sob a lupa do economista - gonçalves, rodrigues

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  • 7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues

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    Prefcio

    Oprofessor de matemtica em geral um sdico. Essa graveacusao de um professor de matemtica que ficou conhe-

    cido em todo o Brasil pelo pseudnimo de Malba Tahan. Seu

    livro mais conhecido, publicado na dcada de 1960, salvo engano, era

    O Homem que Calculava, e eu o comprei em um sebo na Avenida Rangel

    Pestana que queimava os livros da coleo a Cr$1. Era uma pechincha,

    e quando obtive o livro de Malba Tahan cheguei ao Parque Dom Pedro

    II, em pleno centro de So Paulo, com as pginas iniciais da primeira

    histria lidas. Nunca mais me esqueci da histria dos camelos e de comoum sbio beduno deu seu camelo para promover uma diviso equnime

    entre os pretendentes, e ainda sobraram dois camelos para ele. Esses ra-

    bes eram mesmo fabulosos matemticos e eu j tinha aprendido que at

    os algarismos arbicos haviam sido inventados por eles!!!

    O fato que para mim o tal do Malba Tahan deveria ser um beduno

    de tipo fsico semelhante s pessoas que mercadejavam na regio da Rua

    25 de Maro, em So Paulo. Foi justamente l que conheci o srio, ou tur-co como todos eram chamados, inclusive os judeus , Abdallah Aschar,

    um bem-intencionado militante do Partido Comunista Brasileiro. Foi o

    turco, ou srio, que me disse que o genial autor de O Homem que Calculava,

    que propunha problemas de aritmtica e lgebra, era um criativo profes-

    sor brasileiro, Julio Csar de Mello e Souza, carioca que cutucava os seus

    pares afirmando que eles gostavam de complicar tudo. A verdade que

    fiquei um pouco decepcionado com o Malba Tahan que havia criado em

    minha imaginao de menino de 14 anos; ele no tinha turbante, nemcamelos, nem vivia no deserto, nem fazia as oraes dos crentes em Al.

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    O homem era brasileiro, mas escrevia como se cada problema de mate-

    mtica ou lgebra fosse um conto das Mil e Uma Noites, que tambm

    tinham me fascinado.

    Alm de Malba Tahan, a matemtica que aprendi se deveu criati-

    vidade de alguns professores. Em compensao, no aprendi nada com

    outros, e cheguei mesmo a desconfiar que um ou outro no sabia o que

    ensinava pretenso passageira de quem tomou vrias notas vermelhas

    na matria. Depois, como professor de Histria, fui assistir s aulas de

    matemtica do professor do cursinho Objetivo de So Paulo, Olivaldo

    Pereira, e me encantei quando ele me mostrou que matemtica no era

    aquele monte de clculos e frmulas que todos decoravam, e sim algo

    mais intuitivo e belo.

    Escrever fcil difcil. Falar fcil tambm. Ensinar com boa didtica muitomais, pois exige que o professor saiba muito e seja capaz de decodificar em

    funo de seu pblico-alvo. Uma coisa falar para os sbios da Academia de

    Viena, outra, para alunos do curso fundamental da periferia.

    Assim como O Homem que Calculava fez muita gente de diversas ge-

    raes ver a matemtica com outros olhos, este livro dos professores da

    USP, Carlos Eduardo Soares Gonalves e Mauro Rodrigues, composto por

    deliciosas crnicas que aplicam os conceitos da cincia econmica a diver-

    sas situaes concretas, mostra ao leitor leigo que aprender sobre econo-

    mia pode tambm ser algo divertido.

    Herdoto Barbeiro

    Escritor e jornalista da CBN e da TV Cultura

    Bagdad, 19 da lua de Ramad de 1321

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    Prlogo

    Nosso objetivo ao mergulhar no desafio de escrever este livro foitrazer ao conhecimento do pblico geral, sob a forma de uma

    leitura leve e acessvel, alguns resultados da pesquisa acadmica

    recente na rea de Economia. Alm disso, o livro tem tambm a finalida-

    de de ensinar uma srie de conceitos bsicos da teoria econmica, empre-

    gando, para isso, exemplos inusitados do dia a dia.

    Tratamos aqui dos mais diversos temas, muitos deles largamente dis-

    sociados dos assuntos abordados nos cadernos de economia dos jornais.

