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1 TÍTULO: Ensino da linguagem oral na educação infantil: o lugar dos gêneros textuais formais AUTORIA: Glaís Sales Cordeiro (doutora, Universidade de Genebra, [email protected] ) RESUMO Esta contribuição visa realizar uma discussão sobre o lugar dos gêneros textuais formais no ensino da linguagem oral no ciclo da educação infantil, onde a noção de gênero é ainda pouco presente na prática do educador e do professor. Será apresentada a análise de produções do gênero oral “receita de cozinha”, realizadas pelos mesmos alunos em dois anos letivos distintos do ciclo de educação infantil em uma escola genebrina. O estudo ancora-se nas definições de gênero textual e de seqüência didática, propostas pela equipe GRAFE (Groupe de recherche pour l’analyse du français enseigné) da Universidade de Genebra. Um segundo objetivo é subsidiário ao primeiro: a análise de indicadores de progressão das capacidades de linguagem dos alunos de um ano a outro da escolaridade. Os resultados indicam que os gêneros textuais orais formais podem constituir um objeto de ensino-aprendizagem pertinente em classes de educação infantil. Além disso, a análise comparativa das produções dos alunos aponta para uma apropriação das características do gênero estudado. Palavras-chave: educação infantil, linguagem oral, gênero textual, receita de cozinha, progressão RESUME Cette contribution vise à réaliser une discussion sur la place des genres textuels formels dans l’enseignement du langage oral au niveau de l’école maternelle, où la notion de genre est encore peu présente dans les pratiques des éducateurs et des enseignants. Sera présentée l’analyse de productions du genre oral « recette de cuisine » réalisées par les mêmes élèves dans deux années scolaires distinctes de l’école maternelle à Genève. L’étude est ancrée dans

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TÍTULO: Ensino da linguagem oral na educação infantil:

o lugar dos gêneros textuais formais

AUTORIA: Glaís Sales Cordeiro (doutora, Universidade de Genebra,

[email protected])

RESUMO

Esta contribuição visa realizar uma discussão sobre o lugar dos gêneros textuais formais no

ensino da linguagem oral no ciclo da educação infantil, onde a noção de gênero é ainda pouco

presente na prática do educador e do professor. Será apresentada a análise de produções do

gênero oral “receita de cozinha”, realizadas pelos mesmos alunos em dois anos letivos

distintos do ciclo de educação infantil em uma escola genebrina. O estudo ancora-se nas

definições de gênero textual e de seqüência didática, propostas pela equipe GRAFE (Groupe

de recherche pour l’analyse du français enseigné) da Universidade de Genebra.

Um segundo objetivo é subsidiário ao primeiro: a análise de indicadores de progressão das

capacidades de linguagem dos alunos de um ano a outro da escolaridade.

Os resultados indicam que os gêneros textuais orais formais podem constituir um objeto de

ensino-aprendizagem pertinente em classes de educação infantil. Além disso, a análise

comparativa das produções dos alunos aponta para uma apropriação das características do

gênero estudado.

Palavras-chave: educação infantil, linguagem oral, gênero textual, receita de cozinha,

progressão

RESUME

Cette contribution vise à réaliser une discussion sur la place des genres textuels formels dans

l’enseignement du langage oral au niveau de l’école maternelle, où la notion de genre est

encore peu présente dans les pratiques des éducateurs et des enseignants. Sera présentée

l’analyse de productions du genre oral « recette de cuisine » réalisées par les mêmes élèves

dans deux années scolaires distinctes de l’école maternelle à Genève. L’étude est ancrée dans

2

les définitions de genre textuel et de séquence didactique proposées par l’équipe GRAFE

(Groupe de recherche pour l’analyse du français enseigné) de l’Université de Genève.

Un deuxième objectif est subsidiaire au premier: il s’agit de l’analyse d’indicateurs de

progression des capacités langagières des élèves d’une année à l’autre.

Les résultats indiquent que les genres textuels oraux formels peuvent constituer un objet

d’enseignement-apprentissage pertinent dans des classes maternelles. De plus, l’analyse

comparative des productions des élèves pointe vers l’appropriation des caractéristiques du

genre étudié.

Mots clés: école maternelle, langage oral, genre textuel, recette de cuisine, progression

1. Introdução

A presença da noção de gênero textual nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de

Língua Portuguesa do Ensino Fundamental (Brasil/MEC, 1997/1998a) e no Referencial

Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEPE) (Brasil/MEC, 1998b), que definem,

respectivamente, diretrizes relativas a esses dois níveis de ensino, tem requerido um

desenvolvimento importante de pesquisas em áreas relacionadas ao ensino e à educação.

Entretanto, poucas investigações sobre gêneros textuais orais e formais e seu ensino em sala

de aula têm sido efetuadas.

Esta contribuição tem como objetivo maior realizar uma discussão sobre o lugar dos gêneros

textuais formais no ensino da linguagem oral e, mais precisamente, no ciclo da educação

infantil. Historicamente, este ciclo foi influenciado por orientações diversas (assistencialista,

psicopedagógica, sócio-construtivista1) e, forçosamente, por diferentes pontos de vista quanto

ao lugar e à aprendizagem da linguagem oral neste momento inicial da escolaridade.

Situações de comunicação mais formais, como exposições orais, entrevistas, etc. parecem

figurar por ora apenas nas orientações do RCNEPE. Daí a necessidade de estudos que levem a

uma possível viabilização de tais propostas na prática de educadores e professores.

A discussão que seguirá procura se inscrever nesta direção. Serão aqui apresentados

resultados provenientes da análise de produções de texto do gênero oral “receita de cozinha”,

1 Para uma apresentação mais exaustiva sobre o assunto, ver, por exemplo, Campos (1993).

3

realizadas pelos mesmos alunos em dois anos distintos do ciclo de educação infantil de uma

escola pública da cidade de Genebra (Suíça).

O ciclo de educação infantil (école enfantine) genebrino é constituído de dois níveis (ou

séries): o primeiro nível de educação infantil (EI1) é freqüentado por alunos de 4-5 anos e o

segundo (EI2) por alunos de 5-6 anos2. No trabalho aqui apresentado, foram primeiramente

analisadas as produções finais de alunos de EI1, filmadas após os módulos de aprendizagem

de uma seqüência didática referente ao gênero supramencionado, realizada em sala de aula.

