livro vêm sendo praticamente ignoradaspelos teóricos. Essas relações envolvem não só autores e tradutores, como tambémeditores, copidesques, revisores técnicos, revisores e preparadores, todos com possi-bilidade de exercer grande influência no trabalho do tradutor.

Como se sabe, o processo de edição de uma obra estrangeira traduzidatem início quando os editores escolhem os livros a serem publicados através docontato com agências e feiras literárias; em certas ocasiões, muito raras, acei-tam a sugestão de leitores, autores sem agentes ou tradutores, desde que elasiga a linha adotada pela editora. Uma vez adquiridos os direitos autorais daobra, o editor ou o coordenador responsável por ela escolherá o tradutor combase em uma série de fatores: sua familiaridade com o assunto, qualificação,experiência, disponibilidade, remuneração etc. Nessa fase inicial de produçãoo editor pode exigir que o tradutor adapte a obra a um determinado propósitode sua publicação na cultura-alvo. Na etapa seguinte, o copidesque, profissio-

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nal que costuma ter bastante autonomia para alterar e adequar o que julgarnecessário, faz um cotejo do texto traduzido com o texto na língua-fonte. Apósesse trabalho, são feitas em geral mais duas revisões, as quais se concentram emerros de ortografia, sinais de pontuação e conferência de diagramação — nes-ses casos, sem o cotejo com o texto-fonte. Os revisores costumam ter menosautonomia do que os copidesques para intervir no texto (ver Linz, 2004: 15-6). Dependendo da obra, pode ser realizada também uma revisão técnica. Oprocesso editorial envolve, portanto, toda uma seqüência de trabalhos no textoem que cada um vai retrabalhando o texto anterior.

Mas ainda falta ao tradutor a consciência de que sua tradução só é sua até odia em que a entregou à editora. A edição de qualquer obra é um trabalhode equipe que se inicia antes da compra dos direitos de tradução e se pro-longa por vários meses. O texto final representa o trabalho dos vários pro-fissionais, dos mais diversos níveis de cultura e entendimento, que irão co-tejar, compor e revisar a tradução sem que o seu autor volte a ser consulta-do. Para o tradutor profissional de ficção tal padrão só muda quando setrata de uma obra de ficção de grande projeção internacional, como umHarry Potter, por exemplo. (Wyler, 2003:196)

Como veremos no decorrer deste trabalho, os tradutores aos quais édado o direito de examinar as revisões feitas em seu texto são verdadeiras exce-ções. Sejam consideradas positivas ou negativas, as interferências ocorridas noprocesso de edição do livro estrangeiro — sem o aval não só dos tradutores,como dos demais atores envolvidos — são práticas comuns no mundo editori-al brasileiro, e como tal precisam ser levadas em conta. No que diz respeito aotradutor, elas nem sempre são consideradas adequadas: “[Em] quase todas asrevisões que meus trabalhos sofreram, houve a correção de uns três erros, einclusão de mais doze, alguns realmente absurdos, que eu nunca teria feito”(Borten, tradutor).2 Da forma como o processo de edição de obra estrangeiratraduzida é conduzido no Brasil, pode-se afirmar que a maior parte dos tradu-tores não sabe o quanto foi modificado o seu texto até vê-lo publicado.

O presente trabalho, a ser aprofundado no futuro, visa justamente acolocar em primeiro plano uma das relações do processo editorial: a que ocorreentre tradutor e copidesque. Nossa proposta, pelo menos a princípio, é examiná-la a partir das mesmas bases adotadas pelos teóricos da tradução para avaliar arelação autor-tradutor. Escolhemos a figura do copidesque porque, além doeditor, é o profissional envolvido no processo editorial que mais parece terchances de interferir nas escolhas do tradutor, pois julgará a tradução através

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de seu confronto com o texto-fonte: “Havia uma tradução que parecia lá aos edito-res perfeita, eu fui checar palavra por palavra com o original, cortei muita coisa, fizuma revisão, um copy desk violento nessas traduções” (Barroso, 1995: 36).

Dada a escassez de trabalhos sobre essa relação e a variação terminológicadas profissões envolvidas no processo editorial, para os fins deste estudo vamosadotar as seguintes definições:

a. Copidesque – Aquele que se encarrega de fazer o cotejo da tradução com ooriginal a fim de verificar eventuais erros de interpretação, redação, saltos etc.Ele busca também manter a consistência e o estilo, além de adequar o texto aglossários e linhas editoriais. (Cabe acrescentar que o termo copidesque tam-bém pode designar o processo de revisão realizado por esse profissional, masnesse caso optamos por utilizar a forma menos comum copidescagem.)b. Revisor – Aquele que faz a avaliação somente da tradução, sem cotejo, so-bretudo para verificar se o tradutor conseguiu adequá-la satisfatoriamente àlíngua-meta e para corrigir eventuais deslizes gramaticais.c. Revisor técnico – Aquele que, na condição de especialista em áreas específi-cas do saber, avalia a pertinência e adequação dos termos e conceitos técnicos.d. Preparador – Aquele que lida apenas com os elementos gráficos do texto. Emalgumas editoras, no entanto, esse termo é utilizado como sinônimo de copidesque.

Essa confusão de nomenclatura fica muito clara nos depoimentos detradutores e copidesques usados como base para o presente trabalho. Por essemotivo, à exceção das epígrafes, optamos por uniformizá-los adotando apenasos termos “copidesque” e “copidescagem”, que aparecerão entre colchetes nascitações.

II. MetodologiaUma vez escolhidos os profissionais que iríamos entrevistar, elaboramos

dois questionários, um a ser enviado a tradutores e o outro, a copidesques,com o objetivo de averiguar o que cada um deles pensa não só a respeito doprocesso no qual eles próprios estão inseridos, como também da atividade dooutro. Os questionários enviados são os seguintes:

Tradutores:1. Há quanto tempo você exerce a profissão de tradutor?2. Em sua opinião, qual seria o papel ideal do copidesque/revisor? O que defato ocorre está muito distante desse ideal?

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3. Você acredita que o tradutor cobra do copidesque/revisor uma neutralidade im-possível? A seu ver há uma luta pelo poder entre o tradutor e o copidesque/revisor?4. Uma vez terminada a copidescagem/revisão de um trabalho seu, a editoralhe permite opinar a respeito da mesma? Quem escolhe a versão final, você ouo copidesque/revisor? Há quanto tempo isso ocorre?5. Em sua opinião, a quem caberia a palavra final no tocante a textos traduzi-dos, ao tradutor ou ao copidesque/revisor?6. Já teve algum desentendimento com editores no que tange à copidescagem/revisão de suas traduções? Em caso afirmativo, o que aconteceu?7. Por favor, assinale a situação com a qual se identifica:( ) Nunca tive problemas com revisores( ) Já tive problemas com revisores, mas atualmente não tenho mais( ) Tive problemas com revisores em todas as traduções que realizei até o mo-mento( ) Tive problemas com revisores em 75% das traduções que realizei até o momento( ) Tive problemas com revisores em 50% das traduções que realizei até o momento( ) Tive problemas com revisores em 25% das traduções que realizei até o momento( ) Tive problemas com revisores em 5% das traduções que realizei até o mo-mento

Copidesques:1. Há quanto tempo você exerce a profissão de copidesque/revisor?2. Em sua opinião, qual seria o papel ideal do copidesque/revisor? O que defato ocorre está muito distante desse ideal?3. Você acredita que o tradutor cobra do copidesque/revisor uma neutralidadeimpossível? A seu ver há uma luta pelo poder entre o copidesque/revisor e otradutor?4. O seu trabalho de copidescagem/revisão é o último passo antes da publica-ção do livro? Caso não seja, costuma ter a oportunidade de opinar a respeito depossíveis modificações feitas em sua revisão? Considera que essas modificaçõespodem ser realizadas sem o seu consentimento?5. Na editora para a qual você trabalha o texto traduzido costuma ser reenviadoao tradutor após passar pela copidescagem/revisão/revisão técnica?6. O tradutor tem o direito de opinar a respeito da copidescagem/revisão? Aquem você acha que deve caber a palavra final no tocante a textos traduzidos,ao tradutor ou ao copidesque/revisor?7. Já teve algum desentendimento com editores em função de um trabalho decopidescagem/revisão? Em caso afirmativo, o que aconteceu?

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8. Por favor, assinale a situação com a qual se identifica. Se já teve problemascom tradutores, poderia dar exemplos?( ) Nunca tive problemas com tradutores( ) Já tive problemas com tradutores, mas atualmente não tenho mais( ) Tive problemas com tradutores em todas as copidescagens que realizei até omomento( ) Tive problemas com tradutores em 75% das copidescagens que realizei atéo momento( ) Tive problemas com tradutores em 50% das copidescagens que realizei atéo momento( ) Tive problemas com tradutores em 25% das copidescagens que realizei atéo momento( ) Tive problemas com tradutores em 5% das copidescagens que realizei até omomento

Essas perguntas foram enviadas por e-mail a 19 tradutores, dos quais 16responderam, e a 17 copidesques, dos quais 13 responderam. Foram elabora-das tabelas nas quais agrupamos as diferentes respostas a cada pergunta. Aofinal deste trabalho [ver Anexo] encontra-se a relação de todos os participantesda pesquisa. Julgamos importante ressaltar que 80% dos tradutores entrevista-dos trabalham há mais de dez anos nessa profissão, sendo que 43% traduzemhá mais de vinte anos. Sessenta por cento dos copidesques entrevistados exer-cem essa atividade há mais de dez anos, sendo que 23% fazem copidescagemhá mais de vinte anos. Fica claro que tanto os tradutores como os copidesquesentrevistados têm ampla experiência no mercado.

Julgamos ainda ser importante situar o universo desses entrevistados emmeio aos demais universos com os quais lidaremos aqui. Em primeiro lugar,temos o universo dos estudiosos da tradução, e aqui nos referimos em especialaos que se identificam com o pensamento pós-moderno e que não vêem atradução como uma simples reprodução de um texto estrangeiro na língua-meta. Em segundo lugar, temos o universo do senso comum — aí incluídos opúblico em geral e a maior parte dos editores e tradutores sem formação teórica—, que crê na possibilidade da tradução como um texto absolutamente fiel aooriginal. Por fim, temos o universo dos tradutores literários que entrevistamos.Muito embora nem todos se situem no universo dos estudiosos da tradução,pode-se dizer que a maioria deles tem algum contato com o pensamento pós-moderno, o que os distancia das visões mais simplórias do senso comum.

Cabe também esclarecer que ao afirmarmos que vamos nos concentrarna relação tradutor-copidesque não entendemos que a palavra relação implica

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um encontro físico entre esses dois profissionais, tal como pareceu a alguns dosentrevistados. Temos consciência de que as editoras que promovem encontrosentre tradutores e copidesques são exceções; entretanto, isso não significa que ovínculo imposto pelo processo de edição do livro não exista. Ao contrário do quetipicamente ocorre na relação tradutor-autor, tradutores e copidesques podemacompanhar as modificações feitas no texto traduzido, já que conhecem o seuidioma. Muito embora se possam citar autores que acompanham(ram) as tradu-ções de suas obras — como é o caso do escritor alemão Günter Grass, para quemo encontro regular com tradutores é não só uma garantia de qualidade paraveiculação de suas obras, como também uma forma de relê-las de forma intensa(ver Mello, 2004), e do poliglota Guimarães Rosa, que se correspondeu comvários tradutores, em especial com Edoardo Bizzarri, que verteu para o italianoCorpo de baile — a grande maioria não chega a esse ponto, em função da própriabarreira criada pelos idiomas estrangeiros. Como essa barreira não ocorre entretradutores e copidesques, não é raro encontrar publicados depoimentos de tra-dutores revoltados com alterações que consideraram indevidas. Parece-nos entãopertinente questionar se o tradutor, apesar de inevitavelmente operar uma inter-venção no texto que traduz, não exige do copidesque, contraditoriamente, umaneutralidade impossível. É o que procuraremos avaliar neste trabalho.

III. Fundamentação teóricaIII.1. A (in)existência da verdade absoluta

Se, como queria Protágoras, as coisas não têm “medida” ou essênciaprópria, se são aquilo que nos parecem ser, variando de acordo com ascircunstâncias, então o que será isso a que chamamos a verdade? Sobesse ponto de vista, a verdade só pode resultar “de nossas opiniões sobreas coisas e do consenso que se forma em torno disso”, sendo, portanto,“múltipla, relativa e mutável”.(Helena Martins, “Três caminhos na filosofia da linguagem”)

De acordo com Martins (2004), muitas das formas através das quaispensamos a linguagem correspondem à herança que nos foi deixada pelos gre-gos. O pensar filosófico nasceu como alternativa ao discurso mítico para aexplicação das coisas. Desde muito cedo houve, nessa nova busca pela “verda-de”, uma polarização entre os sofistas, por um lado, e os filósofos ditos socráticos,Sócrates, Platão e Aristóteles, por outro. Como os sofistas consideram que ascoisas não possuem essência própria, a verdade é encarada como algo relativo;por outro lado, como os socráticos acreditam que as coisas têm uma essênciapermanente, então há nelas uma verdade única.

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Segundo Platão, a variação e a mutabilidade das coisas, tão enfatizadaspelos sofistas, seriam características do mundo das aparências; sob a superfíciemutável e inconstante do real haveria um real de coisas invisíveis, perfeitas eeternas. E a linguagem, para escapar à variabilidade do real assim como é per-cebido pelos sentidos, só pode representar as formas essenciais (ver Martins,op. cit.). Portanto, de acordo com essa perspectiva universalista, as traduçõespodem ser absolutamente fiéis aos originais porque as línguas têm, apesar desua aparente variabilidade, a mesma estrutura conceitual, um recorte semânti-co universal. Assim sendo, cabe ao tradutor buscar na língua-meta os corres-pondentes exatos para as palavras da língua-fonte. Se a sua tradução não éconsiderada boa, ou fiel, é porque ele não soube encontrar esses equivalentesperfeitos. O teórico Georges Mounin critica essa postura, ressaltando que, deacordo com ela,

as dificuldades da tradução dependiam de fatos acidentais: ou o tradutordeixava de captar toda a substância do conteúdo de uma expressão da lín-gua-fonte, transmitindo-a, conseqüentemente, de maneira incompleta; ouo tradutor conhecia de maneira insuficiente os recursos das formas do con-teúdo e das formas de expressão na língua-alvo e as utilizava inexatamente.Em ambos os casos, a falha da tradução constituía uma falha do tradutor.(Mounin, [1963]1975: 49)

Os relativistas, a exemplo dos sofistas, rompem com essa visão, afirman-do que os povos recortam e organizam a realidade de formas diferentes e que aslínguas são, na verdade, sistemas de organização do mundo. Os significados jánão são vistos como “coisas”, reais ou mentais, pois correspondem somente aosusos culturalmente determinados que se fazem das palavras. A linguagem éentendida, sob esse ponto de vista, como uma práxis circunstanciada pela cul-tura, pela história e pelas idiossincrasias de cada ocasião (ver Martins, op. cit.,p. 470). Como conseqüência desse modo de ver as línguas e os significados, atradução passa a ser considerada impossível, uma vez que nas diferentes lín-guas o recorte da realidade não é igual: “Não podemos traduzir porque nuncafalamos exatamente da mesma coisa, mesmo quando falamos de um mesmoobjeto, em duas línguas diferentes” (Mounin, op. cit., p. 58). O tradutor, porsua vez, passa a ser visto como um traidor porque nunca conseguirá reproduzirexatamente o que o autor disse; daí o famoso adágio italiano: traduttore traditore.“Esta tese [o relativismo lingüístico] implica literalmente [...] a negação dequalquer possibilidade de tradução” (ibid, p. 55). Veja-se que por trás dessacrença na intraduzibilidade decorrente da tese relativista subjaz aquele mesmo

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ideal de tradução como reprodução absolutamente fiel do original (ver Frota,2000: 29-30).

Os estudiosos da tradução identificados com o pós-estruturalismo pro-põem então uma ruptura tanto com a concepção dos textos como receptáculosde conteúdos invariáveis em todas as línguas — caso da postura universalista— quanto com a de conteúdos que, embora variáveis entre as línguas, seriamhomogêneos no interior de cada uma delas — caso da postura relativista. Sobessa nova perspectiva o tradutor faz uma leitura, interpreta o texto e produzsignificados, sempre sob a influência de seu contexto social e de traços subjeti-vos. A fidelidade do tradutor não está mais relacionada ao texto “original”, ao“Autor”, mas à sua interpretação do mesmo, que por sua vez dependerá daqui-lo que ele é, sente e pensa (ver Arrojo, [1986]2002: 44). Rompe-se, dessaforma, com as idéias da tradução seja como cópia ou como traição, pois, se nãocabe ao tradutor reproduzir o texto de partida — o que de fato não é possível—, tampouco se deve, a partir disso, considerar inviabilizada a tarefa tradutória.Trata-se de reconcebê-la como necessariamente uma transformação.

Como se pode situar a relação tradutor-copidesque à luz dessas teorias?Na já tão complexa relação autor-tradutor, o que ocorre quando entra em cenaesse terceiro indivíduo? Ora, se as diferentes posturas que inspiram os tradutoresirão influir nos modos como realizam suas práticas, estejam eles conscientes ounão dessa influência, o mesmo acontece com os copidesques. Obviamente, umcopidesque que se alinha com a visão universalista de que a “tradução deve apre-sentar uma transcrição completa das idéias do trabalho original” (Tytler apudFrota, 2000: 28) será muito menos condescendente com as escolhas do tradutore enxergará muito mais erros, ou infidelidades. Já que não crê na relatividadeinterpretativa, qualquer opção diferente da sua será tida como incorreta.

Para um copidesque que se afina com a postura relativista, diferente-mente do que ocorre com aquele de tendência universalista, a cada línguacorresponde uma visão de mundo específica. No entanto, o problema nessecaso se repete, porque para esse copidesque as línguas e culturas são enxergadascada qual como um bloco homogêneo, ainda que com recortes de mundodiferentes entre si. Como no interior de cada língua um determinado significantevem atrelado a um determinado significado, esse copidesque considerará quepara cada palavra haverá sempre a mesma interpretação. É nesse sentido que ocopidesque relativista, tal como o universalista, verá como equivocada umainterpretação diferente da sua (sobre essa reflexão ver Frota, 2000: 35-36).

Já um copidesque que se identifica com uma visão pós-estruturalista,por sua vez, na medida em que problematiza a leitura do original, consciente

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de que ao traduzir o tradutor transforma ou reconstrói o texto-fonte e de queas interpretações podem variar de um leitor para outro, tomará suas própriasinterpretações como apenas alternativas possíveis às interpretações do tradutore não verá motivo para alterar essas últimas. Ele só recorrerá a isso quandojulgar que determinada interpretação do tradutor é de fato errada, ou seja, estáfora de uma eventual gama de leituras diferentes, porém aceitáveis e justificá-veis. No entanto, dadas as escolhas subjetivas características da tradução, ficadifícil, mesmo nesse caso, haver um consenso em relação às alternativas maisadequadas:

É praticamente impossível para o tradutor despir-se de toda a sua experiên-cia passada e conhecimento acumulado ao fazer uma tradução. Como conse-qüência, ao executarmos um trabalho de tradução, aplicamos a esse trabalhoo nosso próprio eu, a nossa ideologia, as nossas crenças e convicções. Assim, oque pode ser certo na minha visão pode ser totalmente incongruente na opi-nião de um outro colega. (França, 2003: 108)

Assim sendo, como julgar os momentos em que a intervenção docopidesque no texto traduzido é excessiva? A quem cabe esse julgamento? Issonos remete a outros aspectos relevantes na relação tradutor-copidesque, quedizem respeito não só à forma como concebem o processo de tradução e revi-são, como também a sua visão de “erro” e “acerto”. É o que veremos a seguir.

III.2. As teorias sobre leitura

Na segunda tradução revisada pelo único editor/copidesque com quemtive contato[...] constatei que ele trocara os nomes de lugares geográfi-cos [...] e as datas históricas [...], e escolhido termos que escapavamtotalmente ao sentido do que estava escrito no original e à minha tradu-ção, que estava correta.(Renée Levié, tradutora)

Tradutores e copidesques são, antes de mais nada, leitores, e como talassumirão diferentes posturas, conscientes ou não, diante de seus textos. Ummodelo bastante predominante entre os anos 1930 e 1960, mas ainda muitopopular hoje em dia — se não entre os teóricos, no senso comum — é o queencara a leitura como uma decodificação, um resgate das intenções e dos signi-ficados do autor. Sob essa ótica, o papel do leitor é tido como passivo, poiscaberia a ele apenas extrair os significados que já estão dados no texto. É com

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base nesse modelo que se tecem comentários do tipo: “Aprecie-se ainda estatraição deslavada ao pensamento do autor” ou “Trata-se de uma tradução ab-solutamente infiel” (Moura, [1944]2003: 194, 208). Ou seja, de acordo comessa visão de original e autoria,

a interferência do tradutor, por mais bem intencionada e apropriada queseja, será sempre o ato de um intruso mal visto, condenado à missão impos-sível de repetir os significados de outro sem tocá-los e sem marcá-los comseu próprio desejo autoral. Assim, defende-se a produção dos “originais”como atividade essencialmente criativa e, uma vez criado, qualquer textodeverá ser (e significar) apenas aquilo que seu Autor, seu amo e senhor,desejar. (Arrojo, 2003: 3)

Já em torno dos anos 1960/70 predominaram os modelospsicolingüísticos, que passaram a considerar a leitura como uma atividade pu-ramente cognitiva. O papel do leitor recebe destaque, uma vez que esses mo-delos consideram que é na mente do leitor que são construídos os significados.No entanto, apesar de esses modelos ressaltarem as estratégias de leitura doleitor, pouca importância dão ao contexto no qual ele se insere. Isso só veio aacontecer no final dos anos 1970, com o surgimento dos modelos interativosque começaram a ver a leitura como uma atividade ao mesmo tempo cognitivae social. Um dos maiores expoentes dessa linha teórica é Stanley Fish, paraquem as interpretações do leitor dependem das estratégias e convenções deleitura da comunidade interpretativa à qual pertence. Dessa forma, “os signifi-cados não são propriedades nem de textos fixos e estáveis nem de leitores livrese independentes, mas de comunidades interpretativas” (Fish, 1993: 156). Nes-se mesmo período, Roland Barthes declara a morte do Autor, que deixa de serconsiderado fonte criativa única de sua obra, uma vez que sofre influência doseu contexto e dos inúmeros textos que leu.

Considerando-se que o autor nutre-se de outros autores no processo decriação, estamos diante da inexistência do autor enquanto criador de algooriginal e da impossibilidade da originalidade. A tradução é colocada, ameu ver, em posição semelhante à da autoria já que o autor, ao produziruma obra, descreverá sua tradução de outras tantas obras que já leu. (Antunes,2004: 105)

Mas isso traz a lume paradoxos: se o autor está morto enquanto criador,por que o tradutor reivindicaria o prestígio da autoria? Segundo Frota, Barthes

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propôs uma redefinição de autoria que ajudou a desmistificar a excessivasacralização dessa escrita; mas exterminar a autoria por inteiro e reivindicar parao tradutor, contraditoriamente, os atributos de um autor é um contra-senso.

Proponho questionarmos se não estará havendo, na esfera das teorias detradução desenvolvidas a partir dos anos oitenta, um esgarçamento dos li-mites conceituais da tradução, a qual passou a ser identificada por muitoscomo uma reescrita manipuladora. Com esse relaxamento dos seus limites, atradução parece estar sendo conceitualmente assimilada a outras formas deescrita, como a adaptação ou a própria escrita autoral, e assim perdendo assuas especificidades, incorporando formas de produção textual que fogemao seu campo próprio. (Frota, 2004c: 1)

Não restam dúvidas de que essas novas formas de encarar o ato de leitu-ra contribuíram para destacar o papel ativo do tradutor. De acordo com Fish,para que uma interpretação seja considerada adequada, ela precisa ser aceitapela comunidade interpretativa em que é formulada: se uma tradução é aceitapor leitores de determinada comunidade, isso significa que ela está correta.Desconstroem-se as idéias de que o desejo e os significados do autor precisamser protegidos a qualquer custo, e de que o tradutor deve ter uma escrita neutra.“É inevitável a interferência de elementos tais como crenças e valores no processode compreensão, já que as convenções discursivas utilizadas refletem esses valorese crenças, isto é, são determinadas socialmente” (De Paula, Ilg, 2004: 47).

Isso nos levaria a concluir que, da mesma forma, o papel do copidesquetampouco pode ser passivo, uma vez que sua leitura sofrerá influência não sódo contexto no qual ele se insere, como também de toda uma dimensão desubjetividade que vai além das intervenções de natureza estritamente sócio-culturais (ver Frota, 2000: 18). Na próxima seção, falaremos brevemente sobreessa dimensão. Não há como evitar, portanto, que o copidesque eventualmen-te faça uma leitura diferente da do tradutor e que realize alterações no textovertido com base nessa interpretação divergente. A rigor isso inviabiliza a exi-gência por parte de tradutores de copidescagens neutras: “O [copidesque] de-monstrou e documentou a própria insensibilidade literária e bazófia nas inter-venções, deturpando o pensamento do autor” (Barni, tradutora).

Se há hoje entre os tradutores um movimento crescente que rejeita aidéia da sua auto-anulação, como podem eles exigir que os copidesques seanulem? É óbvio que o copidesque, influenciado por seus próprios valores,contexto, leituras etc. interpretará o texto e fará as alterações que julgar neces-sárias. Muitas vezes procurará também, tal como o tradutor, adequá-lo à linha

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da editora. Quando se trata de erros incontestáveis, conseqüência de saltos,ortografia incorreta etc., não há o que discutir. Ocorre que em tradução, dadasas infinitas opções por uma forma em detrimento de outra, muitas vezes nãohá um critério objetivo que realmente garanta que uma é certa e a outra éerrada (ver Britto, 2003: 97).

III.3. O “certo” e o “errado” na tradução

Quem poderia supor que Deus se traduz por Diabo? Pois a praga francesanom de Dieu [...] verte-se otimamente para o nosso idioma, menoseufemístico, por “com os diabos”. (Paulo Rónai, Escola de Tradutores)

Não resta dúvida de que a revisão de textos traduzidos por uma terceirapessoa é imprescindível. Esse processo é essencial para a eliminação de altera-ções, omissões e acréscimos indevidamente cometidos pelos tradutores. Váriostradutores que participaram de nossa pesquisa mostraram-se inclusive gratospor correções que os salvaram de situações desagradáveis. Os erros de traduçãonão são incomuns e, segundo Freud, podem ser inclusive motivados por inter-venção de desejos inconscientes. Esse tipo de erro, denominado “lapso de lín-gua”, não é causado por desatenção, mas pela imposição de um pensamentoou desejo inconsciente (ver Frota, 2004b: 6). O seguinte exemplo, dado porFreud, deixa claro o que ocorre quando se dá esse lapso: ao passar uma receita,um médico escreveu Ethyl (“álcool etílico”) em lugar de Ethel, nome da paci-ente em questão, a qual “costumava beber mais do que lhe convinha” (ApudFrota, 2004b: 8). Seja qual for o motivo da ocorrência de erros no texto tradu-zido, fica a critério do copidesque analisá-los e corrigi-los. Parece-nos que asretificações de copidesques questionadas por tradutores são justamente aque-las que não envolvem o que propriamente se deve considerar um erro.

O teórico Anthony Pym faz a distinção entre o erro binário, que ele cha-ma de mistake, e o erro não-binário, que ele denomina de error. O erro binárioenvolve uma escolha clara entre uma possibilidade correta e outra errada; não háespaço para nuanças ou gradações. O erro não-binário é justamente o oposto:não há uma separação clara entre o certo e o errado. O exemplo de Pym é claro:traduzir five million por “cinco mil” é erro binário; já the bush pode ser traduzidocomo “o monte” e inúmeras alternativas também (Pym apud Frota, 2004b: 2).Frota chama a atenção para o fato de que Pym, ao entender todas as nuanças forado pólo binário como errors, acaba desconsiderando as variações subjetivas nos

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julgamentos relativos a tal escolha. Ela propõe que, além das noções dicotômicasde certo e errado, atribuíveis àquelas escolhas que na avaliação de um grupo nãodão margem a questionamento ou discussão, se passe a trabalhar também comuma terceira noção, intermediária e não-binária, onde se situariam as diferentespreferências subjetivas.

No processo tradutório, o tradutor está constantemente escolhendo pala-vras, frases e efeitos em detrimento de outros. É em função dessas preferênciassubjetivas que nunca se pode afirmar, excetuando situações onde ocorram er-ros tidos consensualmente em determinada comunidade como binários, quedeterminada escolha é a única correta. O processo de copidescagem é ummomento delicado justamente porque pode ser realizado com base apenas emuma lógica dicotômica do certo e errado; se isso ocorre, o copidesque podeconsiderar “erradas” as opções do tradutor simplesmente por diferirem dassuas. Por esse motivo, um copidesque que se alinhe com a postura universalistapode considerar incorreta a tradução de “He [the father] kissed his daughter onthe mouth” por “Ele deu um forte abraço na filha” (ver Santana, 2002). Já umcopidesque que se afine com a visão pós-estruturalista da linguagem pode con-siderar que o tradutor procurou aproximar a tradução do contexto da língua-meta, uma vez que no Brasil os pais não costumam beijar as filhas na boca. Éjustamente quando atua no âmbito dessas preferências subjetivas, e não noâmbito dos erros binários, que o processo de copidescagem parece suscitarmaior controvérsia. São inúmeros os exemplos de intervenções consideradasinadequadas pelos tradutores entrevistados neste trabalho:

a) “O [copidesque] não resiste e muda trechos e termos, achando que ‘ficamelhor assim’” (Quental, tradutora).b) O [copidesque] havia feito dezenas de substituições tolas (a troca do seispelo meia-dúzia), acrescentado erros que não existiam” (Grillo, tradutor).c) “Já tive problemas, quando o [copidesque] quis mostrar trabalho e mudoucoisas desnecessárias. Por exemplo: mudou ‘via’ por ‘por meio de’ num textocom espaço limitado” (Motta, tradutora).d) “Nem todas as minhas traduções são revistas, pelo menos do meu conheci-mento. As que eu recebo o retorno do [copidesque], o normal é ter três erroscorrigidos, doze erros acrescentados, e uma série de alterações inócuas, questãode estilo” (Borten, tradutor).

Há inclusive depoimentos bem-humorados sobre a interferência docopidesque:

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Tive um desentendimento certa vez com uma [copidesque] que cismava em corrigirumas bobagens nas traduções que eu fazia em uma editora. Daí um dia fui olhar arevista médica recém-chegada da impressão e estava lá, logo no começo do artigo, o tal“Via de regra”. Gente, eu odeio “Via de regra”. [...] Nunca, nunquinha, nem sobtortura eu começo um parágrafo com “Via de regra”. Daí a moça ficou chateada quan-do eu pedi e-d-u-c-a-d-a-m-e-n-t-e que ela não fizesse mais essa alteração nos meustextos. Pronto! Quase todos os meses ela cismava de tacar o tal “VDR” nos meustextos. Havia um certo prazer naquilo, eu podia sentir de longe. [...] Tudo bem: passeia trocar o nome da revisora. Chamei-a de Varélia (aka Valéria) durante muito tempo.Sei lá, gostei...Varélia era muito mais legal. (Nascimento, tradutora)

Como à maioria dos tradutores entrevistados não é dada a oportunida-de de opinar sobre as revisões feitas em suas traduções, eles se sentem revolta-dos ou frustrados com as modificações que consideram inadequadas ou desne-cessárias: daí as constantes queixas, encontradas não só nos depoimentos dostradutores entrevistados para este trabalho, como também em publicações denaturezas diversas (ver, por exemplo, Benedetti & Sobral, 2003 e site trad-port). Vários tradutores chegam ao ponto de evitar ler suas obras publicadasou de usar pseudônimos para evitar aborrecimentos.

IV. O papel ideal do copidesqueJá vi horrores incríveis serem praticados pela revisão, sem nenhum res-peito pelo trabalho realizado pelo colega.(Erik Borten, tradutor)

Nunca tive problemas com nenhum tradutor; porém, muitas traduçõesmalfeitas já me deram bastante trabalho, talvez 50% delas, no mínimo.(Teresa da Rocha, copidesque)

Em linhas gerais, de acordo com os tradutores entrevistados, o copidesquedeveria “corrigir erros gramaticais e possíveis ‘cochilos’ do tradutor, [além de]verificar adequação de registro e vocabulário utilizados”, “zelar pela qualidadedo texto e respeitar a escolha do tradutor”, padronizar o texto “conforme alinha daquela editora específica” e apontar e propor “soluções outras para tre-chos que considere ‘complicados’ em diversos sentidos”. Quarenta e quatropor cento dos tradutores, no entanto, disseram que o copidesque acabaextrapolando suas “funções”, tornando-se um “censor gramatical”, “deturpan-do o trabalho do tradutor”, fazendo “substituições tolas”, “mudando trechos etermos, achando que ‘fica melhor assim’”, “traduzindo de novo”, “editando”,“arrogando-se funções que não lhe [cabem]”, “intervindo mais do que o neces-

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sário”. Tal como sugerimos na introdução do presente trabalho, apesar de muitostradutores virem lutando para desconstruir a idéia vigente no senso comum deque são meros copistas, ressaltando a inevitabilidade de sua intervenção notexto-fonte, parecem recusar-se a aceitar que o copidesque, por sua vez, inter-venha no texto traduzido. Mesmo que quisesse, seria possível para o copidesqueanular sua própria interpretação do texto, além de todo o contexto no qual seinsere, a fim de ir sempre ao encontro das decisões e desejos do tradutor?

