revista lupa n.10

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1 REVISTA DA FACOM-UFBA. ANO VII, N. 10. SALVADOR, SEGUNDO SEMESTRE 2010 ISSN 1982-2995 24 Malabares Mágicos 16 Contos Queer 26 Conheça a família Assmar

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Revista da Faculdade de Comunicação da UFBA. Salvador, Brasil

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24 Malabares Mágicos16 Contos Queer26 Conheça a família Assmar

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A Revista Lupa chega a sua décima edição com mil motivos para come-morar. Espera aí, mil motivos? Não

seriam melhor dez? Isso mesmo, na Lupa #10 quem vai ganhar a homenagem é ele.

Elegante, em sua complementaridade entre linha e curva, o Dez é sintético, claro, sólido. Gregos e troianos, bárbaros e romanos contaram em suas mãos até o Dez e, chegando ao Dez, retornaram à unidade. Dessa completude circular nasce sua universalidade e seu simbolismo.

Com um ar tranquilo, Dez fala sobre sua espiritualidade e suas experiências místicas, inclusive sobre regressão, quan-do descobriu seu passado grego como xis e rindo, conta que também já foi um calcanhar egípcio. Supersticioso, o núme-ro busca a sorte em mesas de tarô, sendo paus quando quer intensidade, espadas quando pratica o desapego, ouros quando aguarda uma realização importante e copas quando está alegre e satisfeito.

Nesta vida, encontrou-se na religião hindu, em que a junção dos dez dedos das mãos é chamada de namastê e traz o sagrado para dentro de cada um de nós, afirmando que somos parte de um todo, indissociável e igual. E quanto aos dez mandamentos? – pergunto – “Sou um pecador”, assume Dez em tom de brincadeira.

Na escola, era muito querido pelos estudantes e bem visto pelos professores, sempre considerado o melhor aluno da sala. Mais amadurecido, Dez questiona suas premiações, hoje guardadas em uma caixa azul, esquecida no guarda-roupa. As notas, números espalhados em uma folha

de papel. Podiam muito bem ser con-fundidas com os códigos binários de um computador, apenas uns e zeros, que não contavam seu processo de aprendizado.

Foi também na infância que começou a jogar bola. Do baba despretensioso na casa do vizinho Nove, o Dez tornou-se um fabuloso companheiro de time, jogan-do ao lado de craques como Zico, Mara-dona, Ronaldinho Gaúcho e Zidane, mas confessa que seu xodó é ter sido parceiro de Pelé. Com ele, conquistou as copas de 1958, 1962 e 1970, e viajou pelo mundo. Adorado pelos jogadores de futebol, Dez conta que não é sempre querido assim. Entre muitos esportistas, ele é preterido ao Um. Frente a minha surpresa, explica “Como cardinal, sou cheio, cem por cen-to, mas como ordinal, sou décimo”.

E assim, veio ao mundo, como não poderia deixar de ser, depois de dez antecessores, do Zero ao Nove. Para a matemática é um número único, singular, ímpar. Com simplicidade, Dez brinca “Ímpar não, par!”. E apesar da importân-cia de suas atividades, responsável pela base numérica ocidental, o número preza por uma vida tranquila, sem se preocu-par com o tempo e suas meias-dúzias de tic-tac.

Se para os aristotélicos Dez é a nature-za do número, para muitos ele representa a perfeição e o sucesso. O sucesso que ele e todos nós desejamos à Lupa nos próximas dez edições, nos próximos dez anos. E quando questionado sobre sua fama, Dez responde com serenidade “Sou a simples junção da unidade à ausência”. Namastê.

Amana Dultra e Raulino Júnior

Ou com a Lupa no Dez

Lupa é uma publicação da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Fe-deral da Bahia (UFBA). ISSN 1982-2995. Turma da discipli-na Comunicação Jornalística 2010.2. Ano V, Número 10. Salvador, Inverno de 2012. Distribuição Gratuita.

Faculdade de Comunicação da UFBA Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina, Salvador, Bahia - Brasil. CEP: 40170-115Tel: (71) 3283-6174, 3283-6177 Fax: (71) 3283-6197

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As opiniões expressas neste veículo são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Reitora da Universidade Federal da BahiaProfª. Dra. Dora Leal RosaDiretor da Faculdade de ComunicaçãoProf. Giovandro FerreiraCoordenação EditorialProfª. Graciela Natansohn (DRT/BA 2702)RevisãoCarlene Fontoura e Amana DultraEdição de FotografiaLabfoto – Wendell WagnerProjeto GráficoRai Trindade e Jonas Santos

Redação (editores)Circo Urbano - Eduardo CoutinhoProva dos Nove - Amana DultraMeio e Mensagem - Vanice da MataImpressões - Labfoto/FacomPassepartout - Genilson AlvesCubo Mágico - Marco Antônio

RepórteresAlexandre Wanderley, Daniele Rodrigues, Débora Borja, Eduardo Coutinho, Gilberto Rios, Giltemberg Brito, Henrique Duarte, Iasmin Sobral, Luana Oliveira, Maíra Guimarães, Marco Antônio, Monique Carneiro, Natália Reis, Paulo Eduardo, Rafael Barreto, Raquel Sant’Ana, Raulino Júnior, Rita Barbosa, Taís Mota, Tayse Argolo, Tunísia Cores, Vanessa Caldeira, Wendell Wagner, Yuri Giradi

FotografiaNatália Reis, Rodrigo Wanderley, Rômulo Alessandro, Vanice da Mata, Vitor Villar, Wendell Wagner, Flávia Faria, Carol D’ÁvilaDireção de Arte e DiagramaçãoRai Trindade e Jonas SantosCapaFábio MalazarteImpresso emArte Brasilis - Curitiba (PR)

Errata – Na edição anterior de Lupa, as matérias “Gay, cidadão e padre” e “Dom Lula, uma lenda sem cabelo” também são de autoria do repórter Fernando Vivas.

EditorialA Lupa é Dez!

Foto: Arquivo Lupa

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CUBO MÁGICO

IMPRESSÕES

18 Entre tanta gente só

CIRCO URBANO

05 Circo Picolino10 Animais abandonados14 Gordinhas de Ondina

16 Microcontos Queer

PASSEPARTOUT24 Palhaçadas26 Família do Blues

POVA DOS NOVE28 Desafios da Produção Cultural30 Criar

MEIO E MENSAGEM20 Histórias de cinema22 Poesia

ILUSTRADO31 Muros de Tilcara

Foto: Carol D’Ávila

SUM

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Foto: Flávia Faria

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CUBO MÁGICO

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Conheça a história da Picolino, a escola de circo que há 25 anos encanta e alegra Salvador

O toldo

resiste!

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O carioca Anselmo Serrat é graduado em Ciências Contábeis, mas trabalhou com fotografia e foi sócio de uma produtora de filmes, no Rio. Enquanto administrava o Teatro Oficina, já em São Paulo, conheceu um grupo de circo e se encantou pelo trabalho. Em menos de um ano, Anselmo já dirigia seu próprio grupo chamado Tapete Mágico, que veio para a Bahia. Em Salvador, transformado também em uma escola de circo, o grupo passou a se chamar Picolino. Hoje, com 25 anos, localizado

há 14 na orla de Pituaçu, o famoso toldo colorido precisa lutar pelo desenvolvimento do seu trabalho.

Texto Eduardo Coutinho e Tayse ArgôloFotos Carol D’Ávila

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A Escola de Circo Picolino foi criada em 1985 e, durante os seus 25 anos, já esteve em Ondina, Rio Vermelho, Aeroclube e, por alguns momentos, ficou desabrigada. Como ocorreram essas mudanças?Chegamos a Salvador como um grupo de circo, o Ta-pete Mágico. Ao longo das apresentações, percebemos que as crianças também queriam brincar de fazer circo, e decidimos abrir a escola, em 1985, no circo Troca de Segredos, que existia em Ondina. Ficamos lá por três anos, até que o prefeito da época, Manoel Figueiredo Castro, mandou derrubar o circo no meio da madrugada. Não deu tempo de fazer ação ne-nhuma. Então, procuramos

apoio do Estado e conse-guimos, através do Secretá-rio (José Carlos) Capinam, nos estabelecer no Espaço Xis, na Biblioteca Central dos Barris que, na época, era um porão cheio de água e entulho. Dois anos de-pois, após retornarmos de um festival de circo infantil na França, encontramos todo o nosso material do lado de fora: fomos despe-jados, pois no local seria construído o que hoje é o Espaço Xisto. Desabriga-dos, de novo, fomos parar no Rio Vermelho, onde funcionou o bar Vagão, na época fechado. Foi então que compramos um toldo e pedimos autorização à Pre-feitura para montar o circo no Aeroclube. O pedido foi negado. Mesmo assim

insisti, pois queria tirar os meninos do centro, do meio da droga e levar para um lugar legal. Ficamos como invasores por alguns anos, até que o terreno foi cedido para a construção do Aeroclube Plaza Show. Brigamos quase dois anos pelo espaço, até que a Na-cional Iguatemi, empresa a cargo da obra, fechou um acordo direto conosco.