Estas produções foram, em seguida, comparadas com produções filmadas no ano letivo

seguinte (EI2) com o intuito de observar detalhadamente as capacidades de linguagem dos

alunos após o intervalo de um ano letivo entre as duas produções.

O dispositivo metodológico utilizado leva, portanto, a uma segunda finalidade, subsidiária ao

primeiro objetivo anunciado: a análise dos indicadores de perenidade e/ou progressão das

capacidades de linguagem dos alunos, isto é, de adaptação de sua produção textual às

características do contexto comunicativo, em níveis distintos da escolaridade. Assim, no

contexto do estudo, a última produção dos alunos não foi precedida de novas atividades sobre

o gênero oral “receita de cozinha” a fim de apreciar o impacto da seqüência didática

precedente sobre as capacidades de linguagem dos alunos a médio prazo.

2. Linguagem oral, educação e escola

A linguagem oral sempre esteve muito presente nas práticas educativas e escolares. Ela é, por

excelência, um dos veículos mais importantes para a socialização da criança e a construção de

conhecimentos. Por isso mesmo, a linguagem oral, ou simplesmente, o oral, parece estar

onipresente nas salas de aula em todos os níveis educacionais, da educação infantil ao ensino

universitário.

No entanto, como referem vários pesquisadores, entre outros, De Pietro & Wirthner (1996),

Schneuwly (2004) e Mendes (2005), pouco se conhece sobre o trabalho realizado com a

linguagem oral em sala de aula. Quais são as concepções subjacentes ao trabalho efetuado?

Qual o objeto desse trabalho? 2 O ciclo de educação infantil não faz parte da escolaridade obrigatória. Esta se inicia aos 7 anos de idade na 1ª série do primário (correspondente à 1ª série do ensino fundamental brasileiro).

4

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa de terceiro e

quarto ciclos do Ensino Fundamental (Brasil/MEC, 1998a), “as situações de ensino vêm

utilizando a modalidade oral da linguagem unicamente como instrumento para permitir o

tratamento dos diversos conteúdos” (p. 24). Este posicionamento tem sido ora defendido por

certos pesquisadores (Grandaty & Turco, 2001; Peterfalvi & Jacobi, 2003, entre outros), ora

denunciado (e por vezes, contestado) por outros como, por exemplo, Dolz & Schneuwly

(1998) e Plane & Garcia-Debanc (2007).

Se certos educadores e professores têm buscado realizar um trabalho específico com e sobre o

oral, o ensino desta modalidade volta-se, muitas vezes, para aspectos fonológicos e

morfossintáticos "normalizantes" que, por excluir as dimensões discursivas da linguagem, se

distanciam das situações de comunicação características da oralidade. Exemplos típicos dessa

abordagem são propostos por Ostiguy & Gagné (1988), em sua obra Le développement du

français oral soutenu par l’analyse du langage, ou Castilho (1998).

Problema semelhante é apontado pelos autores dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)

de Língua Portuguesa de 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental, com relação aos preconceitos

referentes às variedades lingüísticas do português do Brasil. De acordo com estes, tais

preconceitos levam, por vezes, os professores a estabelecerem como objetivo de

aprendizagem o domínio da forma padrão ou norma culta, visando apenas à “correção” da fala

dos alunos a fim de evitar “que [estes] escrevam errado” (Brasil/MEC, 1997, p. 38).

Outros pesquisadores, apoiados, sobretudo, em abordagens mais espontaneístas, defendem a

idéia de que o oral é, antes de mais nada, um meio de expressão livre e de comunicação de

sentimentos e idéias, que favorece o desenvolvimento pessoal da criança (por exemplo,

Brunner, Fabre & Kerloch, 1985). Prescinde-se, nesse caso, de quaisquer ações educativas,

planejadas com a intenção de favorecer a aprendizagem da linguagem oral.

Como reação ao modelo precedente, concepções mais recentes de ensino do oral vão emergir,

sobretudo a partir dos anos 90, procurando erigi-lo como objeto de ensino. Tais concepções

encontrarão respaldo nas pesquisas em lingüística aplicada ou em didática de línguas e,

também, em certas práticas de sala de aula. Trata-se de abordagens que preconizam a

5

importância de um trabalho com situações variadas que, além de oferecer aos alunos a

oportunidade de pôr em prática diferentes capacidades de linguagem, levam-nos também a se

conscientizarem das formas e meios lingüísticos utilizados, principalmente de um ponto de

vista discursivo. Nestas abordagens mais atuais, é possível distinguir dois subconjuntos

principais: um primeiro grupo, em que o oral é tratado como um objeto de ensino integrado a

outras atividades escolares (Garcia-Debanc & Plane, 2004; Grandaty & Turco, 2001, entre

outros) propostas em diferentes domínios disciplinares (ensino de língua, de matemática, de

história, etc.); um segundo grupo, em que o oral constitui um objeto de ensino autônomo

(Schneuwly, 1996/1997; 2003) na disciplina de “língua”. No primeiro caso, o eixo

organizador das atividades de ensino-aprendizagem são as múltiplas condutas discursivas que

podem ser incidentalmente associadas às diferentes aprendizagens disciplinares (por exemplo,

em ciências, as condutas descritiva, explicativa e, eventualmente, argumentativa, são

mobilizadas na explicação de fenômenos) e que implicam, ora uma poligestão do discurso

(diálogo entre alunos e/ou professor), ora sua monogestão. No segundo caso, uma seqüência

de atividades progressivas (seqüência didática) visa, exclusivamente, o ensino-aprendizagem

de um gênero textual “escolarizado” (Rojo, 2001; Schneuwly, 2007), este último sendo o

produto das adaptações e transformações efetuadas no gênero social de referência, formal e

público, a fim de que possa entrar no contexto escolar e ser instaurado como objeto de estudo

em todas as suas dimensões.

No Brasil, estas concepções mais atuais do ensino da linguagem oral estão ainda pouco

presentes nas pesquisas e nas salas de aula, como atestam os trabalhos de Mendes da Silva &

Mori-de-Angelis (2003) e de Mendes (2005). Afinal, é somente após a reorientação curricular

do Ensino Fundamental proposta pelos PCN em 1997/1998 que a linguagem oral parece ser

institucionalizada oficialmente na escola e através da noção de gênero textual formal e

público. Além disso, “mesmo os PCN abordam a linguagem oral de forma programática e

genérica, [...], sem, entretanto, discutir ou propor alternativas de como fazê-lo.” (Mendes da

Silva & Mori-de-Angelis, 2003, p. 186).