    Queremos com isso: (i) mostrar a abrangncia da lgica econmica ecomo ela pode contribuir para o entendimento de diversos fenmenos

    sociais, e (ii) transmitir uma variedade de conceitos econmicos de forma

    divertida e agradvel ao leitor.

    Diferentemente de outros trabalhos com objetivo similar, estrutura-

    mos nosso livro em forma de textos curtos e autocontidos, que podem ser

    saboreados pelo leitor em qualquer ordem.

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    Sumrio

    As maiores bilheterias do cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1A herana maldita da escravido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7

    Harry Potter e o preo da passagem de avio . . . . . . . . . . . . . . .13

    Dos mosquitos ao desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .16

    Nosso amigo, o especulador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22

    Adam Smith e os benefcios da globalizao . . . . . . . . . . . . . . . .26

    A hecatombe financeira de 2008 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31

    Rins venda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37Diplomatas e ndios peruanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43

    Mais comrcio, menos pases . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50

    1688 e 1904: o impacto sobre as taxas de juros . . . . . . . . . . . . . .53

    O ovo e a galinha na economia do crime . . . . . . . . . . . . . . . . . .59

    O contrabando a servio da sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .64

    Incentivos ao futebol arte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .72

    Deuses da chuva e da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77

    A feia fumaa que sobe apagando as estrelas . . . . . . . . . . . . . . .82

    Racionalidade individual e irracionalidade coletiva. . . . . . . . . . .90

    A privatizao dos rinocerontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93

    O outro lado das epidemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .98

    Malleus Maleficarum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .102

    Max Weber versusMartinho Lutero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .107

    Beleza importa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .113

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    Vermes e armas: benefcios e custos sociais . . . . . . . . . . . . . . . .117

    Celebridades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .120

    O custo do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125

    Impactos escondidos do 11/9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .129

    A vida e a morte do drago inflacionrio . . . . . . . . . . . . . . . . .131Dr. Fantstico e a crise financeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .138

    Felizes para sempre? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .142

    Ligaes perigosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147

    Grandes salrios I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .152

    Grandes salrios II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .155

    A proliferao dos cursos de MBA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .159

    Frentistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .164

    Sobre filas e cambistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .168

    O fim dos CDs? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .174

    Vinhos, pipocas e passagens areas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .179

    O DNA destruidor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .182

    Remdios para quem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187

    QWERTY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .193

    Nas bordas da racionalidade econmica . . . . . . . . . . . . . . . . . .199

    A maldio do vencedor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .207

    Parece, mas no . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .213

    Corrupo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .218

    Terroristas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .224

    Marcas de cerveja e nmero de candidatos . . . . . . . . . . . . . . . .230

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    Rins venda

    Na teoria econmica, lugar proeminente atribudo importnciadas trocas. As trocas permitem que as pessoas se especializem na

    produo de alguns poucos bens e servios, vendam-nos no mer-

    cado e, com o dinheiro recebido, comprem uma mirade de outros bens

    que elas mesmas no produzem. Alm disso, a possibilidade de trocar

    faz com que os bens na economia terminem nas mos das pessoas que

    lhes atribuem maior valor. Se Carlos Eduardo, que no liga muito para

    futebol, acha um ingresso para um jogo do Corinthians na calada, ele

    vende-o para Mauro por um preo menor que o cobrado no guich. Am-bos saem ganhando e, no menos importante, o ingresso termina na mo

    de quem o valoriza mais, o fantico Mauro.

    Trocas no impostas por fora ou coero so ditas eficientes porque ne-

    cessariamente beneficiam ambos os lados da barganha: quem vende e quem

    compra. Esse resultado quase bvio, apesar de muitas vezes no ser bem

    recebido entre os no economistas. Veja que se dada troca no fosse mutua-

    mente benfica, ela deixaria de ocorrer, j que ao menos uma das partes notoparia a transao. O problema que algumas trocas so to assimtricas

    que ferem nosso senso de justia. Ficamos revoltados, por exemplo, quando

    um trabalhador em uma vila pobre da ndia vende 14 horas dirias de sua

    fora de trabalho em troca de um salrio pfio de poucos dlares. Mas, apesar

    disso, a verdade que essa troca o beneficiou, pois, apesar de muito ruim, era

    provavelmente a melhor opo disponvel no momento.1

    1O ideal para mudar esse quadro lamentvel ampliar as possibilidades de escolha dospobres, o que pode ser alcanado, por exemplo, ao melhorar sua qualificao profissional.