Em Pituaçu, vocês também ficaram de forma ilegal?Ficamos por um tempo. Nós entramos aqui em 1996, mas o primeiro alvará é de 1998. Quando o (Antônio) Imbassahy assumiu a Pre-feitura, sua primeira decisão foi reconhecer a escola de circo: autorizou seu funcio-namento, legalizou tudo.

Nós somos a Canudos no centro

de Salvador

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Como a Picolino começou a desenvolver os trabalhos sociais?Logo no início percebemos que a atividade circense fazia muito bem para o desenvolvimento das crian-ças. A escola se sustentava com as turmas particulares, e então, nós fizemos uma parceria com o Juizado de Menores para trabalhar com jovens em situação de conflito com a justiça e o resultado foi fantástico. Em 1987, começamos a trabalhar com crianças in-ternas da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem). O Juiza-do queria que fizéssemos o trabalho lá dentro (da Febem), mas nós queríamos que as crianças viessem para o circo porque esse era

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país. Além da Picolino, temos a Escola Pernambu-cana de Circo, que fica em Recife, a Orquídea de Fogo, em Maceió, o Centro Cultu-ral Piolim, na Paraíba, a Se Essa Rua Fosse Minha, no Rio, entre muitas outras. Na rede, além da aula de circo, a escola tem compromisso com os movimentos e as políticas públicas de defesa das crianças e adolescentes.

Como era a relação entre o trabalho social e as aulas de circo particulares?No princípio nós traba-lhávamos com horários separados, mas o pessoal da classe média entrava em pânico quando chegavam aquelas 40 crianças de rua, maltrapilhas, sujas. Quan-do a turma do Axé tinha aula antes, os meninos da particular chegavam e ficavam esperando dentro dos carros, com medo mes-mo. Chegou um momento em que nós começamos a perder as turmas particu-lares, mas aí já estávamos envolvidos demais com o trabalho social e optamos por ele.O primeiro passo foi acabar de vez com as turmas separadas.

A Picolino ainda desenvolve oficinas particulares? São elas que sustentam o circo? Também. Hoje o que man-tém a Picolino são os cursos particulares, os shows que a gente faz e os editais que a gente ganha. Recen-temente, ganhamos um edital da Funarte e estamos concorrendo a três outros. Também desenvolvemos aulas particulares e oficinas com empresas, em que as atividades circenses se rela-cionam com atividades que os profissionais exercem no ambiente de trabalho.

Ainda existe uma proposta de mudança da Picolino para o Parque da Cidade?Pois é, estamos com uma ameaça da Prefeitura por conta da nova orla que vem sendo remodelada para a atender as demandas da Copa do Mundo. Foi feita uma proposta de mudar o circo para o Parque e eu aceitei, contanto que isso acontecesse em dezembro de 2009, pois mantínhamos uma alfabetização e não era possível parar esse traba-lho. Então, marcaram para depois de 2009, enquanto a Prefeitura preparava a

o momento delas de sair da prisão. Afinal, lá elas ficam presas! Dão o nome de “in-ternas”, mas na verdade elas são presas! Esse trabalho era muito encantador, mas era só temporário porque na visão do Juizado era só recreação. Então, nós buscamos parceria com o Projeto Axé, que fazia

atividades com meninas e meninos de rua, e monta-mos a primeira turma em 91. Nós fomos pioneiros na prática de arte-educação na Bahia. Começamos esse trabalho quando nem se falava em arte-educação. Hoje fazemos parte da rede do Circo Social, que possui 22 escolas distribuídas pelo

Quando está tudo funcionando bem, as pessoas nem lembram

muito, mas quando dá um vento que levanta a lona da Picolino, o que chega de

gente pra ajudar... é muita solidariedade!

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área, mas ainda não tivemos resposta. Tudo isso porque a área (de restaurantes ao lado de Pituaçu) está toda vendida. Os prédios vão começar a ser construídos e circo social não interessa de jeito nenhum. Atrapalha o visual, é feio, trabalha com pobre, etc.Como é a relação com as autoridades? E como está a situação da Picolino hoje?Hoje passamos por dificul-

dades. A Prefeitura quer tirar o circo daqui e está nos sufocando. A intenção deles é claramente que a escola pare de funcionar. Eles falam muito bem quando dão entrevista, na frente de todo mundo a relação é maravilhosa. Mas nós estamos proibidos de fazer qualquer evento que não seja aula ou show de circo. Até março de 2009 ainda podíamos fazer eventos,

alugávamos o espaço para uma série de atividades. Tivemos aqui um samba e um forró, que aconteciam em dias diferentes e com a bilheteria dava para manter a escola tranquilamente. Agora, com tudo proibido, como uma escola social vai sobreviver sem recur-sos? Nós não recebemos recurso do Estado nem do município há três anos! A gente vive do que a gente produz e o lucro de uma instituição social é o lucro que ela dá para a sociedade. Então não é revertido para a escola, não temos um lucro financeiro.

Como é a relação do circo com a cidade de Salvador? A Picolino tem a sua lona colorida que todos conhecem...Todos conhecem, é inacre-ditável! Todas as semanas nós recebemos visitas de escolas públicas e particu-lares, creches e orfanatos. Mas, nós sentimos mesmo a força das pessoas da

ONDEENCONTRAR?

A Escola de Artes do Circo Picolino está localizada na Av. Otávio Mangabeira, próximo ao Parque Pituaçu. O horário de funcionamento vai das 8h às 17h30, de segunda a sexta, e das 8h às 11h30, aos sábados. Além das aulas, o circo promove oficinas e eventos culturais. A programação pode ser conferida no site www.circopicolino.org.br ou através do telefone 3363-4069.

cidade quando tem alguma catástrofe. Quando está tudo funcionando bem, as pessoas nem lembram muito. Mas, quando dá um vento que levanta a lona da Picolino, o que vem de gente ajudar... é muita solidariedade! Quando foi anunciado que a Picolino ia ser tirada daqui, recebe-mos muitos telefonemas de pessoas nos incentivando a resistir, oferecendo apoio. Eu acho que a cidade vê a Picolino como parte da sua vida realmente.

A Picolino resiste então?Resiste, existe... Nós somos a Canudos no centro de Sal-vador! Mas ainda não con-seguiram mandar os exér-citos, mandar os capitães, para bombardearem aqui. Passaram raspando, não é? Bombardearam a praia toda, mataram um monte de moradores de Canudos, mas a gente ainda é a última resistência da cidade, de atividade livre, de atividade libertária, anarquista.

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do AbandonoSem responsáveis, cães e gatos vagam pelas ruas de Salvador

Texto Luana Oliveira e Tayse ArgôloFoto Flávia Faria

Frutos

Cães e gatos vagam pelas ruas de Salvador atrás de alimento, abrigo e carinho. À mercê

da própria sorte, esses ani-mais não sofrem apenas com as ausências, mas são comumente atingidos por doenças que debilitam o seu corpo e os seus instintos de sobrevivência. De acor do com a Prefeitura de Salvador, ao todo somam 60 mil animais sem dono. Quem se responsabi li za por eles?

DIREITO DOS ANIMAISOs animais, em particular

os cães e gatos, são divididos em três categorias: os domiciliados, os semi-domiciliados e os errantes, como explica João Moreira, médico veterinário e diretor do Hospital Veterinário da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Os domiciliados são aqueles sobre os quais se tem total controle; já os semi-domiciliados englobam dois modos de criação, que podem ser os “de casa” – possuem um dono, mas têm livre acesso à rua – e os animais “de bairro” – que vivem nas ruas, mas são assistidos pela comunidade; por fim, os cães e gatos errantes dificilmente têm contato com humanos e, por esse motivo, se alimentam em lixões.

O contato mais próximo

com as pessoas garante aos semi-domiciliados alguns direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em 1978 pela Unesco, como a atenção, os cuidados e a proteção fornecidas por quem os acolhe. Enquanto os animais errantes dependem de políticas públicas, ainda inexistentes. A declaração assegura também que “a poluição e a destruição do meio ambiente são considerados crimes contra os animais”. O documento apresenta artigos vagos e pouco condizentes com a realidade, o que dificulta a sua validade e cumprimento.

A Declaração estipula, por exemplo, que os direitos dos animais devem ser defendidos por lei. No entanto, essa base legal também é pouco eficaz para assegurar o bem-estar animal. No âmbito municipal, a lei n° 5.504, instituída em 1999, não especifica os métodos nem os responsáveis na contribuição para “prevenir, reduzir ou eliminar as causas de sofrimento dos animais”. Desse modo, a população não tem oficialmente a quem recorrer e, quanto aos animais, não há nenhum órgão público responsável.