Observando, no entanto, o grande impacto dos PCN e do Programa Nacional de Avaliação do

Livro Didático (PNLD) na produção científica sobre a noção de gênero textual ou gênero

discursivo no que diz respeito ao letramento e ao ensino da linguagem escrita, esta última

afirmação leva a pensar que a linguagem oral e seu ensino não constituem, todavia, uma

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prioridade absoluta para os pesquisadores lingüistas e editores brasileiros... Poucos são ainda

aqueles que se lançam em investigações sobre gêneros orais (ver, por exemplo, Rojo &

Schneuwly, 2006; Cordeiro & Taschetto, no prelo) e seu ensino em sala de aula (Rojo, 2000;

Matêncio, 2001).

No que diz respeito à educação infantil mais especificamente, como já foi dito, diferentes

pontos de vista têm sido defendidos quanto ao lugar e à aprendizagem da linguagem oral nesta

fase da escolaridade. Muito comuns neste ciclo, são as atividades com múltiplos objetivos que

se assemelham ao ensino do oral integrado a outras disciplinas, acima exposto, como, por

exemplo, fazer uma salada de frutas para aprender o nome das frutas, trabalhar medidas e

quantidades, diferentes sabores, etc. São também freqüentes as rodas de conversa, nas quais

os alunos respondem em coro a perguntas feitas pela professora que se responsabiliza, assim

pela gestão da interação e do texto.

Mais recentes, os momentos de brincadeira e de expressão livre, foram introduzidos no ciclo

de educação infantil a partir de pesquisas apoiadas, principalmente, na perspectiva piagetiana

do desenvolvimento da criança. Tais investigações apontaram novas direções no que se refere

ao ensino e à aprendizagem da linguagem oral, considerando que as crianças constroem

ativamente conhecimentos quando aprendem a falar, a ler e a escrever graças às interações

com adultos e pares. Outros estudos, de inspiração vygotskiana, tendem ainda a reconhecer

que o processo de letramento está intimamente associado à construção da linguagem oral nas

práticas precoces interativas de leitura de diferentes suportes escritos no contexto familiar e

escolar.

Mais atuais são as idéias de ampliação do universo lingüístico dos alunos que freqüentam

classes de educação infantil através do “conhecimento da variedade de textos e de

manifestações culturais que expressam modos e formas próprias de ver o mundo, viver e

pensar” (Brasil/MEC, 1998b, p. 139). Embora mais voltadas para o domínio das capacidades

de linguagem para narrar (jogos de contar) e relatar (relatos de experiência), orientações

didáticas gerais são fornecidas aos educadores e professores do ciclo de educação infantil para

o trabalho com gêneros textuais orais no RCNEPE. É mencionado, por exemplo, o gênero

“entrevista” como instrumento para a transmissão e aprendizagem de novas informações.

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A introdução da noção de “variedade de textos” e de “gênero textual” no RCNEPE desvela,

assim, possíveis passarelas entre o ciclo fundamental e o ciclo da educação infantil. Tendo em

vista que estes ciclos são marcados por semelhanças, mas, sobretudo, diferenças profundas

quanto a seus objetivos, nasce, assim, a necessidade de novas pesquisas que possam levar a

uma melhor compreensão das especificidades de um trabalho com gêneros textuais orais no

ciclo da educação infantil. O estudo aqui apresentado constitui uma tentativa nesse sentido.

3. Contexto e itinerário de uma pesquisa

Durante o ano acadêmico de 2004-2005, tive a oportunidade de ser recebida por uma

professora de uma classe de educação infantil (EI1 e EI2)3 de uma escola pública da cidade de

Genebra (Suíça) para filmar uma seqüência didática completa sobre o gênero textual oral

“receita de cozinha”. Os dados obtidos, compostos dos vídeos das aulas e de todo o material

utilizado durante a seqüência, foram coletados como suporte para o curso “Ensino de oral em

classes de educação infantil”, que ministro no curso de graduação em Ciências da Educação –

menção Ensino na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de

Genebra para estudantes de último ano.

Um dos objetivos principais do curso é analisar a seqüência didática filmada para a

compreensão do dispositivo e de suas repercussões no ensino-aprendizagem de língua

materna no ciclo de educação infantil. Deste modo, o foco de análise volta-se tanto para as

ações do professor, quanto para as capacidades de linguagem dos alunos durante os diversos

momentos da seqüência: produção inicial, módulos de aprendizagem e produção final.

Entre outros aspectos, as diferentes análises realizadas em parceria com meus estudantes

revelaram progressos importantes nas capacidades de linguagem dos alunos observadas entre

a produção inicial e final. Esses resultados me entusiasmaram e levaram-me a abrir novas

perspectivas de análise, relacionadas com a questão da progressão das capacidades de

linguagem dos alunos durante o ciclo de educação infantil. Foi assim que retornei à escola no

ano seguinte e pedi à mesma professora que fizesse uma nova produção do gênero textual

"receita de cozinha" com seus alunos de EI2, que haviam freqüentado sua classe em EI1 no

ano anterior.

3 No cantão de Genebra, algumas classes são multi-seriadas. Este é o caso da classe filmada.

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Um estudo comparativo das capacidades de linguagem de cinco alunos que satisfaziam este

critério é proposto nesta contribuição. Para que os dados (produções dos alunos gravadas em

vídeo e material proposto pela professora) possam ser claramente apresentados e os resultados

mais bem discutidos, é feita, a seguir, uma breve descrição do gênero oral “receita de

cozinha”, da seqüência didática efetuada em 2004, assim como as condições de realização das

novas produções em 2005.

4. O gênero oral formal “receita de cozinha”: entre gênero de referência e gênero

escolarizado

Como já foi dito anteriormente, ao entrar na escola, um gênero textual social sofre alterações,

transformando-se em um gênero “escolarizado” a fim de que possa ser instaurado como

objeto de ensino-aprendizagem. Para melhor compreender o gênero oral “receita de cozinha”,

tal qual é didatizado na seqüência de atividades realizada pela professora com seus alunos em

sala de aula, uma breve definição do gênero social se faz, portanto, necessária.

A receita de cozinha como gênero de referência

O gênero oral formal “receita de cozinha” é, em geral, presente em situações de comunicação

em que um ouvinte (radio) ou um telespectador (televisão) deseja aprender a realizar novos

pratos. O texto é, assim, enunciado por um expert em culinária a um destinatário qualquer,

com ou sem conhecimentos culinários prévios, que deseje preparar o prato finalizado após as

diversas instruções dadas pelo enunciador ao longo do texto. Mais especificamente, a ação de

linguagem correspondente a este gênero consiste em descrever todas as ações necessárias ao

preparo numa dada ordem.