Se a situação está longe do ideal, isso se deve [...] a uma falta de iniciativa,por parte dos tradutores, no sentido de aceitarem a revisão como uma leitu-ra responsável e indispensável e de discutirem as alterações a serem feitassem a vaidade que marca a atitude ingênua daquele que acredita que o textoé só seu. (Azenha, tradutor)

Em todas as esferas nas quais vários profissionais trabalham juntos e selida com escolhas subjetivas há possibilidade de tensão. A dubladora e tradutoraDilma Machado se ressentiu recentemente com um diretor que para a frase I’mnot proud to do this preferiu mudar o que ela havia escrito, “Não sinto orgulho defazer isso”, para a tradução incorreta “Não tenho vergonha de fazer isso”. Nessecaso, não só essa, mas todas as inúmeras modificações feitas pelo diretor nomomento da dublagem é que vão valer, a despeito da opinião da tradutora.

No campo da interpretação de um modo geral, é óbvio que as opiniõesvão divergir. Um outro exemplo disso é o pedido de demissão de um famosodiretor de uma novela, feito há pouco tempo. Em um artigo no jornal O Globo(Kogut, 2005: 16), a autora, Glória Peres, explicou: “recentemente passamos ater idéias diferentes sobre a condução da trama e seus personagens, criando umdescompasso”. Na sinopse da novela a heroína, Sol, é descrita como “corajosa,vital, alegre e [alguém que] não chora”. Na interpretação do diretor, no entan-to, Sol se mostra triste e chora com freqüência. A autora simplesmente nãoadmitiu uma interpretação diferente da sua para a personagem que criou. In-terpretações diferentes sobre a forma de conduzir determinados personagensde romances podem ocorrer também entre tradutores e copidesques. Ao tra-duzir uma obra literária de época, a tradutora Sonia Moreira foi convidada aopinar sobre um “alerta” feito pela copidesque:

nesse alerta, ela dizia que estava na dúvida se o vocabulário que eu haviaempregado nas falas de um determinado personagem não seria “moderno”demais para a época em que o conto fora escrito. (Ela fez o alerta, mas nãochegou a mexer nas tais “falas modernas” do personagem; ou seja, não che-

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gou a dar outras soluções. O personagem era um americano bastante caricatoe tinha um modo de falar aparentemente “exótico”, em comparação com odos outros personagens [europeus] do conto). (Moreira, tradutora)

Uma alternativa possível para aliviar as tensões geradas pela inevitávelinterferência do copidesque no texto traduzido seria levar a cabo o que 44%dos tradutores sugeriram: que houvesse algum tipo de interação entre traduto-res e copidesques. Em outras palavras, que o tradutor tivesse a chance de opi-nar sobre as modificações feitas em seu texto. Apesar de alguns tradutores te-rem mencionado que muitas editoras evitam fazer isso alegando que tal proce-dimento atrasaria a publicação da obra, isso não tem impedido que acopidescagem da tradução seja enviada a alguns tradutores experientes e àque-les que exigem que isso seja feito. A tradutora Roberta Barni sugere que “quan-do a editora percebe que o tradutor é seguro do que faz, sabe trabalhar e exigerever o trabalho, ela mesma orienta o [copidesque] para ‘não interferir demaisno texto’, a não ser que seja necessário ou que se tenha uma idéia brilhante apropor”. Caberia então aos tradutores impor suas condições e exigir rever otrabalho? Uma mudança no processo de edição de obra estrangeira que permi-tisse um “diálogo” entre tradutor e copidesque certamente iria ao encontro doque solicitam os tradutores. Resta saber se as editoras estariam dispostas amodificar o costume já arraigado de alterar o texto traduzido sem a autoriza-ção do tradutor.

Pode-se confirmar a existência de relações de poder e o tratamento dife-renciado mencionado indiretamente por Barni através do depoimento docopidesque, tradutor e editor André Telles, para quem o “cuidado com os pos-síveis melindres do autor” brasileiro é maior do que com os do tradutor. Nodecorrer da produção editorial, o cuidado tomado com o que Telles denominade “melindres” não só parece variar de tradutor para tradutor — já que a al-guns é dado o direito de rever a copidescagem de suas traduções; copidescagemessa que inclusive pode ter sido feita, a pedido do editor, com o objetivo deinterferir menos — como também parece ser diferenciado no caso de traduto-res e autores. Segundo Telles, os “livros brasileiros sempre voltam ao autor parasua aprovação”.

Os copidesques, por sua vez, no que diz respeito a seus papéis, disseramque devem: realizar “correções ortográficas e sintáticas [e indicar] discrepânci-as internas e despadronizações”; “manter a consistência e estilo [...] e observaro respeito aos glossários”; “indicar a necessidade de ‘ajustes’ na tradução [e]aprimorar a redação do texto”; “apontar problemas (desvios da norma culta,

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quando o texto não os comporta; gralhas; saltos; redação truncada, entre ou-tros) e propor soluções”; “dar um parecer sobre as escolhas do tradutor e corri-gir erros”; “lapidar o texto”. Mas enquanto 44% dos tradutores criticaram aatuação do copidesque, apenas 23% dos copidesques criticaram a atuação dotradutor. Nesse caso, os copidesques alegaram que os tradutores tendem a seafastar da língua-meta e que muitas vezes eles são obrigados a refazer o traba-lho, em virtude de traduções de má qualidade. Curiosamente, apenas umacopidesque, que por sinal é também tradutora, mencionou que deveria haverintegração entre o trabalho do tradutor e o do copidesque. Com esse resulta-do, vê-se novamente a diferença de opinião entre tradutores e copidesques noque tange aos tais “ajustes” ou “lapidagens” na tradução; no âmbito das esco-lhas subjetivas, muitos “ajustes” considerados adequados pelos copidesques sãotidos como interferências indesejáveis pelos tradutores.

V. A cobrança de neutralidade e a luta pelo poderO preparador simplesmente delirou, achou que sabia mais da língua-fonte do que eu, achou que sabia escrever melhor do que o autor, enfim,um desastre, interveio pesadamente no texto e até introduziu erros.(Roberta Barni, tradutora)

Há tradutores de níveis muito diferentes. Alguns são muito bons, e comesses se aprende muito; outros nem tanto, às vezes nos obrigando a pra-ticamente refazer o trabalho de tradução.(Sofia Silva, copidesque)

Quando indagados se consideravam que os tradutores cobravam doscopidesques uma neutralidade impossível, dois pontos muito citados pelosentrevistados foram, por um lado, que haveria por parte dos copidesques anecessidade de “mostrar serviço” e, por outro, que é o tradutor quem leva aculpa na mídia quando há erros na obra publicada. No que tange ao primeiroponto levantado — a necessidade de “mostrar serviço” —, para 12% dos tra-dutores entrevistados não só os tradutores, como os demais participantes daprodução de obra estrangeira sentem necessidade de “aparecer”: “Não vejo lutapelo poder, mas eventualmente tradutores e [copidesques] mal formados e malremunerados, sequiosos de mostrar serviço e provar a sua própria importância,às vezes aos seus próprios olhos” (Aguiar, tradutor). Para outros 12%, ocopidesque quer mostrar serviço porque “a impressão que se tem, sem marcas notexto, é a de que ele não trabalhou. [...] É uma luta pela visibilidade, na qual éfácil incorrer; mas isso acontece [...] por falta do editor” (Barni, tradutora).

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Com relação ao segundo ponto levantado — o tradutor é quem leva aculpa na mídia —, 31% dos entrevistados disseram que, apesar de o costumevigente no processo editorial de obra estrangeira no Brasil ser o da não interaçãoentre tradutores e copidesques, e o das modificações feitas à revelia do tradu-tor, quem figura publicamente como responsável pelo texto-meta é o tradutor:

Já tive a experiência de ver uma página de tradução minha praticamentedesfigurada por um [copidesque]. Não se trata de uma luta pelo poder,porque o tradutor vende os direitos para a editora, e a partir desse momen-to a editora pode fazer o que quiser do texto. Só acho que se é para mudarcompletamente o texto do tradutor fica meio engraçado colocar o nome dotradutor na folha de rosto. (Falck, tradutora)

E isso nos remete ao terceiro ponto levantado pelos tradutores. Tal comojá foi sugerido na seção IV deste trabalho, os entrevistados ressaltaram a neces-sidade de haver “contato estreito” e “interação” entre tradutores e copidesques.Vários tradutores afirmaram que muitas vezes a escolha do copidesque podeser melhor, não havendo, portanto, “nenhum empecilho [...] em aceitar o ter-mo sugerido pelo [copidesque], desde que dentro de um diálogo e uma trocade idéias e, principalmente, um sólido embasamento gramatical, terminológicoe cultural que justifique ou não o termo apresentado pelo [copidesque]” (Levié,tradutora). Quando o tradutor sabe que quaisquer modificações no texto-metapassarão pelo seu próprio crivo, parece diminuir ou cessar a cobrança de neu-tralidade: “eu não cobro neutralidade do [copidesque]; apenas peço que todasas decisões dele passem por mim antes de o livro ir para a gráfica” (Britto,tradutor).

Para que esse diálogo ocorra, o tradutor não teria que cobrar doscopidesques “mas sim dos editores, eles sim responsáveis finais por eventuaisaberrações produzidas pela interação tradução/[copidescagem]” (Aguiar, tradu-tor). Para alguns entrevistados, a luta pelo poder, ou pela visibilidade, ocorrejustamente quando “não há clareza nos papéis a serem desempenhados. [Portan-to] o coordenador do projeto e/ou editor e/ou intermediador devem procurarestabelecer uma relação de interação entre o tradutor e o [copidesque]” (Motta,tradutora). O diálogo entre tradutores e copidesques é produtivo porque o tra-dutor pode ter uma idéia dos pontos a melhorar, dos termos corretos a usar, oque permite que haja um aprendizado constante (Nascimento, tradutora).

Em contraste com o que foi dito pelos tradutores, a necessidade de “apa-recer” só foi mencionada por um copidesque, para quem “há tradutores quegostam de chamar atenção para o seu texto, muitas vezes tentando ‘melhorar’

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o original” (Telles, copidesque, tradutor e editor). Da mesma forma, só umacopidesque trouxe à tona o fato de o tradutor assinar a tradução: “Na maiorparte das vezes nem chego a ter contato com os tradutores dos livros que reviso.Mas, pessoalmente, acredito que um tradutor competente é quem deve dar apalavra final sobre a tradução. É ele quem a assina” (Silva, copidesque). Por sinal,41% dos copidesques afirmaram não ter tido contato direto com tradutores eapenas a copidesque que também é tradutora levantou a questão da falta dediálogo: “o problema é que muitas vezes não há qualquer diálogo. Depois deentregar seu trabalho, o tradutor só volta a ver o texto depois de publicado. Oque é grave e não devia ser dessa forma” (Senna, copidesque e tradutora).

O editor citado como responsável por um processo que não é o idealtambém foi mencionado por Senna: “não acho que o problema seja entre[copidesque] e tradutor, mas entre editor e tradutor. O [copidesque] podeapontar problemas, mas normalmente é o editor quem decide mexer ou nãoem um texto”.

VI. A avaliação da copidescagem e a escolha da versão finalSão raras, raríssimas, as editoras que sequer propõem apresentar aos tra-dutores as revisões feitas. Ocorre, mas é raro, e já vi dar briga. Contudo,quando proponho ou me propõem obras que considero importantes,eu exijo a palavra final. Se quiserem revisar trinta vezes, que o façam,mas o editor terá de devolver para eu aprovar no final. O visto bom émeu, que assino.(Renato Aguiar, tradutor)

Quando escolhemos o tema deste trabalho, supúnhamos que apenas aostradutores iniciantes não era dada a oportunidade de opinar sobre acopidescagem feita em suas traduções; ou seja, em virtude de sua pouca ex-periência, as editoras evitariam reenviar-lhes a tradução copidescada. Essa hi-pótese foi descartada, uma vez que 80% dos tradutores entrevistados já exer-cem a profissão há mais de dez anos e, no entanto, 60% tampouco recebem devolta o texto copidescado. Esse número foi confirmado pelos copidesques en-trevistados, dos quais 60% afirmaram que nas editoras para as quais trabalhamo texto traduzido não costuma ser reenviado ao tradutor. Insatisfeitos com essasituação, alguns tradutores afirmam ter deixado de trabalhar para as editorasque não lhes permitem rever a copidescagem: “Há algumas [editoras ...] para asquais não mais trabalho por causa da ‘ditadura gramaticalesca’” (Sobral, tradu-tor); “Há umas duas editoras com as quais não consegui [rever a copidescagem...]; nesses casos, deixei de trabalhar para elas” (Barni, tradutora). Outros

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tradutores afirmaram que para evitar aborrecimentos não lêem o texto-metapublicado, ou recorrem ao uso de pseudônimo:

Quando tive problema com a [editora3 ...], consegui [...] que ela me encami-nhasse o livro depois de revisado, para eu dar uma última olhada. Cheguei afazer isso com um livro e foi um sofrimento ver meu texto completamentealterado. Decidi optar pelo uso de um pseudônimo nessa editora especifica-mente, e eles aceitaram. (Grillo, tradutor)

Apesar das inúmeras queixas por parte dos tradutores no que tange àcopidescagem, revê-la implica um trabalho adicional, muitas vezes não-remune-rado, que deve ser levado em conta: “Já me ocorreu reivindicar essa releitura, queme foi concedida mas de que contudo me arrependi, porque (1) o trabalhoadicional que isto representou não acrescentou nem um tostão à remuneração aque eu já fizera direito” (Flaksman, tradutor). Como essa tarefa pode ser monu-mental no caso de livros extensos, ela poderia explicar, talvez, a aparenteinexistência de uma pressão maior por parte dos tradutores para realizá-la. Para otradutor Sérgio Flaksman, a falta da compensação financeira para esse trabalhoextra seria “um dos mecanismos viciados a alimentar a perpetuação de profundasdeformações nesta área. E mais ainda quando o trabalho ainda se sujeita, ao fime ao cabo de toda esta releitura, a mais um número indeterminado de ‘revisões’”.Situações similares ocorreram com a tradutora Roberta Barni. Em uma delas, oeditor “foi obrigado a admitir que eu estava certa. Resultado: pagou-me, e bem,para que eu arrumasse de volta o texto”. Na outra, entretanto,

o editor [...] reconheceu que a [copidescagem] estava desastrosa, e disse quesimplesmente não chamaria mais aquele [copidesque], mas não foi além dis-so, e deixou a bomba na minha mão. Por uma questão de delicadeza paracom o autor que até tinha me indicado, tornei a arrumar tudo, mas muito acontragosto, um trabalhão danado, sem receber para isso! (Barni, tradutora)

Já vimos que, no que concerne à copidescagem, as editoras parecem darum tratamento diferenciado a tradutores e autores. Será que isso ocorre por-que o custo e o tempo de edição da obra nacional, sem a participação de tradu-tores e copidesques, é muito menor? Ou será que a não-revisão da copidescagempor parte dos tradutores é simplesmente uma praxe que pode ser alterada,faltando para tanto que os tradutores se mobilizem? De acordo com a editoraDaniele Cajueiro,4 a Nova Fronteira, por exemplo, costuma enviar acopidescagem ao tradutor. Já segundo a editora Silvia Leitão,5 a Record não

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tem essa prática. Na editora para a qual trabalha André Telles, isso tampoucocostuma ser feito:

Na maior parte dos casos o texto não volta ao tradutor (seria arranjar sarnapara se coçar...). Além disso, como os tradutores são mais ou menos fixos etrabalham há anos para a editora, devem ficar “resignados” ou “gratos”. Umcomentário de um editor conhecido: “Não se pode contratar um tradutorporque se viu o nome dele numa boa tradução. A gente contrata ele, edepois vê que o trabalho todo tinha sido do copy e da editora”. (Telles,editor, tradutor, copidesque)

Faltaria ao tradutor essa “resignação” ou “gratidão”? A “resignação” deassinar uma tradução com alterações de copidescagem que podem comprome-ter, ou não, o seu trabalho, uma vez que o processo editorial é, na verdade,uma linha de produção? “Um termo que me custou muita pesquisa foi substi-tuído pelo revisor por um falso cognato que tornava toda a passagem absurda.Briguei muito com a editora, e a partir daí eles passaram a ficar mais cuidado-sos com os meus textos” (Britto, tradutor). A “gratidão” por participar de umalinha de produção na qual tanto podem atuar profissionais competentes comoincompetentes, que, se por um lado podem melhorar muito o texto-meta, poroutro, podem piorá-lo? Ou estaria faltando ao tradutor a consciência de que

todos que trabalham na produção editorial precisam ter noção de que umtexto não é um filho. E, mesmo se for, o filho não é só seu. Essa idéia do“esse texto é meu e ninguém mete o bedelho” pode ter sentido em algunscontextos específicos, como trabalhos literários ou acadêmicos. Mas, na maiorparte da produção textual de hoje (manuais, relatórios, livros didáticos,livros de referência etc.), o que temos é um trabalho em equipe, no qual asdisputas pelo poder não fazem sentido. (Guimarães, copidesque)

No que diz respeito aos copidesques, 75% afirmaram não ter acesso àsmodificações feitas posteriormente em seu próprio trabalho de copidescagem;ou seja, disseram não saber se suas modificações foram incorporadas ou não aotexto-meta. Trinta por cento deles disseram que gostariam de ter a chance deopinar sobre essas modificações, mas que entendiam que isso não ocorria emfunção do processo editorial: “É claro que eu gostaria de ser consultada sobre asmodificações feitas após meu trabalho, mas, por ter trabalhado como coordena-dor editorial, sei que isso é bem complicado e muitas vezes inviável” (Canetti,copidesque); “É incômodo pensar que seu trabalho talvez seja tratado de formapouco ética, mas não posso ocupar um espaço que não é meu — eu não dou a

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palavra final na publicação, preciso confiar nos meus colegas” (Rodrigues,copidesque); “É sempre bom mostrar ao revisor [as modificações que foram fei-tas posteriormente ao seu trabalho]” (Bellinelo, copidesque); “Já me aconteceude ver um livro publicado e ver que muitas das minhas emendas não foramincorporadas. Imaginei que foram imposições do tradutor. Às vezes, não possodeixar de lamentar, mas sei que são essas as regras do jogo” (Silva, copidesque).

Já outros copidesques, tal qual Thelma Guimarães, acham que não ca-bem ao copidesque as decisões finais: “Penso no cliente e se para ele for melhoralterar o que já alterei, por que não? Como disse, penso em um trabalho com-plementar, em equipe” (Santos, copidesque); “Depois que o [copidesque] en-trega o trabalho, cabe à editora decidir acatar ou não as emendas sugeridas,uma vez que é dela a responsabilidade pela publicação do livro” (Rocha,copidesque); “o trabalho de [copidescagem] não é autoral, por isso não vejomotivo de o editor ter de dar satisfação do que vai manter ou não das marca-ções do [copidesque]” (Senna, copidesque e tradutora).

Sendo a intenção de todo processo de revisão de obra estrangeira traduzidachegar a um produto final de qualidade, estaria faltando ao tradutor essa visãode trabalho em grupo, de um processo que envolve indivíduos e etapas dife-rentes? Seria a melhor opção do tradutor “aceitar as regras do jogo”, “confiarem seus colegas” e acatar as escolhas dos copidesques e editores? Ou seria atradução, de fato, algo “pessoal e intransferível”?

Nunca deixei de pensar que uma vez feita por mim a tradução, está elapronta. Não se trata de pretensão. Estou apenas querendo dizer que umanova tradução do mesmo texto é, digamos assim, uma outra obra. Algocomo uma coisa pessoal e intransferível. (Gonçalves, 2003: 112)

Quando questionados a respeito de a quem deveria caber a palavra finalno tocante a textos traduzidos, 50% dos tradutores afirmaram que ela caberiaao tradutor. Na opinião de 6% dos tradutores participantes, caberia ao editordar a palavra final; para outros 6% a versão final, no caso de textos técnicos,deveria ficar a cargo do revisor técnico. Já para 30% dos participantes, deveriahaver um trabalho conjunto:

Colocada como está, a pergunta induz, a meu ver, à retroalimentação deum processo compartimentado. A rigor — e se quisermos ser coerentescom as contribuições dos Estudos da Tradução dos últimos vinte anos — aúltima palavra não é a última e não deve ser dada a um só. Só que para fazerisso valer no meio não acadêmico, o tradutor precisa se valer de argumentos

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não acadêmicos. Assim, é preciso convencer o outro de que o trabalho con-junto reduz os riscos do insucesso, o que pode significar garantia de retornode investimento. (Azenha, tradutor)

Sob o ponto de vista do tradutor João Azenha, os tradutores não devemexigir a palavra final sobre seus trabalhos, mas sem dúvida alguma terão derequerer o retorno do texto copidescado para que possam debater as mudançasdas quais discordam; de outra forma, seria impossível a efetivação do que elechama de “trabalho conjunto”. Já para a tradutora Renée Levié, “a tradução éde propriedade(criação) do/a tradutor/a, e nenhuma modificação deveria serfeita sem a sua aprovação prévia”. Da mesma forma pensam a tradutora RobertaBarni, para quem o tradutor deve ter a última palavra porque é ele “quemassina a tradução” e a tradutora e copidesque Janaína Senna, para quem otrabalho do tradutor é “um trabalho autoral. O tradutor é o responsável, diga-mos assim, por aquela obra, e não o [copidesque].”

A opinião dos copidesques parece se alinhar com a de Azenha. Apesar de54% dos copidesques terem afirmado que o tradutor deveria ter o direito deopinar sobre a copidescagem, apenas 20% consideraram que a palavra finaldeveria ser do tradutor. Para a maioria, 46%, a palavra final cabe ao editor: “ocliente é quem tem o poder de decidir o que ele acha que venderá, o que eleconsidera que agrada seu público e o preciosismo, por vezes, é um ideal queaprendemos em sala de aula mas que na prática, em algumas situações, não seaplica” (Santos, copidesque).

VII. Desentendimentos entre tradutores, copidesques e editoresO editor, exigindo um texto elegante, “bem escrito”, de fácil leitura,impôs modificações que o tradutor, fiel ao estilo estranho, áspero, deseu autor, recusou-se a aceitar. Seguiram-se acusações, aborrecimentos,humilhações (para o tradutor, é claro, porque no par tradutor-editor oprimeiro sempre é o mais fraco).(Pierre Blanchaud, apud Kundera, 1996)

Quando perguntados se já teriam tido algum tipo de problema comeditores, seja no que tange à copidescagem ou a outros aspectos, 62% dostradutores disseram que sim, o que demonstra o alto grau de insatisfação dostradutores com o processo editorial. Alguns se queixaram de divergências noque tange à remuneração; a maioria, no entanto, citou, mais uma vez, altera-ções na etapa de copidescagem do texto traduzido que consideraram inade-quadas: “dois livros de épocas totalmente distintas ficaram iguaizinhos, o que

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a meu ver é um erro” (Sobral, tradutor); “já saiu tradução minha com errocometido pelo [copidesque], mas aí o assunto foi resolvido entre a supervisãoe o [copidesque]” (Nascimento, tradutora); “eu só protestei dizendo que ti-nham mexido muito na [copidescagem...], mas a tradução já estava publicadae o que fazer? Aliás, se eu assino um contrato de cessão de direitos, estou alie-nando minha obra, portanto a editora pode fazer o que quiser do texto. Se eunão assinar o contrato, ela não me dá trabalho” (Falck, tradutora).

Tal como ressaltou a tradutora Celina Falck, ao entregar uma obra traduzidaà editora, o tradutor é de fato obrigado a assinar um contrato de cessão de direi-tos autorais de tradução que inclui até seus herdeiros e sucessores. Por intermé-dio dele, o tradutor “cede e transfere à [editora], em caráter definitivo, a totalida-de de seus direitos autorais relativos à tradução, podendo esta explorar comerci-almente, alterar, utilizar ou não, publicar, ceder e/ou licenciar a terceiros, notodo ou em parte, conforme sua necessidade ou interesse”.6 A inclusão da pala-vra alterar nesse contrato não deixa dúvidas sobre a forma como a editora encaraa tradução: uma etapa no processo de edição de obra estrangeira a ser modificadalivremente pelo editor. “Não leio a tradução publicada para não precisar discuti-la apenas por discutir. Uma editora somente refaria um livro que traduzi se euentrasse na Justiça” (Wyler, tradutora). Se por um lado a editora responde peloproduto final, por outro o tradutor assina a tradução — e, tal como ressaltam ostradutores, as críticas costumam ser feitas a eles e não às editoras.

Quando questionados a respeito de desavenças com copidesques, 87%dos tradutores afirmaram já ter tido algum tipo de problema com esse profis-sional. Uma tradutora chegou a afirmar ter tido problemas em 75% dascopidescagens feitas em suas traduções. Outros 25% dos tradutores entrevista-dos afirmaram que tiveram, mas já não têm mais dificuldades com copidesques.Essas dificuldades terminaram ou porque os tradutores passaram a receber atradução ou porque simplesmente deixaram de ler o texto publicado: “em 90%das vezes, para evitar dissabores, não quero nem saber o que foi feito dos origi-nais que entreguei” (Aguiar, tradutor); “as editoras não enviam as revisões” (Levié,tradutora) e “é muito difícil eu chegar a abrir um livro com minhas traduções, oque certamente deve me poupar muitos dissabores” (Flaksman, tradutor).

Já 60% dos copidesques afirmaram nunca ter se desentendido com edi-tores. Para 25% dos que disseram já ter tido algum desentendimento, issoocorreu em função de “expectativas diferentes em relação ao trabalho, comopor exemplo, qualidade versus prazo” (Canetti, copidesque) e “deficiência nacomunicação entre as partes. Já aconteceu de o editor desejar um trabalho compouca intervenção, e eu ter interferido demais, ou vice-versa” (Guimarães,copidesque). Além disso, foram mencionados

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prazos mal estipulados (aliás, cada vez menores); editoras que não fazem umaboa articulação entre seus prestadores de serviço e, depois, atribuem as falhas sóa estes; tradutores que não se responsabilizam pela qualidade de seu texto [...], eaí o copi que se vire para transformar aquilo em português; ou copis negligen-tes, que deixam o trabalho pesado para o revisor. (Rodrigues, copidesque)

Esses três exemplos evidenciam a necessidade de um bom canal de co-municação entre os profissionais envolvidos no processo editorial. A copidesqueThelma Guimarães cita o que considera ser uma boa iniciativa para o aperfei-çoamento da comunicação entre as partes, tomada por uma grande editora deSão Paulo: “Uma pessoa do RH da própria editora telefona para o prestador deserviços externo e pede que ele avalie o desempenho do funcionário internocom quem tem contato. São discutidos pontos como fluidez da comunicação,a transparência quanto a prazos e remuneração, dentre outros”.

Ao contrário dos tradutores, 76% dos copidesques afirmaram nunca tertido problemas com tradutores. Tal como mencionamos no início do trabalho,pela maneira como a pergunta foi formulada muitos copidesques tiveram aimpressão errônea de que nos referíamos a um “encontro físico”: “como nãocostuma haver contato entre o tradutor e [o copidesque], seria difícil haver umconfronto. Já tive uma experiência que foi exatamente o contrário, o tradutorficou muito agradecido porque saltos e erros da tradução dele foram descober-tos e corrigidos” (Silva, copidesque).

Algumas queixas de copidesques foram dirigidas a outros profissionaisenvolvidos no processo editorial, o que demonstra que nem sempre há harmo-nia nesse processo, mesmo quando não se está falando da relação tradutor-copidesque. Isabel Rodrigues, citada acima, referiu-se a “copis negligentes, quedeixam o trabalho pesado para o revisor” e André Telles chamou atenção paraum outro tipo de relação, “[essa], terrível, do copidesque com a figura dorevisor técnico [...], que, às vezes, invocando autoridade técnica, impõe[m] econsolida[m] traduções infelizes”.

VIII. ConclusõesTenho sempre procurado dialogar com os revisores e o resultado dissotem sido duplamente satisfatório: no que me diz respeito, ele me garan-te o conforto de uma responsabilidade compartilhada; no que respeitaao livro em si, ele instaura uma instância de discussão que permite con-ciliar e, eventualmente, harmonizar, interesses editoriais com interpre-tações não coincidentes com tais interesses.(João Azenha, tradutor)

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Seria o texto final do processo de edição de obra estrangeira um “produ-to de criação coletiva” e a tradução “um trabalho a ser continuado e modifica-do em etapas subseqüentes” (ver Linz, 2004: 27)? Caberia ao tradutor parar dese queixar da copidescagem e assumir seu lugar como apenas “um dos colabo-radores na edição de um livro” (ibid)? Ou caberia ao tradutor deixar de lado oconformismo e lutar contra as atuais políticas das editoras a fim de defendersua escrita tradutora e exigir o direito à revisão da copidescagem?

Pelo que vimos, no tocante à copidescagem de seus textos, a expectativada maior parte dos tradutores é a de que o copidesque só intervenha quandohá ocorrência de erros binários. Quando o copidesque intervém em outrascircunstâncias, a tendência do tradutor é achar que ele quer “mostrar serviço”.Segundo o Eurologos, site que oferece serviços de tradução, entre tradutores ecopidesques haveria um “implacável ciúme do rival”; por esse motivo, “o[copidesque] do cliente [...] não deve se deixar levar por uma inútil competiçãoestilística ou um confronto de personalidades”, devendo “resistir ao impulso natu-ral de querer reescrever o texto, sabendo que nada é mais subjetivo que o julga-mento de uma linha bem traduzida” (grifos nossos). A tendência dos traduto-res, de fato, é encarar a copidescagem como uma etapa secundária relativa-mente à tradução. E, ao colocá-la em uma posição secundária, os tradutorespassam a se ver como donos absolutos do texto. Os tradutores que se afinamcom a visão mais recente dos estudos da tradução, a pós-estruturalista, caemem contradição justamente por exigirem da copidescagem uma postura neutrae, ao mesmo tempo, ressaltarem a inevitabilidade de sua própria intervençãona obra que traduzem.

Ao nosso ver, caberia aos tradutores a conscientização de que, se narelação autor-tradutor não há como o tradutor se auto-anular, tampouco narelação tradutor-copidesque há como o copidesque se auto-anular — isso seria,tal como vimos, virtualmente impossível. Ao exigir essa neutralidade docopidesque, o tradutor — como na visão universalista da relação tradutor-autorcontra a qual as teorias pós-estruturalistas tanto vêm se opondo — passa a assu-mir a posição de “Autor” com letra maiúscula, colocando-se em posição superiorà do copidesque ao não tomá-lo como um profissional que, influenciado por suaprópria visão de mundo e cultura, fará escolhas diferentes das suas. O cerne doproblema não está nas idiossincrasias do copidesque, mas na impossibilidade deo tradutor questionar as modificações que a seu ver são incorretas.

A nossa defesa dessa postura diferente a ser adotada pelo tradutor notocante ao copidesque não significa, entretanto, que consideramos infundadasas constantes queixas dos tradutores no que tange à copidescagem. Muito pelo

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contrário; como vimos, embora os tradutores tenham ressaltado a relevânciada copidescagem, o número de intervenções consideradas prescindíveis e ina-dequadas foi muito superior ao número de intervenções consideradas adequa-das e até mesmo imprescindíveis. Mesmo que essas queixas possam ter se base-ado na exigência de neutralidade do copidesque, são inúmeros os exemplos deintervenções de fato incorretas. E é justamente por sabermos que os textospodem receber interpretações distintas que defendemos a idéia de o texto vol-tar para o tradutor, já que é ele o responsável pelas interpretações feitas, inclu-sive porque é ele quem assina a tradução. Assim sendo, tal como sugerido porvários tradutores, parece-nos que o ideal seria que, uma vez concluída acopidescagem ou revisão, o texto sempre retornasse ao tradutor.

Sou daqueles que acreditam que revisor e tradutor devem compor uma duplaque se complementa e não um par de tradutores que competem. Tanto narevisão lingüística, aquela que trata do estilo na língua-alvo, quanto na revi-são técnica da tradução técnica [...] o uso pelo revisor do recurso dos “comen-tários” oferecido pelo Word possibilita um “diálogo” interativo entre revisor etradutor, em benefício do produto final. (Haroldo Netto, 2003: 141)

Todos os relatos de experiências nas quais houve esse retorno foram tãopositivos que as queixas contra copidesques, se não cessaram, diminuíram acen-tuadamente. Supomos que, mesmo sem receber uma remuneração adicional,os tradutores certamente estariam dispostos a rever a copidescagem a fim deevitar alterações que considerem incorretas ou mesmo de serem convencidosdo contrário. Supomos também que o copidesque, se instituída a prática deretorno do texto copidescado ao tradutor, passaria a interferir menos. Se algu-mas editoras já adotaram a prática de enviar a copidescagem do texto-meta aostradutores, apesar dos prazos apertados para publicação de obra estrangeira, asdemais podem seguir o exemplo.