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    O teorema sobre a eficincia das trocas no se restringe a transaes

    de natureza puramente econmica por exemplo, a troca de um carro

    por dinheiro. Ele se aplica tambm a outros mercados, como o polmico

    mercado de rgos humanos.

    Cerca de 30 mil brasileiros fazem parte de listas de espera por trans-

    plantes de rins. Entretanto, o nmero de transplantes efetivamente rea-lizados bem menor: apenas 3.397 no ano de 2007, por exemplo.2A fila

    longa: espera-se, em mdia, 5,5 anos por um rim perodo no qual um

    paciente com insuficincia renal crnica deve se sujeitar a um penoso

    tratamento de hemodilise.

    Filas quase sempre refletem um descompasso entre demanda e oferta.

    Nesse caso, no h rins suficientes para atender a todos que precisam

    de um transplante. A escassez de oferta de rgos no exclusividadetupiniquim: no Reino Unido, uma pessoa espera em mdia 2 anos por

    um rim; nos Estados Unidos, entre 3 e 5 anos,3ou seja, mesmo em pases

    desenvolvidos, conseguir um rim em bom estado no nada fcil. Em

    face disso, pergunta-se: Por que ento no existe um mercado de rins

    funcionando eficientemente?

    Veja o leitor que transplantes de rins possuem uma particularidade in-

    teressante que os diferencia de outros tipos de transplantes: o rgo pode

    ser doado por pessoas ainda vivas. Isso porque o doador pode levar umavida praticamente normal com apenas um rim (o maior risco da doao

    o da operao). Essa peculiaridade deveria facilitar a vida de pessoas que

    precisam de transplantes, mas a realidade , como vimos anteriormente,

    bem menos alentadora.

    Um dos problemas que encontrar uma pessoa saudvel e disposta a

    doar um rim (normalmente um grande amigo ou membro da famlia do

    doente) no garante que o transplante possa ser efetivamente conclu-do. Em particular, para reduzir ao mximo a probabilidade de rejeio

    do rgo transplantado, paciente e doador devem ter tipos sanguneos e

    tecidos compatveis.

    2Dados da Associao Brasileira de Transplante de rgos: .3Ver Marinho, A.; Cardoso, S.S. e Almeida, V.V. (2007). Os Transplantes de rgosnos Estados Brasileiros. IPEA, Texto para discusso n. 1317, Tabela 1. Os dados para

    Brasil dizem respeito ao ano de 2003, para transplantes realizados dentro do Sistemanico de Sade (SUS). Os dados para os Estados Unidos referem-se aos anos de 2001e 2002. Para o Reino Unido, consideram-se apenas adultos, no perodo 1999-2002.

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    Assim, o nmero de transplantes baixo por dois motivos: (i) o gru-

    po de pessoas prximas ao doente, dentre as quais poderia aparecer um

    doador, reduzido, e (ii) h uma chance nada desprezvel de que o bom

    samaritano desse pequeno crculo possua tipo sanguneo ou tecidos in-

    compatveis com os do doente.

    Dado que existe uma enorme demanda por rins no atendida, e queas pessoas podem levar a vida com apenas um rim, h, no mnimo, um

    grande potencial para o surgimento de um mercado formal e impessoal

    no qual esses rgos seriam transacionados entre pessoas que sequer se

    conhecem. Como ningum seria obrigado a vender seu rim, nesse mer-

    cado s ofertariam rgos aqueles cujo benefcio da venda o dinheiro

    recebido fosse maior do que o custo de passar por uma operao e ter

    que viver com um s rim. Uma pessoa de baixa renda, por exemplo, po-deria se beneficiar da venda de seu rim, usando o dinheiro para outras

    finalidades de grande emergncia.4

    No entanto, esse mercado, ou melhor, um mercado legalde rins, no

    existe. A legislao brasileira, assim como a da maioria dos pases do mun-

    do, probe a comercializao de rgos humanos em troca de montantes

    monetrios. Dessa forma, na ausncia de um doador compatvel perten-

    cente a seu crculo de amigos e familiares prximos, restar ao paciente

    entrar na fila e esperar por um doador falecido ou tentar sua sorte nomercado negro de rgos.