O gênero supõe, assim, uma capacidade da parte do enunciador e do destinatário a se

representar a situação, o tempo e o espaço na ausência de um referente. No caso de uma

emissão radiofônica, o enunciador deve ser suficientemente explícito nas instruções dadas

para que o destinatário possa compreender o encadeamento dos diversos passos a realizar. Por

sua vez, o destinatário deve ser capaz de visualizar as ações a fim de registrá-las por escrito

ou na memória. No caso da televisão, o suporte visual oferecido pelas imagens facilita a

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interação entre o enunciador e o destinatário, na medida em que as instruções orais são

acompanhadas de sua realização efetiva e, por vezes, de “chamadas” escritas que se

superpõem à imagem.

Do ponto de vista estrutural, o conteúdo de uma receita de cozinha deve ser claramente

organizado em partes, sobretudo na emissão radiofônica. Na fase de abertura, o título da

receita é, em geral, precedido por uma saudação aos ouvintes ou telespectadores e pela

apresentação do enunciador expert. Vem em seguida a lista de ingredientes e suas respectivas

quantidades, assim como os utensílios necessários à realização do prato. Por fim, são

apresentadas, de maneira ordenada, as diversas etapas de preparação. Uma saudação final em

que o enunciador se despede e deseja uma boa degustação ao destinatário vem fechar o texto.

No caso de uma emissão televisiva, os ingredientes e utensílios são, por vezes, mostrados aos

telespectadores a fim de facilitar a compreensão, sobretudo no caso de ingredientes ou

utensílios menos comuns. Além disso, ao contrário da emissão radiofônica, as etapas de

preparação são enunciadas ao mesmo tempo em que são executadas. Por sua vez, a saudação

final é, em geral, acompanhada de um close no prato terminado.

Quanto à textualização e às unidades lingüísticas mobilizadas no texto de uma receita de

cozinha oral, observa-se a utilização de um léxico específico à culinária (utensílios,

quantidades, verbos de ação), do modo imperativo e de marcadores enumerativos

(organizadores textuais) na enunciação das ações a realizar. O uso de anáforas pronominais ou

nominais é raro, já que o oral, dada sua natureza efêmera, requer informações precisas, não

havendo lugar para ambigüidades. Cabe ainda ressaltar a importância de aspectos para-

lingüísticos próprios aos gêneros orais formais, como uma articulação fonêmica clara, uma

intensidade de voz e uma prosódia adequadas. No caso de uma emissão televisiva, a postura

do enunciador é igualmente importante.

Embora sucinta, a descrição aqui feita do gênero “receita de cozinha”, deixa entrever toda a

complexidade do oral e, mais precisamente, de um gênero oral formal. A questão da

representação da situação de comunicação é, com certeza, um primeiro aspecto a ser

salientado, pois o enunciador deve ser capaz de produzir seu texto, na maior parte do tempo,

para pessoas fisicamente ausentes. Um segundo aspecto importante é o grau de formalização e

ritualização da situação: a relação entre enunciador e destinatário, assim como os papéis que

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cada um representa (no caso da receita, o de expert e de noviço) são altamente determinados

pela situação e implicam formas lingüísticas relativamente estereotipadas (Schneuwly, 2003).

Assim, os gêneros orais formais distinguem-se (e opõem-se) prontamente das situações

dialogais quotidianas (conversas, bate-papo), em que o discurso é gerido localmente pelos

interlocutores. Ao contrário, no caso dos gêneros orais formais, o enunciador deve antecipar

(“ficcionalizar”, diria Schneuwly) o contexto ou a situação de comunicação a fim de dominar

todos os componentes de linguagem que ela pressupõe (contexto de comunicação,

planificação do texto, textualização) e que foram brevemente ilustrados acima a partir do

exemplo da “receita de cozinha” oral.

Fica claro, portanto, que, ao entrar na escola, tal gênero deverá ser, em sua “escolarização”,

adaptado às capacidades de linguagem dos alunos (mais habituados às situações dialógicas) e

aos objetivos de ensino do ciclo, no presente caso, o da educação infantil. A seção seguinte

ilustra, de certa forma, estas transformações e oferece um panorama da seqüência didática

proposta pela professora de educação infantil a seus alunos.

5. Uma seqüência didática sobre o gênero oral “receita de cozinha”

Critérios de escolha de uma seqüência didática

Uma seqüência didática (SD) "A receita de cozinha" (oral), concebida para alunos de 1ª e 2ª

séries do ensino primário, é proposta no primeiro volume de "Exprimir-se em francês", uma

coleção de livros didáticos de 1ª a 9ª séries do ensino obrigatório (Dolz, Noverraz &

Schneuwly, 2000), utilizada nas escolas públicas genebrinas.

Dada a escassez de livros didáticos para o ensino de gêneros de textos orais na educação

infantil, a professora da classe filmada decidiu adaptar e simplificar a SD acima mencionada a

fim de trabalhar o gênero “receita de cozinha” com seus alunos. Segundo ela, a atividade de

preparação de pratos a partir de receitas é freqüente nas classes de educação infantil e bastante

apreciada pelos alunos. O objetivo de transmitir oralmente uma receita a uma outra classe,

recomendado pela SD, parecia-lhe assim, pertinente, motivador e adequado às capacidades de

linguagem de seus alunos.

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Apresentação da seqüência didática: adaptando o material para alunos do ciclo de educação

infantil

A SD "A receita de cozinha" proposta para alunos de 1ª e 2ª séries do ensino primário apóia-

se, como todas as outras SD da coleção de livros didáticos "Exprimir-se em francês", na

noção de gênero textual, tal qual é definida pela equipe genebrina de didática de línguas.

Os textos escritos ou orais que produzimos diferenciam-se uns dos outros e isso porque são produzidos em

condições diferentes. [...] Em situações semelhantes, escrevemos textos com características semelhantes, que

podemos chamar de gêneros de textos, conhecidos de e reconhecidos por todos, e que, por isso mesmo, facilitam

a comunicação. (Dolz, Noverraz & Schneuwly, 2004, p. 97)

Para os pesquisadores genebrinos, que se situam numa perspectiva bakhtiniana, as

características de um gênero textual são bastante estáveis e definem-se por três dimensões

essenciais: os conteúdos por este veiculados; a estrutura (plano) específica dos textos

pertencentes ao gênero; a textualização ou configurações específicas das unidades de

linguagem que permitem a construção do texto (léxico, coesão nominal e verbal, uso de

organizadores textuais, etc.).