Não obstante, além de mencionar os prazos apertados, outra práticacomum das editoras é recorrer à seguinte justificativa: “modificações sem con-sulta ao tradutor só são feitas quando se tem muita certeza do que será alteradoe acredita-se que o tradutor concordaria” (Costa apud Linz, 2004: 22). É difí-cil acreditar que alguém possa saber exatamente com quais alterações ele esta-ria de acordo. Tal como vimos, uma alteração, por menor que seja, pode elimi-nar um termo que custou ao tradutor horas, dias ou até semanas de pesquisa.Além do mais, os próprios copidesques e revisores estão sujeitos a cometer, oua deixar passar, erros. Portanto parece-nos justo que o texto volte ao tradutorapós a copidescagem, ou a revisão final. O resultado de um trabalho conjunto

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será, sem dúvida alguma, um texto de melhor qualidade. Além disso, essa tro-ca de idéias contribui para o aperfeiçoamento profissional do copidesque e dotradutor:

em uma das editoras trabalhei in-house durante dois anos. Fazia as tradu-ções lá e as médicas revisavam lá mesmo, então nosso contato era direto ediário. Era muito interessante porque a revisão era comentada comigo pos-teriormente, então eu podia ter uma idéia de pontos a melhorar, termoscorretos a usar, etc. Acho que esta seria a situação ideal de trabalho de tra-dutores e revisores — contato estreito, diálogo, aprendizado constante.”(Nascimento, tradutora)

Na condição de clientes e gerentes do processo editorial, os editoresdecidem como ele será conduzido e, portanto, exercem um papel fundamentalnão só na relação entre autores-tradutores, como também na relação entretradutores-copidesques. Se os tradutores quiserem mudar a atual política daseditoras, terão de convencer os editores de que, no final, serão eles os grandesbeneficiados ao permitirem o retorno da copidescagem ao tradutor, pois semdúvida alguma estarão não só harmonizando relações de trabalho potencial-mente problemáticas, como colocando no mercado um produto de qualidadesuperior.

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1 Este artigo foi concebido originalmente como monografia de conclusão do Curso de Especializa-ção em Tradução da PUC-Rio (2005), sob a orientação da professora Maria Paula Frota.2 Quando citarmos o fragmento de uma resposta ao questionário que enviamos a tradutores ecopidesques, apresentaremos ao final o sobrenome do entrevistado e sua profissão. Se o fragmentocitado for muito pequeno não daremos o nome do autor, para que a leitura seja mais fluida.3 Apesar de o tradutor ter mencionado o nome da editora, pareceu-nos melhor não mencioná-la, jáque ele afirma ter de recorrer ao uso de pseudônimo a fim de trabalhar para ela.4 CAJUEIRO, Daniele. Depoimento no Painel de Mercado oferecido aos alunos da Especializaçãoem Tradução da PUC-Rio, em outubro de 2004.5 LEITÃO, Silvia. Depoimento no Painel de Mercado oferecido aos alunos da Especialização emTradução da PUC-Rio, em outubro de 2004.6 Trecho de “Instrumento particular de cessão de direitos autorais de tradução” da Editora BertrandBrasil Ltda.

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ANEXO

Relação de tradutores e copidesques que responderam ao questionário emmarço e abril de 2005:

TRADUTORES COPIDESQUESAGUIAR, Renato BELLINELLO, SergioAZENHA, João CANETTI, GypsiBARNI, Roberta GUIMARÃES, ThelmaBORTEN, Erik KOURY, LuciaBRITTO, Paulo Henriques GERHARDT, MicheleFALCK, Celina MELLO, HugoFLAKSMAN, Sérgio ROCHA, Teresa daGRILLO, Marcio ROGRIGUES, IsabelLEVIÉ, Renné SANTOS, FátimaMOREIRA, Sonia SENNA, JanaínaMOTTA, Regina SILVA, Sofia SouzaNASCIMENTO, Maria Inês TELLES, AndréQUENTAL, Raffaella VILLELA, Maria AngelaROSAS, MartaSOBRAL, AdailWYLER, Lia

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A CRÍTICA DE TRADUÇÕES1

Ivone C. Benedetti

Lendo Umberto Eco, recentemente — trata-se de Limites da interpreta-ção —, deparei com um exemplo que ele dá para tentar estabelecer critérios delegitimidade das interpretações de textos (na tentativa de evitar aquilo por eledenominado “neoplasia interpretativa”), e o exemplo me pareceu cabível tam-bém para a tradução. Não é nada incomum o paralelo interpretação/tradução,portanto, não fui muito original. Mas nesse trecho Eco cita um verso deWordsworth, que está no poema intitulado “The Daffodils”: A poet could notbut be gay. Depois de citá-lo, Eco diz o seguinte: “um leitor sensível e respon-sável não é obrigado a especular sobre o que se passou na cabeça de Wordsworthao escrevê-lo, mas tem o dever de levar em conta o sistema léxico da época deWordsworth. No tempo dele, gay não tinha nenhuma conotação sexual, e re-conhecer esse ponto significa interagir com um cabedal cultural e social”.

As palavras de Eco têm em mira aquilo que ele chama de interpretaçãocrítica, em contraposição àquilo que ele chama de interpretação semântica.Ou seja: a interpretação semântica (ou semiósica) “é resultado do processopelo qual o destinatário, diante da manifestação linear do texto, preenche-a designificado. A interpretação crítica (ou semiótica) é aquela por meio da qual seprocura explicar por quais razões estruturais pode o texto produzir aquelas (ououtras, alternativas) interpretações semânticas”. E Eco conclui dizendo quetodo texto pode ser interpretado semântica ou criticamente, mas apenas pou-cos textos prevêem conscientemente ambos os tipos de leitor-modelo.

Ora, e o que tem Wordsworth a ver com tudo isso e o que tudo isso tema ver com crítica da tradução?

Tento agora estabelecer os nexos.À primeira vista, a impressão que se tem é que o tradutor permaneceria,

que lhe bastaria permanecer, ou que teria de permanecer, no nível da manifes-tação linear do texto, e que pouco lhe importariam eventuais interpretaçõescríticas. Diante de estudos de teoria da tradução que contemplam a atividadeinterpretativa do texto em sua aplicação à tradução, não é incomum ouvir de

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tradutores até experimentados a pergunta perplexa: “mas o que tem o tradutora ver com interpretação?”.

A pergunta não é de todo impertinente, mas a perplexidade não chega ajustificar-se. Voltando ao verso de Wordsworth, eu diria que temos aí um típi-co exemplo de coincidência entre necessidade de interpretação semântica enecessidade de interpretação crítica. Seria descabido aventar a hipótese de quealgum tradutor experiente viesse a interpretar a palavra gay na sua acepçãomais usual e conhecida hoje em dia no Brasil? Confesso que, como tradutora,gostaria imensamente de responder: “Sim, é descabido”. Pois bem, cedo entãoà minha vontade e parto do princípio de que nenhum tradutor entenderia apalavra gay na sua conotação sexual corrente hoje em dia no Brasil. Concluoque, guiado pelo conhecimento de que tal verso foi escrito por alguém queviveu entre os séculos XVIII e XIX, momento da língua inglesa em que apalavra gay tinha n-1 conotações, em que (-1) significa a conotação atual, otradutor traduzirá corretamente essa palavra. Traduzir corretamente significa-rá, portanto, atribuir-lhe a acepção (ou uma das acepções) que ela tinha na-quele momento histórico. Ora, nessa operação, o tradutor terá feito (provavel-mente em questão de segundos) um cotejo de todos os seus conhecimentosenciclopédicos para concluir qual seria a acepção mais adequada. A falta dessesconhecimentos enciclopédicos redundaria naquilo que se costuma chamar detradução “errada” — e, evidentemente, aqui estou pressupondo esse enganoapenas como argumento ab absurdo.

Em suma, estamos tipicamente diante de um caso no qual, sem inter-pretação crítica, não se chega à correta interpretação semântica.

Muitos dos meus colegas aqui presentes argumentariam, talvez, que essetipo de coincidência não ocorre sempre. É verdade, mas a minha impressão éde que esses casos são muito mais freqüentes do que se supõe. Eu diria que otradutor faz muito mais análises críticas do que imagina, porque na maioriadas vezes não se dá conta de que as fez. É nesses momentos que ele põe em açãoo seu cabedal de conhecimentos.

A crítica de que estou falando é aquilo que o dicionário Houaiss definecomo “atividade de examinar e avaliar minuciosamente tanto uma produçãoartística ou científica quanto um costume, um comportamento; análise, apre-ciação, exame, julgamento, juízo”. Há outras definições, mas fico com essa.Ora, é no momento em que deixa de fazer essa crítica, ou no momento em quefaz uma crítica equivocada, que o tradutor se expõe ao risco de errar. E, quan-do erra, expõe-se à crítica, ou, quem sabe, a críticas. E agora estou falando deoutra acepção de palavra, que, segundo ainda o dicionário Houaiss, é “ação ou

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efeito de depreciar, censurar; opinião desfavorável; censura, depreciação, con-denação”.

Conforme se pode constatar da quase totalidade das respostas à 10ªpergunta feita aos tradutores no livro Conversas com Tradutores que, em parce-ria com Adail Sobral, organizei para publicação pela Editora Parábola,2 é dessetipo de crítica que os tradutores se consideram alvo, e não de outro, definidotambém pelo Houaiss como “arte e habilidade de julgar a obra de um autor”.Para resumir, direi que o tradutor exerce (ou deveria exercer) a crítica como“exame, análise”; os críticos de tradução deveriam exercê-la como “arte de jul-gar uma obra”, mas, segundo os próprios tradutores, eles a exercem como “con-denação”. E qual seria o tipo de crítica de que os tradutores se considerariammerecedores? Em outras palavras, no que consistiria a crítica como “arte” dejulgar a tradução? E — pergunta complementar — quem seria competentepara fazê-la?

Diria que, como conseqüência lógica do que venho expondo, uma críti-ca de tradução só poderia ser uma crítica da crítica. Se a atividade tradutorasempre pressupõe uma crítica — prévia ou simultânea, consciente ou incons-ciente —, mas a pressupõe como condição sine qua non (tanto que sua ausên-cia sempre deixa marcas detectáveis), a crítica da tradução consistiria no esfor-ço de detectar os pressupostos de que o tradutor partiu para traduzir X por Y,e não por Z. Portanto, a crítica da tradução seria, num primeiro momento, adetecção da crítica feita pelo tradutor. O segundo momento seria, mais preci-samente, a crítica dessa crítica.

Ora, assim como existem métodos críticos em literatura, existem méto-dos críticos em tradução. E aqui falo da crítica empreendida pelo tradutor. Astáticas adotadas diante de um texto (sobretudo o literário, mas ouso dizer quequalquer tipo de texto reivindica algum tipo de tática de abordagem), essastáticas — dizia eu — costumam ser mais ou menos constantes em cada tradu-tor, sofrendo graus maiores ou menores de variação, de acordo com a tipologiatextual, com o autor etc. Explico-me. Os tradutores, assim como os autores,têm seu estilo. Diante do mesmo tipo de texto é fácil identificar estilos – esco-lha de palavras, mas principalmente, de expressões e de estruturas sintáticas.Num quadro ideal, a mudança de tipo de texto ou de autor, com a conseqüen-te mudança de estilo do original, determinaria uma mudança correspondenteno estilo do tradutor. Quando isso ocorre, pode-se dizer que o tradutor reali-zou uma crítica prévia que lhe permitiu identificar uma mudança, e a ela seajustar. Pois bem, diante disso, pode-se dizer que na atividade tradutora seencontram dois componentes cuja íntima conjunção é responsável pelo seu

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caráter até certo ponto paradoxal: ao mesmo tempo que deixa transparecer oseu estilo (“o estilo é o homem”, ou “le style est l’homme même”, já diziaBuffon, sem imaginar talvez que sua frase se tornaria tão famosa), o tradutordeve ser capaz de mudar de estilo junto com seu texto. Essa tensão entre oestilo próprio e o alheio constitui o cerne da atividade, o seu nó górdio, muitomais — arrisco dizer — do que a tensão entre língua de chegada e língua departida.

Uma verdadeira crítica da tradução, portanto, precisaria detectar os ele-mentos dessa tensão e trazê-los à tona. A adequação ou inadequação das táticasempregadas para resolver as tensões de estilo, aliadas a uma análise de tipologiatextual mínima, são coisas que poderiam constituir um bom tema para umacrítica da tradução que ultrapassasse o nível elementar da busca do erro ou doacerto lexical, o nível elementar da crítica como condenação.

Atividade complexa, sem dúvida. E aí chegamos à nossa segunda per-gunta: quem seria capaz de exercê-la? Corro o risco de beirar a tautologia, masvamos lá: “alguém que entenda de tradução”. Alguém que conheça as duaslínguas! Mas não só: alguém que conheça caminhos e atalhos que levam deuma à outra. Mas não só: alguém que conheça a obra original, seu autor. Masnão só... alguém que conheça estilística... E assim por diante. Não é fácil.

O que teríamos? Um crítico tradutor? Um tradutor crítico? É precisoentão ser tradutor para exercer essa crítica? Não acredito. Mas é preciso conhe-cer tradução tanto quanto o tradutor ou mais que ele. Um crítico de traduçãoque não conheça todas as implicações da atividade fará, provavelmente, umadas seguintes coisas: ou se aventura num terreno desconhecido, com o risco detropeçar, ou se limita a pescar erros. Às vezes tenho a impressão de que, pormedo de arriscar-se na aventura e levar um tombo, os jornalistas omitem co-mentários sobre a tradução quando nela não encontram defeitos óbvios, e fa-zem de conta que estão analisando a obra original. É a clássica situação que ostradutores costumam comentar com as seguintes palavras: “se não falou mal éporque está bom”. Quando os erros são óbvios, ninguém se omite. Questão demá-fé? Não. Questão de carência. Carência de profissionais especializados nes-se campo. Mas como esperar especialização na crítica de tradução se em nossopaís se considera dispensável que alguém se especialize na própria tradução?

Retomando a pergunta que fiz há pouco: é preciso ser tradutor paraexercer essa crítica? Respondi: “não acredito”. Acrescento: acho até difícil. Otradutor profissional não se sente à vontade para exercer esse tipo de críticaque, de qualquer modo, poderá incidir na necessidade de apontar eventuaiserros. Em geral, o tradutor profissional se limita a comentar a obra do colega

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quando ela merece elogios. Mas esse não seria um verdadeiro trabalho de críti-ca. De crítica esmiuçadora. De crítica da crítica, como dizia no início. Ora,existe um outro aspecto. A crítica da crítica, mencionada acima, poderá trazerà tona uma crítica implícita do tradutor, uma sua interpretação que não seenquadre exatamente nas concepções que o autor da crítica da tradução temda crítica do texto. Que fazer então? Todos sabemos que há “linhas”, “tendên-cias”, “posicionamentos”. Que comportamento adotar quando se acha queuma tradução “correta” não é necessariamente a “melhor” tradução? Como seeximir da espinafração? E aí entramos no terreno da ética, se é que alguma veznão estivemos nele.

E por falar em ética, retomo uma de minhas frases acima: muitas vezesos jornalistas fazem de conta que estão analisando a obra original, quando naverdade estão analisando uma tradução. Contradição? Não, de jeito nenhum!Cegueira? Também não, pois, afinal, o tradutor não é invisível? Segundo alógica vigente, o tradutor é e deve ser sempre invisível, a menos que a suagrande visibilidade na cena cultural do país impossibilite deixar de enxergá-lo.E aí, é infalível o elogio.

Por outro lado, não é incomum a confusão entre visibilidade textual(conceito técnico) e visibilidade social (coisa do senso comum). Quem tiver,para uma crítica de tradução, os pré-requisitos que expus acima, nunca deixaráde enxergar o tradutor nas entrelinhas do autor, sempre saberá que o tradutoré textualmente visível, ainda que ele mesmo se acredite e se queira escondido.Quem não tiver esses pré-requisitos só detectará a visibilidade social, não sairádo senso comum e só terá coragem de elogiar figurões, mesmo porque criticá-los (em todos os sentidos) é incômodo, espinhoso, pode expor à pena do cilício(com “c” mesmo).

Mas começa a chegar a hora de terminar. E estamos apenas começando.Pela primeira vez presencio um evento como este, em que os tradutores, sem-pre expostos à crítica, se propõem analisar essa mesma crítica. Escolhi paraterminar um trecho que me caiu nas mãos esta semana, por feliz acaso. Trata-se da resenha que Luís Antônio Giron fez, para a revista Época, da tradução deOs Demônios de Dostoievski, de autoria de Paulo Bezerra. Dizendo que essetexto recebeu a primeira tradução diretamente do russo, 133 anos depois desua criação, Giron escreve as seguintes palavras lapidares: “O ESTILO DOTRADUTOR pode soar deselegante aos ouvidos cevados no racionalismo dastraduções a partir do francês [...]”. E termina: “o tom brutalista de Bezerracalhou à história, borbulhante de zombarias”. Eis aí um progresso. Detecta-seum “estilo do tradutor”. Dá-se a ele um qualificativo: “brutalista”. Isso é reco-

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nhecer que o autor do texto português é Paulo Bezerra, que ele fez uma análisedo estilo de Dostoievski, que considerou o texto “brutalista”, que a ele procu-rou adaptar-se e que o fez com felicidade. Sem dúvida, um progresso que nãodeve estar dissociado da “borbulhante” atividade observada nos últimos tem-pos em torno da tradução, num momento em que estão sendo revistos concei-tos fundamentais da atividade, tais como autoria, crítica e invisibilidade. Issoainda vai dar samba.

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1 Este texto foi lido na PUC-Rio em 5 de outubro de 2004, em uma mesa-redonda sobre a crítica detraduções realizada por ocasião do lançamento do periódico Tradução em Revista.2 Pergunta: “Como você analisa o papel da imprensa no trabalho de crítica da tradução? Aliás, épossível haver crítica de tradução? Por quem ela seria feita?”

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Referências bibliográficas

BENEDETTI, Ivone Castilho & SOBRAL, Adail (2003) Conversas com tra-dutores. São Paulo: Parábola.

ECO, Umberto (2000) Os limites da interpretação. Trad. de Pérola de Carva-lho. São Paulo: Perspectiva.

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TRADUTTORE, TRADITORE: AS TRADUÇÕESBRASILEIRAS DOS ROMANCES-FOLHETINS NA

IMPRENSA CARIOCA DO SÉCULO XIX1

Pina Coco

Na Corte do Rio de Janeiro do século dezenove, cintilante na imagina-ção provinciana, altamente modesta para padrões europeus, morosos paquetesse encarregam de trazer as novidades literárias estrangeiras, sobretudo as euro-péias e, mais particularmente, as francesas. Uma vista d’olhos na lista da Livra-ria Garnier, em 1845, conduz-nos de surpresa em surpresa. A primeira, ostítulos clássicos: Numa Pompílio, Viagens de Gulliver, Elogio de Marco Aurélio,Don Quixote, Os Luzíadas, La Rochefoucauld, Fenelon, Paulo e Virgínia — alémde uma expurgada versão que preserva cultura e pudor, O Bouffon das meninas.Se considerarmos que, a essa data, Stendhal já publicou O vermelho e o negro,Balzac já encetou a Comédia humana e Hugo é um poeta consagrado, teremosuma idéia da magra província e das dificuldades de comunicação e circulaçãocom que se deparam os leitores cariocas.

Mas a lista, publicada n’O Mercantil, ainda nos dá outros títulos: Filho deminha mulher (três vol.), Dote de Suzaninha (dois vol.), Palácio d’Alberto (doisvol.), Aventuras de Pedrilho (dois vol.), Raymundo d’Aguiar (dois vol.), O solitário(dois vol.), A nobre veneziana, Bandoleiro dos Apeninos e outros mais, hoje com-pletamente desconhecidos para nós, todos sem indicação de autor. Que livrossão esses? De onde vieram, para onde foram? Quem foram seus leitores?

De cerca de 60 mil habitantes, quando da chegada de D. João VI, em1808, o Rio de Janeiro passa, na metade do século, a cerca de 200 mil, paraatingir, em 1880, 400 mil — crescimento considerável de uma sociedade ain-da basicamente rural e escravocrata, nação a se formar, já imersa na perenecontradição de ter que estar a par e passo com o mundo ocidental civilizadosem possuir, no entanto, substrato histórico nem desenvolvimento: contradi-ção do próprio continente, preguiçosas províncias a imitar Paris...

A imprensa, marca essencial da modernidade, inaugura-se, como se sabe,com a vinda da Corte portuguesa, quebrando sua prudente proibição duranteo governo colonial. A 10 de setembro de 1808, quatro meses após a criação daImprensa Régia, sai o primeiro número da Gazeta do Rio de Janeiro, que será

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publicada às terças, quintas e sábados, uma vez submetida à censura monárquica.Em 1827 nasce o Jornal do Comércio, o mais lido, com 400 assinaturas. Essenúmero nos dá uma certa idéia da população leitora, certamente reduzida, ebasicamente a mesma que tem acesso aos livros. Em 1832, sob a regência deFeijó, surgem os primeiros jornais ilustrados, com caricaturas políticas: OMartelo e A Cegarrega. Data de 1839 O Correio das Modas, jornal femininoilustrado com gravuras de moda parisienses.

Jornais são fundados e desaparecem; poucos resistem a mais de 10 anos,ou mesmo 5; por vezes, sua duração restringe-se a meses. Na base, já o proble-ma financeiro, atrelado à honestidade de redatores e assinantes:

A desconfiança que existe em todos os homens sensatos contra estas publi-cações é fundada na falta de cumprimento de palavra de seus redatores, quejulgam que de pequenos jornais poderão retirar seus subsídios. A falta tam-bém inqualificável de senhores que aceitam de bom grado a assinatura, po-rém se recusam a pagar, é a causa da desaparição repentina de jornais literári-os. (Editorial do Archivo Literário, no 1, 08/08/1863)

Em novembro do mesmo ano, o Archivo suspende “mais de 100 assina-turas” por falta de pagamento, que passa a ter cobrança adiantada, prudenteprática já adotada por outros. A desconfiança reina: “Qualquer um é redator/assinante e dinheiro/ eis aí todo o valor/ s’uns usam lunetas,/ outros tem per-nas cambetas” (Archivo Literário, no 11, nov. 1863). Gondim da Fonseca lista,em sua Bibliografia do jornalismo carioca, 1295 títulos de jornais e revistas —cifra que reflete a extrema mobilidade de títulos. Na verdade, ao consultar osAnais da Biblioteca Nacional tem-se a impressão de que qualquer grupo demais de três pessoas, unidas em torno de um partido, de uma idéia ou de umideal tem, como primeiro reflexo, fundar um jornal.

Vendido por assinatura — quinzenal, anual, semanal ou trimestral —ainda que mais barato que o livro, o jornal será consumido por uma elite. Nafalta de dados, pode-se imaginar uma pequena ampliação do número de leito-res, bem como a inclusão de novos segmentos — o público feminino, as crian-ças e os analfabetos — graças a uma novidade francesa, rapidamente assimila-da entre nós: o folhetim. Explicando: desde que, em 1836, Emile Girardinteve a brilhante idéia de lançar um jornal diário — La Presse — onde o rodapé,antes ocupado pelo folhetim-variedades, passa a exibir um romance seriado, osucesso fez com que, dez anos depois, praticamente todos os jornais parisiensesseguissem a receita, que, por sua vez, rapidamente chega ao Brasil.

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As mulheres têm a palavra final na escolha do jornal a assinar, e suasrazões são claras: “As damas tomam por tarifa de mérito jornalístico os folhe-tins e as notícias diversas... As raparigas decoram os romances... logo, paraessas, um bom periódico é o que tem anúncios, folhetins e notícias diversas” (ASemana, 1856). Leituras coletivas em serões reúnem a família e os agregadosno mesmo fascínio, a ouvir aventuras e desventuras de inocentes vítimas àsvoltas com empedernidos vilões, como bem aponta José de Alencar, recordan-do sua infância. Por fim, se o século não popularizou o jornal diário e de vendaavulsa, transeuntes tomam carona nos jornais afixados à porta das tipografias:“No entanto há muita gente que vem aqui ler de graça A Semana. Ora, euaprecio muito o interesse que esses senhores mostram pelo meu jornal; mas,palavra de honra, apreciaria muito mais se fossem todos assinantes” ( Legendade caricatura em A Semana Ilustrada, no 5).

O jornal brasileiro do século dezenove distancia-se muito do modeloatual, basicamente noticioso. Raros são os jornais cariocas que não contêmficção, poemas, curiosidades científicas. A comunicação com o exterior é difí-cil e as notícias circulam com mais eficiência no boca-a-boca da cidade. Opróprio conceito de notícia restringe-se, o mais das vezes, aos miúdos faitsdivers que sacodem a modorra provinciana: escravos fugidos, pequenos anún-cios, crônicas teatrais perpassadas por intrigas de bastidores envolvendo, inva-riavelmente, as divas italianas e francesas de passagem, reclamos das condiçõesde higiene da cidade...Vez por outra, uma atrasada novidade do “mundo láfora”. O que realmente movimenta nossos periódicos é a política, apaixonada,polêmica, com intensa participação de redatores e leitores.

No entanto, todos coincidem, no espaço cedido à literatura: traduções,romances nacionais, contos, sonetos, provérbios e aforismos. Nesse sentido,todas as publicações se confundem e nos confundem: nada mais enigmáticopara um leitor do início deste milênio que situar o conteúdo de um jornal ourevista do século dezenove, a partir da leitura de títulos fornecida pelos Anaisda Biblioteca Nacional. Beija-flor, A Marmota na Corte, Iris, O Simplício reme-tem a códigos político-sociais que se perderam. Os subtítulos pouco auxíliotrazem, e seu ecletismo nos deixa perplexos — ao acaso, tomemos o Iris, que seanuncia como “periódico de religião, belas-artes, ciências, letras, história, poe-sia, romances, notícias e variedades.”

Explicitamente ou não, 90% dentre os jornais dizem-se “literários”, dandorazão aos que nele vêem o sucedâneo e concorrente do livro. Mas, de que livro?Que literatura é essa, tão a gosto do público, que nenhum periódico se arriscaa dispensar?

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Apesar da produção nacional publicada em forma de folhetim, por capí-tulos — desde Memórias de um sargento de milícias — e passando por textos demaior ou menor extensão, nitidamente escritos para o jornal, com improvávelpublicação posterior em brochura, há um índice elevado e constante de tradu-ções de folhetins, em sua maioria, franceses. Chegam às páginas dos periódicoscom surpreendente rapidez: Os três mosqueteiros aparece no mesmo ano de seulançamento; apenas dois anos separam a tradução de Os mistérios de Paris desua publicação original.

A ficção não seriada traduzida vem, o mais das vezes, representada porcontos ou fragmentos de textos maiores: muito século XVIII; os primeirosromânticos franceses (Lamartine, Chateaubriand); românticos alemães, sobre-tudo no gênero fantástico (Hoffmann: Novo Correio das Modas, 1852); o ro-mance russo (Gogol, Puchkin: Museu Pitoresco, Histórico e Literário, 1848);parcos ingleses, exceção feita ao folhetim de sir Francis Trolopp, Os mistérios deLondres, n’O Mercantil,1845, com os títulos dos capítulos no original inglês.

Quem traduz? Nem sempre é possível saber, pois em geral vem apenas aindicação “traduzido do francês”; por vezes, iniciais assinalam uma possívelautoria. Delso Renault, em seu O Rio antigo nos anúncios de jornal (1969),mapeia a forte influência francesa na Corte, desde a queda de Napoleão, em1815, que para cá impele republicanos e bonapartistas fugidos da Restauraçãoque se inicia na França:

muitos, premidos por questões políticas; outros, em busca de aventura e for-tuna. É um traço constante a associação que os professores de línguas fazemcom outras atividades: com o ensino de música, de canto, da dança, ou atradução de quaisquer papéis escritos nas ditas três línguas de umas e outras.

Tratava-se, no caso, de um professor das línguas “inglesa, francesa e es-panhola” que, na rua Mãe dos Homens (atual rua da Alfândega), se entrega àtarefa de tradução. A propósito, “o tradutor jurado da praça e intérprete danação é nomeado pelo Regente, e o ofício não vence ordenado: o funcionáriorecebe das partes 1$200 por meia folha de tradução feita”.

Não encontramos nenhuma referência quanto ao pagamento da traduçãoliterária. É de se supor que os maiores jornais, mais sólidos financeiramente,contratassem seus tradutores, mantendo assim seus leitores a par das novida-des parisienses: O Mercantil e o Jornal do Comércio, por exemplo, publicamSue e Dumas em folhetim, anunciando a venda dos volumes, uma vez termi-nada a publicação. A venda também podia ser por etapas, à medida da publi-cação semanal, como é proposto para A guerra das mulheres, de Dumas:

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As bem conhecidas obras deste autor poupam-nos quaisquer elogios quequiséssemos fazer desse interessante romance, uma de suas melhores pro-duções, e cuja tradução principia a ser dada à luz em folhetos semanais de56 páginas cada um, nítida impressão em bom papel. Três desses folhetosformarão um volume, e a obra consta de quatro. Vendem-se em casa dossenhores A. de F. Guimarães, rua do Sabão, no 26; Agra e Cia. rua da Qui-tanda, no 70; Teixeira e Cia., rua dos Ourives, no 21 e Paula Brito, praça daConstituição, no 64; 400 rs. cada folheto. (14/03/1846 )

Note-se o emprego do termo “folheto” para designar cada parte publicada,que por sua vez compreende vários capítulos. Não é outra a função tipográficado rodapé, senão a de permitir a formação caseira do livro, costurando-se aspartes: biblioteca dos pobres... Aos afortunados, oferece-se a edição encader-nada, mas sempre após a publicação seriada, o que assegura o ineditismo dotexto no jornal.

Traduções são oferecidas: o mesmo O Mercantil, a propósito de Martim, oenjeitado ou Memórias de um criado grave, de Eugène Sue, informa que “Luís G.S.de Bivar deu começo à tradução deste interessante romance, e obriga-se a concluí-la. Quem quiser entrar em transação a respeito, dirija-se...” (31/ 04/1847)

Prudentes, os tradutores parecem produzir na medida em que têm pu-blicação (e pagamento) assegurados. Assim, o Archivo Literário explica a seusleitores que a tradução caminhará semanalmente com o folhetim (20/09/1863).

Se é difícil manter um jornal, o que dirá pagar regularmente traduçõesque arriscavam a se estender por meses a fio... O que sem dúvida explica apéssima qualidade de algumas, bem como bruscas interrupções de publicação,sem aviso prévio. Por vezes, uma satisfação é dada aos ansiosos leitores: “Umincidente que não podemos remediar prontamente inutilizou os originais dosegundo volume...”

Ou não: interrompe-se a publicação de A dama das camélias, de DumasFilho, n’O Jornal das Senhoras de 17 de julho de 1853, logo substituída por Aconfissão de um suicida, com o subtítulo “romance” e sem maiores indicações.

Apesar dos percalços, traduções são estimuladas: O Correio das Modas,em seu número 26, promete El verdugo, “traduzido de H. de Balzac”, com aseguinte nota:

Temos a satisfação de apresentar às nossas leitoras um lindo romance, tradu-zido do francês por uma senhora. É com gáudio que convidamos as suascontemporâneas à imitação de seu proceder, enriquecendo as páginas do obe-diente jornalzinho com uma produção que necessariamente há de agradar.

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Traduttore, traditore... parece ser um consenso geral destinarem-se osromances às “amáveis leitoras”, as mesmas cujos olhos negros percorrem, pal-pitantes, os contos de Machado de Assis; para preservar-lhes a pureza, tudo éautorizado:

Encetamos hoje a publicação do romance do sr. Dumas Filho, intitulado“A dama das camélias”. Por vezes trepidamos em dar publicidade a esteromance na língua vernácula, porque, sendo obra escrita dissolutamente,nos pareceu que sua versão transgrediria os preceitos que nos temos impos-to na escolha dos artigos que saem a lume neste jornal, mas, tendo a pessoaque nos ofereceu a presente versão feito habilmente alguns cortes e supres-sões nele, nos resolvemos a admiti-lo assim nas colunas do Jornal das Se-nhoras. Concluindo, agradecemos ao tradutor incógnito o valioso presenteque nos fez, e recomendamos a todos a leitura desta história verdadeira econtemporânea cuja versão, se não é servil, se não traduz palavra por pala-vra, dificilmente encontrará no original uma idéia, um pensamento, que noportuguês não tenha a frase equivalente. (Jornal das Senhoras, 03/07/1853)

Terão os “cortes e supressões” sido tímidos em demasia, o que explicariaa súbita interrupção acima aludida? Quanto às razões do anonimato do tradu-tor, bem como o real significado do “presente” ao jornal, só podemos avançarespeculações. Ressalve-se ser O Jornal das Senhoras um dos mais sérios e bemcuidados — o que não é regra — com um corpo editorial todo feminino edotado de surpreendente coragem de opiniões, o que transparece na observa-ção sobre a diferença que opõe uma “tradução servil”, ao pé da letra, à quepreserva a fidelidade ao espírito do original. O mais provável a justificar “cor-tes e supressões”, assim como a interrupção sem explicações, terá sido a reaçãopuritana do público leitor (suspeitamos, masculino, que já acusara, em carta,as redatoras de “não serem mulheres”, pois “escrevem como homens”...)

Nem sempre a censura é moral: a tradução, sem hesitar, corrige o ori-ginal, como o de A filha do general, “tradução do inglês por M. de C.”, noCorreio das Modas, n.24, 1839: “Lemos esta novela em uma famosa revista, epor ser muito bonita a traduzimos; todavia cortamos alguns pormenoresdesnecessários.”

