theodor viehweg e a ciência do direito

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Filosofia do Direito Professora Dra. Claudia Rosane Roesler Vigência: 2013/1 Unidade I – Entre a Ciência e a Arte 1. Introdução 2. Giambattista Vico e Thomas Hobbes: como conceber a ciência da vida prática 3. O modelo moderno de ciência e os seus desafios

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Filosofia do Direito Professora Dra. Claudia Rosane Roesler

Vigência: 2013/1 Unidade I – Entre a Ciência e a Arte 1. Introdução 2. Giambattista Vico e Thomas Hobbes: como

conceber a ciência da vida prática 3. O modelo moderno de ciência e os seus

desafios

CLAUDIA ROSANE ROESLER

Theodor Viehweg e a Ciência do Direito: Tópica, Discurso, Racionalidade.

Segunda Edição. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.

PROIBIDA A REPRODUÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DA AUTORA E DO EDITOR.

INTRODUÇÃO

1. Objetivos da Investigação

A investigação aqui empreendida foi originalmente concebida e

escrita como tese de doutoramento a ser apresentada à Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo. Como se verá, a análise realizada lança luzes sobre as

diversas partes dos escritos de Viehweg, cujo pensamento está na base, de modo

indireto ou direto, da teoria jurídica contemporânea, pretendendo, assim, contribuir

para a divulgação e o aprofundamento dos estudos relativos à sua obra, bem como

esclarecendo retrospectivamente a mudança ocorrida na teoria jurídica em meados do

século XX.

O objeto de análise propriamente dito é o conhecimento jurídico e o

debate acerca de sua cientificidade. Circunscreve-se, no entanto, para abordar um

tema de tal complexidade e amplitude, ao quadro teórico elaborado por Theodor

Viehweg. A obra do referido autor serve de ponto de partida e de fio condutor à

investigação, determinando as questões levantadas e o âmbito de respostas buscadas.

O problema que move esta investigação pode ser sinteticamente

resumido nos seguintes termos: como pensar a constituição de um saber capaz de

abranger todos os aspectos do fenômeno jurídico, tanto na sua dimensão prática

quanto na sua dimensão teórica? Em que medida esse saber pode ser considerado

científico? O que significa qualificar um saber como científico?

A hipótese central que levantamos, e de cujo teor nasce a opção pela

obra de Theodor Viehweg como núcleo central, é a de que o apelo à cientificidade

pode ser compreendido como uma questão de legitimação do conhecimento

moderno, baseado num determinado modelo de ciência – o modelo cartesiano – que

separa estritamente o que é retórico do que é racional.

Mesmo que se questione a correção dessa separação estrita e liberte-se

o saber jurídico da necessidade de buscar a legitimação nesse caminho estreito, deve-

se, ainda, responder a pergunta pela sua racionalidade e pela sua estrutura e funções

específicas.

Compreendemos, a partir dos pressupostos de Viehweg, que essa

resposta pode ser formulada, ao menos tentativamente, tendo como base a distinção

entre dogmática e zetética, e entendendo o âmbito do conhecimento jurídico como

um cruzamento entre ambas as formas. Isso significa, mais especificamente, que

podemos trabalhar com três níveis: dogmática jurídica, teoria de base, filosofia do

direito e suas inter-relações, para explicitar como um saber completo sobre o Direito

pode ser concebido.

A pergunta pelo estatuto epistemológico da ciência do Direito foi uma

questão candente da discussão jusfilosófica no período que abrange o século XIX e a

primeira metade do século XX, e Viehweg não deixou de pautar sua reflexão por

esse debate. O que gostaríamos de verificar é de que modo sua construção teórica

enfrentou esse problema, e em que medida, ao enfrentá-lo, abriu um novo campo de

estudos, particularmente relacionado com a estrutura do discurso jurídico. Dentro

desse novo campo, por sua vez, cabe verificar qual foi a resposta construída e como

ela afeta a discussão sobre a relação entre retórica e ciência.

Um dos pilares da concepção moderna sobre a ciência, conforme

procuraremos mostrar, é a separação estrita entre a retórica e a ciência, entre o

racional, porque fundamentável por meios lógicos, e o puramente ornamental e

arbitrário da persuasão. No entanto, se olharmos a filosofia contemporânea da

ciência, veremos que as fronteiras tão demarcadas entre retórica e pensamento

científico, racional e objetivo, não são mais tão nítidas.

Parece-nos, nesse sentido, importante e interessante partirmos da obra

de Viehweg para realizarmos nossa análise do saber jurídico porque esse autor, ao

investigá-lo, sustentou a tese de que sua estrutura afeiçoava-se mais à tópica – peça

modular da retórica – do que à sistematização dedutiva que estava na base do modelo

moderno de ciência. Na esteira desses questionamentos, podem-se encontrar

suspeitas sobre o próprio modelo de ciência e sua relação com a retórica que

antecipam, ainda que não expressamente, as discussões atuais da filosofia da ciência.

Mas, se as fronteiras entre retórica e ciência se apagam, nem por isso

o problema de como compreender o saber e seu papel social, e, no nosso caso, o

saber jurídico e sua especificidade está resolvido. Novamente, parece-nos proveitoso

partir da investigação de Theodor Viehweg, porque esse autor, ao investigar o saber

jurídico, propõe a distinção entre pensamento dogmático e pensamento zetético para

explicá-lo, e a base de sua explicação é uma concepção retórica do conhecimento,

entendendo todo domínio de saber como um conjunto de perguntas e respostas.

Um saber jurídico completo seria, então, compreendido retoricamente

como um âmbito de perguntas e respostas, e, segundo a ênfase dada a uma ou outra

parte dessa alternativa, dogmática ou zeteticamente organizado.

O objetivo central, portanto, é o de avaliar a possibilidade de se definir

o saber jurídico por intermédio da distinção entre dogmática e zetética, como

Theodor Viehweg propõe, e refletir sobre a caracterização de um modelo retórico

que explique a produção do conhecimento científico. Um modelo desse tipo não é

elaborado por Viehweg – embora ele tenha indicado aproximadamente os seus

contornos – e poderia evitar que se caia nos impasses colocados pela divisão estrita

entre o racional e o retórico, entre o científico e o meramente argumentativo.

2. A Obra de Theodor Viehweg e suas Características

Theodor Viehweg nasceu em Leipzig, em 1907, cidade na qual cursou

Direito e na qual privou da companhia e das lições de Carl Emge, seu mestre na

Universidade de Leipzig. Além dessa relação marcante, reporta-nos a sua biografia,

extraída dos relatos dos que o conheceram e com ele conviveram, frequentou os

seminários de filosofia de Nikolai Hartmann, em Berlim, durante a guerra. Foi juiz

de profissão e, tendo ficado desempregado no pós-guerra, estabeleceu-se nos

arredores de Munique, em uma pequena aldeia, na qual preparou Topik und

Jurisprudenz, que viria a ser apresentada como tese de livre-docência na

Universidade de Munique, após a sua reabertura. A sua carreira acadêmica

transcorreu na Universidade de Mainz, cidade na qual faleceu em 1988, como

professor emérito.

Viehweg escreveu, em termos quantitativos, pouco. Sua obra central,

Topik und Jurisprudenz, é um livro relativamente pequeno. Sua densidade, como não

cansam de ressaltar seus apresentadores e mesmo seus críticos, é, contudo, notável.

Os efeitos e a repercussão de sua publicação levam a considerá-la como um marco na

filosofia do direito na segunda metade do século XX.

A obra foi elaborada ao longo de um período de pesquisas realizadas

após o término da Segunda Guerra Mundial, e sua primeira edição data de 1953,

tendo sido sucessivamente reeditada em 1963, 1965, 1969 e 1974. Foi traduzida e

publicada em italiano em 1962, em espanhol em 1964, em português em 1979, em

japonês em 1980, em servo-croata em 1987 e em inglês em 19931.

Após a publicação dessa obra, o autor voltou-se para temas

específicos e lhes dedicou ensaios, a maioria dos quais publicados em revistas

especializadas ou em volumes coletivos, além de incorporar mais um parágrafo na

última edição de Topik und Jurisprudenz, em 1974. Os ensaios mereceram, após a

sua morte, uma edição espanhola e outra alemã, nas quais foram recompilados,

facilitando sobremaneira o trabalho daqueles que desejam conhecer melhor o

conjunto de sua obra.

A edição espanhola foi organizada por Ernesto Garzón-Valdez,

intitulada Tópica y filosofia del derecho e publicada em 1991. Os ensaios foram nela

organizados em uma ordem que poderíamos considerar cronológica, embora não o

seja em termos estritos.

A edição alemã foi organizada por Heino Garrn e recebeu o título

Rechtsphilosophie und rhetorische Rechtstheorie: gesammelte kleine Scriften, tendo

sido publicada em 1995. Nessa edição, que abrange, inclusive, ensaios sobre a

reforma dos estudos jurídicos na Alemanha e um trabalho anterior a Topik und

Jurisprudenz sobre Leibniz, a ordem dada é pela problemática tratada, ou, se

desejarmos, pela aproximação temática. Encontramos, assim, três blocos de artigos.

O primeiro gira em torno de temas como o da pesquisa ou investigação jurídica

(rechtsforschung), da dogmática jurídica (rechtsdogmatik) e dos estudos jurídicos

(rechtsstudium), e nele encontramos ensaios fundamentais para a compreensão da

1 A tradução para o inglês, realizada por W. Cole Durham Jr, como aponta o tradutor, foi pormenorizadamente discutida por Viehweg e por sua esposa, Eva-Maria, antes da morte do autor, em 1988. Apresenta também um interessante estudo do tradutor que coloca em diálogo a obra de Viehweg com a de correntes anglo-saxãs de teoria do direito, como o pragmatismo. DURHAM JR, W. Cole. Translator’s Foreword. In: VIEHWEG, Theodor. Topics and Law. Frankfurt am Main; Berlin; Bern; New York; Paris; Wien: Peter Lang, 1993, p. xi-xxxv.

proposta do autor, como Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung,

Ideologie und Rechtsdogmatik e Über den Zusammenhang zwischen

Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik. O segundo bloco abrange

trabalhos sobre o desenvolvimento do pensamento jurídico; e o terceiro volta-se

especificamente para temas que dizem respeito a uma teoria retórica do direito.

Se em Topik und Jurisprudenz o vértice central da discussão centrava-

se na ideia de que a Jurisprudência possui uma estrutura tópica, derivada de um

pensamento problemático, e percorria-se, ainda que em linhas gerais, a sua formação

desde os romanos, nos ensaios vemos essa temática ser ampliada para

questionamentos que avançam e reformulam, mas que também colocam problemas

teóricos novos, como, por exemplo, os da ideologia e sua relação com a dogmática

jurídica, bem como aqueles acerca da distinção zetética/dogmática, e que são, ambos,

centrais para a presente investigação.

Diante desse quadro que podemos chamar de fragmentário, no qual

muitos temas são tratados de modo explicitamente não exaustivo ou sistemático,

como o próprio autor não cansa de afirmar em seus ensaios, ao colocar seus

propósitos e definir o problema que neles abordará, a questão que surge pode ser

resumida nos seguintes termos: tal estilo argumentativo ou de trabalho é um defeito

da obra de Viehweg ou é uma escolha teórica? A ausência de um sistema no qual se

encaixem suas construções teóricas é fruto de uma recusa ou de uma impossibilidade

por inconsistência? Muitas das críticas formuladas ao proposto pelo autor

fundamentam-se nessa afirmação, conforme veremos oportunamente.

Parece-nos que a resposta mais adequada é a de que se trata de uma

postura teórica definida, em razão da qual o autor não pretendeu – e não se colocou

como tarefa – apresentar um sistema que respondesse de modo cabal aos problemas

por ele levantados. Ademais, a própria ênfase dada ao pensamento problemático

tende a reforçar essa perspectiva, já que implica respostas sempre vinculadas a um

problema colocado, e que não autoriza generalizações, principalmente se tivermos

em mente a realização de um trabalho científico ou filosófico enquanto investigação

zetética, cujos resultados serão ainda mais provisórios e passíveis de questionamento.

Mais do que se pautar pela sistematização, é provável que Viehweg

tenha entendido necessário levantar questões que lhe pareciam requerer um

tratamento, questões que podem ser consideradas, na sua própria definição,

problemas. Isso não significa, no entanto, que não tenha havido, como a sua própria

definição de problema supõe, a inserção em um conjunto de asserções e a

pressuposição de alguns nexos que viabilizassem a colocação de determinados

aspectos como problemas que exigem uma resposta.

Em estreita ligação com essa característica que ressaltamos, e que, a

nosso ver, é uma proposta metodologicamente fundada, e não uma deficiência,

encontramos também um outro aspecto que aparece salientemente na obra de

Viehweg e que é o livre uso, por assim dizer, daqueles aspectos ou ideias centrais de

outros autores que pudessem ser esclarecedores ou iluminadores de problemas que o

preocupavam, sem que isso o levasse a assumir o conjunto dos pressupostos ou, para

usar a sua própria distinção entre problema e sistema, sem se situar no interior de

qualquer sistema. Isso ocorre ao menos com Vico e com Hartmann, de maneira

explícita, e com outros autores de modo menos importante e menos saliente. A crítica

que Topik und Jurisprudenz recebeu nos anos seguintes à sua publicação explorou

constantemente esse aspecto.

Quanto a Vico, Viehweg usa-o para propor o problema central de

Topik und Jurisprudenz e, explicitamente, diz que a dissertação desse filósofo que

lhe interessa será usada como ponto de partida temático, sem que se siga um

tratamento exaustivo do próprio texto de Vico ou de seus desdobramentos teóricos.

A própria distinção problema/sistema será buscada em Nicolai

Hartmann, sem que transpareça em lugar algum a intenção de levar em consideração

o conjunto do sistema filosófico deste. Antes, pelo contrário, a proposta teórica que

Viehweg encaminha ao longo de sua obra é radicalmente diversa daquela de

Hartmann, em especial porque o primeiro não se propõe a formular nada que se

aproxime de uma ontologia.

Esses pensamentos e autores são mais apropriadamente descritos, em

nosso entender, como insights importantes e interessantes para Viehweg, que vai

construindo o seu conjunto de problemas e respostas, ainda que fragmentariamente e

propositadamente sem um acabamento sistemático, utilizando-se deles e do que eles

lhe sugerem.

O estilo de escrita de Viehweg, que provocou comentários de seus

recenseadores quando do lançamento de Topik und Jurisprudenz, aliás, reforça e

contribui para essa caracterização. Conciso, despretensioso e franco, como Garrn o

qualifica ao apresentar os ensaios posteriores a Topik und Jurisprudenz, ou como

observa Giuliano Crifò ao apresentar ao leitor italiano sua tradução dessa mesma

obra, o autor não faz acabadas e sistemáticas exposições.

As características, portanto, da obra de Theodor Viehweg a

diferenciam desde o início daquelas de outros autores cuja preocupação tenha sido

ordenar sistematicamente suas conclusões. Ao invés de um tratamento linear e

explicativo dos temas, inclusive pelo fato de muitos deles terem sido tratados apenas

como ensaios, encontramos um conjunto de referências e um desenvolvimento

parcial, cuja tarefa é muito mais a de apresentar um problema do que a de fornecer

uma resposta exaustiva. É claro que o autor propõe noções que constituem

exatamente a especificidade de sua proposta e explicam por que sua obra suscitou

tamanha reação quando foi lançada ou por que continua sendo referência até hoje –

Topik und Jurisprudenz é, nesse sentido, um clássico do pensamento jurídico do

século XX –, mas mesmo suas propostas não são respostas acabadas e peremptórias.

3. Perspectiva Metodológica e Limites desta Investigação

Pelas razões que expusemos, não pretendemos, em nosso tratamento

das ideias do autor, construir um sistema onde nunca se pretendeu que um sistema

existisse, pois isso seria contrário à sua atitude teórica. O desafio é o de encontrar

nexos de ligação entre as perguntas e respostas oferecidas por Viehweg, que talvez

possamos considerar como seus topoi, sem pretender que eles venham a ser

utilizados como axiomas que pertencem a um sistema de estrutura dedutiva.

Ao assumirmos como fio condutor desta investigação as ideias

centrais de Viehweg sobre a ciência do Direito, entendemos ser apropriado conservá-

las em seu contexto metodológico e procuramos evitar dar-lhes um tratamento

sistemático. Evidentemente, discuti-las implica ligações, explicações e

sistematizações, ainda que parciais. Entendemos que o aspecto de sistematização não

deva, no entanto, sobrepujar o caráter aproximativo que o próprio autor procurou dar

às suas ideias.

Do mesmo modo, buscando a maior fidelidade ao estilo e ao conteúdo

da proposta teórica de Viehweg que fomos capazes de alcançar, procuramos utilizar

aqueles pensamentos e ideias que pudessem nos ajudar a compor um quadro de

referências o mais esclarecedor possível, dentro dos limites de um trabalho como

este, sobre os problemas que abordaremos. Dito de outra forma, a intenção foi pensar

por problemas, e não privilegiar os sistemas dentro dos quais cada problema poderia

ser colocado, a fim de não perder a riqueza do próprio problema.

Assim, o plano desta análise e a abordagem que nela será

desenvolvida supõem o uso de autores e seus temas como insights importantes para

formular respostas que são tentativas, não afirmações peremptórias, para problemas

cruciais, formulados e compreendidos tendo como pano de fundo e guia as categorias

que Viehweg nos ofereceu. Nesse sentido, a própria obra de Viehweg é uma espécie

de insight, preponderante e privilegiado, na medida em que constitui o cerne do

problema, para a construção de nossa resposta.

Entendemos que proceder dessa forma significa realizar uma

investigação dentro dos pressupostos que o autor que escolhemos como centro para

nossa reflexão procurou estabelecer e justificar, e serve, ademais, para realçar os

contornos de sua proposta teórica.

Os escritos de Theodor Viehweg serão analisados sem nos fixarmos,

em primeiro plano, numa perspectiva cronológica. Privilegiaremos, assim, as

conexões temáticas entre os diferentes momentos de sua produção teórica e

recorreremos a considerações de ordem cronológica apenas quando isso se mostrar

indispensável à compreensão de seu pensamento.

Deve-se esclarecer, ademais, que não pretendemos efetuar uma crítica

ao pensamento do autor, mas, sim, apresentá-lo e analisá-lo. Isso quer dizer que

aceitamos, ao menos como princípio do trabalho investigativo, suas premissas e

tentaremos desenvolvê-las, apanhando, nesse processo, suas implicações, suas

nuanças e até mesmo suas deficiências, embora não sejam elas o objeto central desta

análise. Mais do que a crítica, o que nos parece importante é compreender as bases

do pensamento do autor e seu desenvolvimento, não em sentido cronológico ou

genético, mas lógico, pela ordem das razões que a própria teoria, pelo modo com que

foi elaborada, supõe, explícita ou implicitamente.

Para realizar a análise, utilizaremos as edições alemã e brasileira de

Topik und Jurisprudenz, bem como a espanhola e a italiana. As referências serão

feitas, via de regra, às edições alemã e brasileira, e, quando necessário, às demais.

No que diz respeito aos ensaios, trabalharemos com a edição alemã,

da qual constam, inclusive, textos não traduzidos para o espanhol, e com a edição

espanhola, referenciando em ambas, sempre que possível, as passagens utilizadas.

As citações serão feitas utilizando-se, para facilitar a leitura e o

acesso, o texto traduzido para o português por Tercio Sampaio Ferraz Jr. na edição

brasileira de Topik und Jurisprudenz, indicando-se sempre a respectiva passagem no

texto em alemão. A edição dos ensaios que utilizaremos será, em regra, a alemã.

Serão, contudo, citados em espanhol, da edição organizada e revisada por Ernesto

Garzón-Valdez, quando houver correspondência com a edição alemã, e indicaremos

a localização correspondente no texto em alemão. Textos de Viehweg ou de outros

autores, citados exclusivamente em alemão, serão acompanhados de uma tradução

para o português, a fim de facilitar a leitura e o acompanhamento da discussão.

Para finalizar esta explicação, servimo-nos da literatura para precisar

ao leitor o que gostaríamos de marcar como limites da investigação, transcrevendo

aqui as belas palavras de Marguerite Yourcenar a respeito de suas Memórias de

Adriano e convidando à reflexão. Se não fizemos uma biografia de Viehweg,

procuramos compreender sua obra, forma pela qual ele nos aparece, razão pela qual

fica a analogia:

Em certo sentido, toda vida, quando narrada, é exemplar; escrevemos para atacar ou defender um sistema do mundo, para definir um método que nos é próprio. E não é menos verdade que é pela idealização ou pela crítica mordaz a todo custo, pelo detalhe omitido, que se desqualificam quase todos os biógrafos: o homem construído substitui o homem compreendido. Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que não se compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e de duas perpendiculares, mas de três linhas sinuosas, prolongadas até o infinito, incessantemente reaproximadas e divergindo sem cessar: o que o homem julgou ser, o que ele quis ser, e o que ele foi.2

2 YOURCENAR. Marguerite. Memórias de Adriano. 20. ed. Tradução de Martha Calderaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 310.

4. A Estrutura da Investigação

Para realizar os objetivos propostos, levando em consideração as

especificidades da obra de Theodor Viehweg, organizamos nossa análise em sete

capítulos, subdividindo-os em itens. Além disso, oferecemos ao final, como

conclusão, um resumo dos principais pontos da investigação e as constatações que a

cada passo foram realizadas.

O primeiro capítulo, intitulado A definição do problema, procura

mostrar como a investigação de Theodor Viehweg inicia-se com a pergunta pela

cientificidade do saber jurídico e qual o papel da alusão de Vico que o autor assume

como seu ponto de partida. A referida discussão abrange, ainda, a compreensão do

alcance e do significado da comparação realizada por Vico entre o saber dos antigos

e o saber dos modernos, bem como das consequências da preponderância do

segundo.

No segundo capítulo, examinamos o modelo moderno de pensamento

científico, com a intenção de captar melhor o pano de fundo no qual Viehweg discute

a função e a estrutura da Jurisprudência, entendida aqui, ao modo alemão, como

saber jurídico. A análise completa-se com a discussão das dificuldades do referido

modelo e com a sua significação para a investigação de Viehweg.

Delimitado o problema da investigação de Viehweg, cabe realizarmos

a verificação das respostas que ele ofereceu. Assim, o terceiro capítulo,

significativamente intitulado Zetética e Dogmática, analisa como o autor define cada

um desses termos e como eles são articulados no saber jurídico, compondo uma

cadeia entre dogmática jurídica, teoria do direito e filosofia do direito.

O capítulo IV prossegue com a análise da obra de Viehweg

perquirindo o que significa a qualificação da filosofia do direito como uma

investigação de base e aborda as referências do autor a uma teoria retórica da

argumentação.

Nos capítulos V e VI, o centro da investigação passa a ser a tese

defendida por Viehweg de que a Jurisprudência tem uma estrutura tópica. No

primeiro momento, ao longo do Capítulo V, são analisadas as referências históricas

trazidas pelo autor, a fim de comprovar sua afirmação. Principia-se, assim, pela

determinação da tópica em Aristóteles e Cícero, passa-se ao ius civile e ao mos

italicus, verifica-se a proposta de Leibniz de uma axiomatização da tópica e chega-se

à civilística contemporânea. No segundo momento, já no Capítulo VI, procura-se

analisar a definição de Viehweg de que a tópica é uma arte de pensar por problemas

e o seu entendimento quanto à contraposição entre tópica e sistema.

O Capítulo VII, por fim, destina-se ao cruzamento entre a distinção

dogmática e zetética e a distinção entre pensamento problemático e pensamento

sistemático, com o intuito de compreender como Theodor Viehweg qualificaria a

Jurisprudência. A análise encerra-se com a exemplificação, a partir do modelo de

discurso elaborado por Tercio Sampaio Ferraz Jr., de como imaginamos poderia ter o

autor discutido a questão, tendo em vista que ele nunca o fez expressamente. Tal

exemplificação, além de preencher a lacuna deixada por Viehweg, auxiliará a

entender o alcance dos pressupostos elaborados pelo autor, embora não cabalmente

desenvolvidos.

CAPÍTULO I

A Definição do Problema

1. O ponto de partida da investigação de Viehweg

A principal obra de Theodor Viehweg – Topik und Jurisprudenz –

começa com a afirmação de que se pretende uma contribuição à pesquisa de base da

ciência do direito3, o que é também o subtítulo da própria obra. Quais eram as

preocupações teóricas subjacentes a esse título e a essa explícita colocação? O que

queria dizer com isso o autor? Que problema o movia?

Em primeiro lugar, parece ser possível pensar, dada a explícita

colocação mencionada, que a ciência do direito é aqui o tema central. Em segundo, e

se a primeira inferência estiver correta, então podemos pensar que o autor via

problemas (no sentido corrente do termo) na forma como a pesquisa de base vinha

sendo executada, ou naquilo que se pretendia estivesse sendo buscado no âmbito de

uma ciência do direito. Por pesquisa de base, como dirá noutro de seus escritos, e

como veremos detalhadamente mais tarde, entendia Viehweg a investigação da

estrutura de um determinado campo de conhecimento; no presente caso, o jurídico4.

Se continuarmos a examinar o primeiro parágrafo da Introdução de

Topik und Jurisprudenz, veremos que, após a afirmação que mencionamos, encontra-

se a seguinte frase: “Trata-se de analisar a estrutura da jurisprudência de um ângulo

3 Conforme mencionamos na Introdução, utilizaremos as edições alemã – Topik und Jurisprudenz. 5. ed. München: Beck, 1974 – e brasileira – Tópica e Jurisprudência. Trad. de Tercio S. Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979 – da principal obra de Viehweg, e faremos a referência indicando a página em cada edição. Quando utilizarmos as demais traduções da obra (em espanhol, italiano ou inglês), isso será expressamente consignado. A informação acima encontra-se nas páginas 13 da edição alemã e17 da brasileira. 4 De acordo com o anunciado na Introdução, trabalharemos com as duas coletâneas de “pequenos escritos” de Viehweg em circulação, em espanhol e em alemão, e faremos referência ao título do artigo e sua página em ambas. As edições são registradas do seguinte modo: VIEHWEG, Theodor. Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie: Gesammelte Kleine Schriften. Baden-Baden: Nomos, 1995; e VIEHWEG, Theodor. Tópica y filosofía del derecho. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997. A referência desta nota encontra-se em Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 45 e ss. e em La filosofía del derecho como investigación básica, p. 29 e ss.

até agora pouco observado, permanecendo-se ciente, entretanto, dos limites da

empresa”5. Se o novo ângulo lhe pareceu relevante, é porque havia algo diferente que

ele pretendia mostrar pela sua observação e que não vinha sendo feito.

A leitura desses parágrafos introdutórios nos mostra que dois termos

são utilizados para fazer referência ao conhecimento jurídico: ciência do direito

(Rechtswissenschaft) e Jurisprudência (Jurisprudenz). Na linguagem jurídica

corrente, em particular no Brasil, a elaboração que a doutrina jurídica faz,

interpretando e organizando as normas jurídicas, é tida e havida como científica6 e

designada sempre como ciência do direito, enquanto a expressão jurisprudência é

reservada ao conjunto de decisões dos tribunais.

Na Alemanha, a expressão Jurisprudenz (Jurisprudência)7 designa, de

modo mais amplo, aquilo que podemos considerar aproximadamente como o sentido

de ciência do direito para o jargão brasileiro, ou seja, o conjunto dos discursos que

são feitos pelos especialistas nos diversos ramos do direito, com base na legislação,

nas decisões dos tribunais e no (e a partir do) desenvolvimento de novos conceitos

jurídicos, e também é, via de regra, considerada como uma atividade científica8. Para

a presente discussão, referiremo-nos sempre à Jurisprudência no sentido mais

abrangente, de saber jurídico, reservando-se a expressão “ciência” para aquela

discussão específica de seu estatuto epistemológico.9

Não se deve deixar de notar que a sinonímia existente entre as

expressões Jurisprudência e ciência do direito, bem como a sua não tematização não

são gratuitas. Elas decorrem de uma assimilação historicamente produzida entre os

5 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 13 da edição alemã e 17 da brasileira. 6 A título de exemplo, vide NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.5 e GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução à Ciência do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.3. 7 Cfe. Nota do tradutor à edição brasileira de Topik und Jurisprudenz, p. 109. 8 Preferimos dizer que a expressão Jurisprudenz pode ser compreendida “aproximadamente” como doutrina jurídica, pois o sentido alemão guarda uma proximidade evidente com a noção de “prudência”, derivada da forma latina “prudentia”, cujo teor é o de uma arte ou estilo de trabalho. Parece-nos que é exatamente esse caráter que Viehweg procura discutir, conforme veremos detalhadamente, quando levanta a vinculação desse saber ou estilo de trabalho com a tópica. 9 A expressão alemã Jurisprudenz utilizada por Viehweg foi traduzida para o português por Ferraz Jr. como “Jurisprudência”, atendendo à similitude provocada pela origem latina da expressão. É de se salientar que, para nossas finalidades, ela deve ser entendida no sentido de “saber jurídico”, e não no sentido, usual no Brasil, de “conjunto de decisões dos tribunais”. Optamos por também utilizar a forma “Jurisprudência” para traduzir a “Jurisprudenz” alemã e, para marcar a distinção para com o sentido corrente no Brasil, a utilizaremos sempre com letra inicial maiúscula.

dois sentidos e refletem uma generalizada aceitação da ideia de que aquilo que o

jurista faz é ciência, aceitação esta que se encontra no cerne de nossa análise.10

Ao utilizar um termo tão marcado de sua tradição linguística,

Viehweg parece estar querendo perguntar algo que se evidencia justamente na

separação entre os dois significados: a Jurisprudência (Jurisprudenz) é uma ciência?

O termo Jurisprudenz traz em si uma carga histórica que remonta ao

secular processo de formação da doutrina jurídica alemã, com base no

desenvolvimento e apropriação das fontes romanas e germânicas. Ao utilizá-lo sem

precisar o seu significado ou discorrer sobre ele, o autor pode estar indicando que sua

preocupação voltava-se para o saber jurídico tal como ele vinha sendo e tinha sido

constituído, ao invés de elaborar uma proposta normativa de como o saber jurídico

deveria ser para que pudesse ser considerado científico.

A pergunta primária, portanto, não seria colocada nos termos de “o

que se deve fazer para fazer ciência do direito?”, mas se a Jurisprudência podia ser

considerada uma ciência; se esse tipo singular de saber, que se formou desde os

romanos com determinadas características, podia ser considerado uma ciência, por

estar organizado estruturalmente de modo a atender os parâmetros do modelo

moderno de ciência, já que nem para os romanos e nem para a Idade Média esse tema

se colocava11.

O problema de Viehweg parece ser, portanto, o da cientificidade do

trabalho do jurista e dos discursos que fazem e/ou organizam essa praxis se

interrogados à luz do que a modernidade convencionou seja a ciência, nos moldes do

positivismo que domina o modelo das ciências naturais e exatas, e a concepção

vulgar de ciência12.

Esse tema não é, e nem era, à década de 50, novo. Ao contrário, a

discussão data, pelo menos, do início do século XIX e estava, ao tempo que o autor

10 O Capítulo VII explorará detidamente a sinonímia produzida entre as expressões e o uso que delas faz Viehweg. 11 Os primeiros juristas a colocarem a questão, explicitamente, da cientificidade da “ciência do Direito” foram os membros da Escola Histórica, no século XIX. Cfe. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1991, p. 29. 12 Uma caracterização do modelo moderno de ciência, ainda que meramente esquemática, é oferecida no próximo capítulo.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:12Comment: Nota ao editor: referência ao capítulo VII.

elaborou sua pesquisa, num significativo impasse, acuada entre as propostas

purificadoras do positivismo jurídico e científico e as exigências da prática numa

sociedade recém-convulsionada pelos horrores da guerra1314.

Para tratá-lo, o autor busca um outro ângulo de observação15, que lhe

permita ver o fenômeno do conhecimento jurídico de um ponto de vista que lhe

parece mais profícuo, porque ilumina aspectos deixados na sombra durante anos

(quiçá séculos) diante da tentativa de aplicar os padrões matematizantes das ciências

exatas e naturais a todos os possíveis modelos de saber.

A novidade que aparece aqui é o resgate da tópica, peça modular da

retórica antiga, que Viehweg busca em Aristóteles e em Cícero para pensar a

estrutura da Jurisprudência e acompanhar seu desenvolvimento histórico desde os

romanos até a civilística sua contemporânea. Esse instrumental, legado pela cultura

antiga, é atualizado pelas contribuições da lógica, da linguística e da teoria da

comunicação, e dá fundamento ao seu trabalho, tanto em Topik und Jurisprudenz

quanto nos escritos posteriores.

13 Heino Garrn, ao apresentar a coletânea dos ‘pequenos escritos’ de Viehweg, salienta que sua exposição retira força persuasiva, sobretudo da praxis jurídica da decisão, e está à altura de sustentar seu sentido real, também porque o autor contava com a sua experiência prática do direito, tendo sido juiz de profissão antes de ingressar na universidade como professor, precisamente no pós-guerra. Cfe. GARRN, Heino. Einleitung. In VIEHWEG, Theodor. Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie: Gesammelte Kleine Schriften. Baden-Baden: Nomos, 1995, p. 10. Garzón Valdés, ao apresentar a coletânea de pequenos escritos de Viehweg em língua espanhola, também afirma que a concepção desenvolvida pelo autor para os problemas da filosofia do direito, propugnando sempre uma visão “completa” do direito e salientando a responsabilidade ética do jurista, não deixa de ser uma resposta teórica ao comportamento dos juristas alemães durante o regime nazista. Cfe. GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Observación Preliminar. In VIEHWEG, Theodor. Tópica y filosofía del derecho. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 09-13. Em sentido oposto, acusando Viehweg de distanciamento da praxis jurídica, WIEACKER, Franz. Zur Topikdiskussion in der Zeitgenossischen Deutschen Rechtswissenschaft. In CAEMMERER, E. Von et al. Xenion: Festschrift für Pan Zepos. Band I. Athen, Freiburg, Köln: Ch. Katsikalis, 1973, p. 391-415, especialmente p. 395. 14 Durham Jr., ao apresentar a sua tradução de Topik und Jurisprudenz para o inglês, assim se manifesta: “The German legal tradition, perhaps more than any other legal culture, has attached deep significance and legitimating power to the systematic structure of law. Particularly in the aftermath of the Nazi debacle, this scientism was closely linked to concerns about legitimacy and the rule of law. The claim that particular decisions were ‘scientifically derived’ from legitimate constitutional or code provisions could help immunize them from charges of personal bias, political influence, or other forms of arbitrariness.” DURHAM JR, W. Cole. op. cit., p. xx. 15 Sobre a “novidade” da abordagem, afirma Degadt: “Enfin étaient posés les fondaments qui pourraient décider définitivement de la méthodologie juridique et mettre fin à la lutte des methodologies, le fameux Methodenstreit.” DEGADT, Peter. Litterátures contemporaines sur la “Topique Juridique”. Paris: Presses Universitaires de France, 1981, p.1.

Como afirma o autor, sua atenção para essa possibilidade foi

despertada por uma alusão de Giambattista Vico, que, ao distinguir entre a estrutura

prevalecente da cultura antiga, determinada pela tópica-retórica, e a nova cultura

matematizante do século XVII, formada a partir do cartesianismo, levou-o a

investigar as relações da esquecida tópica com a Jurisprudência16. Vejamos como

Viehweg expõe a análise de Vico.

2. A Alusão de Vico

A obra de Vico que Viehweg utiliza intitula-se De nostre temporis

studiorum ratione17, título que pode ser compreendido aproximadamente como “o

caráter dos estudos do nosso tempo”18 ou, conforme a tradução italiana “il metodo

degli studi del tempo nostro”19. Esse trabalho, como explica o próprio autor, que, na

época, era professor de eloquência ou retórica (proffessor eloquentiae), foi elaborado

em 1708 como uma preleção a ser lida por ocasião da inauguração solene da

Universidade Real de Nápoles, e posteriormente ampliada. Sua intenção básica é

responder a seguinte questão: Que método de estudo é melhor e mais correto? O

nosso ou aquele dos antigos? Ou, na versão menos modesta e mais esclarecedora

expressa ao final do trabalho: Conciliação do tipo de estudos antigo e moderno20.

Após delimitar, na introdução de Topik und Jurisprudenz, os

propósitos e limites de seu trabalho, como vínhamos expondo, Viehweg principia

(Parágrafo 1º) seu tratamento abordando a alusão (hinweis) que retirou do escrito de

Vico. Refere-se, então, expressamente, ao fato de que não pretende “examinar os

múltiplos aspectos dessa interessantíssima dissertatio, mas sim extrair dela as idéias

16 Cfe. Introdução e Parágrafo 1º de Topik und Jurisprudenz, p. 13-18 da edição alemã e p. 17-21 da edição brasileira. 17 Utilizamos e citaremos sempre a tradução italiana assim consignada: VICO, Giambattista. Il metodo degli studi del tempo nostro. In ______. Opere. Trad. de Fausto Nicolini. Verona: Stamperia Valdonega, 1953. Colezione la letteratura italiana, Storia e testi, vol. 43, p. 169-242. 18 Cfe. propõe Ferraz Jr. em sua tradução de Topik und Jurisprudenz, op. cit., p. 19. 19 A expressão “método” é um tanto problemática, na medida em que a tópica-retórica, que Vico considera o modo de estudo dos antigos, não é um método, mas um estilo de pensamento. O autor da tradução, todavia, salienta que a escolheu, tendo em vista que Vico estava claramente debatendo com o “Discurso do Método” de Descartes. 20 VICO, op. cit., p. 172 e 241, respectivamente (tradução nossa).

fundamentais”21. Do mesmo modo, quase ao final do parágrafo, ressalta que

abandonaremos o Vico histórico para prosseguir no seu tema: a estrutura dos dois

modos de pensar, bem como o papel da tópica e sua relação com a Jurisprudência22.

Não há interesse, portanto, em examinar com profundidade a

elaboração teórica de Vico em seu conjunto, mas, sim, de utilizá-la como um ponto

de partida, um insight que sirva para salientar a que aspectos ou questões devemos

voltar o nosso olhar e, nesse sentido, mais importante do que o intuito de Vico em

produzir a concordância entre os dois modos de pensamento é a sua comparação

entre ambos. Mesmo porque, conforme Viehweg assinala expressamente ao final do

Parágrafo 1º, importa indagar que consequências teve sobre a Jurisprudência a

mudança de estrutura decorrente do novo modo (cartesiano ou crítico) de

pensamento23.

O tema que nos parece ser o centro da indagação de Viehweg está,

então, colocado: a estrutura da Jurisprudência e sua vinculação com a tópica. E a

importância do trabalho de Vico é justamente a comparação que ele efetua e que

chama a atenção para as perdas provocadas pelo abandono da tópica em função do

novo método cartesiano ou crítico. É possivelmente por essa razão que Viehweg

qualificou o que lhe interessava no estudo de Vico como um hinweis ou uma

“alusão”. Ao tratar das consequências do predomínio do modo de pensar crítico

sobre o tópico, Vico despertou a atenção de Viehweg para o tema e levou-o a estudar

a estrutura da Jurisprudência a partir desse ângulo.

Viehweg seleciona os aspectos mais importantes da dissertação para

suas finalidades, principiando pelo modo como Vico refere-se aos instrumentos da

21 Cfe. p. 16 da edição alemã e 20 da edição brasileira. 22 Tendo em vista essas afirmações explícitas de Viehweg, não concordamos com Degadt quando este critica o uso que o autor fez de suas fontes, dentre elas, Vico. Segundo Degadt, Viehweg não teria levado em consideração a completude da ideia de Vico, a qual seria muito mais de conciliar os dois tipos de estudo (tópico e crítico) do que de salientar as “vantagens” do estilo tópico. Entendemos infundada a crítica porque Viehweg expressamente menciona o fato de que Vico, ao final de sua dissertatio, diz que o seu “verdadeiro” título deveria ser “Da conciliação do tipo de estudos antigo e moderno”, além de afirmar que deseja utilizar-se apenas do tema do autor, e não de todos os desdobramentos de sua abordagem. Cfe. DEGADT, op. cit., p. 28-29. 23 Essas afirmações de Viehweg mostram que o autor propositadamente decide não levar em conta a comparação entre os tipos de pensamento, antigo e moderno, mas centrar-se naquilo que a análise de Vico oferece para o seu problema, ou seja, a estrutura da Jurisprudência diante do predomínio do modo crítico ou cartesiano de pensamento, desautorizando, portanto, a crítica de Degadt mencionada na nota anterior.

ciência, aos seus métodos ou estilos de trabalho. Nesse sentido, Vico menciona o

antigo como retórico/tópico e o moderno como crítico. O primeiro é herança da

antiguidade e o segundo é representado pelo cartesianismo24. O primeiro lida com o

verossímil e o provável; o segundo visa a uma sistematização dedutiva perfeita a

partir de premissas verdadeiras, evidentes. Nas palavras de Viehweg:

Vico caracteriza o método novo (crítica) da seguinte maneira: o ponto de partida é um primum verum, que não pode ser eliminado nem mesmo pela dúvida. O desenvolvimento ulterior se dá à maneira da Geometria, isto é, segundo os ditames da primeira ciência demonstrativa que conhecemos. Portanto, na medida do possível, através de longas cadeias dedutivas (sorites). Em sentido contrário, o método antigo (tópica) assim se caracteriza: o ponto de partida é o sensus communis (senso comum, common sense), que manipula o verossímil (verisimilia), contrapõe pontos de vista conforme os cânones da tópica retórica e, sobretudo, trabalha com uma rede de silogismos.25

Vico considera como vantagens do novo procedimento a agudeza e a

precisão que este possibilita, e como desvantagens a perda de penetração, o

estiolamento da fantasia e da memória, a pobreza da linguagem e a falta de

amadurecimento do juízo. Parecem, aponta Viehweg, predominar as desvantagens.

Dada a forma um tanto obscura como Vico escreve, é difícil localizar

uma afirmação peremptória e textual de que o modo de pensamento tópico-retórico

seja, de fato, melhor, no sentido de que traz mais vantagens do que desvantagens. O

que é incontestável, e aparece ao longo de todo o texto, é que lhe parece um engano

ensinar aos jovens apenas a partir do novo método cartesiano. As vantagens e

desvantagens presentes nos dois modos, que ele resume com a ideia de que ambos

são defeituosos, resulta de que o tópico aceita até mesmo o falso, enquanto o crítico

não aceita nem mesmo o verossímil26.

Como evitar as desvantagens? Ensinando, diz Vico, ambas as formas

de pensamento. Em primeiro lugar, a tópica, e, depois que o jovem tenha já

24 VICO, op. cit., p. 174-179. 25 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 17 da edição alemã e p. 20 da edição brasileira. 26 VICO, op. cit., p.181. Vide DESCARTES, René. Discurso do Método. In Descartes. Tradução de Enrico Corvisieri. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 48-49.

alcançado a maturidade e desenvolvido a capacidade imaginativa e a eloquência, e se

aproximado da prudência civil, então, ensinar-lhe a crítica27.

Parece, todavia, que, mesmo com as obscuridades e os rodeios que

Vico faz, o seu intuito maior era, efetivamente, realizar uma crítica ao cartesianismo

então em franca expansão, justamente para mostrar que não se podia contar com esse

método em alguns aspectos de fundamental importância da vida humana.

Conhecedor do cartesianismo, Vico procurava refutá-lo nesse e em outros escritos28.

Peter Burke, ao comentar a referida dissertação de Vico, afirma que o

aspecto central, por assim dizer, do passeio empreendido pelo autor por todas as artes

e ciências da época, um pouco à maneira de um texto de Bacon que ele cita no início

de seu escrito29, é a recusa da pretensão do novo método de ser comum a todas as

ciências. Vico rejeitaria que esse novo modo de pensamento fosse aplicável à

sabedoria prática, ou seja, à ética, à política e ao direito, e aí está o ponto que parece

interessar diretamente a Viehweg30.

A questão que surge após a caracterização dos dois modos e sua

comparação em termos de vantagens e desvantagens é que o novo método ou estilo

de pensamento descarta completamente o antigo, propugna mesmo a sua eliminação,

pretendendo ser utilizado em todas as áreas do saber humano31.

A pretensão de exclusividade do novo método, portanto, é que se

afigura exagerada e inadequada, na medida em que nega a necessidade da invenção

27 VICO, op. cit., p. 180-181. 28 BURKE, Peter. Vico. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1997, p. 84-85: “...Vico era, no fundo, um humanista renascentista, sugestão esta confirmada por suas freqüentes e favoráveis referências a outros humanistas, de Petrarca a Lípsio. Era sem dúvida um humanista tardio, um dos últimos da raça, cônscio da Revolução Científica do século XVII e marcado pelas idéias de Descartes, ainda que as rejeitasse e as refutasse”. 29 Vico inicia a dissertação citando o texto De dignitate et de augmentis scientiarum de Francis Bacon, publicado em 1623, como parte de um projeto mais amplo de desenvolver um ambicioso plano de trabalho científico – chamado por ele de A Grande Instauração –, do qual o referido texto seria a primeira parte. Cfe. ANDRADE, José Aluysio Reis. Vida e Obra. In Bacon. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999, p. 10. 30 Cfe. BURKE, op. cit., p. 34. 31 Sobre a pretensão do novo método crítico, diz VICO, op. cit. p. 178: “Senonchè oggi vien coltivata esclusivamente la critica: la topica, lungi dall’esser messa al primo posto, è in tutto e per tutto ricacciata indietro. E ancora una volta a torto: giacchè, come l’invenzione degli argomenti precede per natura la valutazione della loro veridicità, così la dottrina topica dev’esser preposta a quella critica. Ma, intanto, i nostri se ne tengano lontani e la reputano di nessun uso.”

dos argumentos antes que se possa submetê-los a crítica32. Desse modo, retirar a

tópica da esfera dos estudos significa um grave prejuízo à formação e traz consigo

todos aqueles inconvenientes acima inventariados.

É na esteira da pretensão de exclusividade do novo método que vem

um dos principais aspectos que definem a importância da alusão de Vico: ao salientar

a sistematização dedutiva em detrimento de qualquer outra forma de organização do

saber, o predomínio desse modelo de conhecimento nos séculos seguintes trouxe

consigo a necessidade de a Jurisprudência a ele adequar-se. O que Vico observava,

ainda no nascimento dessa pretensão, era a sua inadequação para alguns âmbitos do

saber humano, em especial aqueles ligados diretamente à convivência humana, e, por

isso, criticava a sua pretensiosa generalização.

Como decorrência do afastamento da retórica e da tópica, Vico

enxerga, ainda, outro importante inconveniente: o da perda do acesso que o antigo

saber tinha à praxis e que ocorre conjuntamente com a sua substituição pelo novo

modo crítico de pensamento33. Vejamos com mais vagar este segundo ponto que

podemos localizar na alusão de Vico.

3. Vico versus Hobbes: as dificuldades do modelo cartesiano diante da praxis

Partindo do aspecto antes mencionado das preocupações de Vico34,

Jürgen Habermas procura salientar a profunda diferença existente entre o modo como

os antigos e os modernos concebem o tipo de saber sobre a praxis 35. A fim de melhor

32 A distinção entre a invenção e a análise lógica dos argumentos é também importante para a questão da fundamentação mais ampla da ciência enquanto pensamento situacional, que trataremos posteriormente. Vide Topik und Jurisprudenz, p. 113 da edição alemã e p. 103 da edição brasileira. 33 Cfe. HABERMAS, Jürgen. Teoria y praxis. 3. ed. Trad. de Salvador M. Torres e Carlos M. Espí. Madrid: Tecnos, 1997, p. 49-86. Vide também FERRAZ JR., Tercio S. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: RT, 1980, p. 11-17. 34 Vico e sua leitura por Habermas, na obra acima mencionada, são tema da reflexão de Kopperschmidt quando este autor trabalha com a reabilitação da retórica. Vide KOPPERSCHMIDT, Josef. Kritische Rhetorik. In DYCK, Joachim (hrsg.). Rhetorik in der Schule. Kronberg: Scriptor Verlag, 1974, p. 204-235, especialmente p. 207-214. 35 Sobre esses aspectos, vide ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

realizar a comparação, utiliza-se de Hobbes como o autor modelo para ilustrar o

novo modo de trabalhar com as questões ligadas à política, à ética e ao direito.

Habermas salienta, ao analisar as referências de Vico, que o autor se

mantém na determinação aristotélica da diferença entre ciência e sabedoria: enquanto

aquela primeira aponta para verdades eternas e deseja realizar afirmações sobre o que

é constante e com necessidade, a sabedoria prática só tem a ver com o provável36.

Vico mostra como essa forma de proceder conduz, na práxis, a uma maior certeza e

remete às realizações da retórica, que se serve, sobretudo, da capacidade da

phronesis e do modo de proceder tópico37.

Por essas razões, Vico rechaça o atrevimento da ciência moderna de

trasladar o método do juízo científico à praxis da sabedoria. A fundamentação da

filosofia prática como ciência, que Bacon exige e que Hobbes promete realizar pela

primeira vez, parece-lhe contraproducente.

Para Hobbes, na medida em que a exigência cartesiana de um método

para os fundamentos iniciais da filosofia social de modo algum fora feita antes dele,

a doutrina clássica da política nunca havia podido levar ao conhecimento real38.

Hobbes, na posse do novo método, desenvolve pela primeira vez uma física da

socialização39. Tão prontamente como foi alcançada a intelecção da mecânica do

estado de sociedade, podem encontrar-se as disposições tecnicamente indispensáveis

para produzir a ordem social e a política correta40.

Certamente surge a dificuldade de que os técnicos da ordem correta

devem ser tomados do círculo daqueles cidadãos que eram ao mesmo tempo objeto

de conhecimento, enquanto membros da defeituosa ordem existente. Os mesmos

homens, cujo comportamento se havia conceituado primeiramente em sua

36 Sobre a relação entre Vico e Aristóteles, vide KOPPERSCHMIDT, op. cit., p.214-222. 37 Cfe. HABERMAS, op. cit. p. 52-53. 38 Sobre a falta de resultados em fundar uma verdadeira ciência da política, Hobbes diz: “Ora, a única razão desta falta de sorte parece ser a seguinte: que entre todos os autores daquela parte da filosofia nunca houve um que adotasse um princípio que seja adequado para tratá-la.” Cfe. HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Trad. de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 7. A respeito do cartesianismo, sua pretensão universalista como método e a recusa da herança retórica, vide KOPPERSCHMIDT, op. cit., p. 206-207. 39 Vide HOBBES, Do Cidadão, op. cit., especialmente a Epístola Dedicatória e o Prefácio do Autor aos Leitores, nas p. 5-10 e 11-23, respectivamente. 40 Cfe. HABERMAS, op. cit., p. 78-79.

necessidade como objeto da natureza, a partir da conexão causal das pressões

institucionais e dos modos de reação antropologicamente dados, devem também

tomar o papel de sujeitos que, conhecendo essa conexão, têm de encontrar um

melhor arranjo. São tanto objeto das relações investigadas quanto sujeitos das

relações que se há de modificar41.

No caso de uma utilização atual da filosofia social, Hobbes tinha que

se enfrentar com o papel fictício de uma assembleia constituinte de cidadãos. Pois,

se sua própria teoria deve ter consequências práticas (instituir a correta ordem da

sociedade), então deve fazer-se pública e deve ser aceita pela massa dos cidadãos42.

Vico, no entender de Habermas, encontra a dificuldade com a qual

Hobbes se bate em vão. A teoria da ação social cientificamente estabelecida malogra

na dimensão da praxis, relativamente à qual a doutrina clássica possuía um acesso

imediato, porque a filosofia social projetada segundo o modelo da física moderna,

isto é, desde a atitude do técnico43, somente pode refletir as consequências práticas

do próprio ensinamento no marco das fronteiras da autocompreensão tecnológica.

Hobbes somente pode reiterar que a certeza científica levaria à

construção da praxis adequada. Contudo, tanto as pressuposições mecanicistas de seu

método quanto as consequências absolutistas de sua teoria excluem que os homens se

mostrem dispostos, a partir de puras intelecções, a submeter-se à autoridade estatal.

Não cabe fundamentar no marco da sua filosofia social a possibilidade daquelas

consequências práticas – colocadas debaixo de uma certeza do conhecimento

filosófico-social consumado, certeza situada à margem de toda comunicação44.

41 Cfe. HABERMAS, op. cit., p.79. 42 Cfe. HABERMAS, op. cit., p. 79. 43 Não é que a intenção cognoscitiva das ciências modernas, especialmente no seu começo, estivesse orientada subjetivamente para a produção de um conhecimento utilizável tecnicamente. Mas a intenção primeira dessa investigação, desde os dias de Galileu, é objetivamente a seguinte: conseguir a destreza de fazer os mesmos processos naturais de igual modo como a natureza os produz. A teoria se mede pela capacidade de reprodução artificial dos processos naturais. Em oposição à episteme grega, aponta, por sua própria estrutura, à utilização, à aplicação. Nessa medida, a teoria alcança como um novo critério de sua verdade (junto ao caráter lógico-concludente) a certeza do técnico: conhecemos um objeto na medida em que o podemos fazer. Sobre a transformação da ciência a partir da experimentação, vide ARENDT, op. cit., p. 243 e p.286-287. 44 Cfe. HABERMAS, op. cit., p. 80. Como mostra ARENDT, op. cit., p.296-297, a própria noção de senso comum é alterada na construção da filosofia e da ciência modernas, a partir da dúvida cartesiana. Se antes era aquilo que partilhamos com os outros homens no sentido de compreensão do mundo que nos rodeia, passa a ser apenas a estrutura mental, nossa capacidade de razão enquanto

Diferentemente da mera utilização técnica de resultados científicos, a

transformação da teoria em praxis está, com efeito, diante da tarefa de passar a

formar parte da consciência e da reflexão dos cidadãos dispostos à ação: as soluções

precisam demonstrar-se em situações concretas como as soluções praticamente

necessárias para a satisfação de necessidades objetivas. Mais ainda, têm que estar já

concebidas de antemão a partir do horizonte dos sujeitos atuantes45.

Nesse sentido, Vico recomenda a retórica, porque sabe o que as

verdades ricas em consequências práticas requerem do consenso sabiamente obtido:

o parecer verdade do senso comum dos cidadãos que discutem publicamente46.

O saber dos antigos, sua forma de pensamento, é indispensável

quando se trata de analisar a ação e não pensar o âmbito da convivência humana

como uma questão, tal como nas ciências naturais, de disposição. Mais do que

técnica, esse saber é preciso para organizar a vida em sociedade. A tentativa de

Hobbes, portanto, esbarra em um obstáculo que possivelmente implique reavaliar

justamente a função da tópica-retórica dos antigos, tão prontamente repudiada.

Quentin Skinner, ao realizar uma reavaliação do pensamento e da

trajetória intelectual de Hobbes pelo viés de sua formação humanística, defende a

tese de que o próprio Hobbes teria reconsiderado, ao longo de seus tratados políticos,

a relação entre a retórica e a razão demonstrativa, justamente porque lhe ficava claro,

ao observar a ausência de repercussão que sua demonstração dos verdadeiros

princípios da ciência política produzira em seus interlocutores, a dificuldade que

vínhamos discutindo47. Embora pensasse, e afirmasse, ter elaborado pela vez

cálculo e previsão de consequências – base da construção hobbesiana – que partilhamos com os outros homens. 45 Cfe. HABERMAS, op. cit., p. 81. 46 Cfe. HABERMAS, op. cit., p. 81. 47 Cfe. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: UNESP, 1999, passim. Skinner faz um interessante e exaustivo trabalho de reconstrução da formação escolar, ao tempo em que Hobbes estudou, e procura mostrar como esse autor teria feito um percurso quase que circular, de uma formação fortemente influenciada pela retórica, como peculiar ao currículo dos estudos da Idade Média e do Renascimento, a um abandono deliberado desse instrumental em prol de uma postura científica com metodologia embasada na geometria, até uma reconsideração da necessidade de utilizar os recursos retóricos, ao menos no âmbito da “ciência” civil. O referido trabalho de Skinner acompanha, assim, a presença e a ausência dos diversos recursos técnico-retóricos que compunham a opinião comum da época. Não nos interessa aqui essa explicação detalhada, mas apenas a tese central que corrobora aquilo que vínhamos discutindo sobre a dificuldade do novo modelo de ciência em tratar com a praxis.

primeira uma verdadeira ciência da política, esta parecia não provocar nenhum

resultado prático, e ninguém parecia ter se apercebido do nascimento da referida

ciência e dos grandes benefícios que ela traria à humanidade48.

Com efeito, se examinarmos a epístola dedicatória do primeiro tratado

político de Hobbes, Elementos de Direito Natural e Político49, encontraremos ali

uma expressa afirmação de que o trabalho apresentado é de estilo fraco porque

dominado mais pela lógica do que pela retórica. Do mesmo modo, no segundo

tratado político de Hobbes, Do Cidadão, encontramos a firme condenação da

filosofia política que em nada avança no conhecimento da verdade sobre a lei natural

e o governo dos homens porque adota princípios errôneos e sua ampla aceitação

decorre muito mais de sua “retoriquice” do que de sua contribuição ao entendimento

de tais importantes questões50.

O próprio estilo de redação dos primeiros tratados parece espelhar-se

diretamente na geometria, organizado que está em parágrafos numerados e em

constante remissão uns aos outros, além da utilização constante de expressões como

“conforme foi demonstrado”, “como defini anteriormente” etc., numa clara tentativa

de produzir um argumento que falasse por si só. A recusa da retórica encontra-se,

ainda, documentada em diversas passagens dos textos nas quais são criticados e

refutados os autores da Antiguidade e os contemporâneos de Hobbes que a eles

seguiam ou endossavam51.

Uma tal posição tão clara não aparece, contudo, no Leviatã, última

versão do pensamento político de Hobbes. Como aponta exaustiva e textualmente

48 Cfe. SKINNER, op. cit., p. 569-581. 49 Cfe. HOBBES, Thomas. Elementos de Direito Natural e Político. Tradução de Fernando Couto. Porto: Res Jurídica, s/d. 50 Diz o texto de Hobbes: “Mas o que hoje notamos, isto é, que nem a espada nem a pena se vêem autorizadas a qualquer repouso; que o conhecimento da lei natural cessa de avançar, não crescendo uma polegada além de sua antiga estatura; que os filósofos a tal ponto se repartem em facções diversas e hostis, que a mesmíssima ação por uns é verberada, e por outros exaltada; que o mesmíssimo homem em distintos momentos abraça distintas opiniões, e estima as ações que ele próprio comete de maneira muito diferente do que faria se fossem cometidas por outrem; – tudo isso, afirmo, são sinais claros e argumentos manifestos a provar que aquilo que foi escrito, até hoje, pelos filósofos morais em nada avançou no conhecimento da verdade. E, se foi acolhido pelo mundo, não foi tanto por trazer alguma luz ao entendimento, mas por agradar às afeições, dado que pela bem-sucedida retoriquice de seu discurso eles confirmaram os homens em suas opiniões apressadamente aceitas.” HOBBES, Elementos, op. cit., p. 7. 51 Para esse trabalho de acompanhamento dos textos dos dois primeiros tratados hobbesianos, vide SKINNER, op. cit., p. 339-438.

Skinner, nesse último tratado, tanto em sua versão inglesa quanto em sua versão

latina, e ainda mais salientemente nesta, o autor recupera a vasta gama de recursos

retóricos que havia aprendido quando de sua formação escolar, como todo jovem

inglês seu contemporâneo, e a aplica para tentar convencer seus interlocutores da

veracidade e da qualidade de suas afirmações.

Trata-se, no entender de Skinner, não de uma reconsideração em

termos absolutos, o que implicaria Hobbes defender a retórica e seus resultados, mas

numa espécie de resignação amargurada de que, afinal de contas, ela pode ser

necessária, se entendida como complementar ao uso do raciocínio científico e seu

poder de demonstração52. Nem mesmo as verdades da Geometria, se por acaso

interferissem com os interesses humanos, seriam aceitas por evidentes53.

Com essa resignada constatação de Hobbes, chegamos à situação em

que a pretensão da ciência moderna, que apresentava seu vigor máximo na física e

em especial na chamada Revolução Copernicana, e pretendia oferecer o único

critério válido e racional para todo conhecimento, parece ter de ser rejeitada, ao

menos no que diz respeito ao âmbito dos negócios humanos. No mínimo, é preciso

que se recorra também à retórica para que se produzam os efeitos devidos aos novos

conhecimentos obtidos (e legitimados) com a metodologia científica. A alusão de

Vico torna-se, nesse sentido, mais concreta e mais clara, e sua preocupação parece

justificada pelo impasse em que Hobbes acabou por se encontrar e que o levou a

reconsiderar o papel da retórica.

Se nossa avaliação das preocupações de Vico estiver correta, então

podemos pensar que sua alusão mostrava a Viehweg um problema de dupla face. De

um lado, abria o questionamento sobre a sistematização dedutiva que estava no

centro do modelo cartesiano de ciência e sua adequação à Jurisprudência. De outro, 52 Cfe. SKINNER, op. cit., p. 460: “A despeito dessas dúvidas e críticas, persiste o fato de que, no Leviatã, Hobbes abandona sua insistência anterior em que a arte da retórica deveria ser excluída do campo da ciência civil. Embora nunca tenha chegado a ver a ars rhetorica com bons olhos, não há dúvida de que ele passou a acreditar na necessidade inescapável de uma aliança entre a razão e a eloqüência e, por conseguinte, entre a arte da retórica e os métodos da ciência”. 53 Cfe. HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e M. B. Nizza da Silva. 2. ed. São Paulo: Abril, 1979, p. 63: “Pois não duvido que, se acaso fosse contrária ao direito de domínio de alguém, ou aos interesses dos homens que possuem domínio, a doutrina segundo a qual os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos de um quadrado, esta doutrina teria sido, senão objeto de disputa, pelo menos suprimida, mediante a queima de todos os livros de geometria, na medida em que os interessados de tal fossem capazes”.

deixava em suspenso a difícil questão da relação entre a teoria e a praxis, em especial

quando essa teoria era concebida ao modo cartesiano e a situação de sua elaboração

era pensada como desvinculada (e devendo ser energicamente desvinculada) de

qualquer condicionamento prático. O modelo ideal de conhecimento, nesse sentido, é

o de uma teoria que se pretende universal, objetiva e impessoal, além de aplicável a

todos os ramos do saber.

Para seguirmos nossa investigação, precisamos verificar como essa

problemática foi utilizada por Viehweg e que tipo de consequências podemos retirar

dela. Com esse intuito, analisaremos, no próximo item, como a alusão de Vico foi

desdobrada em novas perguntas na investigação de Viehweg, para, em seguida,

examinarmos a constituição do modelo cartesiano de conhecimento científico e suas

dificuldades, e delimitarmos, então, a questão investigativa objeto deste estudo.