Assim, cada SD da coleção citada procura operacionalizar, nas diferentes atividades

propostas, estas três dimensões do gênero textual a ser estudado (“gênero escolarizado”),

sendo constituídas: de uma etapa de apresentação do projeto e de preparação (sobretudo do

ponto de vista dos conteúdos) à produção do texto; da primeira produção; de módulos de

aprendizagem (que abordam as diferentes dimensões do gênero); de uma produção final. A

tabela 1, abaixo, representa, de forma esquematizada, a SD “A receita de cozinha” proposta

no livro didático e a SD adaptada pela professora para a classe de EI1 e EI2. Uma vez que

esta contribuição se focaliza, principalmente, na análise da progressão das capacidades de

linguagem dos alunos de um ano a outro, o conteúdo de cada atividade proposta na SD e/ou

realizada pela professora não é apresentado. Da mesma maneira, as escolhas e adaptações

realizadas pela professora não são tematizadas4.

Tabela 1 – Seqüências didáticas

4 Um estudo aprofundado das inter-relações entre estes aspectos e a progressão das capacidades dos alunos contribuiria, sem dúvida, a uma análise mais pormenorizada dos resultados obtidos. Dadas às limitações de espaço desta comunicação, tal análise poderá ser realizada em contribuições futuras.

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Seqüência Didática 1P – 2P EI1 – EI2

Introdução

Apresentação do projeto (contexto

comunicativo) e preparação dos

conteúdos

Apresentação do projeto (contexto

comunicativo) e preparação dos

conteúdos

Produção Inicial Apresentação oral de uma receita

para alunos de outra classe

Apresentação oral de uma receita

para alunos de outra classe

Módulo 1 Plano de organização de uma

receita apresentada oralmente

Plano de organização de uma

receita apresentada oralmente

Trabalho específico em EI1:

ingredientes e utensílios (módulo 2

da SD original)

Módulo 2 Ingredientes e utensílios

Expressões de abertura e

encerramento do texto (módulo 5

da SD original)

Módulo 3 Etapas do modo de preparo

Ingredientes e utensílios

Gravações intermediárias:

apresentação dos ingredientes e

utensílios

Módulo 4

Ingredientes, utensílios e modo de

preparo

Escuta e análise das gravações

intermediárias

Gravações intermediárias:

apresentação dos ingredientes e

utensílios; modo de preparo

Trabalho específico em EI1:

expressões de abertura (parte do

módulo 5 da SD original)

Módulo 5 Operações de enquadre (expressões

de abertura e encerramento)

Etapas do modo de preparo

(módulo 3 da SD original)

Produção final Gravações e avaliação Treino, gravações e avaliação

Em relação ao gênero social de referência e sua didatização, a tabela 1 revela que a professora

de EI1 e EI2 privilegiou em sua SD, as dimensões relacionadas aos conteúdos veiculados

(ingredientes, utensílios e verbos de ação), ao plano ou partes do texto (abertura; lista de

ingredientes e utensílios; etapas de preparo; encerramento) e menos, às configurações

lingüísticas específicas ao texto, atendo-se, quanto a estas últimas, às operações de enquadre

(expressões de abertura e encerramento do texto).

Projeto e situação de comunicação

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Na SD apresentada no livro didático, os autores propõem que durante a etapa de apresentação

do projeto, os alunos sejam informados de que farão um prato a partir de uma receita de

cozinha e que gravarão esta receita para outras classes da escola.

Na classe de EI1 e EI2, os alunos haviam realizado uma receita de Biscoitos de nozes

anteriormente e foram informados de que a transmitiriam para a classe vizinha para que esta

também pudesse realizá-la. A professora também explicou a seus alunos que antes da

produção definitiva, seria necessário gravar uma primeira produção e que se houvesse

dificuldades, estas seriam trabalhadas graças a diversas atividades que preparariam os alunos

para as produções finais. Estes últimos foram ainda avisados de minha presença na classe ao

longo de todo o tempo de trabalho e da utilização contínua da câmera para o registro das

atividades efetuadas.

Produção inicial, produção final e material utilizado

Na SD construída para alunos de 1ª e 2ª séries do primário, as produções de texto, inicial e

final, devem ser gravadas em áudio e realizadas em grupos de cinco a seis alunos com

capacidades de linguagem próximas sem que nenhum suporte particular lhes seja proposto. A

professora da classe filmada preferiu formar grupos de dois alunos com capacidades de

linguagem diferentes ou realizar produções individuais. De acordo com ela, seus alunos eram

muito jovens, o que dificultaria a gestão da palavra em grupos maiores.

É pela mesma razão que a professora resolveu fornecer aos alunos suportes visuais a fim de

facilitar a tarefa de produção. Em uma folha de tamanho A4, foram coladas, de forma

agrupada, as fotos dos ingredientes e utensílios necessários para o preparo do prato. As fotos

das etapas do modo de preparo foram dispostas numa outra folha A4. Este material (ver

Figura 1) foi apresentado aos alunos no início da SD e utilizado, pela primeira vez, como

auxílio à produção inicial. Em seguida, foi sistematicamente retomado durante os diferentes

módulos de aprendizagem para ser reutilizado, por fim, na produção final. Neste momento,

foram ainda fornecidos aos alunos, cartões ilustrando as diferentes partes (plano do texto) de

uma receita de cozinha (Figura 2).

Figura 1 – Suportes visuais utilizados durante as produções e os módulos de aprendizagem

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Figura 2 – Suporte visual ilustrando o plano de um texto

Refazendo produções um ano mais tarde...

Como já dito, cinco alunos que freqüentavam a classe de EI1 em 2004, tiveram a

oportunidade de refazer uma produção oral de uma “receita de cozinha” um ano mais tarde,

em classe de EI2 com a mesma professora. Primeiramente, a classe preparou a receita de um

prato frio: Fatias de pão com requeijão. Em seguida, a professora efetuou uma rememoração

rápida do projeto realizado no ano anterior a fim de estabelecer elos com o projeto atual:

“explicar a receita Fatias de pão com requeijão a outras crianças que desejem prepará-la”. Ela

procedeu ainda a uma rememoração com os alunos das principais etapas de preparação da

receita a partir de duas folhas A3, uma contendo as fotos dos ingredientes e utensílios e outra,

contendo as fotos das etapas de preparo do prato.