O veterinário, João continua ►

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domicílios até 2007, quando o quadro de controle da doença foi considerado estável.

Neste mesmo ano, a sms firmou um convênio com uma clínica veterinária particular para realizar castrações de cães e gatos. Do início do projeto até setembro de 2010 haviam sido castrados 1.857 animais, com uma média de 125 animais por mês. O número máximo de 250 castrações por mês, estabelecido nesse convênio, nunca foi atingido. “As pessoas que procuram nossos serviços, informamos sobre os cuidados que devem ter com seus animais e instruímos acerca da guarda responsável. O grande número de animais na rua é basicamente provocado pelo desconhecimento das pessoas sobre como criar seus animais”, conclui Carlos.

O BEM-ESTAR ANIMALO conceito de bem-

estar animal diz respeito à qualidade de vida perfeita que os animais devem dispor para desenvolver-se em harmonia com o ambiente. É a “Teoria das Cinco Liberdades”, originalmente formulada pelo Conselho do Bem-Estar de Animais de Produção do Reino Unido (Farm Animal Welfare Council – FAWC), que embasa esse conceito. Essa tese estabelece que o animal deve ter alimento e água disponíveis, deve viver confortavelmente, ser saudável, ser livre para expressar os seus comportamentos normais e não sentir medo ou aflição. Assim como os artigos da Declaração Universal, o bem-estar animal, infelizmente, também não se aplica à realidade, pois não há quem possa assegurá-lo integralmente.

Por falta de recursos o CCz não pode proporcionar aos animais essas condições de bem-estar, pois sua preocupação é focada na saúde pública, através do controle populacional dos bichos nas ruas. Em contrapartida, existem

Organizações Não Governamentais (ONG) cujo trabalho preza justamente por colocar esse direito em prática. Para atender essa demanda, destacam-se duas instituições em Salvador: Célula Mãe e o Abrigo São Francisco de Assis.

A Célula Mãe, desde 2004, realiza mutirões em bairros periféricos da cidade para recolher animais carentes e esterilizá-los. A castração é realizada em parceria com a SMS em clínicas conveniadas e a organização se responsabiliza pelo pós-operatório e devolve os animais, vacinados e vermifugados aos seus locais de origem. “O foco da Célula Mãe é prevenir, atingir a raiz da superpopulação, dos abandonos e dos maus tratos dos animais”, explica Janaína Rios, coordenadora da ONG, que estima o total de 9.000

óbitos começaram a ser contestados pela sociedade. Por esse motivo, em 2007, o Centro foi impossibilitado de realizar capturas.”

CCz é A SOLUçãO?Sem ter a informação

de quem responde pelos animais de rua, muitas pessoas acreditam que o CCz é o órgão responsável por eles. O Centro é uma unidade especial da Secretária Municipal de Saúde (SMS), que trabalha com programas de vigilância, prevenção e

controle de zoonoses, que são as infecções e doenças transmitidas do animal para o homem. Há quem leve animais acidentados para serem tratados ou até quem queira doar cães e gatos no local. Entretanto, nenhuma dessas atribuições cabe ao órgão. “O CCz não pode fazer nada por um animal debilitado. Aqui não tem clínica nem hospital, só o que nós temos é um canil ‘de saúde pública’, que está desativado desde 2007” ressalta Carlos Santana, biólogo e coordenador de um dos núcleos do Centro. Desse modo, os veterinários do local realizam, atualmente, a vacinação anti-rábica e a castração apenas de machos – pois a cirurgia é mais simples – em uma pequena sala cirúrgica construída na sede, no bairro de Trobogy, em Salvador (BA).

No período de 2001 a 2004, Salvador enfrentou uma epidemia de raiva que culminou em três óbitos humanos. “Um caso de raiva humana já é considerado epidemia”, explica Carlos. Para solucionar a situação, o ccz realizou ações de captura e eutanásia de animais encontrados nas ruas das áreas de foco. A partir de 2004, foi implantada como medida preventiva a vacinação anti-rábica nos

Moreira, opina: “A situação em Salvador é muito crítica. Em todo canto que se anda, se vê um cachorro de rua e frequentemente em estado deplorável” e, para ele, o controle populacional dos animais de rua é uma obrigação da Secretária da Saúde da Bahia correlacionada com a Secretária do Meio Ambiente, tendo como órgão específico para a realização das atividades o Centro de Controle de zoonoses (CCz). O médico

veterinário completa que a Bahia, principalmente Salvador, tem uma característica muito particular em relação aos outros estados do Brasil, pois “as medidas de controle que o ccz realizava eram a imunização e captura dos animais, com posterior sacrifício. No entanto, os estudos veterinários já comprovaram que a medida de eutanásia isoladamente não é eficaz, e assim, esses

A situação em Salvador é muito crítica. Em todo

canto que se anda, se vê um

cachorro de rua e frequentemente em estado deplorável

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castrações desde o início do funcionamento.

Salvador não possui um canil ou abrigo público e, para tentar suprir minimamente essa necessidade, o Abrigo São Francisco de Assis, ligado a Associação Brasileira Protetora dos Animais (ABPA), recolhe das ruas apenas os animais idosos ou que estão com risco de vida. Os abrigos são comumente vistos como um depósito de animais, entretanto a ideia é que o espaço deva funcionar como uma casa de passagem, pois os animais são castrados e medicados para que possam ser inseridos em um lar. “Mas existe também o lado de o abrigo ser um santuário. Porque existem os animais idosos e eles não são adotados. Eu não tenho coragem de ‘eutanasiar’ um idoso só porque ele é um idoso”,

completa Patruska Barreiro, diretora presidente do Abrigo São Francisco de Assis.

As práticas de castração e reinserção do animal no meio, seja nas ruas ou em lares adotivos, são ações que tentam aproximar os animais dos ideais de bem-estar e, aliadas à educação para a guarda responsável, sintetizam as cinco liberdades que devem ser proporcionadas pelos proprietários dos cães e gatos. Hoje, nenhuma instituição se responsabiliza pela superpopulação de animais nas ruas de Salvador. Cada instituição ou associação trabalha dentro das possibilidades financeiras e estruturais que dispõe e, ainda assim, as ações não são suficientes para diminuir a proliferação de zoonoses.

A ONG Célula Mãe organiza aos domingos, das •10h às 16h a “Feira de Filhotes do Parque de Pituaçu”. Para ter mais informações sobre as adoções, acesse www.celulamae.org.br/feiradeadocao.aspO Abrigo São Francisco possui diversos •animais, de todas as idades, prontos para serem adotados. Os interessados devem procurar a ABPA (www.abpabahia.org.br), participar de uma entrevista e assinar um termo de compromisso com os cuidados destinados ao seu novo bichinho. É cobrada uma taxa simbólica para ajudar com os custos do Abrigo.

Adoteum amigo!

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O dia a dia das

GORDINhAS

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Elas são de barro e bronze, mas poderiam ser de carne e osso

Texto Daniele Rodrigues e Luana OliveiraFoto Daniele Rodrigues

As gordinhas de Ondina, como são conhecidas “As meninas do Brasil”, já

nasceram grandes em dezembro de 2004. Foram criadas pela escultora Eliana Kertész e possuem muitas irmãs de tamanhos, idades e materiais diferentes, mas todas assim, gordinhas. Saíram de caixotes como bailarinas ao som da canção “Três meninas do Brasil” de Moraes Moreira, cujo trecho: “Três meninas do Brasil/ três corações democratas/ um documento da raça pela graça da mistura” serviu de inspiração para seu nascimento. O tempo passou e a festa acabou. Elas foram esquecidas e hoje, a música que as embala é o som das buzinas na Avenida Adhemar de Barros.

Seus nomes são Maria-na, Damiana e Catarina. Chegaram juntas e juntas continuam. Catarina, com seu sangue indígena correndo pelo corpo feito de barro e bronze, olha para o interior do Brasil de braços abertos, como se, depois do massacre sofri-do, esperasse ser abraçada. Mariana, a portuguesa, com seu ar de menina inocente, parece não fazer referência a real postura dos colonizadores na terra-brasilis. Damiana, por sua vez, olha para o mar como se quisesse voltar à África, de onde sua família foi retirada à força.

As três meninas têm andado deprimidas ulti-mamente: foram esque-cidas pelas autoridades e se tornaram ponto de referência para os taxistas.