4. A definição do problema de Viehweg a partir da alusão de Vico

A partir da alusão de Vico, o problema que move a investigação de

Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a sistematização dedutiva,

pretendida pelos modelos matematizantes de ciência que predominaram a partir do

século XVII, ser inadequada para organizar o saber jurídico e dele retirar ou nele

ocultar características fundamentais54. E, ao desdobrar-se, toca na difícil questão do

sistema no direito, vinculada de modo intrínseco com a da sua cientificidade, na

medida em que a obtenção de conhecimentos de modo sistemático é comumente

utilizada como argumento para atestar a sua cientificidade55.

54 Cfe. Introdução de Topik und Jurisprudenz, em especial p. 13-14 da edição alemã e p. 17-18 da edição brasileira. 55 Nesse sentido, é interessante a seguinte passagem: “A idéia de sistema é, assim, a base de qualquer discurso científico, em Direito. A seu favor depõem aspectos como os da necessidade de um mínimo de racionalidade na dogmática, o da identificação das instituições com sistemas de acções e de interacções ou do próprio Direito como um sistema de comunicações, o do apoio sociológico da estruturação jurídica, o do tipo de pensamento dos juristas etc., mas depõem, sobretudo, as considerações muito simples, acima efectuadas, sobre a própria existência do Direito e sobre a necessidade de, na sua comunicação, utilizar uma linguagem inteligível e redutora, sob pena de inabarcável complexidade. Ou seja: há um sistema interno e deve haver um externo.” CORDEIRO, Menezes A. Introdução a: Canaris, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. LXVI (grifos nossos).

A ligação entre sistema e ciência pode ser reconduzida ao século

XVII, quando o termo sistema se torna escolar e seu uso se generaliza56. Sistema é

entendido, então, como um agregado ordenado de verdades, e pressupõe uma

dedução correta do ponto de vista formal. Sistema e sistema dedutivo são quase

sinônimos, precisamente porque uma teoria que se queira legitimar como ciência

deve fazê-lo perante a razão, apresentando suas proposições concatenadas entre si

com exatidão matemática57.

O par sistema/ciência liga-se agora com a questão nada simples da

racionalidade e desemboca na consideração de que só os raciocínios que possam ser

reconduzidos a uma demonstração dedutiva são aceitáveis como racionais e podem

fazer parte do sistema.

Como resumem Perelman e Tyteca, passa-se a considerar racional

aquilo que está de acordo com os métodos científicos, e esses são examinados por

obras de lógica que se consagram quase que exclusivamente aos meios de prova

baseados na dedução, com pequenas incursões nos métodos indutivos utilizados na

maioria das vezes apenas para testar uma hipótese já elaborada58.

Essa tendência só foi acentuada com o avanço dos estudos de lógica,

os quais, sob a influência dos lógico-matemáticos59, foram reduzidos à lógica formal,

ou seja, aos estudos dos meios de prova utilizados nas ciências matemáticas,

resultando na consideração de que os raciocínios que escapam à lógica escapam à

própria razão60. Coloca-se, portanto, uma divisão dicotômica: os raciocínios, ou são

56 Cfe. FERRAZ JR., A Ciência do Direito, op. cit., p. 23. Pode-se consultar também LOSANO, Mario G. Sistema e Struttura nel Diritto. Vol. Primo. Torino: Giappichelli, 1968, passim. 57 Cfe. FERRAZ JR., A Ciência do Direito, op. cit., p. 24. 58 Cfe. PERELMAN, Ch. e TYTECA, L. O. Tratado da Argumentação. Tradução de Maria E. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.2. 59 Sobre o desenvolvimento das pesquisas da lógica matemática no início do século XX, vide BOCHENSKI, I. M. La filosofia actual. 8. reimpressão. Tradução de Eugenio Imaz. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1981, p. 37-39 e 271-282. 60 Cfe. PERELMAN, Ch. e TYTECA, L. O. Tratado da Argumentação, op. cit., p.2. Segundo Bochenski, é errôneo considerar que a lógica matemática tinha o intento de matematizar a filosofia. Consideramos, mesmo assim, aceitável a observação de Perelman, na medida em que ela procura retratar um contexto mais genérico, de influências que as pesquisas lógicas acabaram por gerar. Mesmo que os lógicos não tenham querido a matematização, isso não significa que ela não tenha sido adotada como parâmetro, inclusive pela ligação entre a lógica e o neopositivismo, que também é recusada por Bochenski. Cfe. BOCHENSKI, op. cit., p. 271-272.

logicamente fundados e controláveis, ou estamos diante da arbitrariedade pela

impossibilidade de uma fundamentação.

Ao procurar um novo ângulo de observação, como mencionamos no

início desta exposição, Viehweg parece estar procurando uma saída para esse dilema,

que, aplicado ao campo jurídico, conduzia as teorias jurídicas ao dever de

fundamentarem-se de acordo com modelos matematizantes, ou assumirem a sua

irracionalidade. E é precisamente por isso que vai resgatar a tópica, a fim de

sustentar a possibilidade de uma discussão racional mesmo quando não se possa lidar

integralmente com os meios dedutivos.

Além disso, e mesmo sem pretender adiantar uma resposta que

procuraremos construir adiante, podemos observar que o autor parecia ver uma

inadequação crescente entre as afirmações que a teoria jurídica fazia a respeito de seu

objeto, entendendo-o como um sistema dedutivamente formado, completo e

coerente, e os resultados das pesquisas lógicas, em especial da lógica simbólica, no

sentido de que essas afirmações tornavam-se cada vez menos sustentáveis61.

Nesse sentido, diz Viehweg que um observador que se debruce sobre

o campo jurídico de maneira isenta encontrará a mesma “...techne que através dos

séculos foi cultivada de modo manifesto e reconhecido em estreita conexão com a

retórica. Só que agora se coloca atrás de uma teoria, que atua como um corpo

estranho e que se torna tanto mais problemática quanto mais progride a investigação

lógico-científica”62. Quanto mais progride a teoria da ciência, calcada nos meios de

trabalho e nas experiências das ciências exatas e naturais, mais evidente se torna a

inadequação das tentativas de se adaptarem os conhecimentos jurídicos e o modo de

trabalho dos operadores jurídicos a esse padrão. A teoria que se constrói sobre o

direito e sua praxis atua como um corpo estranho, como um obstáculo à compreensão

do que realmente se faz.

Os dois aspectos mencionados tornam mais palpável a problemática

que movia a investigação de Viehweg. Por um lado, a questão da cientificidade

61 Sobre lógica e em especial lógica jurídica no período em questão: BOBBIO, N; CONTE, A. Derecho y Logica e Bibliografia de Lógica Jurídica (1936-1960). Trad. de Alejandro Rossi. México: UNAM, 1965. 62 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 91 da edição alemã e p. 83 da edição brasileira.

ligada com a do sistema e a da racionalidade não lhe parecia passível de solução nos

moldes em que estava colocada até então, na medida em que não atendia ao

desenvolvimento da atuação do jurista e de sua teoria, se comparada com o padrão

cada vez mais sofisticado das pesquisas lógicas, em especial da lógica simbólica, que

mostravam a defasagem entre a pretensão de sistematicidade e a real prática jurídica

de modo cada vez mais acentuado. De outro lado, a mesma questão colocava o

jurista em um impasse sem solução precisamente ao salientar que, se seu trabalho

não podia ser integralmente avaliado pelos cânones da lógica formal, então ele estava

condenado à irracionalidade e à arbitrariedade.

No parágrafo III da Introdução de Topik und Jurisprudenz, o autor

resume os principais resultados de sua dissertação. Em primeiro lugar, conceitua a

tópica como uma técnica de pensar por problemas. Em segundo, a sua distinção para

com um outro contexto de tipo sistemático-dedutivo. Em terceiro, afirma a presença

da tópica na Jurisprudência e o êxito restrito que as tentativas da Era Moderna de

desligá-las obtiveram. Em quarto, diz que o prosseguimento dessas tentativas exigiu

uma sistematização rigorosa de nossa disciplina com meios dedutivos, e continua: “O

seu alvo foi transformar a Jurisprudência em uma Ciência do Direito através de

sistematização dedutiva. Com isto, ficava pressuposto que os seus problemas

podiam, deste modo, ser eliminados completamente” (grifos nossos)63.

O que Viehweg queria dizer com essa frase? Parece-nos possível

entendê-la no sentido de que essa eliminação dos problemas pela sistematização

dedutiva não foi levada a bom termo. E a conclusão da introdução parece corroborar

o que estamos dizendo:

Caso isto não seja aceito, a jurisprudência teria de ser entendida como um procedimento de discussão de problemas que, como tal, é objeto da Ciência do Direito. A tentativa seria, então, a de permanecer consciente disto em todos os seus pormenores, configurando este procedimento de modo mais claro e completo e o mais possível conforme a sua natureza. Para isto, seria imprescindível ao menos levar a tópica em conta e tentar desenvolver uma suficiente teoria da práxis.64

63 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 14 da edição alemã e p. 17-18 da edição brasileira. 64 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 14 da edição alemã e p. 18 da edição brasileira.

A questão é que se estava desconsiderando a estrutura desse saber que

é a Jurisprudência, tentando adequá-lo à força aos parâmetros de outros modelos de

saber, como o das ciências exatas e naturais. Se a pretensão era a de resolver os

problemas que esse tipo de saber apresentava, então parece ao autor que a tentativa

não foi bem sucedida, o que reforça e confirma a sua impressão de que havia algo

errado com a pesquisa de base que se fazia no campo jurídico, conforme

mencionávamos, na medida em que – agora podemos compreender melhor – ela

insistia em predicar as características de um sistema dedutivo completo, coerente e

preciso a um saber que a esse tipo de sistema não se moldava.

Essa afirmação pode ser amparada na constatação de que o autor

conhecia as pesquisas lógicas suas contemporâneas, que afirmavam, grosso modo, a

necessidade de uma formalização absoluta, por assim dizer, para que um sistema

dedutivo pudesse ser viabilizado e apresentasse as características da completude e da

não contradição.

Como ressalta Bochenski, a ligação da semiótica de Morris com as

pesquisas da lógica matemática conduziram à definição de métodos exatos com os

quais se pode demonstrar que um sistema dado está livre de contradição, que seus

axiomas são independentes entre si (ou seja, nenhum deles pode ser derivado de

outro) e que é completo, bem como métodos rigorosos para a axiomatização dos

sistemas65.

Ao longo do parágrafo 7º de Topik und Jurisprudenz Viehweg mostra

quais os passos necessários para que se possa chegar a um sistema dedutivo no

direito66. Retomaremos oportunamente esse tema, mas, por ora, vale ressaltar que são

utilizados como referência, ao longo do referido parágrafo, David Hilbert e Rudolf

Carnap. O primeiro é citado por Bochenski como representante de uma vertente

formalista na pesquisa lógica, por dedicar-se exclusivamente aos sistemas não

65 Cfe. BOCHENSKI, op. cit., p. 278-279. Veja-se também a exposição de Klug sobre o método axiomático. Cfe. KLUG, Ulrich. Lógica Jurídica. 2. reimpressão. Tradução de J. C. Gardella. Bogotá: Temis, 1998, p. 15-25. 66 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 81-94 da edição alemã e p. 74-85 da edição brasileira.

contraditórios67. O segundo é um dos importantes autores da pesquisa lógica e

epistemológica ligada à semiótica na sua vertente mais formalista ou analítica68.

Não se trata, dessa maneira, de uma recusa do sistema dedutivo e de

uma crítica velada às afirmações da teoria jurídica sem um embasamento. Um dos

primeiros trabalhos que utiliza os resultados das pesquisas lógico-matemáticas

aplicando-os ao direito é o trabalho de Ulrich Klug69, citado por Viehweg, que a ele

faz referência em diversas passagens de Topik und Jurisprudenz.

O que ocorre, na opinião de Viehweg é que a própria estrutura da

Jurisprudência, pela sua vinculação com a direção de comportamentos, com o

regramento da vida em sociedade, leva à impossibilidade de uma formalização

adequada e, consequentemente, de um sistema dedutivo.

A função que a Jurisprudência desempenha na sociedade está

implicada também na sua estrutura, e isso dificulta a formalização. Se ela for

transformada numa linguagem artificial, que permita o controle rigoroso da

derivação pela sua univocidade, não servirá para orientar a convivência,

precisamente porque necessitaria ser traduzida em linguagem natural para exercer

essa função. Em contrapartida, expressando-se em linguagem natural haverá sempre

imprecisão e dificuldades que exigem interpretação. A interpretação perturba a

ordem de um sistema dedutivo, a não ser que se possam convencionar regras exatas

de significação dos símbolos; e isso somente é possível numa linguagem

formalizada, na qual se atribua um significado para cada símbolo utilizado.

A questão da cientificidade do trabalho do jurista agora desemboca na

pergunta pela estrutura da Jurisprudência, por seus procedimentos e pela natureza

destes, bem como pela vinculação existente entre essa estrutura e sua função social.

67 Cfe. BOCHENSKI, op. cit., p. 280. 68 De acordo com Manfredo Araújo de Oliveira, Carnap foi, com Frege e Russell, um dos grandes lógico-matemáticos de nosso século. Seus interesses, no entanto, eram também epistemológicos e ele perseguia o ideal de utilizar a nova lógica para toda a filosofia, levando adiante o ideal da exatidão e precisão do saber filosófico, que não deveria ser inferior ao da matemática. Além disso, conforme o referido autor, Carnap assumiu o programa “formalista” de Hilbert. Cfe. OLIVEIRA, M. A. Reviravolta Lingüístico-Pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 71-91. 69 Não só o trabalho de Klug é citado, como também o autor era um dos interlocutores de Viehweg, que a ele se referia como “meu amigo lógico”, de acordo com Ferraz Jr., que com Viehweg conviveu durante seu doutoramento na Universidade de Mainz, entre 1965 e 1968, conforme relata na sua apresentação à edição brasileira de Topik und Jurisprudenz.

E é precisamente por isso que a comparação de Vico entre os estudos antigos e

modernos havia sido um insight interessante para Viehweg. O mote central da

dissertação de Vico que o autor utiliza, como vimos, é uma comparação entre os

modos de estudo e suas vantagens e desvantagens, levantando a pergunta pela

consequência da transição histórica entre eles e chamando atenção para aquilo que se

perdeu com a predominância do modo de estudo dos modernos.

A pergunta pela cientificidade transformou-se na pergunta pela

estrutura de um campo de saber, e é essa, precisamente, uma das questões centrais

que movem a obra, tomada em seu conjunto, de Theodor Viehweg70. Ela significa,

ademais, a busca de uma resposta distinta ao impasse que mencionamos acima e que

desconsiderava a natureza (e a estrutura) do saber jurídico, impondo-lhe a falsa

solução de adequar-se aos padrões das ciências exatas e naturais ou reconhecer-se

como irracional ou arbitrário.

O recurso à tópica representa, se pensado nesse quadro, a tentativa de

encontrar e fundamentar outros parâmetros de racionalidade, agora fundados no

discurso e na discutibilidade, e não é uma proposta exclusiva de Viehweg, mas pode

ser encontrada também em outros autores, seja no campo do Direito, seja no da

ciência política e outras áreas afins. Procura-se reabilitar a filosofia prática e a ideia

de uma racionalidade para além da exigida nas matemáticas e nas ciências naturais,

e, para tanto, recorre-se à retórica e à tópica71.

A reabilitação da filosofia prática encontra também seu sentido nas

dificuldades e nos impasses que o modelo de ciência e de racionalidade gerado a

partir dos séculos XVI e XVII passa a encontrar para justificar suas pretensões,

mesmo naqueles domínios nos quais sua correção parecia inquestionável, como as

ciências naturais e exatas. Percebe-se, diante das dificuldades, que a produção dos

conhecimentos científicos é guiada por regras, hábitos e uma espécie de senso

70 Garrn identifica dois temas básicos presentes na obra posterior a Topik und Jurisprudenz. O primeiro gira em torno da compreensão geral de Viehweg sobre a filosofia do direito como pesquisa de base (grundlagenforschung), na sua ligação com a dogmática jurídica e com a praxis do direito, assim como a sua importância para a formação jurídica. E o segundo, como em Topik und Jurisprudenz, é a estrutura argumentativa do pensamento jurídico que orienta para a tomada de decisão. Cfe. GARRN, op. cit., p. 9. 71 Cfe. GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madrid: Civitas, 1988, p. 19-41.

comum partilhado entre os especialistas, cuja estrutura interfere na objetividade e na

comprovação dos enunciados científicos. A verdade da ciência pode também ser

vista como produção de uma comunidade, dentro de determinados parâmetros72.

Nesse sentido, ela é fruto de uma práxis, e o problema que colocávamos a partir de

Vico no item 1 deste Capítulo volta a fazer sentido.

A pretensão cartesiana de um conhecimento desvinculado da situação

de sua produção e de seus produtores encontra severas dificuldades para se sustentar

e torna novamente palpável a discussão sobre a relação entre a teoria e a praxis,

especialmente no sentido de que a investigação científica produtora de teorias é, ela

mesma, uma praxis. Isso significa que a estrita separação entre os âmbitos da ciência

e da retórica pode ser questionada na busca por uma compreensão mais abrangente

da racionalidade e do conhecimento.

Vejamos com mais vagar como podemos conceber o modelo moderno

de ciência ao qual nos referimos e quais as suas dificuldades naquelas áreas em que

foi historicamente gestado, para, então, retomarmos a discussão do conhecimento

jurídico a partir da proposta de Theodor Viehweg.

72 Como, por exemplo, sustenta KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5. ed. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2000, especialmente p. 219-244.

CAPÍTULO II

O Modelo Moderno de Ciência e a Investigação de Viehweg

1. As Características Básicas do Modelo Moderno de Ciência

Conforme vimos, a problemática que serve de base ao trabalho teórico

de Theodor Viehweg está intrinsecamente ligada às pretensões da ciência moderna e

ao seu questionamento. Para visualizar melhor em que consistem tais pretensões, será

exposto um modelo que corresponde, em traços largos, à caracterização que a ciência

moderna faz de si mesma.

Nesse sentido, é de se ressaltar que não se pretende oferecer uma

abordagem histórica ou sociológica, nem discutir aprofundadamente os problemas

levantados na filosofia da ciência contemporânea. O intuito é apenas o de salientar

melhor o que nos parece ser o pano de fundo sobre o qual podemos compreender a

problemática que estrutura essa investigação e que está vinculada ao que se

convencionou denominar redescoberta ou reabilitação da retórica e da filosofia

prática.

Se partirmos das qualidades que a imagem tradicional de ciência

atribui a si mesma – que é certa, infalível, universal e objetiva –, existem boas razões

para chamá-la de ciência como demonstração. Essa imagem é articulada a partir de

dois componentes, os quais devem ser examinados separadamente, embora estejam

estreitamente vinculados entre si: o epistêmico e o metodológico73.

O componente epistêmico funda-se na ideia de que a ciência é baseada

em dados certos por intermédio dos quais adquirimos conhecimento da realidade. A

proveniência desses dados é concebida segundo diferentes propostas teóricas. Eles

podem ser experimentais, como para Galileu, ou puramente cognoscitivos, como para

Descartes, apenas para citar dois exemplos bastante emblemáticos74.

73 Cfe. PERA, Marcello. The Discourses of Science. Tradução de Clarissa Botsford. Chicago: University of Chicago Press, 1994, p. 2. 74 Cfe. PERA, op. cit., p. 2.

Em ambos os casos, os dados garantem que o conhecimento científico

compreenda a realidade, ou porque a realidade revela-se a si mesma por intermédio de

um processo começado com a pura percepção, ou porque a estrutura da realidade

manifesta-se por uma cadeia de inferências extraída dos puros princípios da mente75.

O componente metodológico integra o epistêmico. Ele estatui que a

ciência gera conhecimento ao fazer uso de um método que permite processar

corretamente os dados. Tal como os dados, o método pode ser entendido de diferentes

modos. Ele pode ser um organon para inferir conclusões cognitivas de observações,

como em Bacon; ou um conjunto de regula philosophandi que estabelecem como

conduzir uma inquirição, como em Newton; ou uma libra para pesar os graus de

probabilidade de hipóteses rivais, como em Leibniz; e assim por diante. Em cada

caso, o método garante que, se a informação é correta, então a conclusão também o

será76.

Esse segundo aspecto é mais importante historicamente do que o

primeiro e deve-se observar que, para todos os autores acima citados, o método é um

caminho para chegar à verdade, mas também, e por isso mesmo, para dirimir

definitivamente controvérsias, na medida em que garante acesso à verdade. Diante da

verdade dos fatos, não há controvérsia que subsista, porque os entendimentos devem

se curvar ante sua evidência77.

Após uma série de expressivos sucessos, o primeiro pilar da ciência

como demonstração, o componente epistêmico, começa a desintegrar-se sob o peso de

sua própria construção. O nascimento da geometria não euclidiana, a crise dos

fundamentos da matemática e as grandes inovações teóricas – como a teoria da

relatividade e a teoria quântica – mostraram que mesmo os mais claros e distintos

conceitos (espaço, tempo, causa, substância e número, por exemplo) estavam sob

revisão e nem mesmo as mais puras percepções (visão, ou figuras e movimento)

existiam sem distorção78.

75 Cfe. PERA, op. cit., p. 2. 76 Cfe. PERA, op. cit., p. 2. 77 Nesse sentido PERELMAN e TYTECA, op. cit., p. 1-4. Podemos aqui novamente lembrar as dificuldades de Hobbes para estender esses pressupostos à política, conforme discutimos no Capítulo 1, porque, diante da evidência, não deveria ser necessário nenhum tipo de argumento e, por isso mesmo, nenhuma retórica. 78 Cfe. PERA, op. cit., p. 3.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:12Comment: Nota ao editor: referência ao capítulo I.

De um lado, filósofos renderam-se ao enfraquecimento do componente

epistêmico da ciência como demonstração e fizeram um caminho descendente, que

pode ser assim caracterizado: da certeza à verdade, da verdade à probabilidade, da

probabilidade à verossimilhança. De outro lado, apesar de mudar a posição do método

– do contexto de descobrimento ao contexto de justificação –, as ideias centrais

defendidas continuaram as mesmas79.

As teses que continuaram sendo defendidas podem ser

esquematicamente compreendidas do seguinte modo:

a) existe um universal e preciso método que demarca ciência de outras

disciplinas intelectuais;

b) a aplicação rigorosa desse método garante a realização dos

propósitos da ciência;

c) se a ciência não possuir um método, não poderá ser considerada um

esforço cognitivo e racional80.

Para fins argumentativos, e procedendo a uma generalização, pode-se

chamar qualquer projeto de filosofia da ciência baseada nessas teses de um projeto

cartesiano, e o impasse colocado na terceira tese, uma “síndrome cartesiana”81.

Vejamos mais detalhadamente como ele se estrutura.

Nessa concepção, as ideias-chave sobre a ciência podem ser assim

resumidas: a) ciência é um discurso bem estruturado; b) o método faz da ciência algo

que pode ser ensinado; c) o método pode ser usado como um critério de demarcação

entre o que é científico e verdadeiro e o que não o é. Em adição a essas três teses,

outras duas devem ser consideradas: d) o método da ciência é universal e único; e)

esse método consiste numa bem definida e apropriada sucessão de etapas82.

79 Cfe. PERA, op. cit., p. 3-4. Também no que diz respeito à tópica e seu papel na Jurisprudência, essa distinção entre contexto de descobrimento e de justificação foi pretendida e Viehweg foi criticado por não expô-la nem pronunciar-se sobre ela, como relata DEGADT, op. cit., p. 26-27. 80 Cfe. PERA, op. cit., p. 4. 81 Cfe. PERA, op. cit., p. 4. 82 Cfe. PERA, op. cit., p. 14.

Se começarmos pela letra “d”, que nos parece mais importante nesse

contexto, encontramos pelo menos três ideias centrais que estão contidas na definição

de método científico. Em primeiro lugar, o método científico é um procedimento, uma

estratégia global que indica uma ordenada série de movimentos, estágios ou

operações a serem realizadas para que o cientista atinja os objetivos da ciência. Em

segundo lugar, método científico é um conjunto de regras ou normas que governam

cada etapa do procedimento. Em terceiro lugar, método científico é um conjunto de

técnicas conceituais ou materiais de realização dos movimentos requeridos pelo

procedimento como, por exemplo, quando se fala em métodos ou técnicas de

observação, classificação, cálculo, condução de experimentos etc.83. Vejamos como

essas ideias reagem a um exame detalhado.

2. Os postulados do modelo moderno de ciência diante de prática científica

Em relação ao primeiro aspecto, se estamos procurando uma

caracterização exata de procedimento, devemos estabelecer alguns requisitos e, então,

tentar verificar como esses requisitos são cumpridos na prática científica em alguns

casos paradigmáticos84. Assim, teremos base para criticar ou aceitar a definição de

método do modelo cartesiano de ciência.

Os requisitos podem ser assim considerados:

a) adequação: o procedimento proposto deve salvar casos reconhecidos

como exemplares para a prática científica;

83 Cfe. PERA, op. cit., p. 15. 84 Pera utiliza como exemplar a argumentação de Galileu, que é também objeto das considerações de Feyerabend sobre o uso do método na investigação científica. Vide detalhadamente em PERA, op. cit., p. 15-19 e em FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Trad. de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio d’água, 1993, p. 57-143.

b) precisão: o procedimento proposto deve fornecer uma discriminação

sem ambiguidade entre propostas de pesquisa que o satisfaçam e as que

não o satisfazem.85

Comecemos pelo requisito da adequação. É difícil pretender que uma

única resposta possa ser dada ao problema, especialmente se olharmos a história da

ciência. Significativas mudanças científicas caminharam paulatinamente com

inovações metodológicas e, visto que procedimentos são dirigidos para específicos

propósitos, uma mudança nos propósitos pode alterar também o procedimento86.

Diferentes épocas têm diferentes métodos, e diferentes disciplinas, numa mesma

época, podem ter diferentes métodos também. Sejamos, contudo, otimistas e

suponhamos que um único adequado procedimento pode ser encontrado para todos os

modelos de prática científica87.

Se tomarmos como exemplos paradigmáticos textos de práticas não

científicas, como a astrologia ou as práticas medicinais não reconhecidas88, fica claro

que os diversos procedimentos tradicionalmente propostos como científicos são

altamente imprecisos e não permitem diferenciar práticas científicas de outras

consideradas não científicas89.

A conclusão mostra-se paradoxal. De acordo com os procedimentos

elencados para a investigação científica, deveria ser possível, conforme propunham as

teses do modelo cartesiano de ciência, traçar uma clara linha divisória entre

conhecimento científico e não científico. Todavia, as receitas para o procedimento

científico mostraram-se tão imprecisas que se tornam adequadas para caracterizar os

procedimentos de investigações geralmente consideradas não científicas90.

Podemos nomear esse paradoxo de paradoxo do procedimento

científico e expressá-lo nos seguintes termos: dado um adequado procedimento

85 Cfe. PERA, op. cit., p. 15. 86 Cfe. FEYERABEND, op. cit., p. 25. 87 Cfe. PERA, op. cit., p. 17-18. 88 Vide o exemplo contido em PERA, op. cit., p. 18-19 e a defesa do uso de todas as fontes possíveis de alternativas teóricas em uma investigação (inclusive todas as “não científicas”) em FEYERABEND, op. cit., p. 51-58, em especial seu exemplo do sistema vodu, tido e havido como um caso claro e clássico de conhecimento não científico. 89 Vide a discussão pormenorizada dos procedimentos mais usuais e seus resultados em PERA, op. cit., p.16-19. 90 Cfe. PERA, op. cit., p. 19.

científico, é possível encontrar investigações consideradas pseudocientíficas que

satisfaçam esse procedimento91.

Esse paradoxo é alarmante. Ele mostra que o método – no sentido de

procedimento – não pode tornar-se um critério de sucesso para a demarcação entre

ciência e pseudociência, seja porque não é suficientemente universal, seja porque não

é suficientemente preciso92.

Se o procedimento não pode garantir a consecução dos objetivos da

ciência, vejamos o que ocorre com as técnicas. À primeira vista, recorrer às técnicas

para estabelecer qual disciplina ou pesquisa possui um status científico parece

promissor93. Para fazer isso, teríamos que ser capazes de encontrar, se não uma regra

metodológica geral de demarcação, ao menos critérios disciplinares para domínios

específicos. Poder-se-ia definir, por exemplo, a virtude científica da física pela sua

ligação com a matemática. Embora especialmente atrativas, essas ideias não são

capazes de nos levar muito longe94. Vejamos o porquê.

Existem dois tipos de técnicas: as específicas e dependentes do

domínio a que se destinam; e as gerais, que podem ser total ou parcialmente

indiferentes ao domínio a que se aplicam – especialmente técnicas matemáticas. Tão

longe quanto ao primeiro tipo concerne, não podemos obrigar uma disciplina a adotar

uma ou mais técnicas específicas, quando elas são instrumentos inventados pelos

cientistas durante suas pesquisas e frequentemente trocadas durante o

desenvolvimento destas últimas. Ligar o status científico de uma disciplina a uma

técnica particular pode significar travar o progresso dessa disciplina. Sobre o segundo

tipo, embora ele, por definição, garanta objetividade e rigor, é arbitrário manter que

disciplinas como a biologia, economia e geologia tornam-se ciências apenas quando

se vinculam com a matemática95.

Parece claro, portanto, que a categoria das técnicas admissíveis numa

investigação está em aberto e não há uma razão especial para delimitarmos, de modo

absoluto, e em princípio, essa abertura. É também claro que o real problema no que

91 Cfe. PERA, op. cit., p. 19. 92 Cfe. PERA, op. cit., p. 19. 93 Vide um conjunto de exemplos textuais em PERA, op. cit., p. 20-21, nos quais disciplinas como a homeopatia, a psicanálise e a psicoterapia são repreendidas por não utilizarem técnicas de observação e de coleta de dados utilizadas nas disciplinas biomédicas. 94 Cfe. PERA, op. cit., p. 21. 95 Cfe. PERA, op. cit., p. 21. Cfe. também FEYERABEND, op. cit., passim.

concerne à técnica é aquele do critério de acordo com o qual ela é usada. Como

instrumentos, elas são boas ou más de acordo com os propósitos e os modos como são

utilizadas96.

Se decidirmos generalizar essa dupla constatação, chegamos a um

outro paradoxo, que podemos chamar de paradoxo das técnicas científicas, e que

pode ser assim especificado: uma disciplina científica pode legitimamente adotar as

mesmas técnicas utilizadas por disciplinas pseudocientíficas97.

Resta-nos, ainda, examinar o que ocorre com o derradeiro componente

de nossa definição cartesiana de método, isto é, investigar o que se dá com as regras.

Um conjunto de regras metodológicas constitui o que podemos chamar de um código

científico. Embora numerosas, elas podem ser reduzidas a três fundamentais98:

a) AR - Regra de aceitação (acceptance rule): uma pretensão cognitiva

deve satisfazer tais e tais requisitos para ser reconhecida como parte de

um corpo de conhecimentos científicos.

b) RR – Regra de rejeição (rejection rule): uma pretensão cognitiva

pode ser rejeitada por tais e tais razões.

c) PR – Regra de preferência (preference rule): uma pretensão

cognitiva será preferida se contiver tais e tais propriedades99.

A primeira questão que aparece é como preencher essas cláusulas que

ficam em aberto, e o meio mais adequado é verificar como uma investigação

científica procede a esse respeito. Examinando o paradigmático trabalho de Galileu,

fica patente a imprecisão das regras que deveriam guiar a investigação científica e

legitimar seus resultados como aceitáveis e verdadeiros100.

96 Cfe. PERA, op. cit., p. 21. 97 Cfe. PERA, op. cit., p. 22. 98 Cfe. PERA, op. cit., p. 23. 99 Cfe. PERA, op. cit., p. 23. 100 Vide a análise detalhada das regras do código científico e sua confrontação com a investigação de Galileu em PERA, op. cit., p. 22-28. Analisada a imprecisão a partir do discurso científico de Galileu, vemos que ele defende um rigor procedimental e sua prática científica é outra. Ele declara expressamente que um único experimento contrário à hipótese copernicana deveria levar à sua rejeição. Todavia, quando uma observação coloca dúvidas sobre a hipótese, rapidamente argumenta,

Surge, então, um outro paradoxo. Trata-se do paradoxo das regras

científicas, e podemos assim especificá-lo: dadas quaisquer regras metodológicas,

existem sempre investigações científicas nas quais elas são violadas101.

A lição que podemos aprender desse exame é que cientistas trabalham

com regras vagas e reivindicam seu direito de abandoná-las quando a situação de

investigação parece requerê-lo102. Isso significa que obtivemos, ao fim e ao cabo

desse percurso, o paradoxo do método científico: a ciência é caracterizada pelo

método científico, mas uma caracterização precisa demais desse método destruiria a

ciência103.

Esse paradoxo expressa uma limitação intrínseca para cada código

científico, mais ou menos como um princípio da indeterminação metodológica:

adequação e precisão são duas propriedades do método científico, cujos produtos não

podem ser levados além de certos limites104.

Os resultados sugerem, assim, que a primeira tese do projeto cartesiano

– existe um universal e preciso método que demarca ciência de outras disciplinas

intelectuais – não pode ser assumida. Quando foi submetida à análise e comparada

com exemplos significativos da prática científica, a ideia de um método universal e

preciso para distinguir ciência e não ciência mostrou-se não muito realista e talvez até

perniciosa ao progresso científico105.

A prática científica mostra que existe mais de um procedimento e mais

de um conjunto de regras, cada um com diferentes níveis de adequação e precisão.

Mais ainda, vimos que as regras metodológicas, tão caras ao projeto cartesiano,

contêm significativas lacunas devido à sua vagueza, e se essas só podem ser

preenchidas por decisões, então a segunda tese do projeto cartesiano (a aplicação

estabelecendo a distinção entre anomalia e caso-padrão que implique rejeição da teoria. Cfe. PERA, op. cit., p. 26, Galileu expressamente se recusa a rejeitar a hipótese explicativa que embasa o sistema copernicano quando Ticho Brahe faz observações sobre a órbita de Vênus que põem problemas àquela teoria. Vide também a esse respeito FEYERABEND, op. cit., p. 57-143, que vai mais longe, afirmando que Galileu fez uso não só de hipóteses ad hoc como também do que chama de aproximações ad hoc, como de resto o fizeram inúmeros cientistas em momentos cruciais da história da ciência. 101 Cfe. PERA, op. cit., p. 28. Também FEYERABEND, op. cit., p. 29-39. 102 Cfe. PERA, op. cit., p. 28. 103 Cfe. PERA, op. cit., p. 28. 104 Cfe. PERA, op. cit., p. 28. Cfe. FEYERABEND, op. cit., p. 39: “...todas as metodologias, mesmo as mais óbvias têm os seus limites”. 105 De acordo com Feyerabend exigir que a ciência se estruture em torno de um método estrito e único inviabilizaria seu desenvolvimento, e os seus sucessos são justamente fruto da criatividade que quebra as amarras metodológicas. Cfe. FEYERABEND, op. cit., p. 40-50.

rigorosa do método garante a realização dos propósitos da ciência) também deve ser

recusada106. Coloquemos estas constatações em um horizonte mais amplo de

discussão.

3. O questionamento das pretensões do modelo moderno de ciência e a

reabilitação da filosofia prática

Quando o componente epistêmico estava definitivamente em crise, a

nova filosofia da ciência começou a atacar o segundo componente – metodológico.

Como resultado desse ataque, as duas primeiras teses do projeto cartesiano foram

rejeitadas.

A primeira – existe um universal e preciso método que demarca ciência

de outras disciplinas intelectuais –, porque a ideia de um método que contenha firmes,

imutáveis e absolutos princípios para conduzir o empreendimento científico coloca

consideráveis dificuldades quando confrontada com os resultados da pesquisa

histórica, conforme vimos. A segunda – a aplicação rigorosa desse método garante a

realização dos propósitos da ciência –, porque a própria pesquisa histórica mostrou

que mesmo o melhor projeto científico foi realizado precisamente porque alguns

pensadores decidiram não se vincular a certas regras metodológicas óbvias, ou porque

eles intencionalmente as quebraram, como discutimos no item 1107.

O ponto crucial é que, enquanto as duas primeiras teses do projeto

cartesiano estavam sendo rejeitadas, alguns expoentes da nova filosofia da ciência

conservaram a terceira – se a ciência não possuir um método, não poderá ser

considerada um esforço cognitivo e racional – e a transformaram, de uma condição

contrafactual, em uma afirmação assertórica108.

Dito de outra forma, a tese condicional de que, se a ciência não tem um

método, ela não pode ser um empreendimento cognitivo racional, é agora entendida

106 Cfe. PERA, op. cit., p. 29. 107 Cfe. PERA, op. cit., p. 5. Cfe. também FEYERABEND, op. cit., p. 29 e a sua análise da obra de Galileu, p. 57-143. 108 Cfe. PERA, op. cit., p. 5.

como uma afirmação: a ciência não tem um método ou o seu método não tem as

características que ela lhe atribui, logo, ela não pode pretender ser uma forma

diferenciada de conhecimento.

Do mesmo modo como na discussão que aparece ao longo dos itens

anteriores, quando procuramos evidenciar como Viehweg buscou a sua problemática

específica, inclusive como resposta ao impasse entre racionalismo e irracionalismo,

aqui nos encontramos diante de um fenômeno similar. Ao colocar-se o dilema entre a

presença absoluta de um método e sua negação, ressaltam justamente as dificuldades

de se lidar com a ideia de outros modos de fundamentação racional que não o

axiomático-dedutivo. Qualquer outro elemento que pareça fazer parte de um processo

de discussão, como juízos valorativos, propaganda ou hipóteses logicamente

inconsistentes, como afirma Paul Feyerabend109, significa, de pronto, a acusação de

irracionalismo. Dizer, como o faz Alan Gross110, que a atividade de pesquisa

científica pode ser entendida enquanto práxis, na medida em que os pesquisadores

precisam apresentar suas razões e persuadir seus auditórios de que elas são aceitáveis,

não necessariamente significa dizer que o empreendimento científico é irracional

porque depende da persuasão111.

Nesse sentido, como argumenta Toulmin112, ressaltando o que

vínhamos chamando de síndrome cartesiana, o irracionalismo significa rejeitar o

racionalismo de base cartesiana por argumentos que são eles próprios cartesianos. Se

não pode haver uma razão universal que construa um conhecimento verdadeiro sobre

eventos necessários, então não há nenhuma razão. Mas essa dificuldade está na base

mesmo da concepção moderna e de origem cartesiana de conhecimento e de

racionalidade.

Se pudermos esquematizar tal concepção em torno de uma ideia básica,

então podemos dizer que, no interior desta, a unidade de sentido ou de análise

109 FEYERABEND, op. cit., passim. 110 GROSS, Alan. The Rhetoric of Science. 2. ed. Cambridge/London: Harvard University Press, 1996, p. 3-20. 111 Nesse sentido, é também interessante a discussão sobre o papel da decisão na constituição do conhecimento científico. Vide PERELMAN, Chaïm. O Papel da decisão na teoria do conhecimento. In Retóricas. Tradução de Maria E. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 347-357. 112 Cfe. TOULMIN, Stephen. Racionalidade e Razoabilidade. In CARRILHO, Manuel Maria (org.). Retórica e Comunicação. Porto: Asa, 1994, p. 29.

filosófica, de conhecimento propriamente dito, é a proposição, e não a elocução.113 O

que se busca é a exibição do conteúdo do conhecimento humano por intermédio

dessas proposições enquanto sistema de princípios formais e universais114.

A ideia-chave é a de que deveria ser possível encontrar uma verdade

que não fosse discutível e que pudesse ser aceita, por evidente, por todos os seres

humanos dotados de razão. É nesse sentido também que Descartes entendia que o

conhecimento, para ser indubitável, deveria ter como objeto aquelas naturezas

simples, conhecidas por si mesmas e cujo conhecimento, por ser claro, nada

contivesse de falso. Não há espaço para o verossímil, apenas para o verdadeiro, e este

o é precisamente por basear-se em evidências que não possam ser negadas115.

Se tomarmos Wittgenstein como o autor emblemático da perspectiva

isomorfista da linguagem na qual essa perspectiva cartesiana desemboca e se

cristaliza, veremos as bases dessa concepção em dois pressupostos: as peças

constitutivas do conhecimento são as experiências dos indivíduos e essas experiências

são organizadas em conceitos descontextualizados. O conhecimento é, assim,

elaborado a partir das experiências individuais, por intermédio de processos lógicos,

pelos quais se constroem sistemas dedutivos116.

Se a função primordial da linguagem é representar a realidade,

elocuções expressivas da ética ou da estética não podem ser consideradas

representativas de fatos e, por isso, não possuem sentido, tecnicamente falando. As

elocuções estão ligadas muito mais a comportamentos do que a proposições, e são

menos importantes117.

A grande virada que também embasa a reabilitação de uma filosofia

prática acontece precisamente no momento em que o próprio Wittgenstein deixa de

113 Sobre a distinção entre “proposição” e “elocução” como preocupações filosóficas, diz TOULMIN, op. cit., p. 20: “...quando o século XX está a terminar, a atenção da filosofia profissional mudou por fim, deslocando-se do estudo de ‘proposições’ intemporais, para a preocupação com ‘elocuções’ feitas em momentos particulares, em conjuntos de circunstâncias particulares, visando interesses humanos particulares”. 114 Cfe. TOULMIN, op. cit., p. 21-22. Vide também PERELMAN, Ch. Filosofias primeiras e filosofia regressiva. In Retóricas. Tradução de Maria E. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 137-139. 115 Cfe. PERELMAN, op. cit., p. 158-161. Também PERA, op. cit., 3-4 ressalta esse aspecto na concepção cartesiana. 116 Cfe. TOULMIN, op. cit., p. 24-25. 117 Cfe. TOULMIN, op. cit., p. 26-27. Sobre Wittgenstein, vide STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. Vol. 1. Cap. XI, traduzido por L. A. Marcuschi e L. Hegenberg. São Paulo: EPU, 1997, p. 401-524.

atribuir a primazia às proposições em favor dos jogos de linguagem caracterizados em

termos de comportamento. Todos os jogos de linguagem adquirem sentido

contextualmente, em razão de sua inserção em formas de vida, e mesmo descrições

objetivas de fatos precisam ser reinterpretadas e contextualizadas de acordo com essa

ideia. Elas são apenas um tipo de jogo de linguagem118.

Além dessa mudança que altera radicalmente a perspectiva, outro

aspecto da virada teórica mencionada deve ser também ressaltado, pela sua

importância: o sentido não se produz no interior do mundo privado da experiência

pessoal, mas, sim, no interior do mundo interpessoal da interação pública119.

Torna-se necessário, agora, avaliar questões teóricas também do ponto

de vista de como os argumentos são apresentados e a que audiência são dirigidos, na

medida em que todo o conhecimento é reconhecido como produzido numa interação

que acontece em um contexto determinado; acontece, pois, em situação120.

É aqui que a antiga tradição retórica e, em particular, a tópica podem

ser buscadas para esclarecer de onde os intervenientes numa discussão buscam suas

premissas e seus posicionamentos, e como seu papel como interlocutores está

permeado por deveres éticos e pela sua inserção num determinado contexto. Mais do

que isso, toda afirmação pode e deve ser avaliada sempre em relação com esse

contexto retórico e somente uma prática prolongada pode afiançar sua relevância para

situações, circunstâncias, empreendimentos racionais e fins humanos particulares.

Essa transição das proposições universais e atemporais para as elocuções datadas e

circunstanciais está também a par da transição da teoria para a prática, da episteme

para a phronesis121.

A teorização não deixa, assim, de ser um tipo de prática dentre outras,

e seus fundamentos, enquanto prática, precisam ser esclarecidos. É também nesse

sentido que podemos entender agora melhor a proposta de Viehweg, na introdução de

Topik und Jurisprudenz, quando ele menciona a necessidade de se construir uma

118 Cfe. TOULMIN, op. cit., p. 26-27. Ressalte-se que Viehweg cita, ao elaborar uma lista de sugestões bibliográficas sobre o tema Tópica e Jurisprudência, as Investigações Filosóficas de Wittgenstein. 119 Cfe. TOULMIN, op. cit., p. 26-27. 120 É nesse sentido que Viehweg vai também questionar a pretensão dos sistemas dedutivos de afastarem a tópica. No mínimo, na escolha dos axiomas fundamentais ela continua presente. Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 82-83 da edição alemã e p. 77-78 da edição brasileira. 121 Cfe. TOULMIN, op. cit., p. 28-29.

“suficiente teoria da praxis”122. É preciso compreender como se dá o jogo de

linguagem que caracteriza a produção teórica no âmbito jurídico, ela mesma uma

prática. Os fundamentos de todo sistema de conhecimentos devem ser buscados e

explicados a partir daí, como produtos de um contexto.

A ideia que se torna mais clara a partir dessa perspectiva é a de que os

sistemas dedutivos não são capazes de uma autofundamentação, e, se sua correção

formal indica que a dedução ocorreu dentro dos parâmetros indicados como regras de

dedução, nada pode dizer sobre as próprias regras ou sobre os axiomas fundamentais.

Não há de per si algo de errado nisso, a não ser que se queira apresentar a dedução

como razão suficiente de correção que motive a aceitação da conclusão123.

É nesse sentido que Viehweg afirma:

En general, habrá que conceder que, cuando se busca una fundamentación que incluya la determinación de los axiomas, uno se encuentra, por así decirlo, automáticamente con la retórica. Posiblemente, en su desarrollo ulterior, ella es adecuada para retrotraer toda nuestra actividad intelectual a un contexto práctico, en el cual se vinculan las condiciones lógicas y éticas de esta actividad. Si esto es así, entonces toda argumentación tiene su última ratio en el método del argumentar.124

A questão colocada, portanto, é a de esclarecer como os produtos de

pensamento são gerados; é tomar o processo de construção intelectual, que ocorre na

situação discursiva de busca de um entendimento, como objeto central de pesquisa.

Em última análise, trata-se de tomar o processo de comunicação como objeto de

interesse teórico e, a partir dele, esclarecer a produção do conhecimento125.

A terceira tese do projeto cartesiano, que propunha justamente a opção

entre o método como característica da ciência ou a impossibilidade de considerá-la

122 Cfe. VIEHWEG, Topik und Jurisprudenz, p. 14 da edição alemã e p. 18 da edição brasileira. 123 De acordo com Toulmin, “...nos anos 90 poucos filósofos aceitam uma autovalidação dos sistemas dedutivos: reconhece-se que a questão de sua ‘correção’ tem menos a ver com a consistência interna que com a relevância para contextos específicos.” Cfe. TOULMIN, op. cit., p.27. Vide também PERELMAN, Filosofias primeiras e filosofia regressiva. In Retóricas, op. cit., p. 160-161. Esse problema está intrinsecamente vinculado com o questionamento das pretensões do modelo moderno de ciência e leva a perguntas interessantes sobre as estratégias retóricas de legitimação do conhecimento pelo apelo à sistematização dedutiva. Voltaremos a esse tema posteriormente. 124 Cfe. VIEHWEG, Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, na edição espanhola dos pequenos escritos, p. 172 e Notizen zur einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, na edição alemã, p. 197-198. 125 Cfe. VIEHWEG, Topik und Jurisprudenz, p. 115 da edição alemã e p. 104 da edição brasileira.

um empreendimento cognitivo racional, gerando o que Pera chamou de um “dilema

cartesiano”, pode agora ser afastada.

A discussão neste item, mostrando a mudança ocorrida no modo de se

encarar a relação teoria e praxis, bem como a revalorização da filosofia prática, nos

permite dizer também que o insucesso que levou à recusa das duas primeiras teses do

modelo cartesiano não implica necessariamente a ideia de que não haja nenhum tipo

de procedimento regrado na ciência e nem que ela seja um empreendimento não

racional.

Como toda forma de experiência organizada de acordo com objetivos e

valores, a ciência possui normas, hábitos, técnicas e práticas com as quais procura

atingir esses objetivos de acordo com os valores. As observações que fizemos até aqui

indicam apenas que todo código científico com suas regras, técnicas e procedimentos

pode ser adequado e preciso em algumas situações, mas não o é em todas, ou seja, não

pode ser generalizado e universalizado126.

Do mesmo modo que regras prudenciais indicam como nos comportar

em situações específicas – como guiar um veículo de modo adequado e seguro, por

exemplo –, as regras que compõem o quadro regulatório da prática científica estão

longe de ser absolutamente precisas e necessitam do julgamento do cientista que,

apoiado em sua formação profissional, decide quando e como uma teoria pode ser

considerada como bem testada, aceitável ou promissora127.

Cresce em importância, nesse contexto, a observação de Kuhn sobre o

papel e o peso das comunidades científicas na configuração de seu conhecimento

especializado. Conforme a noção de paradigma que esse autor propõe128, em larga

medida o conhecimento especializado de um determinado grupo de cientistas é

transmitido e configura a visão disciplinar de seus sucessores por intermédio da

resolução de problemas considerados exemplares, da absorção de uma mesma

literatura e do treinamento que isso representa. Um paradigma é, nesse sentido, o

126 Cfe. PERA, op. cit., p. 46. Vide também KUHN, op. cit., p. 219-244. 127 Cfe. PERA, op. cit., p. 46-47. 128 O próprio Kuhn admite que a sua noção inicial de paradigma continha uma circularidade que a fazia pouco explicativa (um paradigma é aquilo que uma comunidade partilha, e, ao mesmo tempo, a comunidade se identifica, porque seus membros partilham um paradigma) e procura precisar melhor a noção, separando a noção de comunidade científica daquela de paradigma propriamente. Ao fazê-lo, torna mais precisa a definição dos componentes do paradigma e salienta o papel que a formação e o treinamento científico desempenham em sua consolidação. Cfe. KUHN, op. cit., p.219.

conjunto de compromissos partilhados pelo grupo, e sua presença representa um

acordo sobre pontos básicos e uma relação de comunicação mais ou menos facilitada

por essa partilha129.

O fato de o projeto cartesiano de ciência, baseado estritamente na

importância do método, ter dificuldade de sustentar sua pretensão justamente por

causa dessa imprecisão que procuramos mostrar, talvez indique que devemos

transferir a ciência do campo da demonstração para o campo da argumentação e

procurar compreender seus procedimentos como um conjunto de fatores

historicamente construídos, implicados numa discussão entre interlocutores concretos

em situações igualmente determinadas130.

Se esses procedimentos, com suas regras, técnicas e valores, não

conseguem ser precisos a ponto de prescindir de decisões, então é razoável supor que

essas decisões precisam ser argumentadas e justificadas em relação a uma audiência.

Essa é a via pela qual podemos dizer que retórica e ciência confluem e que o discurso

científico, apesar de sua pretensão de objetividade e evidência, é retórico131. O que cai

por terra, por assim dizer, é a pretensão de que as afirmações científicas sejam

baseadas numa espécie de evidência que lhes garantiria a aceitação racional sem que

nenhum meio persuasivo esteja nisso implicado132.

Trata-se, portanto, num primeiro passo, de igualar os discursos133 pela

constatação de que todos são, na medida em que apelam para a comunicação com o

interlocutor, e procuram, desse modo, uma fundamentação, retóricos. Num segundo

passo, no entanto, deve-se pensar de que modo a ciência, enquanto discurso específico

e estruturado, é retórica134. Retornemos agora a Viehweg, a fim de verificar que tipo

de resposta ele procurou para as questões que vínhamos levantando.

129 Cfe. KUHN, op. cit., p. 225-244. 130 Cfe. PERA, op. cit., p. 47. 131 Cfe. PERA, op. cit., p. 51. Cfe. GROSS, op. cit., p. viii: “But rhetoric is more than window-dressing; it concerns the necessary and sufficient conditions for the creation of persuasive discourse in any field. Science cannot be excluded by fiat.” 132 Cfe. PERA, op. cit., p. ix: “Scientific discourse is rhetorical in a constitutive way, because scientific claims are accepted only if they persuade the audience (community) within which they are put forward and debated through an exchange of arguments and counterarguments whose outcome depends in no way on the passions and personal commitments of the protagonists, or on the style of the text.” 133 A esse respeito, vide a interessante comparação dos discursos científicos e políticos, em GROSS, op. cit., p. 21-32. 134 Cfe. GROSS, op. cit., p. 6.

4. A investigação de Viehweg e a sua resposta para a questão do conhecimento

jurídico

A análise empreendida até aqui levou à constatação de que o modelo

cartesiano não explica suficientemente a produção do conhecimento científico, nem

mesmo naqueles ramos que podem ser considerados seu “habitat” natural. Isso pode

significar, então, que a exigência constantemente feita à Jurisprudência nos últimos

séculos, de que seu saber não era científico, com base nesse modelo, deve ser

descartada.

O primeiro aspecto da alusão de Vico, de que o método cartesiano não

era apropriado para a sabedoria prática, mostrou-se, nesse sentido, não só adequado

como também pode ser generalizado para a própria produção teórica em outros ramos

do saber não assimiláveis à noção de sabedoria prática, na medida em que esses são

agora entendidos como condicionados pela sua praxis. Do mesmo modo como a teoria

jurídica parecia consistir um obstáculo à visão do que realmente a Jurisprudência

fazia, como vimos que Viehweg indica, parece-nos que o modelo cartesiano, mesmo

quando aplicado às ciências naturais e exatas, mascara a realidade da produção teórica

por intermédio de um conjunto de cânones que não se mostraram exequíveis. Pode-se

pensar, nesse sentido, que a duradoura afirmação de que o conhecimento científico é

obtido tão somente pelo uso de um método é já uma estratégia de legitimação

retórica135.

Essa constatação não resolve, contudo, o problema do conhecimento

jurídico e nem explica como o saber científico se constitui, como mencionamos

acima. Desvincular a Jurisprudência da exigência cartesiana de mostrar-se

dedutivamente para ser ciência não basta para explicar como esse saber secular se

organiza e que funções cumpre na sociedade. Dizer que a distinção entre ciência e

retórica não se sustenta ou que a ciência é também retórica, como outros discursos o

são, é apenas uma parte da resposta, e, se não pretendemos resolvê-la de modo cabal,

135 Cfe. PERA, op. cit., p. ix: “As for the cognitive value of science, just because rhetoric, in my sense, neglects ethos and pathos and concentrates on logos, does not imply that it is deceptive or weak; simply that it changes its source and way of legitimation.”

ao menos precisamos indagar como se pode conceber um modelo que permita pensar

também o saber jurídico, que é, afinal o nosso tema precípuo.

Precisamos, portanto, retornar à investigação de Viehweg e verificar

como essa temática se desdobra, resumindo o percurso que fizemos em nossa análise

do seu problema e esboçando os passos que seguiremos nos próximos capítulos.

Se sintetizarmos a discussão que até agora fizemos da investigação de

Viehweg, encontraremos o seguinte percurso: partindo de uma pergunta já conhecida

na filosofia e teoria do direito – a da cientificidade do trabalho do jurista –, chegamos

ao questionamento sobre a estrutura desse tipo de saber, que é a Jurisprudência. Como

saída para o impasse teórico e prático, encontramos o resgate da tópica e da retórica,

e, tendo-a como modelo, devemos pensar a questão da estrutura e da racionalidade do

saber jurídico a partir da noção de discutibilidade e de um outro tipo de

fundamentação, que não a oferecida pelos modelos baseados na sistematização

dedutiva.

Poderíamos, portanto, qualificar a delimitação que procuramos

encontrar, no próprio Viehweg, do problema que o movia, como a descoberta, por

assim dizer, de que a questão central talvez não estivesse onde primeiramente a sua

pergunta levava – se é ciência ou não –, mas na estrutura do próprio saber jurídico

enquanto praxis. Mais do que uma resposta afirmativa ou negativa à pergunta,

interessava verificar o que acontece se pensarmos a Jurisprudência – velha de séculos

– ao modo como ela veio sendo formada e assumirmos as consequências dessa sua

estrutura. Isso significa que a tarefa investigativa também teria de ser pensada de

outro modo: ao invés de uma teoria da ciência nos parâmetros cartesianos, uma teoria

da praxis que levasse em consideração as suas especificidades.

Se voltarmos, a partir desse raciocínio, para a questão da cientificidade,

questão essa inelutável nas sociedades moderna e contemporânea, que legitimam o

saber por qualificá-lo como científico, a tarefa acima referida assume uma dupla face:

é preciso verificar que tipo de ciência se está buscando e também responder como a

ciência que pudesse tomar essa praxis como objeto se relacionaria com ela, até

mesmo em termos de sua legitimação136.

136 Viehweg tinha consciência dessa questão da legitimação do saber e explicitamente a menciona quando trata da especificidade do pensamento dogmático, por exemplo em Problemas Sistémicos en la

Mais ou menos paradoxalmente, portanto, temos de retornar, ao menos

de certo modo, à pergunta pela cientificidade, embora recolocada sob outros

pressupostos e formando parte de um novo campo de saber – a investigação de uma

teoria da praxis –, mas que não consegue escapar, dadas as características da

sociedade moderna, de responder ou, ao menos, de se relacionar com a ciência.

É viável supor que as noções de pensamento dogmático e pensamento

zetético, propostas por Viehweg em um artigo de 1968137, sejam já suas indicações

sobre o modo como gostaria de conceber as respostas à tarefa de dupla face que

mencionávamos.

Com efeito, se verificarmos a construção argumentativa do referido

artigo, encontraremos a seguinte ordem: um breve comentário sobre a questão do

sistema no pensamento jurídico e sua importância na discussão atual, em seguida, a

constatação da multiplicidade de aspectos que os estudos no âmbito jurídico procuram

abranger, desde investigações dos ordenamentos jurídicos nacionais, a fim de se

verificar qual a solução mais justa para cada situação, até pesquisas puramente

especulativas no âmbito filosófico e científico. Mostrada a diversidade, a afirmação

que aqui interessa mais especificamente:

Como ya se ha dicho, parece no existir ninguna posibilidad de reunir esta pluralidad en un todo, a pesar de que no se discute que en todo esto existe una conexión temática. Desde luego, es discutible cómo ha de ordenarse y conectarse el cambiante manejo de esta temática, sin tener que introducir alguna concepción del mundo. Las clasificaciones en ciencias naturales y del espíritu, en ciencias reales e ideales, en explicativas y comprensivas, en ciencias del ser y del deber ser, y otras similares, tienen por cierto importancia para nosotros pero muestran una rigidez difícilmente evitable, que no permite una agrupación espontánea y sin reducciones de nuestra materia y deja que aspectos esenciales de nuestro ámbito del conocimiento aparezcan sólo marginalmente. Por ello, se utilizará aquí otra división de nuestra disciplina que parece responder más adecuadamente a la peculiaridad de nuestra ciencia y, posiblemente, tiene también una importancia general138.

Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 79 da edição espanhola dos pequenos escritos e Systemproblem in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 102 da edição alemã. 137 O artigo intitula-se Systemproblem in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung e foi publicado inicialmente em DIEMER, A.(ed.). System und Klassifikation in Wissenschaft und Dokumentation. Meisenheim am Glan, 1968. Pode ser encontrado na coletânea alemã às p. 97-106 e na espanhola, sob o título Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, às p. 71-85. 138 Cfe. Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 75 da edição espanhola e Systemproblem in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 99 da edição alemã.

Aparece e é desenvolvida, a partir dessas considerações, a distinção

entre dogmática e zetética, a qual é posteriormente relacionada com os diferentes

tipos de sistemas que ambos os modos de pensamento podem adquirir, de acordo com

a sua função.

Parece-nos claro que Viehweg estava buscando um modo de

compreender e organizar o saber jurídico que respeitasse as suas especificidades e que

partisse dos pressupostos que o seu resgate da tópica já colocara em evidência.

Essas características ficam evidentes no modo como ele principia por

desenvolver a distinção dogmática/zetética, colocando a questão do surgimento de

todo âmbito de conhecimento como âmbito temático enquanto um esquema de

perguntas e respostas no qual, à maneira da tópica, para um campo de problemas

suficientemente descritível são oferecidos como respostas topoi, os quais, de acordo

com procedimentos de prova a serem especificados, são rechaçados ou aceitos139.

Se fixarmos a atenção na última frase que aparece na citação acima,

podemos pensar ainda mais longe. Ao mencionar a importância desse modo diferente

de ver a divisão da disciplina jurídica, Viehweg deixa a sugestão de que talvez isso

seja também relevante para outros domínios temáticos. A indicação pode ser lida no

sentido de que o autor estava a procurar, à luz da tópica, uma maneira diferente de

entender a tarefa e os pressupostos científicos. Essa impressão pode ser confirmada se

nos voltarmos para o modo como é redigido o parágrafo 9º de Topik und

Jurisprudenz, bem como o cuidado tomado pelo autor em nele apontar a distinção

entre um modo de comunicação situacional e outro não situacional, bem como

evidenciar a importância de se investigarem as suas respectivas peculiaridades140.

Se essa proposta de interpretação pode ser aceita, então parece ser

possível afirmar que o tema inicial – a Jurisprudência é ou não uma ciência? – sofreu

uma completa inversão: que tipo de saber ou de ciência pode ser feito de modo a dar

conta da Jurisprudência e/ou de outras áreas do saber humano?

De uma posição de impasse, porque o saber do jurista nunca conseguia

estar à altura do ideal moderno de ciência, se está agora diante da sugestão de que o

139 Cfe. Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 75 e Systemproblem in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 99. 140 Cfe. p. 111-119 da edição alemã e p. 101-107 da edição brasileira. Note-se que o parágrafo 9º foi redigido para situar as novas pesquisas que o autor qualifica como “teoria retórica da argumentação”.

problema talvez esteja justamente nos pressupostos desse ideal matematizante e

naquilo que ele não é capaz de ver; e mais: a questão de que talvez a Jurisprudência

tenha algo a oferecer para quem queira pensar de um modo mais amplo o saber

humano141.

Parece-nos, portanto, que as indicações que Viehweg pode dar para

compreendermos e formularmos um modelo de conhecimento científico que não

padeça dos mesmos problemas que o cartesiano, e dê conta da especificidade do

conhecimento jurídico, estão estruturadas em torno de dois eixos básicos: a

recuperação da tópica e da retórica, e a distinção entre dogmática e zetética.

Quanto a esta última, sua exposição e discussão será objeto de nosso

próximo capítulo, quando empreenderemos a análise detalhada da proposta de

Viehweg. Quanto à recuperação da tópica e da retórica como auxílios para a

compreensão do conhecimento científico, fizemos breves considerações neste capítulo

e voltaremos ao tema oportunamente.

Vejamos, portanto, que respostas Viehweg elaborou para o problema

do conhecimento jurídico propriamente dito, principiando pela distinção entre

dogmática e zetética.

141 Veja-se a noção de onus probandi que é mencionada por Viehweg no final do parágrafo 9º de Topik und Jurisprudenz e sua sugestão de que isso é bastante compreensível para o jurista prático e cuja experiência pode ser útil para a construção de uma teoria retórica da argumentação. Também para Gadamer a experiência jurídica é paradigmática para toda hermenêutica. Vide GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Trad. de Flávio P. Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 482-505.

Filosofia do Direito Professora Dra. Claudia Rosane Roesler

Vigência: 2013/1

Unidade II – A Filosofia do Direito como Teoria da

Argumentação 1. Uma proposta alternativa: dogmática e zetética

2. A Filosofia do Direito e a Teoria da Argumentação

CLAUDIA ROSANE ROESLER

Theodor Viehweg e a Ciência do Direito: Tópica, Discurso, Racionalidade.