Figura 3 – Suportes visuais apresentados pela professora e utilizados durante a última produção

15

Logo após, a professora iniciou uma fase de brainstorming das características principais do

gênero. Com a participação ativa dos alunos que freqüentaram sua classe no ano anterior, ela

pôs, primeiramente, em evidência os elementos do primeiro suporte visual e enfatizou a

importância de apresentar a lista de ingredientes e utensílios antes do modo de preparo para

que a pessoa que prepara o prato possa organizar o material necessário. O mesmo trabalho foi

feito com o suporte visual que contém as etapas de preparo do prato. Em seguida, foram

lembradas as diferentes partes do texto (plano) a partir de cartões já utilizados no ano anterior

(ver figura 2).

Para terminar, a professora relembrou o projeto aos alunos: gravar a receita Fatias de pão com

requeijão para crianças que não a conhecem. Ela insistiu especialmente no fato de que o

destinatário não estaria presente no momento da gravação e que seria necessário enunciar um

texto completo para que este pudesse ser posteriormente compreendido.

A seção seguinte é destinada à análise comparativa destas últimas produções (2005) e das

produções finais de 2004.

6. O gênero oral “receita de cozinha” nas produções dos alunos

Para analisar as produções dos alunos, foram tomados como critérios os parâmetros e

dimensões que caracterizam todo gênero textual oral ou escrito e que foram previamente

delineados:

− a representação do contexto ou situação de comunicação (objetivo, traços relativos ao

enunciador e ao destinatário);

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− a estrutura ou plano do texto;

− a textualização (configurações de unidades lingüísticas; articulação fonêmica,

intensidade da voz e prosódia).

Estes critérios foram lidos à luz das características mais importantes do gênero “receita de

cozinha”, também apresentadas anteriormente, e organizados na tabela abaixo que será

comentada a seguir.

Tabela 2 – Análise das produções dos alunos

Alunos Mo1∗∗∗∗ Mo2 Ma1 Ma2 Ya1 Ya2 Er1* Er2* Hu1* Hu2*

Contexto ou situação de comunicação Objetivo + + + + + + +- - + - Enunciador + + + + + + + + + + Destinatário + + + + + + + + + +

Estrutura ou plano do texto

Abertura

Título da receita

+ - + - +- - +- NA + -

Apresentação do(s) aluno(s)

- + + + - - - NA - -

Interpelação dos ouvintes

+ + + + + + + NA + -

Ingredientes - - + + +- - NA NA NA +- Utensílios NA - + + +- - NA NA NA +- Modo de preparo NA + + +- + +- +- +-- + NA Encerramento NA + +- + +- +- +- - NA NA

Textualização Conexão NA + +- +- +- +- +-- + - NA Coesão verbal + + + +- + + + + + + Coesão nominal + NA +- + NA + NA NA + NA

Léxico

Utensílios + + +- +- + + + + + + Ingredientes + +- +- +- + +- +- + + + Verbos de ação

NA + + + +- + +- +-- +- +

Inteligibilidade da fala

Articulação + + +- + + + + + + + Voz + + + + + + + + - - Prosódia + + + + + + +- + + +

Como interpretar os resultados revelados pela tabela 2? Primeiramente, é preciso explicar

como foi construída e o tipo de notação utilizada para apreciar as produções dos alunos. Para

∗ O asterisco indica que a produção foi realizada em díade com outro aluno. De fato, na primeira e segunda produção, os alunos puderam escolher entre uma produção individual ou em díade, como, por exemplo, Mo1, Er e Hu, estes últimos tendo efetuado suas produções 1 e 2 com colegas diferentes. Nestes casos, as diferentes partes do texto são divididas entre os dois enunciadores, certos aspectos, assinalados como NA (não se aplica), não podendo, portanto, ser analisados. Visto que o estudo aqui apresentado foi realizado a partir de situações escolares autênticas, não foi possível controlar esta variável.

17

cada um deles, os números 1 e 2 indicam, respectivamente, a produção final pós-SD e a

produção realizada um ano mais tarde. Quanto à notação, os sinais +, +-, +-- e - indicam uma

apreciação qualitativa global (em ordem decrescente) de cada aspecto analisado. Fica,

portanto, claro que o objetivo maior da tabela é de fornecer um panorama aproximativo das

capacidades de linguagem dos alunos em dois momentos diferentes da escolaridade. Uma

análise comentada de cada produção forneceria, sem dúvida, informações mais precisas sobre

as capacidades dos alunos, mas ultrapassaria, infelizmente, os limites de espaço desta

contribuição. É por esta razão que, a seguir, serão apresentados apenas os comentários mais

importantes sobre os diferentes aspectos analisados.

A representação do contexto ou situação de comunicação

Uma olhada rápida na tabela 2 mostra que, provavelmente, a grande maioria dos alunos

consegue se representar o contexto de comunicação de uma “receita de cozinha” oral. Em

todas as produções, sem exceção, os alunos foram capazes de assumir a postura de expert

(guardadas as devidas proporções quanto às capacidades de alunos de 4 a 6 anos de idade)

com relação ao prato apresentado e antecipar as necessidades de um destinatário ausente. O

objetivo principal de descrição das ações a serem efetuadas para a preparação do prato

também parece ser alcançado em ambas produções, com exceção de dois alunos, Er e Hu, na

última produção.

Uma análise mais pormenorizada dos textos produzidos mostra, no entanto, que o objetivo de

comunicar uma receita a um outro ausente é atingido, sobretudo, em função da explicação das

etapas do modo de preparo e graças ao suporte visual de que dispõem os alunos para

acompanhar seu texto, a compreensão das informações dadas dependendo, na maior parte das

vezes, de tal suporte. Este aspecto é aprofundado abaixo na análise da estrutura dos textos dos

alunos.

Estrutura do texto

Antes de iniciar a análise específica da apresentação das etapas de preparo da receita,

examinemos mais atentamente como as diferentes partes do plano que as antecedem são

18

tratadas no texto a fim de obter uma idéia mais precisa de suas capacidades de linguagem dos

alunos quanto a esta dimensão.