(...) possuem muitas irmãs de

tamanhos, idades e materiais

diferentes, mas todas assim,

gordinhas

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Ficam lá sujeitas ao tempo, ao vento, à maresia e se bronzearam demais. O bronze se despela por todo seu corpo arredondado. De tão esquecidas, algumas pessoas acham que elas representam três possíveis primeiras damas do pre-feito que acompanhou seus nascimentos, Antonio Im-bassahy. Se essas “esposas” realmente existiram não se sabe, mas é o que o povo diz.

Embora as autoridades as esqueçam, alguns anô-nimos fazem questão de demonstrar carinho. Da-miana, por exemplo, todo dia de manhã ganha um beijinho de um estudante a caminho da escola. Mas, ninguém parece gostar tanto delas quanto os turistas, que tiram fotos, as imitam. Imagine que um até subiu na cabeça de Mariana para tirar foto! Coitadinha... Às vezes, um ou outro conterrâneo resolve aparecer à custa das gordinhas, usando uma delas como púlpito para declamar poesia – afirmam isso os gazeteiros que convivem com elas diariamente.

Em alguns dias especiais, não tem como esquecê-las: em 8 de março, Dia da Mulher, por exemplo, suas gordurinhas são cobertas por vestidos, flores e laça-rotes, feminilizando sua estaticidade. Elas também são o ponto de partida da Marcha para Jesus, festa religiosa cristã que faz o percurso inverso ao Carna-val. Talvez por isso, seus corpos de gordinhas são cobertos por redomas de madeirite durante o Carna-val, para que seus olhos não presenciem os atos libidi-nosos dos foliões embriaga-dos ao fim do circuito.

Em meio à rotina agitada de cidade grande, repleta de buzinas, luzes, pessoas, discussões, risadas, tintas, propagandas, as meninas acabaram por perder sua essência. Elas esperam ser lembradas não apenas em

alguns dias, mas também serem enxergadas pelo que realmente represen-tam: três matrizes étnicas convivendo em um mesmo espaço. Matrizes essas que são a essência do Brasil e de seus brasileiros.

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Microcontos

Convidamos leitores da Lupa para enviar seus contos. Boa leitura!

Meio-herói(Ao som de Holding Out for a Hero, de Bonnie Tyler)

Sou herói, super-herói, mas preciso sobreviver e por isso dou a bunda.

Eu gostaria de ganhar um salário mensal para salvar a cidade (eu já até tentei marcar uma audiência com o prefeito) e eu adoraria ser ativo de vez em quando também, mas as autoridades competentes nunca encontraram tempo para os meus problemas fi-nanceiros e os homens que me pagam pra trepar, olham para o meu disfarce colante, para a bunda estourando por trás da calça e para o pau quase inexistente na

frente e não acreditam que eu possa realmente comer alguém.

Sou um herói sim, com máscara, superpoderes, coxas grossas e bunda empinada. De dia, salvo a cidade e à noite transo com qualquer tipo de gente, inclusive com os bandidos que eu deveria combater. Enquanto trepo nos motéis do centro, vou pensando em quantas pessoas deixo de ajudar e que bastava o prefeito abrir um pouco a mão (ou os cofres munici-pais) e pronto: estávamos todos salvos. Além desse pensamento constante,

enquanto abro as pernas para todo tipo de homem que me violenta, olho para as manchas amarelas das paredes e dos lençóis e me seguro para não sair voan-do dali ou quebrar a cara do sujeito que me come e que não aceita outra coisa senão me comer de todo os jeitos e com todas as forças dos car***** kriptonitos.

E o pior disso tudo, a verdade mesmo, é que nem posso reclamar tanto da dor da trepa, do c* sempre rasgado no final, pois sou herói, tenho uma super-força e isso inclui uma superforça na bunda para

aguentar cacetes de todos os tamanhos em qualquer velocidade de f***. Mas quando estou ali, de quatro, de lado, de frango assado ou o diabo que for, e vejo aquelas manchas amarelas e goteiras e barulhos esqui-sitos de gente desconhecida se movendo pelos corredo-res do motel, não consigo deixar de refletir sobre quantos estupros, assassi-natos, assaltos e o caralho de asa eu poderia impedir, se eu tivesse a certeza de qualquer dinheiro para pagar uma merda qualquer que me desse alguma segu-rança nessa merda de vida.

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Autor: Júnior Ratts

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17Seria apenas uma viagem, simples assim. Duas horas, entediosas horas, aquele frio insuportável

contrastando com o calorão lá fora. Dormir pode ser uma saída, claro. As horas passarão rápido. Um celular que toca. De novo. De novo. Ninguém atende. Droga! Quero dormir, por que não atende? Silêncio, alívio, finalmente atendeu. Mas, não sei o que é pior: o telefone que toca aquele repetitivo toque natalino ou a voz que ouço.

Fecho os olhos e começo a imaginar que rosto estaria por trás daquela voz. Olhos cerrados, ouvidos atentos, a conversa não para, aumenta minha curiosi-dade porque é entrecortada por frases... Sempre você me dei-xando... Sua insegurança... Não abro os olhos, quero ser discreta, deixo que todos pensem que durmo, não participo daquilo, nada sei, mas quero saber mais. Quem é aquele homem? E com quem fala? O que será? Sempre você me deixando... penso, estão se separando. E do outro lado, quem será?

Olhos cerrados, mas que se movem sob as pálpebras. Uma certa aflição. A conversa parou. É, acabou, dormir então, é o jeito. Mas não, o telefone toca e rapidamente ele atende, faz uns segundos de silêncio e aquela voz pausada de então continua pausada, mas meio rouca, mais baixa, quase não se ouve a não ser um ruído, impressão de alguém resfriado, nariz escorrendo... Choro é isso, ele chora... Por quê? Silêncio, mal respiro, desejo saber por que esse choro. A voz retoma a conversa, de novo pausada, mas entremeada de frases, de muita dor. Acomodo-me melhor na poltrona, o frio já não me incomoda, porque o que ouço me remete à minha própria dor. Como podemos viver situações tão semelhantes?

A voz agora ecoa no ônibus, embora pausada já não tão bai-xa, as cabeças se movimentam, olham para trás, mas ninguém protesta porque aquela voz pa-recia ser a voz de cada um deles. E colocava seus sentimentos todos à mostra, despudorada-mente, ignorando presenças.

Uma curtaviagem ao passado

Uma Vagae dois corpos

A quadra de esportes estava repleta de estudantes, aflitos, pois era a última chance de entrar para as equipes de esportes que iriam representar a

escola nos jogos da primavera. O diretor esportivo anuncia a última vaga para a seleção de basquete. André e Fabio se olham, pois os dois são os melhores da escola e até este momento seus nomes não foram citados, e o professor anuncia a ultima vaga da seleção de basquete. Fica com: André.

Fabio cumprimentou André, pegou a sua mochila e se dirigiu aos vestiários da quadra, onde pôs a se despir para tomar banho, estava de cabeça cheia. Com raiva por ter perdido a vaga na seleção de basquete, entra no chuveiro e deixa a água banhar aquele corpo musculo-so e moreno de 1.80 de altura, olhos fechados e o frio da água refrigera a sua alma. Quando, de repente, ouviu uma voz perguntando: “está tudo bem?”. Era André, que dizendo estar triste por Fabio não ter sido escalado para a seleção de basquete, perguntou ao mesmo se po-deria tomar banho com ele. Fabio ficou surpreso e como sem querer, disse sim. Neste momento, Fabio pôde entender que a rivalidade de anos no time da es-cola nada mais era que outro sentimento que agora começava a ser despertado, dentro de um banheiro de uma quadra de esporte. E dois corpos molhados e malhados ocupavam uma só vaga, no jogo da vida.

Autor: José Antônio Loyola Fogueira

Autora: Graciela Pellegrino

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Entre tanta gente só

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Um indivíduo. Uma estação de ônibus. Histórias que se fundem e se confundem em um estado de solidão, passagem e espera. Ora sentado, ora passando, Marcelo observa. Vê a si mesmo, vê braços e abraços. Entre tanta gente, ele está só. Entre tanta gente só. Lá está ele. Ali, espera por um trocado, um lanche, um lixo. Espera por um momento que não se sabe qual. Sopa. Banho. Trabalho. Futuro. Um talvez.

Texto e fotos Gislene Ramos e Lara Perl

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Há 47 anos, nascia no recôncavo baiano, o cinema no menino Mamede. Em Santo Amaro

da Purificação, dona Ionice de Jesus Mendes e Seu João Mendes se preparavam para receber o rebento. Dona Ionice trabalhou nas casas de família em Salvador para dar o melhor a seu filho, único e desobediente. Enquanto ela queria que ele estudasse, Mamede dizia que queria trabalhar. E assim o fez. Aos 13, tomou o caminho do Subaé e foi parar em terras como Catu, Amélia Rodrigues, Terra Nova, Brumado e, finalmente, em Salvador. Passou por usina de cana, virou vaqueiro, porteiro, peão de obra, motorista, porteiro, encanador, eletricista, ferreiro, caseiro. Até que a vida decidiu ser generosa com ele permitindo que reconhecessem a qualidade daquele rapaz. Com a iminência de novo desemprego, seus então empregadores levaram-no para conhecer, pela primeira vez uma sala de cinema. Naquele lugar, Mamede se encantou e sentiu que

Luz, câmera... projeção!Mamede Jorge Mendes, o baiano que saiu do Recôncavo para realizar seu sonho

Texto Vanice da MataFoto Vanice da Mata

ali estava reservado seu cantinho: a sala de projeção.