Mas há tradutores que resistem à tentação do corte, seja ele moral ouliterário: é o caso de M. E. C. Menezes, que traduz, para o mesmo Correiodas Modas, Um semblante rosado e um semblante enrugado, de Anaïs Segalas,em 1839: “O seguinte romance poderia ser mais breve: porém pena foracortá-lo, porque a magia de seu estilo é admirável. Grande moralidade de

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seu conteúdo se depreende, e as nossas amáveis leitoras se admirarão daperversidade de uma inveja.”

Com o sucesso assegurado dos grandes folhetins franceses, O Mercantilnão hesita em traduzir uma verdadeira “reportagem” sobre Eugène Sue, já umparatexto, como hoje os das revistas especializadas em telenovelas, com dadosbiográficos, gostos pessoais, descrição de sua casa e ambiente de trabalho (n.12,12/01/1846): “Julgamos que não desagradará a nossos leitores o seguinte arti-go, extraído do Courier de l’Europe, por contar-se nele alguns pormenoressobre a vida do ilustre autor de O judeu errante.”

A sofreguidão pelo “último Dumas” pode atingir níveis inesperados, aponto de surgir uma continuação apócrifa de um de seus maiores sucessos,com vendagem garantida. A história é saborosa e merece ser citada. O Jornal doComércio publicara O conde de Monte-Cristo, de Dumas e anuncia, a seguir, suacontinuação, A mão do defunto. Um brasileiro de passagem por Paris resolvemostrar ao romancista como é popular no Brasil. O resultado foi uma carta,que o Jornal do Comércio, com fair play (ou muito provavelmente, obrigadopelos editores do autor) publica na íntegra, original e tradução:

Monsieur,J’apprends qu’on publie à Rio, c’est à dire dans une des villes de l’Amériquedu Sud où je tines le plus à être connu, à cause de la bienveillance que m’onttoujours temoigné les lecteurs que j’ai dans cette belle et poétique ville, unroman que l’on fait passer pour être de moi et que l’on annonce comme lasuite de Monte-Christo.Je n’ai jamais fait et, quoique bien souvent sollicité de le faire, je ne ferai proba-blement jamais le suite de ce livre, etc... ( in Gondim da Fonseca, op. cit.)

Tamanho é o sucesso de autores e personagens dos romances-folhetinsentre nós, que cronistas escandalizados constatam toda uma cidade hipnotiza-da, a girar em torno de um dos mais famosos personagens criados e a esquecera língua pátria, transformados em parisienses:

Rocambole! Rocambole! Rocambole!Tal é a palavra por toda a parte, e, pela maneira que nos persegue, já vaicheirando à “amolação”. Nos botequins, pelas ruas, nos hotéis, tudo é“Rocambole”.Daqui a dois dias haveremos de ver um “dandy” entrar em um “restaurant”,sentar-se, segundo as leis da etiqueta, em uma cadeira em frente de umamesa, torcer o bigode e pedir ao “garçon” “filet” com “petit pois auRocambole”, “mouton au Rocambole”, “du veau sauce tomate au

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Rocambole” e pedir enfim em francês todos os pratos a Rocambole! Ba-nhos, pomadas, sabonetes, charutos, tudo há de ter o rótulo da moda. De-cididamente, o senhor Ponson du Terrail vai à posteridade!O “Jardim de Flora”, compreendendo a época, quis aguçar a curiosidade donosso público, levando à cena as aventuras do tal senhor da moda.“Rocambole” instalou-se em seus cartazes em letras garrafais, e parece, ajulgar pela estréia, que não sairá de lá tão cedo! Mas, o que o tal jardim temaguçado mais, não é por certo a curiosidade do público que o freqüenta: é acuriosidade das filhas de família que lêem todos os dias o folhetim do “Jor-nal do Comércio”, cada qual mais doida para chegar ao fim da história. E acuriosidade de uma mulher é como uma mariposa ao redor da luz: nãodescansa enquanto não se satisfaz.Rocambole, portanto, já vai se tornando em todos os sentidos o terror dospais de família. (Bazar Volante, no 22, 17/ 02/ 1867).

Paris ainda é o centro cultural da Europa, lançador das modas, e o chi-que definitivo é parisiense. O jornal, veículo do momento, permite à distanteprovíncia viver o burburinho francês, e em 1867 suspiram por Rocambole,unificadas, moçoilas parisienses e cariocas... Embora desconheça a origem dodoce que leva seu nome, arrisco-me a aventar que date dessa voga, até por serum pão-de-ló enrolado, com recheio doce, como são enroladas as aventuras dopersonagem e recheadas de lances “rocambolescos”.

Os jornais cariocas do século XIX, no acervo da Biblioteca Nacional,ainda foram pouco explorados, considerando a riqueza que contêm: haveriamuito a dizer sobre traduções, e uma pesquisa voltada exclusivamente para otema — o que não foi meu intento — certamente traria à tona bem mais queminhas poucas observações.

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1 Texto apresentado no painel “A Literatura traduzida no Brasil do século XIX”, que integrou asatividades do VII Encontro Nacional de Tradutores e I Encontro Internacional de Tradutores, reali-zado na USP em setembro de 1998.

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Referências bibliográficas

FONSECA, Gondim (1941) Biografia do jornalismo carioca. Rio de Janeiro:Quaresma Editora.

RENAULT, Delso (1969) O Rio antigo nos anúncios de jornais. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora.

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O USO DE CORPORA PARA O ESTUDO DA TRADUÇÃO:OBJETIVOS E PRESSUPOSTOS

Carmen Dayrell

1 – IntroduçãoUm corpus é geralmente definido como uma coleção de textos selecio-

nados e agrupados de acordo com critérios claramente definidos e especifica-dos (Atkins et al., 1992; Baker, 1995; Eagles, 1996; Kenny, 2001:22). Taiscritérios são estabelecidos de acordo com os objetivos e finalidades para osquais o corpus é compilado. Na lingüística moderna, é natural considerar queesses textos estejam em formato eletrônico, podendo ser analisados de manei-ras diversas, automática ou semi-automaticamente (Baker, 1995; Kenny,2001:22). Baker (1995) esclarece ainda que um corpus pode conter tanto lin-guagem escrita quanto falada, além de oferecer a possibilidade de inclusão detextos das mais diversas fontes, como por exemplo, de autores ou tópicos dife-rentes.

Corpora representam, portanto, a disponibilidade de um grande volumede dados empíricos, e a incorporação de ferramentas computacionais para aná-lise desses textos revolucionou o estudo da linguagem. Assim sendo, a Lingüís-tica de Corpus, ramo da Lingüística que utiliza corpora para o estudo da lingua-gem, abriu novas perspectivas e a possibilidade de explorar e investigar, emgrande escala, regularidades e padrões inerentes à linguagem. Esta é, no entan-to, uma área extremamente vasta, e uma discussão detalhada sobre o assuntovai além dos objetivos deste artigo. Focalizamos aqui a utilização de ferramen-tas e metodologias da Lingüística de Corpus especificamente para o estudo datradução. O principal objetivo é, portanto, discutir a importância, benefícios eaplicações teóricas e pedagógicas do uso de corpora nos Estudos de Tradução,bem como tratar questões importantes referentes à compilação de corpora e àexploração deste valioso potencial disponível para os pesquisadores e teóricosda tradução. Mais especificamente, este artigo visa a abordar os objetivos epropostas da incipiente sub-disciplina Estudos de Tradução com base emCorpora.

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2 – O nascimento da disciplinaA incorporação de ferramentas e metodologias da Lingüística de Corpus

para o estudo da tradução iniciou-se nas áreas da disciplina que utilizam recur-sos computacionais, tais como a terminologia e a tradução automática. Comoexplica Baker (1995), o uso de corpora teve um impacto favorável no campo daterminologia, onde termos deixaram de ser extraídos de listas pré-estabelecidase passaram a ser obtidos a partir de textos autênticos. No campo da traduçãoautomática, Baker (1995) destaca o uso de dados empíricos como ponto-cha-ve para o aprimoramento dos sistemas de tradução; corpora computadorizadossão atualmente usados por lingüistas na elaboração e/ou reformulação de re-gras lingüísticas e também pelos sistemas de tradução como uma fonte deconhecimento direta.

As metodologias com base em corpora também encontraram terrenofértil no ramo pedagógico da disciplina Estudos da Tradução, como ferramen-ta poderosa para auxiliar no treinamento de tradutores e na prática tradutória.Como destaca Olohan (2004:176), além de extremamente úteis na extraçãode terminologia, corpora eletrônicos podem ser usados para identificar estraté-gias e soluções adotadas por tradutores profissionais, assim como para avaliar aestrutura textual e discursiva, e ainda para examinar as convenções relaciona-das ao tipo de texto ou gênero. Ademais, corpora podem também ser usadospara investigar o estilo do autor, ou seja, identificar os artifícios literários ecaracterísticas lexicais, gramaticais e estilísticas que sejam recorrentes e mere-çam ser tratados como uma estratégia deliberada por parte do autor (ibidem,p.180).

No entanto, um impacto ainda mais significativo da utilização de corporacomputadorizados nos Estudos da Tradução deu-se a partir da sugestão origi-nal e inovadora da teórica Mona Baker (1993, 1995 e 1996) de utilização dasmetodologias e ferramentas da Lingüística de Corpus para investigar o fenôme-no da tradução como um evento comunicativo per se, “moldado pelos seuspróprios objetivos, pressões e contexto de produção” (Baker, 1996:175, tradu-ção minha). Com a Lingüística de Corpus, Baker (1993) explica, pesquisadorese teóricos de tradução teriam em mãos os recursos necessários para explorar epesquisar a natureza e as características específicas dos textos traduzidos, per-mitindo assim a redefinição dos principais objetivos, anseios e âmbito deabrangência dos estudos tradutórios. A influência do uso de corpora nos Estu-dos da Tradução como uma área acadêmica de pesquisa é bem ilustrada naafirmação de Baker (1993:235):

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Grandes corpora oferecem aos teóricos de tradução uma oportunidade úni-ca para observar seu objeto de estudo e explorar o que o faz diferente deoutros objetos de estudo, tais como a linguagem em geral ou mesmo qual-quer outra forma de interação cultural. Eles possibilitam explorar também,em uma escala muito maior do que já foi possível até então, os princípiosque governam o comportamento tradutório e as limitações sob os quais eleopera. Aí sim estão os objetivos de qualquer investigação teórica: definir eexplicar o seu objeto de estudo. (Tradução minha).

Para Baker (1993 e 1996), essa nova abordagem reflete o desenvolvi-mento de paradigmas nos Estudos da Tradução que prepararam o terreno econtribuíram para uma mudança fundamental no principal foco da disciplina,dos textos-fonte para os textos traduzidos, dando uma atenção especial ao sis-tema e à cultura de chegada. Estas novas abordagens começaram a questionara supremacia do texto de origem sobre o texto de chegada, além de reavaliarema noção de equivalência até então vigente, segundo a qual “traduções deveriamprocurar ser o mais equivalente possível aos originais, equivalência esta sendoentendida basicamente em termos de categorias semânticas ou formais” (Baker,1993:235-6, tradução minha).

Nesse sentido, é importante ressaltar a contribuição significativa dos Es-tudos Descritivos da Tradução (DTS), em particular os trabalhos de GideonToury (1995), ao sugerirem a mudança de uma perspectiva prescritiva para umaorientação descritiva. Como explica Kenny (2001:49), o principal objetivo dosEstudos Descritivos da Tradução é descrever as “traduções como elas realmenteocorrem, e buscar explicar as características observadas nas traduções em relaçãoaos contextos literários, culturais e históricos nos quais elas são produzidas” (tra-dução minha), contrastando assim com abordagens anteriores cuja principal pre-ocupação era determinar o que uma tradução ideal deveria procurar alcançar.Dentro desta nova perspectiva, o foco de atenção passa a ser direcionado para acultura de chegada, reservando-se uma ênfase especial aos dados empíricos.

Assim sendo, a Lingüística de Corpus e os Estudos da Tradução, consi-derando-se a perspectiva dos DTS, compartilham interesses comuns. Comoexplica Olohan (2004:16), ambas disciplinas adotam uma orientação descriti-va em relação ao seu objeto de estudo. Ambas insistem na autenticidade dosdados, valorizando a linguagem realmente utilizada ao invés da intuição. Ambasse concentram em regularidades como normas de comportamento, apoiando-se no pressuposto de que ao identificar o típico, freqüente e regular, podemostambém investigar o atípico e não-usual. Ambas disciplinas visam descrever alinguagem com base em análises quantitativas e qualitativas dos dados.

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No entanto, a Lingüística de Corpus e os Estudos da Tradução tambémrevelam diferenças fundamentais. A primeira e principal diferença refere-se aofoco de interesse de cada uma destas disciplinas. A Lingüística de Corpus estáinteressada no estudo da linguagem em geral e na descrição de suas caracterís-ticas. Os teóricos de tradução, por outro lado, estão interessados em tradução,tanto como processo como produto. O objetivo central dos Estudos da Tradu-ção é portanto entender e explicar o processo tradutório e explorar a naturezados textos traduzidos. Divergências também aparecem em relação à forma comoos textos traduzidos são percebidos por cada disciplina. Tradicionalmente, aLingüística de Corpus sempre mostrou uma tendência a menosprezar a lingua-gem traduzida, considerando-a desviante, distorcida e não representativa dalinguagem. Conseqüentemente, os textos traduzidos são geralmente excluídosdos corpora de referência. A posição de Teubert (1996:247) ilustra bem estavisão negativa atribuída aos textos traduzidos:

Traduções, por melhores e quase perfeitas que sejam (mas raramente são), irãosempre dar uma imagem distorcida da língua que elas representam. Os lingüistasnunca devem confiar em traduções para descrever uma língua. É exatamentepor esta razão que traduções não são incluídas nos corpora de referência. Aoinvés de representar a língua nos quais elas são escritas, as traduções são umespelho da suas respectivas línguas de partida. (Tradução minha).

Uma visão totalmente distinta é compartilhada por teóricos da tradução(dentre outros, Even-Zohar, 1990 [1978]; Toury, 1995; Baker, 1993, 1996,2000 e 2004). Embora reconheçam que a linguagem traduzida seja realmentediferente da linguagem não-traduzida, argumentam e enfatizam que existemdiversas razões e justificativas para tais diferenças. As traduções são produzidasem um contexto diferente, sob pressões diferentes, com limitações diferentes,além de refletirem influências e motivações diferentes. A afirmação de Baker(1996:177) reflete mais claramente o pensamento deste grupo:

Dado que toda linguagem é padronizada e que essa padronização é influencia-da pela finalidade para a qual a linguagem é usada e pelo contexto no qual ela éusada, a padronização dos textos traduzidos tem que ser obrigatoriamente dife-rente daquela dos textos produzidos originalmente em uma língua; a natureza eas pressões do processo tradutório certamente deixam traços na linguagem pro-duzida por tradutores. A tradução é uma atividade lingüística realizada em umcontexto único, distinto de uma produção textual normal, inclusive de textosproduzidos por estudantes de uma língua estrangeira. (Tradução minha).

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Portanto, na perspectiva dos Estudos da Tradução, a tradução é um eventocomunicativo genuíno e as características específicas e próprias dos textos tra-duzidos merecem ser analisadas, exploradas e explicadas. Estas são, portanto,as principais aspirações e objetivos da incipiente subdisciplina Estudos de Tra-dução baseados em Corpora.

3 – Tipos de corpora para o estudo da traduçãoComo mencionado anteriormente, corpora são compilados com base em cri-

térios específicos, estabelecidos de acordo com os objetivos e finalidades de cadaprojeto. No caso dos corpora desenvolvidos para o estudo da tradução, os critériospropostos pela Lingüística de Corpus necessitam ser ajustados para que possam aten-der às necessidades dos teóricos de tradução e permitir a investigação de característi-cas específicas dos textos traduzidos. Por exemplo, uma atenção especial deverá serdada ao critério referente às línguas envolvidas e ao contexto de produção, particular-mente em relação às características dos tradutores, tais como se são profissionais ouaprendizes, se traduzem para a língua materna ou a partir dela, etc. (Baker, 1995).

Esta seção apresenta os tipos de corpora usados nos Estudos da Tradu-ção, enfatizando os benefícios e aplicações destes para os ramos teórico e peda-gógico da disciplina. Vale ressaltar que a terminologia empregada para se refe-rir aos tipos de corpora usados para o estudo da tradução ainda não se encontratotalmente estabelecida; conseqüentemente, diferentes termos têm sido em-pregados por diferentes projetos de pesquisa. Adotamos aqui a terminologiautilizada por proeminentes teóricos da área de tradução (Baker, 1995; Kenny,2001; Olohan, 2004). Três tipos de corpora são discutidos, a saber: (1) corporamultilíngües, (2) corpora paralelos, e (3) corpora comparáveis.

3.1 - Corpora multilíngüesUm corpus multilíngüe é composto por duas ou mais coleções de textos

produzidos originalmente em suas respectivas línguas, ou seja, dois ou maiscorpora monolíngües de línguas diferentes, compilados de acordo com os mes-mos critérios e especificações (Baker, 1995). Como exemplo, Baker (ib.) cita oProjeto de Lexicografia Multilíngüe do Conselho Europeu, cujo objetivo eraidentificar regularidades no contexto textual de itens lexicais equivalentes emcorpora de sete línguas européias: inglês, alemão, sueco, italiano, espanhol,húngaro e servo-croata. Para o inglês, por exemplo, foi utilizado o corpus CobuildBank of English, desenvolvido pela Universidade de Birmingham (Inglaterra).Já para o sueco, o projeto utilizou um corpus de sueco contemporâneo com 20milhões de palavras, compilado pela Universidade de Gotemburgo (Suécia).

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Um exemplo da utilização de um corpus multilíngüe com aplicaçõesdiretamente relacionadas à área de tradução são os estudos contrastivos deBerber-Sardinha (1999 e 2000) sobre padronização lexical no português e noinglês. Apoiando-se nos trabalhos de Stubbs (1995a, 1995b e 1996) sobreperfil e prosódia semânticos1 no inglês, Berber-Sardinha (1999 e 2000) exa-mina esses mesmos aspectos para itens correspondentes do português brasilei-ro, desenvolvendo uma abordagem contrastiva para descrever perfis e prosódiasemânticos do inglês e português. Os resultados mostram semelhanças e dife-renças importantes entre padrões lexicais do inglês e do português, revelandoinconsistências nos atuais dicionários bilíngües. Os dados são extraídos de doisgrandes corpora de referência do inglês e português, o BNC (British NationalCorpus) e o Banco de Português respectivamente. O BNC é um corpus deinglês contemporâneo em linguagens escrita e falada, contendo aproximada-mente 100 milhões de palavras2 . O Banco de Português, compilado pela PUC/São Paulo, é considerado o maior corpus de português brasileiro no momento,com aproximadamente 233 milhões de palavras3 , também incluindo tanto alinguagem escrita quanto a falada (Berber-Sardinha, 2004).

Além de sua contribuição valiosa para a lingüística contrastiva, especial-mente no que se refere à lexicografia bilíngüe, os corpora multilíngües ofere-cem ainda outras aplicações e benefícios para á área de tradução. No campo datradução automática, por exemplo, este tipo de corpus pode ser usado comofonte de conhecimento, contribuindo para um melhor desempenho dos siste-mas computadorizados de tradução. Os corpora multilíngües servem tambémcomo um recurso valioso para o ensino e treinamento de tradutores, por per-mitirem o acesso a características e padrões lingüísticos em seu contexto natu-ral e disponibilizarem evidências empíricas de itens e estruturas equivalentesem idiomas diferentes (Baker, 1995). Como explica Lindquist (1999), estetipo de corpus permite ao tradutor identificar o uso real de um determinadoitem lexical ou colocação da língua de chegada em um contexto específico.Neste sentido, os corpora multilíngües, particularmente aqueles compostos portextos técnicos e especializados, oferecem benefícios práticos para o ensino datradução, já que podem ser usados como uma ferramenta valiosa para ajudartradutores aprendizes a se familiarizar com padrões recorrentes da língua dechegada e para a extração de terminologia (Kenny, 1998).

Embora reconheça a importância dos corpora multilíngües no campopedagógico dos Estudos da Tradução, Baker (1995) questiona a utilidade destetipo de corpus para a elucidação de questões teóricas da disciplina. Para Baker(1995:233), o pressuposto básico de que “existe uma forma natural de expres-

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sar qualquer coisa em qualquer língua, e de que tudo que precisamos é encon-trar a forma natural de expressar isso na língua A e língua B” (tradução mi-nha), não deixa espaço para que os textos traduzidos sejam tratados como umaatividade lingüística independente e distinta, diferente daquela dos textos pro-duzidos originalmente na mesma língua. Assim sendo, os corpora multilíngüesnão oferecem a possibilidade de investigação da natureza dos textos traduzidosou do processo tradutório. A proposta de Baker (1993, 1995 e 1996) é, por-tanto, de uma mudança efetiva do foco dos estudos teóricos de tradução,direcionando-o para o sistema e cultura de chegada e dando ênfase aos textostraduzidos. É neste sentido que os corpora paralelos e comparáveis desempe-nham um papel fundamental para o desenvolvimento da disciplina de Estudosda Tradução.

3.2 - Corpora paralelosBaker (1995:232) propõe o termo corpus paralelo para se referir a dois

conjuntos de textos: um conjunto de textos em uma determinada língua deorigem e um outro conjunto composto por versões traduzidas destes mesmostextos para um outro idioma. Os corpora paralelos são geralmente bilíngües,mas podem também ser multilíngües; ou seja, incluir traduções de um mesmotexto-fonte para diversos idiomas (Kenny, 2001:62; Olohan, 2004:25). Umbom exemplo deste tipo de corpus é o projeto COMPARA4 , que é compostopor um conjunto de textos originalmente escritos em inglês e de suas respecti-vas traduções para o português, e por um outro conjunto de textos original-mente escritos em português e suas respectivas traduções para o inglês(Frankenberg-Garcia e Santos, 2002 e 2003). O COMPARA é portanto umcorpus paralelo bidirecional, ou seja, o português é incluído tanto como línguade origem quanto como língua de chegada. Segundo Frankenberg-Garcia eSantos (ib.), o corpus inclui diversas variantes da língua portuguesa (européia,brasileira, asiática e africana) e também traduções de um mesmo texto-fontepara diferentes variantes do português e do inglês. Além disso, não foram im-postas restrições quanto à data de publicação, ou seja, o corpus possibilita ainclusão de traduções de um mesmo texto-fonte publicadas em épocas dife-rentes. Em 2004, o COMPARA continha textos do gênero de ficção apenas,compreendendo um total de 2 milhões de palavras.

Um dos principais objetivos de um corpus paralelo é possibilitar a iden-tificação de um determinado padrão ou unidade nas línguas de partida e dechegada simultaneamente. Técnicas de alinhamento são utilizadas para queseja possível estabelecer ligações entre os textos de origem e de chegada. Os

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corpora paralelos servem como uma ferramenta preciosa para avaliar o com-portamento traducional de um determinado par de idiomas, além de seremextremamente úteis na investigação do relacionamento entre padrões lexicais esintáticos nas línguas de origem e de chegada, e de ocorrências isoladas de“tradutorês” (Kenny 1998). Como os corpora multilíngües, os corpora parale-los também desempenham uma função importante no treinamento de tradu-tores, no desenvolvimento de sistemas de tradução automática e na lexicogra-fia bilíngüe (Baker, 1995; Kenny, 1998). No entanto, para Baker (1995), amais valiosa contribuição dos corpora paralelos para a disciplina Estudos daTradução é possibilitar a mudança de uma perspectiva prescritiva para umaperspectiva descritiva. Como explica Baker (ib.), os corpora paralelos fornecemevidências empíricas de estratégias e alternativas adotadas por tradutores parasolucionar dificuldades e obstáculos encontrados na prática tradutória. Taisevidências, além de servirem como um valioso recurso pedagógico para o trei-namento de tradutores, podem ser também extremamente úteis na “investiga-ção de normas tradutórias em contextos históricos e sócio-culturais específi-cos” (Baker, 1995:231, tradução minha).

Um bom exemplo de como um corpus paralelo pode ser usado na inves-tigação da influência do processo tradutório no processamento e produção dalinguagem é o estudo de Dorothy Kenny (2001) sobre criatividade lexical emtradução. Tendo como principal objetivo abordar o processo de “normaliza-ção”5 lexical em tradução, o estudo examina a tradução de itens lexicais criati-vos do alemão para o inglês, visando determinar se estes itens foram substitu-ídos por formas mais convencionais na língua de chegada. Para Kenny (2001:31-32), itens lexicais criativos são entendidos como palavras ou colocações não-usuais e atípicas, que revelem criatividade no uso da linguagem. Os dados sãoextraídos de um corpus paralelo bilíngüe, contendo textos experimentais origi-nalmente produzidos em alemão e suas respectivas traduções para o inglês,totalizando aproximadamente um milhão de palavras em cada sub-corpus. Oponto de partida é o texto de origem em alemão, e o primeiro passo é selecio-nar itens ou colocações de acordo com os seguintes critérios: (1) ocorrer ape-nas uma vez no corpus; (2) para os itens ou colocações recorrentes, ter sidousado por apenas um determinado autor (Kenny, 2001:128-129). Aconvencionalidade, ou não, dos itens ou padrões selecionados é avaliada deacordo com a freqüência dos mesmos em um corpus de referência do alemão(Corpus Mannheimer) e com a intuição de falantes nativos de alemão. Uma vezconsiderados criativos, examinaram-se as respectivas traduções desses itenslexicais para o inglês, com o objetivo de avaliar se estes são “normalizados”, isto

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é, se o tradutor traduz um item lexical (ou colocação) criativo do texto deorigem por um item lexical (ou colocação) igualmente criativo da língua dechegada (p.142-188). A criatividade dos itens traduzidos para o inglês é avali-ada com base em um corpus de referência do inglês (BNC). Kenny (2001:187)observa que itens lexicais criativos que ocorreram apenas uma vez no sub-corpus de textos em alemão tendem a ser normalizados em suas respectivastraduções para o inglês. Por outro lado, itens que apesar de recorrentes sãopeculiares a um determinado autor não mostraram uma tendência a ser tradu-zidos por uma forma mais convencional da língua de chegada. A tendência ànormalização tampouco é evidente na tradução das colocações (p.207-208).No entanto, Kenny adverte, no caso dos itens recorrentes mas peculiares a umdeterminado autor, todos os exemplos analisados foram traduzidos por umúnico tradutor (p.187). No caso das colocações, o estudo examina apenas aquelasde um único item lexical (Auge, em alemão, e sua tradução correspondente eminglês, eye), sendo que a análise de outros itens talvez possa gerar resultadosdiferentes (p.207-208). Kenny (2001:210) conclui com a ressalva de que, ape-sar das evidências empíricas de normalização lexical, o estudo também mostraque a normalização não é uma prática automática na tradução de itens lexicaiscriativos do texto de origem. Na realidade, os dados revelam a engenhosidadee criatividade de diversos tradutores.

3.3 - Corpora comparáveisO terceiro tipo de corpus proposto por Baker (1995:234) para o estudo

da tradução é o comparável, que é um corpus monolíngüe composto por doissub-corpora: um sub-corpus de textos traduzidos para uma determinada língua,a partir de uma ou mais línguas-fonte, e um outro de textos não-traduzidos,ou seja, textos originalmente produzidos na língua em questão. Portanto, naconcepção de Baker (ib.), o sub-corpus traduzido consiste em textos produzi-dos por tradutores, e o não-traduzido é composto por textos nessa mesmalíngua, mas não produzidos via tradução. Baker (1995:234) complementa queesses dois sub-corpora “devem cobrir um domínio, variedade de linguagem eperíodo de tempo semelhantes, e ter tamanhos comparáveis” (tradução mi-nha). Em outras palavras, para que seja possível compará-los, é essencial queesses dois sub-corpora tenham sido compilados de acordo com os mesmos cri-térios e especificações, e sejam de tamanho semelhante.

A grande maioria dos estudos de tradução que têm por objetivo comparartextos traduzidos e não traduzidos de uma mesma língua baseia-se no inglês

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(dentre outros, Laviosa-Braithwaite, 1996; Olohan, 2002 e 2003; Mutesayire,2005). Neste caso, a comparação é geralmente feita entre o Corpus de InglêsTraduzido (TEC - Translational English Corpus)6 e um sub-corpus do BNC(British National Corpus). O TEC foi elaborado e compilado pelo Centre forTranslation and Intercultural Studies (CTIS) da Universidade de Manchestere consiste em uma coleção de textos traduzidos para o inglês a partir de diver-sas línguas fonte. Em 2004, o TEC continha aproximadamente 8 milhões depalavras, incluindo traduções das seguintes línguas-fonte: francês, italiano, es-panhol (europeu, sul-americano e centro-americano), português (europeu ebrasileiro), alemão, polonês, galês, húngaro, turco, sérvio, sueco, japonês, rus-so, norueguês, finlandês, árabe, tâmil, tailandês, hebraico e chinês (Olohan,2004:60; Mutesayire, 2005). O corpus é dividido em 4 seções: ficção, biogra-fia, revistas de bordo e artigos de jornais, sendo ficção o gênero predominante,com 80% dos textos. O TEC inclui traduções publicadas a partir de 1983;todos os tradutores são falantes nativos de inglês ou têm o inglês como línguade uso habitual; todos os textos foram incluídos na íntegra (Olohan, ib.;Mutesayire ib.).

Corpora comparáveis estão também disponíveis para o finlandês e para osueco. O Corpus de Finlandês Traduzido (CFT), desenvolvido pela EscolaSavonlinna de Estudos da Tradução (Joensuu, Finlândia), é uma coleção detextos contemporâneos em finlandês traduzido e não-traduzido. O CFT con-tém aproximadamente 9,6 milhões de palavras: 5,8 milhões de palavras emfinlandês traduzido e os restantes 3,8 milhões de palavras em finlandês não-traduzido (Olohan, 2004:60-61). No corpus traduzido estão incluídas tradu-ções para o finlandês de textos-fonte em inglês, russo, alemão, francês, espa-nhol, holandês, norueguês, sueco, húngaro e estoniano. Todos os textos forampublicados entre 1995 e 2000 e, em termos de gênero, o CFT é dividido emquatro seções: ficção, prosa acadêmica, ciência popular e literatura infantil(Olohan, ib.). Já o corpus comparável de sueco, compilado pela Universidadede Gotemburgo (Suécia), é composto por 75 romances publicados em suecono ano de 1976, sendo dividido em duas seções: um sub-corpus de textos escri-tos originalmente em sueco e o outro sub-corpus de textos traduzidos para osueco, a grande maioria traduções do inglês (Kenny, 2001:59).

Um outro exemplo a ser citado é o Corpus Comparável de PortuguêsBrasileiro (CCPB), que é composto por textos em português brasileiro tradu-zido e não-traduzido. Inicialmente elaborado e compilado como parte de umapesquisa de doutorado (Dayrell, 2005), o CCPB é um projeto a ser expandidocom o objetivo de propiciar o desenvolvimento de outros estudos baseados em

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corpora de português brasileiro. O CCPB contém apenas textos literários pu-blicados no Brasil a partir de 1980, sendo que foi dada prioridade às obraspublicadas a partir de 1990. Todos os livros incluídos no corpus foram conside-rados best-sellers no Brasil durante o período analisado, conforme as listas debest-sellers publicadas pela revista Veja entre 1991 e 2001. Ademais, conside-rou-se apenas a literatura adulta, ou seja, o corpus não inclui textos classifica-dos como literatura infantil ou infanto-juvenil. Em termos de gênero, o CCPBcontém textos de ficção e auto-ajuda. A opção por esses dois gêneros deve-seao fato de que estes são os gêneros mais populares no Brasil no período anali-sado (Veja 1996, 2001a e 2001b) e, portanto, os que mais têm probabilidadede oferecer um número razoável de textos traduzidos e não traduzidos. Assimsendo, o CCPB é composto por quatro sub-corpora: ficção traduzida, ficçãonão-traduzida, auto-ajuda traduzida e auto-ajuda não-traduzida. O corpus con-tém um total aproximado de 2 milhões de palavras; cada um dos 4 subcorporacontém aproximadamente meio milhão de palavras. Todos os textos foramincluídos na íntegra e tentou-se, na medida do possível, diversificar a seleçãode textos em termos de autores, tradutores e editoras. Para a seleção de textostraduzidos, além dos critérios mencionados acima, considerou-se também alíngua de origem da tradução, tendo sido selecionadas apenas traduções a par-tir de textos escritos originalmente em inglês. Traduções indiretas – ou seja,aquelas feitas via outra tradução e não a partir do texto fonte original – nãoforam incluídas. Todos os tradutores são falantes nativos do português brasilei-ro, e foi dada prioridade para as traduções cujos textos de origem tambémtenham sido publicados a partir de 1980.

Uma diferença importante entre os corpora paralelos e os compará-veis é que esses últimos não são usados para comparar línguas de partida ede chegada e, portanto, não têm por objetivo identificar normas tradutórias,estratégias adotadas por tradutores nem exemplos de “tradutorês”. Comoesclarece Baker (1995:235), a principal contribuição de um corpus compa-rável é permitir a investigação de características “que sejam restritas aostextos traduzidos ou que ocorram com uma freqüência consideravelmentemais alta ou mais baixa nos textos traduzidos” (tradução minha) que nostextos não traduzidos. Um corpus comparável robusto, composto por umadiversificada gama de autores e tradutores, assim como traduções de diver-sas línguas fonte, possibilita a identificação de características que são espe-cíficas dos textos traduzidos, independentemente da influência da línguade origem ou das preferências estilísticas de tradutores individuais. Comoafirma Baker (1996:178), ao compararem textos traduzidos e não-traduzi-

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dos de uma mesma língua, os pesquisadores de tradução podem finalmen-te “identificar tipos de comportamento lingüístico que são específicos dostextos traduzidos, padrões de comportamento lingüístico que, em outraspalavras, são gerados pelo processo de mediação durante a tradução” (tra-dução minha).