Segunda Edição. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.

PROIBIDA A REPRODUÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DA AUTORA E DO EDITOR.

CAPÍTULO III

Zetética e Dogmática

1. Pensamento dogmático e pensamento zetético

A distinção entre um modo de pensar dogmático e um modo de pensar

zetético é utilizada por Viehweg pela primeira vez em um artigo publicado em 19681

e é proposta como uma maneira de entender a complexidade gerada pela amplitude

que o fenômeno jurídico abrange e que coloca ao jurista tarefas que vão desde uma

análise de um determinado ordenamento jurídico até investigações de caráter

científico ou filosófico2.

Colocada dessa forma, e especialmente com essa terminologia, a

distinção não encontra paralelo na literatura jurídica desse período. Ao contrário, no

entanto, do que ocorreu com a recuperação da tópica, não alcançou notoriedade,

embora seja considerada um dos pontos importantes da contribuição de Viehweg.

Viehweg propõe que, na análise de como podem surgir âmbitos do

conhecimento como âmbitos temáticos, sejam esses âmbitos considerados como

esquemas de perguntas e respostas3. Constrói-se, assim, um campo de problemas

suficientemente descritível e se oferecem respostas que, de acordo com

1 O artigo é Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, na coletânea dos pequenos escritos em alemão, p. 97-106. Na coletânea espanhola, pode ser encontrado sob o título Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 71-85. 2 A referida distinção aparece em diversos contextos temáticos. Assim, em artigo de 1969, Viehweg a utiliza quando explora a relação entre dogmática jurídica e ideologia. Também em 1969, ao publicar um artigo em inglês, o autor a propõe como ponto de partida para compreender melhor o raciocínio jurídico e sua especificidade. A partir daí, aparece continuamente. Os artigos aqui mencionados são, respectivamente, Ideologie und Rechtsdogmatik, na coletânea alemã, p. 86-96, e, na espanhola, sob o título Ideologia y Dogmática Jurídica, p. 99-113, e Some Considerations concerning Legal Reasoning, p. 107-114 da coletânea alemã, ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Jurídico, p. 114-127 da coletânea espanhola. 3 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 100; e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 75.

procedimentos de prova a serem precisados, são finalmente aceitas ou rechaçadas4.

Em suas palavras:

Para estructurar un cierto campo del conocimiento o de la llamada ‘ciencia’, describimos un campo de cuestiones, ofrecemos ciertos puntos de vista como respuestas y esbozamos el método de examen de acuerdo con el cual las respuestas pueden ser aceptadas o rechazadas. Esto es lo que se quiere decir con ‘estructura de preguntas y respuestas’.5

Nesses esquemas de perguntas e respostas, é possível conferir maior

importância às perguntas ou às respostas. Quando conferimos maior relevância às

primeiras, a estrutura aponta para a investigação ou zetética. Quando salientamos as

respostas, para a dogmática6.

No primeiro caso, a reflexividade contínua, que pode colocar em

questão todas as respostas oferecidas na investigação (e, por isso, entende-se que a

relevância é dada ao aspecto pergunta), aponta para um decurso infinito, ou, ao

menos, sem um término definido. Na investigação ou zetética, portanto, as respostas

são tomadas sempre como tentativas, provisórias e questionáveis a qualquer

momento, e sua tarefa é caracterizar o horizonte de questões no campo escolhido7.

No segundo caso, quando se salienta a resposta, a argumentação parte de alguns

pontos que não podem ser questionados e sua reflexividade é, nesse sentido, limitada

pela impossibilidade do questionamento dos dogmas, os quais “dominam” as demais

respostas que a eles devem se adequar8.

Como aponta Ferraz Jr., uma boa maneira de se entender a distinção

entre enfoque zetético e dogmático reside em considerar que aquele tem como ponto

de partida uma evidência, frágil ou plena, mas uma evidência que é admitida como

verificável ou comprovável e, por isso, não é, ao menos momentaneamente, 4 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 100; e em Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 75. 5 Cfe. Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 109 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Juridico, p. 117-118. 6 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 100; e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 75. 7 Cfe. Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 109 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Juridico, p. 118. 8 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 101; e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 76.

questionada. No enfoque dogmático, ao contrário, o não questionamento acontece

porque a premissa é considerada como estabelecida (seja de que modo for, por um

ato de vontade, de poder ou de arbítrio) como inquestionável. Assim, propõe o autor,

podemos dizer que uma premissa é evidente quando está relacionada com uma

verdade e é dogmática quando relacionada a uma dúvida que, não podendo ser

sanada, requer uma decisão que fixa uma opinião9.

Explicando a distinção a partir de um modelo retórico de discurso,

entendido como jogo entre partes que propõem e defendem suas afirmações,

Viehweg fornece-nos uma outra descrição da distinção, descrição esta que pode

ajudar a esclarecer o seu alcance10.

Pode-se dizer, afirma ele, que as asseverações são tratadas como

dogmata quando, em tese, são excluídas, em longo prazo, de um ataque e, por isso,

não estão submetidas a nenhum dever de defesa, ou seja, a nenhum dever de

fundamentação, senão simplesmente a um dever de explicação. Num determinado

âmbito cultural, determinadas asseverações são colocadas fora de toda a dúvida11.

O contrário ocorre com as asseverações que em toda investigação são

utilizadas simplesmente como zetemata. Em tese, estão liberadas a todo ataque,

estando sujeitas a ambos os deveres: defesa/fundamentação e explicação. Sempre são

questionáveis. Por isso, na zetética o discurso fundamentante chega apenas a um

final provisório, possivelmente muito em curto prazo12.

Mas como se explicaria a existência de um pensamento dogmático e

de outro zetético? Que funções cumprem esses dois enfoques? O pensamento

dogmático está vinculado, diz Viehweg, à opinião e à formação de opinião, enquanto

9 Cfe. FERRAZ JR., Tercio S. Introdução ao Estudo do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 42-43. 10 Referimo-nos ao artigo Notizen su einer Rhetorischen Rechtstheorie na coletânea alemã, p. 191-199 ou Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica na coletânea espanhola, p. 163-175. 11 Cfe. Notizen su einer Rhetorischen Rechtstheorie, p. 198 ou Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p.173. 12 Cfe. Notizen su einer Rhetorischen Rechtstheorie, p. 198 ou Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p.173.

o zetético liga-se à dissolução das opiniões pela investigação e seu pressuposto

básico é a dúvida13.

Há que se constatar, afirma Viehweg, que, no âmbito cotidiano da

ação e decisão, o pensamento dogmático parece ser indispensável, porque se está na

esfera do agir, obrigado a estabelecer, repensar e manter um sistema fechado, um

dogma. Um pensamento que se coloca como tarefa à reflexão contínua, enquanto

investigação, não consegue cumprir tal função porque a ação requer que se parem as

perguntas e se forneçam respostas, que são, nesse sentido, dogmatizadas. Na esfera

da ação, o exercício da dúvida deve ser cuidadosamente encarado, porque a urgência

da decisão requer a formação de uma opinião com base naqueles dados ou

informações que o contexto fornece14. O modelo do pensamento dogmático é, assim,

o próprio pensamento cotidiano e sua formação de opinião15.

A caracterização de pensamento dogmático que Viehweg oferece

aponta, portanto, para a reflexão sobre a praxis e suas necessidades específicas, na

medida em que salienta sua vinculação com a formação de opiniões para a tomada de

decisão. Parece-nos ser possível identificar aqui aquela busca por um modo distinto

de encarar as tarefas e a configuração do saber jurídico que apontávamos como

contribuição precípua do autor quando discutíamos o percurso de sua investigação no

final do Capítulo II. Ao invés de menosprezar, enquanto objeto da reflexão, a praxis,

como o faz a matriz cartesiana de pensamento, ela é trazida ao cerne da discussão e

procura-se justamente evidenciar sua importância.

É relevante considerar, no entanto, que o pensamento dogmático,

embora fixe as opiniões, tornando-as indiscutíveis, não pode abandonar o seu 13 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 102; e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 77. Sobre isso, assevera GARCIA AMADO, op. cit., p. 227: “Desde el punto de vista de la finalidad a que estos tipos de pensamiento se orientan, podemos decir que, según Viehweg, el pensamiento dogmático se propone reflexionar sobre una opinión que no se cuestiona, sino que se entiende dotada de autoridad y cuja legitimidad se da por sentada de antemano. Determinadas fórmulas se toman como dogmas, ya sean leyes u otros equivalentes, y se hacen objeto de estudio, pero teniendo en cuenta que no se pueden modificar o dejar de lado. Frente a ello, como hemos visto, el modo de pensar investigador hace su objetivo de lo que para el pensar dogmático es una prohibición: el cuestionamiento, crítica y examen continuado de todo tipo de contenidos, presupuestos y métodos”. 14 Sobre a impossibilidade de regular a ação sem recorrer a argumentos de autoridade e evitar o questionamento infinito, vide HORN, Norbert. Rationalität und Autorität in der Juristischen Argumentation. Rechtstheorie, 6. Band, Heft 2, Berlin; Duncker & Humblot, 1975, p. 145-160. 15 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 100; e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 78.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência ao capítulo 2.

desenvolvimento imanente16. Assim, ressalta Viehweg, para manter um sistema

coeso e estável de opiniões dogmatizadas, ganha importância a hermenêutica, cujo

papel é a flexibilização necessária dos dogmas indescartáveis, propiciando a sua

revisão interna sem que sejam negados. Se o pensamento dogmático põe fora de

questionamento e de dúvida aqueles enunciados básicos que podem ser considerados

seus dogmas, também os desenvolve continuamente porque não os pode abandonar17.

Nesse sentido, afirma Viehweg:

Un sistema dogmático que, como se ha indicado, desee apoyar un esquema de acción con una fundamentación sistemática, tiene que disponer de una suficiente estabilidad y también de una adecuada flexibilidad. Tiene, además, que poseer una doctrina básica unificante, mantenida como inmutable y, por otra parte, permitir el mayor número posible de intervenciones complementarias y interpretativas, cuya conciabilidad con la doctrina básica parezca ser demostrable18.

Assim, ao contrário do que o sentido comum da palavra “dogmático”

indica, o pensamento dogmático não trabalha com as normas como se elas

representassem um condicionamento fixo, de sentido único. Embora sejam seus

pontos de partida inquestionáveis e, nesse sentido, funcionem como dogmas, a sua

natureza linguística, com a incerteza conotativa e denotativa que lhe é inerente,

confere uma margem relativamente ampla de manipulação, necessária ademais para

que os próprios dogmas possam ser continuamente adaptados às circunstâncias

sociais mutáveis19.

Embora Viehweg não faça uso desse recurso para explicitar a

distinção, podemos compreendê-la melhor se utilizarmos a noção de que a dogmática

trabalha com o princípio da inegabilidade dos pontos de partida, ou seja, ela

assume alguns postulados como inquestionáveis e trabalha a partir deles, na medida

16 Viehweg conceitua o pensamento dogmático como pensamento imanente: “Denn dogmatisches Denken is im angegebenen Sinne, immanentes Denken” (“Assim, o pensamento dogmático é, no sentido indicado, pensamento imanente.” Tradução nossa). Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 36 ou Sobre la relación entre Filosofía del Derecho, Teoría del Derecho y Dogmática Jurídica, p. 16. 17 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 87, e Ideologia y Dogmática Jurídica, à p. 101. 18 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 102; e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 78. 19 Cfe. FERRAZ Jr. Introdução, op. cit., p.49.

em que a necessidade de orientação da ação o requer, manipulando-os internamente,

mas sem questioná-los abertamente20.

Desse modo, o pensamento jurídico dogmático é funcionalmente

necessário e busca continuamente influenciar ou provocar em um grupo social mais

ou menos amplo um conjunto de comportamentos, com o menor grau de perturbação

possível. Esse enfoque tem uma função operativa e, por isso, seu aspecto cognitivo,

embora relevante, não é predominante21. Ao referir-se a ele, Viehweg afirma a sua

função social múltipla e a coloca nos seguintes termos: influi sobre os demais,

transmite-lhes uma convicção e converte-se em prescrição de conduta22. Esse tipo de

pensamento, agrega o autor, trata de dar sempre uma função operativa ao pensado e

ao expressado23.

Ao contrário, um pensamento zetético permanece dentro dos limites

de uma função cognoscitiva, e esse é, por assim dizer, o seu papel funcional na

sociedade. O pensamento zetético é tentativo, porque seu maior interesse é no

aumento do grau de confiabilidade de suas afirmações, que são sempre passíveis de

revisão exatamente para que a teoria possa ser mais bem fundamentada e

construída24. Sua intenção quando usa a linguagem é transmitir uma informação,

descrevendo estados de coisas. Já o pensamento ou enfoque dogmático, na medida

20 Cfe. LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignácio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 27: “La característica más importante en el concepto de la dogmática para la comprensión habitual es la prohibición de la negación; la no-negabilidad de los puntos de partida de las cadenas de argumentación. Están sustraídos a la crítica”. Vide também FERRAZ JR. Introdução, op. cit., p. 48 e Função Social, op. cit., p. 95-100. 21 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 87, e Ideologia y Dogmática Jurídica, à p. 101. 22 Viehweg não se alonga sobre esse ponto e indica HARE, R. M. A Linguagem da Moral. Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, especialmente p. 3-81. Nessa parte da referida obra, Hare analisa o modo imperativo e sua função. 23 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 88, e Ideologia y Dogmática Jurídica, à p. 102. A respeito, diz HORN, op. cit., p. 146: “Wir gehen davon aus, dass juristisches Denken immer in pragmatischem Situationsbezug steht. Alles juristisches Denken zielt auf Entscheidungen: des Gesetzgebers bei der Rechtsetzung, der Gerichte und Behörden bei der Rechtsanwendung, der vertragschliessenden Parteien, der Rechtswissenschaft bei der Formulierung von Rechtsgrundsätzen. Juristisches Denken soll Entscheindungen vorbereiten und ermöglichen durch Erarbeitung und Formulierung der Entscheindungsinhalte in Gestalt von Handlungsanweisungen. Juristischen Denken hat primär dieses praktische Erkenntnisinteresse” (“Partimos do pressuposto de que o pensar jurídico sempre está pragmaticamente condicionado. Todo pensar jurídico objetiva decisões: do legislador, ao legislar; dos tribunais e autoridades, na aplicação; das partes e da ciência do direito, na formulação das normas do Direito. O pensar jurídico deve preparar e possibilitar decisões pela elaboração e formulação de conteúdos decisórios na forma de indicações para atuação. O pensar jurídico tem, primeiramente, esse interesse de apontamento prático.” Tradução nossa). 24 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 88, e Ideologia y Dogmática Jurídica, à p.101.

em que possui um sentido operativo, mescla o sentido informativo da linguagem com

o seu sentido diretivo, que podemos considerar nele preponderante25.

Essa vinculação do pensamento dogmático com a direção de

comportamentos está na base mesmo da designação que um pensamento de tal

natureza recebe. Dokein, raiz de dogmática, é termo grego cujo significado pode ser

sucintamente indicado como ensinar e doutrinar, enquanto zetein, que dá origem à

zetética, indica o ato de perquirir26. É pertinente, portanto, diga-se de passagem, o

uso dos termos dogmática e doutrina como intercambiáveis quando da designação do

saber ou de um dos modos de saber do jurista, que se configura, como podemos

perceber, como uma doutrina que visa fornecer caminhos para a decisão27.

Para nossa análise, afirma Viehweg, é também importante que uma

teoria com função social somente pode levar a cabo a esperada regulação de

comportamentos se não deixa sem resposta nenhuma questão essencial em seu

campo de problemas. Por conseguinte, tem pretensões holísticas e, quando surgem as

dificuldades, na medida em que não pode renunciar a seus dogmas fundamentais,

estes precisam ser reinterpretados e a teoria retocada28.

As características do pensamento dogmático – pretensão holística,

função social e “retoques” – também são possuídas pelo que normalmente se toma

como teorias ideológicas. Isso se deve à função social que elas cumprem e que

impede que ambos os tipos de teorias – dogmática e ideológica – possam ser

avaliadas de acordo com critérios puramente cognoscitivos. Quando de seus

retoques, dificilmente poder-se-á recorrer apenas àquilo que é caracterizado como

cognoscível, e dever-se-á recorrer também ao que é questão de crença, porque não se

pode alcançar ou não se alcançou ainda uma fundamentação científica ou filosófica

adequada29.

25 Cfe. FERRAZ JR. Introdução, op. cit., p.39. 26 Cfe. VIEHWEG, Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 110 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Juridico, p. 118. Cfe. também FERRAZ JR. Introdução, op. cit., p.41. 27 Mencionávamos essa dupla designação no início de nossa análise, no item I do Capítulo I, quando comentávamos a assimilação entre os termos ciência e Jurisprudência, bem como o uso também da palavra doutrina. Agora, ao examinarmos a distinção entre zetética e dogmática, este uso fica mais claro. 28 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 88, e Ideologia y Dogmática Jurídica, à p.103. 29 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 88-89 e Ideologia y Dogmática Jurídica, à p.103.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência ao item I do Capítulo I

Importante ressaltar uma vez mais que tudo isso se faz para poder

criar teorias que devem conseguir determinados efeitos no acontecer social. Essas

doutrinas se mantêm na proximidade do pensamento e da linguagem cotidianas. Pois

justamente se dirigem, como diz Viehweg, a todos os membros de uma sociedade, e

não a um pequeno círculo de cientistas com interesses cognoscitivos, acostumados a

conformar-se, por razões de investigação, com fragmentos do saber30.

Podemos considerar, pois, que o que pressupõe uma dogmática

jurídica é algo que poderia ser chamado uma ideologia jurídica, ou seja, uma teoria

com função social no campo do direito. Trata-se aqui de um uso neutro do termo

ideologia, que Viehweg busca na obra de Kolakowski31 e que é empregado no

sentido de um conjunto de ideias ou doutrinas que visam conformar o ambiente

social numa direção determinada. Nas palavras do autor:

De acuerdo con la concepción aquí sostenida, las ideologías pertenecen a la clase de las concepciones del mundo. Estas son consideraciones acerca del mundo y de la vida que vinculan vitalmente sentimientos, especialmente temores y esperanzas, aspectos volitivos y conocimientos y, así, no pocas veces pueden ofrecer una ayuda estabilizante para la vida.32

Deve-se observar, contudo, que ideologia e dogmática não se

confundem. Uma dogmática jurídica pressupõe uma ideologia, na medida em que

dogmatiza justamente aqueles aspectos que são considerados essenciais para a vida

em uma comunidade, atendendo à distribuição social do poder e os torna seus pontos

de partida inquestionáveis33.

30 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 90, e Ideologia y Dogmática Jurídica, à p.105. 31 Cfe. KOLAKOWSKI, Leszek. Der Mensch ohne Alternative. München: Piper, 1976., p. 30: “Unter Ideologie verstehen wir die Summe der Auffassungen die einer sozialen Gruppe (einer Klasse, aber nicht nur ihr) zum Organiesierung der Werte dient, die das mystifizierte Bewusstsein dieser Gruppe und ihre Tätigkeit zum Ausdruck bringen”. E, ainda: “Die soziale Funktion der Ideologie besteht darin, den Glauben an die Werte zu festigen, die notwendig sind, damit die Gruppe erfolgreich tätig sein kann” (“Como ideologia entendemos a soma dos conceitos que a uma classe – mas não apenas a ela – serve para a organização dos valores, que exprimem a consciência mistificada desse grupo, e sua atividade.” E, ainda: “A função social da ideologia consiste em consolidar a crença nos valores necessários para que o grupo possa atuar com sucesso.” Tradução nossa). 32 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 92 da coletânea alemã e Ideologia y Dogmática Jurídica, p.108 da coletânea espanhola. 33 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 86 e Ideologia y Dogmática Jurídica, p. 99.

É também por essa razão, podemos pensar, que esse enfoque, ou modo

de pensamento, precisa cortar o processo reflexivo quando se trata de encontrar

razões e fundamentos para a ação. Esclarecer e questionar os pontos de partida de

uma dogmática significa tomar, zeteticamente, os fundamentos de uma determinada

organização social como objeto, ainda que indireta ou mediatamente, e pode

significar abalar esses consensos nem sempre tematizados.

Posta a distinção entre os dois modos de pensamento nos termos que

expusemos, cabe agora verificarmos como Viehweg concebe a relação entre os dois

enfoques. A este assunto dedicamos o próximo item.

2. As relações entre o pensamento dogmático e o zetético

Diante da necessidade de legitimar a assunção dos pontos de partida

dogmáticos, é necessário que estes sejam apresentados por intermédio de uma análise

que mostre sua fundamentação racional, e esse aspecto é salientado por Viehweg em

todos os momentos em que aborda a distinção entre os dois enfoques. Assim, o

enfoque zetético acaba por ser essencial no sentido de fornecer, embora esta não seja

sua função precípua, premissas que são mediatamente dogmatizadas e

dogmatizáveis, em especial numa sociedade que dá grande importância à legitimação

científica de todo saber34.

Desse modo, uma das relações possíveis entre os dois enfoques é a

legitimação do sistema diretivo de comportamentos, dogmático, na ausência de

fundamentações advindas da religião ou da tradição, tais como as que encontramos

atualmente no Direito Muçulmano ou encontrávamos na Idade Média e na

Antiguidade. O dilema é que o sistema zetético somente pode oferecer panoramas

34 Cfe. HORN, op. cit., p. 153: “Wissenschaftlichkeit war zu allen Zeiten für die Juristen attraktiv, weil sie eine auf die generelle Vermutung von Rationalität gegründete Autorität verleiht. Wissenschaftlichkeit ist wirksames argumentum ab auctoritate” (“A ciência, em todos os tempos, era atrativa para juristas, porque confere autoridade baseada em genérica suposição da racionalidade. Cientificidade é efetivo argumento ab auctoritate.” Tradução nossa).

fragmentários em termos de conteúdo, o que dificulta a assunção de seus

conhecimentos como bons pontos de partida dogmáticos35.

Viehweg reporta que, dadas as suas características operativas e não

cognoscitivas, muitas análises consideraram irracional o pensamento dogmático,

delegando sua análise à psicologia ou à psicanálise. Posteriormente, afirma ele,

argumentou-se convincentemente que se devia submeter à nova análise o termo

racionalidade. Viu-se claramente, então, que o pensamento dogmático se converte

em objeto do raciocínio jurídico zetético, mostrando-se como Jurisprudência e Meta-

Jurisprudência36.

Desta perspectiva, vê-se mais claramente a importância da relação

entre pensamento dogmático e pensamento zetético. Ela é decisiva, afirma

expressamente Viehweg, para o caráter de uma ciência do direito, pois, se se

considera a dogmatização como continuação da legislação, é claro que tanto esta

como aquela dependem das informações corretas sobre nosso complicado mundo

social. A zetética tem que intervir continuamente como corretivo da dogmática,

introduzindo desdogmatizações37.

O papel da zetética seria, então, o de examinar criticamente os

pressupostos que embasam a dogmática, fornecendo-lhe, assim, condições de revisar

seus dogmas, adaptando-os e fundamentando-os racionalmente. Para um saber

jurídico completo, portanto, não se trata de eliminar ou de absorver um enfoque no

outro, mas de compreendê-los como necessários e complementares.

Se, de um lado, a própria dinâmica social exige que se tenha um

pensamento dogmático, de outro lado, a absolutização desse enfoque levaria à sua

própria falência enquanto orientação da ação, pois não permitiria a renovação do

35 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 102; e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 79. 36 Cfe. Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 111-112 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Juridico, p. 121. Esse tema será desenvolvido oportunamente com mais detalhes, mas, por ora, é interessante registrarmos a observação de LUHMANN, Sistema Jurídico y Dogmática, op. cit., p. 21: “La necesidad de diferenciar así entre dogmática jurídica y teoría jurídica (o también: jurisprudencia y ciencia jurídica) encuentra hoy un reconocimiento creciente. A esto corresponde como hecho social la distinción de la diferenciación del sistema jurídico y del sistema científico, con estructuras y procesos propios en cada caso. Este hecho es parte de la situación actual en la que se encuentra la ciencia jurídica”. 37 Cfe. Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 107-114 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Juridico, p. 114-127.

conteúdo cognoscitivo de suas premissas. Assim, o enfoque zetético, tomado como

aporte crítico, funciona como sua garantia e corretivo contínuo38.

A ligação entre os dois enfoques pode ser mais bem observada se nos

voltarmos para um artigo que Viehweg publicou em 1970 sobre dogmática e zetética

em Jhering e cujo objetivo, conforme o autor, é sustentar a tese epistemológica

segundo a qual Jhering deu um passo importante da dogmática à zetética jurídica39.

Para tanto, Viehweg desenvolve uma breve recuperação do contexto

social no qual Jhering viveu, procurando mostrar que a problemática comum aos

mais diversos pensadores contemporâneos a este último é a problemática social,

estreitamente vinculada ao começo da época industrial. A ideia de desenvolvimento

tem grande relevo e foi colocada por um pensamento em parte científico-natural e em

parte historicista40.

Na leitura que Viehweg propõe, Jhering tentou tratar com espírito

científico-natural o grande material histórico de que dispunha, procurando praticar

história do direito segundo formas da ciência natural41. Ao publicar Der Zweck im

Recht, dizia crer ter chegado ao fim de sua investigação propriamente dita do Direito,

pois estava em condições de mostrar sua natureza. A necessidade de a Jurisprudência

38 Cfe. HORN, op. cit., p. 159: “Ein emanzipatorisches Programm des juristischen Denkens kann demnach sinnvoll nur formuliert werden, wenn es dessen pragmatischen Bezug auf komplexe Konfliktssituationen anerkennt und sein praktisches Erkenntnisinteresse an Entscheidungsinhalte beibehält. Das programm kann nich lauten: Beseitigung des argumentum ab auctoritate, sondern seine rationale Kontrolle” (“Um programa emancipador do pensar jurídico, portanto, pode apenas ser formulado de forma sensata se se reconhecer sua relação pragmática com complexas situações de conflito e se se preservar seu prático interesse na cognição dos conteúdos decisórios. O programa não pode ser: eliminação do argumentum ab auctoritate, mas seu controle racional.” Tradução nossa). 39 Cfe. Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, na coletânea alemã, p. 153-158 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, na coletânea espanhola, p. 141-149. 40 Viehweg propõe (Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, p. 156-157 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, p. 146-147), no decurso de sua análise, a distinção entre dogmática e zetética, e a vincula com a discussão da obra de Jhering do seguinte modo: “Es claro que el pensamiento cotidiano contiene siempre dogmatizaciones porque justamente no puede limitarse a una función cognoscitiva y informativa como el pensamiento científico sino que casi siempre es, al mismo tiempo, operativo. Además, es claro que la jurisprudencia, en interés de la sociedad, tiene que preocuparse por dogmatizaciones óptimas y, por último, también es comprensible que en la reserva intelectual de una sociedad, las desdogmatizaciones y las neodogmatizaciones juegan un papel importante sobre todo cuando la sociedad, en su totalidad, experimenta cambios. Sin duda, tal era el caso en los tiempos de Jhering”. 41 Cfe. Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, à p. 156 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, à p. 145.

apresentar-se como investigação do direito aumentou consideravelmente por seu

contato com a investigação da natureza42.

Viehweg procura, dessa maneira, demonstrar, analisando a trajetória

intelectual de Jhering, que este autor possuía inicialmente um relacionamento

dogmático com o Direito Romano e o utilizava como um arsenal ou uma fonte de

soluções para a construção jurídico-dogmática, tendo criado importantes teorias que

não possuem um componente meramente cognoscitivo, mas que têm uma finalidade

operativa evidente43.

O passo de uma dogmática a uma zetética é localizado por Viehweg

na segunda seção da segunda parte de Geist des Römischen Rechts que desemboca,

segundo o autor, na concepção apresentada em Der Zweck im Recht, a qual surgiu da

generalização das concepções de finalidade particularmente observadas e da elevação

dessa categoria ao posto de explicação central do fenômeno jurídico em sua

totalidade44.

Mas também aqui, afirma Viehweg, os esforços para fundamentar

mais vigorosamente a doutrina básica de uma dogmática apareceram prontamente e a

obra de Jhering, Kampf ums Rechts, representa esse ponto, possibilitando uma forma

de pensamento dogmático-teleológico45.

Por fim, como conclusão de sua análise, aponta Viehweg que se pode

entender que a era industrial encontrava-se, por uma parte, frente a uma realidade

nova e ainda confusa, carente de investigação. Por outra parte, buscava

dogmatizações adequadas. Nessa situação, Jhering criou, no âmbito da língua alemã,

seguindo o modelo da investigação da natureza, uma nova investigação jurídica que

42 Cfe. Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, à p. 156 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, às p. 145-146. Embora não sejam diretamente referentes a Jhering, são ilustrativos da relação entre ciência natural e Jurisprudência os seguintes trabalhos: STICHWEH, Rudolf. Motis et stratégies de justification employés pour fonder la scientificité de la jurisprudence allemande au XIXe. siècle In AMSELEK, Paul. Théorie du Droit et Science, Paris: PUF, 1994, p.169-186 e KIESOW, Rainer Maria. Science naturelle et droit dans la deuxième moitiè du XIX siècle en Allemagne. In AMSELEK, Paul. Théorie du Droit et Science, Paris: PUF, 1994, p.187-210. 43 Cfe. Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, à p. 157 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, à p. 147. 44 Cfe. Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, à p. 158 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, à p. 148. 45 Cfe. Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, à p.158 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, à p. 149.

estimulou uma nova dogmática jurídica. Daqui se desenvolveram, no marco de uma

ciência do direito, tanto uma sociologia do direito zetética, investigativa, quanto uma

Jurisprudência sociológica, dogmática46.

Esse exemplo revela como se pode conceber a relação de dupla face

entre enfoque dogmático e zetético, na medida em que ilustra como, num

determinado momento histórico, uma dogmática foi posta em questão por um

pensamento de caráter reflexivo e crítico, e como, logo a seguir, esse mesmo

pensamento crítico deu base a uma nova elaboração dogmática.

A própria obra de Viehweg, Topik und Jurisprudenz, pode ser

utilizada como um exemplo adequado desse tipo de circularidade. De acordo com a

interpretação que temos, o autor estava mais preocupado em oferecer um

conhecimento descritivo e crítico do pensamento jurídico do que em fornecer-lhe

pontos de partida que orientassem a ação do jurista enquanto praxis.47 Aplicando-se a

terminologia que Viehweg propõe à sua própria obra, poderíamos dizer que o

enfoque ali presente é predominantemente zetético48.

Todavia, é relativamente comum encontrarmos menção na literatura

jurídica a um “método tópico de interpretação” cujo caráter é muito mais dogmático,

no sentido de que serve como instrumento de resolução de dificuldades ou de

justificação de interpretações com vistas à decidibilidade dos conflitos, o que

representa uma transformação das considerações de Viehweg sobre a Jurisprudência

e sua estrutura em pontos de partida para discussões sob um enfoque prático49.

Nesse sentido, convém ressaltar, não parece ser pertinente avaliar a

questão do ponto de vista de uma apropriação “correta” ou “incorreta” do

pensamento do autor, mas verificar que tipo de função essas leituras cumprem na

46 Cfe. Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, à p. 158 e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, às p. 148-149. 47 Vide os itens I e II do Capítulo I. 48 O próprio subtítulo de Topik und Jurisprudenz expressamente alude a esse fato – Ein Beitrag zur rechtswissenschaftlichen Grundlagenforschung (Uma contribuição à Investigação Fundamental da Ciência do Direito) – quando se autoqualifica como pesquisa de base, a qual, como veremos posteriormente, é caracterizada pela presença do enfoque zetético. 49 Sobre a apropriação da discussão de Viehweg em diferentes ramos da pesquisa dogmática do direito, vide GARCIA AMADO, op. cit., p. 272-287. Luiz Alberto Warat fala explicitamente em um método de interpretação “tópico”, cfe. WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito, vol. I. Porto Alegre: Fabris, 1994, p. 86-88.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência aos itens I e II do Capítulo I.

formação de uma nova dogmatização, como parece ser o caso principalmente da

teoria constitucional50.

De outra parte, não se pode ignorar a possibilidade de que uma outra

interpretação do pensamento de Viehweg leve à conclusão de que ele mesmo

favoreceu ou estimulou esse tipo de apropriação, sendo mais normativo do que

descritivo, embora não seja esta a nossa impressão e nem se assuma essa opção

interpretativa, como explicamos nos parágrafos precedentes.

Independentemente da opinião que tenhamos em relação à questão

discutida acima, podemos considerar que a relação entre os dois enfoques aponta

para a formação de diferentes conjuntos de proposições ou teorias, segundo se use

um ou outro ponto de partida. Viehweg refere-se a esse aspecto, dizendo que

podemos ter, no que tange à função, sistemas dogmáticos e sistemas zetéticos,

aduzindo, ainda, a possibilidade de um sistema de caráter didático51. Esses sistemas

ganhariam diferentes estruturas, podendo ser seriais, dedutivos, cibernéticos,

dialéticos modernos ou tópicos52. Embora esse tema não seja pertinente à discussão

neste momento, serve para salientar que o objeto, enquanto campo problemático, é o

mesmo, e a determinação da diferença pela função se dá enquanto enfoque53.

50 Sobre a influência da tópica na hermenêutica e na teoria constitucional, pode-se consultar BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 159-160 e p. 255-256. 51 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p.101, e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 77. Vide o artigo intitulado Modelle Juristischer Argumentation in der Neuzeit, p. 127-136 da coletânea alemã, especialmente p. 128-129 ou Perspectivas Históricas de la Argumentación Jurídica, na coletânea espanhola p. 150-162, particularmente p. 152. Nas referidas páginas, é mencionado o novo sistema de exposição do Código de Justiniano proposto por Jacques Cujas como exemplo de sistema didático. 52 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 103, e em Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 80. Também em Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 113-115 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Juridico, p. 124-127. 53 Viehweg expressa essa ideia do seguinte modo: “No es difícil encontrar en la disciplina jurídica las mencionadas variantes de pensamiento. Ellas provocan diferentes argumentaciones. Por ello, se puede hablar sobre lo que se llama problemas jurídicos de una manera jurídico-dogmática o jurídico-cetética. El jurista profesional, es decir, el dogmático profesional del derecho es, en todo caso un especialista de la argumentación jurídico-dogmática que, en tanto tal, tiene sus peculiaridades. Si, además, cultiva la historia del derecho, la sociología del derecho, la criminología, la psicología del derecho, etc., utiliza, dentro del marco de su investigación, argumentaciones cetéticas (también llamadas metadogmáticas) y se trabaja como filósofo o como teórico del derecho, se ocupa de argumentaciones filosóficas (no especializadas) cetéticas. Una disciplina completa del derecho abarca conjunta y recíprocamente todas estas actividades”. Cfe. Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, na coletânea espanhola dos pequenos escritos, p. 174-175 e Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, na coletânea alemã p. 199.

Essa distinção é importante também para que possamos observar que

não é necessariamente apenas no âmbito temático dos fenômenos jurídicos que se

pode ter uma investigação zetética ou dogmática, conforme mencionávamos no

capítulo anterior. Enquanto enfoques, os dois modos podem ser desvinculados de

seus respectivos campos de investigação54.

Em nossa disciplina, diz Viehweg, dispomos de uma dogmática

especializada, de uma zetética especializada e de uma zetética filosófica. Esses três

setores se chamam, entre nós: dogmática jurídica, investigação jurídica e filosofia

jurídica. Esta última, tida como investigação básica, toma como ponto de partida os

dois complexos de conhecimentos anteriores e se pergunta acerca de sua

possibilidade55.

Exemplificando como conceber o resultado desses dois enfoques e

seus sistemas, Viehweg diz que, quando falamos do direito francês das obrigações,

nos referimos a um sistema social dogmático. Trata-se aqui de um sistema jurídico

que possibilita decisões para guiar ações. Ao contrário, na história do Direito

Europeu, trata-se de um sistema de investigação, o qual possibilita conhecimentos

sobre o direito56.

O exame desses três setores e suas relações em um conhecimento

completo sobre o Direito são o objeto da análise no próximo item.

54 Essa parece ser a posição de Ferraz Jr., que, ao utilizar a distinção entre enfoque dogmático e zetético, trata separadamente a descrição das diferenças e a análise da dogmática e da zetética jurídicas. Vide FERRAZ JR. Introdução, op. cit., p. 39-51. 55 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 100-101, e Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 77. 56 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 101, Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, à p. 77. Ferraz Jr., partindo da distinção entre dogmática e zetética, constrói um quadro que nos parece bastante útil para compreendermos melhor o alcance da distinção de Viehweg. Vide FERRAZ JR, Introdução, op. cit., p. 45.

3. A ligação entre dogmática jurídica, teoria do direito e filosofia do direito

Em um artigo intitulado Über den Zusamenhang zwischen

Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, Viehweg se propõe a discutir,

como o próprio título indica, a ligação existente entre a dogmática jurídica, a teoria

do direito e a filosofia do direito. Nesse artigo, o autor reflete também sobre a

mudança que se produz na teoria do direito sua contemporânea, que salienta

sobremaneira a sua distinção para com uma teoria tradicional do direito57.

Como é peculiar ao seu estilo de escrita e abordagem, Viehweg

principia, fixando seu ponto de partida. Assim, observa que uma consideração de

caráter sociológico indica que todo agrupamento social precisa fixar uma opinião

sobre o que considera justo. Essa opinião jurídica deve ser entendida como uma

resposta vinculante a uma problemática social e cumpre uma função social ao

possibilitar a coordenação do comportamento de uma pluralidade de pessoas58.

Essa opinião pode, indiferentemente, advir ou se expressar em

máximas transmitidas de geração para geração, de um oráculo, de sentenças judiciais

ou de leis. O enfoque escolhido pelo autor é, por isso, eminentemente sociológico.

Se, contudo, essa opinião for submetida ao controle do pensamento e, com isso,

racionalizada, tornar-se-á uma dogmática jurídica59.

Uma dogmática jurídica é estruturalmente formada por um ou mais

dogmas fundamentais, conciliáveis entre si e considerados inconstatáveis, no sentido

de que são tomados como pontos de partida que não se submetem a questionamento,

tendo sido postos como premissas básicas. Tudo o que é sugerido como resposta a

um problema no interior dessa dogmática deve ser conciliável com o sentido desses

57 O artigo Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, encontra-se na coletânea alemã dos pequenos escritos, p. 35-44, ou, na coletânea espanhola, com o título Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 15-28. É interessante observarmos que esse artigo data de 1960, sendo anterior à distinção entre zetética e dogmática, o que parece indicar que Viehweg vinha procurando desde então uma definição para a relação entre os diversos tipos de conhecimento que compõem o saber jurídico. 58 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 35 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 15. 59 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 35 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 16.

dogmas, pois esse modo de pensamento é sempre imanente, ou seja, desenvolve-se

internamente e a partir de seus próprios pressupostos60.

Essas considerações desenvolvidas por Viehweg estão, como se pode

verificar, em concordância com aquilo que discutíamos no item 1 deste capítulo,

quando caracterizávamos o enfoque dogmático61. A diferença reside em que, lá, a

problemática era tratada pelo ângulo do enfoque pelo qual se estuda e se elabora o

discurso sobre o fenômeno jurídico, ao tempo que, aqui, vê-se a questão já sobre o

saber constituído, ou seja, como um conjunto de asserções já elaboradas62.

Uma dogmática pode assumir várias estruturas, como a dedutiva ou a

dialética clássica. Independentemente disso, quando os dogmas de uma dogmática

deixam de orientar a praxis, porque se tornam confusos ou inseguros, a referida

dogmática desaparece. A questão colocada aqui é a da prática, da ação do homem

enquanto ser não determinado, e a estrutura vem condicionada pela função social.

Perdida a relevância social, ameaçada de sobrevivência estará a referida dogmática,

independentemente da estrutura com a qual tiver sido construída63.

Viehweg parece estar a salientar, quando relativiza explicitamente a

questão da estrutura da dogmática jurídica, que as considerações sobre a ligação

entre dogmática, teoria do direito e filosofia são independentes da discussão

empreendida por ele sobre a estrutura da Jurisprudência – que será objeto de análise

em capítulo posterior – e se estabelecem sempre.

As referências no contexto do artigo que estamos examinando nos

sugerem que há uma ligação intrínseca entre a legitimação de cada dogmática

jurídica em seu contexto histórico e a relação entre estrutura e função. Para que possa

cumprir sua função de orientação da práxis, é preciso que a dogmática se apresente

de acordo com uma estrutura que seja aceitável ao pensamento de sua época.

60 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 36 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 16. 61 Vide especialmente as páginas iniciais do item I deste Capítulo. 62 García Amado faz críticas ao tratamento que Viehweg dá ao tema, afirmando que não fica claro quando o autor está utilizando o termo “dogmática” como o conjunto de dogmas e quando se refere ao pensamento de caráter dogmático, impedindo, assim, que se veja claramente qual a função cumprida pelos dogmas que a compõem e qual a sua função enquanto atividade cujo objeto são os dogmas. Vide GARCÍA AMADO, op. cit., p. 229. 63 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 36 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 16-17.

De modo mais claro: parece-nos que Viehweg está expressamente

afirmando que os sistemas dogmáticos possuem sempre uma estrutura que lhes é

atribuída por sua função social e, ao mesmo tempo, sugerindo que essa estrutura

possui uma dimensão de legitimação que não pode ser desconsiderada, sob pena de

não observarmos corretamente o fenômeno jurídico. Por mais que a tópica possa ser

considerada a estrutura da Jurisprudência, nem sempre historicamente esse saber

pôde ser mostrado com uma estrutura tópica e teve de ser configurado de modo a

atender aos modelos dominantes de saber científico. Isso significa que, para a

legitimação de sistemas dogmáticos, duas dimensões são necessárias e

complementares: o conteúdo que vem de uma ideologia socialmente aceita, de

acordo com o que vimos, e a forma de um discurso que é aceito como confiável

naquele momento histórico.

Entendemos nesse sentido a menção à estrutura dedutivo-axiomática e

a exemplificação dela como o Direito Racional Moderno, as quais o autor faz ao final

do parágrafo em que expõe as considerações mencionadas64, concepção esta que é

reforçada pela abordagem oferecida em um artigo intitulado Modelle juristischer

Argumentation in der Neuzeit, no qual faz uma recuperação dos modelos de

argumentação que foram desenvolvidos ao longo da passagem para a modernidade,

salientando que a primeira grande modificação foi justamente a adaptação do sistema

tradicional ao axiomático-dedutivo que dominou todas as argumentações a partir do

Século XVII65.

Independentemente de aceitarmos a opinião acima exposta, é certo

que, para poder cumprir com sua função de unificação e coordenação do

comportamento na sociedade, os dogmas fundamentais devem conter explícita ou

implicitamente uma teoria do direito material que funciona como fundamentação

última, e isso significa que precisam fornecer uma resposta relativamente concreta

sobre o que é o justo66. Nesse sentido, Viehweg menciona vários exemplos

64 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 36 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 17. 65 Cfe. Modelle juristischer Argumentation in der Neuzeit, na coletânea alemã p. 127-136 e Perspectivas Históricas de la Argumentación Jurídica: la Época Moderna, p. 150-163. 66 Relativamente concreta não significa que não seja flexível; ao contrário, como salientamos já ao tratar do enfoque dogmático, esse tipo de enunciado e seu conjunto enquanto teoria precisam justamente ser adaptáveis a contextos e situações variadas pela interpretação. Nesse sentido, afirma

históricos, como a teoria de base dos juristas romanos, tão oculta que é dificilmente

reconstituível67, ou a de Tomás de Aquino, que é bastante explícita.

Contemporaneamente, diz o autor, podemos considerar a positivação dos direitos

fundamentais nas constituições escritas como uma fixação de uma teoria do direito

material68.

Evidentemente, uma fixação desse tipo, afirma Viehweg em outro

artigo, datado de 196169, consubstanciada em normas escritas, resolve apenas uma

parte da questão, indicando o que se deve compreender como a teoria de base. A

praxis requer, ainda, que se fixe uma teoria dogmática da interpretação, cujo papel

seria justamente o de indicar como os textos devem ser interpretados, a fim de que se

encontre a referida teoria de base70.

Sem dúvida, diz Viehweg, o intérprete está remetido a uma ordem

constitucional que contém em si uma teoria do direito não apenas formal, como

também material. Se em tese isso é claro e coerente, na prática nem sempre o é, pois

essa teoria surge dos costumes, dos hábitos, da eticidade.

Ademais, a unidade ou uniformidade de uma teoria jurídica material

desse tipo é necessariamente postulada, mas na realidade está tão cheia de tensões

que, no fundo, sua harmonização coloca, a todo jurista e, em particular, a um tribunal

constitucional, consideráveis dificuldades. Uma teoria do direito assim constituída

tem a função de evitar que a interpretação se torne interminável – embora se saiba

perfeitamente que também a constituição precisa ser interpretada – e indicar o que é

considerado num determinado círculo jurídico como problemática da justiça,

BALLWEG, Ottmar. Analyse de la Jurisprudence à l’aide d’un modèle de la science sociale. Archives de Philosophie du Droit, Paris, n. 14, p. 257-264, 1969, p. 264: “La doctrine de base est caractérisée par la flexibilité. Elle aussi est mise hors question à l’égard de son contenu essentiel”. 67 Nesse sentido, SCHULZ, Fritz. Principios del derecho romano. Tradução de M. A. Vellasco. Madrid: Civitas, 1990, passim. O autor faz um recenseamento dos princípios organizadores do Direito Romano, no sentido daquelas noções que estavam na base da elaboração do direito mesmo, seja pelos legisladores, seja pelos juristas. Lista os seguintes: isolamento, abstração, simplicidade, tradição, nação, liberdade, autoridade, humanidade, fidelidade e segurança. 68 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 38 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 20. 69 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 48-49 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 34-35. 70 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 45-60 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 29-51.

fixando, com isso, o campo das argumentações jurídico-dogmáticas possíveis71. Uma

breve discussão de conceitos de teoria constitucional contemporânea pode nos

auxiliar a enxergar melhor o que Viehweg está apontando.

De acordo com Aguiló72, podemos reler a tradicional classificação das

constituições em abertas/fechadas como uma oposição entre constituições que

admitem desenvolvimento e aquelas que não o admitem. As primeiras têm um perfil

político e ideológico que permite o detalhamento de políticas em mais de um sentido,

sem que se possa dizer que se está fugindo de seu desenho regulativo e sem

necessidade de modificarmos o seu texto. As segundas, pelo contrário, são cerradas

no sentido de que seu desenho regulativo é estrito e apenas permite uma ou outra

direção. Obviamente, se aplicarmos essa noção às constituições efetivamente

existentes, perceberemos que isso se aplica bem a algumas de suas normas ou a

alguns setores de regulação presentes nas cartas constitucionais, de modo que as

constituições reais combinariam ambas as características. Como modelos opostos, no

entanto, os polos da classificação assim lidos nos permitem entender de modo

radicalmente diverso o papel da constituição no ordenamento jurídico. As

constituições abertas requerem desenvolvimento e estão presentes em todos os atos

de criação e aplicação do Direito, seu papel é exatamente guiá-los. Elas se

desdobram e vivificam nos atos de criação e aplicação dentro de um ordenamento

jurídico. As constituições fechadas ou cerradas, ao contrário, têm um grande poder

normativo naquilo que regulam, mas sua força expansiva é limitada. Estão

concebidas para serem executadas e aplicadas, não desenvolvidas.

É possível estabelecer uma relação entre as constituições abertas, a

sua necessidade de desenvolvimento posterior e a imprecisão de seus textos, bem

como, em sentido oposto, entre as constituições cerradas, sua necessidade de

aplicação e os seus textos mais precisos. A problemática que aparece aqui é,

portanto, a dos acordos incompletamente teorizados e dos conceitos essencialmente

controvertidos como características das constituições abertas.

71 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 48-49 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 34-35. 72 Cfe. AGUILÓ REGLA, Josep. Sobre el constitucionalismo e la resistencia constitucional. Doxa, 23, 2003, p. 289-317.

Sem dúvida que as constituições que manuseamos nos sistemas

jurídicos contemporâneos trazem em seus textos direitos, princípios e valores, os

quais, dado o alto grau de abstração em que se colocam, são objeto de controvérsias

interpretativas infinitas. Por um lado, porque realmente estão colocados em um plano

abstrato, por outro, porque representam posições importantes na luta política e, por

isso, não são abandonadas facilmente. A discussão sobre seu sentido não é apenas

uma questão semântica, passível de ser resolvida por uma definição estipulativa, mas

uma questão prática, de alto caráter valorativo. São o que, seguindo a reconstrução

de Marisa Iglesias, podemos chamar de conceitos essencialmente controvertidos.

Conforme essa autora, os conceitos essencialmente controvertidos são

caracterizados por quatro traços: são conceitos valorativos, pois atribuem uma

avaliação positiva ou negativa a objetos; são complexos, porque compostos por um

conjunto de propriedades que precisam ser postas em relação umas com as outras

para que se obtenha uma concepção a seu respeito, ou seja, necessitam que se

formule uma teoria com a relação entre as propriedades e admitem mais de uma

teoria; são argumentativos, vez que requerem um desenvolvimento permanente de

tentativas de persuasão sobre seu uso adequado, envoltos que estão em constante

controvérsia; e são funcionais, na medida em que canalizam as disputas políticas por

bens sociais relevantes, funcionando, na expressão de Aguiló, como um ringue ou

uma arena.73

Aguiló propõe que esses conceitos essencialmente controvertidos

podem ser vistos – se mudamos o ângulo de observação e nos deslocamos do

momento em que se interpreta e se desenvolve uma constituição para o momento em

que ela é formulada – como os acordos incompletamente teorizados tal como

concebidos por Cass Sunstein74.

Sunstein, procurando explicar como é possível a feitura de uma

constituição quando não se é capaz de chegar a um consenso sobre determinados

pontos controvertidos, sustenta a tese de que isso se faz incluindo no texto

constitucional cláusulas mais ou menos abertas, as quais ele denomina acordos 73 Cfe. IGLESIAS VILA, Marisa. Los conceptos esencialmente controvertidos en la interpretación constitucional. Doxa, 23, 2000, p. 77-104. 74 Cfe. SUNSTEIN, Cass. Constitutional Agreements without Constitutional Theories. Ratio Juris, Vol. 13, n. 1, March 2000, p. 117-130.

incompletamente teorizados. Se insistíssemos em teorizá-los completamente e

primeiro esclarecer seu sentido e alcance em termos de atribuição de posições sociais

e direitos, provavelmente inviabilizaríamos o acordo, dado que há diferenças de

opinião irreconciliáveis. Essas divergências são, no entanto, resolvidas com duas

estratégias básicas: uma abstração ainda maior e a consagração de algo que deverá

ser definido posteriormente na prática interpretativa que se seguirá ao

estabelecimento do texto constitucional; ou o abandono da consagração de algo que

resulta difícil de acordar em termos mais genéricos em troca da fixação do que

chama de princípios de médio alcance. No primeiro caso, o acordo é viabilizado pelo

aumento do grau de abstração; no segundo, pela particularização. Em ambos os

casos, produz-se acordo e se torna possível fazer uma constituição porque, de fato, se

silencia sobre aquilo que não é consensual e se centra a discussão naquilo

relativamente a que se pode obter consenso.

Por evidente, Sunstein não está propondo que não se deva ou possa

apostar em teorias constitucionais como um mecanismo de produção de consenso e,

com isso, de produção de constituições baseadas em acordos completamente

teorizados sobre bens sociais, direitos e valores. O importante em sua análise é

mostrar que, em sociedades pluralistas como as nossas, a capacidade das teorias de

produzirem consenso pode ser limitada, e uma das maneiras de entender como,

mesmo assim, é possível produzir uma constituição que seja respeitada é através da

categoria dos acordos incompletamente teorizados.

O mecanismo dos acordos incompletamente teorizados por abstração

é, como bem aponta Aguiló, o uso de conceitos essencialmente controvertidos. Esses

conceitos, dadas as características que examinamos acima, deverão ser objeto de um

desenvolvimento posterior, deliberativo e argumentativo, dentro dos quadros

institucionais previstos pela própria constituição, ou seja, a partir de procedimentos

de determinação previstos por ela para legitimar a concreção necessária realizada.

Os acordos incompletamente teorizados por particularização, por sua

vez, serão objeto de procedimentos de inclusão por analogia, de modo que os novos

casos considerados suficientemente similares possam receber a mesma solução

jurídica. Isso também implica, como se pode facilmente observar, procedimentos

argumentativamente estruturados.

Resumindo o quadro que esboçamos acima, temos a ideia central de

que fazer uma constituição não significa resolver definitivamente todos os problemas

jurídicos e políticos que possam surgir, mas iniciar algo que Aguiló qualifica como

uma prática constitucional. Essa prática depende de assumir-se a distinção entre

estabelecer uma constituição e viver uma constituição como algo relevante e que põe

um compromisso de desenvolvimento da constituição aos participantes do sistema

jurídico.

Resolve-se, assim, a objeção de que a constituição implica uma

limitação do poder decisório das decisões presentes e futuras, vinculadas que estão à

ditadura dos mortos, e compreende-se melhor que, ao se estabelecer a constituição, o

vinculativo para as gerações futuras está na formulação de princípios e valores que

serão reinterpretados na prática constitucional do presente.

Nesse sentido, mais resistentes seriam as constituições nas quais se

produziu essa possibilidade, ou seja, nas quais há uma identificação (ainda que

relativa e constantemente revisada) da geração futura com os princípios e valores

postos pelos constituintes, e não necessariamente com os conteúdos concretos que

ela trouxe em si.

Pois bem, parece plausível apontar que a proposta de Viehweg de que

os sistemas jurídicos estruturam-se em torno de uma teoria de base pode ser lida

como um outro modo de explicar como o delicado equilíbrio entre obediência às

constituições regulativas e seu desenvolvimento posterior, por uma prática

constitucional, pode ser – e, de fato é – obtido.

Como vimos, o que caracteriza uma teoria de base é a sua relativa

indeterminação e seu caráter altamente valorativo. Se, em momentos históricos –

passados, como afirma Viehweg –, a teoria de base estava fixada em outros suportes,

as sociedades contemporâneas legitimam os conteúdos jurídicos ao atribuí-los, ainda

que de maneira difusa, a uma teorização sobre quais são os modos corretos de se

organizar a sociedade. Embora uma afirmação assim possa nos fazer pensar que

estão resolvidos os problemas jurídicos, um olhar mais detido sobre ela revela que

essa teoria está longe de ser algo definitivo e plenamente dotado de sentido.

Em um mundo pluralista e atravessado por visões não apenas

diferentes, mas, por vezes, antagônicas, de quais são os objetivos sociais a serem

atingidos e quais os princípios que devem ser seguidos, a constituição recolhe em si a

teoria de base com essa caracterização fortemente valorativa e ao mesmo tempo

carente de desenvolvimento através de uma prática interpretativa.

No momento em que se faz a constituição, portanto, os acordos

incompletamente teorizados, tal como caracterizados por Sunstein, servem para

viabilizar que um ponto de partida seja fixado. Esse ponto de partida, no entanto,

deverá ser desenvolvido pela prática interpretativa. Esta prática interpretativa interna,

que, na linguagem de Viehweg, está vinculada à perspectiva dogmática e se traduz

em uma dogmática jurídica específica para cada sistema jurídico, trabalha, ao mesmo

tempo, com o “constrangimento” de jamais afastar o ponto de partida que é a norma

constitucional e a tarefa de reinterpretá-lo constantemente, fazendo aquilo que

Viehweg chamou de um desenvolvimento imanente. A caracterização dos conceitos

essencialmente controvertidos, por seu turno, explica como esse desenvolvimento

imanente é possível e representa respeitar a vinculação e, concomitantemente,

desenvolver o sentido das normas constitucionais nas quais eles aparecem.

Quanto maior a capacidade da dogmática jurídica de trabalhar com os

conceitos essencialmente controvertidos e traduzir a teoria de base de modo

satisfatório para o padrão de exigência atual de uma sociedade, maior será a

capacidade de se obterem respostas satisfatórias aos problemas jurídicos e políticos a

partir do texto constitucional, e, com isso, diminuir-se-á a necessidade de reformá-lo.

Dito de outro modo: maior será a sua resistência. Constituições regulativas, plenas de

conceitos essencialmente controvertidos, nesse raciocínio, exigem um maior

empenho dogmático, embora, evidentemente, não se esteja aqui sugerindo que uma

boa dogmática jurídica resolva todos os problemas de aplicabilidade da constituição.

Mas, sem dúvida, torná-la um todo dotado de sentido, mesmo com as contradições

valorativas que a permeiam, é algo que depende de se assumir o compromisso de

“viver em Constituição” na terminologia de Aguiló.

Podemos entender melhor, agora, como se dá a relação entre uma

dogmática jurídica e aquilo que Viehweg chamou, quando da discussão sobre a

diferença entre dogmática e zetética, de uma ideologia jurídica, e que estaria na base

da dogmática. A teoria de base aqui mencionada, cujo conteúdo são as opiniões

fixadas sobre o que é justo num determinado momento histórico para uma sociedade,

é, pois, o que anteriormente conhecemos sob a designação de ideologia jurídica75.

Independentemente de sua origem – leis, sentenças ou manifestações religiosas –, o

papel desempenhado por esse tipo de enunciado e por seu conjunto é o fornecimento

de orientação à praxis e à sua peculiar necessidade de decisão, formando o conteúdo

de uma dogmática jurídica em um determinado momento histórico.

A perspectiva de Viehweg sobre esse assunto é, portanto,

eminentemente orientada pelo critério da função. Não importa como essa opinião

vem a ser elaborada e quais sejam os seus princípios de legitimação. Toda

organização social que se pretende racionalizável prepara e fundamenta uma teoria

de base que dá ou pode dar ensejo a uma dogmática jurídica, cuja estrutura de

pensamento é determinada por essa sua função76.

Mas, se essa é a tarefa que cabe à dogmática, diferente é a que cabe à

filosofia do direito. Esta é colocada por Viehweg como possuidora de um duplo

papel. O primeiro é vinculado ao fato de que ela participa essencialmente no

75 A esse respeito, afirma BALLWEG, Ottmar. Science, Prudence et Philosophie du Droit. Archives für Rechts- und Sozialphilosophie, op. cit., p. 556: “Si l’on étudie la dogmatique quant à son contenu materiél, on peut facilement constater qu’elle contient une idéologie ou une interprétation totale du caractère confessionel ou qu’elle y renvoie dans le but que cette idéologie amplifie, valorise et interprète ces formules. Cette base de la dogmatique nous l’appelons une idéologie ou une théorie à fonction sociale, qui livre les présuppositions de la compréhension de la dogmatique et de l’interpretation”. Ou, ainda, em Analyse de la Jurisprudence à l’aide d’un modèle de la science sociale. Archives de Philosophie du Droit, Paris, n. 14, 1969, p. 258-264, p. 261: “Dans la doctrine de base, il s’agit d’une idéologie, dans lesquelles les buts de la société sont formulés. Il s’agit d’une interprétation universelle de la réalité sociale, dans le sens plus large, avec une fonction sociale évidente”. 76 Por isso, entendemos que se deve recusar a assimilação do pensamento de Viehweg ao jusnaturalismo, como desejam alguns críticos, alinhando-o ao movimento de retomada das ideias jusnaturalistas no pós-guerra, como propõe explicitamente Luiz Alberto Warat. Cfe. WARAT, Luiz Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1995, p. 93-98. Acreditamos que Viehweg não considera especialmente relevante a presença de um corpo de normas cujo fundamento seja o direito natural, mas insiste em criticar o positivismo por um outro aspecto de sua pretensão, que é a redução da racionalidade aos instrumentos da razão teórica e da lógica formal, bem como pela sua recusa em tratar o problema da justiça dentro de uma teoria do direito. A esse respeito, pode-se ver o artigo de Viehweg intitulado Was heisst Rechtspositivismus? e que está na coletânea alemã p. 166-175 ou, na coletânea espanhola, sob o título ¿Qué significa Positivismo Jurídico?, p. 52-65.

surgimento de uma teoria do direito. Da filosofia do direito nasce uma teoria de base

que dá ensejo, por sua vez, a uma dogmática jurídica. O segundo papel é que, depois

de ter gerado uma teoria do direito, ela não fica em repouso e converte em objeto de

investigação também referida teoria, agora dogmatizada77.

Se isso é verdadeiro no que tange à teoria do direito no velho sentido,

cabe agora perguntar como esse processo se dá quando a teoria do direito no novo

sentido se instaura, levando-se em consideração que ela se pretende algo

radicalmente diverso daquela outra78.

4. A divisão tripartite de Viehweg e a moderna teoria estrutural do direito

Ao abordar a teoria contemporânea do direito, Viehweg propõe dela

uma caracterização em dois aspectos básicos. Em primeiro lugar, a nova teoria se

pretende uma teoria estrutural e desloca a questão da justiça para um segundo plano,

mostrando-se especialmente cética em relação à possibilidade de tratá-la

cientificamente79.

Em segundo lugar, parte de fenômenos jurídicos e se preocupa em

averiguar sua estrutura de um ponto de vista lógico ou sociológico, ou mesmo em

ambos os aspectos. Exige sempre uma linguagem exata, científica, ou seja, 77 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 39 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 21: “Primero, participa esencialmente en el surgimiento de la teoría del derecho. Pues una teoría tal presupone necesariamente ideas jurídico-filosóficas y también experimentos mentales. Esto es indiscutible, cualesquiera que sean los otros presupuestos necesarios que haya todavía que tener en cuenta. Por consiguiente, para nuestra reflexión es posible indicar la siguiente cadena de reflexión: filosofía del derecho – teoría del derecho (en el viejo sentido) –, dogmática jurídica. Esto significa: de la filosofía del derecho resulta una teoría del derecho que, en tanto teoría fundamental, posibilita una dogmática jurídica. Esta cadena se mantiene, aun cuando un análisis más exacto pueda mostrar en ella importantes retroefectos”. 78 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 40 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 22. 79 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 40 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 22. Um bom exemplo de teoria estrutural em que aparece claramente a dificuldade de tratar internamente a questão da justiça é a obra de Kelsen, que é citado por Viehweg, juntamente com outros autores, quando da discussão mencionada. Pode-se consultar especialmente KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1993, passim.

optimamente controlável, e postula que, somente quando essa análise estrutural tenha

sido concluída com uma linguagem pura, poderá ficar clara a indagação acerca de

quais são as demais questões a responder80.

Ao partir dos fenômenos jurídicos como se dão aqui e agora, a teoria

estrutural, salienta Viehweg, acaba por tomar como objetos de investigação a

dogmática jurídica dominante e sua teoria do direito no velho sentido, podendo ser-

lhes útil numa perspectiva crítica. Supondo-se que ao final apresentasse uma teoria

que pudesse servir de base a uma dogmática jurídica em sua totalidade – algo que,

desde logo, não seria possível, esquivando-se da questão acerca do justo –,

apresentar-se-ia uma nova teoria do velho tipo81.