COMO TUDO COMEçOUAlfredo e Mamede. Dois

homens em tempos dife-rentes, unidos pelo ofício de projecionista. O primeiro, personagem ficcional de Giuseppe Tornatore em seu inesquecível filme Cinema Paradiso (Itália, 1988). O segundo, operador da Sala Walter da Silveira, no bairro dos Barris, em Salvador. Livre dos riscos pelo qual passou Alfredo, Mamede reconhece o valor do avanço tecnológico e se mantém

curioso sobre as novidades que rondam o seu trabalho.

Se na vida, as agruras se tornam recorrentes, até quando suportar? Como lidar com dificuldades, mantendo o espírito livre, es-perançoso e aberto ao novo? Quando decidiu tomar um rumo na vida, Mamede só sabia o que não queria. E isso lhe foi suficiente. Viveu em periferia, sem, contu-do, sentir-se periférico. Ao cortar a cana, ao limpar um chão, ao consertar um fio ou uma poltrona danificada, o que lhe estimulava era a capacidade que sabia que

tinha para resolver proble-mas. Na casa do argentino Luiz Alberto Dantas Becerra, arquiteto especializado em projetar salas de exibição, e de sua esposa Maria Augus-ta, surgiu a oportunidade que iria marcar para sempre sua vida. Conheceu-os quan-do foi prestar serviço de limpeza do quintal. Mamede fez a tarefa tão rápido que o argentino se impressionou com o rapaz. Alguém tão bom para o trabalho preci-saria estar ali, próximo a ele. E assim o foi. Durante seis meses atuou como caseiro da residência de Luiz Alber-

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sua então parceira, vítimas de uma complicação na gravidez. Há dois anos afas-tado das salas, um colega lhe falou que estavam à procura de um projecionista. Na mesma hora largou tudo e após a entrevista, deu certo: seu sonho ainda era possível.

Desde então, Mame-de está feliz e ama o que faz. Quando perguntado qual seu próximo sonho, corresponde ao esperado e não hesita: “Quero montar uma sala de cinema para minha família”, ri. Para quem acredita que cinema é magia, o contraste da sétima arte com a realidade de um homem trabalhador e dedi-cado serve como combustí-vel para mais uma sessão da dura e doce vida real.

to, até o mesmo decidir se desfazer do imóvel alugado e investir em condomínios de prédios. Maria Augusta, sensibilizada e sentindo-se responsável pelo rapaz, jun-to com o marido, fizeram o pedido para que um amigo o empregasse em uma de suas empresas. Aquele ami-go seria Gastone, proprie-tário da Art Films S/A, no Rio de Janeiro.

No dia seguinte, esta-va cedo no escritório da empresa para começar a manutenção. Ao chegar ao prédio dos Cines Art 1 e 2, Mamede afirma: “Encontrei ali o meu lugar”. Seis meses na função inicial e mais três na portaria. Foi o suficien-te para ele ser transferido para o Cine Iguatemi 1 e

A ele estava reservado o cantinho fetiche dos cinéfilos: a sala de projeção.

2, onde conheceria duas pessoas importantes em sua vida profissional: o gerente Roque e o falecido colega e mestre de profissão, Edval-do. O colega, até meio dia, trabalhava na manutenção das salas; no turno da tarde, comandava a cabine de pro-jeção. Mamede aproveitava seu tempo de descanso e ia arejar sua mente aprenden-do a cuidar do maquinário, a montar películas, ajeitá-las no projetor. Envolveu-se tanto com isso que não demoraria a ser transferido para o Cine Astor para assu-mir a projeção daquela casa. Mais tarde, depois de passar pelo Cine Glauber Rocha, voltou ao Iguatemi 1 e 2 para exibir sessões exclusivas para empresários e imprensa.

Mamede presenciou grandes momentos do cine-ma na Bahia, mas, também, muitos momentos tristes. Foi o responsável por desmontar as salas do Iguatemi retiran-do telas, projetores, fechando suas portas. Neste momento se viu, mais uma vez, desem-pregado. Foi incumbido de desmontar cada cantinho de seu sonho. Restou-lhe a clássica pergunta: “e agora?”

NOVO INíCIOCom a grana que tinha,

comprou uma kombi e passou a trabalhar com o transporte de funcionários para empresas. Não bastasse a distância do ofício que mais amava, viveria uma situação de profunda tristeza quando perderia seu filho e

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Nascido em abril de 1968, no pequeno povoado alagoano de Olho D’água do Pai

Mané, José Inácio Vieira de Melo por lá viveu até os três anos de idade. Desde menino, esteve arraigado à realidade campesina, porém, viveu em várias paragens como Palmeira dos Índios, Arapiraca e Maceió. A poesia o tocou a partir da melodia dos versos de Patativa do Assaré, Cecília Meireltes, Florbela Espanca, Mário de Andrade e Ferreira Gullar pelo cantor Raimundo Fagner. A busca por esses autores originou em Inácio o poeta que é. Na época,

não gostava muito de ler. Preferia ouvir música. Inspirado nas canções, começou a escrever versos sem preocupação estética ou métrica, mas como expressão de seus sentimentos.

Ao completar o ensino médio, indagado pelo pai sobre o futuro, decidiu que queria casar. O conselho foi: “Se tu quer casar, então terá que trabalhar”. Assim, foi mandado à Cerca de Pedra, uma fazenda que o pai tinha em Maracás, no interior da Bahia, onde não havia energia elétri-ca ou água encanada. Lá viveu por uma década, lendo obras completas de diversos autores sob a luz

do candeeiro. Este período rendeu-lhe dinheiro para viver oito anos em Salva-dor dedicados à literatura. Ainda na fazenda, conhe-ceu a obra do poeta Ge-rardo de Mello Mourão, o qual mudou a sua vida por causa do modo de escrever e do estilo literário. Mais tarde, tornaram-se amigos.

Sempre se considerou um garoto diferente e desde cedo teve relação muito forte com o álcool. Mais tarde, devido aos exageros, foi preso algumas vezes. Porém, criou bom relacio-namento com as pessoas que se interessavam por arte em Maracás, chegan-do a criar um grupo que discutia semanalmente

artes plásticas e literatu-ra. Sua produção crescia, incentivada pela bagagem de leituras que adquiria. Movido pela ânsia de ter mais conhecimento, veio a Salvador para cursar faculdade e participar da cena literária baiana e bra-sileira. Estudou na Facul-dade de Comunicação da Ufba e dedicou seu curso de Jornalismo à literatura. Ao recordar os tempos da faculdade afirma: “O instrumento do poeta é a palavra. Quando aluno, aprendi que o caminho mais próximo entre dois pontos não é a linha reta e sim o arrodeio. Por isso, quando falo, é por arro-deios”. Concluiu o curso

Texto Vanessa Caldeira e Wendell Wagner Foto Wendell Wagner

Quem disse que poesia não se vende?Para o poeta José Inácio Vieira de Melo, é possível publicar e vender livros de poesia

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com uma antologia poética de novos autores baianos chamada “Concerto Lírico a Quinze Vozes”, que, mais tarde, viria ser seu terceiro livro, publicado por meio de edital do Faz Cultura em 2004.

Frequentador assíduo de eventos literários, Inácio sempre leva um gravador para entrevistar pales-trantes e poetas, além de fazer contatos e se tornar conhecido. Passou a trocar correspondências com escritores famosos. Com essas convivências, aprimo-rou a produção textual e chegou a descartar poemas antigos por achá-los ruins. O próprio autor credita o reconhecimento de seu trabalho a dois motivos: seu processo de divulgação e o valor de sua poesia: “Da minha geração sou o poeta mais conhecido da Bahia e um dos mais conhecidos do Brasil, mas isso não faz de mim um gênio, pois sou completamente poeta e não um poeta completo”.