    Como essa situao mudaria se nossos rins pudessem ser negociados

    como bananas, em um mercado legal?

    Consideremos um exemplo hipottico. Um indivduo X, cujo sangue

    do tipo A, necessita de um transplante. Seu irmo, o indivduo Y, est

    disposto a lhe doar um rim, porm possui sangue do tipo B, o que os tor-

    na incompatveis e impossibilita a operao. A presena de um mercadoimpessoal bem organizado alteraria completamente esse quadro, mesmo

    no tendo a famlia dinheiro em caixa para comprar um rim. Isso porque

    Y poderia vender seu rim no mercado para outro doente com tipo san-

    guneo compatvel no caso, tipo B ou O5 e, com os fundos levantados

    4Proibir algum de vender seu rimsob o argumento de que o vendedor no sabe o que estfazendo menosprezar a compreenso das pessoas sobre os custos e benefcios de tal

    ao.5Com um amplo mercado de rins operando legalmente, no seria nada difcil encon-trar tal comprador.

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    nessa transao, a famlia teria condies de comprar o rim de uma ter-

    ceira pessoa, compatvel com as caractersticas do indivduo X (ou seja,

    algum que possua sangue do tipo A ou AB).

    Esse exemplo simples ilustra a perda de bem-estar associada proibi-

    o do comrcio de rins, principalmente para os pacientes que necessitam

    de transplantes. No caso esboado, dois transplantes deixariam de ser rea-lizados por conta da ilegalidade da operao. Ressalte-se que as alterna-

    tivas para o paciente, quando essa troca proibida, no so muito alen-

    tadoras: sofrer com a longa e dolorosa espera por um doador pstumo

    ou recorrer ao arriscado mercado negro. Em particular, a alternativa do

    mercado negro bastante complicada por dois motivos. Primeiro porque

    bons mdicos raramente se dispem a arriscar suas reputaes realizando

    cirurgias ilegais. Segundo porque o paciente ter enormes dificuldadespara recorrer Justia caso o rim comprado seja de m qualidade ou

    ocorra erro ou negligncia mdica na operao, uma vez que tudo se

    passa na ilegalidade.

    Apesar dos argumentos levantados, a maioria das pessoas e ns no

    somos excees v a possibilidade de comprar ou vender rgos em

    transaes monetrias como algo repugnante e at mesmo antitico. Rins

    no so bens como carros ou bananas, convenhamos. Cremos que essa

    averso ao comrcio monetrio de rgos no deve ser desconsideradaem nome da eficincia associada existncia de tal mercado. Se acredi-

    tarmos que as leis de um pas refletem de alguma forma as opinies de

    seus cidados, a proibio ao comrcio de rins indica que a sociedade

    prefere pagar o custo do sofrimento de pacientes que necessitam de trans-

    plantes, a ter que conviver com o horror de colocar preos monetrios em

    rgos humanos.6

    No possvel, portanto, passar julgamento de valor a respeito da proi-bio, e a ns, economistas, cabe apenas indicar que a proibio tem tam-

    bm custos importantes.

    Entretanto, as trocas, principal fator gerador de ganhos de bem-estar

    socioeconmico, nem sempre precisam ser realizadas via pagamentos

    6Outros bens e servios por exemplo, drogas, servios sexuais e jogos de azar so-

    frem proibies semelhantes sua comercializao. Para uma discusso sobre o im-pacto da repugnncia sobre o funcionamento dos mercados, ver Roth, A.E. (2007).Repugnance as a Constraint on Markets. Journal of Economic Perspectives21: 37-58.

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    Rins venda 41

    monetrios diretos. De fato, no caso dos transplantes, h uma alternativa

    interessante que recentemente vem ganhando popularidade, pois permi-

    te que se troquem rins sem que para isso sejam necessrios desembolsos

    monetrios. A ideia consiste em impulsionar os transplantes por meio de

    um mecanismo de trocas diretasde rins, intermediadas por uma institui-

    o central em que so cadastrados pacientes e potenciais doadores. Algica que, para participar, uma pessoa com doena renal crnica no

    precisa trazer dinheiro, mas sim algum disposto a doar um rim.7

    Para facilitar a exposio do funcionamento desse mercado no mone-

    trio, voltemos ao nosso exemplo com o paciente X (com sangue do tipo

    A) e o potencial doador, seu familiar ou amigo Y (de tipo sanguneo B).