A nova teoria do direito se vê como uma investigação independente,

cujo objetivo não se liga diretamente à dogmática jurídica. Antes, pelo contrário, sua

independência, por assim dizer, o é justamente em relação aos condicionamentos que

uma teoria com perfil dogmático tem e que uma abordagem científica não deveria

conter, conforme se propõe a ser a nova teoria. Não deseja, por conseguinte, servir à

dogmática jurídica, ao menos não em primeiro lugar, mesmo porque julga não ter

clareza sobre até que ponto estaria em condições de fazê-lo. Diferentemente,

portanto, da teoria do direito no velho sentido, cuja pretensão era fornecer um núcleo

conceitual firme à dogmática jurídica82.

Depois dessa caracterização da teoria no novo sentido, Viehweg passa

a sustentar a tese de que ela mesma é filosofia do direito em sentido objetivo, apesar

de que não queira ser chamada assim, recusando-se a ser considerada uma filosofia.

Todavia, em sua intenção de questionamento ilimitado e radical, coincide

integralmente com o intento filosófico83. Em suas palavras:

80 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 40 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 23. 81 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 41 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 25. 82 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 41 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 24. 83 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 42 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 25.

Más bien, en su intención, coincide con toda investigación filosófica. Tampoco el camino que recorre en su trabajo se distingue básicamente del que en actualidad es elegido por la mayoría de los filósofos. Está orientada empíricamente, como en la actualidad casi toda la filosofía, por más que puedan haber diferencias con respecto a la forma como se conciba el concepto de experiencia. Al igual que casi toda la filosofía contemporánea, comienza con la descripción de los fenómenos; con buenas razones, confiere la máxima importancia al uso controlable del lenguaje y cuenta aquí con el apoyo de la semiótica, hoy sumamente apreciada en la filosofía. Subraya la pureza lógica y encuentra actualmente entre filósofos de corrientes muy diversas un interés extraordinariamente grande y altamente desarrollado en la lógica científica, que se expresa en la lógica matemática. Por ello, por su intención y método es filosófica y, como su interés se centra en el derecho: filosófico-jurídica84.

Ao verificar as características da nova teoria do direito, Viehweg a

percebe como uma investigação básica, enquanto esforço científico. Na medida em

que não se vincula a nenhuma área específica, como a sociologia do direito ou a

história do direito, mas acompanha e complementa essas investigações

especializadas, bem como as da dogmática jurídica, pode-se considerá-la uma

filosofia do direito. Se isso é correto, então a cadeia antes indicada permanece

inalterada85.

Viehweg não discute explicitamente nesse contexto até que ponto a

recusa da nova teoria estrutural do direito em tratar a questão da justiça como

questão fundamental do direito interfere na preparação de uma teoria de base, que

continua sendo tarefa sua, ainda mais se estiver correta a constatação de que ela é

filosofia do direito em intenção e método. Faz algumas considerações, no entanto,

em um artigo que versa sobre o positivismo jurídico, datado de 1965, colocações

estas que, a seu turno, talvez possam ser úteis para entendermos melhor essa

questão86.

Nesse artigo, após tecer um rápido pano de fundo sobre o positivismo

jurídico e filosófico, Viehweg escolhe como seu ponto de partida a pergunta: O que

significa que os juristas práticos alemães (e ocidentais em sua larga maioria) se

84 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 42 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 25- 26. 85 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 42 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 26. 86 O artigo mencionado intitula-se Was heisst Rechtspositivismus? e está na coletânea alemã às p. 166-175 ou, na coletânea espanhola, sob o título ¿Qué significa Positivismo Jurídico?, às p. 52-65.

autoqualifiquem juspositivistas? Referem-se eles a uma teoria juspositivista

determinada? Não é o caso, responde, porque uma teoria positivista unitária que

exerça efetiva influência junto aos juristas práticos não existe. Eles o são, de acordo

com suas próprias afirmações, no sentido de que se sentem obrigados pela legislação

positiva87. Essa posição manifesta-se concretamente como ceticismo diante de

interpretações e de legitimações mais amplas88.

Quanto ao primeiro ponto, o programa do juspositivismo prático é

incoerente, afirma Viehweg, porque a interpretação esbarra na textura aberta da

linguagem, que somente poderia ser mudada se obtivéssemos uma matematização

completa da linguagem jurídica89.

Naquilo que tange ao segundo, é claro que o jogo algorítmico, em

termos de lógica-matemática, que seria esboçado se matematizássemos a linguagem,

carece de sentido se os elementos do cálculo não forem previamente determinados

unívoca e racionalmente. Em outras palavras, a prescrição de como interpretar as

premissas do jogo tem que estar previamente legitimada. Um juspositivista coerente

mostra-se cético exatamente em relação à possibilidade de a legitimação ser feita de

um ponto de vista científico. Nos dois pontos, o juspositivista prático para no meio

do caminho e não oferece uma justificativa para tanto, justificativa esta que

implicaria responder à pergunta: como conceber uma teoria da legitimação de

alcance médio?90

Todavia, as razões pelas quais o positivismo age desse modo não são

absurdas e podem ser facilmente compreendidas, avalia Viehweg. Em primeiro lugar,

87 Diz Viehweg, em ¿Qué significa Positivismo Jurídico? p. 56: “Muchos juristas, judicialmente activos – es decir, que aplican el derecho vigente y no trabajan en el nivel legislativo –, podrían decir más o menos lo siguiente: nos consideramos juspositivistas en el sentido de que estamos obligados por la Constitución a atenernos, en todas nuestras reflexiones dogmáticas, a la Constitución positiva vigente aquí y ahora, así como también a las leyes positivas y sus equivalentes válidos constitucionalmente. Nos sentimos obligados a no sobrepasar los límites de nuestra legislación positiva. En este sentido, pensamos positivamente y evitamos todo pensamiento transpositivo. Nos parece que esto es también practicable. Consideramos que los pensamientos transpositivos son superfluos y improcedentes”. Ou em Was heisst Rechtspositivismus? p. 169. 88 Cfe. Was heisst Rechtspositivismus? p. 166-175 ou Qué significa Positivismo Jurídico? p. 55-56. 89 Não sem ironia, Viehweg menciona que Leibniz, aos vinte anos, já percebia que só se conseguiria uma adequada descrição unívoca se a linguagem ordinária fosse criticamente avaliada e purificada, o que implicaria, em última análise, a matematização. Assim, não basta, para sustentar as pretensões do positivismo, candidamente propor cautelas na interpretação. Cfe. Was heisst Rechtspositivismus? p. 170-171 ou ¿Qué significa Positivismo Jurídico? p. 58-59. 90 Cfe. Was heisst Rechtspositivismus? p. 172-173 ou ¿Qué significa Positivismo Jurídico? p. 60.

é perceptível que a necessidade de legitimação varia consideravelmente de acordo

com as circunstâncias, em especial as políticas. Em situações políticas estáveis,

pode-se recorrer de maneira quase tranquila, por assim dizer, aos dispositivos

constitucionais. A razão para cortar a série de legitimação está na própria

peculiaridade do pensamento dogmático, e os dispositivos constitucionais fornecem

um bom ponto de apoio para essa necessidade de legitimação restrita91.

O segundo aspecto a considerar é o de que toda análise do contexto de

legitimação que volte às origens acaba por desvelar uma ignorância humana que

precisa ser preenchida por uma convicção ou um ato de fé. Uma recusa, tal como a

do positivismo, de fornecer fundamentos de crença como legitimação atende ao

interesse em propiciar uma neutralização em um mundo dividido em concepções

judaico-cristãs, islâmicas, hinduístas etc.92

Viehweg toca, aqui, em um tema que percorre sua reflexão, embora

não seja tratado de modo explícito, que é o da tecnificação da sociedade e sua perda

de referenciais transcendentes. Embora nunca venha tratado com amplitude, parece-

nos que o problema constitui, sem dúvida, uma questão candente para o autor, que a

ele se refere em vários contextos distintos, inclusive quando aborda a chamada teoria

estrutural do direito e sua vertente positivista, afirmando a assimilação de alguns

postulados caros ao positivismo, ao que chama de “espírito de nossa época”93, e

quando coloca a pergunta sobre a possibilidade de uma desideologização completa

da dogmática jurídica94.

91 Cfe. Was heisst Rechtspositivismus? p. 173 ou ¿Qué significa Positivismo Jurídico? p. 61-62. Em outro artigo que versa sobre o mesmo tema, Positivismus und Jurisprudenz, datado de 1971 e publicado apenas na coletânea alemã (p. 159-165), Viehweg afirma: “So gesehen bemerkt man unschwer, dass die restriktive Intention der positivistischen Argumentation für den praktischen arbeitenden Juristen grosse Anziehungskraft haben muss. Denn sie kommt seiner dogmatischen Arbeit zugute, die já darin besteht, eine Handlungs und Entscheidungsdogmatik für ein Entscheidungsdenken dadurch zur Verfügung zu stellen, dass bestimmte Argumente ausser Frage gestellt werden. Die restriktive positivistische Argumentation deckt sich also mit dem dogmatisierenden Interesse des Juristen” (p.164) (“A partir dessa perspectiva, é fácil perceber que a intenção restritiva da argumentação positivista deve ser muito atraente para o jurista de atuação prática, pois favorece seu trabalho pragmático, que, enfim, consiste em oportunizar novo dogmatismo de atuação e decisão para um pensar decisório, excluindo determinados argumentos de questionamento. A argumentação restritiva, positivista, coincide, portanto, com o interesse dogmático dos juristas.” Tradução nossa). 92 Cfe . Was heisst Rechtspositivismus? p. 173 ou ¿Qué significa Positivismo Jurídico? p. 62-63. 93 Cfe . Was heisst Rechtspositivismus? p. 173 ou ¿Qué significa Positivismo Jurídico? p. 62-63. 94 Em Ideologie und Rechtsdogmatik (na coletânea alemã, p. 86-96, e na espanhola, sob o titulo Ideologia y Dogmática Jurídica, p. 99-113), Viehweg destina um item a essa discussão, concluindo pela impossibilidade de um acontecimento tal e salientando que a tecnificação da sociedade poderia

O que é importante observar para a presente discussão é a necessidade

de legitimação que acontece sempre, mesmo que seja interrompida a meio do

caminho como Viehweg menciona, e que passa a ser orientada para – e por – dois

procedimentos complementares.

Da perspectiva concernente ao conteúdo do direito, a legitimação

passa a ser feita cada vez mais pela remissão à ideia de vontade geral expressa por

intermédio de um corpo de representantes cujo papel precípuo é fazer a legislação. A

legitimação decorre, desse modo, da formulação política da representação e dos

procedimentos necessários à positivação de um direito que vem entendido como

vinculativo porque colocado pelos seus próprios artífices. Enquanto distinção

tradicional, some a necessidade de se reportar a um corpo de regras naturais que

determinariam (e, por isso, legitimariam) o caráter vinculativo do direito posto, e o

direito passa a ser o positivo95.

Se isso é verdadeiro, também o é que continua sendo necessário

compreender como o conteúdo do direito aparece numa sociedade em um

determinado momento histórico. Embora a dimensão da validade seja agora (e

especialmente por obra de uma teoria estrutural do direito como a que vínhamos

discutindo) referida de forma quase exclusiva a um procedimento a ser cumprido,

também é certo que se considera a constituição de um ponto de vista do conteúdo, no

sentido de uma teoria de base vinculativa96.

Essa é a importância da reflexão de Viehweg sobre a vinculação de

uma dogmática jurídica a uma teoria de base determinada. A referida construção

permite entender como, mesmo quando se recusa a sê-lo, a teoria estrutural

conduzir a um tratamento dogmático tão perfeito das premissas ideológicas que elas pareceriam desideologizadas e neutralizadas, mas isso não significa que a ideologia de base teria desaparecido. 95 Para uma análise do processo de positivação e da legitimação que acontece muito mais pelo procedimento do que pelo conteúdo, pode-se consultar LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: UnB, 1980, especialmente p. 117-125, ou, do mesmo autor, Sociologia do Direito I, Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, especialmente p. 225-238, bem como Sociologia do Direito II, Tradução de Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 7-95. Consulte-se também FERRAZ Jr., Função Social, op. cit., p. 49-75. 96 Diga-se de passagem, e a fim de evitar mal-entendidos, que uma teoria sociológica tal como a de Luhmann, a que nos referimos quando mencionamos a legitimação pelo procedimento, não desconsidera essa questão da necessidade de se compreender como surgem os conteúdos do direito, mesmo quando ele é considerado como fruto de uma decisão e válido por ser exatamente isso. A esse respeito, veja-se LUHMANN, Sociologia do Direito II, op. cit., p.7 e ss.

contemporânea fornece premissas de base à dogmática, no momento em que se

apresenta como um tratamento neutro e técnico daqueles conceitos gerais que

aparecem em todos os sistemas jurídicos e que compõem a sua estrutura básica. Ao

mostrar-se como não ideológica, ela reforça a aparência necessária de neutralidade

que a dogmática requer, justamente porque não tem mais como amparar-se em

consensos valorativos uniformes advindos da tradição ou da religião97.

No que concerne à questão do saber jurídico dogmático, portanto, e

para sua própria sobrevivência, sua legitimação inclui a referência à ciência e ao não

questionamento metafísico que vem contido na proposta moderna de ciência e que se

adapta perfeitamente ao espírito positivista da época, do qual não se escapa nem

mesmo, como Viehweg muito bem ressalta, quando se busca apoio em investigações

zetéticas, como as da sociologia do direito ou da ciência política, que nasceram

justamente sob a égide do pensamento positivista98.

É interessante também observarmos que a teoria estrutural do Direito

foi objeto, ainda, de um outro artigo de Viehweg, no qual ele afirma a sua relação de

complementaridade para com uma teoria retórica do Direito, cujo papel precípuo

seria justamente o de pensar e fundamentar como os conteúdos normativos são

encontrados sem que se recorra, como aliás não deseja a teoria estrutural, à

evidência. Uma teoria retórica precisaria explicitar, nesse sentido, como se poderia

manter sob controle a presença dos atos de vontade e valorativos que a teoria

estrutural mostrou fazerem parte da gênese da norma, tanto no que diz respeito ao

papel do legislador quanto no que é relativo àquele do intérprete99.

Recorrendo a Perelman, Viehweg afirma que:

Si se tiene en cuenta la libertad de creación material, puede verse con suficiente claridad que aquí reside el punto de contacto entre la teoría pura del Derecho de Kelsen y la teoría retórica de Perelman. Pues esta última está caracterizada porque no excluye la creación del contenido del derecho (es decir, un momento legislativo) sino que la incorpora a la

97 Cfe. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. A Ciência do Direito, op. cit., p. 46-47. Vide também, do mesmo autor, Função Social, op. cit., p. 49-75. 98 Cfe . Was heisst Rechtspositivismus? p. 175 ou ¿Qué significa Positivismo Jurídico? p. 63-64. 99 O artigo intitula-se Reine und Rhetorische Rechtslehre e foi originalmente publicado em 1981. Encontra-se na coletânea alemã às p. 214-217 e, na espanhola, sob o título La teoría pura del derecho y la teoría retórica del derecho, p. 191-195.

teoría del derecho y, de esta manera, logra complementar la teoría de Kelsen.100

Ao afirmar, dessa forma, que a cadeia entre filosofia do direito, teoria

do direito e dogmática jurídica permanece inalterada, mesmo quando a teoria

estrutural pretende afastar-se completamente dos problemas de conteúdo, Viehweg

salienta também algo importante para a presente discussão, que pode ser registrado

nos seguintes termos: uma “ciência” do direito que faça jus à complexidade de seu

objeto precisa considerar a dependência recíproca entre os três âmbitos ou modos do

saber jurídico, precisamente porque somente pela análise da relação entre eles é que

se pode ter uma visão adequada sobre o direito. Retirar-se da discussão de conteúdo

em nome da ciência, como pretendeu fazer a teoria estrutural, não resolve a questão;

antes, pelo contrário, evidencia a necessidade de um outro trabalho, que pode ser

feito partindo da retórica101.

Sintetizando a discussão feita até aqui, cabe agora precisarmos em que

sentido ou sentidos podemos entender que se dá a dependência recíproca entre os três

tipos de saber que compõem uma ciência completa do direito.

Como vimos, uma dogmática jurídica tem como base uma teoria

material do direito, cujo conteúdo é justamente o que podemos reconhecer como os

seus dogmas fundamentais. Essa teoria de base precisa ser racionalizada e

investigada; tal tarefa, sob um enfoque zetético, cabe à filosofia do direito ou à teoria

do direito no novo sentido. Dogmática e teoria de base são, pois, examinadas por

uma investigação zetética, ao passo que, reciprocamente, ambas testam e

desenvolvem, a partir de um enfoque dogmático, aquelas premissas cognoscitivas

que podem ser tomadas da investigação zetética.

A teoria do direito depende da dogmática jurídica porque, diz

Viehweg, é excluída a possibilidade de uma teoria do direito mantida no isolamento

e que possa desenvolver-se por si mesma até os detalhes, tomando em conta os

problemas. Porém, igualmente excluída está a possibilidade de se aceitar sem mais,

100 Cfe. Reine und Rhetorische Rechtslehre, p. 216 ou La teoría pura del derecho y la teoría retórica del derecho, à p. 194. 101 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 43 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 27.

dentro do marco de uma ciência do direito, a teoria do direito obrigatória para a

dogmática jurídica102. E isso porque uma teoria que se subtraia ao exame científico

não pode oferecer à dogmática jurídica a necessária base cognoscitiva e de

legitimação. Assim, deve ser indispensavelmente examinada pela investigação e pela

dogmática, a fim de promover, em todas as direções, sua conformação imanente103.

Pelo modo como essa discussão é realizada por Viehweg, entendemos

que a expressão “teoria do direito” é utilizada e entendida pelo autor em dois

sentidos. Há uma teoria do direito que funciona como teoria de base da dogmática

jurídica, no sentido de que lhe fornece seus dogmas fundamentais e é uma ideologia

em sentido funcional, na qual encontramos um caráter não apenas cognoscitivo, mas

também fundamentado em crenças. De outro lado, há uma teoria do direito, em

especial a teoria estrutural, que persegue sua identificação com a ciência, entendida

de acordo com o modelo moderno que abordamos no primeiro capítulo deste

trabalho, cujo objetivo, como vimos, não é o fornecimento de dogmas, embora suas

características acabem por formular e reforçar o “espírito da época”, e ela funcione

também, embora nesse sentido particular, como teoria de base.

Essa delicada relação não fica clara no tratamento que Viehweg lhe

confere, especialmente porque o autor usa os mesmos termos para indicar tanto a

teoria de base, no sentido de uma ideologia, quanto a teoria estrutural que se recusa a

funcionar como uma teoria de base. A interpretação acima proposta é uma tentativa

de esclarecimento. O que parece indubitável é que o autor pensava no enfoque

zetético como estando presente em investigações de cunho científico, quando

dirigidas a um aspecto específico, e em investigações filosóficas, cujo papel e

delineamento devemos ainda verificar melhor.

Nesse sentido, o tratamento do tema que Ottmar Ballweg desenvolve

em Rechtswissenschaft und Jurisprudenz é bastante mais esclarecedor. O próprio

Viehweg a ele se remete por diversas vezes, embora não o faça sobre este ponto

específico. 102 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 43-44 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 27-28. 103 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 43-44 ou Sobre la relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 27-28.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência ao capítulo 1.

Ballweg constrói um modelo de análise baseado na cibernética e

considera a existência de três diferentes modos de pensamento sobre o direito: a

Jurisprudência, a ciência jurídica e a filosofia do direito. Cada pensamento cumpre

uma função específica e isso lhe dá também uma estrutura que o diferencia dos

demais. Para este autor, a Jurisprudência é um conjunto complexo do qual fazem

parte, dentre outros aspectos, uma dogmática jurídica e uma doutrina de base. A

Jurisprudência não se identifica, assim, nem com a ciência, nem com a filosofia. Esta

última, aliás, toma como objeto de reflexão justamente as duas outras. Afasta-se,

assim, pela precisão terminológica, a possível confusão entre teoria de base e teoria

científica do direito104.

Resumindo e retornando ao modo como Viehweg colocou a questão,

podemos entender que a dogmática é examinada pela investigação zetética, tanto de

caráter filosófico quanto científico, que lhe fornece as premissas básicas e, ao mesmo

tempo, funciona como um corretivo permanente. A investigação zetética, a seu turno,

é dogmatizada e permanece enquanto conteúdo, no desenvolvimento interno tanto da

teoria de base quanto da dogmática jurídica propriamente dita.

De maneira complementar, portanto, ao que discutimos nos demais

itens deste Capítulo, quando abordamos diretamente a distinção entre enfoque

dogmático e zetético, vemos agora sob outro ângulo, e talvez de um modo um pouco

mais claro, que o saber jurídico apresenta-se sempre como um conjunto complexo de

conhecimentos que possuem, concomitantemente, vinculação com a direção de

comportamentos e necessidade de desenvolvimento reflexivo, nos moldes do que se

pode considerar uma investigação científica e filosófica.

Viehweg não responde diretamente à pergunta acerca da distinção

entre um pensamento científico e um pensamento filosófico105, mas nos apresenta

104 Cfe. BALLWEG, Ottmar. Rechtswissenschaft und Jurisprudenz. Basel: Helbing & Lichtenhahn, 1970, passim. É claro que a riqueza do trabalho deste autor não se resume a esses aspectos que comentamos. A eles nos restringimos porque entendemos que o objetivo aqui é explorar o tratamento dado por Viehweg ao tema, e, se isso inclui verificar as suas limitações, não supõe discutir todos os pormenores de outra proposta teórica, mesmo que intrinsecamente vinculada pela relação de afinidade profissional e teórica entre os dois autores. Ballweg foi primeiramente professor assistente de Viehweg na Universidade de Mainz e sucedeu-o como titular quando de seu afastamento. 105 Sobre isso, Ballweg afirma: “Grundlagenforschung kann sowohl in der Rechtsphilosophie als auch in der Rechtswissenschaft betrieben werden. Rechtsphilosophie wird aber dadurch nicht zur Wissenschaft, auch nicht zur Grundlagenwissenschaft, denn noch immer arbeiten Philosophie und

várias indicações de como concebia essa questão, em especial quando aponta como

deve ser mais detalhadamente entendida a filosofia do direito enquanto investigação

básica. Este é o objeto do próximo capítulo.

Wissenschaft mit verschiedenen Methoden und verschiedenen Zielen und unter verschiedenen Bedingungen”. Em vernáculo: “A pesquisa básica pode ser feita tanto na Filosofia do Direito quanto nas Ciências do Direito. Todavia, nem com isso Filosofia do Direito vem a ser Ciência, tampouco Ciência Básica, pois Filosofia e Ciências ainda continuam trabalhando com métodos distintos e objetivos distintos, e sob condições distintas” (Tradução nossa). Cfe. BALLWEG, Ottmar. Rechtsphilosphie als Grundlagenforschung der Rechtswissenschaft und der Jurisprudenz. Jährbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie. Band II, Düsseldorf; Bertelsmann Universitätsverlag, 1972 p. 43-49. Do mesmo autor, vide também Analyse..., op. cit., p. 257.

CAPÍTULO IV

Filosofia do Direito e Investigação de Base

1. A filosofia do direito como pesquisa de base

Não há, por parte de Viehweg, uma análise detalhada e explícita do

que se possa considerar um pensamento científico e qual a sua distinção para com o

pensamento filosófico. Desse modo, podemos afirmar com segurança apenas que o

autor entendia que um enfoque zetético, como vimos, pode dar ensejo a um discurso

ou a uma argumentação científica e a uma argumentação filosófica. Quanto a esta

última, o pensador a qualifica como investigação básica sempre que a analisa.

Vejamos como se pode compreender essa qualificação.

Quando qualifica a filosofia do direito como investigação básica,

Viehweg ressalta explicitamente que a problemática estudada o é sob a perspectiva

da ciência do direito. Isso não significa, segundo ele, que se desconsiderem outros

aspectos com os quais se conta como auxiliares, mas revela uma vinculação com o

âmbito temático e prático escolhido.106

Em outras áreas do saber humano, também nos deparamos com a

investigação básica, como, por exemplo, nas matemáticas ou nas ciências naturais. O

comum a elas é o fato de que investigam aquilo que um âmbito de saber ou atividade

intelectual especial pressupõe e que lhe dá conteúdo e forma. Tem aqui importância

especial o fenômeno inicial eleito e, sem dúvida, a experiência profissional no

manejo da respectiva problemática concreta não pode ser deixada de lado.107

106 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 46 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 31. 107 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 46 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 31. Isso também é ressaltado por SCHRECKENBERGER, Waldemar. Semiótica del Discurso Jurídico. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. México: UNAM, 1987, p. 11: “De un análisis jurídico se puede esperar que dé respuesta tanto a cuestiones teóricas como prácticas. Debe tener en cuenta una ciencia del derecho caracterizada por su estrecha vinculación con la praxis del derecho”.

Como objetivo de tal investigação básica, pode-se indicar, conforme

Viehweg, o aprofundamento dos fundamentos de uma disciplina, e isso permite

diferenciar entre conhecimentos elevados e profundos. O percurso que uma

investigação básica percorre é, portanto, o dos conhecimentos elevados aos

fundamentos. Por conhecimentos elevados, entendem-se aqueles condicionados pelos

profundos, ou seja, pelos fundamentos. Há, dessa maneira, uma complementação e

uma dependência recíproca entre conhecimentos elevados e profundos.108

Viehweg não desce a maiores detalhes sobre o que reconhece como

conhecimentos elevados e profundos, e não dá nenhuma indicação de qual seria a

fonte de suas considerações, tornando particularmente difícil a compreensão do

alcance e do significado dessas categorias.

Ao observarmos essas primeiras definições ou noções de aproximação

do tema, é interessante constatarmos em que contexto elas vêm colocadas. O artigo

que estamos utilizando foi publicado em 1961 e foi preparado e apresentado por

ocasião da fundação da seção alemã da IVR – Internationalen Vereinigung für

Rechts- und Sozialphilosophie. Nele, o autor se propõe a tratar da investigação básica

e, mais especificamente, a mostrar como ela é praticada.109

Divide, assim, o percurso de sua argumentação em quatro partes. Em

primeiro lugar, algumas considerações gerais, nas quais se insere o que vínhamos

examinando e nas quais também consta um rápido balanço dos estudos realizados à

época sobre filosofia jurídica e social. Em segundo lugar, uma indicação do ponto de

partida da abordagem e a caracterização do objeto da investigação básica que aqui

interessa. Em terceiro, o tratamento sintético de questões de estrutura básica do

direito; e, em quarto, uma sucinta análise da teoria básica do direito.110

É importante constatar, portanto, que precisamos observar não só o

conteúdo do referido artigo, mas seu percurso e sua forma para compreendermos

108 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 46-47 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 32. 109 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 46 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 31. 110 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 45 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 29.

como e o quê Viehweg tinha em mente quando falava em investigação básica como

tarefa da filosofia do direito.

Quanto ao ponto de partida de uma investigação básica e de sua

investigação básica em especial, o autor menciona a possibilidade de se escolher

entre dois caminhos distintos, embora complementares: estudar as instituições

jurídicas enquanto sociais; ou o pensamento jurídico, também enquanto cumpridor de

uma função social. O importante, ressaltando o que já havia sido dito anteriormente

por ocasião da explicação do que é investigação básica, é que a descrição do

fenômeno seja apoiada pela própria ciência do direito.111

Para os fins da discussão presente, diz Viehweg, escolhe-se o

pensamento jurídico como ponto de partida e especialmente o pensamento do jurista

prático, envolvido com a aplicação do direito.112

Na situação atual e a partir do enfoque escolhido, afirma ele, podemos

constatar que o jurista volta a entender-se como intérprete do direito. A consequência

disso é que há de perguntar-se por uma teoria da interpretação mais ou menos

confiável, ou, mais exatamente, por uma prescrição de interpretação para os textos

jurídicos que permita captar a teoria material do direito.113

Sabemos já que a teoria do direito implícita na constituição tem a

função social de evitar que a interpretação jurídica se torne infinita e é

contemporânea a teoria de base. Ressaltando isso, Viehweg menciona a importância,

para quem realiza investigação básica, de observar-se esse fenômeno em detalhe.

Coloca, ademais, essas considerações sobre a teoria de base contemporânea como

uma digressão cujo objetivo foi evitar mal-entendidos e mostrar de um modo mais

claro o que se poderia considerar como uma investigação básica necessária, já que a

praxis jurídica requer uma teoria de tal tipo.114

111 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 48 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 33. 112 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 48 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 33. 113 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 48-49 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 34. 114 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 49-50 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 35-36.

Retornando ao seu tema precípuo, Viehweg afirma que a investigação

de base que se tem observado divide-se em duas vertentes: estrutura básica do direito

e teoria básica concreta. Com base nisso, propõe-se a apresentar alguns exemplos de

cada uma das vertentes, salientando que, apenas para fins analíticos, se pode separá-

las.115

No primeiro caso – da estrutura básica do direito –, levando-se em

consideração que o enfoque escolhido é o da estrutura de uma dogmática jurídica,

um bom exemplo é a confrontação entre a lógica matemática, com base nos novos

desenvolvimentos da lógica formal, e a Jurisprudência, a fim de evidenciar a

ausência de rigor na argumentação jurídica, o que implica, também, refletir sobre

suas causas e sobre a questão concernente a se isso é ou não algo evitável.116

Ainda quanto à estrutura, Viehweg faz uma interessante comparação

entre um pensamento dialético moderno, hegeliano, e sua prescrição de interpretação

totalizante e uma outra possibilidade de tratar com um pensamento dialético não

hegeliano, que conduz, segundo ele, a uma interpretação aberta e fragmentária que vê

o todo de outra forma.117

Ressaltando a importância dessas investigações para o pensamento

jurídico, Viehweg acaba a análise estrutural afirmando:

En general se puede esperar de la investigación básica que indique aproximadamente las estructuras posibles de un sistema rector para la coordinación del comportamiento práctico. Manifiestamente, un tal sistema rector para el comportamiento práctico – es decir, no sólo un sistema para un pensamiento puro – tiene, por una parte, que ser lo suficientemente estable como para delimitar el campo de los argumentos permisibles y, por otra, lo suficientemente flexible como para mantenerse abierto a modificaciones futuras, sin perder su punto medio, es decir, su carácter.118

115 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 51 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 37. 116 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 51-52 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 38-39. Sobre esse tema, pode-se consultar KLUG, op. cit., passim, que é utilizado por Viehweg sempre que faz menção aos estudos de lógica-matemática e seus desdobramentos para a investigação jurídica. 117 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 53-55 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 41-43. 118 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 55 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 43.

Dessa comparação entre dois sistemas dialéticos119 e do percurso que

até agora foi desenvolvido pelo autor, em especial porque sua intenção era mostrar

como se faz investigação básica, fica evidente que estamos sendo remetidos à

elaboração de um modelo que permita investigar tanto o aspecto prático quanto o

aspecto teórico da atividade do jurista e, em especial, investigar o aspecto teórico

enquanto prático, ou seja, a produção mesma do conhecimento como um jogo

situacional.120

Esse modelo, como ficará mais claro em momentos subsequentes

desta análise da obra de Viehweg, está ligado ao que ele chama de tópica formal,

modelo este em que a tópica serve como inspiração enquanto jogo, durante o qual

afirmações são aceitas ou rechaçadas e consensos são produzidos e servem de base

para novos diálogos.

Se continuarmos a percorrer o argumento do referido artigo, chegamos

à teoria básica concreta. Viehweg volta a tecer considerações sobre a sua ligação

com a constituição, que serve de fundamento formal e material para essa teoria e,

embora não seja absolutamente determinada, é (porque dogmaticamente necessita

ser) sempre determinável. Ela funciona também como teoria vinculante da

interpretação e da criação legislativa simples ou infraconstitucional.121

Na medida em que a constituição enquanto texto também precisa ser

interpretada e remete à chamada constituição material, fruto do costume, da eticidade

e dos valores de uma sociedade, a observação desse enraizamento e suas

consequências para uma teoria material do direito é um tema muito importante.122

119 A referência ao sistema dialético hegeliano-marxista e a sua ligação com a prática política, científica e jurídica dos países do então bloco socialista aparece repetidas vezes nos ensaios de Viehweg e dá ensejo, inclusive, a um artigo específico, publicado apenas na coletânea alemã, intitulado Zwei Rechtsdogmatiken, p. 176-184, no qual o autor compara o sistema dogmático formado a partir dessa fonte com o sistema dos países ocidentais. Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p. 237. 120 Essa temática, que nos parece fundamental para todo o percurso da análise, foi já levantada no capítulo I e será objeto de considerações mais aprofundadas e específicas posteriormente. 121 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 55-56 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 44-45. 122 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 56 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 45.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência ao capítulo I.

Torna-se um objeto de grande interesse, afirma Viehweg, produzir

uma comparação cultural para descrever essas teorias com função social que são as

dogmáticas jurídicas, desde uma perspectiva cautelosamente sociológico-

antropológica. Esse trabalho teria como tarefa responder perguntas como as

seguintes: que estruturas de ordenamento são impostas? Quão alto é o grau de

racionalidade que essas teorias básicas conseguem dar às dogmáticas? Quais

imposições são consideradas obrigatórias?123

Além dessas questões, precisar-se-ia também propor a pergunta sobre

a possibilidade de se falar da “correção” ou da “retidão” das opiniões jurídicas de um

ponto de vista cognitivamente fundamentável. Nesse sentido, assevera Viehweg:

Suponiendo que hubiésemos entendido una teoría jurídica dogmática, al menos parcialmente, de una manera suficiente en su contexto total como para que parezca tener sentido la pregunta acerca de su corrección (pues una pregunta de este tipo no tiene nunca sentido con respecto a oraciones arbitrariamente separadas), suponiendo que tal es el caso, habría que encontrar y indicar un criterio cognoscitivo para un examen cognoscitivo.124

Essa busca de um critério cognoscitivo que servisse de parâmetro de

avaliação para as dogmáticas nos remeteria a uma imagem do homem, ou seja, a uma

perspectiva antropológica e a uma perspectiva rigorosamente situacional, sempre

incompleta e provisória do próprio conhecimento obtido.125

O problema de um parâmetro cognitivo para a avaliação das

dogmáticas jurídicas, que, como vimos, são teorias ideológicas em sentido funcional,

também aparece em um outro contexto e resulta na consideração do que o autor

chama de “possibilidades não-ideológicas de investigar ideologias”.126

É mencionado, então, um trabalho que se divide em dois planos. No

primeiro, pode-se realizar a análise comparativa das premissas das teorias jurídicas

123 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 57 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 46. 124 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 57 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 47. 125 Cfe. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 57-60 e La filosofía del derecho como investigación básica, p. 47-51. 126 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 91-92, e Ideologia y Dogmática Jurídica, p. 106-107.

dogmáticas, que serviria para elucidar quais os pressupostos dessas teorias, sem que

necessariamente se procedesse de modo avaliativo em relação a elas. No segundo

momento, ou seja, no plano da crítica, o ponto de vista lógico – segundo o qual se

devem preferir as teorias com melhor conexão lógica – poderia ser utilizado, bem

como se poderia avançar um passo a mais e exigir-se, além do aspecto lógico, que

tais teorias demonstrem o maior grau de racionalidade possível, de modo que nelas

predominasse o cognoscível.127 O que exatamente o autor quer dizer com

cognoscível não é definido, mas fica a ressalva de que essa elucidação teria de ser

realizada para que o referido trabalho fosse viável.

O mapeamento da filosofia do direito enquanto investigação básica,

proposto pelo autor no contexto que viemos até aqui analisando, colocou-nos

portanto, diante dos seguintes pontos: fazer uma investigação básica implica realizar

a análise estrutural, seja do ponto de vista das instituições jurídicas, seja do

pensamento jurídico, bem como a análise da teoria de base.

Em relação ao primeiro aspecto, não é demais apontar que a

investigação de Viehweg em Topik und Jurisprudenz pode ser considerada um

exemplo de análise estrutural centrada no pensamento jurídico. No artigo que

examinamos, a escolha que o autor realiza é também a de privilegiar o pensamento

jurídico e, em especial, o do jurista prático.

Em relação ao segundo aspecto, observa-se a tentativa de construir

uma saída para a análise da teoria de base que fuja dos impasses colocados pelos

ideais do modelo moderno de ciência, não renunciando a ela em nome de um

relativismo ético que se ampara na impossibilidade de misturar questões valorativas e

ideológicas com conhecimento científico, mas também não ignorando a sua natureza

valorativa e ideológica. A comparação entre as diferentes teorias de base enquanto

método de análise, o apelo que Viehweg faz a uma fundamentação antropológica,

bem como o recurso à lógica devem ser lidos nesse contexto.

127 Cfe. Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 91-92, e Ideologia y Dogmática Jurídica, às p. 106-107. Viehweg menciona que a discussão sobre parâmetros para avaliação de teorias ideológicas em sentido funcional foi feita com Ilmar Tammelo. Pode-se consultar, embora não seja especificamente uma obra voltada ao tema que Viehweg está discutindo, TAMMELO, Ilmar. Theorie der Gerechtigkeit. Freiburg/München: Verlag Karl Alber, 1977, especialmente p. 99-115.

A discussão da filosofia como investigação de base não é, contudo,

tratada apenas nesse panorama contextual, mas vem também relacionada àquele

outro da sociedade contemporânea, que valoriza sobremaneira a ciência. Vejamos o

que Viehweg tem a dizer a respeito para, então, concluirmos nossa caracterização da

filosofia como investigação de base.

2. O futuro da filosofia enquanto investigação básica

Em um artigo datado de 1968 e que versa sobre o futuro da filosofia

do direito enquanto investigação básica,128 Viehweg ressalta a vinculação existente

na sociedade contemporânea entre a ciência, a técnica e a pergunta pelo futuro.

Temos hoje uma cultura técnica, afirma ele, da qual faz parte a pergunta pelo futuro.

A sua ciência é, consequentemente, orientada para o futuro.

Numa sociedade assim concebida, o papel da filosofia tem de estar

ligado, assevera o autor, às ciências e procurar respostas para questões de

fundamentação que essas ciências lhe colocam. O futuro da filosofia é apresentar-se

como investigação básica ou como filosofia da ciência.129

Nesse sentido, Viehweg considera que as questões filosóficas cruciais

ou de primeira grandeza da atualidade são as seguintes: o que fazemos quando

praticamos ciência estrutural geral, como a matemática ou a cibernética? Ou ciência

natural, como a biologia ou a física? Ou, ainda, ciência social como economia ou

direito?130

No âmbito da filosofia do direito, as perguntas básicas são: que tipo de

atividade realiza o jurista dogmático ou o investigador do direito? Onde estão as

128 O artigo chama-se Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, na edição alemã, às p. 116-124, e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, na edição espanhola, p. 128-140. 129 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 120-121 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 133-134. 130 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 120 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 134.

diferenças estruturais e funcionais relevantes? Como se diferenciam as formas de

falar e argumentar nos distintos níveis da disciplina jurídica?131

Resumindo-se o que Viehweg propôs, podemos dizer que o futuro da

filosofia do direito consiste em apresentar-se como uma investigação de base.

Consequentemente, cabe-lhe a responsabilidade da reconstrução de uma ciência do

direito orientada para o futuro, não restritiva.132

A expressão “não restritiva”, empregada neste passo pelo autor, quer

significar que a ciência do direito assim reconstruída deve evitar o isolamento

propiciado pela preponderância do enfoque dogmático ocorrido durante o século

XIX, que se resumiu a uma visão histórica e dogmática do fenômeno jurídico,

abandonando as perguntas pela sua fundamentação mais ampla e se recusando a

refletir sobre as condições sociais, políticas e econômicas da época.133 Mesmo

porque, aponta Viehweg, a sociedade em que vivemos se volta para o futuro e quer

respostas sobre o que deve esperar dele, tornando insuficiente uma reflexão que se

oriente exclusivamente ao passado.

A vasta tarefa de reconstruir a ciência do direito é trabalhada de

diferentes modos, e o autor limita-se a indicar a sua posição sobre ela, mencionando

e desenvolvendo novamente a distinção entre dogmática e zetética.134 Aparecem,

então, considerações que já conhecemos sobre a diferença entre a teoria de base de

uma dogmática jurídica e o aspecto investigativo de uma filosofia do direito,

considerações essas que ganham aqui uma relevância especial, na medida em que o

autor está justamente discutindo a relação entre uma concepção desse tipo e as

exigências de uma sociedade baseada na técnica e na ciência.

131 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 120 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 134. 132 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 120 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 134. 133 Assim se expressa Viehweg: “Resumiendo, puede constatarse que la ciencia juridica del siglo XIX se basaba en una doctrina del derecho natural considerada como evidente. Por lo demás, especialmente en Alemania, estaba estructurada como una ciencia del derecho restrictiva, orientada al pasado. Estaba orientada hacia al pasado porque subrayaba y cultivaba de manera especial sus fundamentos históricos. Era restrictiva porque la fuerza de su dogmática jurídica consistía precisamente en no reflejar las amplias conexiones sociales”. Cfe. Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 133 ou Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 119. 134 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 120-121 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 134-136.

É interessante pensarmos, nesse sentido, que a própria distinção entre

um enfoque dogmático e outro zetético, retomada por Viehweg nesse contexto

temático, pode ser entendida como uma tentativa investigativa que se mostra

justamente como filosófica, enquanto investigação de base. Assim, parece-nos

razoável afirmar que a distinção cumpre bem as exigências que Viehweg vem

discutindo em seu tratamento do tema, em especial no modo mais explícito como ele

aparece no artigo a que ora fazemos referência.

Em primeiro lugar, a distinção está ligada às características do

fenômeno que estuda – o pensamento jurídico e sua complexidade – e parte da

própria atividade prática do jurista e do investigador ou cientista do direito, como

Viehweg definiu que uma filosofia deveria mostrar-se: como filosofia vinculada a

um campo temático determinado e, dessa maneira, como filosofia da ciência do

direito.

Em segundo lugar, a vinculação que essa distinção demonstra entre as

premissas do pensamento dogmático e a investigação zetética remete à busca da

sociedade atual por uma fundamentação científica de todos os conhecimentos e

relembra a observação, feita no capítulo anterior, de que os sistemas dogmáticos

mudam sua estrutura conforme a época histórica a que se destinam, e, ainda, revela

que há uma imbricação importante entre essa estrutura e aquilo que a sociedade

aceita como padrão de pensamento, evidenciando, também por este ângulo, o

enraizamento situacional de todo conhecimento.

Em terceiro, referida diferenciação procura ver a totalidade do

trabalho do jurista, salientando a distinta função social que cada tipo de

conhecimento – dogmático e zetético – cumpre, bem como sua necessária correlação.

A distinção, desse modo, auxilia a compreensão do conhecimento jurídico, evitando

o que Viehweg chama de “falsa consciência” em relação a tal conhecimento, bem

como possibilitando a construção de uma praxis jurídica adequada e de uma

correspondente teoria do direito.135

135 Nesse sentido, afirma Viehweg: “Dicho brevemente: en la época de la ciencia, el futuro de la filosofía del derecho reside en la filosofía de la ciencia o en la investigación filosófica básica. En este marco, le cabe la responsabilidad de la reconstrucción, en la sociedad industrial, de una ciencia del derecho orientada al futuro, no restrictiva. Sobre todo debe cuidar que, en el contexto de nuestro

Continuando na sua análise com base na distinção entre dogmática e

zetética, Viehweg alude ao processo constante de dogmatização e desdogmatização

produzido pela relação entre os enfoques e afirma algo que deve ser salientado nesse

momento da discussão:

Obviamente, todo esto pertenece a la realidad social en la que está integrada y a la que sirve la dogmática jurídica. Pero el cambio de esta realidad no es independiente de la concepción que se tenga en esta sociedad de este cambio. Por lo tanto, la concepción social del futuro es siempre relevante. Tiene especial importancia en una sociedad orientada hacia el futuro, en la que están acentuados la legislación y el perfeccionamiento del derecho.136

Nesse contexto, pois, a concepção social do futuro é sempre relevante,

seja no sentido de que ela fornece a base para a legislação e o aperfeiçoamento do

direito na direção que se deseja alcançar, seja no sentido de que seu conteúdo

cognitivo fornece parâmetros para a mudança mesma da concepção de futuro que se

deseja promover. De ambas as perspectivas, fica claro que a decisão acerca de se um

comportamento concreto é correto exige uma teoria da correção que indique por e

para onde deve dirigir-se o todo.137

Viehweg retorna, então, também nesse mesmo escrito a que nos

reportamos, à discussão sobre a possibilidade de se obter uma teoria da correção

fundamentável cientificamente, a exemplo do que já ocorrera no artigo que

anteriormente examinamos. Nesse mesmo sentido, renova suas ponderações sobre a

doutrina marxista-leninista e sua fundamentação totalizante, assim como aponta uma

outra opção, agora de uma forma mais desenvolvida.

O autor considera que o intento de pensar o todo como um todo

conduz a perigosos raciocínios apressados e, por isso, há que se tentar pensar e falar

mundo científico, se tenga una concepción correcta de nuestra disciplina. Por lo tanto, tiene de eliminar una eventualmente existente falsa conciencia a fin de promover, de la manera más desprejuiciada posible, una futura praxis jurídica y una teoría del derecho”. Cfe. Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 134 ou Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 120. 136 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 123 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 138. 137 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 123 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 138-139.

racionalmente no todo. Por isso, Viehweg propôs ater-se à velha dialética retórica,

sem uma interpretação do acontecer em sua totalidade. Parece aconselhável,

recorrendo a novos meios, despertar a consciência de como aqui, no discurso

racional, ou seja, no procedimento do falar controlável, de caso em caso e no tempo,

pode-se negociar sobre o futuro.138

Reaparece, agora de uma maneira mais explícita, a remissão à tópica e

sua estrutura como contribuições para se pensar um modelo de discurso racional. O

exame dos dois artigos, cujo tema explícito é a filosofia do direito como investigação

de base, permite afirmar, desse modo, que a concepção desenvolvida por Viehweg

passa pelo exame do discurso e de sua fundamentação racional.

Além desse aspecto, entendemos que os principais pontos que

podemos retirar da exposição até agora realizada são os seguintes: em primeiro lugar,

a ideia de uma fundamentação antropológica, em uma imagem do homem, para o

conteúdo das teorias de base; em segundo, a menção expressa à natureza incompleta

de todo conhecimento, que se pode mostrar apenas como aproximativo e nunca como

exaustivo dos fenômenos que investiga; em terceiro, a ressalva que estas últimas

afirmações trazem implícita, de que, mesmo se renunciamos a uma concepção de

conhecimento que acredite na sua completude e na sua infalibilidade, não

necessariamente precisamos deixar de procurar parâmetros racionais de investigação,

cujo fundamento esteja naquilo que é objeto de conhecimento, e não de crença.

É de se salientar, também, que a concepção de filosofia que Viehweg

apresenta, pelo que se depreende da exposição realizada, alinha-se com aquelas que

concebem o papel da filosofia como uma reflexão que parta dos campos temáticos

desenvolvidos pela ciência e investigue suas condições de possibilidade, seus limites

e suas especificidades. A própria maneira como a qualifica já o revela:

De esta nueva situación científica, resulta hoy y en el futuro próximo, también la filosofía tendrá que buscar sus problemas no al margen sino en las ciencias mismas. Tendrá que ocuparse aquí primordialmente de cuestiones teóricas de fundamentación para las cuales dan motivo las ciencias especializadas. Por ello, si no me equivoco totalmente, tendrá que presentarse ante todo como filosofía de la ciencia o como

138 Cfe. Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 124 e Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 139.

investigación filosófica básica. De aquí se infiere que cada vez será más difícil ser filósofo sin experiencia científica especializada. Por el contrario, ganarán importancia las filosofías ligadas con una especialidad.139

Essa passagem é a mais explícita que Viehweg elabora em sua obra e

mostra que o autor pode ser aproximado, neste ponto, da filosofia analítica e do

empirismo, os quais, como Stegmüller observa, propugnam à filosofia exatamente o

papel que Viehweg expõe acima.140 É bom lembrar, contudo, que, se o autor pode ser

aproximado a essas correntes teóricas neste aspecto, o mesmo não vale para outros

pontos, dentre os quais o da fundamentação racional dos discursos, mesmo quando

os meios da lógica formal não podem ser utilizados com sucesso, e que é, como

sabemos, um dos aspectos centrais da proposta teórica de Viehweg.

De acordo com o perfil traçado acima para a atividade filosófica,

podemos agora compreender por que não encontramos uma explicação mais clara

sobre o que cabe a uma teoria científica. A filosofia como investigação de base será

exatamente quem deverá dizer como e em que condições pode-se falar em saber

científico, manifestando-se sobre a sua estrutura discursiva, mas diante da prática de

cada campo temático. Examinemos mais especificamente essa questão, verificando

que indicações Viehweg dá sobre o discurso e sua fundamentação racional, já que

esse é justamente o objeto que uma investigação de base deve ter.

Antes de examinarmos como Viehweg se manifesta sobre o discurso

racional e os temas conexos, devemos, todavia, observar que o autor nunca

desenvolveu essa temática de um modo acabado. Ao contrário, o que encontramos

em seus artigos e no último parágrafo de Topik und Jurisprudenz é um conjunto de

indicações sobre os principais problemas e suas possibilidades de desenvolvimento.

139 Cfe. Sobre el futuro de la filosofía del derecho como investigación básica, p. 134 ou Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 120. 140 STEGMÜLLER, op. cit., p. 4, ao fazer um recenseamento da filosofia contemporânea e seus problemas centrais, discute a relação desta com Kant e coloca uma das posições daí decorrentes, esposada pelo empirismo radical e pela filosofia analítica, do seguinte modo: “A filosofia não tem mais nenhuma possibilidade de, ao lado das diversas ciências, fazer afirmações baseadas e fundamentáveis sobre a realidade. Deve restringir-se aos campos da lógica, da teoria da ciência e da pesquisa instrumental”. Vide também p. 12 e ss.

Mais do que alguém que trilhou caminhos, Viehweg foi, neste

particular, alguém que os abriu e apontou direções141. Como vimos ainda no Capítulo

I deste trabalho, podemos considerar que o autor encontrou na pergunta sobre a

estrutura do discurso jurídico, em especial, da Jurisprudência, a questão central a ser

estudada.

Vimos também, ao longo do presente capítulo, que a discussão sobre

dogmática e zetética nos levou a considerar como tarefa de uma filosofia do direito o

que Viehweg qualifica como investigação básica enquanto análise da estrutura, ou

seja, do discurso. Com a ressalva de que esse ponto foi, por assim dizer, o ponto de

chegada da elaboração de Viehweg, e enquanto tal não foi desenvolvido em detalhes,

vejamos quais são as indicações que o autor nos deixou.

3. A investigação de base como teoria da argumentação

Em diversos artigos publicados entre 1972 e 1985, Viehweg oferece

uma visão panorâmica do tema mencionado acima, produzindo sua ligação com as

considerações sobre a filosofia do direito como investigação de base142.

Assim, afirma ele, as considerações filosóficas de nossa sociedade,

que vive da ciência, são vinculadas às disciplinas especializadas, e os problemas 141 Nesse sentido, manifesta-se ATIENZA, Manuel. Las Razones del Derecho: Teorías de la Argumentación Jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 63: “De todas formas, y como observación final, es necesario reconocer que en la tradición de pensamiento de la tópica jurídica que inaugura Viehweg pueden encontrar-se sugerencias y estímulos de innegable valor para quien desea adentrarse en el estudio – y la práctica – del razonamiento jurídico; pero, por sí misma, no suministra una base sólida sobre la que edificar una teoría de la argumentación jurídica. El mérito fundamental de Viehweg no es el de haber construido una teoría, sino el de haber descubierto un campo para la investigación. Algo, al fin y al cabo, que parece encajar perfectamente, con el ‘espíritu’ de la tópica”. 142 Os artigos mencionados são, por ordem cronológica, Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, publicado originalmente em 1972, p. 191-199 da edição alemã dos ensaios, Schritte zu einer Rhetorischen Rechtstheorie, de 1977 e que aparece somente na coletânea alemã, p. 200-205, Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, de 1978, p. 206-209, Zur Topik, insbesondere auf juristischen Gebiete, de 1981, p. 210-213, e, finalmente, Antirhetorische und rhetorische Kontrolle rechtlicher Argumentationem, de 1985, somente encontrado na coletânea alemã, p. 218-222. Na coletânea espanhola, temos Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 163-175, Sobre el desarrollo contemporáneo de la tópica jurídica, publicado em 1973 sob o título Zur Zeitgenössischen Fortenwiclung der juristischen Topik e que não aparece na coletânea alemã, p. 176-184, Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 185-190 e Acerca de la tópica, especialmente en el ámbito jurídico, p. 196-201.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo I.

filosóficos se desenvolvem em seu interior. Predomina hoje uma filosofia da ciência.

Ela inicia sua crítica filosófica perguntando-se especialmente sobre o que faz o

cientista quando pratica sua ciência, especialmente como descobre e utiliza seus

argumentos. Essa epistemologia filosófica tem que ser, em boa parte, uma teoria da

argumentação. No caso da ciência do direito – por uma parte, prudência jurídica, e,

por outra, investigação do direito –, trata-se de uma teoria do direito como teoria da

ciência no sentido indicado143.

O primeiro aspecto que deve ser salientado encontra-se nesta

qualificação da epistemologia filosófica como uma teoria da argumentação.

Cremos que aqui se encontra o cerne da proposta de Viehweg. Torna-se agora mais

fácil compreendermos o que o autor desejava afirmar quando chamava a filosofia do

direito de investigação de base. Uma investigação de base é, assim, uma análise da

argumentação produzida tanto no âmbito da dogmática jurídica quanto no da teoria

investigativa de caráter zetético.

Continuando o exame das indicações de Viehweg, encontramos a

afirmação de que a reviravolta retórica, operada em nosso âmbito desde os anos 50,

proporcionou novos aspectos para a análise descrita. Eles se referem, entre outros, à

problemática da linguagem, a questões da lógica operativa, assim como também a

novas questões de fundamentação, pois uma teoria retórica da argumentação

desenvolvida deverá apresentar uma teoria do discurso fundamentante144.

Embora possam ser analisados em separado, esses problemas ou

campos temáticos encontram-se intrinsecamente ligados entre si145. O ponto mais

importante, para as finalidades que Viehweg tem em mente, consiste em apresentar

uma teoria do discurso fundamentante. É em torno disso que se articulam, então, as

contribuições da lógica operativa e da análise da linguagem.

143 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 191 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 163. A terminologia que Viehweg utiliza aqui, “prudência jurídica” (Rechtsklugheit, juris prudentia) e “investigação do direito” (Rechtsforschung), bem como os seus significados para a teoria desenvolvida serão discutidos pormenorizadamente no capítulo VII. 144 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 191 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 164. 145 Sobre a imbricação entre lógica dialógica e fundamentação completa, vide SCHNEIDER, Hans Julius. Pragmatik als Basis von Semantik und Syntax. Frankfurt : Suhrkamp, 1975, especialmente p. 100-111.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência ao capítulo VII.

Iniciando-se pela lógica, observamos que Viehweg salienta de modo

especial a importância que tem o fato de a nova interpretação dialógica da lógica

permitir a incorporação da lógica formal na situação do discurso desde o início da

reflexão. Consequentemente, esboça-se uma dialógica que permite conceber o

diálogo como um jogo regrado entre dois jogadores ou partes. O conceito de

estratégia de vitória determina o que aqui é logicamente verdadeiro ou falso146.

Essa concepção articula-se com a herança retórica, precisamente

porque volta a valorizar a lógica como techné. A lógica enquanto teoria operativa das

ações discursivas coerentes, e não como uma teoria de objetos de tipo especial, teve

sempre influência na dialética retórica147.

Assim, afirma Viehweg, é perfeitamente possível entender em muitos

aspectos os esforços mais recentes no campo de uma lógica operativa como uma

recuperação e um progresso da concepção da lógica como techné retórica, pois, em

ambas, cuida-se de fazer compreensíveis as relações lógicas como operações lógicas

ou como diretrizes para operações lógicas, e, dessa maneira, evitar duvidosas

objetivações. Não se trata de uma nova lógica, mas novas formas não convencionais

da lógica, como, por exemplo, a interpretação dialógica148 da lógica operativa149.

Na medida em que a interpretação dialógica da lógica permite, desde o

início, situar os participantes no discurso, possibilita também investigar os produtos

do pensamento a partir do fio condutor de sua origem situacional. Isso significa

146 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 193 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 166. Sobre esse tema, veja-se FERRAZ JR., Tercio S. Direito, Retórica e Comunicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, passim. 147 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 192 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 165. 148 Pode-se consultar, sobre esse tema, KAMLAH, Wilhelm e LORENZEN, Paul. Logische Propädeutik: vorschule des vernünftiges redens. 3. ed., Stuttgart, Weimar : Metzler, 1996, em especial as p. 11-22 e 45-69. 149 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 193 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 165. A esse respeito, afirma SCHRECKENBERGER, op. cit., p. 17: “En el ámbito de habla alemana, ha sido sobre todo, Hugo Dingler quien ha indicado expresamente la función operativa del lenguaje de la lógica y de la matemática. El ulterior desarrollo de este punto de partida científico en una lógica operativa del diálogo expresa de manera más clara aun los componentes retóricos”.

justamente converter o processo de comunicação em objeto da investigação150,

objetivo que deve ser buscado por uma investigação jurídica de base151.

A perspectiva retórica é relevante nesse contexto – para o

desenvolvimento de uma teoria da argumentação –, pois ela não deixa esquecer que

todo discurso fundamentante representa sempre um conjunto de ações linguísticas e

sugere a pergunta sobre se essa constatação não adquire uma importância especial

quando consideramos como insuficiente a fundamentação axiomático-dedutiva e, por

isso, nos vemos motivados a complementá-la em uma argumentação completa. Ela

nos conduz, portanto, à problemática da fundamentação. Mais exatamente, à

pergunta sobre quando se pode falar de uma argumentação completa152.

Para melhor esclarecer como se estrutura essa problemática, Viehweg

recorre aos três planos da semiótica – sintático, semântico e pragmático. Constata-se,

afirma ele, que normalmente a fundamentação se dá no nível sintático, isolando-se o

discurso de seu contexto situacional. Se considerarmos, no entanto, que a separação e

o isolamento mencionados constituem uma simplificação ilícita, enfrenta-se a difícil

tarefa de incorporar ao processo de argumentação a conexão situacional originária, e

daí decorre a importância da lógica dialógica. Somente se isso se faz

suficientemente, parece ser possível uma fundamentação completa, inalcançável

através do sistema de fundamentação dedutivo153.

Uma retórica desenvolvida coincide, ademais, com a inversão dos

planos semióticos, pois lhe parece pertinente tomar como ponto de partida o diálogo,

ou seja, as ações linguísticas de ambas as partes em um contexto comunicativo. Isso

150 Cfe. Sobre el desarrollo contemporáneo de la tópica jurídica, p. 180 da coletânea espanhola. Viehweg faz remissão aqui a BALLWEG, Ottmar. Rechtsphilosophie als Grundlagensforschung der Rechtswissenschaft und der Jurisprudenz, op. cit, p. 43-49. Sobre a lógica dialógica, vide KAMLAH e LORENZEN, op. cit., passim. 151 Acerca disso, afirma BALLWEG, Science, Prudence et Philosophie du Droit, op. cit., p. 558.: “En ce qui concerne le programme de la recherche fondamentale juridique, il faut partir d’une théorie de l’argumentation juridique, prise comme partie d’un tout: la théorie de la communication. Il faut la considérer dans l’optique de l ‘éthologie (Verhaltensforschung, behavioral sciences), qui se fonde sur un modèle anthropologique, (Boucle de régulation, boucle de l’action, Handlungs-, Regelkreis, feed back aktion system)”. 152 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 194 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 167. 153 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 194-195 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 167-168.

significa, em outras palavras, começar a reflexão pelo plano pragmático154. Os usos

da linguagem que privilegiam a sintática e a semântica tendem, poder-se-ia dizer, ao

monológico. O pragmático conduz espontaneamente a tomar em consideração o

diálogo e os deveres comunicativos que aí ressaltam155.

Viehweg acentua, assim, a importância de uma nova corrente crítico-

linguística que se situa no âmbito da pragmática e que sustenta que só é possível

tornar suficientemente compreensível a situação pragmática geral se se concebem

suas expressões como diretrizes recíprocas para o descobrimento (invenção) e o uso

da linguagem. Segundo essa concepção, toda invenção e comunicação linguísticas

são levadas a cabo dando e recebendo diretrizes linguísticas para a ação156.

O novo interesse pela retórica sugere, além disso, a necessidade de

distinguir entre pensamento situacional e não situacional, a partir da distinção entre

os planos semióticos já mencionada. Por pensamento situacional, pode-se entender

aquele que se desenvolve tomando como ponto de partida o seu contexto, ou seja, de

um ponto de vista semiótico, o que é pragmaticamente condicionado. Não

situacional, ao contrário, é aquele que não toma em consideração a situação do

discurso157.

Pode-se constatar que a forma de pensar não situacional é preferida

porque, enquanto atividade intelectual, apresenta manifestamente menos dificuldades

154 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 194 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 168. Nesse sentido, FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. IX-XI, também afirma explicitamente que a pragmática tem sido descuidada na investigação. A moderna teoria da argumentação tem procurado inverter esse quadro, segundo o autor, acentuando a importância da “discutibilidade” e tomando-a como ponto de partida para análise do discurso. Este é concebido como “ação linguística” dirigida a outros homens. Inverte-se, então, a articulação entre sintática, semântica e pragmática, na medida em que o discurso é visto como produção de pensamento, e não como expressão de coisas pensadas. A lógica dialógica tenta uma investigação das operações lógicas fundamentais a partir disso. O diálogo é visto como jogo entre proponente e oponente, definindo-se a verdade pela estratégia de vitória, subordinada às regras do dever de asserção e prova. 155 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie,, p. 207 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 187. 156 Cfe. Sobre el desarrollo contemporáneo de la tópica jurídica, p. 182-183 da coletânea espanhola. A respeito da inversão dos planos semióticos, tomando a pragmática como ponto de partida, vide SCHNEIDER, op. cit., passim. Sobre comunicação e diretrizes linguísticas para a ação, vide KAMLAH e LORENZEN, op. cit., p. 188-201. 157 Cfe. Sobre el desarollo contemporáneo de la tópica jurídica, p. 177 da coletânea espanhola. A respeito, GARCIA AMADO, op. cit., p. 330: “El valor de la retórica estribaría aquí en que proporciona el modelo conforme al que es posible captar y comprender esa preponderancia del nivel pragmático del discurso jurídico, su dependencia de la Redesituation”.

que a situacional, apesar de que esta é a que, na prática cotidiana, é a decisiva. O

isolamento do contexto inicial favorece o ulterior desenvolvimento de uma

construção sintática isolada158.