José Inácio tem cin-co livros publicados. O primeiro, Códigos do Silêncio, em 2000, traz prefácio de Gerardo de Mello Mourão e ganhou o edital Selo Editorial Letras da Bahia pela Fundação Cultural do Estado, com lançamento na Academia de Letras da Bahia. Já o segundo, Decifração de Abismos, em 2002, contou com o apoio da Empresa Gráfica da Bahia (Egba). No dia do lançamento, as vendas não foram boas e, por isso, criou uma estratégia: passou a fazer vários dias de lançamen-to e em locais diferentes. Além disso, propôs às prefeituras do interior da Bahia para realizar eventos literários em troca da compra de exemplares para disponibilizar em escolas e bibliotecas públicas. A fim de tornar-se conhecido no meio literário, enviava seus livros para escritores famosos. O quarto livro, na verdade o terceiro autoral

de poesia, foi A Terceira Romaria. Este último teve grande projeção renden-do matérias e ensaios em jornais de Colômbia e Por-tugal, tendo alguns poemas traduzidos para o inglês, francês e espanhol.

Em um evento, no Ce-ará, o diretor Raimundo Gadelha foi cumprimentá-lo: “Você que é o Inácio? Quero publicar um livro seu”. Inácio responde: “Já tenho o livro pronto!”. Na verdade, não tinha e teve que escrever A Infância do Centauro em sete meses. Com esse livro, as vendas melhoraram, pois foi indi-cado como leitura obriga-tória de algumas escolas particulares de Salvador. “Após quatro publicações, sinto que completei um ciclo de literatura mais su-til, de sentimentos à terra, à natureza e ao erotismo velado”, pontua o poeta. O quinto e mais recente livro, Roseiral, coloca a relação amistosa e contemplativa da natureza e dos senti-

mentos em xeque-mate. Neste livro, Inácio mata o pai simbolicamente, joga pedra em Deus e fala de erotismo beirando a por-nografia.

Atualmente o poeta vive na fazenda Pedra Só, no município de Iramaia, no interior da Bahia. Diz que precisa pisar na terra e se desligar do mundo de vez em quando. Entretanto, possui sua casa na cidade, na qual mantém seu rela-cionamento com o mundo por meio de vídeo-poemas, que divulga em blogs e nas redes sociais Youtube, Orkut, Facebook, Twitter. “Depois que comecei a utilizar esses medias, meu trabalho tornou-se mais conhecido e, por conta disso, passei a ser convida-do para eventos em várias partes do país”.

Do contemplativo ao agressivo, do álcool exces-sivo à água, do campo para a cidade, do ostracismo ao marketing, Inácio mudou e diz que só está começando.

Sou completamente poeta, não um poeta completo

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De menino desengonçado a um homem criativo. Conheça a história de Dery Lima, o palhaço malabarista

Texto Genilson Alves e Tunísia CoresFoto Rodrigo Wanderley

Graduado em Turismo, o palhaço Dery Lima, como ele mesmo se intitula, foi apresentado ao Malabares por um amigo, que trouxe de Barcelona um instrumento chamado diabolô.

De imediato, Dery se encantou pela arte, se aprofundou nas técnicas e montou um negócio na área, a trupe Malabares Mágicos. Dessa forma, o malabarista organiza diversos encontros e convenções ao redor do país para difundir esta arte milenar conhecida por Malabarismo. É este o nome de uma arte que mistura prazer e técnica, desenvolve o raciocínio e a agilidade, e que “leva amor e alegria ao coração das pessoas”.

A arte de manter o

equilíbrio

Como você aprendeu o mala-barismo? No começo, foi espontâneo. Um amigo estava fazendo uma pós-graduação em Barcelona, e daí trouxe um Diabolô - um brinquedo ancestral que era usado pelos chineses desde 247 a.C. e uti-lizado durante o pós-guerra para acalmar os guerrilheiros - para mim Então comecei a brincar sem compromisso e notei a necessidade de haver pessoas trabalhando nessa área, fazendo malabarismo em alguns eventos, realizando esse tipo de arte. Daí, comecei a pesquisar mais. Um dia tive um sonho e dele veio o nome

Malabares Mágicos. Então eu falei para Luana [Luana Le-mos, amiga do malabarista]: “E aí, irmã? Vamos montar uma loja de malabares aqui e começar a dar aula, fazer oficinas e estudar mais sobre isso?” Ela disse: “Vamos”. Daí, começamos a executar a arte do malabares, isso ainda na faculdade. Eu sei que quando terminei o curso de Turismo, já era palhaço e malabarista profissional, tinha passado por alguns circos, convenções no Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Ou seja, quando finalizei a graduação estava formado em malabarismo e palhaçaria.

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Algumas pesquisas já compro-varam que a prática do mala-bares faz com que o praticante desenvolva áreas do cérebro ligadas à atenção e à sensibi-lidade de localização espacial, além do desenvolvimento físico como a coordenação motora. Você vivenciou alguma experi-ência parecida?Em toda a minha vida, sempre fui muito atrapa-lhado, muito desengonçado. Quando descobri a arte de ser palhaço, disse: “Nossa, me encontrei”. Melhorei bastante após o malabarismo. Hoje, a minha agilidade com as coisas é totalmente diferente. Não sei se pelo fato do meu primeiro malabares ter sido com moto. Eu comecei a andar de moto muito novo, fazendo manobras. Quando comecei a praticar outros malabares, percebi que essa coordenação proporcionou a habilidade de raciocinar rápido e poder trabalhar uma parte do cérebro que não es-tamos acostumados a utilizar no dia a dia, o hemisfério sul.

O swing poi, o stick e o mala-bares de bolinha, por exemplo, são variações do que se cha-ma “malabares”. há processos ou técnicas específicos de aprendizagem de cada uma dessas manobras?Com certeza. Como tem metodologia para tudo que estudamos nessa vida. Isso faz parte de um estudo. Você vai aprender quais são as técnicas do swing, quais são as ma-nobras das bolinhas. E todos os malabares são infinitos. O praticante não vai chegar a um momento e concluir “Ah, só chega a este ponto”. É infinito porque sempre se pode estar criando e criando. Há uma liberdade, até porque cada um tem o seu estilo.

Você poderia dar exemplos dessas técnicas específicas? Poderia mostrar como elas se aplicam, por exemplo, no malabares de bolinhas, ou swing poi?Nas bolinhas, há o milmess, uma manobra que forma o infinito e é realizada cruzan-

do-se os braços. Também há o half-shower, como se fosse uma cascata. Uma manobra básica para iniciante é formar o “M” da McDonalds com as bolinhas. Outra coisa impor-tante sobre a metodologia das bolinhas é a numerologia. Isso não indica contagens de tempo específicas, mas, evidencia que os tempos são diferentes e cada número representa uma altura, um tempo em que a bolinha fica no ar. Sempre nos números ímpares as bolinhas se cruzam e nos pares ficam em coluna.

Em fevereiro do ano passado, foi realizada a Primeira Convenção Baiana de Malabarismo, Circo e Arte de Rua, em que algumas oficinas sobre malabares foram apresentadas. Você acha que este é o melhor caminho para difundir as técnicas da arte? Quais outras estratégias seriam também eficazes?A melhor estratégia, em Salvador, é organizar eventos como a Convenção porque estamos fomentando a cul-tura, fortalecendo o turismo da cidade, trazendo vários artistas de diversas partes do mundo. Além disso, a galera que faz malabarismo em

Salvador poderá ter acesso ao que está acontecendo no universo circense. Nessas con-venções não existem somente oficinas. Existem mesas-re-dondas, espetáculos, compe-tições. Atividades para que não se pense que malabares é uma arte de semáforo. É uma arte milenar que leva amor e alegria ao coração das pessoas, que encanta e não podemos deixar isso morrer.

Muitos desconhecem os bene-fícios à saúde proporcionados pelo malabares. há divulgação sobre esses benefícios, além da divulgação da própria arte?Praticar o malabarismo é como frequentar academia todo dia. Mas, ao invés de carregar peso e voltar suado para casa, a pessoa estará de-senvolvendo partes do cérebro e mantendo o seu corpo em equilíbrio. Não é apenas pegar o malabares e tentar fazer as manobras. Há sessões de alongamento do corpo inteiro. Tenho amigos que eram obe-sos e após praticarem o mala-bares emagreceram. Deixaram até de ir à academia! Muitos fazem por entretenimento e não por obrigação, como é o meu caso.

Curiosidadessobre malabarismo

Diferente do que se imagina, o malaba-rismo é praticado de forma organizada e tem se tornado mais comum na Bahia. Salvador, como prova dessa expansão, abriga diversos encontros de malabares e, em 2010, sediou a Primeira Conven-ção Baiana de Malabarismo, Circo e Arte de Rua. Entre as atrações e os pro-fissionais que ministraram as oficinas encontram-se não apenas baianos, mas paulistanos, espanhóis, estadunidenses, ingleses.Engana-se quem pensa que esta Con-venção é uma iniciativa tão nova assim. Pelo contrário, o evento faz parte de um projeto presente no calendário ameri-cano e europeu há trinta anos e há uma década na América Latina.