Para ilustrar como os corpora comparáveis podem ser usados na investi-gação das características dos textos traduzidos, vale citar o trabalho pioneiro deLaviosa-Braithwaite (1996), cujo objetivo é investigar o processo de “simpli-ficação”7 em tradução. Os textos traduzidos e não-traduzidos são analisadossob três aspectos: variedade lexical, carga de informação e tamanho de sen-tenças (Laviosa, 2002:59-64). Os dados são extraídos de um corpus compa-rável do inglês, consistindo de uma coleção de textos traduzidos para o in-glês (TEC) e um outro sub-corpus de textos em inglês não-traduzido (extra-ído do BNC). Cada um destes sub-corpora contém aproximadamente ummilhão de palavras e inclui dois gêneros: textos literários (ficção e biografia)e textos jornalísticos (Laviosa, ibidem). A variedade lexical é analisada sobtrês perspectivas: proporção entre palavras de alta e baixa freqüência, pro-porção de headwords (nesse caso, as primeiras 108 palavras mais freqüentesno corpus) e quantidade de lemas. Os resultados mostram que proporçãoentre palavras de alta freqüência e as palavras de baixa freqüência é mais altano sub-corpus traduzido que no sub-corpus não-traduzido; a proporção deheadwords é maior no sub-corpus traduzido, ou seja, o nível de repetição depalavras mais freqüentemente usadas é mais elevado no sub-corpus traduzi-do; e a lista de headwords do sub-corpus traduzido contém um número me-nor de lemas. Estes resultados são interpretados como indicadores de umatendência dos textos traduzidos a apresentar menos variedade lexical que ostextos não traduzidos. A carga de informação é examinada em termos dedensidade lexical, ou seja, a proporção entre itens lexicais e itens gramaticais.Os resultados mostram uma tendência de a densidade lexical ser mais baixanos textos traduzidos que nos textos não traduzidos. Em relação ao tamanhodas sentenças, a média é menor para os textos traduzidos do que para ostextos não traduzidos apenas no gênero jornalístico. Nesse estudo, Laviosa-Braithwaite (1996) observa dados que apontam para uma tendência dos tex-tos traduzidos a apresentar uma linguagem mais simplificada que os textosnão traduzidos. No entanto, Laviosa (2002:63) adverte, dois fatores talvezpossam ter influenciado nos resultados: a análise é baseada em um corpus detamanho limitado e a grande maioria dos textos traduzidos consiste em tra-duções de textos fonte em línguas românicas.

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4 – Considerações finaisNeste artigo, discutimos os principais objetivos e pressupostos da disci-

plina Estudos de Tradução com base em Corpora (ETC), dando ênfase às apli-cações teóricas e pedagógicas do uso de corpora para o estudo da tradução. Asaplicações são ilimitadas e valiosas; porém, em comparação com outras áreasde pesquisa da linguagem, muito ainda está por ser feito. Esperamos, portan-to, que num futuro próximo possamos usufruir do grande potencial dessanova área de pesquisa.

___________________________________________

1 Perfil semântico refere-se “ao teor da colocação, coligação ou prosódia semântica, definido a partirde generalizações a respeito do conteúdo semântico dos itens envolvidos no padrão” (Berber Sardi-nha, 1999). Prosódia semântica refere-se à conotação – positiva, negativa ou neutra – resultante daassociação de itens lexicais. Por exemplo, o verbo ‘causar’ tende a se associar a itens com uma conotaçãonegativa (problemas, danos, morte, mortes, prejuízos, etc.) (ibidem).2 Mais informações sobre o BNC estão disponíveis no site: http://info.ox.ac.uk/bnc (acessado emjulho/2005).3 Mais informações sobre o Banco de Português estão disponíveis no site: http://lael.pucsp.br/corpora/bp/conc/index.html (acessado em julho/2005).4 COMPARA é parte de um projeto para o processamento computacional do português, coordena-do pelo Centro de Recursos Português (Linguateca). Mais informações sobre o COMPARA estãodisponíveis no site: http://www.linguateca.pt/COMPARA/ (acessado em julho/2005).5 O termo normalização foi proposto por Baker (1996:176) para indicar uma “tendência [de tradu-tores] a ajustar-se aos padrões e práticas que são comuns na língua de chegada, chegando até mesmoa exagerá-los” (tradução minha).6 Mais informações sobre o TEC estão disponíveis no site: http://www.llc.manchester.ac.uk/Research/Centres/CentreforTranslationandInterculturalStudies/ (acessado em julho/2005).7 O termo simplificação foi proposto por Baker (1996:176) para indicar “a idéia de que tradutoresinconscientemente simplificam a linguagem, mensagem ou ambas” (tradução minha).

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MEMÓRIA DE TRADUÇÃO: AUXÍLIO OU EMPECILHO?1

Adriana Ceschin Rieche

1. IntroduçãoNos últimos anos, várias ferramentas de auxílio à tradução foram desen-

volvidas e divulgadas como vantajosas. Essas ferramentas são resultado de umanova visão de cooperação entre computadores e tradutores humanos, em opo-sição à idéia da substituição do tradutor por sistemas de tradução automática,muito popular nas décadas de 1950 e 1960.

Diante do papel cada vez mais importante desempenhado pelas ferra-mentas de auxílio à tradução no trabalho de tradutores profissionais, a discus-são das conseqüências de sua utilização assume especial interesse. O presenteestudo concentra-se em apenas uma dessas ferramentas: os sistemas de memó-ria de tradução, que surgiram prometendo ganhos de produtividade, maiorconsistência e economia, uma vez que são bancos de dados que armazenamtraduções para reaproveitamento posterior com base em graus de equivalênciapropostos pelos sistemas, como será explicado mais adiante. Meu objetivo foianalisar os principais fatores que levam a problemas de qualidade nestes siste-mas e apresentar sugestões para melhorar o controle de qualidade realizado,ressaltando a necessidade de manutenção2 e revisão das memórias para querealmente sirvam ao propósito de serem ferramentas e não empecilhos para otradutor. A proposta do trabalho não é apresentar uma tipologia de erros, massugerir critérios para orientar os processos de revisão e manutenção dos siste-mas que talvez possam vir a ser incorporados por empresas e tradutores autô-nomos como mais um recurso para controlar a qualidade das memórias. Aquestão central que norteou o estudo é que a qualidade das memórias utiliza-das em determinado projeto de tradução é fundamental para a qualidade dotexto final traduzido.

O interesse pelo tema surgiu com o uso de dois destes sistemas de me-mória de tradução no meu trabalho como tradutora profissional (TradosTranslator’s Workbench e Wordfast) e a percepção de que, ao lado das vantagensanunciadas pelos fabricantes, esses programas também trazem alguns problemas

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durante o processo tradutório. Em minha experiência de 15 anos como tradu-tora, primeiro como autônoma e depois como sócia de firma de tradução, traba-lho principalmente com textos técnicos e comerciais de grandes empresas in-ternacionais, que a cada dia exigem maior proficiência de seus tradutores emtermos de qualidade, preço e prazo de entrega.

É positiva a utilização de uma ferramenta que realmente auxilie no tra-balho de tradução – aumentando a qualidade final por meio de maior consis-tência terminológica e permitindo ao tradutor não só cobrar preços mais com-petitivos devido ao reaproveitamento de traduções anteriores como atenderaos prazos cada vez mais exíguos dos projetos por causa do aumento de produ-tividade. Os fabricantes anunciam seus produtos como a solução ideal para atradução de grandes volumes de texto, e o tradutor muitas vezes fica perdidodiante das possibilidades oferecidas por ferramentas desse tipo. É inegável queo advento dos sistemas de memória de tradução realmente trouxe inúmerasvantagens quando comparado ao que existia antes: a cada nova versão ou acada nova atualização de um produto era necessário traduzir desde o iníciotodo o material.

Algumas vantagens da utilização dos sistemas de memória de traduçãopropostas pelos fabricantes e desenvolvedores dos programas são: maior con-sistência (tradução igual de trechos repetidos); maior produtividade (devidoao aumento de velocidade); maior controle e padronização de terminologia;criação de banco de dados paralelo revisado; maior economia de custos. Aidéia por trás disso é que se a tradução estiver correta uma vez, ela poderá serreutilizada em vários textos. No entanto, o inverso também é verdadeiro: seum erro passar despercebido, ele será propagado. Esta é uma questão relevante,uma vez que em nome de maior velocidade e consistência, muitas vezes aqualidade acaba sofrendo. Um único erro presente na memória, feito por umúnico tradutor, pode ter repercussão em vários outros arquivos sendo processa-dos por outros tradutores.

Ao discutir essa questão, é preciso considerar duas perspectivas: quandoo tradutor desenvolve sua própria memória e quando o tradutor recebe umamemória criada por vários outros tradutores. No primeiro caso, o controle daqualidade fica realmente mais fácil, uma vez que o próprio tradutor é quem faza revisão e atualização do conteúdo da memória. Evidentemente, isso não sig-nifica necessariamente que a memória estará livre de erros; simplesmente ocontrole é mais fácil. Já quando a memória é desenvolvida por vários traduto-res, o controle se torna mais difícil. Acaba havendo uma certa resistência porparte de alguns profissionais em aceitar as “traduções ruins” feitas por outros

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tradutores em nome da consistência com versões anteriores de produtos. Muitoschegam a reescrever inteiramente as sugestões propostas pela memória, au-mentando o tempo necessário para a conclusão da tarefa e não tirando proveitojustamente do propósito específico para o qual o sistema foi desenvolvido.

Nesse contexto, a revisão e a manutenção da memória exigem especialatenção. São esses, em última instância, os recursos que garantem que a me-mória cumpra sua função. Cada tradutor tem sua própria maneira de fazer arevisão e/ou a manutenção, sem qualquer sistematização. Em muitos casos,inclusive, esse processo simplesmente não existe.

Além disso, cada empresa de tradução tem seu próprio processo paragarantir a qualidade de seus trabalhos, utilizando formulários de controle es-pecíficos, e os fabricantes das ferramentas também sugerem formas de fazer amanutenção do sistema, por meio de comandos ou janelas especiais. No en-tanto, esses métodos parecem não ser suficientes para garantir a qualidade dasmemórias, uma vez que o problema persiste.

Embora possa parecer óbvio falar em qualidade, este não é um conceitosimples. A questão da qualidade é muito discutida em vários meios e sob diferen-tes enfoques, e permeia nossas atividades diárias. Fabricantes, clientes, fornece-dores, usuários, independentemente do setor ou área de atuação, todos queremprodutos (ou serviços) de qualidade. Todos procuram valer-se da tecnologia comoforma de assegurar a qualidade. Isso se reflete nos padrões de certificação daqualidade desenvolvidos internacionalmente para atender à demanda por pro-dutos e serviços adequados. No entanto, é preciso sempre perguntar: qualidadepara quem e sob que perspectiva? Considerando que o julgamento acerca daqualidade de um produto implica um processo de avaliação do mesmo sob de-terminados critérios, esse conceito é aqui analisado à luz de teorias contemporâ-neas sobre avaliação de traduções em geral, tentando investigar que contribui-ções elas podem trazer para a avaliação da qualidade dos sistemas de memória detradução. Essas teorias se desenvolveram sobretudo no meio acadêmico comoforma de avaliar o desempenho de alunos e aprendizes de tradução por meio demedidas idealmente objetivas, que podem ser aplicadas ao cenário profissional.

Considerando que os sistemas de memória de tradução foram desenvol-vidos sobretudo para atender às demandas por ganhos de produtividade e con-sistência terminológica do mercado de localização de software, em função danecessidade de atualização constante e reaproveitamento de versões anteriores deprodutos de software em geral, é este o segmento que mais utiliza essas ferramentase é nesse contexto que foi efetuada a análise de dados a ser apresentada posterior-mente neste trabalho.

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Em linhas gerais, a localização consiste na tradução e adaptação de umsoftware ou de um produto da Web (aqui entendido como um site ou serviçoque pode ser utilizado diretamente via Internet) para o local em que serãoutilizados. Isso inclui o aplicativo de software propriamente dito, com seuscódigos de programação, textos de ajuda e imagens, por exemplo, e toda adocumentação relacionada, como manuais de usuário ou guias de introdução.Até o advento da Internet e da World Wide Web, um projeto típico de locali-zação compreendia a tradução e a engenharia completa do aplicativo de software,seus arquivos de ajuda, um conjunto de manuais impressos, e cartões de refe-rência e registro incluídos na caixa do produto. Muitos projetos de localizaçãoainda seguem esse modelo. Entretanto, com as novas tecnologias de publica-ção e distribuição baseadas na Web, hoje a localização também inclui a tradu-ção e a adaptação de sites inteiros.

As memórias de tradução selecionadas para análise neste trabalho sãoprovenientes de projetos de localização de software e não de sites da Web. Aescolha foi feita unicamente com base na disponibilidade do material e nãopor uma característica específica que diferencie um tipo de texto do outro.Acredito que tanto a metodologia quanto os critérios usados para análise po-dem ser perfeitamente aplicados às memórias criadas a partir da localização desites da Web. Foram selecionados exemplos de diferentes memórias, tanto aque-las de minha própria autoria, desenvolvidas ou utilizadas durante meu traba-lho como tradutora ou revisora em projetos de localização, quanto as criadaspor terceiros e gentilmente cedidas por clientes. O objetivo é mostrar que osproblemas são os mesmos, independentemente do tipo de texto ou do tama-nho da memória, e propor formas de solucioná-los.

É importante ressaltar que o presente estudo não se propõe a compararos diferentes sistemas existentes hoje no mercado, nem indicar o melhor, prin-cipalmente porque essas tecnologias evoluem muito rapidamente e cada tra-dutor tem suas próprias preferências pessoais, que se refletem nas escolhas dasferramentas. Além disso, muitas vezes a ferramenta a ser usada é determinadapelo cliente, o que obriga os tradutores a conhecerem várias delas. Outro as-pecto a ser considerado é que os pontos de vista aqui assumidos são os de umatradutora autônoma que se deparou com o problema e não as de uma empresade localização ou mesmo de um fabricante de ferramentas de memória, osquais certamente teriam abordagens diferentes para o mesmo problema.

Discutir memória de tradução sempre traz à tona questões polêmicasainda sem solução, que tendem a se complicar à medida que o sistema dememória se populariza e passa a ser usado por um maior número de tradutores

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e em variados tipos de texto. Será que as vantagens propostas são de fato van-tagens? É possível confiar inteiramente na sugestão apresentada pelo sistemade memória? Até que ponto a prática de pagamento proporcional ao grau deequivalência proposto pela memória é justa? E quando a equivalência de 100%não é 100%? Como fazer com que a ferramenta seja de fato útil? E comofica a questão ética nos casos em que a memória fornecida pelo cliente estáabaixo do padrão de qualidade satisfatório e prejudica o resultado final dotrabalho? Em que medida o tradutor deve realizar tarefas pelas quais nãoestá sendo pago?

Para tentar responder a essas perguntas e também servir de base paratraçar um perfil de utilização dessas ferramentas por parte dos tradutores bra-sileiros, um questionário foi elaborado e enviado a tradutores autônomos efuncionários de empresas de tradução, bem como a empresas de localização. Oquestionário incluiu, entre outras, perguntas com a finalidade de verificar seeram utilizados sistemas de memória de tradução – em caso afirmativo, aten-dendo a que função, para que tipo de texto, em que setor; se foi exigência docliente; como é feita a manutenção e a revisão; em caso negativo, por que não,e se havia intenção de vir a utilizar um sistema de memória no futuro.

Tendo enfrentado dificuldades para fazer a revisão e a manutenção dasminhas próprias memórias, pude comprovar, a partir dos resultados do questi-onário, que essas dificuldades também são sentidas por diversos tradutores. Éfácil introduzir (e propagar) erros nestes sistemas. Os resultados dos questio-nários mostram que não há um consenso ou um padrão que funcione comoreferência para a revisão ou manutenção das memórias. Muitos tradutores ex-pressaram opiniões semelhantes nesse sentido.

Este é um campo novo e há muito ainda por fazer. Existem poucaspesquisas sobre memória de tradução, e as que existem são principalmente decunho comparativo, como análises de custo-benefício, e tratam de questõesligadas à interface do usuário.

No entanto, alguns estudos de especialistas da indústria serviram debase para as reflexões aqui propostas e abordam, entre outros temas, os seguin-tes: a questão da autoria ou a quem pertence a memória (ao cliente final, àagência de tradução ou ao tradutor?); a prática, por parte de alguns clientes, detarifas diferenciadas, dependendo do grau de equivalência apresentado namemória em relação ao projeto atual; e as possíveis desvantagens da utilizaçãodestes sistemas – indução ao erro, limitações impostas pela segmentação, faltade visão do texto final, necessidade de aprender nova ferramenta e possíveisproblemas de formatação.

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Apesar da variedade de perspectivas, todos os estudos estão preocupadoscom o melhor aproveitamento desses sistemas de memória, de modo a fazeremjus às vantagens anunciadas e esperadas pelos usuários. Nesse sentido, apresen-tam sugestões para quem está pensando em usar essas ferramentas. A questão daqualidade é ressaltada em todos, principalmente porque melhorar a qualidade datradução é um dos argumentos fortes defendidos pelos fabricantes dos sistemas.

Esses estudos, entretanto, apenas indicam possíveis problemas, sem maioraprofundamento. Nenhum deles discute as conseqüências da utilização de umamemória de má qualidade ou com manutenção ruim, nem propõe soluçõesque possam ser integradas ao processo de trabalho. Hoje, essa questão assumeespecial importância em vista do tamanho dos projetos e do número de tradu-tores envolvidos. A percepção de que esse volume tende a aumentar com otempo faz com que o problema assuma ainda maior relevância.

Nesse contexto, a proposta deste trabalho é fazer uma apresentação bas-tante abrangente dos usos deste tipo de ferramenta no mercado de localização,chamando a atenção para os problemas de qualidade que já existem. O maiorreflexo disso são as respostas ao questionário distribuído. Acredito que a siste-matização desses problemas será uma contribuição para futuros estudos quepossam ser realizados neste campo.

Como já indicado, foram selecionados segmentos de memórias de tra-dução de diferentes áreas para mostrar que o tipo de problema é o mesmo eque os erros serão propagados, se não forem identificados e eliminados. Aanálise foi qualitativa, uma vez que não foi minha intenção, como já observei,quantificar ou categorizar os tipos de problemas, mas tão somente chamar aatenção para a sua existência, propondo formas de solucionar os problemasdetectados. Somente por meio de um processo sistemático de revisão e manu-tenção das memórias é possível identificar e eliminar os problemas, fazendocom que de fato os sistemas de memória de tradução sirvam ao propósito deserem ferramentas de auxílio, e não um empecilho, ao trabalho do tradutor.

2. O surgimento dos sistemas de memóriaO tamanho e a complexidade crescentes dos projetos de localização

impulsionaram o desenvolvimento e a consolidação da indústria correspon-dente que movimenta milhões de dólares todos os anos. Nessa indústria, osprazos são extremamente importantes e os volumes de trabalho, muito gran-des, envolvem vários tradutores em projetos multilíngües.

Os produtos têm ciclos de vida muito curtos e são constantemente atualizados,com o surgimento de novas versões praticamente todos os anos, baseadas nas versões

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anteriores. Para lidar com a crescente complexidade desses projetos, tanto em termosde volume de palavras quanto de componentes envolvidos, foram desenvolvidas fer-ramentas de auxílio à tradução que se tornaram essenciais para a realização do traba-lho. Os clientes já exigem o uso de uma ou de outra ferramenta específica, e cada vezmais os tradutores precisam estar cientes dessa realidade.

Consideram-se ferramentas de auxílio à tradução qualquer programa decomputador ou sistema de referência on-line que auxilie os tradutores nas suastarefas, fornecendo um ambiente propício à realização de traduções com altaqualidade, eficiência e rapidez. Dicionários, glossários on-line e bancos de da-dos terminológicos são exemplos de algumas ferramentas desse tipo, que po-dem variar no grau de automação.

Outros exemplos são ferramentas específicas para localização, desenvol-vidas para facilitar a tradução da interface de usuário dos softwares. Algumasdessas ferramentas são proprietárias, ou seja, desenvolvidas pelos próprios cli-entes para serem usadas na localização de seus produtos, como o LocStudio daMicrosoft, o IIDS da Intel ou o Domino Global Workbench da Lotus, e nãoestão disponíveis comercialmente.

Os sistemas de memória de tradução, desenvolvidos em meados da dé-cada de 1990 para atender à exigência de maior produtividade da indústria desoftware, destacam-se entre as ferramentas de auxílio à tradução. Tais sistemasforam especificamente projetados para reciclar traduções anteriores, eliminan-do o trabalho repetitivo e automatizando as pesquisas terminológicas. Sua prin-cipal característica consiste em armazenar em um banco de dados especial asfrases ou partes de frases traduzidas, para reutilização local ou uso comparti-lhado em rede. A memória de tradução (a ser explicada em detalhes na próxi-ma seção) funciona fazendo a correspondência entre os termos e as frases ante-riormente traduzidos e armazenados no banco de dados com os do texto origi-nal que está sendo traduzido. Se achar o termo ou a frase entre os dados jáarmazenados em seu banco de dados, o sistema propõe a tradução encontradano texto de destino, deixando a critério do tradutor utilizá-la ou não. Emtermos lingüísticos e de formatação, essa correspondência pode ser idêntica(100%) ou aproximada (fuzzy match, de 1-99%).

A seguir está um exemplo ilustrativo, para indicar como o tradutor deveproceder na revisão da sugestão proposta pela memória:

Ability to listen and understand in order to receive and respond to requests fromtranslators and clients. <72> Capacidade de ouvir e compreender para receber e re-sponder pedidos de informação de visitantes e usuários.

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O número <72> indica que a frase em português foi sugerida pelo siste-ma como tradução da frase original com 72% de grau de equivalência. Cabeao tradutor revisar a sugestão, tratando a expressão “de informação de visitan-tes e usuários” como se estivesse errada e substituindo pela tradução correta(“de tradutores e clientes”), conforme a frase original. Assim, a tradução a serarmazenada na memória é: “Capacidade de ouvir e compreender para recebere responder pedidos de tradutores e clientes”, agora com equivalência de 100%.

As vantagens do reaproveitamento de traduções anteriores na indústriade software são óbvias e constantemente enfatizadas pelos fabricantes das fer-ramentas de memória, em função do grande volume de texto – alguns projetoschegam à ordem de 5 milhões de palavras ou mais – e da freqüência das atua-lizações neste setor, com novas versões sendo lançadas todos os anos. Algunsexemplos de elementos que podem ser reaproveitados no processo de localiza-ção de arquivos de ajuda incluem: versões anteriores da ajuda on-line; versõeslocalizadas de outros arquivos de ajuda on-line do mesmo fabricante; versõeslocalizadas de outros tipos de documentação do mesmo fabricante, como, porexemplo, documentação impressa; e terminologia dos glossários de interfacedo usuário do software.

2.1. A memória de tradução explicada

Os sistemas de memória de tradução baseiam-se na segmentação dotexto de origem. Um segmento é um elemento de texto considerado peloaplicativo como a unidade a ser traduzida, delimitado por marcas de pontua-ção específicas como ponto final, dois-pontos, marcas de parágrafo etc. Todavez que um segmento é traduzido, ele é automaticamente armazenado na me-mória de tradução. Assim, a memória passa a ser um banco de dados de paresde segmentos de texto de origem e destino, chamados de unidades de tradução(TUs - Translation Units).

O objetivo da segmentação é criar unidades de tradução que permitamcorrespondências úteis entre os textos de origem e destino, oferecendo o maioríndice de reaproveitamento possível. Não existe limite de tamanho definido parauma unidade de tradução: pode ser uma sigla ou abreviatura, uma palavra, ouum parágrafo inteiro. Dependendo do tipo e do estilo de texto, os segmentospodem ser mais longos ou mais curtos e, em geral, os sistemas permitem que otradutor defina as regras de segmentação mais apropriadas a cada texto.

Além dos segmentos de origem e destino, os sistemas de memória detradução armazenam informações específicas, denominadas atributos, que incluem

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a data de criação, o nome do usuário ou criador, o cliente, o número do proje-to e o principal domínio ou campo do conhecimento de que trata a tradução.Este recurso é bastante útil, principalmente para fins de manutenção do bancode dados, uma vez que permite a aplicação de filtros, como data de criação ouprojeto específico.

A memória pode ser construída durante a fase de tradução propriamen-te dita, ou seja, no momento em que o tradutor estiver usando o sistema dememória para traduzir o arquivo, bem como antes ou após a tradução. Assimque determinado segmento é traduzido, a unidade de tradução é armazenadana memória e estará disponível no banco de dados. Se o mesmo segmentoaparecer novamente, a tradução anterior será sugerida automaticamente para otradutor. Este tem a opção de aceitar a sugestão ou modificá-la (ou seja, editá-la), caso o contexto exija. O sistema pode propor correspondências perfeitas(100%) ou aproximadas (1-99%). Um bom sistema de memória de traduçãosempre realçará as diferenças com códigos de cores e percentagens. No caso doexemplo visto na seção anterior, “from translators and clients” apareceria real-çado para indicar que este trecho é diferente do que está armazenado na me-mória (“Ability to listen and understand in order to receive and respond torequests for information from visitors and users.”).

Além disso, é possível criar uma memória de tradução a partir de textostraduzidos anteriormente sem o uso de uma ferramenta de memória de tradu-ção. Este processo é chamado de alinhamento. Consiste na comparação auto-mática entre os arquivos eletrônicos de origem e destino, fazendo a correspon-dência entre as frases, criando as respectivas unidades de tradução. Evidente-mente, o tempo necessário para alinhar os documentos depende inteiramenteda estrutura dos textos – quanto maior a semelhança, mais fácil será o proces-so, uma vez que, para cada segmento de origem, o sistema precisa ter umsegmento de destino. Embora o processo seja automático, exige revisão manu-al em função dos possíveis problemas resultantes das diferenças entre originale tradução.

Outra possibilidade de utilização é, antes do início do trabalho, aplicaruma memória já existente a um ou mais arquivos para tradução em lote, isto é,sem a interferência do tradutor. Este processo é chamado de pré-tradução. Nes-sa modalidade, o sistema substituirá automaticamente as correspondênciasencontradas no banco de dados, conforme o grau de equivalência definidopelo usuário (100%, 50-99% ou 0-49%), e o tradutor trabalhará nos segmen-tos novos para os quais o sistema não encontrou correspondência alguma erevisará todos os segmentos com correspondência inferior a 100%.

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Um recurso encontrado em todos os sistemas de memória é o de estatís-tica e análise, que permite ao usuário contar o número de palavras e segmentosem um ou mais documentos e determinar o número de repetições dentro dopróprio documento ou entre os documentos. O sistema também indica osdiferentes graus de equivalência entre os segmentos, como já mencionado.Este recurso é precioso, uma vez que permite ao usuário identificar se a ferra-menta de memória de tradução será ou não útil na realização do trabalho, emfunção da quantidade de repetições, e ajuda a fazer uma estimativa do temponecessário para sua conclusão. Justamente por isso, ele é amplamente utilizadonas fases de planejamento anteriores ao início da tradução, para programar onúmero de tradutores que farão parte do processo. Atualmente, as agências detradução também utilizam o resultado dessas análises para definir os gastoscom os tradutores, uma vez que o preço por palavra é estabelecido em umarelação inversamente proporcional ao grau de correspondência. Por exemplo,a empresa pode optar por não pagar pelas palavras identificadas como 100%equivalentes e pagar o preço integral para o que for 0%. De 0 a 100%, há umaescala de descontos sobre o preço de palavra. As conseqüências desse sistemade pagamento podem ser ruins, uma vez que o tradutor não examinará ascoincidências de 100%, que, muitas vezes, podem conter erros, como veremosmais adiante.

A capacidade de gerenciamento de terminologia está integrada na mai-oria dos sistemas de memória de tradução. Consiste basicamente em glossáriosque são criados ou importados durante a tradução e permite o reconhecimen-to automático de termos para incorporação no texto traduzido. Alguns siste-mas, como o Trados Translator’s Workbench, permitem o uso separado de seuaplicativo de gerenciamento terminológico, o Multiterm, para o desenvolvi-mento de bancos de dados multilíngües que contêm não só os termos de ori-gem e destino, mas também categorias gramaticais, definições e contexto. OWordfast também inclui ferramentas para criação de glossários, mas comotrabalha com formatos abertos de arquivos (Unicode e texto sem formatação),seus glossários e memórias de tradução não precisam de ferramentas exclusivaspara serem consultados ou modificados.

No Trados Translator’s Workbench e no Wordfast existe um recurso pre-cioso para o trabalho do tradutor – o Concordance. Esse recurso permite queo tradutor procure na memória de tradução qualquer texto selecionado dosegmento de origem. O Translator’s Workbench apresenta o número de frasesda memória que contenham texto semelhante ou idêntico ao do texto da bus-ca. Por exemplo, se o tradutor quiser saber qual foi a tradução dada para deter-

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minada expressão ou termo técnico em um projeto específico, basta marcar aexpressão ou o termo desejado e selecionar o comando “Concordance”, queapresentará em uma janela à parte todas as frases do original armazenadas namemória de tradução que contenham a expressão ou o termo em questão esuas respectivas traduções. Além disso, o termo selecionado para busca é real-çado em amarelo para fácil identificação. Este é um recurso fundamental paramanter a consistência terminológica durante o trabalho e também muito im-portante para a revisão e a manutenção do sistema de memória.

Ao terminar a tradução, alguns programas exportam os arquivos tradu-zidos para o formato do texto original. O Trados Translator’s Workbench e oWordfast, por meio do comando “Clean Up”, removem o formato de textooculto criado pelos programas durante o processamento da ferramenta, e só atradução permanece. Como podem ocorrer problemas também nessa etapa, éimportante ler o texto traduzido sem as marcações dos programas de modo aidentificar possíveis falhas na segmentação ou problemas de formato. No casodo exemplo da seção anterior, a frase em inglês estaria em formato de textooculto, ou seja, texto sublinhado com tracejado fino; após o procedimento delimpeza, apenas o texto em português permaneceria.

3. Avaliação de traduções: contribuição dos modelos funcionalistasO enfoque funcionalista no campo dos estudos tradutórios parece ser o

que melhor dá conta da localização, sobretudo por incorporar em seu modeloo solicitante da tradução e suas orientações; por relativizar o conceito de equi-valência, sem abandoná-lo completamente; e por estar mais em sintonia comas questões práticas do que os outros modelos analisados.

Por ter sido desenvolvida no meio acadêmico, a abordagem funcionalistasempre teve como foco avaliar o desempenho de alunos e aprendizes de tradu-ção. Autoras como Katharina Reiss, Juliane House e Christiane Nord desen-volveram modelos funcionalistas para avaliação de traduções, estabelecendouma tipologia de traduções com base na relação existente entre texto de ori-gem e tradução. Cada modelo tem características e nomenclatura próprias,com classificações e subclassificações, na tentativa de dar conta de todas aspossíveis combinações dessa relação. Reiss (ver Nord, 1997) correlaciona tiposde texto com método e objetivo da tradução; House (2001) utiliza os concei-tos de tradução manifesta (overt translation) e tradução velada (covert translation)para descrever duas estratégias de tradução possíveis; e Nord (1997) distinguedois tipos básicos de processos de tradução: documentário (documentarytranslation) e instrumental (instrumental translation). Outros estudiosos como

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Hans G. Hönig e Paul Kussmaul (ver Nord, 1997) aplicam a abordagemfuncionalista ao ensino da tradução e demonstram como as estratégiasfuncionalistas podem levar a soluções adequadas aos problemas tradutórios.Outros, ainda, utilizam o modelo funcionalista para a avaliação de traduçõesliterárias, como Margret Ammann, ou de textos com propósitos específicos,como Jacqueline D’Hulst (em ambos os casos, ver Nord, 1997). Apesar dasdiferentes perspectivas, esses modelos parecem ser bastante interessantes paradefinir a estratégia de tradução mais adequada, dependendo do tipo de textoem questão. Uma característica comum a todos os modelos é que eles, além deconsiderarem os aspectos lingüísticos mais abrangentes (estruturais, textuaisou discursivos), têm uma visão mais pragmática – ou seja, valorizam os aspec-tos culturais ou pragmáticos da tradução que independem da língua – eenfatizam a natureza específica da competência tradutória, em contraste com aproficiência lingüística.

Foge ao escopo do presente estudo fazer uma descrição e análise deta-lhadas dos diferentes modelos de avaliação de tradução de cunho funcionalista.Da mesma forma, não é minha intenção tentar aplicar nenhum desses mode-los diretamente à tradução no contexto da localização, porque não raro, pelaprópria natureza dos projetos, um só texto de origem serve como modelo a serutilizado para geração de uma série de outros textos assemelhados, como ma-nuais, páginas da Web e material publicitário, e o tradutor trabalha a partir defragmentos desse conteúdo que não são ordenados por critérios de coerênciatextual, muitas vezes sem saber onde a tradução será efetivamente publicada.Assim, a determinação ou a classificação das funções dos textos de origem e dedestino não teriam muita utilidade nesse tipo de prática. Além disso, a utiliza-ção de ferramentas de tradução, como os sistemas de memória, por exemplo, éoutro fator que dificulta a aplicação direta dos modelos funcionalistas de ava-liação nestes textos, uma vez que o tradutor, quando utiliza um programadesse tipo, não tem a visão do texto todo, pois trabalha com segmentos, nemdispõe de autonomia para mudar a estrutura geral do texto ou a seqüência defrases em determinado parágrafo.