Torna-se especialmente urgente esse tipo de análise quando o

partícipe de um diálogo recusa a fundamentação meramente sintática de uma

afirmação, considera-a insuficiente e exige uma fundamentação plena, que vá mais

além da sintática. Então se tropeça, diz Viehweg, na problemática situacional, da

qual se ocupa primordialmente a tópica, como ars inveniendi159.

Em geral, afirma Viehweg, será necessário conceder que, quando se

busca uma fundamentação que inclua a determinação dos axiomas, encontramo-nos,

por assim dizer, automaticamente, com a retórica. Possivelmente, em seu

desenvolvimento ulterior, ela é adequada para retrotrair toda nossa atividade

intelectual a um contexto prático, no qual se vinculam as condições lógicas e éticas

dessa atividade. Se isso é assim, então toda argumentação tem sua ultima ratio no

método de argumentar.160

Essa afirmação, ainda que não peremptória, de que a racionalidade da

argumentação está intrinsecamente vinculada ao método de argumentar, é de suma

importância. Se não se deseja recorrer à evidência e nem abandonar o campo das

ações humanas ao irracionalismo e à arbitrariedade, uma garantia possível é aquela

dada pelo esclarecimento do que ocorre quando são discursivamente construídas as

verdades requeridas pela ação. No ato de argumentar e contra-argumentar,

encontram-se as dimensões lógica e ética, iluminadas pela ênfase que a análise

pragmática da linguagem concede à situação do discurso, como vimos. 158 Viehweg lembra, neste particular, a diferença entre os axiomas da matemática e os de nossa disciplina. No âmbito jurídico, diversamente do que ocorreu no matemático, a axiomatização se apoiou em axiomas especialmente qualificados e, na maioria das vezes, duramente conquistados politicamente, de maneira tal que, justamente por eles e por sua referência situacional, nos remetemos a uma análise extrassintática, em última instância, situacional e pragmática. Cfe. Sobre el desarrollo contemporáneo de la tópica jurídica, p. 177-178 da coletânea espanhola. 159 Cfe. Sobre el desarrollo contemporáneo de la tópica jurídica, p. 178-179 da coletânea espanhola. Sobre isso, GARCIA AMADO, op. cit., p. 332: “Qué significado posee la tópica para este análisis retórico? La tópica sería núcleo central de la retórica. Si la retórica investiga el proceso comunicativo mediante el cual en la ‘situación discursiva’ se establecen significados, la tópica ofrece la mejor perspectiva para la comprensión de ese proceso productivo, pues los tópicos proporcionan ‘auxilios para la invención’, son una fuente de argumentos posibles, cuya utilidad se examina en cada caso a la vista de la concreta situación”. 160 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 197-198 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 172.

É compreensível também, a partir dessa constatação, a insistência de

Viehweg em dizer que sua preocupação central é a dimensão formal da tópica. De

fato, para quem desejava auxiliar a formulação do problema da investigação de base

no direito, o interesse centrava-se na inspiração que a tópica podia fornecer enquanto

método para a construção do diálogo. Evidentemente, a tópica sozinha não poderia

dar conta de uma tal tarefa, por isso recorre-se à pragmática da linguagem, à lógica

dialógica etc.

Se fundamentar um discurso é argumentar e contra-argumentar, então

é uma atividade que só é possível se se satisfazem determinados deveres de

comunicação. Por isso, afirma Viehweg, a tarefa de refletir sobre os deveres de

comunicação e seu cumprimento parece ter adquirido uma renovada importância

para a filosofia prática161.

Com respeito à problemática geral da fundamentação, ou seja, com

respeito à questão acerca do que pertence a uma fundamentação completa, pode-se

defender a tese de que ao menos a dialógica indicada e a obrigação comunicativa a

ela pertencem, segundo Viehweg162.

Explicitando melhor o que significa falar em “deveres de

comunicação” e relacionando essa temática com a concepção contemporânea que a

nossa sociedade tem sobre a ciência, afirma o autor:

La perspectiva retórica conduce, pues, a la cuestión acerca del comportamiento recíprocamente correcto de los hablantes. El discurso fundante – así podría decirse – significa formular aseveraciones que están sometidas a un deber de defensa (officium defensionis) y que sólo se mantienen cuando pueden satisfacer este deber de defensa. Por lo tanto, el diálogo entre el defensor y el oponente debe ser investigado teniendo en cuenta las obligaciones y sus diferenciaciones en él contenidas. El ataque, la defensa y el pedido de explicación deben ser reflexionados como obligaciones; esto parece ser especialmente urgente porque nuestra realidad ‘científica’ depende, en una medida insuperable, de las aseveraciones confiables de los demás. Dada la complejidad del mundo, la brevedad de nuestra vida y la limitación de nuestras capacidades, la

161 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 195-196 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 169. 162 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 196 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 170.

obligación de no distorsionar nuestra realidad con aseveraciones infundadas tiene un interés general.163

As considerações traçadas nesta citação mostram, portanto, que a

busca por uma fundamentação completa não implica postular um conhecimento

absoluto sobre a realidade, mas se faz necessária exatamente pela precariedade – em

termos de certeza – que nosso conhecimento traz consigo.

Assim, a perspectiva retórica, mais do que afastar a possibilidade do

conhecimento científico por introduzir nele elementos “não confiáveis”, como

valores ou conceitos pré-concebidos, traz consigo a oportunidade de vê-lo em seus

limites, sem desconsiderar a sua importância numa sociedade que se ampara no

domínio técnico e na ideia de progresso. Mais importante do que exigir um

conhecimento obtido de acordo com os cânones do modelo moderno de ciência é

poder tomar os produtos do conhecimento socialmente construído como afirmações

feitas dentro das regras do jogo de comunicação, que acarreta deveres éticos.

Se retornarmos, a partir das linhas gerais aqui traçadas com base nas

observações que Viehweg faz sobre o perfil de uma teoria retórica da argumentação

– entendida como uma epistemologia filosófica –, à discussão que realizamos no

Capítulo II, quando caracterizamos o modelo moderno de ciência e vimos suas

dificuldades164, podemos ver com maior clareza que os pressupostos levantados por

Viehweg ensejam uma revisão na forma de se entender a teoria e sua formulação,

bem como sua relação com a praxis.

Ao insistir na necessidade de uma fundamentação completa, que

requer novos modos de ver a lógica e uma inversão nos planos da linguagem, o que

implica resgatar a herança retórica, Viehweg propõe que se recoloque a dimensão da

racionalidade no mundo da interação entre os homens.

A noção de racionalidade é alterada nessa perspectiva. Procura-se um

novo modo de tratar o discurso racional. De acordo com Garcia Amado, a

investigação retórica seria, para Viehweg, a única capaz de desentranhar os

163 Cfe. Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 169 ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 195. 164 Vide especialmente o item 4 do Capítulo II.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25

Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo II.

Comment: Nota ao editor: referência ao item 4 do Capítulo II.

mecanismos últimos de sua racionalidade e começaria justamente por situar a

argumentação a analisar em seu contexto pragmático. Sobre este fundo pragmático,

no dizer do autor, a racionalidade possuiria regras específicas, distintas das que

organizam os planos sintático e semântico165.

Podemos compreender melhor porque a ideia de “situação” do

discurso, que vimos referida por Viehweg tanto no que diz respeito à lógica dialógica

quanto à pragmática da linguagem, é tão importante166. É ela, segundo Garcia

Amado, que unifica o trabalho de um conjunto de autores que procuram continuar e

ampliar as investigações iniciadas por Viehweg167.

A ideia de situação é tão importante nesse contexto porque justamente

se quer evitar a construção de um modelo de análise que repita, por assim dizer, os

mesmos pressupostos do modelo moderno de ciência. Para este modelo, como vimos

no Capítulo II, a noção fundamental é a proposição universal e abstrata, desvinculada

de sua situação de produção168.

É importante lembrarmos que essas concepções são partilhadas

também por outros autores que, nessa mesma época, procuram encontrar caminhos

diversos daqueles oferecidos pelo modelo moderno de ciência e de racionalidade.

Perelman e Toulmin, ambos citados ao longo dessas observações, são exemplos

165 Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 330-331. Vide também VIEHWEG, Antirhetorische und rhetorische Kontrolle rechtlicher Argumentationen, publicado apenas na coletânea alemã, p. 218-222. 166 Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 334: “Aquí surge el referente central de todas estas teorías, que ya aparecía en Viehweg dotado de decisiva importancia. Nos referimos al concepto de situación. En la concreta situación en que el proceso comunicativo se desarrolla, se han de buscar las claves explicativas de la articulación del discurso jurídico en cada caso y del significado, eminentemente operativo, de cualquiera de sus partes”. 167 Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 333-334. Este autor cita Schreckenberger, Seibert, Ballweg e Rödigen como os continuadores da obra de Viehweg, no sentido de que atualizaram, aprofundaram e construíram o campo aberto por ele. No Brasil, podemos considerar desse modo a obra de Tercio Sampaio Ferraz Jr. Evidentemente, todos esses autores não se limitaram às ideias de Viehweg, mas o ponto de contato pode ser buscado na tentativa de construir um modelo retórico de investigação da estrutura dos discursos. Deve-se mencionar também o fato de que cada um construiu seu ponto de partida de modo diferenciado, bem como se aplicou, posteriormente, a análises de objetos diversos. Seibert, por exemplo, realiza uma análise retórica dos textos utilizados no ensino jurídico na Alemanha. Schreckenberger examina as decisões – a jurisprudência no sentido que se utiliza no Brasil – do Tribunal Constitucional Alemão. Ferraz Jr. opta pela construção de um modelo retórico do discurso jurídico como um todo. Ballweg discute pormenorizadamente a questão da cientificidade da Jurisprudência e elabora um modelo de análise retórica do discurso. 168 Vide TOULMIN, op. cit., passim.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:25Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo II.

desse fenômeno169. A diferença que a proposta de Viehweg oferece reside na ênfase

que é dada à tópica, a partir da qual o autor articula os demais aspectos que vínhamos

examinando.

É preciso, contudo, olhar a tópica a partir da retórica, como salienta

expressamente Viehweg170. Essa ressalva se faz necessária diante do que ele chama

de atitude espiritual antirretórica e que caracteriza a cultura ocidental, a qual prefere

a concepção sintático-semântica da linguagem, aspira primordialmente a formular

constatações que se destacam do campo situacional e pretende utilizar a linguagem

como instrumento descritivo.171

A postura retórica, ao contrário, não se preocupa tanto em oferecer

uma imagem ampla do mundo; busca, sim, possibilitar, de uma maneira controlável,

a orientação em meio a uma realidade sumamente complexa. O que primordialmente

interessa aqui é elucidar como se leva a cabo a comunicação. É necessário investigar

o permanente processo de criação que, na situação do discurso, produz significados

linguísticos.172

A tópica pode oferecer uma certa visão nesse processo de produção.

Porém, como afirma Viehweg, desde que não seja julgada a partir da postura

antirretórica. A discussão sobre a tópica nos últimos anos mostra claramente que ela

pode ser também julgada antirretoricamente, e, com isso, os topoi são avaliados

desfavoravelmente, pois não podem satisfazer nem uma semântica bem ordenada,

nem uma sintática estritamente estruturada. De acordo com essa perspectiva muito

169 Além das obras de Perelman já citadas, podem-se consultar as exposições de GARCIA AMADO, op. cit., p. 312-322 e de ATIENZA, op. cit., p. 65-130. 170 Cfe. Zur Topik, insbesondere auf juristischen Gebiete, p. 210 e Acerca de la tópica, especialmente en el ámbito jurídico, p. 196. 171 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 208 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 188. Bastante exemplificativa dessa posição são a análise e, principalmente, as críticas que GARCIA AMADO, op. cit., passim, oferece da obra de Viehweg. 172 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 208 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 188. A esse respeito, diz Schreckenberger: “La concepción retórica de los signos remite, por otra parte, a la función comunicativa del lenguaje que se lleva a cabo en el contexto de acción que corresponde a la situación específica. Ve en el ‘acuerdo dialogístico’ que se produce en tales situaciones, una forma comunicativa básica del comportamiento social, que juega también un papel predominante en el lenguaje jurídico en la medida en que el esquema del diálogo no queda limitado a una situación de acción idealizada”. Cfe. SCHRECKENBERGER, op. cit., p. 14.

difundida, os topoi esperariam urgentemente por um tratamento filosófico,

especialmente por intermédio de uma elaboração descritiva e definitória.173

De uma perspectiva retórica, os topoi se apresentam como

compreensíveis na dimensão pragmática da linguagem. Enquanto fórmulas de busca

pragmáticas e situacionais, abrem um jogo criativo controlável174. Talvez o trabalho

mental que os topoi abrem e guiam possa ser esclarecido de alguma maneira se

forem eles reformulados como “convites”175.

Pode-se sustentar, de acordo com o autor, a concepção segundo a qual

todas as operações do pensamento têm que começar com tais diretrizes recíprocas, ou

seja, que nelas se encontram as verdadeiras raízes de todo discurso fundamentado.

Uma visão pragmática da linguagem, em conexão com a tópica, pode esclarecer isso

muito mais que a concepção sintático-semântica da linguagem176.

Nesse sentido, os topoi não pretendem refletir uma imagem do mundo,

nos termos da filosofia da linguagem da primeira fase, mas, de fato, estão mais

adequadamente a serviço do uso da linguagem que primariamente guia um

comportamento. Com sua ajuda, pode-se pôr de manifesto como funciona na praxis a

linguagem quando se passa do aspecto não retórico para o retórico177.

Cabe finalmente constatar, diz Viehweg, que a variada discussão

realizada sobre a tópica no âmbito jurídico produziu, entre outros, o seguinte

resultado: se se distingue entre uma forma jurídica de falar e pensar orientada

sintático-semanticamente e outra, tópico-pragmaticamente, percebe-se que a segunda

predomina in praxi, e, frequentemente, proporciona, in casu, a respectiva decisão178.

173 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 208-209 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 188-189. Sobre isso, vide, por todos, GARCIA AMADO, op. cit., passim. 174 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 209 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 189. 175 Cfe. Zur Topik, insbesondere auf juristischen Gebiete, p. 211-212 e Acerca de la tópica, especialmente en el ámbito jurídico, p. 198-199. 176 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie,, p. 209 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 189. 177 Cfe. Zur Topik, insbesondere auf juristischen Gebiete, p. 211 e Acerca de la tópica, especialmente en el ámbito jurídico, p. 198. Viehweg invoca aqui, utilizando-se, inclusive, de uma terminologia muito característica, as duas fases da filosofia da linguagem de Wittgenstein. Sobre este autor, pode-se consultar STEGMÜLLER, op. cit., p. 401-524. 178 Cfe. Zur Topik, insbesondere auf juristischen Gebiete, p. 210 e Acerca de la tópica, especialmente en el ámbito jurídico, p. 196.

Por isso mesmo, parece ser promissor, de acordo com o pensador

estudado, para uma teoria jurídica da argumentação, voltar a discutir a retórica

clássica, pois ela pode facilitar o acesso à resposta da pergunta acerca do que se faz

quando se pratica ciência do direito179.

A pergunta sobre o que atualmente se faz ou se deve esperar nos

âmbitos que se ocupam da teoria do direito, poderia ser, então, respondida, afirma

Viehweg, com a referência à investigação vinculada com a teoria da linguagem. E

nesta, com uma ênfase especial à pragmática. Uma das principais dificuldades desse

tipo de teoria é que ela se depara com uma formalística sintática e semântica bastante

forte. Até por isso, parece interessante não deixar de lado a retórica, que pode ser

designada como uma pragmática abreviada180.

O que ocorre com a concepção pragmática da linguagem, quando é

interrogada a partir da perspectiva da retórica, é que ela deixa claro que o mais

importante é que a dimensão pragmática da linguagem encontra sua compreensão

sempre a partir da situação do discurso e nos remete à lógica dialógica181.

Esses diversos aspectos compõem, portanto, de acordo com o autor, a

tarefa e os contornos mais gerais de uma teoria da argumentação. Ela encontra seu

fundamento na tópica, entendida enquanto forma e aproveitada na sua sugestão de

jogo regrado que se desenvolve entre partes que discutem, e, por essa razão, pode ser

dita uma teoria retórica da argumentação.182

Fica mais claro, nesse sentido, como Viehweg pensou a filosofia do

direito enquanto uma filosofia da ciência. Seu objeto é o pensamento jurídico, tanto

em sua dimensão zetética, quanto em sua dimensão dogmática. 179 Cfe. Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 197 e Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, p. 171. 180 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 206 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 185-186. 181 Cfe. Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 207 e Retórica, pragmática lingüística, teoría del derecho, p. 186-187. 182 A importância desses temas para o debate da época e para o autor pode ser mensurada se observarmos que o próprio Viehweg foi o organizador de um volume especial dos Archives für Rechts- und Sozialphilosophie, publicado em 1977, e intitulado justamente Recht und Sprache. A bibliografia sobre esses temas é, aliás, abundante especialmente nas décadas de 70 e de 80, e gerou, inclusive, uma ‘escola’ de autores que desenvolveram esses delineamentos iniciais e caminharam no sentido de uma teoria da argumentação. Para um panorama sobre esse trabalho posterior a Viehweg, pode-se consultar GARCIA AMADO, op. cit., p. 333-341. No Brasil, um exemplo do desenvolvimento da temática mencionada é a obra de Tercio S. Ferraz Jr.

No que diz respeito à dogmática, esclarecemos já como ela pode ser

objeto de uma abordagem zetética e quais as suas relações. Cabe ressaltar aqui

apenas que o proposto pelo autor como uma teoria da argumentação jurídica

significaria, conforme esse entendimento, precisar como se dá o discurso dogmático.

A tarefa da filosofia enquanto investigação básica não se esgota,

porém, nisso. De um ponto de vista zetético, uma teoria da argumentação precisaria

mostrar como se desenvolve o discurso em investigações que podemos chamar de

científicas enquanto analisam seus objetos de pontos de vista específicos ou

especializados, como o fazem, por exemplo, a história do direito ou a sociologia do

direito, além de tomar seu próprio discurso (filosófico) como objeto de

investigação.183

Como ressaltávamos no início da análise, embora Viehweg não tenha

desenvolvido uma teoria da argumentação, encontramos, nas passagens que acima

relatamos, pontos de partida para a sua elaboração184. Sem dúvida, esses aspectos são

apontados por Viehweg com base na vasta produção teórica que ocorreu nesse

âmbito na época em que elaborava seus artigos e não são fruto de sua própria

descoberta, como ele mesmo reconhece expressamente. O autor chegou a elaborar,

ao final do último parágrafo de Topik und Jurisprudenz, incorporado ao texto

original na última edição datada de 1974, uma relação bibliográfica185 pertinente aos

desenvolvimentos que a temática vinha recebendo.

Com essas observações podemos agora nos dedicar à análise de como

Viehweg entendeu o saber jurídico, a Jurisprudência, para, então, pensarmos como

estaria estruturado esse saber. Cabe perguntar, nesse sentido, qual dos enfoques –

183 Esta tarefa da filosofia do direito fica mais clara se levarmos em conta o que diz Ballweg. Para esse autor, a filosofia do direito põe em questão primeiramente suas próprias premissas, em segundo lugar as restrições e condições de possibilidades que a análise científica supõe e, em terceiro, analisa as condições da Jurisprudência. Cfe. BALLWEG, op. cit., passim. 184 Nesse sentido, manifesta-se SCHRECKENBERGER, op. cit., p. 15-16. Do mesmo modo, reconhecendo sua dívida para com a investigação de Viehweg, apesar das críticas que entende que ela deva receber, ALEXY, Robert. Teoria de la Argumentación Jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1978, p. 39-43: “Quien propone una teoría de la argumentación jurídica se ve en seguida identificado con la tópica jurídica, que ha jugado un papel tan importante en la discusión metodológica de los últimos veinte años”. E, ainda: “Sin embargo, debe mantenerse la tesis de la tópica de que incluso donde no son posibles fundamentaciones concluyentes, el campo no debe quedar abandonado a la decisión irracional, así como la idea de que el concepto de fundamentación racional está estrechamente enlazado con el de discusión racional”. 185 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 120-130 da edição alemã e p. 137-150 da edição brasileira.

zetético e dogmático – é empregado na Jurisprudência e como as considerações feitas

até aqui ajudam a esclarecer a estrutura e a função do saber jurídico.

Filosofia do Direito Professora Dra. Claudia Rosane Roesler

Vigência: 2013/1

Unidade III – A Natureza Tópico-Argumentativa do Pensamento Jurídico

1. A história da tópica e seu lugar no pensamento aristotélico e ciceroniano

2. Pensar por sistemas e pensar por problemas 3. Pensamento jurídico e tópica 4. Um modelo retórico de análise do discurso jurídico

CLAUDIA ROSANE ROESLER

Theodor Viehweg e a Ciência do Direito: Tópica, Discurso, Racionalidade.

Segunda Edição. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.

PROIBIDA A REPRODUÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DA AUTORA E DO EDITOR.

Capítulo V

A Tópica e a Jurisprudência

1. Considerações gerais sobre a relação entre a tópica e a Jurisprudência

Antes de iniciarmos a análise propriamente dita de como o autor

entendeu a Jurisprudência e sua relação com a tópica, é interessante ressaltarmos que

o texto básico da obra Topik und Jurisprudenz não foi significativamente alterado ao

longo de suas reedições, mas algumas observações foram agregadas, em especial nos

prefácios e no último parágrafo, incluso em 1974.

Procedendo à ligação dos assuntos que vínhamos discutindo no

capítulo anterior com o que abordaremos agora, temos a manifestação expressa do

autor no prefácio à quarta edição de Topik und Jurisprudenz, datado de 1969, no qual

se resume o estado atual da discussão do seguinte modo:

O ponto de vista de que uma teoria satisfatória da jurisprudência tem que se voltar para a retórica é hoje bastante difundido. O jurista aparece, neste sentido, em muitos aspectos como um perito da argumentação jurídica, dentro dos quadros de uma teoria geral e retórica da argumentação, isto é, de uma teoria do discurso fundamentante. Torna-se claro aqui, que um sistema axiomático-dedutivo não é capaz de fornecer fundamentos satisfatórios, tendo de ser completado por um procedimento racional de discussão, no sentido da tópica formal, o qual será abordado mais pormenorizadamente. Além disso, a atenção da pesquisa dos fundamentos na atualidade se dirige mais e mais para a dogmatização da tópica material em nosso campo, a qual pode realizar-se com ou sem a interpretação do decurso total da história.1

Pelo teor e pela terminologia utilizada nesse parágrafo, podemos

constatar que aparecem aqui os principais pontos com os quais concluímos nossa

análise no capítulo anterior. Viehweg menciona a importância do enfoque retórico e

a necessidade de se fazer, a partir dele, uma teoria da argumentação enquanto teoria

do discurso fundamentante. 1 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 9 da edição alemã e p. 13 da edição brasileira.

Podemos pensar, pelo que vimos anteriormente e pela situação na qual

se colocam as observações (como prefácio), que o autor considerava que sua análise

na obra em questão adequava-se aos desdobramentos posteriores que procura

ressaltar. Essa é também a perspectiva que desejamos tomar neste capítulo. Nossa

intenção é analisar como Viehweg investigou a estrutura da Jurisprudência e como

justificou sua tese de que esta possui uma vinculação com a tópica, compreendendo

essas observações como pesquisa dos fundamentos ou investigação básica. O

objetivo é, posteriormente, avaliar como a distinção entre enfoque zetético e

dogmático pode ser coadunada com a referida tese e qual a sua consequência para a

análise da Jurisprudência, aspecto ou aspectos sobre os quais o autor nunca se

manifestou expressamente.

Viehweg procede, para fundamentar sua tese de que a Jurisprudência

tem uma estrutura tópica, a uma análise do material histórico legado pela tradição,

acompanhando o saber jurídico desde a sua formação até os dias atuais. Deve-se

atentar para a sua expressa ressalva de que sua pesquisa, embora utilize referências

históricas de fundamentação, não se pretende uma investigação histórica2.

Nesse sentido, é importante recordarmos que, ao iniciar a discussão

propriamente dita, Viehweg faz menção à alusão de Vico que examinamos no

Capítulo I, e diz que seu propósito é acompanhar a transformação da Jurisprudência

em seu percurso histórico, atentando especialmente para a passagem, por isso a

importância de Vico, da antiga estrutura para a axiomática-dedutiva3.

Antes de verificarmos os detalhes desse percurso histórico, na forma

como é tratado por Viehweg, devemos ressaltar que o autor invoca a pesquisa

realizada por Ernst Curtius como um exemplo e um apoio à sua tese da persistência

da influência ou da vinculação entre a tópica e o saber jurídico.

2 Diz Viehweg, no prefácio à 2a. edição: “nesta dissertação usa-se, é verdade, material histórico, mas ela deve ser entendida como uma investigação sistemática e não genérica. Como é assinalado por diversas vezes, no texto, as questões ali propostas e a resolver não têm natureza histórica”. E adiante: “O autor apenas mostra um dado cultural (Geistigkeit), objetivamente constatável, especialmente configurado e bastante difundido, na medida em que afirma que a jurisprudência a ele pertence e que, portanto, uma pesquisa dos fundamentos da ciência jurídica deve dele partir”. Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 7-8 da edição alemã e p. 9 da edição brasileira. 3 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p.18 da edição alemã e p. 21 da edição brasileira.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo I.

Afirma Viehweg que a construção de uma tópica histórica que observe

a continuidade da utilização de alguns topoi no tempo e verifique se e quando novos

topoi aparecem e se impõem, tal como a pesquisa realizada por Curtius no âmbito da

literatura europeia, deveria ser também o objetivo de uma ciência histórica do

Direito4, a qual não é, contudo, seu escopo, conforme ressaltamos acima.

Viehweg organiza a sua análise, partindo do exame da tópica em

Aristóteles e Cícero, e verificando quais são os resultados que se podem obter.

Examina, em seguida, o ius civile e o mos italicus em seus “caracteres tópicos”, bem

como a tentativa de Leibniz de construir para a Jurisprudência uma “tópica

matematizada”. Contrapõe tópica e axiomática, e mostra a “renovada influência da

tópica na civilística atual”5. Conclui a obra no parágrafo 9o., incluído em 1974 por

ocasião da 5a. edição, com o inventário já mencionado no capítulo anterior sobre os

desdobramentos de sua tese enquanto uma teoria retórica da argumentação6.

Seguindo a ordem escolhida pelo autor, também esta exposição principia com as

considerações de Viehweg sobre Aristóteles e Cícero.

2. A recuperação da tópica: Aristóteles e Cícero

Segundo Viehweg, Aristóteles procura distinguir o campo do

apodíctico do vasto campo do dialético, considerando o primeiro como o da verdade,

destinado aos filósofos, e o segundo como o do meramente oponível (endoxon). A

obra Tópicos pertence, com as Refutações Sofísticas, ao terreno do dialético, e

Aristóteles faz esse percurso, ao longo do Organon, do verdadeiro ao meramente

opinativo7.

4 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 37 da edição alemã e p. 38 da edição brasileira. Vide também CURTIUS, Ernst R. Literatura Européia e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Ronái. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1996. 5 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 13 da edição alemã e p. 17 da edição brasileira. 6 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 111-119 da edição alemã e p. 101-107 da edição brasileira. 7 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 20 da edição alemã e p. 24 da edição brasileira. Viehweg denomina a obra de Aristóteles de Tópica, utilizando em alemão a expressão Topika. A tradução da referida obra

Com efeito, Aristóteles inicia os Tópicos explicando sua intenção de

encontrar um método com o qual se possam construir raciocínios sobre todos os

problemas que nos sejam propostos, a partir de opiniões aceitas ou plausíveis,

evitando contradições em nossos argumentos8.

Para Aristóteles, existem quatro tipos de raciocínios: os apodícticos,

obtidos a partir de proposições primeiras ou verdadeiras, ou delas procedentes, e que

constituem o campo da filosofia; os dialéticos, obtidos a partir de proposições

conformes às opiniões aceitas e que formam o domínio da arte da argumentação

(tópica); os erísticos ou sofísticos, fundados em proposições que parecem estar de

acordo com as opiniões aceitas, mas, de fato, não o estão; e os pseudorraciocínios,

que são feitos com base em proposições especiais de determinadas ciências9.

Os raciocínios dialéticos constituem o campo precípuo da tópica, e sua

especificidade, como demonstra a classificação, é a de que partem de opiniões

aceitas e verossímeis (endoxa), e não de verdades tidas por evidentes. Não se trata,

então, de um problema de correção ou de falsidade. Tanto os raciocínios dialéticos

quanto os apodícticos são formalmente corretos. A diferença decorre da natureza de

suas premissas10.

É interessante, nesse sentido, verificarmos que Aristóteles qualifica

como opiniões aceitas ou verossímeis (endoxa) aquelas que parecem verdadeiras ou

boas a todos, à maioria, aos mais sábios e, dentre estes, a todos ou à maioria ou aos

mais conhecidos e de melhor reputação11. Este ponto de partida é o que diferencia

um argumento de outro e permite qualificá-lo como dialético ou apodíctico.

para o espanhol e os comentadores que utilizamos usam a denominação Tópicos, razão pela qual nas citações de Aristóteles que realizamos esta é a designação utilizada. 8 Cfe. Tópicos, I, 100 a 20. A edição de Tópicos que utilizaremos é a seguinte: Tópicos. In Tratados de Lógica (Organon). Libro I. Tradução e Notas de Miguel Candell Sanmartín. Madrid: Gredos, 1994, p. 89-306. 9 Cfe. Aristóteles, Tópicos, I, 100 a 25, 100b 25-30. Vide também Topik und Jurisprudenz, p. 21-22 da edição alemã e p. 25 da edição brasileira. 10 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 25: “Um exame mais profundo dos raciocínios dialéticos, que, segundo vimos, constituem o objeto da tópica, leva-nos a afirmar o seguinte: de um ponto de vista formal, eles não se diferenciam em nada dos apodícticos. São formalmente corretos, o que, como foi observado, não se pode dizer de todos os raciocínios erísticos, nem de todos os pseudo-raciocínios (embora estes possam ser absolutamente corretos!)”. Na edição alemã, p. 22. 11 Cfe. Tópicos, I, 100b 20-25. Vide também Viehweg, Topik und Jurisprudenz, p.22 da edição alemã e p. 24 da edição brasileira.

Viehweg menciona a fundamentação filosófica e a ordenação que

Aristóteles dá aos raciocínios desenvolvidos a partir da tópica. Esse trabalho de

cunho mais teórico desenvolve-se com a classificação dos raciocínios de acordo com

quatro genera: acidente, gênero, propium e definição, e continua, posteriormente,

com a análise da indução e do silogismo como modos de fundamentação12.

Viehweg salienta, ainda, que existem outros quatro procedimentos

instrumentais (órgana) muito importantes que auxiliam a encontrar raciocínios

adequados: “a) a descoberta e a apreensão das premissas; b) a discriminação da

plurivocidade existente nas expressões lingüísticas e discriminação das diversas

determinações categoriais; c) a descoberta das diferenças de gêneros e espécie; d) a

descoberta de semelhanças nos diferentes gêneros”13.

A expressão topos aparece pela primeira vez ao final da análise desses

quatro procedimentos empreendida por Aristóteles14, finda a qual o autor passa a

discorrer sobre os topoi adequados para cada situação e como podem ser utilizados.

Encontramo-nos agora, como Viehweg observa, diante da praxis da tópica e

Aristóteles dedica-se demoradamente a mostrar as possibilidades de uso dos topoi,

classificados de acordo com os quatro genera que mencionávamos acima, ou seja,

conforme ao tratamento filosófico que lhes havia sido anteriormente dado. Esse

trabalho é desenvolvido pelo autor estagirita nos livros II a VII de Tópicos.

Deve-se ressaltar, todavia, que, embora o termo seja mencionado, ele

não vem, nesse contexto, definido. Uma definição de topos só é encontrada, ainda

que indiretamente, na Retórica, como salienta Viehweg. Nessa definição, Aristóteles

estabelece a ligação entre os topoi e os raciocínios dialéticos e retóricos, asseverando

que estes podem ser aplicados a qualquer área de conhecimento ou objeto, como é o

caso do topos do mais e do menos, ou especificamente a alguns objetos, cabendo

alguns apenas à Ética e outros apenas à Física15.

12 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 22-23 da edição alemã e p. 25 da edição brasileira. Vide, em Tópicos, 101b 15-35, 102 a, 102b, 103 a, 103b, 105 a 10-15. 13 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 23 da edição alemã e p. 26 da edição brasileira. Vide também Tópicos 105 a 20-35, 105b, 106 a, 106b, 107b, 108 a, 108b. Nessas passagens, encontra-se a discussão pormenorizada dos procedimentos que Viehweg elenca acima. 14 Cfe. Tópicos, I, 108b 3. 15 Cfe. ARISTÓTELES, Retórica. Tradução e notas de Antonio Tovar. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1990. A passagem mencionada encontra-se em I, 1358 a 15-25: “Digo que son

Com base nisso, Viehweg propõe a seguinte definição dos topoi:

“pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou

contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade”16. O que

ressalta nessa definição é o caráter amplo que o topos possui. Cada topos contém

uma quantidade de pontos de vista os quais não têm, por si mesmos, consequências

conceitualmente determinadas17.

Viehweg não faz uma análise pormenorizada da definição acima

referida e encerra sua exposição de Aristóteles, comentando que o autor dedica-se,

no livro VIII de Tópicos, à técnica peculiar da discussão (no sentido de disputa),

iniciando pela arte de perguntar. Em relação a esta, deve-se dizer que ordenar e

colocar as perguntas são as tarefas precípuas do dialético18. Chama a atenção também

para o alerta que Aristóteles faz de que não devemos discutir com qualquer pessoa,

sob pena de não podermos desenvolver uma discussão razoável19.

Dois aspectos, entre si vinculados, salientam-se nas referências que

Viehweg faz à tópica aristotélica. A primeira delas é a divisão entre apodíctico e

dialético, e a segunda, a caracterização da tópica enquanto auxílio na discussão de

qualquer tema, enfatizando seu perfil de instrumento para a construção

argumentativa.

silogismos dialécticos y retóricos aquellos con los cuales decimos los ‘lugares’, y estos lugares son los comunes acerca de cuestiones de derecho y ciencia natural y política y muchas disciplinas que difieren en especie, como el ‘lugar’ de más y menos, pues de éste no será más sacar un silogismo que decir un entimema acerca de cuestiones de derecho o de ciencia natural o cualquier otra disciplina, aunque éstas difieren en la especie; son específicas las conclusiones derivadas de premisas acerca de cada especie y género, como acerca de la ciencia natural hay premisas de las cuales no hay ni entimema ni silogismo acerca de ética; y acerca de ésta, otras de las cuales no los habrá acerca de las cosas de la naturaleza, y de modo semejante es así para todas las disciplinas”. A Retórica será citada sempre de acordo com essa edição. 16 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 24 da edição alemã e p. 26-27 da edição brasileira. 17 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 24 da edição alemã e p. 27 da edição brasileira. 18 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 24 da edição alemã e p. 27 da edição brasileira. Aristóteles, em Tópicos, 155b 5, afirma: “Primeramente es preciso que el que se dispone a formular preguntas encuentre el lugar a partir del cual atacar; en segundo lugar, formularse preguntas y ordenarse cada cuestión para uno mismo; en tercer y último lugar, decir ya estas cosas ante el otro. Así, pues, hasta el momento de encontrar el lugar, la investigación es semejante para el filósofo y para el dialéctico, mientras que ordenar las cuestiones y formular las preguntas es ya propio del dialéctico: en efecto, todo esto {se hace} de cara al otro”. 19 Nesse sentido, Aristóteles (Tópicos, 164 b 10): “Ahora bien, no hay que discutir con todo el mundo, ni hay que ejercitarse frente a un individuo cualquiera. Pues frente a algunos, los argumentos se tornan necesariamente viciados...” E, ainda: “Por ello precisamente no hay que disputar de buenas a primeras con cualesquiera individuos: pues necesariamente resultará una mala conversación”.

Iniciemos pela primeira questão. A divisão entre apodíctico e dialético

enquanto modos de raciocinar é explicitamente assumida por Aristóteles, conforme

se depreende da classificação que o referido autor oferece e que Viehweg reporta. A

tópica, como se constata, é vinculada à dialética pela própria explanação de

Aristóteles, que, não definindo expressamente o que é um topos, propõe-se a tratar

dos raciocínios dialéticos ao longo dos livros de Tópicos.

A pergunta que cabe fazer, nessa linha de raciocínio, é sobre a

vinculação entre tópica e dialética, em primeiro lugar, e entre ambas e a retórica, em

segundo. Vimos, pela referência que Viehweg traz, que uma definição, ainda que

indireta, de topos é dada por Aristóteles na Retórica. Sabemos também que Viehweg

advoga que as suas considerações sobre a tópica e seu papel na construção de uma

teoria da argumentação sejam lidas à luz da retórica, além, é claro, de sua afirmação

de que a tópica constitui uma parte essencial da retórica tal como transmitida pela

tradição20.

Quanto ao primeiro aspecto – ligação entre dialética e tópica –,

podemos dizer que a dialética vem concebida por Aristóteles como uma arte da

argumentação crítica, especializada em pôr à prova, em testar os argumentos,

independentemente de seu tema. Ela serve, portanto, para a discussão em todos os

âmbitos do conhecimento humano, enquanto instrumento de verificação de

contradição e de consequências do raciocínio, de desenvolvimento mesmo de seus

pressupostos. Conforme a terminologia de Oswaldo Porchat Pereira, ela pode ser dita

uma “verdadeira indagação metódica das proposições em geral”.21

A utilidade de uma arte assim concebida, consoante Aristóteles, é

tripla: o exercício, a preparação para os debates com nossos interlocutores e a

investigação dos princípios da filosofia22. A primeira e a segunda são facilmente

20 Vide, a propósito, o Capítulo IV, especialmente o item 3. 21 Cfe. PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ciência e Dialética em Aristóteles. São Paulo: UNESP, 2001, p. 360. 22 Diz Aristóteles: “A continuación, se podría decir para cuántas y cuáles cosas es útil este estudio. Y lo es para tres cosas: para ejercitarse, para las conversaciones y para los conocimientos en filosofía. Pues bien, que es útil para ejercitarse resulta claro por sí mismo: en efecto, teniendo un método, podremos hábernoslas más fácilmente con lo que nos sea propuesto; para las conversaciones, porque, habiendo inventariado las opiniones de la mayoría, discutiremos con ellos, no a partir de pareceres ajenos, sino de los suyos propios, forzándoles a modificar aquello que nos parezca que no enuncian bien”. Tópicos, I, 101 a 25-30.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo IV, item 3.

compreensíveis, como lembra o Estagirita, e utilizadas mesmo por quem não possui

uma preparação técnica como a que a dialética se propõe a oferecer. A terceira,

contudo, levanta maiores indagações, inclusive porque, como vimos, os raciocínios

dialéticos são aqueles que partem de premissas aceitas pela opinião da maioria, de

alguns ou dos mais sábios, parecendo contraditório a eles consignar agora a

investigação de princípios da filosofia, a qual, como sabemos, é o reino da verdade, e

não da opinião23.

Como Aristóteles expressamente afirma, contudo, a dialética, na

medida em que nos permite investigar uma aporia em ambas as direções, nos

possibilita com mais facilidade discernir o verdadeiro do falso24. Na medida em que

os princípios de todas as ciências são aqueles conhecimentos que não podem ser

demonstrados, pois são primeiros e devem ser conhecidos por si mesmos, sob pena

de cairmos numa regressão ao infinito, cabe à dialética exatamente o papel de

investigá-los. Fornecidos os primeiros princípios, cada ciência desenvolver-se-á por

intermédio de raciocínios demonstrativos, mas, para encontrá-los, faz-se uso das

opiniões aceitas e plausíveis, das quais não se exige que sejam verdadeiras.25

Não há, portanto, que se falar, conforme Porchat Pereira demonstra

detalhadamente, acompanhando os diferentes momentos da construção

argumentativa de Aristóteles, em uma cisão entre os diferentes modos de raciocinar,

23 PEREIRA, op. cit., p. 68, assim define o raciocínio demonstrativo, também chamado de apodíctico: “Temos, então, que o instrumento do conhecimento científico é uma espécie de silogismo que chamaremos demonstração, silogismo este cuja cientificidade se manifesta no mesmo fato de identificar-se sua posse (...) com o conhecimento científico. Não é a ciência o silogismo demonstrativo mas ele é o meio instrumental de sua efetivação, é o discurso de que ela sempre se acompanha. E não somente é o discurso silogístico o seu instrumento mas constitui também, uma forma de discurso em cuja mesma estruturação vamos encontrar transcritas as relações causais e necessárias que a ciência conhece”. 24 Assim discorre Aristóteles sobre esse papel da dialética: “para los conocimientos en filosofía, porque, pudiendo desarrollar una dificultad en ambos sentidos, discerniremos más fácilmente lo verdadero y lo falso en cada cosa. Pero es que además es útil para las cuestiones primordiales propias de cada conocimiento. En efecto, a partir de lo exclusivo de los principios internos al conocimiento en cuestión, es imposible decir nada sobre ellos mismos, puesto que los principios son primeros con respecto a todas las cosas, y por ello es necesario discurrir en torno a ellos a través de las cosas plausibles concernientes a cada uno de ellos. Ahora bien, esto es proprio o exclusivo de la dialéctica: en efecto, al ser adecuada para examinar [cualquier cosa], abre camino a todos los métodos”. Tópicos, I, 101 a 30-35, 101 b. Vide também PEREIRA, op. cit., p. 370-371. A expressão “aporia”, que utilizamos ao reproduzir a ideia da utilidade da dialética para a filosofia é sugestão de Porchat Pereira, ao passo que a tradução para o espanhol consigna apenas “dificuldades”. 25 Sobre a dialética como instrumento para a investigação dos primeiros princípios, vide PEREIRA, op. cit., p.337-393.

mas, sim, em uma unidade na qual estão reservadas diferentes funções à analítica e à

dialética, de acordo com as diferenças intrínsecas que as constituem e que decorrem

da natureza mesma das premissas que utilizam como ponto de partida.26

Compreendido o contexto no qual se instaura para Aristóteles a

dialética, podemos agora entender que os topoi constituem os meios dos quais a

dialética se serve em seu papel de investigadora crítica. Cada topos, como propõe

Porchat Pereira, pode ser entendido como uma “regra” para a pesquisa do que pode

ou não ser predicado, extraídas de certas leis ou fórmulas genéricas que a dialética

utilizará como premissas maiores de seus silogismos27. Além dos topoi, os

instrumentos elencados por Aristóteles e mencionados por Viehweg em sua

explanação da tópica aristotélica constituem também os recursos disponíveis à

dialética em sua função28. Esclarecida a ligação entre tópica e dialética, resta ainda a

pergunta sobre a relação de ambas com a retórica.

Aristóteles põe dialética e retórica lado a lado, quando considera que

ambas ocupam-se de todos os tipos de saber, sem nenhuma “especialização”

temática29. A retórica é definida, pelo autor, como a arte de encontrar o que é

persuasivo em cada caso30. Destina-se, portanto, ao exame daquilo que se deve fazer

com a intenção de conseguir a aceitação de um auditório para uma argumentação.

26 PEREIRA, op. cit., p. 397, manifesta-se sobre a relação entre dialética e analítica do seguinte modo: “Esclarece-nos manifestamente, então, como a Tópica e a Analítica – ou, mais precisamente: a arte dialética e a doutrina do silogismo e da demonstração científica – representam momentos complementares dessa Cultura que o filósofo opõe às competências determinadas dos diversos saberes científicos, caracterizando-a por sua universalidade e por sua significação propedêutica. Ela compreende uma arte da argumentação crítica de que não pode, em geral, prescindir, como sabemos, o esforço da instauração científica; por outro lado, torna-se óbvio, também, que se orientam os passos da investigação dialética pelo conhecimento da doutrina da ciência, que vem precisar-lhes o sentido, definir-lhes as metas e indicar-lhes os limites de sua aplicabilidade”. 27 Cfe. PEREIRA, op. cit., p. 365-366. Vide também a explanação de DEGADT, op. cit., p.54-58. 28 Vide VIEHWEG, Topik und Jurisprudenz, p. 23 da edição alemã e p. 26 da edição brasileira. Também ARISTÓTELES. Tópicos 105 a 20-35, 105b, 106 a, 106b, 107b, 108 a, 108b e PEREIRA, op. cit., p. 363-366. 29 A Retórica de Aristóteles inicia-se precisamente com essa afirmação: “La retórica es correlativa de la dialéctica, pues ambas tratan de cosas que en cierto modo son de conocimiento común a todos y no corresponden a ninguna ciencia determinada”. Retórica, I, 1, 1354 a. 30 Cfe. ARISTÓTELES, Retórica, 1355 b 25-30: “Sea retórica la facultad de considerar en cada caso lo que cabe para persuadir. Pues esto no es la obra de ningún otro arte, ya que cada una de las demás es de enseñanza y de persuasión sobre su objeto...” E, ainda: “...mas la retórica sobre cualquier cosa dada, por así decirlo, parece que es capaz de considerar los medios persuasivos, y por eso decimos que no tiene su artificio acerca de ningún género específico”.

Aristóteles não explica, contudo, em detalhes, a relação de similitude,

a não ser por esse aspecto31. Parece razoável considerar, no entanto, que ambas

movimentam-se no plano da opinião, pois a dialética certamente o faz, conforme

examinamos, e a retórica, na medida em que se preocupa com a persuasão, deve

utilizar-se daqueles dados já aceitos pelo auditório para, então, levá-lo ao

convencimento sobre as novas ideias apresentadas. A dialética seria, dessa forma, a

arte da argumentação crítica, e a retórica, a seu turno, a arte de investigar como os

argumentos podem ser apresentados com vistas à persuasão.

Se aceita essa ordem de raciocínio, pode-se, consequentemente,

considerar que a tópica forneceria – assim como o fez para a dialética – à retórica

aquelas “regras”, leis ou fórmulas genéricas que gozam de aceitação e viabilizam a

construção de argumentos persuasivos, os topoi. A persuasão adviria exatamente

dessa vinculação com a opinião comum, manifestada e articulada nos topoi utilizados

como pontos de partida.

Esclarecidas essas relações, ainda que de modo esquemático, podemos

agora constatar que a dimensão argumentativa, por assim dizer, estava presente de

modo explícito na tópica aristotélica, seja pela vinculação entre tópica e dialética,

seja pela relação entre dialética e retórica. A segunda questão que levantávamos

quando do exame das observações de Viehweg acerca da tópica aristotélica pode,

então, ser rapidamente resolvida, no sentido de confirmar que o interesse do autor

residia especialmente no caráter dialógico da tópica e na sua dimensão de

instrumento de investigação32.

A natureza argumentativa da tópica em sua vinculação com a dialética

e com a retórica leva também a recordar que o interesse de Viehweg na alusão de

Vico fora justamente o de que esta constituía uma forma de pensar especialmente

31 Vide, a propósito, BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1998, p. 157-187. 32 BERTI, op. cit., ao discorrer sobre o modo como Aristóteles concebia a retórica em oposição aos seus antecessores, menciona explicitamente esse caráter argumentativo que ela recebe: “O que mais interessa na polêmica de Aristóteles contra Isócrates e, portanto, contra a retórica de tipo gorgiano é a nova concepção de retórica como arte da comunicação, não mais do puro encantamento ou da pura sugestão emotiva: por esse motivo a retórica de Aristóteles atraiu o interesse dos filósofos contemporâneos, seja como possível lógica do discurso político ou judiciário, seja como ocasião de recuperação da dimensão comunicativa da linguagem, para além daquela dimensão puramente instrumental própria da ciência e da técnica modernas”.

adequada ao âmbito do saber humano, do qual faz parte a Jurisprudência, e que

estava sendo afastada pelo cartesianismo. Vimos, pela caracterização que à dialética

dá Aristóteles, que ela se ocupa com o plausível ou provável. Vejamos melhor como

esses aspectos da dialética e da tópica podem ser entendidos na construção

aristotélica33.

Trata-se, pois, de pensar aqueles âmbitos do saber nos quais trabalha-

se com o plausível, com aquilo, conforme Aristóteles define, que não é sempre, que

não ocorre necessariamente e nem do mesmo modo34. Essa questão é de fundamental

importância para entendermos a tese de Viehweg de que a Jurisprudência é tópica,

bem como a sua insistência em utilizar o termo consagrado pela tradição que remete

ao caráter prudencial do saber jurídico, cujo correspondente em grego é phronesis ou

prudência.

Não se pode separar a indagação sobre a prudência em Aristóteles de

sua teoria sobre o contingente. Aquilo que mais propriamente qualifica e separa a

prudência da sabedoria científica é justamente o fato de que esta última se volta para

o campo do necessário. A teoria da prudência, como domínio daquilo que pode ser

diferentemente, depende, portanto, da definição de contingência que se extraia dos

textos aristotélicos.

De acordo com Aubenque35, o contingente para Aristóteles constitui-

se daquilo que pode ser diferentemente, sem que o autor diferencie entre aquilo que

frequentemente ocorre e aquilo que acidentalmente ocorre. Porchat Pereira,

examinando textos aristotélicos nos quais se menciona o frequente também como

objeto da ciência, propõe que o contingente seja entendido como o domínio do

acidental, aquilo que não ocorre sempre e nem na maioria das vezes. Assim, para este

último autor, necessário e frequente compõem o campo do científico, ao tempo que o 33 Nas Refutações Sofísticas, Aristóteles afirma que: “Nos habíamos propuesto, pues, encontrar una capacidad de razonar acerca de aquello que se nos planteara entre las cosas que se dan como plausibles; en efecto, ésta es la tarea de la dialéctica propiamente tal e de la crítica”. Utilizamos a seguinte edição: Refutaciones Sofísticas. In Tratados de Lógica (Organon). Libro I. Tradução e Notas de Miguel Candell Sanmartín. Madrid: Gredos, 1994, p.309-382. A passagem acima se encontra em 183 a 35. A obra Refutações será citada sempre por esta edição. 34 O verossímil é definido por Aristóteles na Retórica, 1357 a 35: “Lo verosímil es lo que ocurre general, mas no absolutamente, como algunos definen, sino que versa sobre lo que cabe sea de otra manera y se relaciona con aquello respecto de lo cual es verosímil como lo universal respecto de lo particular”. 35 Cfe. AUBENQUE, Pierre. La Prudence chez Aristote. 2. ed. Paris: Quadrige/PUF, 1997.

acidente compõe o campo daquelas investigações que tratam com premissas

problemáticas e que aqui interessam.36

Outra distinção pode ser feita, no entanto, dentro do que consideramos

o campo do contingente, seguindo Porchat Pereira. Como argumenta Ferraz Jr, no

âmbito do contingente é preciso, ainda, distinguir entre aquilo que tende a um fim e

aquilo que não tem finalidade37. As coisas pertencentes a essa terceira categoria que

examinamos – nem frequentes e nem necessárias – seriam, então, para Aristóteles, ou

por acaso, ou por acidente. Por acaso, quando possuem causas nem frequentes e nem

necessárias, que produzem efeitos que lhes são próprios, tendendo a um fim

determinado. Por acidente, quando por causas nem necessárias e nem frequentes

produzem efeitos que não lhes são próprios, ou seja, tendentes a um fim não

determinado. Neste último caso, não há como proceder à ligação do efeito com as

causas, porque nada nos garante a regularidade das relações produzidas38.

Conhecimento, portanto, somente poderia ser produzido no âmbito do acaso, quando

as coisas nem frequentes e nem necessárias tendem a um fim.

Delineado o campo do contingente, podemos agora investigar o que

exatamente Aristóteles quis designar como prudência. Embora a noção de prudência,

enquanto virtude venha desenvolvida pelo filósofo nas obras voltadas à Ética, ela não

é compreensível sem que se examinem estes outros fatores que dizem respeito à

situação geral da intervenção do homem no mundo. Aubenque afirma, nesse sentido,

que Aristóteles recorre à análise da ação e da produção para encontrar o horizonte

apropriado para a prudência39.

36 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 65-66: “...la prudence se meut dans le domaine du contingent, c’est-à-dire de ce qui peut être autrement qu’il n’est (...) C’est même par là que la prudence se distingue le plus clairement de la sagesse, qui, en tant qu’elle est une science, porte sur le nécessaire et, en tant qu’elle est la plus haute des sciences, porte sur les realités le plus immuables et ignore le monde du devenir”. Cfe. PEREIRA, op. cit., p. 183-184 : “Acidente – aqui identificado aos resultados indeterminados que provêm do acaso – e frequente explicam-se como duas significações distintas e inconfundíveis do possível (...) e torna-se-nos manifesto que, aos olhos de Aristóteles, não se confunde o frequente com o contingente, o que pode ser de outra maneira (...), o que é capaz de ser e de não ser (...). O frequente é o que provém da (...), um necessário falho, por certo, mas não menos que um necessário estorvado e impedido. É a demonstração, por isso, que lhe diz respeito e não, a lógica da contingência, com suas premissas e conclusões problemáticas”. 37 Cfe. FERRAZ JR., Tercio S. La Noción Aristotélica de Justicia. Atlántida. Madrid, v. 7, mar./abr., 1969, p. 171. 38 Cfe. FERRAZ JR., La Noción Aristotélica de Justicia, op. cit., p. 171. 39 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 66. Na Ética a Nicômaco, 1140 a, Aristóteles afirma : “En cuanto a las cosas susceptibles de ser de otra manera, las hay que suponen producción, otras suponen acción,

Agir e produzir significam introduzir-se na ordem do mundo para

modificá-lo, e isso implica supor que este comporta um certo jogo, uma certa

indeterminação. O objeto da produção e da ação pertence, portanto, ao domínio

daquilo que pode ser diferentemente, ou seja, do contingente. Se a disposição para

produzir acompanhada pela regra se chama arte, a disposição para agir acompanhada

pela regra se chama prudência40.

É interessante lembrar, de acordo com Aubenque, que as concepções

de ciência dos gregos e de possibilidade de aplicação do conhecimento científico são

distintas das concepções modernas das mesmas. Para os gregos, a ciência é uma

explicação completa e não pode ser exercida senão suprimindo a contingência. A arte

existe exatamente porque não se pode dar explicação completa e conhecer de modo

absoluto tudo41.

Na medida em que Aristóteles constrói uma espécie de paralelismo

entre a arte e a prudência, também esta se diferencia da ciência exatamente nesta

proporção: ela existe porque não podemos conhecer de modo absoluto aquilo que

pode ser diferentemente42.

Se continuarmos a linha de raciocínio sobre a possibilidade da ação do

homem no mundo, observamos que o resultado da discussão nos levou a uma

situação na qual precisamos rejeitar o domínio da ação como aquele do acidente,

conforme o conceituamos acima, seguindo Ferraz Jr. Se não há nenhuma

possibilidade de previsão, não há também por que agir, o que também inviabiliza a siendo distintas la producción y la acción”. A edição citada é a seguinte: Obras. Tradução e notas por Francisco de P. Samaranch. Madrid: Aguilar, 1986. 40 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 66. Vide também, para a discussão da diferença entre agir e produzir, ARENDT, op. cit., p. 15-26 e p. 188 e ss. 41 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 69: “Pour comprendre ce cheminement de pensée, il faut évidemment se libérer de la mentalité moderne, qui tend à voir dans la technique une application de la science. Encore cette dernière conception n´a-t-elle de sens que parce que la science moderne se contente de suivre dans la nature des séries causales multiples, dont a pluralité même laisse une part à la contingence et donc un champ à la activité humaine. Mais, pour un Grec, la science est une explication totale et ne peut donc se développer qu´en supprimant la contingence. L´art meurt donc de trop de science et, inversement, il n´a de place et de sens que dans la mesure où la science n´explique ni ne peut expliquer toutes choses”. Vide, sobre a transformação na concepção de ciência desde os gregos, ARENDT, op. cit., passim. 42 Isso fica claro se observamos a ordem do tratamento dado à questão na Ética a Nicômaco, livro VI, 1139b-1140b. Aristóteles começa pela natureza da ciência e sua vinculação com o que é necessário para chegar às coisas que podem ser de outra maneira, separando ação e produção, para só então abordar o que é a prudência. Vide também FERRAZ JR., La Noción Aristotélica de Justicia, op. cit. p. 171-172 e PEREIRA, op. cit., p. 178-192.

ação do homem no mundo. O mundo tornar-se-ia refratário à ação humana não

porque tudo é necessário, mas exatamente porque tudo é acidental.

Assim, constatamos que o domínio propriamente dito da ação é aquele

das coisas que acontecem por acaso, nem necessárias e nem frequentes, e tendentes a

um fim. Sua ocorrência continua sendo incerta e elas comportam a indeterminação,

mas é possível agir com finalidade, embora não se tenha garantia de que a relação de

causa e efeito seja sempre alcançada43.

A prudência é, assim, uma virtude do homem que precisa deliberar

sobre o que deve ou não fazer num mundo que não se deixa conhecer de modo

absoluto44. Isso significa dizer, de outra parte, que a indeterminação do futuro (pela

combinação imprevisível das possibilidades) é também o que permite que o homem

possa agir no mundo, alterando-o. A teoria da ação e a da contingência são duas

faces da mesma moeda, diz Aubenque45.

Esse homem que precisa deliberar – e, mais exatamente, bem deliberar

– não poderá fazê-lo sobre tudo, mas apenas sobre as coisas que dependem de nós,

como expressamente lembra Aristóteles46.

É desse discurso presente e vinculado à deliberação que Aristóteles

faz a teoria na Retórica, segundo Aubenque. Imprescindível, assim, considerar que

os gêneros de discurso são classificados na Retórica, segundo o auditório ao qual se

endereçam e quanto ao tempo que têm como objeto. Quando o auditório não é apenas

espectador, mas juiz, e o seu julgamento versa sobre o futuro, o discurso será

43 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 107. Vide também FERRAZ JR., La Noción Aristotélica de Justicia, op. cit., p. 171-172. 44 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 95: “la prudence sera cettte vertu des hommes voués à délibérer dans un monde obscur et difficile, dont l´inachèvement même est une invitation à ce qu´il faut bien nommer leur liberté: la prudence, dira la Grande Morale, est une "disposition à choisir et à agir concernant ce qu´il est en notre pouvoir de faire et de ne pas faire”. 45 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 106: “La théorie de la contingence et celle de l´action droite ne sont que l´envers et l´endroit d´une même doctrine: l´indétermination des futurs est ce qui fait que l´homme en est le principe; l´inachèvement du monde est la naissance de l´homme”. 46 Na Ética a Nicômaco, 1140 a, Aristóteles afirma: “Por otra parte, nadie delibera sobre aquello que tiene un carácter de necesidad ni sobre aquello que se halla fuera de su alcance. Por eso, puesto que la ciencia va acompañada de demostración, pero no hay demostración plausible de las cosas cuyos principios pueden ser de otra manera (pues todas ellas pueden ser por igual de otra manera), y puesto que no es posible deliberar sobre lo que posee un carácter de necesidad, resulta de ello que la prudencia no podrá ser ni una ciencia ni un arte. No podrá ser una ciencia, porque lo que es del orden de la acción puede ser de otra manera, como tampoco podrá ser un arte, porque acción y producción son de distinto género”.

deliberativo. Quando for juiz e sua atenção estiver voltada para o passado, será um

discurso judiciário. Se do auditório espera-se uma atitude passiva e o objeto versa

sobre o presente, o discurso será o epidíctico47.

Ora, o tempo é aqui fundamental, porque, se admitirmos que a

deliberação versa sobre o futuro, estaremos supondo (ou ao menos esperando)

também a possibilidade da eficácia da deliberação nesse futuro. A contingência

ganha aqui o contorno de espaço de construção48.

Como salienta Ferraz Jr., as dificuldades de determinação do objeto

próprio da vida prática do homem, do objeto ético, levam exatamente à necessidade

de um método específico de tratamento das opiniões que permita selecioná-las,

criticá-las e tomá-las como base para a deliberação49. A existência da dialética

enquanto recurso para esse trabalho encontra seu sentido, por conseguinte, na própria

contingência da realidade na qual vive o homem.

É nessa caracterização mais ampla do pensamento de Aristóteles, no

que diz respeito à tópica na sua relação com a dialética e com a retórica, que está a

chave da recuperação da tópica empreendida por Viehweg. Diante da contingência

característica do objeto ético, do qual faz parte o Direito, a Jurisprudência encontra

seu modo de ser exatamente na dimensão argumentativa.

Se pudermos falar, como veremos mais adiante, em uma aporia

constante e constitutiva de nossa disciplina – a da justiça –, então a sua técnica de

construção possivelmente se adapte ao teorizado e organizado por Aristóteles.

Rastrear historicamente a continuidade, ainda que subliminar, da tópica na

Jurisprudência, é, como vimos no item I deste Capítulo, a intenção de Viehweg, que

prossegue sua análise da tópica, recorrendo a Cícero.

47 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 111. 48 Cfe. AUBENQUE, op. cit., p. 112: “Ici encore, nous apercevons l´ambivalence de l´expérience aristotélicienne du temps. Si nous délibérons sur l´avenir, c´est qu´il nous est caché, et le fait d´avoir à délibérer est, dans l´absolu, une imperfection. Mais notre délibération n´est pas seulement la recherche laborieuse d´un savoir qui nous échappe; elle ne se borne pas à supputer un avenir qu´il appartiendrait seulement aux dieux et aux devins de connaître, à la façon dont les stratèges en chambre évaluent les chances d´un combat auquel ils ne participent point. La délibération consiste à combiner des moyens efficaces en vue de fins réalisables. C´est donc que l´avenir nous est ouvert. (...) Ainsi l´analyse d´Aristote manifeste-t-elle le lien profond entre une philosophie de la contingence et la pratique du système démocratique, c´est-à-dire délibératif”. 49 Cfe. FERRAZ JR., La Noción Aristotélica de Justicia, op. cit., p. 172-173. Vide também AUBENQUE, op. cit., p. 113.

No que diz respeito à tópica de Cícero, Viehweg afirma que esta teve

uma maior influência histórica do que a aristotélica. Inicia sua análise reportando-se

ao contexto no qual a Tópica de Cícero foi escrita e menciona em detalhes a

circunstância de ela ser dirigida a um jurisconsulto romano, ao qual Cícero a dedica e

para o qual a escreve como uma espécie de receituário prático50. O interesse dessa

obra era, para Cícero e para Trebatius Testa (o destinatário do texto), compreender a

Tópica de Aristóteles como um meio de dispor de elementos de prova aplicáveis a

todas as discussões imagináveis51.

Desse modo, afirma Viehweg, a tópica de Cícero tem um caráter mais

orientado para a praxis do que para a fundamentação filosófica, desaparecendo dela a

distinção aristotélica entre o apodíctico e o dialético que examinamos acima.

Aparece, em seu lugar, a distinção entre invenção e formação do juízo52, influência

do pensamento estoico53.

Aristóteles havia pensado as duas – a dialética e a analítica ou lógica,

conforme vimos – enquanto os estoicos dedicam-se apenas à segunda, qualificando-a

de dialética (aqui no sentido de lógica, de ciência). Cícero propõe-se trabalhar com a

segunda, mas principia pela retórica54. Não faz, contudo, uma ordenação teórica dos

topoi, mas um catálogo de uso prático, afirma Viehweg55.