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“Simplicidade e sinceridade, isso pra mim é Blues”, diz o guitarrista Eric Assmar no estúdio do pai, Álvaro As-smar, onde passamos uma tarde com duas gerações do blues baiano entre cafezinhos e boa música. Durante nos-so encontro com esses dois grandes músicos, pai e filho não pouparam elogios e falaram sobre a trajetória pessoal e profissional de cada um. Completando 25 anos de carreira, Ál-varo foi um dos percussores do Blues na Bahia, integrando a primeira banda do gênero que surgiu em Salvador no ano de 1989, a Blues Anônimo. Desde então, o cantor se comprometeu a de-fender a existência de uma cena blues na terra do axé. Durante cinco anos de sua vida esteve à frente do projeto Wednesday Blues, que trouxe para o teatro Acbeu em Salvador artistas nacionais e internacionais. Atualmente apresenta o programa “Educadora Blues”, na Rádio Educadora FM, que, gravado em seu próprio estúdio, leva ao público atualidades do blues mundial toda quarta-feira. Porém,

para assinar um nome e edificar um caminho para que as novas gerações dessem continuidade, o artista teve que trabalhar muito.Formado em Engenharia, nunca exer-ceu a profissão, pois quis dedicar sua vida à música, contra a vontade de sua família. Desde pequeno sua ligação com a arte era forte: colecionava e tro-cava LPs de rock n’ roll com os colegas do colégio e às vezes gastava a mesada toda em lojas de disco. Aos seis anos, sua vocação para guitarrista começou a se manifestar quando viu os The Beatles na TV, “Eu queria fazer o que eles faziam, queria ser John Lennon”, diz Álvaro. Um ano após o acontecido, ele aprendeu a tocar sozinho em um cavaquinho de plástico dado por sua tia e nunca mais parou. Eric, hoje aos 22 anos, também demonstrou vocação para a música desde cedo. “Quando tinha nove anos me surpreendi ao vê-lo tocando o riff de Any I Be do grupo Black Sabath sozinho, só com um dedinho. Hoje ele toca mais do que eu”, diz o pai coruja.

em

Duas gerações unidas pela música

família

Texto Natália Reis e Henrique DuarteFoto Natália Reis

BluesPASS

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Apesar de não influenciar diretamente o filho a seguir o caminho da música, Álva-ro sempre deu todo apoio ao seu desenvolvimento como músico, seja com a compra de equipamentos de qualidade ou com incentivo moral. Assim, o Blues foi se fortalecendo e fazendo parte da relação entre os dois: no caminho do colé-gio, sempre escutavam The Allman Brothers, Steve Ray Vaughan, B.B. King, Jimi Hendrix etc. A transmissão do gosto musical e do conhecimento técnico de pai para filho teve como resultado um mesmo direcionamento quanto à forma de tocar, quanto ao estilo. Existe uma simbiose musical que fun-ciona bem entre eles princi-palmente quando dividem o mesmo palco. “Ele conhece minhas músicas como nin-guém, sabe cantar e tocar elas tão bem quanto eu. É ótimo tocar com músicos por telepatia”, reitera Álvaro.

músico. Além de apresen-tar o programa na Rádio Educadora e participar de disco de Eric, está produ-zindo um álbum inédito da Cabo de Guerra, banda de Hard Rock da qual fez parte durante os anos 80, com o irmão Adelmo, e que agora grava algumas composições da época que quase ficaram esquecidas pelo tempo. Já é noite e depois de cafezi-nhos e um bom bate-papo ouvimos os dois tocando um pouco de Blues. Entre improvisos e caretas, eles confirmam a enorme dose de sentimento contido nas composições. Do LP ao Mp3, Álvaro termina a entrevista nos presentean-do com um CD recheado de Blues e Rock n’ Roll, gravado a partir da sua vasta discografia digital. A ação de presentear serve para não perder o velho hábito da troca de discos e, principalmente, para dar continuidade à sua missão de difundir o Blues.

Quando tinha nove anos me surpreendi ao vê-lo tocando o riff de Any I Be do grupo Black Sabath sozinho, só com um dedinho. Hoje ele toca mais do que eu.

Hoje em dia, os dois quase não têm tempo para tocar juntos, principalmente por causa da agenda de shows da Cavern Beatles, banda da qual Eric faz parte. A banda cover dos The Beatles chega a fazer cinco shows por semana. Em paralelo, toca como freelancer para diversos artistas e está gra-vando o primeiro CD como cantor e guitarrista com o

Eric Assmar Trio. O álbum traz trabalhos autorais, re-leituras de clássicos e conta com a produção de Álvaro. Com um pé na estrada e outro na academia, Eric se formou no ano de 2010 em Licenciatura em Música e se prepara para iniciar um mestrado na área, além de dar aulas de Blues. Atualmente, Álvaro se sente mais produtor do que

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A habilitação em Produção em Comunicação e Cul-tura (ou simplesmente, Produção Cultural) da Universidade Federal da

Bahia (Ufba) completa 15 anos cheio de dúvidas, desconfianças e sem a devida atenção que uma debutante merece. Aliado à juventude, o pio-neirismo faz com que o curso ainda apresente alguns problemas, como a falta de professores especializados e pouca bibliografia, e a carência de uma grade curricular que atenda às necessidades do mercado de trabalho. Em contrapartida, muitos produtores formados pela Faculdade de Comu-nicação (Facom/Ufba) ingressam nos órgãos públicos de cultura do estado e contribuem nas ações voltadas para a política e gestão culturais.

VESTIBULAR PARA COMUNICAçãOAs dúvidas acerca do curso de

Produção Cultural começam já no momento de inscrição para o vestibu-lar. Muitos candidatos que escolhem o curso não têm ideia do que, se

forem aprovados, vão estudar bem como a forma de atuação do profis-sional no mercado. Essas incertezas são fruto do caráter incipiente da graduação no Brasil. Na Facom, por exemplo, foi fundado em 1996. No mesmo ano, porém com enfoque diferente, o curso também passou a ser oferecido na Universidade Federal Fluminense. Ou seja, a área de estudo é relativamente muito nova, o que justifica a falta de conhecimento por parte de estudantes e da sociedade em geral.

A implantação da graduação, tanto no Rio de Janeiro quanto em Salvador, se deu, principalmente, pelas demandas do mercado, uma vez que o cenário cultural brasileiro estava ganhando força e precisava de profissionais e pensadores da área. Albino Rubim, Secretário de Cultu-ra da Bahia e um dos mentores do curso, justifica que o motivo principal para implantar a graduação na Facom foi o seu caráter inovador e o diálogo com a cultura. “Ela não era só inédita, como tinha uma sintonia fina com a cultura, campo sempre presente na

faculdade. Creio que foi uma decisão muito acertada da Faculdade naquele momento”.

Na Ufba, o curso foi oferecido pela primeira vez de uma forma inusi-tada: dos 30 candidatos aprovados no vestibular para Jornalismo, dez poderiam optar pelo novo curso. Caso houvesse arrependimento, os calouros poderiam voltar à gradua-ção escolhida inicialmente. Das dez vagas oferecidas, apenas cinco foram preenchidas. Um dos alunos que optou pela nova graduação foi Carlos Paiva, Superintendente de Promoção Cultural da Secretaria de Cultura da Bahia (Secult). “Fiz a opção pelo meu interesse no campo da cultura, não por conhecimento da área”, revela. Segundo Paiva, o Brasil e a Bahia estavam numa fase de consolidação do turismo e da cultura e ele viu no curso uma boa oportunidade para ingressar no mercado de trabalho. “A cultura baiana estava ganhando mais visibilidade, principalmente pelo des-taque do axé music em todo o Brasil”. Contudo, o Superintendente afirma que as dúvidas em relação à gra-

Que produção é feita aqui?

O curso de Produção Cultural da Facom recebe críticas dos professores e alunos, mas se consolida como instrumento importante para pensar a cultura no Estado

Texto Giltemberg Brito e Raulino JúniorFoto Vitor Villar

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duação também estavam presentes nas discussões entre os colegas. “As nossas angústias eram relaciona-das ao mercado. Na época, já tinha um campo prático consolidado, mas era frágil. Percebíamos também que a literatura sobre gestão cul-tural era incipiente. Havia uma distância grande entre a teoria e a prática, mas era visível para nós que os professores faziam o que estava ao alcance deles”.

É justamente a carência da parte prática do curso que incomoda alunos e professores. A Universidade ainda não conseguiu esta-belecer uma grade curricu-lar que atenda aos aspectos teóricos e práticos de for-ma satisfatória. O produtor cultural Ugo Mello, forma-do pela Facom e autor da monografia Formação em

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Os recém-formados da Facom sentem muita dificuldade em se colocar no mercado, embora tenham boa formação intelectual, Sérgio Sobreira

Produção Cultural–Ufba: uma análise dos alunos egressos entre 1999- 2008, endossa a discussão: “Se a grade fosse essencialmente aplicada, valeria a pena. A falta de respeito às ementas e a ausência de professores qualificados dificultam o processo do aprendizado”.