No entanto, a meu ver, o mérito das abordagens funcionalistas para aavaliação de traduções é relativizar a noção de erro, que é definido em termosdo objetivo do processo ou produto da tradução. Assim, determinada expres-são pode não ser inadequada em si mesma, mas se tornar inadequada comrelação à função de comunicação que deve atingir, levando em conta o solicitanteda tradução, o contexto da sua produção e as especificidades de cada trabalho.Essa perspectiva mais abrangente parece ser adequada para aplicação na análise

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da qualidade das memórias de tradução, uma vez que é difícil estabelecer pa-drões de qualidade a priori e com validade irrestrita, sem levar em conta oprojeto no qual a memória foi desenvolvida, as especificações do cliente/solicitante da tradução e a terminologia adequada.

Suzanne Lauscher, da Universidade de Innsbruck, na Áustria, em“Translation quality assessment”, artigo que investiga os motivos pelos quaisas abordagens teóricas à avaliação de traduções são difíceis de aplicar na práti-ca, coloca em perspectiva a própria tarefa de avaliar. Dependendo do contextode sua realização, a avaliação terá propósitos diferentes: examinar a qualifica-ção de um tradutor para determinada tarefa; verificar se o tradutor cumpriu osrequisitos de qualidade definidos pelo cliente; informar os alunos sobre seuprogresso; informar o público sobre a qualidade da tradução de uma nova obrade ficção etc. Também depende do tipo de público a que se dirige – tradutoresprofissionais, público-alvo do texto de destino, clientes ou estudantes de tra-dução (Lauscher, 2000:163).

Nos cursos de formação de tradutores, a avaliação de um texto traduzi-do leva em conta aspectos relacionados tanto à leitura/interpretação do texto-fonte (TF) quanto à redação do texto na língua-meta (LM) e tem o objetivoclaro de medir o desempenho dos alunos. Tradicionalmente, é possível identi-ficar dois tipos de problema nos textos traduzidos:

- “erros primários” (ou graves): de natureza binária, ou seja, acerca dosquais não há a menor dúvida, decorrem, geralmente, da falta de domínio dalíngua-fonte ou da língua-meta;

- “erros secundários” (ou impropriedades): escolhas pouco plausíveis ouinadequadas, seja do ponto de vista lingüístico ou contextual.

Essas categorias amplas permitem ao avaliador direcionar o processo deavaliação, definindo um número máximo de erros primários ou secundáriosconsiderados aceitáveis para aquele texto, e determinar se a tradução atende ounão aos critérios estabelecidos.

Alinhado ao enfoque funcionalista, Brian Mossop, tradutor e professorda York University School of Translation, em Toronto, no Canadá, em Revisingand editing for translators (2001), obra sobre revisão e edição de textos voltadapara tradutores, contrapõe o processo de avaliação de traduções – que ocorreapós a entrega do trabalho ao cliente com a finalidade de verificar se determi-nado texto atende aos padrões de qualidade exigidos, não constituindo partedo processo de produção da tradução – ao processo de revisão ou controle daqualidade – termos utilizados pelo autor como sinônimos e representando ta-refas realizadas antes da entrega da tradução ao cliente final com o objetivo

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explícito de eliminar os erros encontrados. Além disso, Mossop aborda ques-tões importantes para a avaliação do trabalho feito por tradutores profissio-nais: a quantificação dos erros, sua categorização em erros primários e secun-dários, o peso relativo de cada tipo de erro e da própria avaliação e a importân-cia do cliente no processo (Mossop, 2001:150-154).

No caso específico das memórias de tradução, a tarefa de avaliação temcomo objetivo verificar se determinada memória está livre de erros, possibilitan-do sua reutilização em futuros projetos de localização. Contudo, para garantirque a memória possa ser reutilizada, não basta a identificação dos erros, nemmesmo sua classificação em categorias (primários ou secundários, por exemplo);é preciso haver um processo de revisão capaz de eliminá-los dos arquivos, inde-pendentemente do tipo de erro, de sua gravidade, ou do que os causou.

3.1. Controle de qualidade das traduções na localizaçãoA indústria da localização desenvolveu ao longo dos anos processos e

procedimentos para o controle da qualidade dos produtos localizados. As grandesempresas de localização possuem essas normas implementadas, cada qual à suamaneira. Parece haver consenso quanto aos aspectos que devem ser levados emconta para que uma tradução seja considerada de qualidade satisfatória: termi-nologia padronizada, estilo claro e formato sem erros. Entretanto, é difícilestabelecer um padrão que possa ser aplicado em termos gerais, uma vez quecada cliente tem necessidades específicas.

Nos projetos de localização, é fundamental incorporar etapas de verifi-cação da qualidade em suas diferentes fases, a fim de garantir que o produtolocalizado não tenha problemas de tradução ou funcionalidade. O momentopara essa verificação vai ser definido no início do projeto entre o cliente final ea empresa de localização, e entre a empresa de localização e seus respectivosfornecedores, ou seja, empresas menores ou tradutores autônomos. Ogerenciamento da qualidade envolve a criação de um plano que determinatodas as atividades necessárias para garantir que os objetivos e os padrões dequalidade definidos para o produto sejam alcançados.

É preciso salientar o fato de que o processo de verificação da qualidadedos produtos localizados, na verdade, é parte do processo geral de garantia daqualidade do software original, tendo, portanto, procedimentos muito seme-lhantes. O aspecto a ser ressaltado neste estudo é o da fase de verificação lin-güística, que inclui não só questões relativas ao uso correto da língua, em ter-mos de sintaxe, pontuação, ortografia etc., mas também questões de estilo epadronização terminológica conforme as especificações do cliente. Quantomenores forem os problemas nessa fase, melhor será o resultado final.

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Para alcançar níveis de qualidade consistentes, é preciso contar com umasérie de procedimentos padronizados incorporados ao processo de produção,qualquer que seja ele. Especificamente com relação a projetos de localização,muitos fornecedores incorporaram os processos de gestão da qualidade da ISO(International Organization for Standardization ou Organização Internacio-nal para a Normalização) para garantir a qualidade de todos os seus serviços eatividades, incluindo tradução e engenharia. Outros utilizam as normas ISOapenas como referência para algumas partes do processo e definiram medidasinternas de qualidade. Vale observar que, em todos esses casos, o que recebe acertificação é o processo, não o resultado final, processo este que engloba desdea chegada e catalogação do material para tradução até a inspeção final antes daentrega para o cliente, incluindo as fases de avaliação e manutenção posterio-res. Entretanto, certamente a maneira como a empresa gerencia esses processosafeta o produto final.

Em localização, a avaliação da tradução é feita com o objetivo de identi-ficar erros por meio de um sistema de análise, considerado um indicador obje-tivo para determinar a qualidade da tradução. Erros diferentes têm um impac-to diferente na qualidade geral do texto, por isso os erros são categorizados erecebem pesos distintos. A vantagem desse procedimento é que ele é um mo-delo padronizado e de fácil aplicação em diferentes áreas, que atribui um valornumérico e, portanto, quantificável ao processo.

4. Quando 100% não é 100%Teoricamente, se todas as verificações de qualidade estabelecidas no de-

correr de um projeto de localização tiverem sido observadas, o produto final,ou seja, o texto traduzido, terá qualidade aceitável. Isso leva a supor que amemória de tradução utilizada no projeto também terá qualidade satisfatória.No entanto, nem sempre isso acontece. Embora existam formulários detalha-dos para controle da qualidade da tradução, não há, como vimos, um processoseparado para verificação da qualidade das memórias.

Para ilustrar o tipo de situação que motivou esta pesquisa, foram seleci-onados segmentos de um projeto do qual participei como tradutora e revisora.Esses segmentos estavam armazenados na memória de tradução enviada pelocliente para o trabalho. Tendo recebido já muitas reclamações sobre a qualida-de da memória em questão, a empresa de localização solicitou aos tradutores arevisão de todos os segmentos com grau de equivalência de 100%, ou seja,todos os segmentos supostamente considerados livres de erros.

Os seguintes exemplos mostram o tipo de problema que determinadamemória pode conter. Em todos os casos abaixo, o grau de equivalência apre-

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sentado pelo sistema de memória foi de 100%, indicado pelo número quesepara os segmentos de origem (indicados pelo formato de texto oculto) e dedestino. Os problemas foram categorizados apenas para fins de sua apresenta-ção, sem qualquer tentativa de hierarquização por grau de gravidade, e estãoindicados entre aspas a seguir.

Exemplo 1. Problemas de tradução de terminologia

<LI>Para abrir Serviços e sites do Active Directory, clique em <B>Iniciar</B>,aponte para <B>“Programas”</B>, para <B>Ferramentas administrativas</B>e, em seguida, clique em <B>Serviços e sites do Active Directory</B>.</LI>(comp_remove)

Neste caso, “All Programs” foi traduzido indevidamente por “Progra-mas”. Trata-se de uma opção de software que o usuário deve selecionar. Issosignifica que o termo tem muita visibilidade e deve ser traduzido de formapadronizada em todas as ocorrências como “Todos os programas”, conformeespecificado no glossário fornecido pelo cliente para a realização do projeto.

Exemplo 2. Problemas de tradução de linguagem comum

(a)<LI>Os clientes dependentes “terão mais suporte” nas versões futuras doEnfileiramento de mensagens.</LI>

(b)Os servidores aplicáveis são servidores de enfileiramento de mensagens “semroteamento ativado”, que são também chamados de servidores de roteamento.

(c) “Não é sensato” fornecer 4 GB a 10 GB na partição ou mais espaço parainstalações grandes.

(d)Para obter mais informações sobre este “driver”, visite o site do fabricante em[endereço do site]. Os endereços da Web podem mudar, portanto talvez vocênão consiga se conectar a este site.

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Os casos acima são iguais: as traduções mudam completamente o sentido dooriginal. Se tivessem sido classificados pelo processo de controle da qualidadede produtos localizados, esses erros estariam na categoria major, isto é, graves,porque comprometem a integridade dos dados. Outro aspecto importante éque os erros de tradução indicados acima só podem ser detectados através docotejo com o original, pois não causam estranhamento ao leitor devido a as-pectos lógicos.

Exemplo 3. Uso da língua

a) Uso de tempos verbais<LI>É possível criar, excluir e alterar as propriedades de filas públicasem computadores remotos utilizando o snap-in Usuários e computado-res do Active Directory somente “se você possuir” permissões adminis-trativas de domínio “e esteja” conectado usando uma conta de usuáriode domínio.</LI>

b) Concordância e pontuaçãoO NLB permite especificar que “todas as conexões” do mesmo endere-ço IP de cliente “seja identificado” por determinado servidor “(a nãoser, é claro, que esse servidor falhe”.

“Os arquivos” da seção de atualização dinâmica do site do WindowsUpdate na Web “foi” cuidadosamente “testados e selecionados”.

c) OrtografiaTodas as “seções” de enfileiramento de mensagens, sessões de leituraremota e filas abertas por clientes dependentes são contadas.

d) Digitação e pontuaçãoVocê pode atender uma chamada “dirigira” a outro telefone,

Os exemplos (a), (b), (c) e (d) acima, embora apresentem erros sérios noque concerne ao uso da língua, não têm conseqüências negativas para o usuá-rio do software ou do produto em questão no que diz respeito ao funciona-mento do programa. No entanto, certamente causarão má impressão no leitorou usuário. Independentemente da categoria ou do tipo de erro, esses proble-mas precisam ser eliminados.

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Em todos os exemplos apresentados acima, a tradução incorreta foi ar-mazenada na memória possivelmente por uma falha de revisão por parte dotradutor, e só foi possível identificar os problemas porque houve uma faseposterior de revisão das equivalências de 100% por solicitação do cliente. Noentanto, esse procedimento não é comum. Infelizmente, muitos clientes nãoestão dispostos a pagar pela revisão ou releitura de segmentos já traduzidoscom grau de equivalência de 100%.

O processo de revisão mencionado acima corrigiu os erros identifica-dos, mas não foi realizado no recurso de manutenção do programa de memó-ria, o que significa que apenas essas frases foram corrigidas. Se o revisor tivesseacesso ao recurso de manutenção da memória, poderia ter verificado se “AllPrograms”, por exemplo, estava traduzido indevidamente como “Programas”em outras ocorrências e corrigido o problema, se fosse o caso. No entanto,durante a realização do projeto, o tradutor e o revisor não têm acesso ao recur-so de manutenção da memória; a revisão é feita apenas nos segmentos que sãoapresentados pelo programa e não nos que estão armazenados no banco dedados. Isso significa que, se essa memória for utilizada em outro projeto seme-lhante do mesmo cliente, existe o risco de haver segmentos com os mesmoserros, exigindo nova revisão. É claro que a frase que foi corrigida fica armaze-nada também e existem boas chances dessa frase ser reutilizada em função dadata (a tradução com a data mais recente, em geral, é a que aparece comosugestão). No entanto, se o usuário resolver utilizar o recurso “Concordance”para verificar como determinado termo foi traduzido em outras ocorrências,poderá ficar confuso, diante de traduções diferentes ou indevidas.

Uma das maneiras possíveis de evitar que a memória apresente erros éfazer toda e qualquer alteração sugerida pelo processo de controle da qualidadenos respectivos arquivos sempre utilizando o sistema de memória para garantirque a alteração fique definitivamente armazenada. Devido ao tempo escasso,muitas alterações são feitas fora do programa de memória, e as correçõessugeridas pelo cliente na revisão final não são armazenadas nos arquivos dememória. Isso necessariamente acarreta problemas, uma vez que o produtofinal ficará diferente da memória e, no momento de uma nova versão ou atu-alização, é o arquivo de memória que será utilizado para reaproveitamento. Porisso, existe sempre a recomendação de que a revisão seja feita diretamente noprograma de memória de tradução (Esselink, 2000:367). Além disso, a revisãodeve ser feita por pessoal devidamente qualificado para a tarefa em questão.

Acredito que a incorporação ao processo de localização de uma fase es-pecífica dedicada à revisão e manutenção das memórias contribui para dimi-

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nuir estes problemas. Isso permite que a memória fique pronta para reutilizaçãoposterior e cumpra assim seu objetivo de servir como ferramenta ao tradutor,em vez de ser um empecilho ou elemento propagador de erros.

Qualquer procedimento de revisão global desse tipo requer tempo euma equipe dedicada; uma equipe que já conheça o produto, as especificaçõesdo projeto, a terminologia adotada pelo cliente e o público-alvo a quem oproduto de destina, entre outros fatores considerados essenciais para avaliaçãoda qualidade da memória.

Para que haja um meio abrangente de garantir a qualidade dos arquivosde memória, é preciso contar com um método sistemático a fim de verificar sea ferramenta está realmente servindo ao propósito original. Embora a tecnologiaforneça formas muito eficazes de verificar-se rapidamente a adequação de de-terminada tradução em relação ao que consta nos glossários, por meio, porexemplo, do uso dos recursos de localização de palavras-chave, por exemplo, arevisão precisa ser feita por pessoal qualificado e consciente desse tipo de pro-blema.

À luz das propostas funcionalistas de avaliação e tomando como base oque já existe no mercado de localização para controle da qualidade, algunsprincípios norteadores podem ser usados para revisão das memórias de tradu-ção. Nessa fase, não é importante a categorização dos erros. No entanto, épreciso determinar uma seqüência para os procedimentos a serem seguidos, eisso necessariamente implica a definição de algumas categorias. Nesse sentido,os seguintes princípios gerais podem ser usados para verificação da qualidadedas memórias, servindo como um modelo para orientar a análise:

I. Terminologia- identificar palavras-chave ou termos técnicos específicos do cliente e respec-tivas traduções (incluindo nomes de produtos, jargão da área etc.) com base noglossário, guia de estilo ou material de referência fornecidos pelo cliente;- identificar termos usados em inglês e verificar se foram mantidos ou não,dependendo da orientação do cliente;- verificar se existem correspondentes em português para siglas e acrônimos eminglês e verificar seu uso padronizado.

II. Tradução- verificar se há trechos não traduzidos;- verificar se ocorreram omissões ou acréscimos de informação desnecessáriosou inadequados;

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- verificar se existem erros de tradução que, ao resultar em um texto completa-mente diferente do original, ou mesmo em um texto ambíguo, incompreensí-vel ou difícil de entender, podem induzir o usuário ou leitor a erro na utiliza-ção do programa ou produto em questão.

III. Uso da língua- verificar se as regras gramaticais foram seguidas: concordância, regência, pon-tuação, ortografia e digitação, padrões e convenções, estilo etc.

Acredito que a inclusão de uma fase de revisão e manutenção das me-mórias possa contribuir para a redução de muitos desses problemas. Esse pro-cesso de revisão deve ser orientado por princípios gerais como os listados aci-ma, mas sempre a partir de especificações do cliente para cada projeto, levandoem conta o contexto no qual as memórias de tradução foram desenvolvidas. Éimportante ressaltar que este processo não se confunde com a categorização deerros com a finalidade de servir como amostra do trabalho do fornecedor outradutor, como normalmente ocorre durante nas fases de controle de qualida-de dos projetos de localização. Trata-se, sim, de garantir que determinada me-mória estará em condições de ser reutilizada com o menor número de proble-mas possível. Esses princípios gerais, no que diz respeito à adequaçãoterminológica, tradução e uso da língua, orientaram o procedimento de análi-se de dados realizado para esta pesquisa.

5. Conclusão

Como vimos, se, por um lado, são inegáveis os avanços trazidos pelo usodos sistemas de memória de tradução ao processo de localização – reduzindocustos dos projetos, otimizando o controle das versões de softwares, trazendoganhos de produtividade pela automatização de processos repetitivos –, poroutro, existem riscos associados à sua utilização que também devem ser discu-tidos, sobretudo levando em conta o objetivo com o qual os sistemas de memó-ria foram desenvolvidos, qual seja, o reaproveitamento de traduções anteriores.Ora, para que uma tradução seja reaproveitada é condição sine qua non queatenda a certos padrões de qualidade. Como este estudo pretendeu mostrar, paraque os sistemas de memória de tradução realmente sirvam ao propósito de serferramentas de auxílio à tradução, é preciso haver um controle sistemático dasmemórias, por meio de procedimentos regulares de revisão e manutenção. Casocontrário, as memórias, que possivelmente contêm erros variados, acabam se

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constituindo em fonte propagadora de erros. De nada adianta ter um banco dedados enorme se este se mostra repleto de problemas de tradução, erros degramática ou terminologia inadequada.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, tive oportunidade de entrarem contato com vários tradutores autônomos, gerentes de projeto e de quali-dade em diferentes empresas de localização que compartilhavam a mesma ex-periência: existe um problema de qualidade nas memórias de tradução quepersiste, apesar dos modelos de controle de qualidade desenvolvidos pelasempresas. A análise de dados apresentou casos representativos desses erros parailustrar os tipos de dificuldades enfrentadas.

Assim, ao final deste estudo, algumas conclusões de aplicação geral po-dem ser tiradas:

- existe a necessidade de haver um processo sistemático e exclusivo paraa revisão e a manutenção da memória de tradução;

- a revisão deve ser norteada por princípios gerais, com o objetivo deeliminar os erros encontrados, sem exigência de classificação desses erros emtipologias específicas;

- esse processo deve ser realizado por usuários experientes com domíniodos recursos oferecidos pela ferramenta em que a memória foi desenvolvida,com conhecimento sobre o projeto e com acesso às especificações do cliente ematerial de referência.

Para alcançar esses objetivos, acredito que a melhor solução seria incor-porar a revisão e a manutenção das memórias de tradução ao processo de loca-lização, como etapa final do projeto no qual ela foi empregada, deixando-apronta para reutilização posterior.

Assim, uma proposta para minimizar os problemas de qualidade nasmemórias de tradução é criar uma equipe especializada que assuma tal respon-sabilidade. Com base em princípios gerais que podem nortear o processo deanálise (adequação terminológica, problemas de tradução e uso da língua),deve-se proceder a um controle rígido por meio da revisão da memória paraidentificar os erros antes que eles se instalem e passem a ser propagados pelostradutores que participem de projetos de localização. Evidentemente, cada pro-jeto é diferente e assim deve ser administrado. Se o processo de revisão e manu-tenção for periódico, não será necessário fazer a revisão completa todas as vezese haverá sempre a garantia de que a memória está em condições adequadaspara reutilização. Assim que determinada memória fosse considerada livre deerros, poderia ser criado um filtro, por exemplo, para fazer a revisão somente apartir de determinada data. Idealmente, esse procedimento deveria estar pre-

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sente em todos os projetos, independentemente do tamanho. Uma soluçãodessa natureza implica decisões gerenciais e financeiras que cabe às empresasimplementar ou não. A equipe responsável pela revisão e manutenção dasmemórias pode ser a mesma encarregada do controle da qualidade durante oprojeto, uma vez que conhece as especificações do cliente, o material de refe-rência e o público-alvo do produto sendo traduzido, além de estar integradaaos processos de trabalho da empresa de localização. A empresa de localização,por sua vez, poderá oferecer esse serviço a seus clientes, como mais uma etapade controle da qualidade dos projetos. Além disso, os tradutores autônomosque participarem de novos projetos também terão certeza de que estarão rece-bendo uma memória que já foi submetida a uma revisão e que, portanto, éconfiável enquanto fonte de referência.

Quando a memória é desenvolvida pelo próprio tradutor, o processo édiferente, porque não envolve outras instâncias. Para o tradutor autônomoque desenvolve suas próprias memórias de tradução, é muito mais fácil mantê-las atualizadas, uma vez que ele tem o controle sobre o trabalho e pode atuar deforma independente, fazendo a revisão ou a manutenção conforme julgar ne-cessário. Cabe ao tradutor usuário do sistema de memória incorporar à suarotina de trabalho estes processos. Pode-se traçar um paralelo com a rotina decriação de cópias de segurança, ou backups, e o uso de programas antivírus.Assim que o tradutor incorporar o procedimento à sua rotina de trabalho,fazer a revisão e a manutenção das suas memórias passará a ser um processonatural.

5.1 Possíveis desdobramentos desta pesquisaComo mencionado, este é um campo novo e há muito ainda por fazer.

Os poucos estudos existentes sobre memória de tradução são de cunho com-parativo e tratam principalmente de questões ligadas à interface do usuário.Nesse contexto, existe uma gama de possibilidades a serem exploradas, inclusi-ve relativas aos aspectos técnicos envolvidos na criação dos sistemas de memó-ria, que não está contemplada aqui.

O presente estudo também não contempla o uso integrado de sistemasde tradução automática e de memória de tradução, mas essa é uma linha quepode ser seguida, uma vez que um número crescente de ferramentas de memó-ria de tradução oferece suporte à tradução automática. O Trados Translator’sWorkbench, por exemplo, é inteiramente compatível com os sistemas LOGOSe Systran. O Wordfast oferece suporte a todos os programas que criam menusno Word, já que está inteiramente integrado ao MS Word.

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Outra linha para futuras investigações pode ser averiguar o que os ou-tros sistemas de memória de tradução disponíveis no mercado oferecem emtermos de recursos de revisão e manutenção e verificar se são melhores e maiseficientes do que os existentes no Trados Translator’s Workbench ou Wordfast.

Outra possibilidade é usar outros pares de idiomas para análise de dadose verificar se os mesmos problemas de qualidade existem. Acredito que osmesmos princípios adotados neste estudo para o par inglês-português possamser empregados com sucesso em outros pares de idiomas, reforçando a necessi-dade de revisão e manutenção das memórias, independentemente dos idiomasde origem e destino.

Também pode ser interessante investigar o grau de eficiência oferecidopelo uso de sistemas de gerenciamento de terminologia integrados aos sistemasde memória de tradução e sua contribuição para a geração de glossáriosmultilíngües especializados.

Uma discussão interessante que não foi aprofundada neste estudo, masque surgiu nas respostas ao questionário elaborado para subsidiá-lo, diz respei-to ao problema trazido pelo achatamento dos preços por palavra, com base nosgraus de equivalência apresentados pelos programas de memória de tradução.Este é um problema sério que merece atenção, já que pode ter conseqüênciasnegativas para a indústria da localização. Há uma consciência cada vez maiorpor parte de tradutores mais experientes de que esse setor exige profissionaisespecializados com domínio de diferentes ferramentas. O tradutor sabe queprecisa acompanhar de perto as tendências do mercado e investir constante-mente para manter seu equipamento atualizado (tamanho do disco rígido,memória RAM, programas compatíveis, sem contar os próprios programas dememória que estão sempre atualizando suas versões), e rejeita a idéia de rece-ber menos por palavra depois de tanto investimento.

Em uma perspectiva mais abrangente, esta pesquisa também pode serrelevante no ensino da tradução, notadamente nos cursos de formação ou es-pecialização de tradutores voltados para o uso de ferramentas de tradução. Osaprendizes de hoje serão os profissionais do futuro e, como tal, precisam co-nhecer os recursos que estão disponíveis para aprimorar seu trabalho e os riscosque oferecem.

5.2 Perspectivas para o futuroOs avanços da tecnologia apontam para caminhos cada vez mais

abrangentes, com os sistemas de memória de tradução desempenhando funçõesde gerenciamento do fluxo de traduções, com compartilhamento de recursos

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pela Internet. Essa perspectiva assume uma dimensão ainda maior quandoconsideramos a possibilidade do uso dos padrões abertos, que permitem a tro-ca das memórias entre fornecedores e sua utilização em qualquer plataforma,independentemente do desenvolvedor.

Os fabricantes e especialistas da indústria afirmam que ocompartilhamento de memórias de tradução via Internet constituirá a novagrande melhoria em termos de economia de custos para o fluxo do trabalho delocalização desde o surgimento da ferramenta de memória.

Entretanto, é preciso considerar cuidadosamente a proeminência dada àtecnologia na indústria da localização e em muitas outras áreas. O futuro pro-mete um uso cada vez mais intenso da tecnologia como forma de diferenciaçãono mercado. No entanto, é fundamental ressaltar que o tipo de tecnologia a serutilizada vai depender do tipo de projeto, da natureza do texto e do público-alvo pretendido. O uso de tecnologia inadequada provavelmente levará a re-sultados indesejados. É importante lembrar que nenhuma ferramenta, pormelhor e mais avançada que seja, pode prescindir da intervenção humana.Ganhos de produtividade, eficiência e redução de custos podem ser alcança-dos, mas não há solução milagrosa.

É importante lembrar que a tecnologia pode nos ajudar a aumentar aprodutividade e a velocidade dos processos, mas também pode multiplicar ocaos, a falta de gerenciamento e planejamento. A mais recente ferramenta detradução pode acabar se tornando um estorvo em vez de um banco de dadosútil nas mãos de um tradutor pouco familiarizado com o programa ou que nãotem condições de utilizá-lo com eficiência. Sem um processo sistemático decontrole da qualidade e padrões de desempenho específicos, nem mesmo amais avançada tecnologia poderá garantir resultados satisfatórios.

Na verdade, o problema surge quando há um excesso de confiança natecnologia e uma ênfase excessiva é colocada no processamento automático,em detrimento do tradutor. Esse problema também foi indicado por algunstradutores que responderam ao questionário elaborado para fins desta pesqui-sa. Muitas vezes, por falta de tempo, ou até por orientação do cliente, o tradu-tor utiliza os recursos automáticos dos programas de memória para acelerar otrabalho e acaba inserindo e propagando erros, em vez de minimizá-los.

Além disso, é preciso sempre ter em mente um horizonte de longo prazo.Como todo investimento, esses sistemas requerem planejamento e manuten-ção. Não basta usar a tecnologia. É preciso saber implementá-la, integrando-aaos processos de trabalho existentes. A tecnologia é uma criação humana. Pre-cisamos saber usá-la para evitar que fiquemos subordinados a ela.

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1 Artigo elaborado a partir da pesquisa realizada para a Dissertação de Mestrado defendida em 2004,sob orientação da Profa. Dra. Marcia do A. P. Martins, no Programa de Pós-Graduação em Letras daPUC-Rio.2 “Manutenção” é o recurso dos sistemas de memória de tradução que permite adicionar, excluir emodificar o conteúdo das memórias.

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Referências bibliográficas

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LAUSCHER, Suzanne (2000) “Translation quality assessment”. Em CarolMaier (org.). Evaluation and translation. The translator studies inintercultural communication (Special issue),149-168. Manchester: St.Jerome Publishing.

MOSSOP, Brian (2001) Revising and editing for translators. Manchester: St.Jerome Publishing.

NORD, Christiane (1997) Translating as a purposeful activity. Manchester: St.Jerome Publishing.

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COMO CRIAR IDENTIDADES COM TRADUÇÕES, OUQUANDO TRADUZIR É INTERVIR NUMA TEORIA1

Daniel do Nascimento e Silva

É o que chamei o contrato de tradução: himeneu ou contrato de casa-mento com a promessa de inventar um filho cuja semente dará lugar àhistória e ao crescimento. [...] Benjamin o diz, na tradução o originalcresce, ele acredita principalmente que ele não se reproduz — e eu acres-centarei como um filho, o dele sem dúvida, mas com a força de falarsozinho que faz de um filho algo mais que um produto sujeitado à lei dareprodução.Jacques Derrida, Torres de Babel

Introdução

Desde que o conceito de “ato de fala” foi proposto pelo filósofo JohnLangshaw Austin, na década de 19602 , têm-se delineado diversos gestos deinterpretação desse conceito, não apenas no interior da filosofia da linguagem,mas também em outras disciplinas, como a lingüística, os estudos culturais, aantropologia, os estudos feministas, a psicanálise, entre outras. Se, por umlado, pode-se perceber que a proposta austiniana de tratar a linguagem comouma “forma de ação” e não de mera “representação da realidade” vem apresen-tando contribuições cruciais para essas disciplinas, por outro lado, não se podeperder de vista que essa efervescência teórica não se deu sem a interpretação, aintervenção mesma, de vários teóricos. Autores como John Searle, ÉmileBenveniste, Judith Butler e Shoshana Felman, entre tantos outros, produzi-ram, a partir de e sobre o trabalho de Austin, diferentes interpretações para oconceito de ato de fala. Assim, podemos nos referir hoje em dia a uma “leituraoficial” da teoria dos atos de fala (Searle, 1969), a uma teoria da performatividade(Butler, 1997) ou a uma leitura psicanalítica de Austin (Felman, 1980). Masautores que trabalham no texto do filósofo da Escola de Oxford, isto é, ostradutores de seus trabalhos para diferentes línguas, também participam dainterpretação do trabalho de Austin e, portanto, da construção da teoria dosatos de fala.

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Nesse sentido, é possível aventar a hipótese de que, em se tratando dodesenvolvimento da heterogênea tradição intelectual vinculada ao pensamentode John L. Austin, os verbos interpretar/intervir/traduzir (Austin) se tornamsinônimos, assim como os sintagmas “partindo de Austin”, “sobre Austin” e “emAustin”. Situada nesse movimento de (re)construção da teoria dos atos de fala, atradução para o português de How to do things withs with words (doravante, HT),realizada pelo filósofo brasileiro Danilo Marcondes, parece ser mais um gesto deinterpretação e intervenção no pensamento de Austin, tendo em vista a reivindi-cação de certa identidade para o filósofo inglês e para sua teoria. O presenteartigo volta-se, então, para a tradução brasileira dessa obra, de modo a indagarnela, simultaneamente, o trabalho de interpretação da filosofia austiniana em-preendido por Danilo Marcondes e o trabalho de intervenção do tradutor nessepensamento. Pretendo demonstrar ainda que investigar essa tradução, numaabordagem performativa da linguagem, pode revelar questões importantes sobrea construção discursiva da identidade, contribuindo, assim, para a compreensãoda relação mesma entre linguagem e identidade, tema que vem ocupando lugarcentral na agenda das ciências humanas (cf. Rajagopalan, 1998, 2002; Mey, 1998;Pinto, 2002; Moita Lopes, 2002; Hall, 2002; Giddens, 2002).

Austin e seus intérpretesEm HT, Austin empreende um esforço nietzschiano (cf. Felman, 1980)

de desmistificar a ilusão de que os fenômenos lingüísticos podem ser investiga-dos, em sua totalidade, segundo critérios de verdadeiro e falso. De acordo comAustin, existem enunciados que não podem ser analisados a partir de umasemântica vericondicional. Trata-se dos enunciados performativos, como “euaceito (esta mulher como minha legítima esposa)”, “aposto que choverá ama-nhã”, que, diferentemente dos enunciados constativos, não descrevem umasituação no mundo real, de modo verdadeiro ou falso; ao contrário, eles são arealização de uma ação, que pode ser feliz ou infeliz, bem ou mal sucedida.Numa investigação interessada, sobretudo, em indicar “os sentidos em quedizer algo é fazer algo” (Austin, 1990:103), Austin chega a propor, em HT,uma Teoria Geral dos Atos de Fala3 . Lemos na tradução:

A doutrina da distinção performativo/constativo está para a doutrina dosatos locucionários e ilocucionários dentro do ato de fala total assim como ateoria especial está para a teoria geral. E a necessidade da teoria geral surgesimplesmente porque a “declaração” tradicional é uma abstração, um ideal, eassim o é também sua tradicional verdade ou falsidade. Mas sobre este pontosó posso dar alguns rápidos clarões de luz. (p. 121, ênfase no original)

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Os “rápidos clarões de luz” que Austin menciona são, na verdade, al-gumas conclusões esboçadas pelo autor no que diz respeito à sua teoria “emconstante transformação” (cf. Derrida, 1991). Elas remetem, em linhas ge-rais, às seguintes idéias: os constativos não são senão performativos mascara-dos, i.e., agem, designam atos ilocucionários; é a situação concreta e conven-cional em que os interlocutores se engajam que interessa a tal teoria; verdadee falsidade são categorias epistêmicas; a dicotomia fato e valor, assim comovárias outras, precisa ser contestada; e a distinção entre atos locucionários eilocucionários, precariamente assentada numa noção de significado comoequivalente a “sentido e referência”, necessita ser aprimorada (Austin,1990:121-122).