Cícero propõe uma comparação para explicar a importância da

investigação dos topoi. Assim como, diz ele, é mais fácil encontrarmos os objetos

escondidos quando podemos determinar e provar o lugar de sua situação, da mesma

50 A respeito do contexto histórico de produção da tópica ciceroniana, veja-se o clássico trabalho de KENNEDY, George A. A new history of classical rhetoric. Princeton: Princeton University Press, 1994, especialmente os capítulos seis e sete. 51 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 26 da edição alemã e p. 28 da edição brasileira. A relação entre Cícero e Trebatius Testa, bem como o interesse de ambos fica expresso nos parágrafos iniciais da obra, I, 2-5. Cfe. Cícero. Tópica. Tradução e apresentação por H. M. Hubbell. Cambridge/London: Harvard University Press, 1993 (Loeb Classical Library). Todas as citações da Tópica de Cícero serão feitas por esta edição. Vide também a introdução do tradutor, p. 377-381 do referido volume. 52 Cícero afirma, em Tópica, II, 6: “Every systematic treatment of argumentation has two branches, one concerned with intention of arguments and the other with judgement of their validity”. 53 Para uma análise da obra de Cícero e das influências teóricas por ele sofridas, pode-se consultar o ensaio introdutório de Salvador Núñez na edição do De Inventione, cuja referência é. CICERÓN. La Invención Retórica. Tradução, introdução e notas de Salvador Núñez. Madrid: Gredos, 1997, p. 7-74. 54 Cfe. Cícero, em Tópica, II, 6-7: “Aristotle was the founder of both in my opinion. The Stoics have worked in only one of the two fields. (…) For my part, I shall begin with the earlier, since both are useful in the highest degree, and I intend to follow up both, if I have leisure”. 55 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 26-27 da edição alemã e p. 27-29 da edição brasileira.

maneira, se quisermos aprofundar uma matéria qualquer, temos que conhecer seus

topoi. Aristóteles, afirma Cícero, chama assim os lugares-comuns dos quais se extrai

o material para a demonstração56.

Os topoi são definidos, para Cícero, como lugares-comuns de um

argumento, e um argumento, por sua vez, é considerado um procedimento de

raciocínio que estabelece firmemente um assunto ou questão sobre o qual há alguma

dúvida57.

Esses topoi são classificados em científicos ou técnicos, quando

ligados com o assunto de que se trata, e atécnicos quando procedem de fora do

assunto. Classificados, são expostos em detalhe durante o restante da obra de

Cícero58. A essa exposição, Viehweg dedica alguns comentários nos quais resume a

ordem na qual os topoi são expostos e quais são os pontos mais importantes.

Salienta, ainda, a teoria do status, que provém do processo penal romano e é

estendida por Cícero do gênero judicial aos demais gêneros retóricos: deliberativo e

epidíctico59.

Viehweg encerra, então, a análise, dizendo que Aristóteles projetou

em sua tópica uma teoria da dialética enquanto arte da discussão, e, nessa intenção,

ofereceu um catálogo de topoi estruturado de forma flexível e útil à praxis. Este

último aspecto interessou a Cícero. Referido autor, diz Viehweg, entendeu

(...) a tópica como uma praxis da argumentação, a qual maneja o catálogo de topoi que ele esquematizou bastante. Enquanto Aristóteles trata, em primeiro lugar, ainda que não de modo exclusivo, de formar uma teoria, Cícero trata de aplicar um catálogo de topoi já pronto. Àquele interessam essencialmente as causas; a este, em troca, os resultados.60

56 Cfe. Cícero, Tópica, II, 8: “A comparison may help: Its easy to find things that are hidden if the hiding place is pointed out and marked; similarly if we wish to track down some arguments we ought to know the places or topics: for that is the name given by Aristotle to the ‘regions’, as it were, from which arguments are drawn”. Vide também Viehweg, Topik und Jurisprudenz, p. 27 da edição alemã e p. 29 da edição brasileira. 57 Cfe. Tópica, II, 8: “Accordingly, we may define a topic as the region of an argument, and an argument as a course of reasoning which firmly establishes a matter about which there is some doubt”. Vide também Viehweg, Topik und Jurisprudenz, p. 27 da edição alemã e p. 29 da edição brasileira. 58 Cfe. Tópica, II, 8 e ss.. Cfe. também Topik und Jurisprudenz, p. 27-28 da edição alemã e p. 29-30 da edição brasileira. 59 Vide Tópica, XIV, 93-95. 60 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 29 da edição alemã e p. 31 da edição brasileira.

É importante advertir que Viehweg considera que o ponto de vista

prevalecente sobre a tópica na tradição posterior foi o de Cícero, e não o de

Aristóteles. Como parte da retórica, a tópica manteve-se na formação educacional

antiga, foi recebida na Idade Média e cultivada como escolástica61. Vejamos o que o

autor diz sobre o período histórico subsequente, para, então, retomarmos à tese

central de que a Jurisprudência é tópica.

3. A estrutura tópica da Jurisprudência: do ius civile ao mos italicus

Viehweg começa a análise pelo ius civile romano, e sua primeira

observação é a de que não se encontra nele um espírito sistemático nem deduções de

grande alcance. Para comprovar essa constatação, aponta, basta selecionar um grupo

de textos do Digesto, o mais extenso possível, e analisá-los sob esse ângulo62.

Viehweg examina, a seguir, um exemplo concreto retirado do Digesto

de Juliano para ressaltar que nele encontra-se um nexo pleno de sentido, no entanto

não um nexo sistemático. Oferece-se nele, diz o autor, uma série de soluções para um

complexo de problemas. Buscam-se e fixam-se pontos de vista que não aparecem

unicamente no texto em questão, mas procedem de outros contextos similares, nos

quais já haviam encontrado reconhecimento e comprovação. A especificidade e, por

isso, a diferença desse tipo de construção fica mais óbvia se contraposta a um sistema

jurídico conceitual, o qual pode ser encontrado facilmente em um manual da

pandectística63.

Assim, afirma Viehweg, “o jurista romano coloca um problema e trata

de encontrar argumentos. Vê-se, por isto, necessitado de desenvolver uma techné

adequada. Pressupõe irrefletidamente um nexo que não pretende demonstrar, porém

dentro do qual se move. Esta é a postura fundamental da tópica”64.

61 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 29-30 da edição alemã e p. 31-32 da edição brasileira. 62 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 46 da edição alemã e p. 45 da edição brasileira. 63 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 48 da edição alemã e p. 47 da edição brasileira. 64 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 50 da edição alemã e p. 48 da edição brasileira.

É importante lembrar, de acordo com o autor, que, nesse mesmo

momento histórico, desenvolvia Euclides um método de trabalho totalmente distinto.

Esse método de pensamento sistemático, empregado na matemática, estava muito

longe dos juristas romanos, que se moviam em um espaço cultural cujos

fundamentos eram, no mínimo, similares aos dos retóricos65. Não é porque não se

podia falar em sistematização que os juristas romanos não trabalhavam a partir desse

pressuposto, mas o faziam porque concebiam sua tarefa como pertencente a uma

categoria diferente daquela da matemática.

Viehweg analisa longamente o modo de aparecimento da tópica na

construção dos jurisconsultos romanos, salientando sobremaneira a vinculação que a

referida construção guarda com o problema do qual parte. Para tanto, faz um exame

de um trecho do Digesto de Juliano, utilizando-o para mostrar em detalhes como o

modo de trabalho dos juristas romanos afeiçoa-se à tópica66.

Essa ligação necessária com o problema implica, afirma Viehweg,

afastar-se a possibilidade de submeter os conceitos e as posições desenvolvidas a

uma sistematização. O fato de ser pouco afeita a vinculações parece contrapor a

tópica ao direito, na medida em que este trabalha com a fixação de condutas. Isso não

é, no entanto, necessário, e, mesmo quando há uma positivação, o papel da tópica

permanece importante67.

Nessa linha, diz Viehweg, observa-se claramente como no ius civile

evitam-se as positivações tanto quanto possível. Isso transparece no escasso número

de leis durante um longo período de tempo e no caráter elástico da lex annua do

pretor. Mas mesmo essas positivações foram feitas à maneira da tópica, isto é, por

65 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 50-51 da edição alemã e p. 48-49 da edição brasileira. Ao encerrar a análise do ius civile, diz o autor: “Independentemente da questão histórica, ainda não esclarecida em seus aspectos particulares, há que observar o seguinte: quando se diz que o método científico dos juristas procede dos filósofos, pressupõe-se que em uns e em outros se pode encontrar uma estrutura idêntica ou pelo menos muito parecida. Como procuramos demonstrar, isto é substancialmente certo para a aporética filosófica por uma parte e para a jurisprudência romana por outra, pois em uma e outra domina um modo de pensar tópico. Pode-se, por isto, afirmar, sem discutir a questão da influência, que em ambos os campos existe um estilo de pensamento que, em linhas gerais, corresponde à dialética aristotélica”. Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 61 da edição alemã e p. 56 da edição brasileira. 66 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 46-47 da edição alemã e p. 45-46 da edição brasileira. 67 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 52-53 da edição alemã e p. 50-51 da edição brasileira.

tentativas, buscando o direito e aparecendo as leis apenas como a primeira fase dessa

busca na medida em que se tornavam fontes do direito68.

Feita a positivação, abre-se um novo campo de trabalho no qual a

tópica pode auxiliar. Frente a problemas novos, é preciso encontrar meios de anular a

perda de flexibilidade. Isso ocorre por meio da interpretação que contempla as

modificações nas relações sociais até que nova legislação venha incorporá-las. Na

interpretação, a tópica retorna à cena69.

O ius civile tem claramente como objeto principal, afirma Viehweg,

uma coleção de topoi, e suas proposições diretivas justamente empregadas enquanto

tal são o objetivo de todo o esforço. As proposições são aceitas como regras na

medida em que se legitimam pela aceitação por homens notáveis, e não por seu

caráter de exemplo último e necessário são dialeticamente (em sentido aristotélico)

justificadas70.

O quadro assim delineado suscita a pergunta se esse procedimento é

concebido como científico ou não. Essa não é uma preocupação dos jurisconsultos

romanos, embora o seja de Aristóteles, que procurou estabelecer claramente a

distinção entre techné e episteme, como vimos acima. O mais seguro, afirma

Viehweg, é entender que a distinção aristotélica não se ajustava à consciência geral

da Antiguidade e havia uma conexão relativamente estreita entre techné e episteme, o

que torna muito difícil fixar univocamente o sentido de ambas as palavras e encontrar

seus equivalentes exatos em latim71.

Assim, afirma Viehweg, “os qualificativos da jurisprudência, como

ars, disciplina, scientia ou notitia, que encontramos nos juristas, não podem

pretender uma valoração rigorosa do ponto de vista de uma teoria da ciência, porque

por trás dele existe um interesse muito pequeno pela teoria”. Caso desejássemos,

68 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p.54 da edição alemã e p. 51 da edição brasileira: “Como seu conteúdo se baseia implicitamente em positivações mais profundas, formadas à vista de determinadas situações de problemas, podem ser aplicadas de modo extensivo por aqueles que podem compreender indubitavelmente estas situações”. 69 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 54-55 da edição alemã e p. 51-52 da edição brasileira. 70 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 55-56 da edição alemã e p. 52-53 da edição brasileira. 71 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 58 da edição alemã e p. 54 da edição brasileira.

mesmo assim, aplicar a distinção aristotélica, seria necessário situar o ius civile

dentro da techné72.

Ao passar à análise do mos italicus, Viehweg justifica sua escolha

pelo referido momento histórico, argumentando que este sofreu grande influência do

pensamento da Antiguidade, o qual, como vimos, caracterizava-se por um estilo

tópico. Além disso, perdurou por longo período quase sem críticas e significou o

encerramento de toda essa evolução73.

É muito menos duvidoso, afirma Viehweg, que os pós-glosadores e os

glosadores estivessem familiarizados com a tópica. Sua formação cultural o

evidencia. Nesse sentido, a vinculação entre Jurisprudência e retórica na Idade Média

aparece de modo mais claro do que na Antiguidade74. Os eruditos medievais do

direito, diz Viehweg,

(...) de acordo com os planos de estudos então vigentes, antes de poderem dedicar-se a seus estudos especiais (studia altiora, difficiliora et graviora) tinham de ter estudado as septem artes liberales. No Trivium (artes triviales, sermonicales, rationales), ocupavam-se da retórica e, com ela, de sua peça modular, a tópica75.

A falta de sistematicidade do procedimento dos glosadores e pós-

glosadores, característica dessa sua vinculação com a tópica, foi uma das principais

críticas dirigidas ao mos italicus a partir do século XVI. As tentativas, postula

Viehweg, de autores contemporâneos de encontrarem no mos italicus o que chamam

de um impulso para um tratamento sistemático revelam-se infundadas se se analisar

o procedimento do mos italicus com maior cuidado.

Para os referidos autores, esse impulso seria encontrado na técnica das

divisões e distinções, bem como na classificação que acontece nas visões de conjunto

que os comentadores antepõem a cada título. Os críticos do século XVI e XVII,

entretanto, criticam o mos italicus como assistemático, porque entendem o sistema

72 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 58-59 da edição alemã e p. 54-55 da edição brasileira. 73 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 31 da edição alemã e p. 59 da edição brasileira. 74 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 62 da edição alemã e p. 59 da edição brasileira. 75 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 62-63 da edição alemã e p. 59 da edição brasileira.

como uma dedução completa e, nos comentários do mos italicus, não se percebe nada

que se assemelhe a uma dedução no sentido próprio do termo76.

Viehweg afirma que, da mesma maneira que na Antiguidade, a

Jurisprudência na Idade Média continua orientando-se para o problema e

necessitando, portanto, de uma techné adequada. A Jurisprudência desse período

enfrenta, porém, problemas novos, porque faz parte de uma cultura vinculada a

textos que correspondiam a uma outra realidade histórica. Esses textos são, ademais,

vistos com uma confiança absoluta, como se transmitissem algo sempre válido, a

própria ordem do mundo77.

Desse contexto, surgem dois tipos de problemas que a Jurisprudência

precisa resolver. O primeiro é como dissolver contradições entre textos, e o segundo,

como estabelecer correlação adequada entre situações. Nos dois casos, a tópica serve

como meio auxiliar de resolução, através da interpretação ou exegese78.

No que diz respeito ao primeiro problema – falta de acordo entre os

textos –, Viehweg aponta o seguinte procedimento: as contradições (contrarietates)

das fontes provocam dúvidas (dubitationes, dubietates); uma discussão

(controversia, dissensio, ambiguitas) deve, então, ser realizada para que se chegue a

uma solução (solutio)79_80.

Um dos modos de encontrar a solução consiste na chamada elaboração

de concordâncias, para a qual existem diferentes meios81. O mais simples é a

subordinação de autoridades, no qual se diferencia o âmbito de validade de cada

texto de acordo com o grau hierárquico da autoridade que o emitiu. Nem sempre, no

entanto, ele é utilizável, porque as autoridades podem ter todas a mesma dignidade. 76 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 65 da edição alemã e p. 61 da edição brasileira. 77 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 66-67 da edição alemã e p. 62 da edição brasileira. 78 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 67 da edição alemã e p. 62-63 da edição brasileira. 79 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 67 da edição alemã e p. 63 da edição brasileira. 80 Nesse sentido, para uma explanação sobre o método das quaestio na Idade Média e, sobretudo, na obra de Tomás de Aquino, veja-se a discussão de ANCONA, Elvio. Sobre la struttura del ragionamento giuridico tra contesto della scoperta e contesto della giustificazione. il modello della quaestio disputata. L’Ircocervo. Rivista Elettronica Italiana di Metodologia Giuridica, Teoria Generale del Diritto e Dottrina dello Stato, 2003, numero 2. Disponível em: http://www.lircocervo.it/index/?p=176. 81 A elaboração de concordâncias é uma característica constante do trabalho teológico e do trabalho jurídico durante a Idade Média, em razão da vinculação que o pensamento dessa época guarda para com os textos da Antiguidade e para com a Bíblia. A respeito, vide CASSANDRO, Giovanni. Lezioni di Diritto Comune. Vol. I . Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1980.

A fixação e a legitimação da técnica de elaboração de concordâncias

que aparece claramente no mos italicus podem ser buscadas no século XI82, quando

se trava uma intensa polêmica no interior da Igreja Católica sobre o uso dos

instrumentos da dialética para interpretar as Escrituras. Os resultados desse embate

nos interessam particularmente porque, ao seu final, afirmam os historiadores83, a

dialética torna-se um instrumento de uso comum, que vai ser usado como

instrumento de sistematização e produção de concordância.

A curiosa combinação de uso dos instrumentos da razão, notadamente

da dialética, com a afirmação da autoridade do texto tão peculiar desse período

histórico – no qual podemos encontrar um estilo de pensamento propriamente

caracterizável como dogmático84 – não significou (e não podia significar, dada a

necessidade de adaptá-los às novas realidades) uma aceitação não criativa dos

referidos textos, mas, ao contrário, o seu uso denota um apropriar-se dos mesmos,

transformando-os para atualizá-los. Compreender significa, assim, fazer próprio,

apropriar-se85.

Em todas as áreas do pensamento humano, há essa vinculação com

um texto, e o modelo de trabalho, basicamente exegético, é retirado da tradição de

manuseio das Sagradas Escrituras. Isso significa que o intérprete não está autorizado

a afastar ou interferir explicitamente no sentido do texto, daí o necessário uso de

refinados instrumentos lógicos para produzir novos sentidos sem se explicitar tal

operação. Essa técnica de manuseio dos textos encontra suas raízes mais remotas na

antiga retórica, em particular na tópica, e atinge seu pleno desenvolvimento na

82 Sobre a continuidade entre glosadores e pós-glosadores no que tange à sua formação e ao uso dos instrumentos da retórica e da dialética, incluindo-se aí a tópica, vide BRUGI, Biagio. Il metodo dei Glossatori Bolognesi. In Studi in Onore di Salvatore Riccobono nel anno XL del suo Insegnamento. Vol. I. Palermo: G. Castiglia, 1936, p. 23-31, especialmente p. 25. 83 Cfe. CASSANDRO, op. cit., p. 21: “La lotta continuò aspra nel secolo sucessivo e mi pare che si conchiudesse – se mai si concluse –, nel senso che, se alla dialettica non fu dato di penetrare nell’intimità della realtà, di segnare di questa i confini, in una parola dominarla, restava incontrastata la sua funzione di arte autonoma del ragionamento, diventando non diró una scienza laica, ma sottolinendo il carattere di indipendenza dalla scienza sacra, in coerenza con un motivo caratteristico della civiltà occidentale, posto giustamente in rilievo dal Bréhier, in ragion del quale, a differenza che in Oriente (cristiano o pagano che fosse), tutta l’attività intellettuale non si limitò allo studio delle cose sacre”. 84 Vide, a respeito, WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 2. ed. Tradução de Botelho Hespanha, Lisboa : Calouste Gulbenkian, 1993, p.48. 85 Diz em tom poético, CASSANDRO, op. cit., p.23: “Comprendere significa anche capire, fare proprio: il che non è possibile senza interpretare o commentare il testo dischiuso davanti agli occhi”.

experiência baixo-medieval. Seus mais notáveis resultados foram exatamente

alcançados na teologia e na ciência jurídica, afirmam os historiadores86. O mos

italicus trabalha basicamente a partir desses resultados.

A marca peculiar desse método de trabalho é a enunciação das

verdades da fé através dos instrumentos da razão, e daí a importância da luta em

torno da legitimidade do uso da dialética na interpretação bíblica acima mencionada.

O texto que é seu objeto é encarado como ratio scripta, e por isso não se questiona a

sua veracidade. O que se faz é explicitá-lo, torná-lo mais claro e acessível,

mostrando, assim, a verdade da fé87. Mas é fundamental não confundir a razão que a

concepção medieval exercita com a que posteriormente o Iluminismo desenvolverá88.

Mais do que verdades criadas pelo homem, são verdades dadas ao homem, que as

alcança mediante o uso da razão como mero instrumento.

Entende-se, então, porque a glosa89 e a produção de concordâncias

entre textos de autoridades reconhecidas são as grandes preocupações desse período

histórico. Nos mos italicus, encontra-se, ainda e substancialmente, a mesma cultura

fundamental90.

86 Cfe. CASSANDRO, op. cit., p. 46: “Lo studio si eleva e si fonda sopra l’autorità della parola scritta e tramandata: delle Scritture dei Padri della Chiesa, dei Concili, delle opere di Aristotele, di Ippocrate, di Galeno, di Tolomeo e via enumerando, in relazione agli interessi che muovono alla ricerca e all’indagine. Ogni ars (che noi moderni possiamo tradurre anche col termine di scienza), ha il suo fundamento nell’autorità di un libro, e da questo, interpretato e comentato, perché altri lo intendano, consegue la sua. Va da sé che le cose non possono essere andate diversamente per l’ars iuris”. E também SANTARELLI, Umberto. L’Esperienza Giuridica Basso-Medievale: lezioni introduttive. 2. ed. Torino: Giappichelli, 1980, p.118-119. 87 Resume bem WIEACKER, op. cit., p. 49: “Esta teoria da exegese textual também não pretende, portanto, comprovar com os seus meios lógicos a verdade do texto revelado ou fielmente transmitido pela tradição, mas antes aboná-lo...” 88 Cfe. CASSANDRO, op. cit., p.222: “La verità, che risplende agli occhi del dotto medievale, è in primo luogo verità rivelata, autorità. La ratio è lo strumento per dimostrare la fondatezza di questa verità che è data all’uomo, non è creata dall’uomo”. E também WIEACKER, op. cit., p. 49 e ss. 89 A própria etimologia da palavra “glosa” e seu posterior alargamento semântico o atestam, como mostra SAVIGNY, op. cit. Friedrich Karl von. Storia del Diritto Romano nel Medio Evo. Vol. 1, tomo 2, 2. parte. Firenze: Vincenzo Battelli e Compagni, 1844, p.337: “Glossa, che negli antichi grammatici indicava una espressione inintelligibile o oscura, ricevette dipoi una doppia estensione. Prima si chiamò glossa l’interpretazione di essa parola inintelligibile con una parola nota e sinonima, dipoi si chiamò glossa qualunque commento, anco quello che aveva per oggetto non le parole del testo, ma il fondo delle cose”. 90 Vide WIEACKER, op. cit., p. 63-67.

Dentre os outros meios, os mais importantes são a distinção

(diferenciação) e a divisão (partição)91. Essas duas formas

projetam – para dizê-lo brevemente – uma ordem na qual cada um dos textos se mantém dentro do limitado círculo de validade que se lhe atribui. Sem invenção e, portanto, sem tópica, dificilmente é possível fazer isto. Os topoi retóricos gerais semelhante e contrário (simília, contraria) servem de guia para este fim.92

Viehweg analisa a seguir um exemplo do procedimento da distinção e

divisão tomado da obra de Platão (se o pescador que pesca com anzol é dotado de

uma arte ou não), a fim de ressaltar a sua vinculação com a tópica. Essa vinculação

pode ser percebida quando se observa que, nesse procedimento, busca-se um

conceito que pareça um ponto de partida adequado e aceitável, dividindo-o na

medida em que se introduz uma diferenciação. Essas separações pela diferenciação

são feitas até que se obtém o conceito a ser ordenado, produzindo-se, dessa maneira,

uma ordem na qual cada noção tem o seu lugar93.

A técnica das distinções parece ser muito mais ligada ao sistema do

que ao procedimento tópico, contudo somente é possível afirmar que elas pertencem

a um sistema dedutivo quando podem ser logicamente inferidas. Nesse caso, poder-

se-ia construir silogismos e estes seriam o meio de dissolver as contradições,

tornando-as aparentes, afirma Viehweg94.

A tópica, diz Viehweg, reaparece sempre que, em uma operação

lógica, se introduzem novos pontos de vista objetivos. A técnica de concordâncias

que examinamos atua tanto na seleção do conceito inicial quanto na escolha das

distinções. Por seu procedimento gradual, chega-se à invenção bem sucedida. Essa

contraposição realizada entre a partição ou distinção dos conceitos e a dedução

lógica lança uma “luz muito significativa sobre a tópica”95.

91 Vide, a esse respeito, WIEACKER, op. cit., p. 53. 92 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 67-68 da edição alemã e p. 63 da edição brasileira. 93 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p 68 da edição alemã e p. 63 da edição brasileira. O exemplo referido pode ser encontrado no diálogo platônico O Sofista, 219 - 221c. 94 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 69 da edição alemã e p. 64 da edição brasileira. 95 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 69 da edição alemã e p. 64 da edição brasileira.

O segundo dos problemas anteriormente levantados – a correlação

entre situações que justificam a aplicação de um texto – é mencionado por Viehweg

como um assunto tópico tão claro e familiar à Jurisprudência que exige apenas um

tratamento breve. Consoante o autor, buscam-se e encontram-se pontos de vista que

justifiquem a aplicabilidade do texto. A necessidade do procedimento é determinada

pelo caráter paradigmático do texto e pela diferença entre as situações problemáticas

que dão causa ao seu surgimento e o seu contexto atual de aplicação. Um

procedimento de tal ordem contém necessariamente arbitrariedades lógicas, diz

Viehweg, mas é ele que torna possível a construção contínua do “mundo das formas

jurídicas”96.

Além dos aspectos acima mencionados, podemos encontrar evidências

da importância da tópica para o pensamento medieval na sua preocupação em fixar

um procedimento prático que reproduzia a reflexão de busca de premissas em uma

fórmula, claramente em um esquema tópico. Essa fórmula consistia, com algumas

variações de autor para autor, nos seguintes passos: fixação do problema, pontos de

vista próximos, pontos de vista contrários, solução e objeções possíveis à solução.

Viehweg realiza, então, uma análise exemplificativa com os comentários de Bartolo

ao Digesto, a fim de mostrar como essa fórmula encontra-se ali empregada97.

Esse mesmo espírito, de acordo com Viehweg, transparece nos livros

didáticos. A característica central dele, tanto no ensino quanto na construção de

opiniões, é a sua vinculação com o problema, o qual é considerado sempre “como

uma articulação do problema básico da justiça, para que toda a problemática não seja

algo sem sentido. Esforça-se continuamente em encontrar argumentos para a

resposta, o que propicia a introdução num mesmo estado de coisas de pontos de vista

muito diferentes”98.

Viehweg encerra sua análise, rechaçando que se salientem em demasia

as generalizações que são feitas durante os comentários dos pós-glosadores,

96 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 69-70 da edição alemã e p. 65 da edição brasileira. 97 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 70-73 da edição alemã e p. 66-67 da edição brasileira. Viehweg ampara-se também na análise de COING, Helmut. Die Anwendung des Corpus Iuris. In. L’Europa e il Diritto Romano: Studi in Memoria de Paolo Koschaker. Vol. I. Milano: Giuffrè, 1954, p. 73-97. O esquema referido acima é também abordado por Coing, que os refere aos Comentários de Bartolo. Vide especialmente p. 76 e ss. 98 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 74 da edição alemã e p. 68 da edição brasileira.

procurando considerá-las proposições básicas de um sistema. Sua natureza é muito

mais a de topoi. As generalizações são meios de trabalho, utilizados de modo

acessório pelos professores medievais, que indicam aos seus alunos que anotem os

topoi, bem como as particularidades ensinadas. Esse tipo de anotação deu ensejo

mais tarde a catálogos de topoi jurídicos. Não se pode esquecer, contudo, que os

topoi se legitimam pelo apelo à autoridade de textos reconhecidos, como já o faziam

antes, mas numa intensidade ainda maior, dada a relação da Idade Média com a

Antiguidade99.

Viehweg passa, em seguida, a examinar o que chama de ars

combinatoria por intermédio de Leibniz. Antes, contudo, de abordar diretamente o

assunto, faz as seguintes observações:

a tópica prestou, como vimos, grandes serviços à jurisprudência. Porém, como vimos também, faz que a jurisprudência não possa converter-se em um método, pois só pode chamar-se método um procedimento que seja lógica e rigorosamente verificável e crie um nexo unívoco de fundamentos, quer dizer, um sistema dedutivo100.

Assim, podemos compreender, a vinculação produzida entre

prudência e tópica, ainda na Antiguidade, a qual perdurou pela Idade Média, não

permite que a Jurisprudência possa ser tratada ao modo como o espírito cartesiano

dos séculos XVI e XVII desejaria. A empreitada de Leibniz, que busca transformar a

ars inveniendi em ars combinatória, reforça essa constatação101. Vejamos como

Viehweg a analisa.

99 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 74-76 da edição alemã e p. 68-69 da edição brasileira. 100 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 77 da edição alemã e p. 71 da edição brasileira. 101 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 77 da edição alemã e p. 71 da edição brasileira.

4. A estrutura tópica da Jurisprudência: da ars combinatoria de Leibniz à

civilística contemporânea

A tópica, afirma Viehweg, não possui as características de um

procedimento lógica e rigorosamente verificável, ou seja, não permite que seus

resultados possam formar um sistema dedutivo. Ela é um estilo, e não um método102.

Leibniz, educado no mos italicus, pretendeu em sua juventude fazer

concordar o patrimônio retórico recebido da Idade Média com o espírito

matematizante do século XVII. Mais tarde, em sua obra principal, trata a

Jurisprudência ao modo dedutivo-sistemático tão caro ao espírito de sua época103.

O intento da juventude, portanto, é o de colocar a tópica, enquanto ars

inveniendi, sem eliminar sua estrutura fundamental, sob o controle aritmético, ou

seja, matematizá-la104. Viehweg coloca a intenção de Leibniz do seguinte modo:

“Quer construir com fundamentos aritméticos (ex Arithmeticae fundamentis) uma

doutrina das complicações e transposições e com isto dar novos estímulos à arte de

meditar ou arte da invenção lógica”105.

Segundo o autor, o projeto de Leibniz encontra sua fonte de inspiração

na obra de Raimundo Lullus106, que teria desenvolvido por volta de 1300 um jogo

combinatório formado por cinco círculos giratórios e concêntricos, cada um com

nove conceitos fundamentais. Viehweg reproduz os cinco círculos e seus conteúdos,

e avalia que a tentativa de Lullus seria uma mecanização da tópica enquanto ars

inveniendi107.

102 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 77 da edição alemã e p. 71 da edição brasileira. 103 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 77 da edição alemã e p. 71 da edição brasileira. Sobre a intenção matematizante dos séculos XVI e XVII, vide a abordagem no Capítulo I, em especial a discussão exemplificada com Hobbes. Sobre a educação recebida no referido período, pode-se consultar, ainda que verse sobre a Inglaterra, SKINNER, op. cit., p. 41-72. Especificamente sobre o desenvolvimento dos estudos jurídicos de Leibniz, vide MOLITOR, Erich. Der Versuch einer Neukodifikation des römischen Rechts durch den Philosophen Leibniz. In L’Europa e il Diritto Romano: Studi in Memoria di Paolo Koschaker. Vol. I. Milano: Giuffrè, 1954 p. 359-373. 104 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 77-78 da edição alemã e p. 72 da edição brasileira. 105 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 78 da edição alemã e p. 72 da edição brasileira. 106 Sobre este autor e seu projeto, vide ECO, Umberto. La búsqueda de la lengua perfecta. Tradução de Maria Pons. Barcelona: Crítica, 1999, p. 55-68. 107 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 78 da edição alemã e p. 72 da edição brasileira. Sobre a relação de Leibniz com Lullus, afirma ECO, op. cit., p. 230: “El tema del descubrimiento y de la lógica inventiva

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao capítulo I.

A arte combinatória de Leibniz foi objeto também de um outro escrito

de Viehweg, este mais detalhado, no qual o autor procura examinar a matematização

já referida e os exemplos jurídicos que aquele primeiro autor emprega em seu esforço

de transformar a ars inveniendi em ars combinatória108.

Leibniz teria, conforme Viehweg, malogrado em seu intento em razão

da multivocidade da linguagem natural. Esse malogro levaria aquele à tentativa de

criar uma linguagem precisa e, posteriormente, pela ênfase dada à axiomática, à

logística109.

Dascal, discorrendo sobre o racionalismo de Leibniz e seu programa

de desenvolvimento de um cálculo lógico, afirma que o autor tinha, de fato, a

intenção de formalizar os métodos de raciocínio e representação do conhecimento,

assim como o propósito de cobrir outras áreas além da matemática e da lógica, como

a Jurisprudência, a física, a moral, a política etc. A convicção de Leibniz era a de

que, se dispuséssemos de uma notação adequada para a representação de todo nosso

conhecimento e de um cálculo rigoroso para manipular adequadamente essas

representações, todas as questões se resolveriam calculando e todos os erros seriam

facilmente detectáveis e poder-se-ia corrigi-los como simples erros de cálculo. Essa

forma de trabalho permitiria que se resolvessem de modo inteiramente formal muitas

controvérsias, especialmente as jurídicas110.

A trajetória de Leibniz parece, pois, indicar os limites da

formalização, e esse aspecto interessava muito a Viehweg, conforme se verá

posteriormente, quando se discutir a questão do sistema axiomático-dedutivo. Como

aponta Eco, a tentativa de produzir uma linguagem unívoca para a ciência, e nesse

sentido Leibniz é precursor de muito do que se fez contemporaneamente, só pode ser nos conduce a una de las fuentes del pensamiento de Leibniz, el ars combinatoria de Llull. En 1666, a la edad de veinte años, Leibniz escribe una Dissertatio de arte combinatoria, de clara inspiración luliana; y el fantasma de la combinatoria le va a obsesionar durante toda la vida”. Para uma ideia da configuração dos círculos da ars magna de Lullus, vide, em ECO, op. cit., p. 59. 108 Cfe. Die juristischen Beispielsfälle in Leibnizens Ars Combinatoria, publicado apenas na coletânea dos pequenos escritos em alemão, p. 137-143. Este texto foi originalmente publicado em 1947. 109 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p.79-80 da edição alemã e p. 73 da edição brasileira. Vide também ECO, op. cit., p. 228-246. 110 Cfe. DASCAL, Marcelo. La Balanza de la Razón. In NUDLER, Oscar (compilador). La racionalidad: su poder e sus límites. Buenos Aires/Barcelona/México: Paidós, 1996, p. 363-381. A ideia referida encontra-se nas p. 370-371. Veja-se também neste artigo a interessante discussão sobre o racionalismo de Leibniz e a possibilidade de entendê-lo em uma versão mais radical e em outra mais moderada. Vale lembrar aqui a discussão do modelo moderno de ciência no item I do Capítulo II.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao item I do Capítulo II

feita à custa do abandono da relevância prática, social, da linguagem111. Viehweg

interpreta, desse modo, o malogro do projeto de Leibniz como uma confirmação da

vinculação entre tópica e Jurisprudência. Aquilo que havia sido apontado, portanto,

na Antiguidade e no mos italicus continua sendo verdadeiro para o período

subsequente, como evidencia a análise da obra de Leibniz.

O próximo ponto da análise de Viehweg é a civilística contemporânea.

O autor procura mostrar que a tópica continua sendo relevante contemporaneamente,

o que seria demonstrável, observando-se alguns estudos da civilística.

Não há uma explicação expressa do porquê da escolha da civilística, e

não de outros ramos do Direito. Encontramos também em outros escritos essa opção,

e, neles, Viehweg justifica-se, dizendo que ela se impõe pela tradição maior desse

ramo, bem como pela documentação mais ampla que temos dessa tradição112.

Viehweg inicia mencionando a circunstância de que cada disciplina

opta, por assim dizer, pela utilização de um conjunto de topoi e descarta outros que

são considerados, naquele momento ao menos, de menor importância. Isso não

significa, salienta, que esses mesmos topoi não possam ir ganhando em relevância no

curso de situações que variam incessantemente, e, ademais, o ingresso ou a

revitalização dos novos topoi se dá ou pela via da legislação ou pela interpretação113.

Exemplo desse processo, apresenta Viehweg, é o conceito de interesse

introduzido na doutrina civilística, primeiro, e depois na disciplina jurídica geral por

Jhering114. Interesse pode ser considerado um topos que ganhou um peso assaz

relevante, chegando mesmo a exercer influência sobre o caráter da Jurisprudência.

111 Cfe. ECO, op. cit., p. 242: “Todo el ingenio que Leibniz invirtió en construir una lengua filosófica a priori le sirvió para inventar otra lengua filosófica, indudablemente también a priori, pero carente de toda finalidad práctico-social, y destinada al cálculo lógico. En este sentido, su lengua, que es también la de la lógica simbólica contemporánea, era una lengua científica, pero, como todas las lenguas científicas, no podía hablar de la totalidad del universo sino solamente de algunas verdades de razón”. 112 Cfe. Modelle juristischer Argumentation in der Neuzeit, p. 127 da edição alemã dos pequenos escritos ou, na coletânea espanhola, Perspectivas históricas de la Argumentación Jurídica: la Época Moderna, p. 150. 113 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 93 da edição alemã e p. 87 da edição brasileira. 114 Jhering, como sabemos, é também objeto da atenção de Viehweg em um de seus artigos, intitulado Rechtsdogmatik und Rechtszetetik bei Jhering, p. 153-158 da edição alemã dos pequenos escritos e Dogmática Jurídica y Cetética Jurídica en Jhering, na coletânea espanhola, p. 141-149. Vide também a discussão do referido artigo no item I do Capítulo III.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao item I do Capítulo III

A importância desse processo é colocada por Viehweg não na

aparição de um novo topos, pois isso é relativamente corriqueiro. A questão que ele

procura salientar é a de que a introdução do conceito de interesse “permite dispor de

meios adequados para revisar os fundamentos de toda a disciplina a partir da própria

praxis jurídica que lhe serve, com razão, sempre como guia”115. Nesse aspecto, as

formulações da teoria do interesse permitem pôr em dia o que Viehweg chama as

perpétuas aporias fundamentais da disciplina jurídica.

Esta ideia, de uma aporia fundamental, constitui-se na questão do que

é o justo aqui e agora. Ela informa e domina toda a nossa disciplina. Segundo o

autor, ela é iniludível. Sua consequência é que a Jurisprudência, na medida em que

possui como problemática fundamental a aporia da justiça, não consegue reduzi-la a

um princípio seguro e fecundo, não consegue sistematizar-se. Assim, sua estrutura

deve ser a de uma discussão problemática, o que significa dizer de outro modo que

ela não pode abrir mão da tópica como técnica de discussão de problemas116.

Colocada a questão nesses termos, a sua demonstração deve ocorrer,

mostrando-se na tópica a estrutura que convém à Jurisprudência. Isso posto, Viehweg

procurará mostrar que a civilística contemporânea, ao menos em três importantes

opiniões doutrinárias, concorda com ele.

Os pontos que se deveriam encontrar para fundamentar a ligação entre

tópica e Jurisprudência são, de acordo com o autor, os seguintes:

1. A estrutura total da jurisprudência somente pode ser determinada a partir do problema.

2. As partes integrantes da jurisprudência, seus conceitos e proposições têm de ficar ligados de um modo específico ao problema e só podem ser compreendidos a partir dele.

3. Os conceitos e as proposições da jurisprudência só podem ser utilizados em uma implicação que conserve sua vinculação com o problema. Qualquer outra forma de implicação deve ser evitada.117

115 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 96 da edição alemã e p. 88 da edição brasileira. 116 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 96-97 da edição alemã e p. 88-89 da edição brasileira. Vide também a discussão do interesse de Viehweg na tópica aristotélica no final do item 2 deste Capítulo. 117 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 97 da edição alemã e p. 89 da edição brasileira.

Cada um dos três pontos é, após, abordado por Viehweg. A análise

utiliza três exemplos retirados da civilística alemã sua contemporânea118.

O primeiro deles é a nova ordenação do direito privado proposta por

Fritz von Hippel em 1930. No trabalho deste autor, encontra-se, no entender de

Viehweg, a constatação de que todo ordenamento jurídico deve ser construído com a

pretensão de ser justo e de que cada escolha que o legislador faça deve levar em

conta esse critério. Assim, as possibilidades de ordenamento que a ela não se

adaptem devem ser descartadas. As demais devem ser selecionadas em conexão com

a realidade e, por isso, sua seleção é sempre uma tarefa histórica119.

Respondida a pergunta sobre o ordenamento justo, abre-se, em

seguida, uma série de outras questões. O conjunto de problemas que resulta daí é a

sistemática do direito privado. De acordo com a leitura que Viehweg faz de von

Hippel, a construção do direito privado alemão se daria em torno de dois círculos de

problemas: negócio jurídico e perturbação da relação. No interior de cada um deles, o

autor localizaria, ainda, um conjunto de seis questões que estariam relacionadas entre

si em uma fixa relação de construção. Quando o legislador responde tais questões,

cria um código civil120.

O direito positivo é concebido, nessa ordem de pensamento, apenas

como um conjunto de problemas conectados através da questão fundamental da

justiça. A regulação jurídica que nele transparece é uma tentativa de responder a essa

pergunta fundamental nas condições históricas do momento121.

O que a análise de von Hippel demonstra, afirma Viehweg, é o

primeiro ponto antes levantado: a estrutura total da Jurisprudência só pode ser

determinada a partir do problema. Quando se toma uma posição diante do problema

fundamental, afirmando-se, por exemplo, que a autonomia privada parece justa, cria-

118 Para uma análise crítica do uso que Viehweg faz dos três exemplos, ou da impossibilidade de retirar as conclusões por ele tiradas a partir deles, vide GARCIA AMADO, op. cit., p. 109-114. Vide também a crítica de DIEDERICHSEN, Uwe. Topisches und Systematisches Denken in der Jurisprudenz. Neue Juristische Wochenschrift, 16, 1966, p. 697-752, especialmente p. 699. 119 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 98 da edição alemã e p. 89 da edição brasileira. Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p. 109-110. 120 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 98-99 da edição alemã e p. 90 da edição brasileira. 121 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 99 da edição alemã e p. 90 da edição brasileira.

se um conjunto de questões determináveis com notável precisão, e esse conjunto

baliza o âmbito de uma disciplina como o direito privado122.

No que diz respeito à segunda questão – a necessidade de

compreender-se cada conceito jurídico sempre a partir da aporia fundamental da

justiça –, Viehweg recorre a um trabalho de Josef Esser datado de 1952, no qual este

último afirma que os conceitos que aparentemente são de pura técnica só assumem

seu verdadeiro sentido a partir da questão fundamental da justiça123.

O conceito de declaração de vontade, por exemplo, somente poderia

ser adequadamente entendido se encarado como a fixação de alguns princípios de

justiça na relação jurídico-negocial. Somente assim pode-se entender a aplicação que

deste conceito é feita em alguns casos, como, por exemplo, quando inexiste

declaração de vontade, mas, mesmo assim, ela é presumida para se preservar a

confiança nos negócios jurídicos124.

A teoria do interesse permite, afirma Viehweg, uma formulação

incisiva da questão da justiça e, por essa razão, conduz ao problema em torno do qual

gira toda a Jurisprudência. Para se compreender algo como jurista, não se pode

perder de vista esse ponto, e, também a partir dele, explica-se por que o sistema

dedutivo não pode ser considerado predominante na Jurisprudência. O mais

importante é a escolha das premissas, “que se produz como conseqüência de um

determinado modo de entender o direito, à vista da aporia fundamental. O exemplo

da ‘declaração de vontade’ ilumina esta idéia de uma maneira muito clara”125.

Viehweg procura mostrar, então, que, se se estivesse trabalhando com

um sistema dedutivo, no caso da declaração de vontade ele teria de oferecer um 122 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 100 da edição alemã e p. 91 da edição brasileira. Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p.110. 123 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 101 da edição alemã e p. 92 da edição brasileira. Cfe. também ESSER, Josef. Elementi di Diritto Naturale nel Pensiero Giuridico Dogmático. Nuova Rivista di Diritto Commerciale, Diritto dell’Economia, Diritto Sociale. Vol. 5, Fascicolo 1-4. Padova; CEDAM, 1952, p. 54-65, p. 54: “Quello a cui sopratutto intendo accennare è l’elemento genuíno di diritto naturale della ovvia ed inconscia constatazione e della prequalificazione, secondo il diritto naturale, anche dei concetti in apparenza puramente tecnico-giuridici, in coincidenza con opinioni naturali e scopi socialmente riconosciuti”. 124 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 101-102 da edição alemã e p. 92-93 da edição brasileira. Vide também ESSER, op. cit., p. 54. Esser cita também uma série de outros exemplos, na p. 55 e ss. Consulte-se também a crítica ao uso de Esser por Viehweg em GARCIA AMADO, op. cit., p. 110-112. 125 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 103-104 da edição alemã e p. 94 da edição brasileira.

conceito que fosse progressivamente dedutivo. Não é o que ocorre, porém. Diante do

problema, a dedução é interrompida e um novo topos é chamado para iluminar a

questão: a proteção da confiança nos negócios jurídicos. Esse modo de trabalho,

vinculado com a tópica, enseja a predominância da aporia fundamental da justiça

como guia para todos os conceitos jurídicos, mesmo se tomados isoladamente126.

Como terceira amostra da civilística atual, Viehweg menciona o

trabalho de Walter Wilburg, no qual afirma poder encontrar a tese de que somente na

conexão com os problemas os conceitos jurídicos podem ser adequadamente

entendidos e qualquer outra forma de implicação deve ser evitada127.

De acordo com o referido autor, o direito civil atual encontra-se

paralisado em um sistema rígido e deveria tornar-se móvel. Isso se deve, ao menos

em parte, ao fato de os princípios civilísticos serem menos fecundos do que se

gostaria que fossem, transformando-se mesmo em empecilhos. Esses princípios, por

vezes muito amplos e por vezes muito estritos, só podem ser corretamente aplicados

se lidos em consonância com a ideia de justiça e por intermédio dela primeiro

dissecados e depois recompostos128.

Viehweg analisa detalhadamente vários princípios e as dificuldades de

aplicação que eles apresentam caso não se faça a sua vinculação com a ideia de

justiça, para concluir pela dificuldade de se coadunarem os exemplos com a

pretensão de uma sistematização dedutiva para o direito129.

Numa passagem bastante significativa de sua opinião sobre a

sistematização dedutiva, Viehweg afirma:

Tudo parece falar em favor desta via, salvo, justamente, a experiência do trabalho quotidiano dos juristas. Willburg fornece abundantes exemplos que demonstram como, em qualquer parte, os princípios têm de ser

126 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 104 da edição alemã e p. 94-95 da edição brasileira. Deve-se salientar que ESSER, op. cit., p. 59 e ss., utiliza várias vezes a expressão topos. 127 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 105 da edição alemã e p. 95 da edição brasileira. Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p. 112-114. Para esse autor, Viehweg faz uma exposição correta da tese de Willburg, mas tira conclusões não autorizadas pelas premissas ali expostas, que assumiria expressamente a necessidade de um pensamento sistemático para a Jurisprudência. Semelhante crítica é feita também por DIEDERICHSEN, op. cit., p. 699. 128 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 106 da edição alemã e p. 96 da edição brasileira. 129 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 108 da edição alemã e p. 98 da edição brasileira.

quebrados, limitados e modificados, o que para nenhum jurista representa algo que seja substancialmente novo. O jurista sabe que há de enfrentar com muito cuidado as proposições colocadas como princípios de sua disciplina, que ‘desfrutam da reputação de axiomas’. De um ponto de vista sistemático, isto seria algo sobremaneira estranho.130

Mais uma vez, a razão disso está na primazia do problema que requer

uma espécie de sistema móvel, exemplo do qual Viehweg julga encontrar no sistema

de direito de danos proposto por Willburg131.

Viehweg encerra sua análise, afirmando que o referido sistema móvel

evitaria a implicação apriorística dos princípios e os utilizaria como topoi. O projeto,

portanto, seria o da construção de um catálogo de topoi, o que significaria uma

construção de acordo com o espírito que a Jurisprudência teve desde o seu berço132.

A análise que acompanhamos até aqui permite compreender que, para

Viehweg, a tópica permanece na Jurisprudência como sua estrutura, na medida em

que esta se orienta para aquilo que o autor qualifica como “problema”. A tópica é,

desse modo, uma técnica de pensar por problemas. A dimensão central da análise que

procuramos sinteticamente reproduzir, em todos os momentos históricos, marcou

esta característica.

O interesse do autor é dirigido, assim, para a dimensão da tópica que

se pode chamar formal, na medida em que dá a estrutura da Jurisprudência.

Conforme apontávamos no início deste capítulo, Viehweg entende necessário que se

faça a pesquisa histórica que pudesse mostrar qual o conteúdo da tópica jurídica, a

sua dimensão material, mas não a realiza133.

Para seguirmos esta investigação, precisamos agora verificar como o

autor concebeu a definição da tópica como arte de pensar por problemas, o que nos

levará também à discussão sobre a correlação entre tópica e sistema. Como vimos

acima, Viehweg sustenta que a presença da tópica na Jurisprudência a impediu de

tornar-se uma ciência aos moldes das que utilizam o modelo sistemático-dedutivo.

130 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 109 da edição alemã e p. 98 da edição brasileira. 131 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 109-110 da edição alemã e p. 98-99 da edição brasileira. 132 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 110 da edição alemã e p. 99 da edição brasileira. 133 Viehweg menciona como um exemplo desse tipo de investigação a obra de STRUCK, Gerhard. Topische Jurisprudenz: Argument und Gemeinplatz in der Juristischen Arbeit. Frankfurt/M: Athenäum, 1971.

Essa caracterização da Jurisprudência resultou em grande polêmica e foi alvo de

inúmeras críticas. O próximo capítulo principia com a referida discussão. Concluída

esta, perguntar-nos-emos sobre o cruzamento entre os dois pares de conceitos que

constituem o núcleo central da obra de Theodor Viehweg – problema/sistema e

dogmática/zetética – e sua consequência para a Jurisprudência.

CAPÍTULO VI

A Análise da Tópica e suas consequências para a Jurisprudência

1. Pensar por problemas e pensar por sistemas

Consoante percebemos no capítulo anterior, a identificação que

Viehweg propõe entre tópica e Jurisprudência, bem como sua confirmação nos

diversos momentos históricos levaram a considerar a tópica como vinculada à noção

de problema.

Nesse sentido, quando examina os resultados obtidos na recuperação

histórica das tópicas aristotélica e ciceroniana, Viehweg diz que o ponto mais

importante no exame realizado é a constatação de que se trata de uma techné do

pensamento que se orienta para o problema134. Essa vinculação entre tópica e

problema é realizada pelo próprio Aristóteles, que se refere ao problema como o

objeto dos raciocínios135.

Segundo Viehweg, portanto, sua definição da tópica como técnica do

pensamento problemático encontraria sua justificativa na tópica aristotélica. O autor

menciona, ainda, o fato de Aristóteles ter adotado a técnica ou o estilo mental dos

sofistas na discussão realizada na Metafísica. Foi desse modo que nasceu o método

de trabalho chamado de aporético136. Aporia e problema são utilizados pelo autor

como termos equivalentes137.

134 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 31 da edição alemã e p. 33 da edição brasileira. 135 Cfe. ARISTÓTELES, Tópicos, I, 101b 15-20. 136 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 31 da edição alemã e p. 33 da edição brasileira. A esse respeito, vide BERTI, op. cit., p. 75-85. 137 Embora Viehweg não faça distinção entre problema e aporia, parece útil à melhor compreensão do tema levarmos em consideração o que propõe Ferraz Jr. a respeito. Para este autor, existem questões que se mostram como problemas, outras como dilemas e outras, ainda, como aporias. Um problema é uma questão na qual delimitamos o campo das soluções possíveis pela comparação das alternativas, cujo limite é dado, portanto, pelas diferentes possibilidades, estruturadas como alternativas. Um dilema “é uma questão que ultrapassa o limite das alternativas, isto é, na qual a comparação das alternativas nos obriga a abandonar o campo das possibilidades”. A aporia, a seu turno, “é uma

Uma aporia, afirma o autor, é uma questão iniludível e estimulante,

não passível de eliminação e que representa a ausência de um caminho único, seguro

e predeterminado. A tópica representaria exatamente um modo de trabalhar com

questões assim configuradas, na medida em que pretende fornecer indicações do que

se pode fazer para não se ficar sem saída diante de questões aporéticas138.

Quando Viehweg define problema, assim coloca a questão:

(...) toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução.139

Viehweg não explica em pormenores o que exatamente deseja

significar com a afirmação de que o problema é uma questão que tem de ser levada a

sério. A única menção que encontramos a esse respeito é a sua afirmação relacionada

à constância do problema. Assim, diz ele, colocamos uma questão como um

problema quando, a partir de um nexo preexistente, lógico ou não, a compreendemos

como algo que exige uma resposta140.

Continuando a delimitação de problema, Viehweg afirma que este,

devidamente reformulado, é introduzido em um conjunto de deduções previamente

dado, mais ou menos explícito e mais ou menos abrangente. A partir dessa inserção

do problema no conjunto de deduções, infere-se uma resposta. Se a esse conjunto de

deduções chamamos sistema, então podemos dizer, afirma Viehweg, que, para

encontrar uma solução, problema se ordena dentro de um sistema141.

Nessa correlação entre problema e sistema, a ênfase pode recair num

ou noutro. Se a ênfase é dada ao sistema, opera-se uma seleção de problemas,

descartando-se aqueles insolúveis dentro dos quadros do sistema como problemas

questão em cujo campo de possibilidades a própria questão é, permanentemente, uma alternativa”. Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 18-19. 138 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 31 da edição alemã e p. 33 da edição brasileira. 139 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 32 da edição alemã e p. 34 da edição brasileira. 140 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 33-34 da edição alemã e p. 35 da edição brasileira. 141 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 33 da edição alemã e p. 34 da edição brasileira. Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p.139.

aparentes. Se a ênfase é dada ao problema, busca-se um sistema que permita

encontrar-lhe uma solução, operando-se uma seleção de sistemas142.

Apesar da distinção entre problema e sistema, colocada como acima

se viu, é importante destacar que Viehweg menciona por diversas vezes a implicação

que há entre um e outro. De certo modo, a própria forma como a questão é colocada

– como ênfase, e não como dicotomia – aponta para a necessidade de vê-los como

indissoluvelmente imbricados. É importante, contudo, considerar que a referida

ênfase produz consequências distintas.

Nesse sentido, citando Nicolai Hartmann143, Viehweg afirma que o

modo de pensar sistemático procede do todo e a concepção que tem deste todo é nele

predominante. Um ponto de vista vem adotado desde o princípio da investigação e a

partir dele os problemas são selecionados. Os problemas cujo conteúdo concilia-se

com o ponto de vista são, então, assumidos ou aceitos, e os que não se adaptam são

rejeitados como questões falsamente colocadas.144 Toma-se de modo prévio, dessa

forma, uma decisão sobre os limites dentro dos quais será possível a solução dos

problemas145_146.

Já o modo de pensar por problemas, ou aporético, “não põe em dúvida

que o sistema exista e que para sua própria maneira de pensar talvez seja

142 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 33 da edição alemã e p. 34-35 da edição brasileira. 143 Em HARTMANN, Nicolai. Diesseits von Idealismus und Realismus. In Kleine Schriften II. Berlim: de Gruyter, 1957, p. 278-322, especialmente p. 281. 144 Sobre a obra de Hartmann e as suas repercussões para a filosofia do direito, vide ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 145 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 34 da edição alemã e p. 35 da edição brasileira. O trecho de Hartmann (op. cit., p. 281) citado por Viehweg é o seguinte: “Systematische Denkweise geht vom Ganzem aus. Die Konzeption ist hier das Erste und beibt das Beherrschende. Nach dem Standpunkt wird hier nicht gesucht, er wird zu allererst eingenommen. Und von ihm aus werden die Probleme ausgelesen. Problemgehalte, die sich mit dem Standpunkt nicht vertragen, werden abgewiesen. Sie gelten als falsch gestellte Fragen. Vorentschieden ist hier nicht etwa über die Lösung der Probleme selbst, wohl aber über die Grenze, in denen sich die Lösung bewegen darf” (Para a tradução desta passagem em língua portuguesa, vide a p. 35 da edição brasileira de Topik und Jurisprudenz). Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p. 140. 146 De acordo com Adeodato, op. cit, p. 81, “A insistência sobre os problemas pode fazer o leitor enxergar em Nikolai Hartmann ojeriza a toda e qualquer sistematização na atividade filosófica. Não é bem esse o caso. Toda teoria sempre constitui, em algum sentido, um sistema: precisa estar organizada segundo certos princípios, precisa manter-se de acordo consigo mesma. Hartmann tem consciência disso”.

latentemente o determinante. Tem certeza do seu sistema, ainda que não chegue a ter

dele uma concepção”147.

A afirmação de que a forma de pensar por problemas parte de um

sistema, mas não tem dele uma concepção precisa ou acabada, é fundamental para

compreender a tópica. Esta, aponta Viehweg, somente pode ser bem entendida se se

admite a inclusão de seus raciocínios em uma ordem que está por determinar e que

não é previamente concebida enquanto ordem, ou seja, se a pensamos como uma

forma de pensamento que pressupõe um sistema, embora não o mantenha

explícito148.

A assunção da distinção de Nicolai Hartmann encontrou severas

restrições por parte dos críticos de Viehweg. Garcia Amado coloca a repercussão

desse tema na doutrina jurídica, agrupando os autores em três grupos: para alguns,

nada há de errado no uso que Viehweg faz da contraposição entre pensamento

problemático e sistemático149. Outros veem dificuldades decorrentes na diferença de

contextos (da elaboração de Hartmann e da de Viehweg), mas acham que, mesmo

assim, a distinção é útil e proveitosa para o direito. Por fim, há aqueles que rechaçam

abertamente a leitura de Hartmann por Viehweg150.

A crítica mais generalizada, por assim dizer, é a de que Viehweg

descontextualiza a distinção de Hartmann. Assim, por exemplo, defendem

expressamente Garcia Amado151 e Degadt152.

Tomando-se a formulação da crítica que este último autor fornece,

encontramos a tese de que Viehweg utiliza-se de Hartmann, dele tomando apenas e

tão somente o que interessa ao primeiro (a exemplo do que já fizera com Vico) e sem 147 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 34 da edição alemã e p. 35 da edição brasileira. Cfe. HARTMANN, op. cit., p. 282: “Aporetische Denkweise verfährt in allem umgekehrt. Ihr sind die Probleme vor allem heilig. Eine Auslese unter ihnen zugunsten eines Standpunktes gilt ihr schon als Versündigung na ihnen. Sie kennt keine Zwecke der Forschung neben der Verfolgung der Probleme selbst; (...) Sie zweifelt nicht daran, dass es das System gibt, und dass es vielleicht in ihrem eigenen Denken latent das Bestimmende ist. Darum ist sie seiner Gewiss, auch wenn sie es nicht erfasst” (Para a tradução desta passagem em língua portuguesa, vide a p. 35 da edição brasileira de Topik und Jurisprudenz). Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p. 140. 148 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 34-35 da edição alemã e p. 35-36 da edição brasileira. 149 Assim, por exemplo, COING, Helmut. Über einen Beitrag zur Rechtswissenschaftlichen Grundlagenforschung. Archives für Rechts und Sozialphilosophie, XLI, 1954/55, p. 436-444. 150 Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 141-142. 151 Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 141-142. 152 Cfe. DEGADT, op. cit., p. 31.

considerar o contexto no qual a distinção entre problema e sistema vem incluída.

Segundo Degadt, a distinção foi construída e ela própria tornada um “lugar comum”

para a explicitação e a defesa do pensamento de Kant por Hartmann, no sentido da

importância que Kant atribuiria aos problemas e seu esforço em tratá-los153.

Do mesmo modo que considerávamos a crítica de Degadt em relação

ao tratamento dado por Viehweg a Vico, também aqui vale lembrar que, de fato, o

autor tomou de Hartmann apenas o que lhe pareceu fecundo como ponto de partida.

A distinção entre pensamento problemático e sistemático é um exemplo bastante

claro disso. Ela pode ser vista como um topos a partir do qual Viehweg organiza e

argumenta sua tese principal, mas não se pode encontrar, nem em Topik und

Jurisprudenz, nem nos ensaios posteriores, uma consideração global da obra de

Hartmann ou do papel da distinção nela. Viehweg estava procurando, ele mesmo,

pensar por problemas, e não por sistemas, como procuramos mostrar na introdução

deste trabalho154.

Conforme o mesmo autor, o ponto alto da caracterização do

pensamento aporético para Hartmann é a sua constante abertura aos problemas. Isso

somente pode ser lido, em sua opinião e em consonância com a afirmação de

Hartmann da constância da aporia fundamental (Grundaporie), como um

“apriorismo das aporias”, o qual apresenta os mesmos perigos mencionados a

propósito do pensamento sistemático. A rigidez que se procura evitar, salientando as

vantagens do pensamento problemático retorna quando se considera a constância da

aporia155.

153 Cfe. DEGADT, op. cit., p. 31. Nesse sentido também a crítica de GARCIA AMADO, op. cit., p. 140. 154 Nesse sentido também se manifesta Heino Garrn na apresentação da coletânea dos “pequenos escritos” de Viehweg: “Ihren Niederschlag findet die erwähnte skeptische Grundhaltung Viehwegs vor allem in der Einsicht, dass man gross angelegten theoretischen Systemen nicht nur dort mit Vorbehalten zu begegnen hat, wo sie auf extreme Formen totalitärer Ideologisierung hinauslaufen, sondern gur beraten ist, den Stellenwert solcher Theoriesysteme für die Humanioria auch im übrigen nicht zu überschätzen” (“A mencionada postura cética dos princípios de Viehweg encontra sua concreção principalmente na cognição de que é necessário postar-se diante de sistemas teóricos de ampla extensão com ressalvas não apenas ali onde resultam em formas extremas de ideologização totalitária, mas de que, aliás, é muito conveniente não superestimar a importância de tais sistemas teóricos para as Humaniora”. Tradução nossa). Cfe. GARRN, Heino. Einleitung. In VIEHWEG, Theodor. Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1995, p. 10. 155 Cfe. DEGADT, op. cit., p. 31-32.

Quanto ao segundo ponto de crítica, que parece, aliás, mais voltada ao

próprio Hartmann do que a Viehweg, entendemos que Degadt não leva

suficientemente em consideração a definição de aporia.

Se considerarmos, como propõe Ferraz Jr. e como Viehweg parece

também entender156, que uma aporia é justamente uma questão que se coloca a si

própria como questão, ou seja, que não tem uma resposta segura, mas exige um

tratamento das possibilidades, não parece que considerar, como Viehweg o faz, que a

justiça é a aporia fundamental do direito conduza a uma rigidez comparável ao que

poderia ocorrer a partir do pensamento sistemático. O que é constante (e, por isso, é

uma aporia) é a pergunta pelo que é o justo, pergunta esta que não tem uma resposta

definitiva157.

Outra crítica que se pode fazer, ainda segundo Degadt, é a de que a

separação entre pensamento sistemático e método aporético leva ao erro de se

considerar que o pensamento aporético não será aplicável àqueles ramos do

conhecimento nos quais não se trabalha com opiniões ou com o domínio do

provável, mas com hipóteses verdadeiras ou falsas158.