    Basicamente, o que a central de cadastro faz buscar, dentro de seu

    vasto banco de dados, outro par paciente-doador compatvel com o pri-meiro, permitindo assim a ocorrncia de dois transplantes de rgos: uma

    verdadeira troca de rim por rim. Por exemplo, encontra-se um paciente

    W, com tipo sanguneo B, cujo doador, seu primo Z, possui tipo sangu-

    neo A. Apesar de cada par X e Y; W e Z ser composto por indivduos

    incompatveisentresi, o sistema garante que haja compatibilidade entre

    pares, possibilitando a realizao de dois transplantes: Z doar seu rim

    para o desconhecido X, enquanto Y doar seu rim para o desconhecido

    W.8Quanto maior o nmero de participantes no banco de dados, melho-res as chances desse arranjo funcionar.9

    O esquema ainda requer que ambos os transplantes sejam realizados

    ao mesmo tempo para minimizar o risco de que o primeiro a receber o

    rim no cumpra sua parte na troca. Por exemplo, se o paciente X rece-

    besse o transplante primeiro, o indivduo Y poderia posteriormente se

    7Note que o par , necessariamente, de pessoas incompatveis. Caso contrrio, elasfariam o transplante entre si e no precisariam, assim, participar desse esquema.8Os indivduos devem ser compatveis com relao a tipo sanguneo e tecidos. Parasimplificar o argumento, estamos supondo que apenas a compatibilidade no tipo san-guneo relevante para determinar a possibilidade de um transplante de rim.9 Nos Estados Unidos, diversas associaes se desenvolveram nos ltimos anospara organizar esquemas do tipo. Para mais detalhes, veja e . O trabalho conjunto demdicos e economistas foi instrumental para o estabelecimento do grupo da re-

    gio norte-americana de New England. Ver . Para a lite-ratura na rea de Economia, veja .

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    42 SOB A LUPA DO ECONOMISTA

    recusar a doar seu rim para o paciente W. Dessa forma, o par X-Y sairia

    ganhando, pois X conseguiria um rim saudvel sem que Y precisasse se

    sujeitar a uma cirurgia. Essa possibilidade de trapaa pode afetar adversa-

    mente os incentivos das pessoas a participarem do esquema, colocando-o

    em risco. A simultaneidade das cirurgias impede que isso ocorra.

    Note que, nesse novo modelo, h troca de rgos entre pessoas queno possuem necessariamente uma relao familiar ou afetiva, da mesma

    forma que ocorreria no caso do mercado monetrio de rins.10A diferena

    fundamental que no h contrapartida de dinheiro, o que torna a tran-

    sao socialmente aceitvel. Colhem-se os ganhos das trocas de mercado

    sem se ferir a tica.

    No momento em que este texto foi finalizado, esse arranjo ainda no

    havia chegado ao Brasil. O que estamos esperando?

    10

    A vantagem das trocas impessoais que elas permitem uma expanso da escala domercado afinal de contas, h muito mais pessoas no mundo do que nosso crculode amizades.

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    90 SOB A LUPA DO ECONOMISTA

    Racionalidade individual e

    irracionalidade coletiva

    Oexemplo vem do Prmio Nobel Thomas Schelling, mas a cena

    conhecida: o trnsito comea a parar e as pessoas a pr as ca-

    beas para fora da janela. Alguns metros frente, um acidente

    bloqueia a pista da mo contrria, mas o engarrafamento na pista livre

    to grande quanto o da pista bloqueada. Isso porque quase todo mundo

    diminui a velocidade para olhar de perto o carro capotado a poucos me-

    tros. O interessante que cada curioso bisbilhota a viso do automvel

    acidentado por meros 5 segundos, mas por conta dessa atitude, cada um

    na fila se atrasa cerca de 30 minutos.

    Trinta minutos perdidos no trnsito tempo demais, mesmo para os

    muito curiosos. Assim, seria claramente melhor para todos se menos gen-

    te parasse para olhar. Mas ponha-se no lugar de quem est exatamente

    ao lado do carro capotado e j esperou na fila por mais de 29 minutos.