Albino também afir-ma que existem algumas lacunas. “Falta uma ampla formação teórica e ana-lítica em cultura e uma maior prática de produção cultural”. O professor cita iniciativas como a Produ-tora Júnior (empresa júnior da Facom) e o Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult), como bons espaços dentro da Universidade para fomen-tar o exercício da área. Outro ponto muito comen-tado — e defendido — por professores, ex-alunos e profissionais da área, é a necessidade de uma aproxi-mação do curso com as Es-colas de Belas Artes, Dança, Teatro e Música da Ufba a fim de se estabelecer laços entre futuros produtores e artistas e, de certa forma, suprir tantas carências.

O vice-diretor da Fa-com, professor Maurício Tavares, ressalta que essa distância existe. “Falta, sim, um diálogo entre a Facom e a Escola de Belas Artes da Ufba. Algumas discipli-nas optativas do curso de Produção Cultural deve-riam ser alocadas lá. Mas, a Faculdade é, ainda, muito endogênica”, desabafa.

PIONEIRISMOEmbora seja alvo de

críticas, o curso destaca-se pelo pioneirismo. Numa sociedade em que, muitas vezes, a atividade de pro-dução cultural está atrelada a conchavos e protecionis-mos, é de grande impor-tância ter uma instituição acadêmica oferecendo formação na área. Isso contribui para que a orga-nização da cultura seja feita

de forma mais transparen-te e bem fundamentada. Outro ganho perceptível é a presença no mercado de profissionais habilita-dos. “O olhar mais denso da área, só o curso supe-rior oferece”, atesta Paiva. O professor da Facom, Adriano Sampaio, vê com entusiasmo a graduação. “Ela é pioneira em nossa região e tem um papel propagandístico muito grande”. Segundo ele, as críticas em relação ao curso são bastante naturais, pois ele ainda é muito recente. “Essas discussões sempre acontecem em profissões incipientes e é natural que tenha certa instabilida-de, pois a graduação tem apenas 15 anos. É pouco tempo para ser avaliada”.

Outro mérito do curso é a discussão sobre a polí-tica e a gestão da cultura. “Apenas o fato de se propor a formar profissionais da área já é o mérito princi-pal. Só o curso de Facom dá subsídios para pensar política e gestão”, garante Ugo Mello.

CENÁRIO CULTURALA presença de um

curso de Produção Cul-tural numa cidade serve, dentre outras coisas, para movimentar o seu cenário cultural. Com Salvador, não seria diferente. O curso da Ufba contribui para suscitar a reflexão sobre a produção de cultura feita na Bahia e dá mais opor-tunidades para os profis-sionais da área. Segundo o Secretário Albino, “o curso tem ajudado muito na qualificação e na profis-sionalização do campo cultural, em especial, no segmento da organização da cultura, que é vital para um bom funcionamento da área cultural. Um exemplo importante disso é a quan-tidade de alunos formados pela Facom que trabalham na Secult”.

Para Chica Carelli,

atriz, diretora teatral e coordenadora do Bando de Teatro Olodum, “o curso é importante, principalmen-te no que diz respeito às noções que dá em relação à produção de projetos. Eles têm que ser feitos por profissionais”.

É interessante questio-nar se o mercado de tra-balho está preparado para receber os profissionais que saem da Universidade. Para o professor da Facom, Sérgio Sobreira, a discus-são deve ser contrária. “Os profissionais formados pela Universidade estão preparados para atuar no mercado cultural baiano?”, indaga. De acordo com Sobreira, a graduação pre-cisa aprimorar a formação oferecida para também qualificar para o mercado. “Os nossos recém-forma-dos sentem muita difi-culdade em se colocar no mercado, embora tenham boa formação intelectual. Porém, o mercado demanda mais técnica e habilidade que conhecimento teórico”, acentua o professor.

FUTURO O futuro do curso de

Produção Cultural da Fa-com não pode ser previsto, mas deve ser pensado constantemente. “O curso precisa ter mais professores especializados na área e um equilíbrio entre teoria e prática. Deve também con-seguir um quadro de do-centes que atendam a essas duas demandas”, expressa Maurício Tavares. Segundo ele, a Facom não tem dado tanta atenção ao curso de Produção Cultural, e um dos motivos é a presença de apenas um colegiado na instituição. “O colegiado dá mais aten-ção ao curso de Jornalismo e somente as demandas desse curso são prioriza-das”, afirma. Diante disso, fica a pergunta: que curso de Produção Cultural que-rem na Facom?

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30 Uma mulher encantadora e que transborda o amor pelo que faz em cada palavra. É impossível

não mergulhar na história de Maria Eugênia Milet, olhando em seus olhos. Nascida no Rio de Janeiro, no bairro do Andaraí, teve uma infância saudável, cercada pelos irmãos, amigos e vizinhos. Mantinha um contato íntimo com a natureza, que também fazia parte do seu círculo de amizade, pois ela conversava com as flores. Gostava de usar as roupas de sua avó e se imaginar cantora, amava brincar de roda e, como toda menina de sua idade, brincava de boneca. Sempre estudou em escolas públicas, escolas pequenas próximas à sua casa. Lembra-se daquela que ficava próxima à fábrica de tecidos cantada por Noel Rosa e cantarolada por Maria Eugênia: “Quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos/eu me lembro de você...”. A arte esteve presente em sua vida desde cedo. As tardes, passava-as na casa de sua avó, cantora lírica do auge da Rádio Nacional e nas histórias que seu pai

Texto Raquel Sant’AnaFoto Vitor Villar

contava. Todas as cantigas e a poesia paterna são parte de quem é hoje Maria Eugenia Millet.

No Rio de Janeiro, fez psicologia e artes plásticas e conheceu Ilo Krugli, fundador do grupo de teatro Ventoforte, inspirado nas artes populares, além do sonho e da poesia, e que é uma importante referência na vida de Maria Eugênia. Sempre conviveu com amigos pintores, dese-nhistas e artistas, mas quando veio estudar na Universidade Federal da Bahia, na década de 70, é que descobriu a arte de atuar.

Assim, Maria Eugênia, ao começar a oficina de teatro com Jurema Penna, foi convidada a fazer uma peça, contracenando com Mar-cio Meirelles e Hebe Alves. Formou-se, a partir daí, o grupo Avelãz e Avestruz, que durou 17 anos. Para Milet, o processo de aprendizagem análoga é importantíssimo para a formação do indivíduo, possibilitando novas visões de mundo. Maria Eugênia se interessava pelo mundo dos contos de fadas e pela imaginação das Crianças. Por isso, quando cresceu, estudou

a psicanálise infantil. Nunca se afastou desse universo, bus-cando refúgio para a Criança que existe no seu interior.

Desenvolver o Centro de Referência Integral do Adolescente (Cria) sempre foi o sonho da Maria Eugênia. O projeto que, através da arte-educação, do teatro, música e dança, busca transformar a vida de muitos jovens. São moradores de bairros populares de Salvador, apren-dendo a valorizar os saberes comunitários, fortalecendo a consciência e ganhando novas perspectivas. O Cria articula e faz parte da rede Ser-tão Brasil de arte-educadores e jovens de 15 municípios do estado da Bahia. Os espetá-culos produzidos no Centro trazem como tema a vida, a cidade e sua gente, a rotina, as belezas e as mazelas que os jo-vens encontram no dia-a-dia pelos cantos onde circulam, nas escolas em que estudam e as belezas dos sonhos que

ARTE DE CRIARApaixonada pelo que faz, Maria Eugênia chama a criança que traz em si para brincar

iluminam suas vontades. No Cria, os jovens encontram um ambiente de convivência sau-dável, onde se dialoga sobre tudo, onde há liberdade.

O contato de Maria Eugênia com os participantes do projeto é muito próximo. “Sempre que posso, danço, canto, brinco com os jovens. Fazemos teatro e festejamos a nossa convivência. É uma relação muito boa”, afirma. Fazendo trocadilho com a sigla Cria, esses meninos e meninas são a “Cria” de Maria Eugênia, que se emociona, demonstrando a paixão pelo que desenvolve e as alegrias com os resultados.

Desde a fachada do espaço, já sentimos uma energia po-sitiva que emana das paredes e das pessoas. O que Maria mais quer é “que continuemos fazendo arte e conhecendo o Brasil, que este nosso país re-vele seu esplendor na voz, no corpo, na aspiração de nossos meninos e meninas”.

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Para conhecermais o Cria, acesse: http://twitter.com/criandohttp://blogdocria.blogspot.comwww.criando.org.br

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