Novamente precisamos discordar da crítica de Degadt. Ao menos no

que diz respeito a Viehweg, o autor nunca disse que o pensamento problemático seria

uma exclusividade das áreas do saber que Aristóteles chamou opinativo159.

É verdade que isso parece decorrer do modo como encaminha a

questão do sistema dedutivo, que se examinará a seguir. É de se ler, no entanto, a não

explicitação de onde cabe ou não trabalhar com o pensamento problemático, muito

mais como uma circunscrição do discurso de Viehweg à pesquisa de base no direito,

ou seja, como uma delimitação do objeto sobre o qual o autor está a tecer suas

considerações. A importância da tópica como técnica de pensar por problemas não é

156 Vide, a propósito, a definição de aporia, dilema e problema proposta por Ferraz Jr. e citada no início deste Capítulo. 157 Sobre a justiça como “problema”, vide ZIPPELIUS, Reinhold. Das Wesen des Rechts. München: Beck, 1965, p. 64-67. 158 Cfe. DEGADT, op. cit., p. 32. 159 Mesmo porque, conforme vimos, a dialética tinha, para Aristóteles, o papel de encontrar os primeiros princípios da ciência/filosofia, área do conhecimento na qual se trabalha com a verdade, sendo incorreto, portanto, ver uma cisão absoluta entre dialética e pensamento demonstrativo. Vide o item 2 do Capítulo V.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao item 2 do Capítulo V.

em momento nenhum descartada para outros ramos, e a possibilidade de sua

presença ser constante vem expressamente referida por Viehweg160.

Ainda no âmbito da crítica ao uso de Hartmann por Viehweg,

podemos citar como exemplo Canaris. Este autor, que na classificação de Garcia

Amado pode ser incluído no terceiro grupo, entende que a afirmação de Viehweg de

que a tópica é uma técnica de pensar por problemas esclarece muito pouco a respeito

da natureza da tópica, compreendendo, então, que a assunção da distinção de

Hartmann por Viehweg funcione como uma forma de precisar melhor o que quer

dizer essa qualificação genérica161.

Contudo, afirma, a leitura do texto de Hartmann revela claramente

que ele não aceita uma oposição frontal entre o pensamento aporético e o sistema,

mas entende que também este parte da existência do sistema. A polêmica de

Hartmann, conforme Canaris, é apenas contra o tipo de pensamento problemático

que recusa como aparentes os problemas que não se encaixam previamente dentro do

sistema, que vê como sistema apenas o sistema fechado. Desfazendo-se esse

equívoco, desmancha-se também a ligação proposta por Viehweg entre tópica e

pensamento problemático. Todo sistema que não o axiomático-dedutivo supõe um

pensamento problemático, sustenta Canaris162.

160 A propósito veja-se a seguinte ideia de Viehweg em Topik und Jurisprudenz, p. 41 da edição alemã e p. 40-41 da edição brasileira: “Vico, em compensação, apreciava-a muito. Considerava que, sem ela em realidade, seria impossível orientar-se. O certo é que se alguém olha ao seu redor encontra a tópica com uma freqüência muito maior do que se poderia supor. Não parece que seja completamente inadequada à situação e à natureza humana e, por isso, parece indicado não descuidar inteiramente dela quando se tenta compreender o pensamento humano, seja onde for”. 161 Cfe. CANARIS, op. cit., p. 246. 162 Cfe. CANARIS, op. cit., p. 247-248. Também DIEDERICHSEN (op. cit., p. 700) critica o que considera uma identificação entre sistema e sistema dedutivo como única possibilidade: “Neben den Deduktionssystemen finden sich ‘natürliche’ oder Klassifikationsysteme, wie sie etwa die Biologie kennt. Neben diesen stehen kategoriale Systeme, in denen der Stoff nach bestimmten Grundbegriffen oder Prinzipien geordnet wird, und teleologische Systeme, die verschiedene mit den Rechtssätzen verfolgte Zwecke zugrunde legen. Sieht man von den didaktischen Systemen ab, die lediglich auf die verständnismässige Aneignung und die leichte Erlernbarkeit des Stoffes abzielen, so wird die Jurisprudenz vom kategorialen un teleologischen Systemdenken beherrscht” (“À parte dos sistemas dedutivos, há sistemas ‘naturais’ ou classificatórios, como, por exemplo, na Biologia. A seu lado, existem sistemas categoriais, em que a matéria é classificada conforme determinados conceitos ou princípios básicos; e sistemas teleológicos, que fundamentam diversas finalidades tencionadas com as normas jurídicas. Desconsiderando os sistemas didáticos, que apenas objetivam a assimilação cognitiva e a facilitação da aprendizagem da matéria, a jurisprudência é dominada pelo pensar sistemático categorial e teleológico”. Tradução nossa).

De fato, se observamos o texto de Hartmann e em especial como ele

chega à distinção entre problema e sistema163, encontramos ali uma discussão que

parece corroborar o que Canaris afirma. Isto não implica, contudo, que a crítica sobre

o uso da distinção por Viehweg esteja correta. Este último afirma de maneira clara

que existem ligações importantes entre problema e sistema, e invoca o modo como

Hartmann a concebe justamente ressaltando esse aspecto. Para ele, como

mencionávamos acima, a tópica enquanto estilo ou modo de trabalho é

incompreensível se não se considera a concepção de sistema como algo latente, a

partir do qual se raciocina sem que se tenha uma visão clara e definitiva, ou seja, sem

que o sistema venha previamente definido, embora esteja pressuposto164.

É possível compreender também que a assunção da distinção entre

pensamento problemático e sistemático por Viehweg se deva a uma concordância

com a ideia de Hartmann da limitação do conhecimento humano, como lembra

Garcia Amado. Nesse sentido, poder-se-ia sustentar que o pensamento problemático

significa a tentativa de tratar com as questões cuja resposta não pode ser definitiva,

ou seja, que são propriamente aporéticas165. Mais do que na contraposição entre os

dois modos de pensar, Viehweg estaria interessado na sugestão de se tomar o sistema

sempre cautelosamente166.

163 Vide HARTMANN, op. cit., p. 279-282. 164 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 34 da edição alemã e p. 35 da edição brasileira: “É recomendável não se perder de vista as mencionadas implicações que existem entre sistema e problema, quando se lê o que N. Hartmann escreveu...” Segue-se aí a citação de Hartmann que reproduzimos acima e conclui-se com a observação de que a tópica somente pode ser entendida quando se aceita a “sugerida inclusão em uma ordem que está sempre por ser determinada, e que não é concebida enquanto tal...”. 165 Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 116: “Para Hartmann, el entendimiento humano alcanza sólo hasta un cierto límite de los fenómenos. Lo que está más allá de ese límite sólo es dado bajo la forma de problema”. 166 Vide, a propósito, o que afirma Garrn na apresentação da coletânea dos “pequenos escritos” de Viehweg: “Diese Einsicht {cético, no dizer de Garrn} macht auch verständlich, warum Viehweg den Schwerpukt rechtsphilosophischer Forschung nicht in der Erarbeitung einer umfassenden materialen Rechtstheorie sehen möchte, deren Aufgabe es wäre, die inhaltlichen Grundlagen einer Rechtsordnung philosophisch mit dem Anspruch überzeitlicher ontologischer Gewissheit su begründen. Denn während die traditionelle abnedländische Rechtsphilosophie massgeblich na der Hervorbringung derartig umfassender Rechtstheorien beteiligt war, wird aus heutiger Sicht zunehmend deutlich, dass Theoriesysteme mit dieser Intention die Möglichkeiten meschlichen Erkenntnisvermógens übersteigen” (“Essa cognição [cética, no dizer de Garrn], aliás, permite compreender por que Viehweg não deseja ver a ênfase da pesquisa jurídico-filosófica na elaboração de abrangente teoria jurídica material, cuja função consistiria em fundamentar em termos filosóficos os fundamentos do conteúdo de uma ordem jurídica, com a pretensão de uma segurança atemporal e ontológica. Pois, enquanto a tradicional filosofia jurídica ocidental teve determinante participação na geração de tais teorias jurídicas abrangentes, da perspectiva hodierna torna-se sempre mais nítido que

Essa “desconfiança” nas possibilidades do conhecimento humano e

sua correspondente fundamentação antropológica, que requer uma imagem do

homem, esteve presente quando examinamos o enfoque dogmático e a sua

necessidade funcional na sociedade e transparece em inúmeros momentos da obra de

Viehweg167. Aparece, ademais, em todo o movimento de reabilitação da filosofia

prática e da retórica168. Ela é uma marca bastante saliente do horizonte teórico no

qual Viehweg procura suas respostas e a opinião de Garcia Amado em relação a esse

aspecto encontra claramente respaldo na obra de Viehweg.

A crítica de Canaris deve ser recusada, portanto, porque Viehweg não

só sabe que a contraposição não deve ser tornada absoluta, como expressamente o

afirma, tanto para si quanto para Hartmann, quanto, ainda, compreende que ela faz

parte de um horizonte teórico que lhe agrada particularmente e que é a desconfiança,

por assim dizer, no poder do conhecimento humano; por isso, a assume.

Além disso, vimos que a vinculação, proposta explicitamente por

Viehweg, entre pensamento problemático e tópica decorre da elaboração aristotélica

e pretende ser demonstrada na constância histórica no interior da Jurisprudência, não

podendo ser afastada, como quer Canaris, pela simples crítica ao uso que aquele

autor faz de Hartmann.

Procurando precisar melhor a natureza do pensamento problemático

ou tópico, Viehweg propõe a distinção entre tópicas de primeiro e segundo graus, e

analisa a separação, advinda de Aristóteles, entre topoi comuns e específicos.

Vejamos como essas questões são tratadas pelo pensador.

sistemas teóricos com essa intenção ultrapassam as capacidades da cognição humana.” Tradução nossa). Cfe. GARRN, op. cit., p. 11. 167 Assim, por exemplo, nas passagens em que, especialmente nos ensaios posteriores a Topik und Jurisprudenz, Viehweg critica a concepção que chama de dialética moderna em razão de sua concepção total do decurso histórico. Dentre elas, veja-se Rechtsphilosophie als grundlagenforschung, na coletânea alemã, p. 59-60, ou La filosofía del derecho como investigación básica, na coletânea espanhola, p. 49-50. 168 Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 19-24. Para Blumenberg, o fundamento da retórica seria o princípio da razão insuficiente, a constatação de que a ausência de verdades evidentes e indubitadas como fundamento da ação prática força a um permanente processo de fundamentação e intercâmbio comunicativo. Cfe. BLUMENBERG, Hans. Antropologische Annäherung an die Aktualität der Rhetorik. In: Wirklichkeiten in denen wir leben - Aufsätze und eine Rede. Stuttgart: Phillip Reclam, 1996, p. 104-136.

2. Tópicas de primeiro grau e segundo grau, e tópica geral e específica

Continuando a análise do modo como Viehweg entende o pensamento

problemático, encontramos a afirmação de que um modo de pensar que proceda

dessa maneira contará apenas com panoramas fragmentários e sua forma mais

simples de desenvolvimento é aquela em que, diante de um problema, tenta-se

encontrar premissas que sirvam à sua resolução. Pontos de vista mais ou menos

casuais e arbitrários são tomados e testados para servirem de premissas adequadas e

fecundas, iluminadoras do problema que buscamos decidir. Na vida cotidiana,

postula Viehweg, normalmente procedemos desse jeito e uma observação mais atenta

nos mostra que a busca de premissas nos leva à fixação de pontos de vista diretivos.

Esse modo de trabalho pode ser chamado de uma tópica de primeiro grau169.

A tópica de primeiro grau é, contudo, um procedimento ainda bastante

inseguro, pois não supõe de antemão nenhum limite para a procura dos pontos de

vista diretivos. Quando se elabora um repertório dos mencionados pontos de vista –

um catálogo de topoi – e ele é utilizado como guia para a discussão do problema,

podemos falar de tópica de segundo grau. Os repertórios de topoi encontrados desde

Aristóteles e Cícero podem ser, assim, entendidos como instrumentos utilizáveis na e

pela tópica de segundo grau170.

Esses catálogos tiveram uma história bastante duradoura. Iniciaram-se

com a tentativa de Cícero de dar um caráter mais prático à elaboração aristotélica,

como vimos no capítulo anterior, permaneceram em uso durante a Idade Média e

chegaram à Idade Moderna quase inalterados em seu conteúdo. Viehweg menciona,

nessa linha, a organização dada aos topoi pela Escola Lógica de Port Royal, que os

divide em loci grammatici, loci logici e loci metaphisici, e também uma obra de

1816, denominada Tópica ou Ciência da Invenção, na qual podemos encontrar um

catálogo que usa a classificação de Port Royal, agrega-lhe a categoria dos loci

169 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 35 da edição alemã e p. 36 da edição brasileira. 170 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 35 da edição alemã e p. 36 da edição brasileira.

históricos, mas cujo conteúdo é essencialmente ciceroniano, demonstrando, dessa

forma, a linha de continuidade existente entre os referidos catálogos171.

Além da distinção entre tópica de primeiro e de segundo graus,

Viehweg propõe, também, que se observe a existência de topoi de dois tipos:

universalmente aplicáveis ou somente aplicáveis a um determinado ramo. Os

primeiros representam generalizações muito amplas e, por essa razão, podem ser

aplicados a problemas que aparecem em todas as áreas. Os segundos servem para

círculos determinados de problemas172. Um exemplo do segundo tipo é o catálogo de

loci communes jurídicos elaborado por Gribaldo Mopha com base no Corpus Iuris173.

O mais importante dessa constatação, aduz Viehweg, é notar que tanto

os topoi especializados quanto os gerais, em seus respectivos catálogos, não servem

como elementos de uma dedução, mas ganham seu sentido a partir do problema. É

desse mesmo modo, diz, que Ernst Curtius concebe os topoi e assinala sua

importância na literatura latina da Idade Média174.

A função dos topoi (tanto dos gerais quanto dos especiais) é,

consequentemente, a de servir a uma discussão de problemas. Sua importância,

afirma Viehweg,

tem de ser muito especial naqueles círculos de problema em cuja natureza está não perder nunca o seu caráter problemático. Quando se produzem mudanças de situações e em casos particulares, é preciso encontrar novos dados para tentar resolver os problemas. Os topoi, que intervêm com caráter auxiliar, recebem por sua vez seu sentido a partir do problema. A ordenação com respeito ao problema é sempre essencial para eles. À vista de cada problema aparecem como adequados ou inadequados, conforme um entendimento que nunca é absolutamente imutável. Devem ser entendidos de modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento.175

A função dos topoi é, pois, a de orientarem o pensamento na busca de

soluções para problemas. A questão que fica colocada por Viehweg nessa relação e a 171 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 35-36 da edição alemã e p. 36-37 da edição brasileira. 172 Sobre a distinção entre topoi gerais e especiais, vide DEGADT, op. cit., p.8 e 51-52. 173 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 36 da edição alemã e p. 37 da edição brasileira. 174 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 37-38 da edição alemã e p. 38 da edição brasileira. Vide CURTIUS, op. cit., p. 122-152. 175 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 38 da edição alemã e p. 38 da edição brasileira.

partir da distinção entre catálogos gerais e especiais de topoi é a vinculação entre

tópica e Jurisprudência, agora sob um novo ângulo.

Se a Jurisprudência for uma área de problemas na qual nunca se pode

afastar completamente a irrupção de questões novas e a necessidade de reavaliar as

premissas já preparadas anteriormente, ou seja, na qual o problema é um dado

constante e não eliminável, então podemos pensar que a tópica, enquanto

procedimento de busca de premissas, confere-lhe a estrutura fundamental176.

Dar estrutura significa, neste contexto, que um pensamento que possui

uma necessidade constante de buscar premissas nunca poderá transformá-las em

pontos de partida de uma dedução e trabalhar a partir disso de modo fixo ou

inflexível. Suas conclusões serão sempre curtas, afinal, surgido um novo problema

ou uma nova informação que altere a configuração deste, toda a dedução até então

elaborada deverá ser revista. O fundamental é que se encontre a melhor solução

possível para o problema e, por esse motivo, a dedução só poderá ser utilizada

enquanto servir a esse propósito. Também haverá aqui cadeias dedutivas; apenas a

ênfase é que não poderá ser nelas acentuada177.

A maneira de se buscar as premissas, afirma o autor, determina

também o que se pode fazer com elas. É possível distinguir, com base na elaboração

de Cícero, uma investigação tópica, encarregada de encontrar as premissas, de uma

análise lógica, à qual cabe, por seu turno, tirar as conclusões adequadas178. Isso não

significa, no entanto, que o fato de haver uma busca contínua de premissas em

algumas áreas não interfira no modo como as conclusões serão realizadas. A

necessidade de avaliar novamente as premissas quando os problemas reaparecem, ou

176 A esse respeito, diz GARCIA AMADO, op. cit., p. 144: “La razón de que un sistema jurídico así configurado no sea posible hay que situarla, como ya se ha indicado, en el carácter problemático de la ciencia jurídica. En ésta, la continua irrupción de problemas y el papel directivo de los mismos hace que se produzcan constantes interrupciones o rupturas en el encadenamiento deductivo del razonamiento y que sea ‘el problema’ el que en cada caso asuma el papel directivo y orientador de tal razonamiento”. 177 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 38-39 da edição alemã e p. 38-39 da edição brasileira. Sobre a correção dessa afirmação de Viehweg, embora parte de outros pressupostos teóricos, vide ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988, p. 382. 178 Vide DEGADT, op. cit., p. 59-60, 68, que considera um equívoco de Viehweg assumir essa distinção de Cícero e, ao mesmo tempo, conceituar a tópica como arte de pensar por problemas e a ela vincular a Jurisprudência. O autor entende que essa definição compreende tanto o invenire quanto o iudicare.

aparecem sob nova forma, acarreta a provisoriedade da conclusão que serve para essa

análise, mas não pode ser generalizada indevidamente179.

Não se deve, contudo, confundir a necessidade de flexibilidade e

revisão constante que caracterizam o pensamento problemático e tópico com a

ausência de vinculações. Viehweg faz questão de salientar de maneira clara que, sem

o estabelecimento de vinculações não há possibilidade de diálogo, porque a

interlocução supõe a construção de acordos, ao menos parciais, para poder

prosseguir180.

Os topoi são, também, um modo de se trabalhar com os acordos,

servindo de pontos de partida em sua construção. Possibilitam, portanto, a

continuidade na argumentação. E, mesmo naquelas fixações que tendem a

permanecer, cuja alteração é difícil de sustentar e que funcionam como premissas

dogmáticas, o método tópico de pensamento pode auxiliar na fundamentação da

interpretação181.

É por causa dessa dimensão de fixar premissas para futuras discussões

sequenciais, relembra Viehweg, que Aristóteles já insistia na necessidade de que o

método dialético fosse utilizado por pessoas com reconhecido saber e de maneira

razoável, tornando confiável a fixação dos seus pontos de vista, que aparecem como

entendimento, e não apenas como opiniões arbitrárias182.

Nessa produção constante de acordos, como Viehweg expressamente

assevera, as premissas fundamentais são legitimadas pela aceitação do interlocutor.

Os topoi como lugares comuns, ou seja, opiniões aceitas como legítimas, verificadas

ou até mesmo evidentes, são os pontos de apoio desses acordos. A orientação no

diálogo se dá em grande medida pela reação do adversário, e as premissas postas em

discussão são classificadas em “relevantes/irrelevantes”, “aceitáveis/inaceitáveis”,

“defensáveis/indefensáveis”. Essa classificação somente pode ocorrer com base no

problema que é o centro da discussão, e, por isso mesmo, como discutíamos acima,

179 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 38-39 da edição alemã e p. 38-39 da edição brasileira. 180 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 39-41 da edição alemã e p. 39-41 da edição brasileira. 181 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 39-41 da edição alemã e p. 39-41 da edição brasileira. 182 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p.43 da edição alemã e p. 42 da edição brasileira.

as conclusões e as deduções serão sempre de curto alcance. Uma premissa que não é

aceitável numa discussão pode muito bem ser suficiente noutra183.

O debate é, com isso, a única instância de controle da discussão, e

esse procedimento se adapta ao que Aristóteles qualificava como dialético. O que

ficou provado na discussão é aceito como premissa para outras etapas. A insegurança

desse modo de trabalho é atenuada se lembramos, afirma Viehweg, que aqueles que

discutem ou disputam o jogo dialético dispõem de um saber que já alcançou

comprovação e que entre pessoas razoáveis cada premissa será aceita se contar com

um peso específico184.

Também sobre esse aspecto Viehweg recebe críticas. De acordo com

alguns autores, não se poderia transpor o modo dialético de trabalhar com opiniões

para a Jurisprudência porque esta trabalha com premissas que são normas jurídicas,

positivadas e obrigatórias como pontos de partida, portanto independentes da

aceitação ou não daqueles que discutem, como ocorre no debate dialético185.

Parece-nos, no entanto, que esses autores ignoram a natureza

eminentemente linguística das normas jurídicas, que constituem os pontos de partida

obrigatórios para quem raciocina dogmaticamente, como o fazem os juristas.

Assumi-las como ponto de partida não resolve por si só o problema da determinação

de seu sentido, o qual decorre, ademais, de uma complexa operação de fixação da

relação entre normas pertencentes a um ordenamento jurídico. Tanto a interpretação,

por mais simples que seja, do sentido da norma, quanto a relação entre as normas

183 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 42-43 da edição alemã e p. 42 da edição brasileira. 184 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 43 da edição alemã e p. 43 da edição brasileira. 185 Assim, por exemplo, CANARIS, op. cit., 255-256: “Quando se pergunta o que pode prestar a tópica dentro da Ciência do Direito, torna-se de antemão claro que ela é impraticável na medida em que se ligue à retórica; pois o indagar pelo justo não é nenhum problema de pura retórica, por muito que sempre se possa alargar também este conceito. Que, apesar disso, Viehweg não tenha tomado claramente posição, mas antes, pelo contrário, também queira, de modo patente, utilizar também esta componente da tópica para a sua análise da Ciência do Direito é um lapso pesado e prejudicou gravemente a discussão em torno da sua tese; uma afirmação como a ‘de que as premissas fundamentais são legitimadas através da aceitação do parceiro na conversa’, pode, na verdade, ajustar-se a determinadas formas de discussão, mas é, dentro da Ciência do Direito, puramente inaceitável: as premissas são fundamentalmente determinadas para os juristas através do Direito objectivo, em especial através da lei e não são susceptíveis de uma ‘legitimação’ por via do ‘parceiro na conversa’ (qual?!), nem disso carecem”. Vide também a discussão que a respeito faz DEGADT, op. cit., p. 32-37.

precisam ser construídas argumentativamente e, conforme a tese de Viehweg, ao

modo de um debate dialético.

Sobre este último aspecto, é preciso lembrar que o saber dos

melhores, ao modo de Aristóteles, é uma referência a um conjunto de conhecimentos

humanos reconhecidos. Isso permite, ademais, considerar que, mesmo no terreno

daquilo que é conforme as opiniões aceitas, seja possível aspirar a um efetivo

entendimento, e não a simples e arbitrárias opiniões186.

Quando se está naquelas áreas nas quais predomina o problema,

conforme vimos acima, parece ser necessário, pois, lidar com a discussão como

único mecanismo de controle da fixação de opiniões. Configurar o que seja a

discutibilidade do modo mais claro possível é a tarefa central neste caso. Viehweg

procura esclarecer, em consonância com isso, a diferença entre demonstrar ou

fundamentar uma premissa e legitimá-la ou prová-la187.

No primeiro caso, estar-se-ia diante de uma questão puramente lógica

e que reclama um sistema dedutivo, na medida em que exige que uma premissa possa

ser reconduzida à outra e, por último, a uma proposição nuclear que embasa todo o

conjunto ou que possa ser dela deduzida. A tópica, diz Viehweg, supõe que um

sistema desse tipo não existe188.

Quando se procura estabelecer um sistema dedutivo, ao qual a ciência,

ao menos de um ponto de vista lógico, deve aspirar, então a tópica não pode ter um

lugar predominante. Talvez, diz o autor, ela possa ser relevante na seleção das

premissas iniciais em alguns campos do saber. Numa situação ideal, a dedução torna

desnecessária a invenção, e o “sistema assume a direção” e “decide por si só sobre o

sentido de cada questão”. Construído o sistema de proposições, ele será logicamente

explicável a partir das suas proposições nucleares, independentemente das

modificações sofridas na situação problemática que estava em sua origem189.

Vejamos com mais vagar como a relação entre tópica e sistema é

exposta e compreendida por Viehweg.

186 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 43 da edição alemã e p. 43 da edição brasileira. 187 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 43 da edição alemã e p. 43 da edição brasileira. 188 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 43 da edição alemã e p. 43 da edição brasileira. 189 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 44-45 da edição alemã e p. 44 da edição brasileira.

3. Tópica e sistema dedutivo

Quando se encontra um estilo de pensamento em uma área de

conhecimento, tal como a tópica na Jurisprudência, abrem-se duas possibilidades do

ponto de vista de uma teoria da ciência, afirma Viehweg. Podemos, mesmo assim,

tentar converter o estilo de pensamento da tópica em um método dedutivo ou fazê-lo,

tal como ele é, objeto de uma ciência. Tanto se se aplicasse um quanto o outro à

Jurisprudência, estar-se-ia fazendo uma ciência do direito190.

Seu tratamento, esclarece Viehweg, será apenas da primeira

possibilidade, ou seja, a substituição da tópica pelo sistema, tendo em vista que esse

parece ser o desejo predominante na moderna cultura da Europa Ocidental. O autor

pretende, portanto, examinar quais seriam os procedimentos necessários para que tal

tarefa fosse realizada. Nesse exame, veremos, torna-se a submeter à prova a ideia da

vinculação entre tópica e Jurisprudência, testada anteriormente sob os ângulos da

constância histórica da relação (conforme vimos no capítulo anterior) e da ênfase no

pensamento problemático (que vimos até aqui).

Para executar a primeira das possibilidades, seria necessário substituir

a tópica pelo sistema, visto que a outra tentativa de que se tem notícia – a

manutenção da tópica e seu controle por uma ars combinatória – foi tentada por

Leibniz e não obteve resultados satisfatórios191.

Viehweg afirma que um caminho que não é o único, mas que é o mais

próximo para operar tal transformação, é utilizar-se dos resultados da tópica,

colocando-os em uma ordem lógica, ou seja, sistematizando os conceitos e

proposições elaborados pela tópica em seus catálogos. É significativo que se parta

dos resultados obtidos por ela, o que parece reforçar a afirmação já realizada

190 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 81 da edição alemã e p. 75 da edição brasileira. 191 Para a análise da proposta de Leibniz vide o item II do Capítulo V. Sobre o cálculo lógico, inclusive o imaginado por Leibniz, vide KLUG, op. cit., 22-25.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao item II do Capítulo V.

anteriormente sobre a presença da tópica enquanto ars inveniendi na construção das

premissas iniciais de um campo de problemas192.

A expressão mais precisa de sistematização, de acordo com Viehweg,

é obtida pelo uso do método axiomático193. Com ele são ordenados, conforme a sua

dependência lógica, de um lado os enunciados, de outro os conceitos de uma área

qualquer194. Viehweg examina exemplificativamente, então, como, a partir do

método axiomático, poderia ser construído um sistema de um determinado direito

civil. Somente quando tal tarefa estivesse integralmente cumprida e todos os demais

ramos do direito pudessem ser também a ela submetidos, poder-se-ia falar em uma

fundamentação lógica do direito positivo e do direito como sistema em sentido

lógico195.

Supondo-se que tal sistema fosse construído, mesmo assim ter-se-ia

que lidar com o fato de que talvez a tópica permanecesse na origem dele, na medida

em que seria preciso justificar a escolha dos princípios ou axiomas fundamentais,

bem como dos conceitos fundamentais. De um ponto de vista estritamente lógico,

essa escolha é arbitrária. Estaríamos, ainda, afirma o autor, diante de uma tarefa de

invenção196.

Independentemente disso, tomando o sistema como conjunto de

proposições e trabalhando dedutivamente, continua sendo discutível a eliminação da

tópica. Mesmo colocando um ou mais axiomas como pontos de partida da dedução e

elaborando todo um conjunto de conceitos logicamente pertinentes aos axiomas, não

192 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 81-82 da edição alemã e p. 75-76 da edição brasileira. 193 A respeito, afirma KLUG, op. cit., p. 7: “Es evidente que la lógica desempeña un papel decisivo en la parte sistemática de la jurisprudencia, ya que el propio concepto de sistema es un específico término lógico, solo la lógica permite establecer cuándo se da en general un auténtico sistema, y qué sentido tiene el hecho de que un dominio del conocimiento se sistematice”. 194 Vide KLUG, op. cit., p. 19-20 e também BLANCHÉ, Robert. La Axiomatique. Paris: Quadrige/PUF, 1990, especialmente p. 29-91. 195 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 82 da edição alemã e p. 76 da edição brasileira. Vale lembrar a observação, ainda na primeira parte deste trabalho, sobre os autores que Viehweg utiliza para fundamentar essa análise do procedimento axiomático-dedutivo de construção de sistemas: Hilbert e Carnap. Vide também GARCIA AMADO, op. cit., p. 144-145. 196 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 84 da edição alemã e p. 76-77 da edição brasileira.

é certo que se conseguiu eliminar totalmente a tópica; isso, diga-se, por causa da

linguagem natural, que parece ter, ela mesma, uma espécie de tópica oculta197.

Isso significa que é preciso recorrer a um formalismo rigoroso,

evitando que se infiltrem aspectos não justificáveis logicamente. Para tanto, é

necessário cumprir duas etapas sucessivas: os sentidos dos termos utilizados

deveriam ser imunes à interpretação baseada em elementos externos, ou seja, o

sentido natural deveria ser indiferente; e, ainda, os sentidos deveriam ser entendidos

exclusivamente a partir das relações conceituais em que assentam. Além disso, não

se poderia acrescer em sua definição qualquer outro elemento advindo da vida, do

idioma ou do problema correspondente. As relações sucessivas seriam realizadas

única e exclusivamente a partir dos elementos internos198.

O passo seguinte é reproduzir esse tecido de relações por intermédio

de um cálculo199. Conforme Viehweg: “deve chamar-se cálculo a uma combinatória

(ars combinatoria) que, partindo de algumas posições iniciais (fórmulas iniciais),

permita chegar a outras posições (fórmulas), de acordo com alguns preceitos

operativos fixos e o mais simples que seja possível”200.

O procedimento calculatório desenvolve-se do seguinte modo: às

proposições fundamentais (que estabelecem as relações iniciais) do sistema

correspondem as fórmulas iniciais; aos conceitos, as variáveis nessas fórmulas; à

obtenção de conclusões, os preceitos operativos da combinatória. Para assegurar o

197 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 84 da edição alemã e p. 77-78 da edição brasileira. Nesse sentido, afirma BALLWEG, Ottmar. Retórica Analítica e Direito. Tradução de João Maurício Adeodato. Revista Brasileira de Filosofia, 163. São Paulo: IBF, 1991, p. 175-184, p.176: “A linguagem mesma é retórica. Ela tem todos os meios retóricos a seu alcance, cada um com a função específica que lhe é atribuída nos sistemas lingüísticos sociais. No processo de condensação retórica da linguagem comum em direção às linguagens de controle (e científicas) do direito, do dinheiro, do poder, do amor, dos mitos e religiões encontram-se as retóricas materiais, com as quais preenchemos as funções básicas da vida em comum, tais como orientação e ordenação, regularidade e vinculação duradoura, posicionamento e relacionamento. Estes sistemas lingüísticos – no sentido de linguagens de comando – constituem o vocabulário filtrado da linguagem comum, do qual nós temos que nos utilizar. Suas funções podem todavia ser ainda melhor desempenhadas se forem mantidas latentes...” 198 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 84-85 da edição alemã e p. 78 da edição brasileira. 199 BLANCHÉ, op. cit., p. 60-61, explicando a passagem teórica do raciocínio ao cálculo, assim se manifesta: “On conçoit qu’il serait pratiquement impossible de satisfaire à dês exigences aussi strictes si l’on continuait de s’exprimer dans le langage usuel, avec son imprecisión et sés innombrables irrégularités. C’est pouquoi, en fait, la formalisation suppose la symbolisation”. 200 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 85 da edição alemã e p. 78-79 da edição brasileira. Vide também KLUG, op. cit., p. 27-112.

desenvolvimento dessa combinatória, introduzem-se sinais simbólicos semelhantes

aos matemáticos201.

O problema, afirma Viehweg, é que esse cálculo acaba sendo

aplicável a qualquer disciplina porque seus signos não têm nenhuma correspondência

com a realidade. A fim de delimitar seu âmbito de aplicação, é preciso fazer

referência de um modo especial a essa realidade. Isso se pode fazer dotando o cálculo

de um correspondente preceito de interpretação202. Resolve-se um problema, mas

cria-se a dificuldade de que novamente, de um ponto de vista lógico, voltamos a

tratar com dados arbitrários, e, para lidar com o referido preceito de interpretação,

abrimos a porta à tópica203.

O caminho realizado até aqui demonstra que a tópica nunca pode ser

totalmente afastada de um sistema real204, porque está presente no seu começo e na

sua interpretação, a não ser quando se pode ter um sistema completamente abstrato,

como a matemática, na qual não ocorre a formalização de um território real, mas uma

construção que é, desde o início, abstrata205.

Afirmar a Jurisprudência como um sistema, diz Viehweg,

contemporaneamente significa fazer uso dos preceitos acima mencionados e ser, em

relação a eles, julgado206. Nesse aspecto, é possível pensar que, “no âmbito jurídico a

201 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 85 da edição alemã e p. 78-79 da edição brasileira. Vide também KLUG, op. cit., p. 27-112 e BLANCHÉ, op. cit., p. 57-63. 202 A esse respeito, afirma KLUG, op. cit., p. 19: “Cuando el método axiomático se aplica a la lógica misma, los axiomas y conceptos fundamentales que aparecen son, naturalmente axiomas y conceptos fundamentales lógicos. Cuando el método axiomático se aplica a otra rama de la ciencia, hay que distinguir en cada caso dos diferentes grupos de axiomas y conceptos fundamentales: Primero, aquellos que no son de índole puramente lógica, y además, segundo, los axiomas y conceptos fundamentales lógicos. Los primeros caracterizan la respectiva rama científica y los últimos indican el sistema lógico empleado en cada caso”. 203 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 86 da edição alemã e p. 79 da edição brasileira. 204 Interessante nesse sentido é a discussão realizada por Porchat Pereira sobre a construção do silogismo demonstrativo como base da ciência por Aristóteles, na qual o autor sustenta que a matemática foi o campo temático sobre o qual ele se apoiou. Isso reforça a constatação acima feita por Viehweg. Vide PEREIRA, op. cit., p. 59 e ss. 205 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 86 da edição alemã e p. 79 da edição brasileira. Para alguns críticos, essa afirmação revelaria uma confusão de Viehweg entre contexto de descobrimento das teorias e seu contexto de justificação. A tópica poderia estar presente em seu contexto de descobrimento, mas não em seu contexto de justificação. Vide, a respeito, DEGADT, op. cit., p. 26-28. 206 Viehweg parece estar querendo afirmar, nesse ponto de sua argumentação, que, para tratar desse tema, temos de fazer uso das concepções mais avançadas da lógica, ou seja, da lógica simbólica. Nesse mesmo sentido, KLUG, op. cit., p. 248: “Pero si la lógica es un instrumento indispensable para la ciencia del derecho y la filosofía jurídica, es entonces de suyo comprensible que se deba utilizar

unidade sistemática é, em linhas gerais, algo antecipado. Dificilmente é possível

assinalar até que ponto ela existe efetivamente, ainda que seja de um modo, por

assim dizer, parcial e aproximado, pois faltam as correspondentes investigações

axiomáticas”207.

O que Viehweg chama de tecido jurídico, não é, portanto, um sistema

em sentido lógico, mas, sim, uma pluralidade de sistemas de alcance diverso e cuja

relação recíproca não é comprovável.

O exame da primeira possibilidade leva o autor, como se pode ver, à

conclusão de que não contamos com um sistema dedutivo no direito que se coadune

com o conhecimento contemporâneo sobre os sistemas lógicos.

Para fundamentar sua afirmação, Viehweg defende que são quatro os

pontos pelos quais a tópica entra no sistema jurídico, dificultando, assim, a sua

transformação em sistema no sentido lógico do termo: a interpretação, a aplicação do

direito, o uso da linguagem natural e a fixação dos fatos sub judice208.

Em primeiro lugar, diante da pluralidade de sistemas que precisam ser

relacionados para que se obtenha uma certa concordância, é necessário que sejam

eliminadas as contradições por intermédio da interpretação. Além disso, as

modificações temporais que o direito sofre requerem também a interpretação como

modo de atualização. É por intermédio da interpretação que a tópica entra no sistema

jurídico209.

Um segundo ponto de entrada da tópica no direito é a problemática de

sua aplicação, na qual incide também a interpretação. Se exigirmos ao mesmo tempo

a solução de todas as controvérsias jurídicas dentro de um sistema e a manutenção de

sua perfeição lógica, com certeza não conseguiremos atender as duas exigências.

Possivelmente restarão problemas sem solução se privilegiarmos a perfeição lógica, e

este instrumento en su forma más aguda y avanzada, como la que ofrece la teoría lógica moderna, que trabaja con la técnica de la calculización.” 207 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 87 da edição alemã e p. 80 da edição brasileira. 208 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 87-90 da edição alemã e p. 80-84 da edição brasileira. 209 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 87-88 da edição alemã e p. 80-81 da edição brasileira.

o custo de resolvê-los todos implicará um esforço de redução, comparação, síntese

etc., que requer a interpretação e a consequente presença da tópica210.

O terceiro aspecto que Viehweg menciona é o uso da linguagem

natural. Segundo o autor, “hoje está claramente estabelecido que a linguagem unifica

uma pletora quase ilimitada de horizontes de entendimento, que variam

continuamente. A linguagem apreende incessantemente novos pontos de vista

inventivos, à maneira tópica”211. Esta sua característica torna-a flexível e adaptável

às cambiantes necessidades da convivência humana. Torna, contudo, os termos e

conceitos pouco confiáveis do ponto de vista dedutivo.

O quarto ponto de entrada da tópica, o qual decorre, de certo modo,

do uso da linguagem natural, é a necessidade de se interpretarem e fixarem os fatos

que precisam de tratamento jurídico. Para conduzi-los ao sistema jurídico, aduz

Viehweg, realiza-se uma interpretação provisória que supõe um panorama prévio

aproximativo, à maneira da tópica. Essa operação provoca um percurso de ida e volta

entre os fatos e o ordenamento jurídico, no qual se parte de uma compreensão

provisória do conjunto do direito, forma-se a partir dela a compreensão dos fatos, o

que, por sua vez, repercute de novo sobre a compreensão do direito212.

A eliminação desses quatro pontos de irrupção da tópica no direito

poderia viabilizar a sua transformação em um sistema e requereria os seguintes

procedimentos: axiomatizar rigorosamente todo o direito; proibir a interpretação

dentro do sistema, o que faria necessário promover a formalização do cálculo;

estabelecer preceitos de interpretação dos fatos que estivessem orientados

exclusivamente para o sistema jurídico; admitir as decisões non liquet; e conseguir

uma atividade ininterrupta e sistematicamente rigorosa do legislador sobre os casos

até então insolúveis213.

210 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 88-89 da edição alemã e p. 81-82 da edição brasileira. 211 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 89-90 da edição alemã e p. 82 da edição brasileira. Vide BALLWEG, Retórica Analítica e Direito, op. cit., p. 176 e também BLANCHÉ, op. cit., p. 60-61. 212 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 90 da edição alemã e p. 82-83 da edição brasileira. Nesse sentido, o importante estudo de Alessandro Giuliani, mostrando como a “prova”, tal como concebida pelo pensamento greco-romano em suas origens, tem feição essencialmente argumentativa. Vide GIULIANO, Alessandro. Il concetto di prova: contributo alla logica giuridica. Milano: Giuffré, 1971. 213 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 92 da edição alemã e p. 84 da edição brasileira.

É importante atentarmos para o fato de que Viehweg entende que o

projeto de transformar a Jurisprudência em uma ciência no sentido moderno do

termo, recorrendo, para isso, à sistematização dedutiva e ao procedimento da

subsunção, não é um problema em si e requer, como propõe a maior parte da ciência

jurídica moderna, exatamente a eliminação da tópica no direito. O que o autor

questiona é a viabilidade de fazê-lo, dada a função social da Jurisprudência e a

possibilidade de se entender a tarefa do cientista do direito, agora no sentido rigoroso

do termo, de um outro modo214.

Restaria, pois, o caminho que listávamos como segunda alternativa.

Essa possibilidade é registrada por Viehweg do seguinte modo:

Diante do tipo de Ciência do Direito que acabamos de examinar, pode-se colocar a que mais acima mencionávamos em segundo lugar. Esta não tenta modificar em sua essência a techne jurídica. Concebe-a, em conseqüência, como uma forma de aparição da incessante busca do justo. O direito positivo emana desta busca, a qual continua com base neste mesmo direito positivo. Esta busca, com todas as suas peculiaridades humanas, é seu grande objeto de investigação. Não pode ser absorvida pela jurisprudência, senão que, frente a ela, é o primeiro recurso purificador e seguro, que há de mostrar suas possibilidades e oferecer uma ajuda praticável. Atrás dela, como ocorre em outras disciplinas especializadas, tem de existir uma teoria do direito, que aqui há de ser uma concisa teoria da praxis, entendida em seu mais amplo sentido. Uma teoria semelhante até agora só se encontra de um modo isolado. Como em suas investigações tem de mover-se em torno de tentativas de sistematização, de novo terá de tomar a tópica em consideração215.

A análise empreendida por Viehweg conduziu-nos, por conseguinte,

ao ponto de afirmar que a maneira mais aceitável de se fazer ciência do direito é

tomar o estilo de trabalho do jurista, isto é, a sua praxis, como objeto de estudo.

Assim é necessário, podemos compreender, porque, no campo jurídico, nos

encontramos sempre diante do pensamento problemático. Isso ocorre pela presença

da inelutável aporia da justiça, que funda e organiza toda a argumentação

desenvolvida em nossa disciplina.

214 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 91 da edição alemã e p. 83-84 da edição brasileira. 215 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 93-94 da edição alemã e p. 85 da edição brasileira.

A Jurisprudência guarda para com a tópica, portanto, uma relação de

vinculação que Viehweg indica como indissolúvel: na medida em que nos deparamos

sempre com a necessidade de buscar novas premissas para a discussão dos

problemas, recorremos à tópica enquanto arte da invenção. Se olharmos a questão de

outro ângulo, podemos afirmar, nesse sentido, que a função social desenvolvida pela

Jurisprudência nos coloca diante da tópica.

É possível entender, pois, que a razão para adotar a segunda

possibilidade de se fazer ciência poderia ser encontrada no fato de que o método

axiomático-dedutivo, que elimina esse estilo advindo da presença da tópica, não está

em condições, nem por provas e talvez nem por demonstrações, diz Viehweg, de

substituí-lo no campo jurídico216.

Essa afirmação, que consubstancia a tese de que a Jurisprudência é

tópica, recebeu inúmeras críticas. As mais contundentes advêm daqueles autores que

haviam recusado o uso da distinção entre problema e sistema, como Canaris e

Diederichsen, por argumentos já examinados quando abordamos o uso que Viehweg

faz da distinção de Nicolai Hartmann217.

Podemos dizer, sinteticamente, que a crítica se volta especialmente

para a afirmação de que a estrutura da Jurisprudência é tópica, dizendo que os

argumentos carreados por Viehweg à sua tese não a provam suficientemente. Isso

vale especialmente para o argumento desenvolvido acima, que afasta a presença do

sistema dedutivo e afirma, consequentemente, a presença da tópica. A assertiva de

Viehweg de que a tópica está sempre presente não lhes parece nem clara, nem

necessária.

Não é necessária porque esses autores entendem que afastar o sistema

axiomático-dedutivo não implica afastar outras formas de sistema.218 Não é clara

porque Viehweg dá uma definição de tópica que não explica suficientemente o seu

papel no Direito. Esta talvez seja a crítica mais frequente à tese do autor. Nela

216 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 81 da edição alemã e p. 75 da edição brasileira. 217 Vide item 1 deste Capítulo. 218 Vide CANARIS, op. cit., p. 243-269 e DIEDERICHSEN, op. cit., p. 697-752.

convergem, ainda que com propósitos diversos, Engisch219, Garcia Amado220,

Canaris221 e Degadt222.

Ainda quanto ao primeiro ponto de crítica – relação entre tópica e

sistema –, é verdade que Viehweg não se posiciona de uma forma expressa. É certo,

contudo, pelas suas próprias afirmações, que ele entendia que sistema não

necessariamente significa sistema dedutivo, embora logicamente o sistema dedutivo

seja o mais perfeito, conforme vimos acima. Em uma das poucas respostas diretas

que dá a seus críticos, Viehweg diz que considerar que o sistema dedutivo não serve

como estrutura à Jurisprudência não significa dizer que não se aceita nenhum

conceito de sistema223.

Essa confusão é causada, esclarece, porque o conceito de sistema

dedutivo acabou afastando da consciência científico-jurídica todos os demais,

fazendo com que às vezes se identifique o próprio conceito de sistema com sistema

dedutivo, e supondo que quem rechaça o sistema dedutivo rechace também todo

sistema224. Parece, dessa maneira, que Viehweg entende a presença da tópica na

Jurisprudência como algo que impede a construção do sistema dedutivo, mas não

impede que alguma forma de sistema possa aparecer225.

Vinculada estreitamente à crítica acima mencionada, encontra-se

aquela que assevera que Viehweg estaria “lutando contra moinhos de vento”, à

maneira de Dom Quixote, na medida em que, pelo menos desde que a Jurisprudência

dos Conceitos perdeu espaço teórico, ninguém mais utiliza um conceito de sistema

dedutivo. Além disso, afirmam os críticos, a própria Jurisprudência dos Conceitos

219 Vide ENGISCH, op. cit., p. 381-387. 220 Vide GARCIA AMADO, op. cit., p. 170, 361-370. 221 Vide CANARIS, op. cit., 255-262. 222 Vide DEGADT, op. cit., p. 33-42, 62-69. 223 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 97-106 da edição alemã dos pequenos escritos, ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 71-85, na coletânea espanhola. 224 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 104, ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 82. 225 Em direção semelhante, argumenta Garcia Amado quando examina o modo como Viehweg considera a relação entre tópica e sistema, afirmando que uma primeira análise parece levar a uma contraposição radical, mas que uma observação mais detida dos argumentos do autor acaba por revelar outras possibilidades, considerando-se, então, sistema de um modo mais amplo, como quando Viehweg menciona um sistema didático. Cfe. GARCIA AMADO, op. cit., p. 144-145.

não trabalhava com os meios lógicos hoje existentes e, por esse motivo, não pode ser

avaliada nesses termos226.

Parece-nos que o interesse de Viehweg não era apenas criticar os

pressupostos ou a construção da Jurisprudência dos Conceitos, mas, sim, ver o

fenômeno jurídico sob outro ângulo, que podia ser mais bem esclarecido com a

tópica. Entendemos assim a sua afirmação de que lhe importa examinar a sugestão de

Vico da mudança de estrutura na passagem para o pensamento moderno.

Procuramos mostrar também (no primeiro e segundo capítulos deste

estudo) que o modelo moderno de ciência trabalha com os pressupostos que

indiretamente levam à consideração de que somente existe um modo de se fazer

ciência, o qual se vincula à demonstração, e é contra essa visão que Viehweg movia

sua crítica. Além disso, é discutível se a opinião comum dos juristas práticos, com os

quais Viehweg sempre se preocupa227, não opera ainda hoje com os pressupostos que

estavam presentes na Jurisprudência dos Conceitos e também por isso seja

interessante mostrar os limites do pensamento sistemático na praxis jurídica.

Vejamos essa questão mais detalhadamente.

4. A classificação de Viehweg quanto aos sistemas e a distinção entre

dogmática e zetética

O modo como Viehweg trata a problemática da estrutura dos sistemas

em ensaios posteriores a Topik und Jurisprudenz reforça a ideia de que o autor não

entendia de um modo simplista a relação entre a tópica e a Jurisprudência, embora

ele mesmo jamais tenha explicado expressamente ou em detalhes como relacionava

sua posição em ambos os contextos de escrita.

226 Vide GARCIA AMADO, op. cit., p. 296 e CANARIS, op. cit., 266-267. Sobre a Jurisprudência dos Conceitos e seu conceito de sistema, vide LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2 ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. 19-39. Sobre a crítica de Viehweg ser voltada à Jurisprudência dos conceitos, vide também ZIPPELIUS, op. cit., p. 12. 227 Vide, por exemplo, os ensaios que examinam o positivismo jurídico: Was heisst Rechtspositivismus? na coletânea alemã p. 166-175, ou ¿Qué significa Positivismo Jurídico? na coletânea espanhola, p. 52-65, e Positivismus und Jurisprudenz, somente na coletânea alemã, p. 159-165.

Nesses ensaios, é proposta uma classificação que utiliza dois critérios

distintos, separando os sistemas em razão de sua função e em razão de sua estrutura.

A função pode ser zetética, dogmática ou didática. No que diz respeito à estrutura, o

sistema pode ser dedutivo, tópico, serial, cibernético, dialético moderno ou dialético

clássico228.

No contexto em que essas distinções são apresentadas, Viehweg

desenvolve inicialmente a noção de sistema zetético e dogmático como

funcionalmente necessários e menciona que ambos podem assumir – e o fazem com

frequência – a característica funcional de um sistema didático. Nessa apresentação,

comparecem as ideias que examinamos no item I do Capítulo III, caracterizando o

enfoque dogmático como vinculado aos seus pontos de partida, e o zetético, como

reflexivo ou investigativo229.

Feitas as considerações sobre os sistemas em sua perspectiva

funcional, Viehweg afirma que eles podem assumir diferentes estruturas, a fim de

cumprirem sua função. Assim, diz o autor, todas as estruturas acima mencionadas se

dão tanto na dogmática quanto na zetética jurídica ou filosófica e seguem

dependendo, em última instância, da respectiva função sistêmica, ou seja, há que

abandoná-las quando não satisfaçam as expectativas funcionais230.

O primeiro tipo de estrutura, que Viehweg chama de serial, aparece

quando se parte de uma concepção de sistema bastante simplificada, entendendo-o

como um todo constituído por uma combinação, meramente enumerativa, de seus

elementos. No campo da investigação, é utilizado para armazenar dados com fins

informativos, e, no campo dogmático, representa a organização de catálogos de

228 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 97-106 da coletânea alemã ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 71-85 da coletânea espanhola. Do mesmo modo, em Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 113-115 da coletânea alemã e em Algunas Consideraciones Acerca del Razonamiento Jurídico, p. 124-127 da coletânea espanhola. 229 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 103 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 80. 230 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 103 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 80.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota editor: referência ao item I do Capítulo III.

topoi, como os utilizados por culturas jurídicas mais simples ou aqueles transmitidos

de múltiplas maneiras pela tradição jurídica, até mesmo no Renascimento231.

Com base no conteúdo de sistemas seriais, pode-se passar a uma

sistematização mais sofisticada, já de caráter dedutivo. Para isso, é necessário que se

considere possível indicar princípios inatacáveis a partir dos quais se poderiam

inferir todas as proposições jurídicas necessárias e, então, construir dedutivamente o

sistema. Os esforços nessa direção, expõe Viehweg, nunca foram completamente

exitosos e alcançaram seu ponto culminante na Europa nos séculos XVII e XVIII.

Nesse período, postulava-se um sistema fechado, cuja exigência é a de que uma

pluralidade seja reunida em um todo fechado, mediante a derivação de um ou de

poucos princípios232.

No âmbito zetético, diz Viehweg, o sistema dedutivo pode ter

importância apenas parcial, pois o pensamento reflexivo mantém em movimento

todos os resultados. Já o âmbito dogmático poderia apresentar melhores resultados,

visto que os princípios necessários à derivação posterior podem ser fixados de uma

vez para sempre. Sua implementação é, contudo, dificultada porque se esbarra na

proibição do non liquet. Na medida em que se devem considerar todas as questões

como decidíveis a partir do sistema, impõe-se a sua modificação constante, por

intermédio da interpretação, o que seguramente prejudica o rigor da dedução233.

Pode-se perceber claramente nessas considerações sobre o sistema

dedutivo que encontramos aqui argumentos similares aos da tese central exposta em

Topik und Jurisprudenz, agora acrescida de observações sobre a aplicabilidade do

sistema dedutivo ao sistema zetético. Embora não desenvolva em maiores detalhes,

Viehweg afirma claramente que um sistema zetético, na medida em que precisa

manter seus resultados sempre como questionáveis, não pode desenvolver-se ao

modo dedutivo.

231 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 103-104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 81. 232 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 103-104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 81. 233 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 82.

No que diz respeito ao sistema cibernético, sua ideia central, a

autorregulação, possui importância visível para a dogmática jurídica e para a zetética,

principalmente para a sociologia do direito. Referindo-se a Ballweg, Viehweg diz

que o jogo recíproco de realidade jurídica, âmbito das decisões jurídicas, dogmática

jurídica e doutrina básica, foi apresentado recentemente como um circuito

regulador234. Nesta concepção, utiliza-se uma sistemática fechada, que se move por

si mesma e parece especialmente atrativa para reflexões sociológicas de cunho

mecanicista. Por isso mesmo, ela acabou por exercer grande influência no mundo

socialista235.

Com essa referência ao mundo socialista, Viehweg passa

imediatamente ao sistema dialético moderno, o qual teve influência na ciência do

direito dos séculos XIX e XX. Essa influência é um grande tema, segundo o autor,

pois revela uma vinculação entre concepção de mundo e doutrina de base, repetindo

aqui uma observação que discutíamos quando examinávamos a sua concepção de

doutrina de base e ideologia jurídica236. A mencionada influência se deve, em não

pouca medida, ao fornecimento de uma notável unidade entre investigação jurídica e

dogmática jurídica, pela introdução de uma omnicompreensiva convicção histórico-

filosófica e sua manutenção como dogma básico237.

A não aceitação do dogma básico que fundamenta o sistema de

estrutura dialética moderna leva a olhar com interesse, de acordo com Viehweg, o

sistema dialético clássico ou tópico. Este procede da retórica e permanece vinculado

a ela. Limita-se a ser um sistema de argumentação, orientando-se para um todo

ordenado segundo problemas. Oferece, para a solução de sua problemática, tanto no

campo zetético quanto dogmático, a compilação de pontos de vista. Dita compilação

pode ser entendida até mesmo como sistema básico, ao qual podem ser referidos os

234 Vide BALLWEG, Rechtswissenschaft und Jurisprudenz, op. cit., passim. 235 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 105 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 83-84. 236 Vide item 2 do Capítulo III. 237 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 105-106 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 84.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao item 2 do Capítulo III.

outros sistemas, em especial o dedutivo ou o dialético moderno, e serem

desenvolvidos a partir dele238.

O sistema tópico, agrega Viehweg, está em permanente movimento, e

sua formulação respectiva indica tão somente uma etapa da argumentação no manejo

da problemática correspondente. Pode ser adequadamente designado como um

sistema aberto, já que mantém aberta a outros pontos de vista sua análise. Se

determinadas respostas ao problema são subtraídas a ulterior exame e se as conserva

inatacáveis, surge, então, de um sistema zetético, um sistema dogmático239.

A primeira e mais óbvia constatação que podemos retirar desta

exposição é a de que um sistema jurídico pode ter várias configurações estruturais

cabíveis e bastante divergentes entre si, como é o caso do sistema serial e do sistema

cibernético. A segunda é a de que isso reforça o argumento antes exposto de que a

contraposição entre tópica e sistema não deve ser lida de modo estreito, até porque,

como vimos, existe um sistema cuja estrutura é tópica.

De um ponto de vista menos evidente, podemos entender, ainda, que,

quando Viehweg mostra a diferença entre estrutura e função dos sistemas, está

salientando que os sistemas jurídicos são construções. O que parece ser fixo, por

assim dizer, é a presença de um sistema dogmático e de outro zetético, bem como a

possibilidade de eles serem expostos em forma didática, para fins propedêuticos. Em

uma sociedade, como vimos no Capítulo III, essas formas de pensamento e

organização dos conhecimentos são funcionalmente necessárias e complementares

entre si.

Como esses sistemas serão construídos, suas estruturas, é algo que

depende de cada momento histórico, ou seja, está ligado à necessidade de

legitimação e ao modo como cada época entende sua tarefa científica, conforme

levantávamos anteriormente240. Assim, um sistema dedutivo será uma aspiração dos

séculos XVII e XVIII, como Viehweg lembra inúmeras vezes, e um sistema dialético

moderno, uma característica dos regimes socialistas do século XX. Tanto em um 238 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 106 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 84-85. 239 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 106 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 85. 240 Vide o item 2 do Capítulo III.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo III.

Comment: Nota ao editor: referência ao item 2 do Capítulo III.

exemplo quanto em outro, podemos dizer que o sistema dogmático e o sistema

zetético serão, ao menos tendencialmente, construídos de acordo com essas

estruturas. O importante é não esquecer que a dimensão funcional é determinante da

estrutura, no sentido de que, quando um sistema estruturado de um determinado

modo deixa de cumprir sua função, precisa ser substituído241.

Se ligássemos essa ideia do sistema jurídico como construção à

conhecida distinção entre lógica dos juristas e lógica jurídica ou das normas242, como

faz Garcia Amado a propósito da elaboração teórica de Viehweg, poder-se-ia dizer

que este autor está preocupado, quando alerta para a implicação que a dimensão

funcional possui em relação à estrutura que um sistema pode ter, com a lógica dos

juristas, e não com a lógica das normas. Assim, poder-se-ia entender por que a ideia

de construção de diferentes estruturas aponta para a argumentação realizada a

propósito do direito em um determinado tempo e lugar, seja do ângulo zetético, seja

do ângulo dogmático. Não estaria em questão, no sentido da lógica das normas, a

efetiva configuração dos ordenamentos jurídicos243.

Essa interpretação de Garcia Amado parece bastante razoável e

cremos que ela pode ser aceita. Parece-nos, contudo, que outra possibilidade de

entendimento existe e gostaríamos de deixá-la registrada. Podemos pensar, pelo

conjunto de pressupostos que Viehweg utiliza, que o autor entende que o sistema

propriamente dito é apenas aquele obtido na argumentação dos juristas, na medida

em que a norma mesma é algo que precisa ser interpretado para que possa ter um

sentido. Assim, o que se chama de ordenamento jurídico nada mais é do que uma

leitura, com uma boa margem de consenso, sobre o sentido das normas que o

compõem, em especial a partir de um enfoque dogmático.

241 Viehweg deixa isso bastante claro: “Así pues, todas estas estructuras se dan tanto en la dogmática como en la investigación jurídica (de tipo especifico o filosófico), en donde siguen dependiendo, en última instancia, de la respectiva función sistémica, es decir, por lo general, hay que abandonarlas cuando no satisfacen las expectativas funcionales”. Cfe. Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 85 ou Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 106. 242 Vide, a propósito, BOBBIO, Norberto. Derecho y Lógica, op. cit., p. 23, e também a apresentação de Giuliano Crifó à tradução italiana de Topik und Jurisprudenz, publicada em Milão, pela Giuffrè, em 1962, p. VII-XXIV. 243 Vide GARCÍA AMADO, op. cit., p. 146-150.

Viehweg nunca se pronunciou estritamente sobre esse assunto, nem

utiliza a distinção entre lógica dos juristas e lógica das normas244. É interessante,

todavia, observar que sua tese da natureza tópica da Jurisprudência deixou implícita a

possibilidade de se considerarem as normas jurídicas topoi, cujo papel é o de servir

de pontos de partida em séries argumentativas e cuja característica é somente

ganharem um sentido por relação ao problema que está sendo discutido. Não haveria,

portanto, um sentido pré-determinado das normas jurídicas, mas este seria construído

no debate jurídico. Esse é, aliás, um dos pontos nos quais a crítica demoradamente

insistiu245.

Seja de que ângulo olharmos essa questão, optando pela primeira ou

pela segunda hipótese de interpretação, é certo que a articulação entre sistema

dogmático e zetético e as suas diferentes estruturas leva a considerar que essa

articulação pressupõe uma espécie de ordem de preferência. Parece bastante

plausível entender que Viehweg indica, ainda que não explicitamente, qual a

estrutura menos adequada ao sistema jurídico – dogmático ou zetético – e estabelece

uma ordem de preferência entre os demais, situando alguns como menos adequados,

outros como adaptáveis, mas com algumas restrições, até chegar ao que considera

seja a melhor opção.

Viehweg menciona expressamente os obstáculos para se realizar a

sistematização dedutiva tanto no sistema dogmático quanto no zetético. Isso

significa, em nosso entendimento, que sua opinião é a de que essa estrutura é a

menos desejável para a construção de sistemas jurídicos246. Em relação aos sistemas

serial, cibernético, dialético clássico e dialético moderno, nenhuma restrição tão

explícita é feita. O dialético moderno acarreta, segundo o autor, uma aceitação de seu

244 Por ocasião de sua resposta a uma enquete realizada pelos Archives de Philosophie du Droit, cujo tema foi lógica jurídica, Viehweg responde aos questionamentos, mencionando Bobbio, Kalinowski e García Maynez, mas não faz nenhuma referência à distinção referida, que é conhecida ao menos por Bobbio. Nessas respostas, aparece também de modo claro a sua preocupação com a dimensão prática da argumentação dos juristas. Nela, afirma Viehweg, não é possível trabalhar apenas com a lógica-matemática contemporânea. Vide, na coletânea alemã La “Logique Moderne” du Droit, p. 186-188 e, na coletânea espanhola, La “Lógica Moderna” del Derecho, p. 66-70. 245 Assim, por exemplo, CANARIS, op. cit., p. 256-261, GARCIA AMADO, 244-254. 246 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 81-82. Também em Topik und Jurisprudenz p. 13-14 da edição alemã e p. 17-18 da edição brasileira, quando observa que a teoria jurídica insistiu, por assim dizer, em trabalhar com um ideal de sistema dedutivo que oculta as características peculiares do modo de pensar do jurista e dificulta que se faça uma teoria adequada.

dogma básico e, caso não o aceitemos, com ele não podemos trabalhar247. Já o

cibernético traz consigo um certo mecanicismo e parece mais adequado à

sociologia248.

Restam, ainda, os sistemas serial e dialético clássico ou tópico. Em

relação ao primeiro, nenhuma observação é realizada, mas podemos compreender

que este guarda um vínculo bastante significativo com o tópico ou dialético clássico,

na medida em que os catálogos de topoi, como lembra Viehweg, são o exemplo mais

conhecido que temos de sistema serial. A compilação de pontos de vista, outra

maneira de chamar os topoi, é também o objetivo dos sistemas tópicos ou dialéticos

clássicos. O autor diz, ainda, que essa compilação de pontos de vista poderia ser

considerada um sistema de base em nossa disciplina. A partir desse sistema,

poderiam ser construídos sistemas outros, especialmente o dedutivo ou o dialético

moderno249. Essa observação em nada difere daquela feita sobre a relação entre o

sistema serial e o dedutivo, quando explicitava o autor que as premissas do sistema

dedutivo podem ter sua origem em um sistema serial250.