    Para ele, reduzir a velocidade agora custa apenas 5 segundos de atraso os minutos perdidos no podem ser recuperados. Por que ento no

    saciar a curiosidade mrbida, dado que o custo dessa ao reflete-se em

    quem est atrs na fila, um desconhecido qualquer?

    Sob o ponto de vista individual, parar para bisbilhotar a deciso ra-

    cional e egosta de quem j chegou cena do acidente. Todavia, com

    todos pensando assim, o resultado final um atraso de 30 minutos para

    cada um. Ou seja, a consequncia da racionalidade individual algo que

    podemos chamar de irracionalidade coletiva. Todos perdem e, ainda as-

    sim, impossvel evitar o resultado indesejado. Nesse caso, o livre mer-

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    Racionalidade individual e irracionalidade coletiva 91

    cado (pessoas escolhendo o que melhor para elas) no suficiente para

    equacionar a questo.

    Uma maneira fcil de resolver o imbrglio estabelecer uma multa

    para os curiosos de planto: por exemplo, reduziu a velocidade e atrapa-

    lhou a vida dos outros, R$50 de infrao. Com esse arranjo, a sociedade

    estaria melhor porque, agora, atrasar a vida de quem vem depois tem

    custos bem concretos.

    Veja que possvel que, ainda assim, algumas pessoas continuassem

    parando para tirar uma foto do acidente, pagando, para isso, R$50 de

    multa. Mas isso no seria algo ruim ou uma falha da soluo via multa.

    Por que no? Porque reduzir a velocidade para ver o acidente vale mais

    que R$50 para um dado cidado, ento de fato eficiente que esse curio-

    so insacivel atrase um pouquinho o trnsito dos que vm atrs. Afinalde contas, o bem-estar do curioso tambm deve ser levado em conta no

    cmputo do bem-estar da sociedade. Alm disso, ele est pagando pela

    inconvenincia gerada.

    O fato que sem a lei que multa quem desacelera, atrapalhar os ou-

    tros tem custo zero. A custo zero, ser curioso muito fcil, gerando uma

    enormidade de curiosos.

    Das ruas para os lares, por que a conta de gua nos apartamentos , em

    geral, mais alta que nas casas? Pelo mesmo fenmeno de irracionalidade

    coletiva descrito anteriormente. Que incentivos tem um morador de um

    prdio, onde a gua est includa no valor do condomnio, a reduzir o

    tempo de seu prazeroso banho quente se, assim procedendo, ele no se

    apropria plenamente de sua economia?

    De fato, ao consumir menos gua, o morador do prdio faz um favor

    a todos. Contudo, ele mesmo ganha pouco com isso. O motivo simples:

    sua economia, que vem ao custo de algum sacrifcio pessoal, repartida em termos de conta de gua coletiva menor entre todos os outros mo-

    radores. Claramente, essa partilha de benefcios afeta adversamente seus

    incentivos a fazer sacrifcios, coisa que no ocorre nas casas, onde a conta

    reflete to somente seus prprios hbitos.

    O pior que mesmo que todos os outros moradores do prdio estejam

    tomando banhos curtos, o melhor sob o ponto de vista individual conti-

    nua a ser banhar-se vontade, pois a conta mais gorda no recai sobre

    quem a gera exclusivamente; ela dividida entre todos os condminos.

    Com todos raciocinando assim, o desperdcio no chuveiro torna-se praxe

  • 7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues

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    difundida e uma bela conta de gua bate porta de todos no final do ms.

    Os poucos que, por altrusmo ou conscincia, se sacrificaram em nome do

    bem comum, ficaro provavelmente to revoltados com a fatura que, no

    prximo ms, passaro a escovar os dentes com a torneira aberta.

    H, felizmente, uma soluo fcil para o problema do consumo ex-

    cessivo de gua nos prdios: basta individualizar as contas, tornando os

    prdios similares s casas nesse quesito.

    J sabe agora o leitor por que a conta do bar nas reunies dos amigos

    da faculdade no fim de ano sempre to salgada? Nesses eventos, nin-

    gum tem incentivos a conter suas demandas de usque e camaro, visto

    que os custos so repartidos sempre entre todos. O triste que essa racio-

    nalidade individual leva, no fim da noite, ao desespero coletivo e at mes-

    mo a eventuais celeumas. Melhor ento evitar problemas, agendando oencontro do prximo ano em um bar com comandas individualizadas.