Na fase de abertura, os alunos parecem não ter dificuldades com a interpelação dos ouvintes,

tanto na produção final da SD como na última produção. As formulações utilizadas são

adaptadas à idade dos alunos (“Bom dia”; “Bom dia, hoje vamos fazer a receita ...”; “Bom

dia, eu vou lhes apresentar a receita...”) e não se modificam de uma produção à outra. A

presença de um título já aparece como mais problemática, principalmente na última produção,

onde vários alunos o omitem. A notar, que já na produção anterior, a ajuda da professora se

fez necessária no caso de dois alunos (Ya1 e Er1). Quanto à necessidade de se apresentar

antes de enunciar a receita propriamente dita, os resultados revelam que os alunos não

atribuíram muita importância a esse aspecto em nenhuma das produções, pois somente Ma

respeita-o sistematicamente.

A análise da capacidade a apresentar a lista de ingredientes e utensílios necessários à receita é

mais delicada. Em virtude dos textos produzidos em díade, não há dados suficientes para uma

discussão inequívoca sobre este parâmetro. A hipótese de que a maioria dos alunos não o

domine inteiramente em ambas produções, apesar da presença do suporte visual que tinham a

sua disposição, é, entretanto, plausível, na medida em que nem sempre a apresentam ou

necessitam o auxílio da professora (que indica o suporte) para fazê-lo (apenas Ma é capaz de

enunciar a lista de ingredientes e utensílios espontaneamente).

Como já dito antes, as etapas do modo de preparo, que sucedem à apresentação da lista de

ingredientes e utensílios, são relativamente bem apresentadas pelos alunos, nas duas

produções, desde que o destinatário possa dispor do suporte visual que as ilustra. A decisão da

professora de fornecer esta ferramenta (Vygotsky, 1934/1987) aos alunos a fim de facilitar a

tarefa de produção já foi comentada anteriormente: sem uma ajuda externa, alunos entre 4 e 6

anos de idade não seriam capazes, muito provavelmente, de enunciar um texto pertencente a

um gênero textual oral formal. É a partir deste pressuposto que esta parte do texto foi aqui

analisada. A propósito, a tabela 2 mostra uma ligeira superioridade no domínio desta fase

importante da estrutura de uma “receita de cozinha” nas produções que sucederam

imediatamente a SD. Por um lado, os enunciados são, por vezes, mais completos do ponto de

vista das informações dadas. Por exemplo, Ya1 enuncia o seguinte para a quarta etapa do

19

preparo dos biscoitos de nozes: “a gente coloca as nozes moídas na tigela”. Já na receita das

fatias de pão com requeijão, seus enunciados são mais lacunares: “é preciso pegar um tomate

e colocá-lo [aonde?] para fazer o nariz”. Por outro lado, os alunos apresentam,

sistematicamente, todas as etapas do modo de preparo na produção final da SD, o que nem

sempre é o caso nas últimas produções5.

Quanto à fase de encerramento do texto, os dados permitem entrever que, na última produção,

a maior parte dos alunos procura terminar a enunciação da receita por uma saudação. A

comparação entre as duas produções é, entretanto, novamente dificultada pela existência de

textos produzidos em díade. Uma certa estabilidade entre as duas produções quanto a esta fase

pode ser, porém, observada, com exceção de Er2, que a omite.

Textualização

A última dimensão analisada nos textos orais dos alunos é a textualização. Como afirmado

anteriormente, esta dimensão é determinada pelo uso dos meios lingüísticos e para-

lingüísticos que permitem a concretização de um texto, e que caracterizam o gênero ao qual

pertence.

De uma maneira geral, a tabela 2 revela que os alunos não encontraram dificuldades quanto à

inteligibilidade da fala, apresentando uma articulação clara, uma intensidade de voz e uma

prosódia adaptadas ao gênero, com exceção de Hu, cujos textos não são suficientemente

audíveis para o destinatário.

Não há também dificuldades importantes relacionadas ao léxico utilizado. Os utensílios são

corretamente nomeados nas duas produções, Ma sendo a única aluna que pede ajuda à

professora para nomear o utensílio “forma” nos dois casos. Apenas algumas omissões,

confusões ou imprecisões são notadas na apresentação dos ingredientes: “açúcar”/farinha;

“um pouco de queijo”; “pedaços de nozes”/nozes moídas. Os verbos de ação são, na maioria,

apropriados e variados (“misturar”; “despejar”; “passar”; “cortar no comprimento”) em ambas

produções, mas alguns alunos (Er, Hu1) tendem a empregar, de forma excessiva, o verbo

“colocar”.

5 A ressaltar, porém, que a professora esqueceu-se de fotografar uma das etapas durante a preparação do prato!

20

Assim como o léxico, a coesão nominal e verbal do texto não se constitui como uma

dificuldade importante para os cinco alunos filmados. Majoritariamente, as primeiras

produções foram enunciadas na 3ª pessoa do presente do indicativo (“a gente mistura”) e as

últimas produções no modo infinitivo precedido da forma impessoal “é preciso”. O modo

imperativo na 2ª pessoa do plural (vous) foi raramente empregado (Ma2), assim como o modo

infinitivo (Hu1). Em todos os casos, os alunos foram capazes de manter o modo escolhido ao

longo de toda a produção, assegurando sua coesão. A escolha prioritária dos dois primeiros

modos, pouco usual nas receitas de cozinha orais em português, pode ser explicada pelas

características da língua francesa. O pronome pessoal on (a gente) e a forma impessoal il faut

(é preciso) são freqüentes na modalidade oral. No entanto, a utilização do presente do

indicativo pode ser tolerada em produções infantis, mas não é característica do gênero social

de referência, o modo imperativo ou infinitivo sendo mais canônicos, e principalmente o

primeiro. O fato de os alunos utilizarem adequadamente a forma impessoal il faut associada

ao infinitivo na última produção pode, assim, constituir um indicador de progressão em

relação à produção anterior. Este salto qualitativo não é, entretanto, facilmente explicável,

podendo ser atribuído a fatores diversos (efeitos do brainstorming quanto às características do

gênero antes da última produção; conseqüência de outras aprendizagens realizadas durante o

ano escolar; desenvolvimento da linguagem), devendo, assim, ser interpretado com certa

prudência.

Para terminar, uma palavra sobre o emprego de organizadores textuais que asseguram a

conexão entre as diferentes etapas do modo de preparo de uma “receita de cozinha” oral.

Estas são, sem dúvida, as unidades lingüísticas menos investidas pelos alunos em suas

produções. Nas produções finais da SD, o organizador temporal “depois” (après; puis) é o

mais comum. Nas últimas produções, ele pode alternar-se com os organizadores enumerativos

“em primeiro lugar” (d’abord) e “em seguida” (ensuite), continuando, porém, a ser o mais

freqüente.