A morte prematura de Austin, no entanto, impediu que oaprofundamento da teoria dos atos de fala, tal como indiciado pelas palavrasacima, fosse levado a cabo pelo próprio autor. Embora o excerto do texto deAustin evidencie tal desejo, essa questão é controversa. Como salientaRajagopalan (2000), muitos comentadores de sua obra defendem que ele não“propôs uma teoria bem delineada do ato de fala, [...] nem mesmo estavainteressado em propor uma teoria, ou, dado seu ceticismo, ele provavelmentenunca teria desenvolvido uma teoria sozinho” (p. 355). Poder-se-ia qualificaro seguinte comentário de Urmson como epítome de tais críticas à filosofia deAustin: “É impossível fazer uma abordagem sistemática da filosofia de Austin,pois ele não tinha nenhuma” (apud Rajagopalan, 2000:355).

Mas, independentemente da hipótese de Austin, caso não tivesse faleci-do prematuramente, ter procedido a um refinamento teórico do conceito deato de fala, o fato é que o conceito, tal como se nos apresenta hoje em muitostextos de filosofia e lingüística, foi de fato re-elaborado. E o autor mais célebredesse refinamento é John Searle, a quem se tem atribuído o papel de sucessorintelectual de Austin. Há, nos termos de Rajagopalan (2000), duas teses dis-tintas no que diz respeito à sucessão de Searle. A tese 1 consiste na idéia de queSearle era aquele que estava justamente “no lugar certo e na hora certa” (p.355-356), ou seja, de que Searle apenas deu continuidade às idéias que Austinvinha desenvolvendo, de modo que os dois representam, segundo essa tese,“uma única e contínua tradição” (p. 353). A tese 2 indica que, embora toman-do como ponto de partida os insights de Austin no que diz respeito ao ato defala, Searle desenvolveu uma teoria independente de muitos dos princípiospostulados por Austin, promovendo desdobramentos teóricos que provavel-mente não seriam aprovados pelo seu mestre. Trata-se, segundo essa tese, deuma nova teoria e não uma continuidade.

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A intervenção de Searle foi, na verdade, muito bem recebida pela filosofia.Austin — em função de seu pouco interesse de oferecer um pensamento siste-mático ou totalizante para o ato de fala e ainda do estilo não convencional dedesenvolver sua filosofia, aproximando seus textos muito mais de uma narrativado que de um tratado — comportava-se, tendo em vista posturas filosóficastradicionais, como um rebelde. Searle veio, nesse sentido, para “domar” tais idéi-as rebeldes e adequá-las ao que a tradição filosófica esperava. De fato, a teoriaque Searle desenvolve, cujos pilares situam-se na lógica e na filosofia analítica, épartidária de um universalismo e aposta na primazia da proposição (em outraspalavras, do constativo), o que é diametralmente oposto à proposta austiniana.

Searle inclusive evoca a autoridade de alguém que estudou pessoalmentecom Austin para fundamentar a sua intervenção na teoria dos atos de fala. Noexcerto a seguir, Searle lança mão desse contato pessoal como um dos recursospara sustentar sua argumentação em torno da necessidade de introduzir no atoilocucionário um núcleo duro, a saber, a proposição:

Austin uma vez me disse que ele havia pensado em uma distinção que pode-ria ser feita nesses termos – mas não fica claro se ele tinha a intenção de quea distinção locucionário-ilocucionário a abarcasse. (Searle, 1973:155, ênfa-se e tradução minhas)

A autoridade de porta-voz oficial também pode ser percebida em suacélebre contenda com Jacques Derrida:

Antes de iniciar uma discussão sobre a acusação de Derrida eu deveria es-clarecer que não endosso os detalhes da teoria dos atos de fala de Austin. Eua tenho criticado alhures e não irei repetir essas críticas aqui. O problemaconsiste muito mais no fato de que o Austin de Derrida é irreconhecível; ele nãotem nada a ver com o original (Searle, apud Rajagopalan, 2000: 381, ênfasee tradução minhas).

Obviamente, o “original” a que Searle se refere é o Austin que passoupelo seu próprio crivo e não o “Austin de Derrida”. Trata-se, portanto, de umaintervenção teórica que procura adequar as idéias de Austin à constatividadeque por tanto tempo marcou a história das idéias. Em outras palavras, na me-dida em que aproxima o ato de fala das leis universais da lógica e, implicita-mente, da idéia tão cara à lógica clássica e a várias vertentes da lingüística e dafilosofia de que a função primordial da linguagem é representar (ou seja, cons-tatar), Searle marca, ao mesmo tempo, sua interferência na teoria dos atos

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de fala e o seu distanciamento da visão eminentemente performativa dalinguagem, a qual, segundo vários leitores, caracteriza o pensamento de Austin(cf. Ottoni, 1998; Felman, 1980; Rajagopalan, 2000).

Contrapondo-se às críticas que vêem como um problema o fato de afilosofia de Austin não ser sistemática (em outras palavras, de não ser ela umaabordagem rigorosa), situa-se a abordagem psicanalítica de Felman (1980) dotexto austiniano. Para a autora, Austin desenvolve suas reflexões tal qual umDon Juan: ele está a todo momento prometendo uma teoria e exercitando, emseu texto, o potencial mesmo de sua teoria, a saber, de que a linguagem é odomínio por excelência da ação sobre o outro e sobre o mundo. Como defen-de Felman, a promessa de amor donjuanesca pressupõe uma quebra em duplosentido: ao mesmo tempo em que seu discurso amoroso leva as mulheresseduzidas por ele a romperem relacionamentos anteriores, pressupõe que a pro-messa de amor não seja cumprida. E a relação entre a promessa donjuanesca ea promessa austiniana, nos termos de Felman, não é fortuita. A promessatematiza a própria questão do humano: Felman mobiliza, para tanto, a refle-xão de Nietzsche sobre o animal prometedor. Se em Aristóteles a ontologia dohumano remete ao fato de o homem ser um animal político, o que evidenciauma definição de homem tendo em vista a especificidade de seus atos, emNietzsche o passo vai mais além: é o homem um animal prometedor. Trata-sede uma posição que encara o humano não apenas a partir de seus atos, mas deseus atos de linguagem (não é a promessa um ato de fala por excelência?).

A leitura de Felman revela então que tanto a teoria de Austin quanto osgestos de sua escrita informam a relação mesma entre sujeito, linguagem e reali-dade. Sua leitura recupera o potencial dialógico e constitutivo da linguagem: “Sea linguagem do performativo se refere a si mesma, produz a si mesma como suaprópria referência, esse efeito de linguagem é no entanto uma ação, uma açãoque excede a linguagem e modifica o real” (Felman, 1980:108; tradução minha).No que podemos qualificar como uma postura interventora, Felman parte danoção de que, na teoria de Austin, o ato de fala não é imune à falha, ao tropeçoe ao abuso, para chegar à conclusão de que a capacidade para a falha (em outraspalavras, a quebra da promessa) é constitutiva do performativo. O ato de fala,enquanto produto e produtor do corpo falante, é, nos termos da autora, escanda-loso, principalmente porque vai de encontro a uma tradição metafísica que sepa-ra mente e corpo, linguagem e ação, constativo e performativo.

Nos textos da filósofa americana Judith Butler (p. ex. Butler, 1997 e2003), podemos verificar um movimento de interpretação e reformulação dateoria dos atos de fala que tem apresentado implicações cruciais para o estudo

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do sujeito, do gênero e da política. A performatividade, nos termos de Butler,é o que permite e obriga o sujeito a se constituir enquanto tal. Investindo naidéia de que o ato de fala é também um ato corporal e de que seu funciona-mento se dá numa cadeia de iterabilidade e citacionalidade4 , Butler defendeque o sujeito reivindica sua identidade (ou que ela é reivindicada para ele) pormeio de atos de fala que iteravelmente tematizam a sua própria existência. Nostermos da autora, os enunciados “nasceu uma menina” ou “ele é um maricas”,pronunciados pelo médico ou pelo colega de classe, respectivamente, não ape-nas constatam um estado de coisas no mundo; para muito além disso, trata-seda construção performativa de uma feminilidade [girling] e de uma homosse-xualidade. A questão a interessar Butler, ao longo de seus textos, especialmenteExcitable speech (1997), diz respeito à compreensão do processo por meio doqual o ato de fala constitui o sujeito e de como esse sujeito, a partir de então,iteravelmente, isto é, outra vez [iter] e para o outro [itera], passa a repetir ascondições discursivas que permitem a sua viabilidade enquanto sujeito. E decomo esse sujeito, em sua ação lingüística, passa a, performativamente, consti-tuir e reivindicar a identidade de outrem. Performatividade ganha então oestatuto de processo de constituição do eu — processo, nos termos de Butler,vulnerável à falha, ao tropeço, ao abuso, à violência e à abjeção.

Como afirmei anteriormente, essas diferentes interpretações do pensamen-to austiniano consistem, também, em intervenções no seu pensamento. O ato defala que lemos em Searle, Felman e Butler é, portanto, um conceito reformulado,em função, sobretudo, dos interesses e filiações teóricas desses autores. No que sesegue, tento demonstrar que a tradução empreendida por Danilo Marcondes podeser situada nesse mesmo movimento de intervenção. O esforço que empreendianteriormente em mobilizar a teoria desses autores não consiste tão-somente emdesvelar a retórica da intervenção em Austin, mas se transforma em parâmetro paraa própria análise da tradução. Vale salientar que se trata de uma leitura indiciária(cf. Ginzburg, 1989) de HT e de sua tradução para o português. Segundo o histo-riador italiano Carlo Ginzburg, o paradigma indiciário é um modelo epistemológicoque emergiu nas ciências humanas no final do século XIX e que busca, nos porme-nores mais negligenciáveis, nos dados marginais, nos indícios, nas pistas, evidênci-as de fenômenos de grande alcance. Ginzburg parte do exame dos métodosinvestigativos de Morelli, Freud e Sherlock Holmes, que se centravam, respectiva-mente, na atenção ao pormenor do signo pictórico, ao sintoma e ao indício docrime, para propor um paradigma de “rigor flexível” e que se atém ao singular, nosentido de que “as pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade maisprofunda, de outra forma inatingível” (Ginzburg, 1989:150).

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A tradução brasileira como intervençãoDanilo Marcondes, o tradutor brasileiro, é um filósofo que conhece a

fundo a teoria dos atos de fala. Sua tese de doutorado versou sobre o tema, e ésignificativo notar que o livro em que sua tese se transformou indica, já em seusubtítulo, que o autor procede a uma reavaliação da teoria dos atos de fala. Eiso título: Language and action: a reassessment of speech act theory. Em outro texto,o autor afirma textualmente sua postura de interventor:

Parece-nos que a Teoria dos Atos de Fala, sendo assim repensada ecomplementada por essas noções que discutimos brevemente, é capaz de, aoinvestigar os problemas filosóficos na linguagem ordinária, dirigir sua aná-lise para o caráter ideológico da linguagem, constituindo-se assim comométodo crítico. (Marcondes, 1992: 30, ênfase acrescida).

Mas a sua intervenção não se restringe aos textos que escreveu sobreAustin, mas também, e é nesta hipótese que este trabalho investe, no que eleescreve em Austin. Em outras palavras, a tradução para o português de HT nãofoi, por assim dizer, “apenas” uma tradução, mas um gesto de intervenção nopensamento de Austin. É válido esclarecer que não se trata aqui de reivindicara fidelidade ao texto original que Danilo Marcondes não conseguiu alcançarem sua versão para o português. Sendo a tradução uma atividade assentada emnossa capacidade humana, demasiado humana de conhecer, ela é, inevitavel-mente, gerada a partir da “interpretação, da perspectiva, do sócio-cultural e dosubjetivo” (Arrojo, 1990:50). Propor uma investigação que denuncie tão-so-mente os momentos em que Danilo Marcondes trai Austin não seria senãoinvestir na possibilidade de uma leitura realmente objetiva, de uma interpreta-ção logocêntrica e racional, de uma tradução supra-humana, enfim. Não sedesvincularia também da crença de que existe uma essência no texto original,sendo a tarefa do tradutor, seja quem for ele ou ela, capturar essa essência etransportá-la para outra língua. Ao contrário, interessa-me problematizar essatradução diante das circunstâncias em que foi produzida, tendo em vista, par-ticularmente, o fato de que se tratava não do transporte estável das palavras deAustin para o português, mas sim de uma tradução (realizada por um filósofo)de idéias e estilo que, segundo a prática da filosofia, precisam ser filtrados emesmo domesticados.

A não convencionalidade do texto de Austin e o distanciamento, emtermos de estilo, daquilo que se espera de um tratado filosófico podem serpercebidos já quando deparamos com o seu título, How to do things with words.

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Como bem lembra Felman (1980), o título remete a best-sellers tais comoHow to win friends and influence people e How to stop worrying and start living,de Dale Carnegie. Ao mesmo tempo em que propõe uma densa reflexão emtorno da ação pela/na linguagem, Austin anuncia seu humor já no título. E éprecisamente aqui, no título, que encontramos o primeiro indício da promessade uma teoria em Austin. Queres saber como fazer coisas com palavras? Eis ummanual, uma proposta, uma promessa, enfim. O título em português, Quandodizer é fazer. Palavras e ação, segue a tradução francesa, feita por Gilles Lane(1970), Quand dire, c’est faire5 . Essa escolha revela uma atitude por parte dostradutores de não apenas tornar o título mais sério, retirando-lhe o caráterescancarado de manual presente no original, mas também insinua, conformeapontou Rajagopalan (1990), uma subordinação do fazer ao dizer, o que de-monstra uma afinidade com a teoria proposta por Searle, cujo princípio deexprimibilidade “segundo o qual tudo o que é passível de se pensar é passíveltambém de se dizer [...] subordina o feito ao dito enquanto concretização dodizível” (Rajagopalan, 1990:247).

As doze conferências que compõem HT, apenas numeradas na ediçãooriginal, recebem na tradução brasileira, além dos números, subtítulos quesintetizam o tema de cada conferência e certamente orientam o leitor. O tra-dutor acrescentou também notas de rodapé, marcadas com asterisco, com ointuito de comentar a tradução e o significado de alguns termos, remeter aoutros textos, etc. A versão brasileira contém ainda uma apresentação à filoso-fia de Austin elaborada pelo próprio tradutor-filósofo. Essa apresentação faztambém menção a dificuldades que o tradutor encontrou no texto austiniano,tendo em vista principalmente o seu caráter “coloquial, idiomático e fluente”(já que havia sido escrito com vistas à apresentação oral) e por se tratar de obra“original e polêmica” (Marcondes, 1990:14), repleta de termos técnicos e neo-logismos6 .

O texto austiniano realmente combina a erudição e o melhor do humoringlês com um “estilo faceto e descontraído” (Rajagopalan, 1992:291). Consi-derando-se o que comumente se espera de um tratado filosófico, é de se estra-nhar, à primeira vista, um texto filosófico que contenha humor e coloquialismo.Afinal, o território da metáfora, da piada, da ironia, enfim, da linguagem figu-rada é, por excelência, a literatura e a poesia — o que remonta à afirmação dePlatão de que a república ideal não era lugar para poetas. Mas o texto austinianovai de encontro a essa tradição: Austin, como defende Felman (1980), exercitaem sua escrita o potencial mesmo de sua teoria, de modo a agir (i.e., seduzir)com as palavras:

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EXCERTO 1Of course, this is bound to be a little boring and dry to listen and to digest7 ;not nearly so much so as to think and write. Moreover I leave to my readers thereal fun of applying it to philosophy. (p. 164).

É claro que tudo isso é um tanto cansativo e árido para se ouvir e assimilar;mas não tanto quanto o foi conceber e redigir a teoria. Mas seu verdadeirointeresse começa quando passamos a aplicá-la à filosofia. (p. 132).

EXCERTO 2(I) How widespread is infelicity?Well, it seems clear in the first place that, although it has excited us (or failedto excite us) in connexion with certain acts […], infelicity is an ill to which allacts are heir […]. (p. 18).

(1) Qual o alcance da infelicidade?Em primeiro lugar, embora isto possa nos ter estimulado (ou deixado de esti-mular) em relação a certos atos [...] a infelicidade é um mal herdado por todosos atos [...] (p. 34)

EXCERTO 3I do not think that these uncertainties matter in theory, though it is pleasantto investigate them and in practice convenient to be ready […] with a termi-nology to cope with them. (p. 24).

Estas questões, em meu entender, não têm importância teórica, embora sejade interesse investigá-las e, na prática, é conveniente estar familiarizado [...]com a terminologia apta a lidar com elas. (p. 37).

Pelos excertos acima, podemos perceber que Austin revela o prazer (às vezes, afalta dele) na teoria que propõe. Note-se que as expressões grifadas nos excertosdo texto de partida são usos metafóricos que remetem ao prazer do riso (realfun), da comida (digest) e até do sexo (excited). O tradutor, em geral, recorre ausos literais (verdadeiro interesse, estimulado) ou de usos metafóricos “maisamenos” (assimilar). Danilo Marcondes, ao fazer essas escolhas, parece com-partilhar da crença, consagrada durante muito tempo na filosofia, de que ametáfora é um recurso acessório e mesmo um embuste ou um abuso. De acor-do com essa visão, seu uso deve ser evitado nos textos que se pretendem à

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verdade, como o científico e o filosófico. Autores como Lakoff & Johnson(1980) e Lima (1999), contrapondo-se a essa visão, demonstram que a metá-fora é na verdade um recurso ubíquo que tem sua motivação em nossa experi-ência com o corpo e com o mundo e, portanto, expressa a maneira comocompreendemos as coisas. E Austin investe no uso da metáfora. Para desconstruirfetiches e crenças tradicionais, ele inclusive brinca com o diabo e com o para-íso. Danilo Marcondes, por seu turno, seguindo o modelo que se espera de umtratado filosófico, imprime um ar de seriedade na tradução:

EXCERTO 4I distinguish five very general classes: but I am far from equally happy about allof them. They are, however, quite enough to play Old Harry8 with two fe-tishes which I admit to an inclination to play Old Harry with, viz. (I) thetrue/false fetish, (2) the value/fact fetish. (p. 151)

Distingo cinco classes gerais de verbos, mas não estou totalmente satisfeitocom elas. Entretanto, abrem a nossos olhos um campo mais rico do que senos movêssemos unicamente com os dois fetiches: 1) verdadeiro/falso; 2)fato/valor. (p. 123)

EXCERTO 5[…] ‘I name this ship the Mr. Stalin’ […] but the trouble is, I was not theperson chosen to name it (…). We can all agree(1) that the ship was not thereby named;(2) that it is an infernal shame (p. 23).

[…] “Batizo este navio com o nome de ‘Senhor Stalin’” [...] A dificuldade,porém, está no fato de não ter sido eu a pessoa escolhida para batizá-lo [...].Todos concordamos que:(1) o navio não foi batizado por este ato;(2) foi um terrível vexame. (p. 37)

EXCERTO 6We were to consider, you will remember, some case and senses (only some,Heaven help us!) in which to say something is to do something […] (p. 12)

Como devem estar lembrados, íamos considerar alguns (apenas alguns, feliz-mente!) casos e sentidos em que dizer algo é fazer algo [...] (p. 29)

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No original, Austin utiliza-se de muitos recursos dialógicos (como o usofreqüente do pronome you e do modo imperativo, que aproximam o texto doleitor) e do pronome de primeira pessoa, que marca a sua presença no texto. Aestratégia de Marcondes foi, muitas vezes, de tornar o texto impessoal, embo-ra, é preciso deixar claro, a tradução conserve muito de tais recursos dialógicose do uso da primeira pessoa, como pode ser percebido no excerto 6 acima.Vejamos, a seguir, momentos em que o tradutor torna o texto impessoal.

EXCERTO 7[…] Misapplications […] ‘I appoint you’, said when you have already beenappointed, or when someone else has been appointed, or when I am not entitledto appoint, or when you are a horse: ‘I do’, said when you are in the prohibiteddegrees of relationship, or before a ship’s captain not at sea (…) (p. 34)

[…] más aplicações. […] “Eu o nomeio”, dito quando a pessoa já foi nomea-da, ou quando foi nomeada por outra pessoa, ou quando eu não tenho o poderde nomeá-la, ou quando o nomeado é um cavalo. “Sim”, quando se tem umgrau de parentesco com a noiva que impede o casamento, ou diante de umcapitão de navio que não está no mar […] (p. 44)

EXCERTO 8(i) We have the case of procedures which ‘no longer exist’ […](ii) We have even the case of procedures which someone is initiating. […] (p.30)

(I) Há o caso de procedimentos que “não mais existem” […](II) Há também o caso de procedimentos recentemente inaugurados […] (p.41).

EXCERTO 9[…] MISFIRES […] ABUSES (do not stress the normal connotations of these names!)(p. 16)

[…] desacertos […] abusos… (obviamente, não se devem enfatizar asconotações usuais destes termos) (p. 32)

A tradução do excerto 7 indica a domesticação de um dialogismo que pareceultrapassar os limites. Afinal, aventar a hipótese de que o ato de nomear será

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infeliz se o leitor for um cavalo é, de fato, brincar pesado. A idéia de “limites”da tradução do humor de Austin é desenvolvida textualmente pelo própriotradutor.

[…] procurei sempre, na medida do possível, conservar os traços caracterís-ticos do estilo coloquial de Austin, adaptando para o português, quando istose impunha, seus exemplos e as expressões idiomáticas utilizadas. (Marcondes,1990, p. 14, ênfases acrescidas)

O excerto em questão parece ser um caso em que Marcondes conside-rou que não era adequado “conservar os traços característicos do estilo deAustin”. Em outras palavras, foi necessário impor o “filtro” do filósofo, daque-le que enxerga com clareza e sabe quais são os limites do humor no textofilosófico. Muitas vezes, no entanto, a necessidade se impôs e Marcondes con-servou nas piadas de Austin os santos que batizam pingüins, os casamentoscom macacos, a avaliação da beleza das palavras, embora o ritmo geral tenhasido, com freqüência, de “colocar panos quentes”. Podemos afirmar que setrata da construção, na tradução, de um ethos9 sério, moderado, prototípicodos filósofos tradicionais, ao contrário do ethos descontraído e faceto que mui-tos autores apontaram no texto original.

Há vários indícios de que o humor e o uso de neologismos (dentre ou-tros recursos) no texto de Austin não são fortuitos. Subjazem a eles importan-tes questões para a sua teoria. Segundo Felman (1980) trata-se do exercício,em sua escrita, do próprio potencial performativo da linguagem. O humor deAustin, para Rajagopalan (1992), deve ser encarado e entendido seriamente.Diz o autor que “compreender a empresa filosófica de Austin acarreta a toma-da de determinada atitude a respeito de seu humor e de suas piadas, inclusiveas bobas” (p. 297). Quanto aos neologismos, lembra Lane (1970) que, porexemplo, o termo inglês “constative” “não apenas não existe em inglês, comotambém não contém nem mesmo a raiz existente em qualquer outra expressãoinglesa”. Lane afirma que Austin, com a criação de “termos insólitos”, queriaevitar reter em expressões muito familiares as significações pré-concebidas queele acreditava ser de sua obrigação combater.

Evidentemente, o ethos mais sério da versão brasileira, a preferência porrecursos menos dialógicos e pessoais, entre outros gestos de escrita, tambémtem sua razão de ser; subjazem a ele questões interessantes para entender aparticipação de Danilo Marcondes nesse empreendimento chamado “inter-pretação de Austin” e a própria questão da tradução enquanto problema filo-

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sófico. Nesse sentido, algumas perguntas poderiam ser delineadas: o que signi-ficam os gestos de escrita de Danilo Marcondes? Como entender essa traduçãono contexto de sua teorização em filosofia da linguagem e no horizonte maiorde outras interpretações da teoria dos atos de fala? Seriam as identidades deAustin e de sua filosofia, tais como se concebem hoje, independentes do traba-lho de tradução e interpretação de seu pensamento?

Palavras finaisA domesticação do humor e do estilo de Austin, além das outras

estratégias de que o tradutor brasileiro lança mão, como a adaptação dotítulo, a criação de subtítulos, entre outras, marcam a intervenção de DaniloMarcondes, filósofo e tradutor, no texto e no fazer filosófico de Austin. Talintervenção se dá em consonância com o funcionamento mesmo da tradu-ção enquanto atividade de leitura e interpretação, portanto um trabalhoideológico, como indica Arrojo (1990). Mas não só isso. A questão da tra-dução de Austin nos leva também à questão da construção discursiva daidentidade. Não se pode afirmar que exista uma essência no texto de Austine que a tarefa do tradutor, seja quem for ele ou ela, seja capturar essa essên-cia e transportá-la para outra língua. Não se trata, em outras palavras, dereclamar a fidelidade de Danilo Marcondes ao texto “original” de Austin,porque o “‘original’ não existe como um objeto estável, guardião implacá-vel das intenções originais de seu autor” (Arrojo, 1993:16). O que está emjogo nessa tradução é o trabalho de interpretação das idéias de Austin,tendo em vista que esse trabalho se deu, para além do conhecimento daslínguas e da teoria, numa matriz de poder, no caso, a filosofia, que autorizacertos dizeres e não outros, certas maneiras de dizer e não outras, certosgêneros e não outros. Ou seja, o que está em jogo é a reivindicação de certaidentidade para uma filosofia e para um autor, na linguagem, ou melhor,na tradução. A tradução de Danilo Marcondes, nesse sentido, funcionacomo a narrativa (ou melhor, o tratado) em que a identidade do Austin doQuando dizer é fazer se sustenta.

Aventar a articulação da questão da identidade com a da tradução, numaabordagem performativa da linguagem, coloca em relevo o papel eminente-mente ético das traduções e das próprias teorias. Afinal, se pensamos que astraduções e as teorias, assim como as identidades, não são dados e sim construtos,estamos tratando, em última instância, de escolhas — e é no território dasescolhas que se situa a ética. Sobre a questão da construção de identidades natradução, Venuti afirma o seguinte:

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Se a tradução tem efeitos sociais de tão grande alcance, se ao formar identi-dades culturais ela contribui para a reprodução e para a mudança social,parece importante avaliar esses efeitos, questionar se eles são bons ou ruins,ou, em outras palavras, se as identidades resultantes são éticas (Venuti,1998:195).

Na cadeia iterável do ato de fala (isto é, para o outro e de novo),recursivamente (e eticamente), (re)interpretamos a nós mesmos e ao mundo eforjamos a nossa identidade. Na cadeia iterável da tradução, Danilo Marcondesreivindicou a identidade de Austin que, dado o seu compromisso com a filoso-fia, lhe era conveniente, e é nessa iterabilidade que se situam as possibilidadespara outras traduções e para a reivindicação de outras identidades.

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1 Este trabalho foi apresentado no III Encontro Internacional de Tradutores da Associação Brasileirade Pesquisadores em Tradução (ABRAPT), em Fortaleza, CE, setembro de 2004. Sou especialmentegrato a Maria Paula Frota e Paulo Henriques Britto pela leitura primorosa a que submeteram estetrabalho e pelas valiosas críticas e sugestões. No entanto, as eventuais falhas que permanecerem aquisão de minha inteira responsabilidade.2 Embora o filósofo da Escola de Oxford tenha desenvolvido suas reflexões sobre o ato de faladurante as décadas de 1940 e 1950, faço menção à década de 1960 em virtude da publicação póstu-ma de How to do things with words (1962).3 A proposta de classificação dos atos de fala em termos de atos locucionários, atos ilocucionários eatos perlocucionários, a partir da conferência VII, surge como resposta à demanda por tal teoria (cf.Felman, 1980). O ato locucionário corresponde a uma noção de significado, conforme sua definiçãoem lógica como sentido e referência; o ato ilocucionário corresponde à força do enunciado, isto é, àação que é realizada ao se dizer algo (p. ex. informar, ordenar, prometer), considerando a situaçãoconcreta de interação; o ato perlocucionário corresponde aos efeitos produzidos por um enunciadono interlocutor, trata-se da ação realizada porque dizemos algo (p. ex. persuadir, convencer, surpreen-der).4 De acordo com Derrida (1991), o conceito de “iterabilidade” (do latim ‘iter’, de novo, e do sânscrito‘itera’, para o outro) consiste na idéia de que o ato de fala “repete” as condições discursivas de umoutro lugar, de sua pretensa “origem”, para a alteridade. Mas não se entenda essa repetição comouma manutenção estável ou fixa do significante. A repetição inscrita na iterabilidade é, na verdade,uma re-petição. Nela se delineia o território do outro, que, no ato mesmo de re-pedir, na sua re-petitio, instaura a novidade, justamente porque “não há incompatibilidade entre a repetição e anovidade do que difere” (Derrida, 2004:331). Nos termos de Butler (1997), o performativo funci-ona exatamente nesta cadeia iterável, de modo a estabelecer uma “citacionalidade”: o performativocita, ecoa ações anteriores e “acumula a força da autoridade pela repetição ou citação de uma sérieanterior e autoritária de práticas” (p. 51; tradução minha).5 O título da versão para o espanhol, realizada por Genaro R. Carrió e Eduardo A. Rabossi, mantémo humor do original: Cómo hacer cosas com palabras.

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6 Gilles Lane (1970), em sua introdução à tradução para o francês do HT, também tece comentáriossobre o estilo e o vocabulário de que Austin lança mão. Segundo o tradutor, trata-se de um texto aomesmo tempo desenvolto e sério. Relembra ao leitor que Austin não o havia redigido com vistas àpublicação, mas sim à sua apresentação em forma de conferências “que ele queria aliás eximir detoda pretensão (oratória ou temática), se é que não da verdade” (p. 132) [ênfase no original; traduçãominha]. Quanto ao vocabulário do texto, Lane afirma que este pode “surpreender, distrair e atémesmo chocar” (id.ibid.).7 Nesses excertos os itálicos são de Austin/Marcondes e os negritos são meus.8 Old Harry significa “diabo”, “satã”.9 Cf. Maingueneau, 1998. Defende o autor que a noção de ethos — originalmente desenvolvida porAristóteles, para quem todo orador transmitia, por seus gestos e entoações, uma imagem de si —remete à corporalidade e ao caráter do enunciador implicadas em todo discurso. O leitor ou ouvinte,espontaneamente, atribui uma representação, nesses termos, do enunciador em função de seu modode dizer. “Atribuímos a ele”, diz Maingueneau, “um caráter, um conjunto de traços psicológicos(jovial, sério, simpático...) e uma corporalidade (um conjunto de traços físicos e indumentários).‘Caráter’ e ‘corporalidade’ são inseparáveis, apóiam-se em estereótipos valorizados ou desvalorizadosna coletividade, em que se produz a enunciação.” (Maingueneau, 1998:60; grifos do autor).

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TRADUÇÃO, CORPOS NUS E TROCA DE ROUPAS1

Ben Van Wyke

O discurso sobre tradução se encontra saturado de metáforas que sãousadas na tentativa de se explicar o que é e como funciona o processo tradutórioe, portanto, também para tentar nos orientar sobre a melhor forma de realizartraduções. É particularmente interessante o emprego freqüente de metáforaspara descrever a atividade dos tradutores quando consideramos, por exemplo,que tanto “metáfora” como “tradução” estão diretamente associadas à mesmaraiz grega (meta: além de; pherein: carregar, transportar), o que as coloca emterreno comum, permitindo-nos, talvez, tentar compreender como as metáfo-ras geralmente funcionam através de um exame dos mecanismos da tradução.O alvo deste trabalho, contudo, é uma metáfora que tem sido utilizada pormuitos que têm teorizado a tradução: a metáfora da roupa, que imagina osignificado textual como um corpo vestido com palavras. Uma determinadalíngua se torna, assim, a vestimenta que envolve o corpo essencial que protege.De acordo com essa visão, traduzir implica desvestir o significado numa línguae trocar as roupas originais por um novo traje lingüístico. Os significados es-trangeiros devem usar as roupas próprias do país para o qual se transferem sequiserem ser compreendidos. Dessa forma, aquilo que se apresenta original-mente em roupas típicas dos esquimós poderá ser traduzido para um sari indi-ano, um samurai pode se transplantar para um conquistador espanhol, e atémesmo um vaqueiro texano pode assumir as roupas de um político.

As metáforas em geral são usadas para nos auxiliar a compreender umobjeto ou conceito através da comparação implícita desses com outro objetoou conceito. Criam-se, assim, pontos de semelhança, e algumas característicasdefinidoras do último passam a ser atribuídas também ao primeiro. No caso datradução, esses novos pontos de vista fornecem um tipo de compreensão que,por sua vez, freqüentemente se transfere à própria prática através da prescriçãode estratégias que se baseiam nas perspectivas abertas por determinadas metá-foras. Por exemplo, ao aceitarem que a linguagem e a tradução são compará-veis a mercadorias transportadas em trens de carga, ou a roupas arrumadas em

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malas, como propõe Eugene Nida, os tradutores tendem a abordar os textoscomo se fossem trabalhadores braçais que tentam carregar e distribuir a cargado significado a ser transportada em diferentes vagões lingüísticos (ver, porexemplo, Nida, 1975:190). Contanto que cada unidade de significado sejaembarcada no novo vagão e contanto que chegue ao seu destino, não importaexatamente onde tenha sido colocada. Voltando à nossa metáfora da vestimentatextual, poderíamos perguntar como auxiliaria os tradutores a compreendersua tarefa. Considerando-se a concepção que empresta aos mecanismos da tra-dução, essa metáfora auxiliaria os tradutores a realizar seu trabalho de formamais adequada? Se a resposta for afirmativa, qual seria, então, a meta daquelesque utilizam essa metáfora como base para descrever sua tarefa? Qual seria seuconceito do que é uma boa tradução? Seria aquela que melhor revela o signifi-cado do texto? Ou aquela que é mais agradável esteticamente? Ou, ainda, aquelaque cai melhor no corpo do significado? Ou aquela que melhor protege essecorpo das mudanças e das agressões externas? Ou, talvez, aquela que de formamais fiel revela o corpo nu que cobre?

Para examinarmos essa metáfora que cobre de roupas o significado, podeser útil lembrar alguns exemplos de sua utilização na história do discurso sobretradução. Em torno de 45 ou 44 a.C., ao discutir sua tradução de um texto defilosofia grega, Cícero escreve (e o lemos em inglês por intermédio de HarrisRackham [e, em português, desta tradutora]) que está “bem consciente” deque sua tradução, “ao tentar apresentar, numa vestimenta latina, questões queos filósofos de reconhecida capacidade e profundo conhecimento já aborda-ram em grego, com certeza sofrerá críticas de diferentes procedências”(Robinson, 1997:10). O corpo, neste caso, é constituído das questões filosófi-cas que, segundo Cícero, deveriam também ser apresentadas em roupagemlatina. Cícero deve, portanto, desvestir essas questões que se encontram total-mente envoltas com a língua grega e cobrir a nudez resultante para que possa-mos, de alguma forma, vê-la, ou, quem sabe, deve desenhar novas roupas quepoderiam se ajustar sobre as gregas para que pudéssemos, talvez, entrever seucaráter essencialmente grego. Qualquer que tenha sido sua estratégia para con-seguir chegar ao significado nu, ou qualquer que tenha sido sua abordagemespecial para criar a roupagem que pudesse vestir o significado original, seuuso da metáfora apresenta uma separação clara entre as questões filosóficas deum lado e, de outro, os trajes textuais que, neste caso, representam o grego e olatim. Cícero expressa seu temor de que muitos criticarão seu trabalho porquecrêem que a língua latina jamais poderia retratar por completo o significadonu que se encontrava perfeitamente vestido em trajes gregos e, ao mesmo tem-

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po, que as questões filosóficas abordadas jamais poderiam ser adequadamenteapresentadas em latim porque a roupagem representada por essa língua nãopoderia mostrar a verdade de forma tão apropriada quanto em sua vestimentaoriginal. Os críticos que Cícero imagina parecem crer que nenhuma língua, anão ser a original, estaria apta a revelar totalmente a verdade das questõesfilosóficas abordadas. Se é a língua grega que apresenta essas questões de formamais adequada, a tradução apenas pode ser um processo que tenta copiar, tãofielmente quanto possível, a relação original estabelecida entre o corpo e suaroupa. Como, obviamente, não consegue copiá-la com total exatidão, a nos-talgia em relação a essa combinação supostamente perfeita entre corpo e co-bertura aumenta quanto mais nos afastamos da língua do original.

Escrevendo no ano 395, São Jerônimo declara, através da tradução dePaul Carroll em 1997 [e, em português, através desta tradutora]: “Sempretentei traduzir a substância, nunca as palavras literais,” e prossegue recomen-dando um trecho do prefácio à tradução latina que Evágrio realizou da biogra-fia de Santo Antônio do Egito, originalmente escrita em grego por Atanásio:“Uma tradução literal de uma língua para outra esconde, como um casaco, osentido original, da mesma forma que um excesso de vegetação rasteira sufocaas colheitas” (Robinson, 1997:26). Se a má tradução é aquela que esconde osentido original, podemos inferir que as traduções que São Jerônimo aprecia-ria seriam as não literais, ou seja, aquelas que pudessem exibir o original, aoinvés de ocultá-lo em roupagem estrangeira. Assim, as palavras-vestimentasque os tradutores desenham e confeccionam não deveriam ser como um pesa-do abrigo de inverno que não permite entrever o que há por baixo e, sim,talvez, como um traje de ginástica que deixa poucas dúvidas em relação àsformas do corpo que cobre.

A metáfora da roupa também ocorre num ensaio intitulado “O tradutorideal como a estrela da manhã”, escrito por Johann Gottfried Herder em tornode 1766-67, em que critica os franceses porque, para eles, por exemplo, comoDouglas Robinson traduz [e esta tradutora retraduz], “Homero deve entrar naFrança como um prisioneiro, vestido à moda francesa, para que não ofenda osolhos dos que o recebem” (Robinson, 1997: 208). Fiel ao estereótipo tradicio-nal que geralmente separa os franceses e os alemães em questões relacionadas àtradução, Herder ataca a exigência de que Homero seja um escravo da modafrancesa. Compara esses ditadores da moda aos “pobres alemães” que, “por nãocontarem com um público, um país nativo, uma tirania do gosto nacional –apenas querem ver [Homero] como ele é” (ibid.). “Vê-lo como ele é” significa-ria, talvez, permitir que Homero mantivesse o máximo possível as suas roupas

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gregas para que os alemães, quando o vissem, pudessem reconhecê-lo comoum estrangeiro e, assim, sentir que estão abertos à diferença cultural associadaao significado que vem de fora. Os alemães permitiriam que Homero usasse otipo de vestimenta alemã que Herder e outros que pensavam como ele haviamimaginado, ou seja, uma roupa que fosse desenhada com o objetivo de pareceruma versão alemã dos trajes nativos que Homero originalmente usara. Herdernão esclarece o que seria esse Homero que se tornara um escravo da modafrancesa. Seria esse Homero o indivíduo, ou o conjunto de indivíduos queescreveram em grego sob esse nome? Seria o texto original grego o verdadeiroHomero? Ou seria Homero alguma “essência” que imaginamos sob as roupas dalíngua grega, ou seja, aquilo que até hoje atrai leitores e produz estudos sobreele – o Homero verdadeiro e desnudo que cremos ser mais fielmente retratadoem roupagem grega antiga?

Essa metáfora da roupa implica uma equação de dois elementos. De umlado está o “sentido original”, que também pode ser chamado de “significadoverdadeiro”. Do outro, temos a roupagem textual, que deveria ser tão facil-mente separável do significado como as roupas o são do corpo que envolvem.Theo Hermans escreve sobre outras metáforas que se assemelham a essa e mostracomo elas também se baseiam em oposições entre o conteúdo e o invólucro, operceptível e o imperceptível, concluindo que essas dicotomias implicam “apossibilidade da tradução ao separarem a ‘forma’ do ‘significado’ e ao priorizaremo segundo” (Hermans, 1985:120). Nessas oposições, o significado, concebidocomo conteúdo e como essência, é o elemento predominante, o alicerce dalíngua que o acomoda. E é esse conteúdo, ou essa essência, que deve ser man-tido e protegido o máximo possível.

A metáfora da linguagem como roupa, como outras metáforas textuais,reflete uma tendência do discurso sobre tradução que associa o trabalho dostradutores a representações marcadas por questões de gênero e sexo. Assim,como se supõe que o tradutor deve encontrar formas de despir o texto atéexpor o significado que se esconde por baixo do invólucro da língua original,com freqüência se discute a tradução com termos como violação, sedução,reprodução, fetichismo e infidelidade.2 Contudo, se levássemos essa metáforarealmente a sério e tentássemos aplicá-la literalmente, como poderíamos ima-ginar o tradutor desvestindo o significado de um texto? O tradutor deveriaarranhar a página para entrever o significado que se esconde por baixo? Tomaressa metáfora literalmente seria, sem dúvida, inadequado se considerarmosque, quando lidamos com a relação entre o corpo e a roupa, as pessoas em geralconseguem tirar suas roupas e descobrir sua nudez enquanto que, por baixo

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das palavras-roupas de um texto, não encontramos um significado-corpo quepudéssemos separar clara e literalmente da roupagem que o protege. Debaixodessas palavras poderíamos encontrar, apenas, uma página em branco que,embora fosse a meta de Mallarmé, em geral não nos satisfaz enquanto explica-ção do que um texto possa significar.

Alguns poderiam defender a propriedade dessa metáfora e, com razão,considerar ridículo o comentário acima. Argumentariam que o significado nãose encontra debaixo das palavras e que seria simplesmente expresso atravésdelas. Diriam que o significado é deduzido ao seguirmos as convenções grama-ticais ou lingüísticas que foram estabelecidas para nos mostrar o que certasroupas querem dizer sobre o corpo que carregam. Alguns ramos da lingüística,por exemplo, tentam nos fornecer o que consideram as melhores ferramentaspara encontrarmos significados, que nos permitiriam avaliar o corpo que nãopode ser visto sem suas roupas, ou diretrizes que prometem nos mostrar comoseria esse corpo se, obviamente, fosse possível vê-lo. Talvez pudéssemos dizerque o acesso ao significado envolveria mais a imaginação do que alguma formade dedução. A partir dessa perspectiva, que implica a possibilidade de se ima-ginar corretamente o significado que se esconde sob a roupagem do texto,pode-se dizer que uma boa tradução seria como uma malha de tecido elásticousada em atividades esportivas, um traje especialmente desenhado para man-ter o seu conteúdo adequadamente acondicionado, oferecendo suporte e pro-teção para certas partes do significado, além de claramente realçar todas asformas e músculos do corpo que cobre. Contudo, quando tratamos do signifi-cado, não sabemos realmente qual é a aparência desse corpo, ou até mesmo sehá um corpo debaixo das vestes que conhecemos.

Ao invés de pensarem o texto como uma forma de malha elástica, o queimplicaria que o corpo em questão é um objeto sólido e de contornos claros,outros podem propor que pensemos a roupagem textual como o lençol brancoque cobre um fantasma. A partir do lençol podemos imaginar o fantasma sobele com base em todas as imagens que colecionamos em nossas mentes a partirde velhas lendas, filmes ou até mesmo relatos de testemunhas mas, sem o len-çol, o fantasma nos escapa. Aqueles que pensassem em propor essa metáforado fantasma como uma versão mais apropriada daquela que utiliza o corpo e aroupa poderiam argumentar que o que quer que pensemos sobre a naturezados fantasmas, e qualquer coisa que dissermos sobre um possível fantasmainvisível escondendo-se debaixo do lençol, se basearia numa interpretação dolençol visível que, por sua vez, se basearia em toda a história do que tenhamosaprendido sobre a natureza dos fantasmas. A tradução poderia ser vista, nesses

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termos, como uma forma de recolocar o lençol visível sobre o fantasma invisí-vel. Nessa metáfora, estabelece-se uma distinção clara entre o fantasma e olençol da mesma forma que, na anterior, se separa o corpo da roupa. Alémdisso, como o significado parece sempre nos escapar, um fantasma típico podeser difícil de ser aprisionado. Mas, depois de nos assombrar, o lençol pode serremovido, dobrado e guardado enquanto que o fantasma retorna para ondequer que os fantasmas se refugiem quando não estão flutuando sob os lençóis,sem se importar com a cobertura que possibilitava sua visibilidade. Quanto aosignificado, sabemos que não flutua e depende sempre, e é inseparável, daspalavras – escritas ou faladas – em que se inscreve.

Essa reflexão parece sugerir que a metáfora do corpo e da roupa envolvedois lados que não são exatamente compatíveis. De um lado, na relação entreroupa e corpo, há dois objetos tangíveis; do outro, na relação entre palavra esignificado, apenas a palavra é tangível. Apesar disso, essa metáfora talvez ain-da possa nos ajudar a compreender a tradução se examinarmos mais de perto arelação entre roupa e corpo. Quando nos concentramos nesse lado da metáfo-ra, a primeira coisa que percebemos é que, para chegarmos a alguma conclu-são, em primeiro lugar teremos que superar o viés a favor do corpo que essametáfora implica ao sugerir que nossos corpos de alguma forma representamnossa verdadeira essência e que nossas roupas ao mesmo tempo cobrem e exi-bem essa essência que seria nosso significado original. Nossas roupas seriam,portanto, consideradas um reflexo do nosso “eu” que cobrem. Os estilos demoda que acabamos escolhendo seriam, em termos platônicos, a roupa-mimesecom a qual cobrimos nosso corpo-eidos.3 Entretanto, quando tiramos as rou-pas daquilo que, de acordo com a metáfora, seria nosso significado verdadeiro,somos confrontados com o texto do corpo, o que pode nos levar não apenas acultivar nossos corpos, mas também a buscar outras formas de mostrar aosoutros quem realmente somos. Com freqüência, tentamos mostrar ao mundoesse verdadeiro “eu” que imaginamos estar em algum lugar escondido sob to-dos os adereços e recursos textuais que usamos. Sabemos, contudo, que essesadereços e recursos são produtos do nosso “eu”, seus reflexos miméticos e, não,nosso “eu” propriamente dito. Em busca de nosso eidos, removemos camadaapós camada à procura do que seria nossa essência. Assim, quanto ao nossocorpo, embora num primeiro momento possamos considerar que seja nossaverdadeira essência sob as roupas, logo percebemos que é apenas outro texto e,na tentativa de encontrá-la em camadas mais profundas daquilo que nos cons-titui, podemos também considerar que nosso significado essencial estaria emnosso sangue, em nosso coração, ou em nosso cérebro. Quando essas metáfo-

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ras não nos convencem, tentamos localizar aquilo que nos definiria num lugaralém do físico, como nossa alma ou nosso inconsciente.

Como não podemos segurar em nossas mãos aquilo que seria nossosignificado essencial, nem mostrá-lo aos outros, e como não podemos nunca iralém de mais superfícies textuais, recorremos a essas metáforas textuais que nosfornecem modos de expressão que, como sabemos, não refletem em sua totali-dade aquilo que realmente somos, mas não conseguimos imaginar nenhumaoutra forma de expressão. Precisamos acreditar que o que fazemos, ou que osrecursos que utilizamos para nos expressar realmente dizem, até certo ponto,algo sobre esse “eu” que teima em nos escapar. Como não podemos ofereceraos outros nosso “sentido original”, nos vestimos com textos que serão, namelhor das hipóteses, interpretados de forma satisfatória – ou seja, de forma arefletir pelo menos parte do que realmente somos. Se as roupas que escolhe-mos realmente influenciam a forma pela qual pensamos em nós mesmos quandodesnudos, talvez seja possível que nossas roupas sejam, pelo menos às vezes,uma melhor forma de mostrar nosso “eu”. Mas estaríamos conscientes dessarelação que estabelecemos entre corpo e roupa? Será que nos lembramos denossas roupas, máscaras e fantasias quando estamos nus? Quando estamos nus,ainda pensamos em nós mesmos de acordo com os significados que atribuímosàs nossas roupas? Talvez a nudez seja tão desconfortável para muitos de nósprecisamente porque temos que lidar com a ausência dos textos que estamosacostumados a usar como anúncios publicitários que carregamos, com decla-rações do tipo “este(a) sou eu”, “este é o meu verdadeiro eu”, com o objetivo dedizer ao mundo o que somos. E quando nos despimos desses textos habituais,é fácil esquecer que nossa nudez é, também, nada além de outro texto, efreqüentemente agimos como se os textos que vestimos fossem, na verdade, oque realmente somos, pelo menos aos olhos de nossos leitores. Será que esco-lhemos um estilo de moda e depois simplesmente o seguimos? Em que medidanos identificamos com os trajes que escolhemos (que não precisam se limitaràs roupas literais, envolvendo também as atividades que realizamos) e segui-mos o que sabemos que eles supostamente significam? No fundo, entretanto,sabemos que tudo isso não refletiria, na íntegra, o que realmente somos – ourefletiria? Na verdade, o que parece acontecer é que levamos os outros e, talvez,nós mesmos, a acreditar (e a desconfiar de) que somos aqueles que realmenteconsideramos ser.

Essa idéia de separar claramente o que alguns chamam de essência desua apresentação externa é ilustrada de forma exemplar por um trecho do po-ema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos:

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Fiz de mim o que não soube,E o que podia fazer de mim não o fiz.O dominó que vesti era errado.Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.Quando quis tirar a máscara,Estava pegada à cara.Quando a tirei e me vi ao espelho,Já tinha envelhecido.Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.Deitei fora a máscara e dormi no vestiárioComo um cão tolerado pela gerênciaPor ser inofensivoE vou escrever esta história para provar que sou sublime.

(Pessoa, 1974:365)

Nesse trecho, a noção de identidade se encontra de tal forma envolvidacom sua roupagem que não pode ser separada de sua expressão. Como apren-demos com o eu lírico de Álvaro de Campos, mesmo se retirarmos nossasroupas-texto, há um corpo-texto sob elas que também nos serve de máscara. Epor trás dela, há outra máscara e, depois, outra e, ainda, outra, e nunca atingi-mos essa essência que constantemente cremos estar em algum lugar dentro denós. Portanto, segundo essa concepção, nossa identidade real, ou nosso verda-deiro “eu”, não poderia existir completamente fora de suas expressões físicas(textuais).

A impossibilidade que o eu lírico de Álvaro de Campos encontra aotentar descobrir uma identidade que esteja livre do “eu” que a roupagem im-plica é a mesma impossibilidade de se descobrir um significado que seja com-pletamente separável da linguagem em que aparece vestido. A concepção tra-dicional da tradução e seu mecanismo, que pode ser exemplificada através dametáfora das roupas, se baseia no princípio segundo o qual, embora impossí-vel, toda tradução deve ter como meta ser uma cópia perfeita. Assim, os tradu-tores deveriam descobrir os significados que se encontram sob as palavras e,em seguida, tentar copiar, na língua-alvo, o que crêem ter encontrado. Já quea cópia que preparam não poderá nunca conter a totalidade do significadooriginal pois, para poder copiá-lo em outra língua, é necessário mudar as rou-pas em que vem envolvido, os tradutores tendem a pensar o resultado de seutrabalho como uma cópia inferior. Quando compreendem sua tarefa sob essaluz, tentam produzir cópias que apresentem os significados que mais se asse-melham ao original, ao mesmo tempo em que sabem que haverá perdas pois,como vimos, julga-se que um indivíduo grego, por exemplo, poderá retratar

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da melhor maneira seu significado original quando vestido com roupagemgrega. Avalia-se, assim, o grau de semelhança entre o corpo imaginado sob ooriginal grego e aquele que se imagina sob a tradução. Não é de surpreender,portanto, que a tradução seja geralmente associada a termos negativos comotraição e infidelidade.

Contudo, se repensarmos a metáfora da roupagem com o auxílio daproblematização da relação entre invólucro e identidade mencionada acima, épossível compreendermos a tradução de uma forma diferente. A concepçãotradicional dessa metáfora se baseia na idéia de uma essência pura, de um eidosescondido que se apresentaria numa série de representações (como, por exem-plo, o corpo ou as roupas). Nossa aparência seria uma cópia, embora imperfei-ta, dessa essência. Em termos platônicos, há boas cópias e más cópias, boa e mámimese, sendo que as boas cópias são as que nos proporcionam uma compre-ensão correta dessa essência e as más as que nos levam a uma essência falsa. Umexemplo fácil poderia ser a declaração freqüente de que alguém não é realmen-te o que parece ser: “Ele se veste como um perdedor, mas é, na verdade, umcara inteligente”. Ou: “Ela parece tímida mas, quando você a conhece melhor,percebe que, na realidade, ela é...” Todas as roupas têm a pretensão de nosrepresentar. Se seguirmos o modelo platônico, temos que distinguir entre asroupas que corretamente nos remetem à nossa essência verdadeira e imutável eaquelas que nos apontam para uma falsa. Entretanto, como poderíamos come-çar a distinguir entre essas cópias e representações corretas e incorretas se aexperiência nos mostra que não conseguimos chegar à essência, apenas a maiscópias e representações?

Privilegia-se, geralmente, a idéia da cópia, da boa mimese, em detri-mento do simulacro, como observa Gilles Deleuze em “Simulacro e filosofiaantiga”. As cópias, de acordo com o modelo platônico, supostamente se asse-melham à essência porque a contêm (ainda que não as contenham completa-mente), enquanto que os simulacros são “construídos a partir de umadissimilitude”, o que implica “uma perversão, um desvio essenciais” (2003:262). Essa noção de que o simulacro se baseia numa dissimilitude pode sercompreendida, também, à luz do problema de identidade encontrado pelo eulírico que veste o dominó em “Tabacaria”. Nomeia-se a essência a partir dasuperfície física do texto e sempre haverá espaço para outras interpretações queestabelecem essências diferentes, e até mesmo contraditórias, para um mesmotexto pois há dissimilitude e diferença naquilo que deveria ser o cerne do texto.Segundo Deleuze, as noções de cópia e simulacro apresentam formas muitodiferentes de encarar o mundo:

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Trata-se de duas leituras do mundo, na medida em que uma nos convida apensar a diferença a partir de uma similitude ou de uma identidade prelimi-nar, enquanto a outra nos convida ao contrário a pensar a similitude e mesmoa identidade como o produto de uma disparidade de fundo. A primeira defi-ne exatamente o mundo das cópias ou das representações; coloca o mundocomo ícone. A segunda, contra a primeira, define o mundo dos simulacros.Ela coloca o próprio mundo como fantasma. (Deleuze, 2003:267).

Se os alicerces sobre os quais construímos nossas leituras são um fantas-ma que eternamente evita a possibilidade de uma designação imutável, entãonão podemos definir a tradução em termos de cópia porque o que suposta-mente copia não é estável. Sob o próprio original há um fantasma que nãoconta com uma essência definitiva. Se não fosse assim, nunca haveria discussãoalguma em relação aos significados dos textos. O texto, na verdade, serve comouma provocação para se criar significado, embora, ao mesmo tempo, o escon-da com a multiplicidade. Se considerarmos que não nos é possível chegar a umsignificado estável e definitivo a partir do qual poderíamos produzir cópias,teremos que concluir que as cópias são, de certa forma, apenas simulacros oumáscaras que, em determinadas ocasiões, foram chamadas de rostos, comoilustra o fragmento de Álvaro de Campos citado acima. Como não consegui-mos chegar a uma essência que nos permitiria distinguir clara e objetivamentea cópia do simulacro, ou o mesmo do semelhante, podemos dizer que a distin-ção tradicionalmente estabelecida entre a cópia, como repetição do mesmo, eo semelhante, em que o mesmo é marcado pela diferença, é uma simulação.Para Deleuze, a simulação pode ser compreendida no

sentido de “signo”, saído de um processo de sinalização; e [...] no sentido de“costume” [ou fantasia,] ou antes de máscara, exprimindo um processo dedisfarce em que, atrás de cada máscara, aparece outra ainda ... A simulaçãoassim compreendida não é separável do eterno retorno; pois é no eternoretorno que se decidem a reversão dos ícones ou a subversão do mundorepresentativo. (Deleuze, 2003:268-269)

Já que há sempre uma outra máscara por trás de toda máscara adinfinitum, não pode haver nenhum centro estável sobre o qual possamos calcaruma cópia realmente fiel. Todo centro é postulado por uma interpretação dotexto físico, e é a partir de sua superfície que criamos uma profundidade queimaginamos sob o texto. O simulacro, por sua vez, é produzido a partir danoção de um centro descentrado e mutante. Se a tradução é pensada como um

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simulacro, cada nova tradução se torna um novo alicerce e estabelece um novocentro e não mais ocupa seu lugar típico de cópia inferior, o que obrigaria otradutor a reconhecer seu papel de criador de significados. Da mesma formaque o alicerce desestabilizado não implica a ausência de alicerces, o reconheci-mento do papel criativo do tradutor não implica a perda do elo que seconvencionou estabelecer entre original e tradução, pois os tradutores, comoos autores e todos os usuários da linguagem, estarão também presos ao jogo dasignificação enquanto simulação e ao eterno retorno determinado a organizaro caos e a impor o mesmo e o semelhante. Nessa posição, e como todos os queescrevem e utilizam a linguagem, os tradutores também estarão fadados a criarnovos alicerces que serão, por sua vez, também recriados e desestabilizados.

Uma ilustração apropriada desse alicerce desestabilizado a partir do qualpodemos redefinir a relação entre original e tradução pode ser encontrada nahistória das traduções da Bíblia. A recepção da tradução latina, realizada porSão Jerônimo, da Septuaginta, a versão grega do Velho Testamento, por exem-plo, foi pautada por controvérsia, pois impossibilitava certas interpretações quefaziam parte da teologia estabelecida, produto de seiscentos anos de pensamentoe estudos teológicos4 . Quer tenha sido adequada ou não, essa tradução se tornoua versão oficial da palavra divina e contava com o apoio do Sacro Império Roma-no desde as Filipinas até as Américas e em toda a Europa. Embora a tradução deSão Jerônimo tivesse como base sua compatibilidade e concordância com asinterpretações estabelecidas da Septuaginta (Venuti, 1998:79), acabou criandoum novo alicerce para a autoridade do pensamento teológico que, por sua vez,foi desestabilizado pela versão alemã realizada por Martinho Lutero e tambémpela versão para o inglês realizada pelo Rei Jaime I. Até certo ponto, todas essastraduções recriaram a palavra de Deus a partir de suas próprias perspectivas eestabeleceram um cerne para a exegese e o pensamento teológicos sobre o qual sebasearam, e ainda se baseiam, inúmeras iniciativas e justificativas para decisões eações.5 Isso não quer dizer que o texto bíblico não possa ser tomado como umtipo de alicerce. O que isso pode significar é que essa multiplicidade potencial designificados encontrada no cerne do que conhecemos como sendo a expressão dapalavra divina deveria convidar os leitores a problematizar os julgamentos abso-lutos que em geral fazem com base nesse texto.

A ausência de um centro estável que pudesse ser encontrado nasprofundezas de um texto e as inúmeras máscaras sobrepostas que encontramosno seu lugar antes de acrescentarmos ainda outra são, para muitos, fonte dedecepção. Essa decepção é alimentada também pela idéia de que ao postular-mos uma instabilidade, ao invés de uma essência, como base para qualquer

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significado ou texto e, conseqüentemente, ao oferecermos aos tradutores umoriginal sem essência original, estaríamos instaurando o caos, já que eles poderi-am, então, escrever o que quer que lhes viesse à cabeça na tradução do textoalheio, entregando-se, sem controle, ao seu desejo de ser autores. Conseqüente-mente, os leitores de traduções não teriam nenhum terreno comum sobre o qualpudessem discutir com outros o que lêem. O que poderia garantir que alguémque lê a Bíblia em grego e alguém que a lê em inglês estariam lendo a mesmacoisa? Estariam aqueles que lêem o original grego ou o texto hebraico mais pró-ximos de Deus? (Isto implicaria, por exemplo, que através da história os sereshumanos estariam necessariamente se distanciando cada vez mais de Deus.) Essaquestão, contudo, pode ser abordada a partir de uma questão semelhante: comopodemos garantir que todos aqueles que lêem e extraem conclusões da Bíblia eminglês, ou em qualquer outra língua, estejam lendo o mesmo texto?

Esses leitores nunca estão lendo o “mesmo texto” e, sim, textos que sãosemelhantes. Como argumenta Deleuze, o simulacro não implica a ausênciade semelhança:

Sem dúvida, ele produz ainda um efeito de semelhança; mas é um efeito deconjunto, exterior, e produzido por meios completamente diferentes da-queles que se acham em ação no modelo. O simulacro é construído sobreuma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude.Eis por que não podemos nem mesmo defini-lo com relação ao modelo quese impõe às cópias, modelo do Mesmo do qual deriva a semelhança dascópias. (Deleuze, 2003:263)

Se considerarmos a tradução como uma forma de simulacro, não pode-mos emitir julgamentos absolutos sobre a verdadeira origem de uma cópia, jáque todo simulacro opera a partir de uma base constituída de diferença e auto-riza a possibilidade de uma diferença original. A partir do argumento de Deleuzede que há, no simulacro, “um efeito de semelhança”, podemos reconhecer queé precisamente esse efeito que encontramos em toda a história da atividadetradutória. O reconhecimento de que a semelhança entre original e tradução éum efeito implica, para os tradutores, a possibilidade de explorar mais comple-tamente a superfície das línguas que estão traduzindo, ao invés de se abando-narem à nostalgia e a sentimentos de fracasso quando comparam a tradução àsua origem imaginária. O fato de que não há um centro fixo e para sempreestável e de que não há uma técnica disponível que possa conduzir os traduto-res até algum tipo de essência livre de qualquer ambigüidade deve levar ostradutores a repensar radicalmente a noção de ética em tradução.

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Se não há uma essência pura e acessível, uma ética de tradução não podeser compreendida simplesmente nos termos tradicionais de fidelidade ou infi-delidade a um significado essencial. Se há diferença na própria origem, umadiferença que cria uma impossibilidade de se confinar um texto dentro doslimites de uma interpretação definitiva, os tradutores não poderão se esconderanonimamente por trás de estratégias que supostamente lhes forneçam algumtipo de objetividade. Não é apenas impossível que os tradutores descubramum centro essencial a partir do qual todo o significado emana, como tambémé inevitável que criem novos centros ao redor dos quais baseiam seus textos. Eda mesma forma que a tradução reposiciona o suposto centro do original, asinterpretações que se construirão a partir dela também reposicionarão o seucentro. Ainda que essa instabilidade provoque, com freqüência, o medo de quese abrirmos mão da noção de que há um centro estável, ou um corpo perfeita-mente delimitável sob as roupas das palavras, o caos se apoderará de todosignificado, Deleuze a vê como algo muito positivo. Como mencionado aci-ma, o filósofo francês equaciona o simulacro ao eterno retorno e diz que omesmo “não exprime de forma nenhuma uma ordem que se opõe ao caos eque o submete. Ao contrário, ele não é nada além do que o caos, potência deafirmar o caos” (Deleuze, 2003: 269). A afirmação do caos para os tradutoresimplicaria aceitar seu papel de criadores de novos centros e criticamente exa-minar os fatores que construíram nossa compreensão do corpo que se supõeescondido sob o texto. Ao reconhecerem e afirmarem o corpo que criaram emsua tradução e, ao mesmo tempo, ao cobrirem esse corpo para que seus leito-res, por sua vez, também possam construí-lo novamente, os tradutores pode-rão desempenhar um papel mais incisivo na tarefa de dar voz à diferença. Éprecisamente nesse sentido que a tradução participa do eterno retorno que,como afirma Deleuze, “é potência para afirmar a divergência e odescentramento” (p. 270).

Se a atividade da tradução realmente se assemelhasse a tirar as roupas deum corpo e trocá-las por outras, seria concebível pensar no trabalho dos tradu-tores como a realização de uma atividade simplesmente mecânica, que impli-casse apenas a escolha de seguir, ou não, alguma técnica infalível que muitosestudiosos estão tentando estabelecer para retirar significados de dentro desuas roupas lingüísticas e confeccionar outras que o vistam perfeitamente.Contudo, quando entendemos o texto material e o significado como depen-dentes um do outro, a tarefa do tradutor se torna muito mais interessante. Comoas roupas textuais não podem ser nunca verdadeiramente removidas, o papel dotradutor enquanto intérprete se torna muito mais importante. Quando se

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conscientizam de que seu ofício de juntar fragmentos de textos para costurá-los ao original que traduzem é, na verdade, também uma construção do corpoque supostamente estaria sob a roupa lingüística que necessariamente confec-cionam, os tradutores podem assumir de forma mais efetiva seu papel de cria-dores e de agentes do conhecimento e de sua disseminação. Embora essa sejauma visão mais positiva dos tradutores do que aquela que foi tradicionalmenteestabelecida, talvez seja triste para alguns aceitar a impossibilidade de se chegarà nudez total.

(Traduzido do inglês por Rosemary Arrojo)

___________________________________________

1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada durante a PIC (Philosophy, Interpretation,and Culture) Conference, realizada na Universidade do Estado de Nova York em Binghamton,E.U.A., em 22 de abril de 2005.2 Para uma discussão interessante da interface entre gênero e tradução, ver, por exemplo, o ensaio“Gender and the metaphorics of translation”, de Lori Chamberlain (Venuti 2000: 314-329).3 Podemos lembrar aqui que, em termos platônicos, eidos é a essência pura, infinita e imutável dealgo, sua verdade definitiva que pertence ao mundo das formas. A mimese é uma representação desseeidos. A boa mimese é a representação que nos levaria à intuição adequada do eidos. A má mimesenos levaria a uma idéia falsa do eidos.4 Para uma discussão detalhada dessa questão, ver Venuti 1998:78.5 Atualmente, devido à alta proporção de trabalho missionário dominado pelos Estados Unidos,que se baseia em interpretações contemporâneas e norte-americanas da Bíblia, um processo que comfreqüência inclui a transformação de línguas orais em línguas escritas para que seja possível a realiza-ção de traduções dos textos sagrados, pode-se argumentar que a base mais poderosa por trás dapalavra de Deus é os Estados Unidos.

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