Face aos resultados acima descritos, que conclusões podem ser tiradas no que diz respeito às

capacidades dos alunos e à apropriação das características do gênero estudado? Foram elas

mantidas entre uma e outra produção? Foram elas consolidadas?

21

7. Fazendo e refazendo produções orais de uma “receita de cozinha”. Que traços de

apropriação?

De maneira geral, foi observado que as capacidades dos alunos se mantiveram entre uma

produção e outra, principalmente no que tange à situação de comunicação de uma “receita de

cozinha” oral, que é claramente compreendida pelos alunos. Nesse sentido, é possível dizer

que houve apropriação, pois os parâmetros do contexto comunicativo são “ficcionalizados”

nas duas situações de produção sem maiores dificuldades.

Quanto ao plano ou estrutura do texto, o nível de apropriação é mais discutível, visto que

certos indicadores não permitem uma análise precisa das produções. Uma verdadeira

progressão de uma produção à outra não é tampouco perceptível. Globalmente, os alunos

mostram ter consciência das diferentes partes de uma receita, pois três delas, a fase de

abertura, as etapas do modo de preparo e a fase de encerramento, estão globalmente presentes

tanto na produção final da SD quanto na última produção, sem modificações importantes.

Tal comentário não se aplica, contudo, às fases de apresentação dos ingredientes e utensílios

necessários ao preparo do prato, ainda pouco dominadas nas duas produções dos alunos. A

exigência de um nível superior de ficcionalização das necessidades do destinatário poderia

explicar as dificuldades dos alunos quanto à gestão destas partes do texto. De fato, para

compreender sua função, o aluno deve compreender e antecipar a situação em que se

encontrará o destinatário quando, em sua cozinha, organizará o material necessário à

preparação do prato. Como bem disse uma aluna, no momento em que a professora

relembrava as características do gênero antes da última produção, “é preciso saber o que

utilizar antes de fazer o prato”... Desvela-se aqui todo o paradoxo, incontornável, das

situações de ensino-aprendizagem: saber falar sobre um objeto (lingüístico) de aprendizagem

ou suas dimensões não implica sua imediata operacionalização. O processo de apropriação de

um objeto lingüístico passa, antes de mais nada, por um controle interior da atividade de

linguagem, ainda em construção no caso dos alunos observados.

Por outro lado, a análise do uso das unidades lingüísticas próprias ao gênero oral “receita de

cozinha” (textualização) revelou um certo equilíbrio entre as duas produções realizadas. Em

ambas produções, os alunos utilizaram elementos lexicais apropriados e souberam gerir seus

22

textos do ponto de vista da coesão nominal e verbal. Quanto a esta última, vale à pena

relembrar o uso de formas verbais mais próximas do gênero social de referência, como é o

caso do modo infinitivo precedido da forma impessoal “é preciso”, na última produção. Da

mesma maneira, uma maior variedade de organizadores textuais, assegurando as relações de

ordem e solidariedade entre as diferentes etapas do modo de preparo da receita, também

constitui um indicador de progressão nas capacidades de linguagem dos alunos.

Em resumo, o conjunto dos resultados apresentados mostra que os alunos filmados são

capazes de adaptar suas produções textuais às características do contexto comunicativo, em

momentos distintos da escolaridade. Assim, no estudo realizado, pode ser detectado um

impacto positivo e duradouro da seqüência didática sobre as capacidades de linguagem dos

alunos.

Tais resultados demonstram, por um lado, a pertinência do procedimento da seqüência

didática como instrumento didático para educadores e professores do ciclo da educação

infantil. Por outro lado, podem contribuir para novas reflexões a respeito da progressão

curricular (Dolz & Schneuwly, 2004), compreendida nas suas inter-relações com a

reorganização contínua das capacidades de linguagem dos alunos e a seleção das

características ensináveis de um dado gênero textual em diferentes momentos da escolaridade.

E nesse âmbito, qual o lugar dos gêneros textuais formais no ensino da linguagem oral na

educação infantil?

8. Para concluir sobre o ensino de gêneros orais formais na educação infantil

Como dito anteriormente, o ensino da linguagem oral no ciclo da educação infantil esteve,

tradicionalmente, atrelado a situações dialógicas de expressão livre, mais ou menos

espontâneas, e em continuidade com o meio familial. Os resultados aqui apresentados indicam

que os gêneros textuais orais formais podem também constituir um objeto de ensino-

aprendizagem pertinente em classes de educação infantil.

O primeiro argumento favorável a este achado provém da própria análise das produções dos

alunos. Após a seqüência didática, estes foram capazes de respeitar os contornos do contexto

23

comunicativo em que se insere o gênero “receita de cozinha”, colocando-se na postura de um

expert que se dirige a um destinatário que deseja aprender a realizar um novo prato. Este

argumento se fortalece pela análise das produções realizadas um ano mais tarde, na ausência

de um novo ensino sistemático das características do gênero, que reitera, globalmente, os

efeitos perenes da seqüência didática sobre as capacidades de linguagem dos alunos.

O segundo argumento refere-se ao lugar assumido pelo gênero oral formal na classe e na

prática da professora, que põe em evidência os interstícios e possíveis passarelas entre a

educação infantil e o ensino fundamental. Na experiência realizada, o gênero oral formal

“receita de cozinha” tomou vida na sala de aula a partir de uma re-didatização do “gênero

escolarizado”, modelizado originalmente para ser ensinado em classes de 1ª e 2ª séries do

ensino fundamental. Esta re-didatização implicou, por parte da professora, uma seleção das

dimensões genéricas a serem ensinadas e uma adaptação das atividades da SD em função das

capacidades de linguagem de seus alunos e dos objetivos a alcançar numa classe de educação

infantil. Esta dupla antecipação didática foi fundamental para o êxito do processo de ensino-

aprendizagem.

Cabe assim encerrar esta contribuição, afirmando, então, que os gêneros textuais orais formais

têm um lugar privilegiado e específico nas classes de educação infantil, já que seu ensino

contribui, certamente, para uma apropriação inicial de formas discursivas monológicas.

Formas estas que pressupõem um controle interior importante da atividade de linguagem,

essencial para a entrada no mundo da linguagem escrita, cuja aprendizagem é o objetivo

central do ensino fundamental.

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