A diferença entre ambos parece-nos poder ser localizada na

circunstância de que o sistema dialético clássico é definido com base em alguns

pontos adicionais ao sistema serial. Assim, ele é compreendido como um sistema de

argumentação orientado aos problemas. Nessa tarefa, realiza a compilação de pontos

de vista que são os catálogos de topoi. Além disso, defende o autor, o sistema tópico

ou dialético clássico é aberto e em constante movimento. Sua formulação dos

problemas é apenas uma etapa no processo de argumentação e suas respostas são

mantidas em constante revisão. Caso não sejam mantidas assim, ver-se-á nascer,

deste sistema zetético, um sistema dogmático251.

247 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 105-106 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 84. 248 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 105 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 83. 249 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 106 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 84. 250 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 103-104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 81. 251 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 106 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 85.

A preferência de Viehweg parece ser, e isso fica ainda mais evidente

se olharmos a discussão em seu contexto mais amplo, pelo sistema dialético clássico

ou tópico. Essa preferência não é manifestada de modo tão aberto na apresentação

das estruturas dos sistemas, mas vem de qualquer modo sugerida quando o autor diz

que: “Quizá valga la pena considerar si en nuestro campo de conocimiento no se

percibe ya algo que puede tener importancia en otros campos del conocimiento como

tópica general”252. Ela é corroborada por outras passagens nas quais o autor

manifestamente elogia a perspectiva tópica na construção do saber jurídico253.

Com base na discussão realizada até aqui, entendemos que o mais

aceitável seja afirmar que Viehweg entendia não haver uma vinculação entre

estrutura e função, no sentido de que apenas uma estrutura seria adequada para

cumprir a função social requerida dos sistemas dogmático e zetético. Se assim não

fosse, sua argumentação deveria conduzir à escolha inequívoca de uma estrutura para

cada sistema.

Se não há uma ligação pré-estabelecida entre estrutura e função dos

sistemas, nem por isso Viehweg deixa de mostrar qual das opções lhe parece melhor.

Com isso, quer-se dizer que a sua elaboração teórica procura ressaltar a ideia de que

a estrutura tópica é a mais adequada para o desenvolvimento dos sistemas jurídicos e,

quiçá, de outros campos de conhecimento, conforme vimos na citação acima.

Entendemos que toda a argumentação de Viehweg, tanto em Topik und Jurisprudenz

quanto nos ensaios posteriores, leva a essa conclusão, mesmo se ele não a explicita

peremptoriamente254.

252 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 106 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 85. 253 Vide o parágrafo 9º. de Topik und Jurisprudenz, p. 111-119 da edição alemã e 101-107 da edição alemã, bem como os seguintes artigos: Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdiziplin, na coletânea alemã, p.191, ou Apuntes sobre una teoría retórica de la argumentación jurídica, na coletânea espanhola, p.163; Sobre el desarollo contemporâneo de la tópica jurídica, somente na coletânea espanhola, p. 180. 254 Como, por exemplo, nesta passagem, na qual caracteriza a tarefa da ciência do direito que se desenvolve tendo como objeto a Jurisprudência, e salienta que suas sistematizações terão de ser parciais, o que implica tomar a tópica novamente em consideração: “Atrás dela, como ocorre em outras disciplinas especializadas, tem de existir uma teoria do direito, que aqui há de ser uma concisa teoria da praxis, entendida em seu mais amplo sentido. Uma teoria semelhante até agora só se encontra de um modo isolado. Como em suas investigações tem de mover-se em torno de tentativas de sistematização, de novo terá de tomar a tópica em consideração”. Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 93-94 da edição alemã e p. 85 da edição brasileira.

O argumento mais importante deve ser retirado da concepção que

Viehweg apresenta sobre a teoria retórica da argumentação jurídica. Vimos que este

é o ponto no qual desemboca a sua busca por uma definição, iniciada com a distinção

entre enfoque dogmático e zetético, do que deve ser uma investigação de base. Ser

uma contribuição à investigação de base da ciência do direito é a intenção de Topik

und Jurisprudenz255. Quando desenvolve as linhas gerais da referida teoria, Viehweg

considera que ela deve ser uma teoria do discurso fundamentante, e isso significa que

se deve dar a prevalência ao pensamento situacional256.

Uma teoria que a esta tarefa se dedique terá dificuldades de utilizar

apenas a sistematização dedutiva, a qual não fornece respostas para a necessidade de

fundamentação das premissas iniciais do sistema. Na sistematização dedutiva,

encontramo-nos diante de um pensamento não situacional, que isola seus axiomas do

contexto no qual foram construídos, trabalhando somente a partir dos planos sintático

e semântico. Com a tópica (o que significa dizer, com o pensamento problemático),

ao contrário, trabalhamos com um pensamento situacional, pragmaticamente

condicionado, justamente porque a vinculação ao problema é contínua257.

Parece-nos importante ressaltar, por fim, um dos pontos de crítica

propostos por Canaris, na medida em que nele aparece justamente a distinção entre o

horizonte teórico de Viehweg e o de seus críticos. Canaris afirma que é um equívoco

trabalhar com a vinculação entre tópica e Jurisprudência porque aquela é fundamento

de uma doutrina da ação, enquanto esta é uma doutrina do “entendimento correto” e

não da “atuação certa”258.

Pensamos que o interesse de Viehweg pela tópica deve-se, em larga

medida, ao seu caráter de vinculação com a praxis. Examinamos, na primeira parte

deste trabalho (Capítulos I e II), como a pergunta pela cientificidade da

Jurisprudência levou Viehweg a investigar a estrutura desse campo do conhecimento

exatamente como praxis. Do mesmo modo, quando analisamos as suas referências à

255 Isso fica claro no subtítulo que a referida obra recebe (Topik und Jurisprudenz: Ein Beitrag zur rechtswissenschaftlichen Grundlagenforschung – “Uma Contribuição à Investigação de Base na Ciência do Direito”), bem como no modo como Viehweg coloca seus objetivos na introdução. Vide p. 13-14 da edição alemã e 17-18 da edição brasileira. 256 Vide item 2 do Capítulo IV. 257 Vide item 3 do Capítulo IV. 258 Cfe. CANARIS, op. cit., p. 262-266.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência ao item 2 do Capítulo IV.

Comment: Nota ao editor: referência ao item 3 do Capítulo IV.

Comment: Nota ao editor: referência aos Capítulos I e II.

filosofia do direito como filosofia de base, nos Capítulos III e IV, vimos que a

discussão desembocou na construção de uma teoria retórica da argumentação

jurídica, cujo pressuposto é esclarecer a situação do diálogo como ponto de partida

para a elaboração teórica, ou seja, enquanto praxis. Essas ideias compõem um dos

aspectos mais característicos da proposta teórica de Viehweg, como se pode perceber

claramente em inúmeras passagens de suas obras.259

Além disso, quando examinamos, ainda que superficialmente, a tópica

aristotélica, vimos que é a ação humana – cuja peculiaridade exige a deliberação e na

qual comparecem a retórica, a dialética e a tópica – precisamente o campo da

prudência, à qual se reporta Viehweg como inspiração para pensar os contornos e as

tarefas do saber jurídico260. Para o autor, portanto, seria lícito dizer que se trata, sim,

de pensar uma doutrina do agir correto, e não apenas do entendimento correto,

mesmo porque, de acordo com os pressupostos também por ele sugeridos261, o

entendimento só se dá em uma situação de discurso, com partícipes determinados e

depende, pois, de uma teoria da ação. Essa é precisamente a sua diferença para com

os outros autores, como, por exemplo, Canaris.

Além dos pontos acima discutidos e da crítica movida à tese de

Viehweg, dois outros devem ser salientados antes que passemos à discussão da

relação entre dogmática, zetética e Jurisprudência.

Em primeiro lugar, é importante atentarmos para a relação que se

pode estabelecer entre a Jurisprudência e a ciência do direito. Viehweg diz de

maneira evidente, no texto reproduzido acima, que a segunda servirá de corretivo e

259 Vide, dentre outras passagens: Topik und Juriprudenz, p. 14, 93-94, 111-119 da edição alemã e p.18, 85, 101-107 da edição brasileira. Nos ensaios, consulte-se Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 191-199 da coletânea alemã ou Apuntes sobre uma teoria retórica de la argumentación jurídica, p. 163-175 da coletânea espanhola. 260 Vide o item 2 do Capítulo V. 261 Pensamos especialmente nas referências feitas por Viehweg, no parágrafo 9º. de Topik und Jurisprudência e nos ensaios que tratam da teoria retórica da argumentação, às correntes linguísticas que tomam a pragmática como nível predominante da linguagem e tratam as verbalizações como mútuas instruções para a invenção e o uso linguísticos. A comunicação, nesse sentido, ocorre à medida que mútuas instruções linguísticas de ação são dadas e recebidas. Vide, a propósito, Topik und Jurisprudenz, p. 117 da edição alemã e p. 105 da edição brasileira.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência aos Capítulos III e IV.

Comment: Nota ao editor: referência ao item 2 do Capítulo V.

de auxílio ao desenvolvimento daquela primeira, e não poderá nela se subsumir.

Assim, o objeto da ciência do direito é a própria Jurisprudência.262

Em segundo lugar, observarmos que Viehweg se refere, quando

examina as possibilidades do pensamento problemático, à discussão como

mecanismo de controle do discurso que se produz naquelas áreas nas quais o

problema é inarredável. Se isso ocorre com a Jurisprudência, então se trata de pensar

como uma ciência do direito poderia funcionar como discussão – consequentemente,

como controle – do seu discurso.

Para o exame destes dois últimos aspectos, cabe relacionar aquilo que

vimos até aqui sobre a Jurisprudência à discussão anterior de uma teoria retórica da

argumentação jurídica e os enfoques zetético e dogmático. A essa discussão, dedicar-

se-á o próximo capítulo.

262 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 14 da edição alemã e p. 18 da edição brasileira: “Caso isto não seja aceito, a jurisprudência teria de ser entendida como um procedimento de discussão de problemas que, como tal, é objeto da Ciência do Direito”.

CAPÍTULO VII

Jurisprudência, dogmática e zetética

1. Pensamento problemático e sistemático versus enfoque dogmático e zetético

Com base nas análises do pensamento de Theodor Viehweg que

realizamos, podemos agora relacionar a distinção entre pensamento problemático e

pensamento sistemático com a distinção entre enfoque dogmático e zetético. É

importante lembrar, conforme mencionamos em outros momentos, que o autor

jamais se pronunciou sobre esse assunto. Com efeito, a vinculação da distinção entre

enfoque dogmático e zetético, e a sua análise da Jurisprudência nunca foram

trabalhadas conjuntamente por Viehweg.

Essa ausência de um esclarecimento por parte do próprio autor

ocasionou, também, um silêncio significativo da teoria jurídica contemporânea, a

qual discutiu e até desenvolveu a tese de que a Jurisprudência é tópica e, por vezes,

comenta a distinção entre dogmática e zetética, mas não oferece nenhuma visão de

conjunto que responda pelo cruzamento entre ambas as teses. A distinção entre

dogmática e zetética, aliás, não teve grande repercussão e nem alcançou o grau de

crítica e de aprovação que a tese sobre a estrutura tópica da Jurisprudência obteve.

Parece-nos, no entanto, que é extremamente relevante procurar a

resposta para esta indagação, pois nela podemos visualizar de modo mais acabado

como Viehweg concebeu o saber jurídico; o que é, afinal, o objeto da presente

investigação.

Não se trata, conforme expusemos na Introdução deste trabalho, de

realizar uma sistematização onde nunca se pretendeu que houvesse.

Compreendemos, como explicávamos então, que o autor procurou pensar por

problemas e não atribuiu importância maior ao sistema.

Mesmo mantendo a investigação dentro dos pressupostos por ele

colocados, já que a intenção desta pesquisa era justamente desenvolvê-los

internamente, a fim de apanhar suas relações e interpenetrações – como se fez –,

cremos ser legítimo e adequado também relacionar aquelas noções, embora Viehweg

tenha optado por não o fazer expressamente.

É bastante provável, tendo em vista as características do pensamento

do autor, que ele tenha pretendido que a distinção entre dogmática e zetética

permanecesse como um topos e, por essa razão, não tenha jamais abordado de modo

mais desenvolvido suas implicações ou mesmo explicado como isso se coaduna com

a análise da Jurisprudência. Como todo topos, a distinção somente ganha sentido por

referência ao problema que estiver em questão, e, em razão disso, sua interpretação

em um todo sistematizado deve ser feita com imensa cautela. A preferência por este

caminho poderia ser explicada pelo receio de explicações demasiado fixas, que

comprometessem exatamente o valor heurístico que uma distinção de tal natureza

poderia trazer à pesquisa de base no direito.

Dentre os diversos problemas de que Viehweg se ocupou, certamente

esses são centrais. Tanto a distinção entre pensamento problemático e sistemático,

quanto a diferenciação entre enfoque zetético e dogmático podem ser consideradas

eixos fundamentais que percorrem toda a sua elaboração, ganhando diferentes

contornos, conforme são elaboradas à luz das questões específicas a cada momento

postas263.

263 Heino Garrn, ao apresentar os ensaios da coletânea alemã, assim se manifesta: “Inhaltlich geht es in diesen Studien vor allem um zwei hier hervorzuhebende Themenbereiche. Der eine Themenbereich betrifft Viehwegs generelles Verständnis der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung in ihrem Verhältnis zur Rechtsdogmatik und zur Rechtspraxis sowie in ihrer Bedeutung für die juristische Ausbildung. Bei dem anderen Themenbereich geht es dagegen ebenso wie in der Topik-Schrift um die argumentative Struktur des auf praktische Entscheidungen bezogenen Rechtsdenkens, wobei die eigene rhetorik und topiktheoretische Position des Verfassers verdeutlich und fortenwickelt wird” (“Em termos de conteúdo, esses estudos envolvem principalmente dois campos temáticos a destacar. Um campo temático concerne ao entendimento geral, de Viehweg, da Filosofia do Direito como pesquisa básica em sua relação com a Dogmática e com a prática do Direito, como também com sua importância para a formação jurídica. O outro campo temático, entretanto, trata, tanto quanto o tratado sobre a tópica, da estrutura argumentativa do pensar jurídico direcionado para decisões práticas, sendo que a própria retórica e a posição teórica tópica do autor são esclarecidas e desenvolvidas”. Tradução nossa). Cfe. GARRN, op. cit., p. 9. Vide também a observação de Giuliano Criffò sobre a importância do eixo sistema/problema para a construção da tese de Viehweg. Cfe. CRIFÒ, op. cit., p. VII-XXIII.

Vemos, nesse sentido, que a pergunta pela relação entre os dois

aspectos representa precisamente a investigação do “sistema latente” que o modo de

pensar problemático supõe. Se não é a busca de uma formação sistemática que tudo

explique, é a elucidação do horizonte de questões no qual se move aquele

pensamento que identifica uma questão como merecedora de resposta, perfeitamente

de acordo com a definição de problema que o autor oferece.264 Uma questão só se

põe como relevante quando lida à luz de um nexo significativo que a antecede, e

esclarecê-lo é fundamental para compreender não só o alcance da pergunta, como

também a resposta formulada.

Assim, pretendemos oferecer neste capítulo as interpretações

possíveis para a relação entre pensamento problemático e sistemático de um lado e

enfoque dogmático e zetético de outro, com vistas a determinar como se poderia

considerar a Jurisprudência. A pergunta, para formulá-la mais claramente, é,

portanto, se a Jurisprudência, cuja estrutura é tópica, segundo vimos, é dogmática,

zetética, ou ambas as possibilidades.

Vimos, no capítulo anterior, que a estrutura de pensamento que parece

mais adequada a Viehweg é a problemática ou a aporética. Desse modo, na

combinação entre as distinções “pensamento problemático e sistemático” e “enfoque

dogmático e zetético”, a primeira e mais genérica definição que podemos dar é a de

que, tanto quando utilizamos um enfoque dogmático quanto quando fazemos uso do

enfoque zetético, podemos nos mover no âmbito do pensamento problemático.

O primeiro aspecto que devemos ter em vista para a análise em

questão é a ligação estabelecida entre pensamento problemático e tópica. Como

visto, a tópica é conceituada exatamente como uma arte de pensar por problemas e

sua presença afasta a viabilidade de se construir um sistema dedutivo265.

Dessa maneira, se a estrutura de um sistema dogmático ou zetético for

a dedutiva – e ela pode ser, conforme Viehweg indica em sua classificação segundo a

264 A referida definição, vale lembrar, diz o seguinte: “Para nosso fim, pode chamar-se problema – esta definição basta – toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução”. Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 32 da edição alemã e p. 34 da edição brasileira. 265 Vide Topik und Jurisprudenz, p. 31 da edição alemã e p. 33 da edição brasileira.

estrutura –, o pensamento problemático estará afastado. Se, no entanto, os sistemas

dogmático e zetético forem estruturados diversamente, a partir de uma perspectiva

serial ou dialética clássica/tópica, o pensamento problemático estará presente.

O segundo aspecto que precisamos ter em mente é que tanto o sistema

zetético quanto o sistema dogmático afeiçoam-se pouco à estrutura puramente

dedutiva. No primeiro caso – zetético –, porque o sistema precisa manter em

constante revisão suas premissas. No segundo, porque não se conseguem evitar as

revisões derivadas do princípio da proibição do non liquet. Estamos dizendo, de um

ângulo diverso, que também aqui a predominância deve ser dada ao pensamento

problemático266.

É importante observar, contudo, que, quando Viehweg fala do sistema

dogmático, admite que este, pela sua peculiaridade de trabalhar com premissas

fixadas de antemão, se afeiçoa mais à estrutura dedutiva. O que o impede de assim

permanecer é a natureza problemática de seu campo, que requer que sempre uma

decisão seja fornecida267.

Esse argumento, se entendido contrario sensu, reforça a tese de que os

sistemas zetéticos não poderão ser adequadamente desenvolvidos se pensados com

uma estrutura dedutiva. Sua capacidade de sistematização, embora relevante, deve

ser deixada sempre em suspenso, porque a necessidade de revisão das premissas é

que o constitui enquanto enfoque e sistema268.

Se isto é correto, podemos estabelecer uma relação entre o

pensamento sistemático e o sistema dedutivo. Nessa linha, quando o autor menciona

a dificuldade de se pensarem sistemas zetéticos e sistemas dogmáticos com uma

266 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 82. 267 Viehweg coloca assim a questão, em Algunas Consideraciones Acerca del Razonamiento Jurídico, p. 125 da coletânea espanhola e em Some Consideraciones Concerning Legal Reasoning, p. 114 da coletânea alemã: “Sin embargo, el sistema deductivo puede tener una importancia sólo parcial en el campo de la investigación acerca del derecho. Parece ser más adecuado para la dogmática jurídica. Sus principios son fijados dogmáticamente y todo lo demás es deducido. Sin embargo, en realidad, el sistema deductivo podría ser mantenido sólo si uno pudiera rechazar los casos no solucionables en él.” 268 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 82.

estrutura dedutiva, ele a localiza na dimensão fixa que as premissas desse tipo de

sistema possuem269.

Ao examinarmos a distinção entre pensamento problemático e

sistemático, vimos que a característica deste é exatamente a importância que atribui

ao sistema preexistente, que funciona como uma espécie de critério a partir do qual

os problemas são assumidos ou não como solúveis, ou seja, a fixação de algumas

premissas como pontos de partida que não podem ser abandonados sob pena de o

sistema perder sua configuração270. Podemos entender, portanto, que o pensamento

sistemático é o que mais se identifica com o sistema dedutivo.

Se, para a Jurisprudência, não é viável desenvolver-se de acordo com

o sistema dedutivo, pois o jurista trabalha com um pensamento que salienta a

dimensão dos problemas e procura, nos diversos sistemas parciais, pontos de apoio

para a sua resolução, à maneira tópica, então também é correto afirmarmos nela a

presença do pensamento problemático e da tópica, conforme discutimos no capítulo

anterior.

Afastamos, assim, por argumentos que veem a questão sob vários

ângulos, a possibilidade de o pensamento sistemático ser utilizado para desenvolver

adequadamente os sistemas zetéticos e dogmáticos. Se isso esclarece um pouco mais,

na medida em que nos permite afirmar que, tanto se a Jurisprudência for um sistema

zetético quanto se sua estrutura for dogmática, estará nela presente o pensamento

problemático, não diz ainda nada de conclusivo sobre a relação entre a

Jurisprudência e os enfoques dogmático e zetético. O próximo item dedica-se a essa

discussão.

2. Enfoque dogmático, enfoque zetético e Jurisprudência

269 Cfe. Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 104 ou Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 82. 270 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 31 da edição alemã e p. 33 da edição brasileira.

Para iniciarmos a discussão deste ponto, vejamos como Viehweg fala

sobre o enfoque dogmático e o enfoque zetético na seguinte passagem:

No es difícil encontrar en la disciplina jurídica las mencionadas variantes de pensamiento. Ellas provocan diferentes argumentaciones. Por ello, se puede hablar sobre lo que se llama problemas jurídicos de una manera jurídico-dogmática o jurídico-cetética. El jurista profesional, es decir, el dogmático profesional del derecho es, en todo caso, un especialista de la argumentación jurídico-dogmática que, en tanto tal, tiene sus peculiaridades. Si, además, cultiva la historia del derecho, la sociología del derecho, la criminología, la psicología del derecho, etc., utiliza, dentro del marco de su investigación, argumentaciones cetéticas (también llamadas metadogmáticas) y si trabaja como filósofo o como teórico del derecho, se ocupa de argumentaciones filosóficas (no especializadas) cetéticas. Una disciplina completa del derecho abarca conjunta y recíprocamente todas estas actividades.271 (grifos nossos)

Uma leitura possível dessa passagem é aquela que entende estar

Viehweg considerando a argumentação dogmática algo peculiar ao jurista

profissional e, consequentemente, a Jurisprudência percebida como uma disciplina

essencialmente dogmática, tendo em vista que o jurista profissional com ela trabalha.

Poder-se-ia dizer, desse modo, que Viehweg considera que o enfoque dogmático é

preponderante ou até constitutivo da Jurisprudência. Outras passagens de textos

desse mesmo autor corroboram essa impressão272.

Essa possibilidade é reforçada quando observamos que o autor refere-

se algumas vezes ao fato de que o objeto da ciência do direito é a Jurisprudência.

Uma afirmação de tal natureza é encontrada tanto em Topik und Jurisprudenz quanto

nos ensaios posteriores273.

271 Cfe. Apuntes sobre uma Teoria Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 174-175 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 199 da coletânea alemã. 272 Por exemplo, quando ele afirma: “Cuando observamos más de cerca la dogmática jurídica y la cetética jurídica, tiene importancia por lo pronto lo siguiente: manifiestamiente, la dogmática juridca presupone una doctrina básica con función social y aquello que se llama jurisprudencia (prudentia juris) es la múltiple manifestación dogmática de esta doctrina”. Cfe. Sobre el futuro de la filosofía del Derecho como investigación básica, p. 136 ou Über die Zukunft der Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, p. 121. 273 Vide, como exemplos, as seguintes passagens: “Se vio entonces claramente que el pensamiento jurídico dogmático, la prudentia juris en tanto tal, se convierte en el objeto del razonamiento jurídico cetético; podemos, por una parte, practicar jurisprudencia y, por otra, metajurisprudencia”. Cfe. Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Jurídico, p. 121 ou Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 112. Em Topik und Jurisprudenz, p. 14 da edição alemã e p. 18 da

Parece razoável supor que o enfoque zetético seja o predominante ou

o necessário para constituir um pensamento científico. Embora Viehweg nunca tenha

manifestado expressamente o que considera ciência, vemos na passagem acima

citada um rol de disciplinas exemplificativas do enfoque zetético que se identificam

com o que se costuma considerar o campo da ciência274. Se entendermos que a

Jurisprudência é o objeto da ciência do direito e a esta cabe o enfoque zetético,

naquela o predominante é o enfoque oposto, ou seja, o dogmático.

Desse modo, ter-se-ia resolvido o problema da relação entre os

enfoques dogmático e zetético e a Jurisprudência, afirmando a predominância do

enfoque dogmático na sua constituição e a presença do enfoque zetético na meta-

Jurisprudência ou ciência do direito.

Viehweg não nos dá nenhuma definição da Jurisprudência, apenas

utiliza o termo, conforme salientávamos no primeiro capítulo deste trabalho275,

parecendo querer diferençá-lo da ciência do direito. A seguinte passagem parece

reforçar sobremaneira a hipótese de interpretação proposta: “Se vio entonces

claramente que el pensamiento jurídico dogmático, la prudentia juris en tanto tal, se

convierte en el objeto del razonamiento jurídico cetético; podemos, por una parte,

practicar jurisprudencia y, por otra, metajurisprudencia”276.

A favor da mencionada interpretação conta, ainda, o fato de que o

autor reporta-se várias vezes a Ballweg quando fala na relação entre Jurisprudência e

ciência do direito277. Ballweg trata explicitamente da Jurisprudência como um

edição brasileira: “Caso isto não seja aceito, a jurisprudência teria de ser entendida como um procedimento de discussão de problemas que, como tal, é objeto da Ciência do Direito”. 274 Viehweg refere-se ao mesmo rol de disciplinas nas muitas vezes em que exemplifica o enfoque zetético na investigação jurídica. Parece haver, para o autor, uma identificação mesma entre a zetética especializada e o pensamento científico, como, por exemplo, quando afirma: “No es necesario señalar explícitamente que un científico utiliza su teoría cetética, por ejemplo, una teoría sociológica o normativa del derecho, de cualquier forma menos ésta. No se atiene a su teoría a fin de estructurar un comportamiento social, como lo hace el jurista. Más bien, para obtener nuevo conocimiento, examina su teoría en su campo de investigación y está siempre dispuesto a modificarla”. Cfe. Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Jurídico, p. 123 ou Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 113. 275 Vide item I do Capítulo I. 276 Cfe. Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 112 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Jurídico, p. 121. 277 Vide Topik und Jurisprudenz, p. 14 da edição alemã e p. 18 da edição brasileira; também em Some Considerations Concerning Legal Reasoning, p. 111 ou Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Jurídico, p. 121.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo 1.

Comment: Nota ao editor: referência ao item I do Capítulo I.

pensamento não científico278, de cunho prudencial e decisório, composto pela

doutrina de base e pela dogmática jurídica279. A ciência do direito toma como objeto

a Jurisprudência. A filosofia do direito, por sua vez, toma ambas, ciência e

Jurisprudência, como objetos de investigação280. Segundo o autor, a filosofia é uma

atitude analítica que tende à retificação, na medida em que examina os limites e as

condições de possibilidade dos outros dois saberes. A ciência tem como finalidade a

verificação; a Jurisprudência orienta-se para a justificação281.

A se julgar pelo que até agora vimos, a conclusão que se impõe, seja

pela análise das palavras do próprio Viehweg, seja pela sua referência a Ballweg, é a

de que a Jurisprudência é essencialmente dogmática. Ela é composta por uma teoria

de base – uma ideologia em sentido funcional – e por uma dogmática jurídica,

conforme discutimos no Capítulo III de nosso trabalho282.

Todavia, Viehweg não se manifesta sempre do mesmo modo sobre a

relação entre dogmática e Jurisprudência. Passagens de sua obra existem que nos

levam a outra possibilidade de interpretação, como, por exemplo, quando assevera:

“Pero, justamente si se sostiene la concepción de que es indispensable conservar la

dogmática jurídica como dogmática, hay que conceder especial importancia a que

278 Em Science, Prudence et Philosohie du Droit, op. cit., p. 549-558, Ballweg trata separadamente da ciência e sua caracterização, da prudência e da filosofia. Quando menciona a prudência, assim a coloca: “Mais l’homme est toujours dans la situation de celui qui compare l’incomparable. La méthode scientifique refuse ici ses services. Nous nous retournons à la prudence dans le sens philosophique, comme on parle de la prudence de la politique, de l’éthique, de la jurisprudente, c’est-à-dire l’art de comparer l’incomparable, de le rendre intelligible et par lá même de rendre posible une decisión” (p.554). 279 Cfe. BALLWEG, em Science, Prudence et Philosohie du Droit, op. cit., p. 548: “La jurisprudence est pour nous l’ensemble de la praxis judiciaire et sa doctrine”. De um modo mais preciso: “Par le terme ‘jurisprudence’ nous entendons: premièrement une doctrine juridique de l’action et de la decisión juridique, et deuxièment, en conséquence, un systéme réglateur des conflits sociaux, qui utilize certains éléments pour accomplir ces tâches, la juridiction étant elle-même un de ces éléments”. 280 Cfe. BALLWEG, Analyse de la Jurisprudence à l’aide d’un modèle de la science sociale, op. cit., p. 257: “Il est certain que le rapport de la science à la prudence a un caráctere méta-théorique, qui existe de la philosophie à la science et à la prudence. De là sortent plusiers conséquences. A partir des fonctions diverses de ces différents domaines résultent des structures très diverses de ces manières de pensée distinctes”. 281 Cfe. BALLWEG, Rechtswissenschaft und Jurisprudenz, op. cit, p. 15.Vide também p. 90-122. 282 Vide o item 2 do Capítulo III.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo III.

Comment: Nota ao editor: referência ao item 2 do Capítulo III.

dentro de la ciencia del derecho exista a su lado una investigación independiente

(investigatio philosophica)”283 (grifos nossos).

A referência a uma ciência completa do direito parece levar à

conclusão que Viehweg está pensando, quando utiliza o termo ciência, na

Jurisprudência. A expressão ciência não estaria sendo adotada aqui em caráter estrito,

mas como um sinônimo de disciplina ou saber284. Se, em seu interior, aparecem tanto

a dogmática quanto a investigação filosófica, então a conclusão que antes retiramos

não parece ser a única possível. Ela é corroborada, ademais, pela citação que fizemos

ainda no início desta discussão285, na qual Viehweg afirma que uma disciplina

completa do direito abarca conjunta e reciprocamente a dogmática, a zetética

especializada ou científica e a zetética filosófica.

Há, portanto, uma outra possibilidade, talvez um pouco mais

complexa, de essa relação ser construída. Assim, se centrarmos nossa leitura na

última frase da citação acima relembrada e compreendermos que Jurisprudência é a

designação dada por Viehweg ao saber jurídico em sua versão completa, como

disciplina jurídica, então afirmar-se-á que ela é composta por argumentações

formuladas a partir do enfoque dogmático, bem como por argumentações zetéticas.

283 Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtshilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 44 da coletânea alemã ou Sobre la Relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 28 da coletânea espanhola. 284 O texto em alemão está redigido nos seguintes termos: “Aber gerade dann, wenn man die Ansicht vertritt, dass es unerlässlich ist, die Rechtsdogmatik als Dogmatik zu wahren, muss man besonderen Wert darauf legen, dass, inerhalb der Rechtswissenschaft eine unabhängige Forschung (investigatio philosophica) neben ihr steht” (“Mas, justamente ao defender-se a opinião de que é imprescindível manter a dogmática do Direito como dogmática, é preciso enfatizar que, dentro da Ciência do Direito, haja, paralelamente, uma pesquisa independente (pesquisa filosófica).” Tradução e grifos nossos). Cfe. Über den Zusammenhang zwischen Rechtshilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 44 da coletânea alemã. 285 A citação referida é a seguinte: “No es difícil encontrar en la disciplina jurídica las mencionadas variantes de pensamiento. Ellas provocan diferentes argumentaciones. Por ello, se puede hablar sobre lo que se llama problemas jurídicos de una manera jurídico-dogmática o jurídico-cetética. El jurista profesional, es decir, el dogmático profesional del derecho es, en todo caso, un especialista de la argumentación jurídico-dogmática que, en tanto tal, tiene sus peculiaridades. Si, además, cultiva la historia del derecho, la sociología del derecho, la criminología, la psicología del derecho, etc., utiliza, dentro del marco de su investigación, argumentaciones cetéticas (también llamadas metadogmáticas) y si trabaja como filósofo o como teórico del derecho, se ocupa de argumentaciones filosóficas (no especializadas) cetéticas. Una disciplina completa del derecho abarca conjunta y recíprocamente todas estas actividades” (grifos nossos). Cfe. Apuntes sobre uma Teoria Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 174-175 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 199 da coletânea alemã.

Nesse caso, entender-se-á que a Jurisprudência é o conjunto das argumentações

jurídicas286.

As duas possibilidades que levantamos encontram guarida nos textos

de Viehweg, como se demonstra nas citações. Parece, por esse motivo, que o próprio

autor oscilava entre uma e outra posição. A dificuldade de interpretação pode

também ser derivada do fato de que a terminologia utilizada é imprecisa. O termo

Jurisprudência é empregado por vezes como sinônimo de ciência do direito e, noutras

ocasiões, como seu contrário.

Quando qualifica, em Topik und Jurisprudenz, a sua proposta de

compreensão da Jurisprudência em contraposição ao uso da sistematização dedutiva

como parâmetro, Viehweg afirma: “Uma ciência do direito que pretenda desenvolver

uma ‘cientificização’ da techné jurídica e que como tal se conceba como ciência tem

de marchar pelo caminho indicado até o final”287. O caminho indicado é o da

axiomatização, e Viehweg está claramente relacionando ciência com a utilização do

modelo moderno de conhecimento científico, examinado no Capítulo II deste

trabalho, cuja característica é a utilização dos meios axiomáticos-dedutivos. O termo

“ciência” é utilizado aqui em sentido estrito288.

Essa observação é ainda corroborada pelo modo como Viehweg

manifesta sua opinião sobre a presença da tópica na Jurisprudência, afirmando que

essa presença trouxe grandes ganhos, mas a impediu de tornar-se uma ciência. A

tópica, diz o autor, não é um método, mas um estilo289. Se a Jurisprudência é tópica e

esta a impede de tornar-se uma ciência, as duas formas de pensamento são distintas,

como se pode facilmente concluir.

286 Também Ferraz Jr., ao se referir aos enfoques dogmático e zetético, afirma a sua presença concomitante no que considera a ciência dogmática do direito, que entendemos ser basicamente a Jurisprudenz conforme concebida por Viehweg. Vide Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 100 nota 80. 287 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 93 da edição alemã e p. 85 da edição brasileira. 288 Do mesmo modo, na seguinte passagem: “En todo caso, es seguro que la actual ciencia del derecho, en tanto ciencia, necesita los conocimientos de la lógica contemporánea – que se presenta en forma matemática (es decir, algorítmica) – a fin de poder percibir con mayor exactitud la estructura lógica de aquello que se llama jurisprudencia”. Cfe. La Filosofía del Derecho como Investigación Básica, p. 39 da coletânea espanhola ou Rechtshilosophie als Grundlagenforschung, p. 52 da coletânea alemã. 289 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p. 77 da edição alemã e p. 71 da edição brasileira.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo II.

Em outra passagem, também em Topik und Jurisprudenz, o autor

relaciona duas possibilidades de se fazer ciência quando se encontra numa área de

conhecimento um estilo como tópico: converter o estilo em método dedutivo ou

conservá-lo tal como ele foi encontrado e torná-lo objeto de uma ciência. Adaptando-

se essa ideia ao nosso âmbito de conhecimento, Viehweg afirma que:

Aplicadas às disciplinas jurídicas, estas possibilidades significam, no primeiro caso, que se pretende tornar científica a techné jurídica e, no segundo, fazê-la, naquilo que ela é, objeto de uma ciência. Em ambos os casos, por mais que sejam diferentes, pode-se falar plenamente de uma Ciência do Direito.290

Nesse caso, a terminologia utilizada indica também o uso estrito do

termo ciência, referindo-se agora à investigação zetética especializada e tomando a

tópica jurídica (e, consequentemente, a Jurisprudência) como seu objeto. O próprio

qualificativo de techné aponta para essa acepção, na medida em que se vincula ao

conhecimento não científico, tanto se o tomarmos no sentido em que os gregos o

empregavam quanto se fizermos sua atualização para o sentido moderno de técnica

ou tecnologia.

Todavia, quando analisa a filosofia do direito enquanto investigação

básica e recorre à distinção entre conhecimentos elevados e profundos, Viehweg

utiliza-se da expressão Jurisprudência como se estivesse se referindo ora ao seu

aspecto dogmático, ora à sua caracterização mais ampla, como saber jurídico:

Permítaseme agregar que la jurisprudencia siempre ha ganado en carácter científico a través del indicado movimiento de pensamiento. También el gran Savigny llevó a cabo este movimiento de pensamiento al preguntarse por los fundamentos históricos de nuestra dogmática jurídica. Con ello, desde luego, no negó la filosofía del derecho, pero la desplazó de la conciencia de sus partidarios y sucesores. Como es sabido, en su terminología dijo reiteradamente lo que hoy diríamos con la nuestra de la siguiente manera: la jurisprudencia se convertirá en mera técnica si no se ocupa de sus fundamentos. Por ello, calificamos a un trabajo jurídico como jurídico-científico sólo si, de alguna manera, se refiere a los fundamentos.291

290 Cfe. Topik und Jurisprudenz, p.81 da edição alemã e p. 75 da edição brasileira. 291 Cfe. La Filosofía del Derecho como Investigación Básica, p. 32-33 da coletânea espanhola ou Rechtshilosophie als Grundlagenforschung, p. 47 da coletânea alemã.

Somente faz sentido dizer que a Jurisprudência ganhou um caráter

mais cientifico se considerarmos que ela é o conjunto de nossas disciplinas. Por outro

lado, o autor refere-se, ato contínuo, à dogmática jurídica e à necessidade de sua

fundamentação pelas disciplinas zetéticas, parecendo novamente identificar

Jurisprudência e dogmática jurídica.

Os textos acima citados, retirados não só de Topik und Jurisprudenz

como também dos ensaios posteriores, mostram, portanto, que Viehweg não usava os

termos em sentido rigoroso292. É possível, assim, que a dificuldade de interpretação

decorra em larga medida dessa utilização variável das expressões ciência do direito e

Jurisprudência. É prudente, pois, que tentemos esclarecer a relação entre dogmática,

zetética e Jurisprudência sem nos atermos demasiadamente às palavras utilizadas,

procurando compreendê-la no contexto teórico das definições que discutimos nos

capítulos anteriores. A essa tarefa dedica-se o próximo item.

3. A Jurisprudência como dogmática e como zetética

Vimos, quando discutimos as relações entre o enfoque dogmático e o

zetético no Capítulo III desta investigação, que estes são funcionalmente necessários

e complementares. O saber jurídico não pode ser desenvolvido apenas zeteticamente,

292 Ainda como exemplos: “Así pues, en nuestra forma de exposición, es posible decir que la investigación filosófica básica de la ciencia jurídica se interesa por la infraestructura de una tal dogmática jurídica. Lo hace como investigación libre. Es decir, ella misma no es dogmática. No pertenece a las disciplinas dogmáticas de la ciencia jurídica, sino a sus disciplinas de investigación que justamente comienzan a determinar tan notoriamente la forma contemporánea de nuestra ciencia del derecho” (grifos nossos). Cfe. La Filosofía del Derecho como Investigación Básica, p. 36-37 da coletânea espanhola ou Rechtshilosophie als Grundlagenforschung, p. 50 da coletânea alemã. Quando discute a epistemologia filosófica, que deve ser uma teoria da argumentação, Viehweg afirma: “En el caso de la ciencia del derecho, es decir, por una parte, la prudencia jurídica (juris prudentia) y, por otra, la investigación del derecho, se trata de una teoría del derecho como teoría de la ciencia en el sentido indicado”. Cfe. Apuntes sobre una Teoría Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 163 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 191.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo III.

porque isso o impediria de fornecer respostas aos problemas colocados pela

sociedade, na medida mesma em que esse enfoque salienta, sobretudo, a

reflexividade nas questões que coloca. Como o direito é instrumento de controle de

comportamentos e precisa fornecer decisões para os conflitos sociais, a reflexividade

excessiva constitui um perigo para sua capacidade de dar respostas293.

A predominância do enfoque dogmático em algumas argumentações

não pode significar, todavia, a sua exclusividade, porque, como também discutimos

então, um pensamento dogmático precisa ter suas premissas legitimadas, o que

implica uma discussão zetética. Especialmente nas sociedades modernas, que não

contam com outros mecanismos de legitimação, a doutrina de base é referida ao

pensamento científico justamente como busca de legitimação294.

Parece-nos, portanto, que é aceitável considerar que o saber jurídico

completo, que pode ser designado como Jurisprudência, seja constituído por ambos

os enfoques, dogmático e zetético. Isso é verdadeiro se compreendermos os enfoques

como pontos de vista que propiciam uma orientação na maneira como o objeto da

argumentação será tratado. Assim, se utilizarmos o enfoque dogmático, nossas

premissas serão inquestionáveis. Se utilizarmos o zetético, serão sempre passíveis de

revisão. Compreendemos desse modo porque vemos que Viehweg qualifica a

presença dos referidos enfoques no saber jurídico como produtores de diferentes

293 De acordo com Viehweg: “Si se sostiene la concepción – casi generalmente compartida y manifiestamente correcta –, según la cual la persona es un ser no determinado, se constata que tiene una propiedad que la estimula como ser pensante pero que también la pone en peligro como actor”. Cfe. Sobre la Relación entre filosofía del derecho, teoría del derecho y dogmática jurídica, p. 17 da coletânea espanhola ou Über den Zusammenhang zwischen Rechtshilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 36 da coletânea alemã. 294 Nesse sentido, afirma Viehweg: “Pues es fácil percibir que un sistema jurídico-dogmático no forma y cultiva una opinión jurídica cualquiera sino que ésta tiene que ser legitimada de un manera especial. En la medida en que la legitimación es proporcionada por una creencia, la situación es relativamente sencilla. Puede pensarse, en este sentido, en la fundamentación religiosa del derecho, por ejemplo, en el derecho islámico de la actualidad o en el derecho cristiano de la Edad Media. Aquí se ofrece una doctrina básica confesional inconmovible que, interpretada adecuadamente, basta para cumplir la función social del sistema dogmático. Cuando falta este fundamento de fe, surgen necesariamente dificultades ya que ahora la fundamentación requerida depende de la ayuda de la investigación”. Cfe. Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, p. 79 da coletânea espanhola ou Systemeprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, p. 102 da coletânea alemã.

argumentações, ou seja: o objeto é o mesmo; apenas aquilo que sobre ele se diz é

que é distinto segundo o modo como é construído o discurso295.

Se tivermos razão nessa interpretação, então poder-se-á também

pensar que, se tomarmos a argumentação já construída, fará sentido qualificarmos

como dogmática a Jurisprudência, na medida em que nela podemos encontrar uma

teoria dogmática com sua doutrina de base. A visão que agora se propõe é estática,

isto é, do conhecimento já produzido. Nesta segunda possibilidade, é aceitável dizer

que Jurisprudência é uma argumentação dogmática e que, ao seu lado, encontramos

um saber jurídico científico produzido a partir do enfoque zetético, que a toma,

inclusive, como objeto de análise.

Neste outro sentido, Jurisprudência é termo que qualifica apenas uma

parte do saber jurídico e identifica-se com mais precisão ao uso que a relaciona ao

saber construído historicamente, de cunho tópico. Conforme levantávamos na

exposição inicial do problema que movia a investigação de Viehweg, o uso da

expressão Jurisprudência, consagrada pela tradição, parece indicar justamente que o

autor queria estudar o saber jurídico tal como fora historicamente construído296.

A análise da tese de que a Jurisprudência é tópica confirmou essa

hipótese. Nesse caso, as características que o saber jurídico desenvolveu ao longo de

sua história identificam-se mais com a dogmática jurídica, especialmente em razão

da função social que os sistemas dogmáticos possuem, embora isso não signifique

que fundamentações zetéticas não lhe tenham sido fornecidas. Poder-se-ia falar, ao

menos, em predominância do enfoque dogmático.

295 Vale recordar aqui a seguinte passagem, já transcrita na nota 601: “No es difícil encontrar en la disciplina jurídica las mencionadas variantes de pensamiento. Ellas provocan diferentes argumentaciones. Por ello, se puede hablar sobre lo que se llama problemas jurídicos de una manera jurídico-dogmática o jurídico-cetética. El jurista profesional, es decir, el dogmático profesional del derecho es, en todo caso, un especialista de la argumentación jurídico-dogmática que, en tanto tal, tiene sus peculiaridades. Si, además, cultiva la historia del derecho, la sociología del derecho, la criminología, la psicología del derecho, etc., utiliza, dentro del marco de su investigación, argumentaciones cetéticas (también llamadas metadogmáticas) y si trabaja como filósofo o como teórico del derecho, se ocupa de argumentaciones filosóficas (no especializadas) cetéticas”. Cfe. Apuntes sobre uma Teoria Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 174-175 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 199 da coletânea alemã. 296 Vide Capítulo I.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência à nota 601.

Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo I.

O problema que pode estar implícito nesse uso é que se está

partilhando da opinião essencialmente moderna de que, onde está a tópica, não está a

ciência; e vice-versa. Essa ideia precisa ser esclarecida para elucidarmos o alcance de

nossa interpretação do pensamento de Viehweg.

Evidentemente, a assimilação entre tópica e Jurisprudência ensejou a

impossibilidade de se adequar a Jurisprudência ao modelo moderno de ciência. Se

isso é verdade, também o é que esse mesmo modelo, que qualificamos como

cartesiano quando o discutimos no Capítulo II, tem mostrado severas dificuldades de

explicar seus procedimentos e garantir suas promessas de objetividade quando

examinado mais atentamente297.

Procuramos mostrar, ainda naquela discussão, que entendíamos a

distinção dogmática/zetética como uma maneira de Viehweg tratar as tarefas do

saber jurídico sem cair nas armadilhas que o modelo moderno de ciência impunha,

especialmente a sua dificuldade de tratar com a passagem entre a teoria e a praxis.

Essa constatação servia tanto para os campos temáticos como o direito, a política ou

a ética, quanto para aqueles nos quais o modelo foi gestado, como a física ou as

ciências naturais.

Se a intenção de Viehweg era, de fato, a de construir uma outra saída,

então o autor não podia estar simplesmente concordando com a exclusão da

Jurisprudência do rol dos saberes científicos e encerrando nisso a sua proposta de

contribuição para a investigação de base em nosso âmbito de conhecimento. A

pergunta pela estrutura da Jurisprudência significa, nesse contexto, também uma

contestação a classificações demasiado estreitas ou eminentemente formais dos

saberes. Compreendemos que a ressalva de que dogmática e zetética são dois

enfoques, os quais dão origem a diferentes argumentações sobre os mesmos temas

ou conteúdos, contribua precisamente para excluir tais simplificações.

Viehweg salienta, quando explica a distinção entre enfoque zetético e

dogmático, o fato de que passamos muitas vezes de um a outro em uma discussão298.

297 Vide o item 1 do Capítulo II. 298 Viehweg afirma que: “Sin embargo, el paso de una forma de pensamiento cetética a una dogmática y viceversa no es en modo alguno poco frecuente, aunque no siempre fácil de percibir. Lo que hasta un cierto momento era elemento constitutivo de una investigación suele finalmente convertirse en

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo II.

Comment: Nota ao editor: referência ao item 1 do Capítulo II.

Ora, isso impede, como se pode facilmente concluir, de se imaginarem situações nas

quais caiba exclusivamente um ou outro enfoque, ou nas quais um deles esteja

peremptoriamente excluído de antemão. A predominância de um ou outro depende

do discurso que está sendo realizado, o que significa dizer, em outros termos, que

depende da situação comunicativa na qual se desenvolve.

Parece-nos que é nessa linha de pensamento que as seguintes

afirmações de Viehweg podem ser lidas:

Aquí será utilizado para una mayor aclaración el más arriba presentado modelo retórico-judicial con los conceptos fundamentales ataque, defensa y explicación. Se puede decir que las aseveraciones son tratadas como dogmata cuando, in thesi, son excluidas a largo plazo de un ataque y, por ello, no están sometidas a ningún deber de defensa, es decir, a ningún deber de fundamentación, sino simplemente a un deber de explicación. (...) Lo contrario ocurre con todas las aseveraciones que en toda investigación son utilizadas simplemente como zetemata. In thesi están libradas a todo ataque; están, por lo tanto, sujetas al deber de defensa, es decir, al deber de fundamentación, al igual que al deber de explicación.299

Encarar dogmática e zetética enquanto modos distintos de tratar as

premissas de um discurso significa, portanto, que estamos nos remetendo ao modelo

que Viehweg chamou de tópico-retórico e que procurou delinear, ainda que muito

esquematicamente, ao apontar os desenvolvimentos posteriores de uma teoria

retórica da argumentação jurídica. Esse tema, como vimos no Capítulo IV, foi o

ponto de chegada de sua elaboração teórica, iniciada com a pergunta sobre a

estrutura da Jurisprudência300.

A resposta que oferecemos sobre a relação entre as distinções

dogmática/zetética e pensamento problemático/sistemático, logo no início deste

capítulo, ganha agora um novo sentido. Dizíamos, então, que, tanto no uso do

enfoque dogmático quanto no do zetético, movemo-nos no âmbito do pensamento

problemático. Sabemos também que tópica e pensamento problemático encontram-se elemento constitutivo de una dogmática y viceversa”. Cfe. Apuntes sobre uma Teoria Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 174 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 199 da coletânea alemã. 299 Cfe. Apuntes sobre uma Teoria Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 173 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 198 da coletânea alemã. 300 Vide o item 3 do Capítulo IV.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30

Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo IV.

Comment: Nota ao editor: referência ao item 3 do Capítulo IV.

indissoluvelmente unidos, pois aquela é exatamente uma técnica de pensar por

problemas. Isso implica dizer, como resultado da análise que fizemos desde nossa

primeira resposta, que dogmática e zetética precisam ser entendidas no interior de

uma concepção retórica do discurso, que utiliza a tópica como um recurso para

pensar a relação de comunicação enquanto um jogo entre interlocutores que

discutem301.

Quando Viehweg manifesta-se sobre as tarefas e as características que

uma teoria retórica da argumentação jurídica – referindo-se sempre ao fato de que ela

deve ser capaz de elaborar uma teoria do discurso fundamentante –, coloca também a

questão de que um tal aporte é importante para a compreensão da ciência do direito.

Em suas palavras:

Después de todo esto, parece ser promisor para una teoría jurídica de la argumentación volver a discutir la retórica clásica desde los puntos de vista indicados. Pues el largamente descuidado y ahora recuperado aspecto retórico parece, por lo menos, facilitar el acceso a la respuesta de pregunta acerca de qué se hace cuando se practica ‘ciencia del derecho’.302

Não podemos, dessa forma, tratar a presença dos enfoques dogmático

e zetético sem vinculá-los à referida concepção sobre a tópica e a teoria retórica da

argumentação a partir dela elaborada.

Viehweg nunca desenvolveu, conforme discutimos no Capítulo IV,

uma teoria desse tipo. Embora seus últimos escritos, incluindo-se aí o parágrafo 9º.

de Topik und Jurisprudenz, tenham versado precisamente sobre esses temas, é certo

que ele apenas apontou os caminhos que lhe pareceram mais interessantes ou

importantes.

301 É nesse sentido que Viehweg fala em “tópica formal”, referindo-se ao diálogo e ao dever de prova que lhe acompanha: “Se puede decir que las actividades más arriba mencionadas pertenecen a la tópica formal. Esta tiene no sólo una función de descubrimiento sino también de fundamentación”. Cfe. Apuntes sobre una Teoría Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 171 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 196 da coletânea alemã. 302 Cfe. Apuntes sobre uma Teoria Retórica de la Argumentación Jurídica, p. 171 da coletânea espanhola ou Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, p. 197 da coletânea alemã.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo IV.

De todos os pontos por ele levantados, sem dúvida a preeminência

deve ser dada ao discurso fundamentante303. A discussão subjacente à distinção entre

enfoque dogmático e zetético, bem como a identificação deste último com a ciência,

precisa, pois, ser colocada sobre esse pano de fundo.

O importante da distinção entre os enfoques e sua presença no saber

jurídico, conforme a leitura que propomos da obra de Viehweg, é que se pode

compreender melhor o conhecimento jurídico se levarmos em consideração que ele é

formado a partir de ambos. Se isso é correto, também o é que discutir se a melhor

designação para o referido conhecimento é ou não Jurisprudência pode ser apenas

uma discussão semântica, resolúvel com uma convenção dos usos que fazemos de

cada designação.

A discussão que se impõe verdadeiramente é a de qual modelo de

discurso parece corresponder ao pretendido por Viehweg304, ainda que ele não o

tenha desenvolvido.

Para realizar essa tarefa, trazemos uma breve descrição do modelo de

discurso fundamentante proposto por Tercio Sampaio Ferraz Jr. Entendemos que este

autor move-se no horizonte teórico pretendido por Viehweg e procura desenvolver

algumas das questões que lhe pareciam essenciais. Dentre elas, especialmente a

criação de um modelo de discurso que se mostre como discussão fundamentante,

partindo de uma concepção retórica e pragmática da comunicação305.

303 Para essa discussão, vide o Parágrafo 9º. de Topik und Jurisprudenz, p. 111-119 da edição alemã e p. 101-107 da edição brasileira, bem como os ensaios Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, Schritte zu einer Rhetorischen Rechtstheorie, Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, Zur Topik, insbesondere auf juristischem Gebiete, Reine und Rhetorische Rechtslehre e Antirhetorische und rhetorische Kontrolle rechtlicher Argumentationen, p. 191-222 da edição alemã ou Apuntes sobre uma teoria retórica de la argumentación jurídica, Sobre el desarrollo contemporáneo de la tópica jurídica, Retórica, pragmática lingüística, teoria del derecho, La teoria pura del derecho y la teoria retórica del derecho, Acerca de la tópica, especialmente em el ámbito jurídico, p. 163-201 da edição espanhola. 304 Viehweg inicia o parágrafo 9º. de Topik und Jurisprudenz (p.101 da edição brasileira e p. 11 da edição alemã) relembrando a alusão de Vico e coloca em seguida a intenção da redescoberta da retórica nos seguintes termos: “Com este fito, é bom reafirmar, mais uma vez, que a nova inclinação para a retórica se baseia, em primeiro lugar, em tornar compreensiva toda argumentação a partir da situação discursiva. Isto deixa transparecer, de modo recomendável, uma diferenciação entre uma maneira de falar situacional e outra não-situacional, bem como a investigação de suas peculiaridades respectivas”. 305 Vide FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., passim e também Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 01-30. Esta última obra é dedicada a Theodor Viehweg pelo autor. A importância dessa perspectiva

Esta análise tem como objetivo finalizar a investigação, apontando

como uma concepção retórica concebe o discurso e em quê isso contribui para a

superação das dificuldades que a concepção moderna de ciência acarretava para a

investigação do direito e eventualmente também para os demais ramos do

conhecimento humano, conforme procuramos discutir nos capítulos iniciais deste

trabalho.

4. O discurso jurídico a partir de um modelo retórico de investigação

Ferraz Jr. constrói um modelo de análise do discurso cujo ponto de

partida é a sua caracterização como discurso fundamentante. Assim, para se

viabilizar como discussão fundamentante, o discurso somente pode admitir como

ação linguística aquela que pode ser entendida pelo outro, ou seja, aquela que pode

ser ensinada e aprendida306.

A situação de ensinar e aprender pode ser chamada de situação

comunicativa, e, embora nem todo discurso efetivamente seja fundamentado, deve

ser ao menos passível de exigência de fundamentação, sob pena de ser irracional.

Nesse sentido, a regra que preside a estruturação de toda situação discursiva é a do

dever de prova, pela qual quem fala deve ser capaz de aduzir objetivos e

justificativas para aquilo que diz307.

É por referência à situação comunicativa que se pode qualificar o

discurso, enquanto discussão fundamentante, de racional. Ele é racional se as partes

não se deixam determinar por elementos externos à situação comunicativa (entendida

que vincula pragmática e retórica é reiteradamente afirmada por Viehweg: “Frente a esto, si uno está interesado en proporcionar un acceso central a la pragmática lingüística, parece aconsejable no dejar de lado la ciencia de la retórica. En conexión con la investigación de la comunicación y de la semiótica, puede aspirar a un renovado interés y es innegable que tiene una importancia central para la dimensión pragmática del lenguaje”. Cfe. Retórica, pragmática lingüística, teoria del derecho, p. 186 da coletânea espanhola ou Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 206 da coletânea alemã. 306 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 7. 307 Cfe. FERRAZ JR, Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 7. Vide também Topik und Jurisprudenz, p. 118-119 da edição alemã e p. 106-107 da edição brasileira.

aqui em relação aos seus limites interno e externo308), ou seja, as suas ações

linguísticas são postas apenas pelos elementos tomados a partir da própria discussão.

Nessa linha, é necessário o mútuo entendimento entre os partícipes309.

A racionalidade aparece, portanto, como uma espécie de

distanciamento das opiniões, crenças e conhecimentos tradicionais, costumeiros ou

provenientes da emoção, no sentido de que é racional o discurso que discute seus

próprios fundamentos, justificando-os, prestando conta deles. O princípio dominante

no discurso racional é o do exame crítico, que decorre do princípio do dever de

prova. Ele significa que o discurso deve estar sempre aberto ao comportamento

crítico do ouvinte e que deve haver a fundamentação das asserções produzidas no seu

interior, na medida em que o ouvinte assim o exige310.

As diferentes estruturas discursivas, decorrentes da articulação entre o

comportamento do ouvinte e aquele outro do orador, e, especialmente, da reação

ativa ou passiva do primeiro, são, então, classificadas por Ferraz Jr. em monológica e

308 A situação comunicativa pode ser vista como duplamente limitada: externamente pelo horizonte que é o seu meio circundante e internamente pela estrutura que adquire no decorrer do discurso, e que tem a ver com o princípio do dever de prova. É fundamental compreender que a estrutura da situação comunicativa não é previamente dada, mas é fruto do comportamento dos seus partícipes, bem como a sua relação indissolúvel com o ambiente no qual se movem os partícipes do discurso. Vide FERRAZ JR., Teoria da Norma Jurídica, op. cit., p. 13. Essa seria, aliás, a vantagem do pensamento situacional, conforme Viehweg. Ele permite uma conexão constante com o contexto no qual o discurso se desenvolve, diferentemente do que ocorre com as concepções que se centram nas dimensões sintática e semântica do discurso. Vide, a propósito, Rhetorik, Sprachpragmatik, Rechtstheorie, p. 206-207 da coletânea alemã ou Retórica, pragmática lingüística, teoria del derecho, p. 186-187 da coletânea espanhola. 309 É fundamental considerarmos o mútuo entendimento no seguinte contexto: “O mútuo entendimento não é nem exterior nem anterior ao próprio discurso, mas ocorre no exercício do discurso. Nesse sentido ele depende dos partícipes da discussão, com o que queremos dizer que ele depende de uma série de técnicas comunicativas que devem ser aprendidas. Assim, em nossa concepção, a capacidade humana de comunicação não é, em princípio, dotada de certa estabilidade, a qual poderia sofrer – como de fato sofre – uma série de perturbações; ao contrário, essa capacidade é dotada de uma relativa instabilidade. Desse modo, o sucesso do mútuo entendimento discursivo releva-se, decididamente, como uma tarefa”. Cfe. Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 49. 310 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 30-31. Sobre esse aspecto, Viehweg afirma: “A teoria filosófica da ciência, nos dias de hoje, documenta o discurso, enquanto ação teórica, com deveres retóricos. Em síntese: quem fala tem de poder justificar sua fala. Só o preenchimento dos deveres discursivos, especialmente a observação dos deveres de defesa e de esclarecimento, garante suficientemente afirmações confiáveis, nas quais existe indubitavelmente um interesse geral. Só deste modo permanece um diálogo racional em andamento, o qual possibilita a justificação de afirmações teóricas e práticas numa medida considerada ótima”. Vide também Topik und Jurisprudenz, p. 119 da edição alemã e p. 107 da edição brasileira.

dialógica. Dentro da estrutura dialógica, aparecem, ainda, como subtipos a discussão-

com e a discussão-contra.311

Discurso dialógico e monológico, bem como discussão-com e contra,

são compreensíveis como resultados de um processo de aperfeiçoamento de técnicas

de comunicação que se referem e se complementam mutuamente312. É a partir da

inclusão do comportamento do ouvinte enquanto receptor que o discurso pode ser

entendido como ação linguística passível de ser aprendida e repetida, e o discurso

racional qualificado como aquele no qual o comportamento crítico do ouvinte gera a

necessidade de um constante desenvolvimento de técnicas de comunicação. O

sucesso do entendimento, dependente do comportamento e da capacidade dos

partícipes do discurso, não é um pressuposto, e, sim, uma tarefa313.

Como assevera explicitamente Ferraz Jr., essa maneira de conceber o

discurso e suas estruturas possíveis não nos autoriza a qualificar de antemão que tipo

de estrutura terá um discurso determinado que possa ser qualificado como científico,

podendo dele fazer parte tanto o diálogo quanto o monólogo314. Com essa ressalva

em vista, pode-se, entretanto, discutir – ainda que em abstrato – que estrutura poderia

ter o discurso científico.

311 O discurso monológico supõe uma atitude passiva por parte do ouvinte, tornando-o abstrato e permitindo o desenvolvimento sequencial das asserções, podendo conduzir a uma axiomatização. O discurso dialógico, ao contrário, supõe uma atitude reativa do ouvinte que acentua o momento pergunta na discussão, tornando-a reflexiva e aproximando-a do pensamento problemático. Quando o comportamento ativo do ouvinte possa ser qualificado como cooperativo no sentido de verificação intersubjetiva dos enunciados, estamos diante de uma discussão-com. Quando, ao contrário, ele é reativo no sentido de contestar as afirmações do orador e reafirmar seus próprios pontos de vista, falamos em discussão-contra. Vide a configuração detalhada do modelo em FERRAZ JR, Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 15-53 ou em Teoria da Norma Jurídica, op. cit., p. 26-30. 312 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 52. A comunicação humana, neste contexto teórico, é entendida como uma construção constante, e não como um dado. O entendimento entre orador e ouvinte depende da atuação de ambos, o que implica dizer que não há uma prevalência do comportamento do orador como algumas concepções sobre a linguagem parecem acreditar. Um exemplo desse tipo de entendimento pode ser encontrado na concepção de Perelman e Tyteca de que o orador é quem constrói o auditório. No discurso, portanto, o orador adquire uma importância maior do que o ouvinte. Na concepção de Ferraz Jr., que estamos examinando, ao contrário, é o comportamento crítico do ouvinte que determina a estrutura do discurso. O ouvinte é, nesse sentido, mais importante do que o orador. Vide PERELMAN e TYTECA, Tratado da Argumentação, op. cit., p. 22-26 e FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 24-26. 313 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 52. 314 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p.47: “Por outro lado, não nos parece possível determinar, a priori, mesmo para os diferentes discursos científicos, sejam eles históricos, sociológicos, físicos, matemáticos, jurídicos, qual a estrutura que lhes cabe ou deva caber preponderantemente”.

Parece acertado assumir que os atributos elencados para a discussão-

com permitem identificá-la com o que se entende, contemporaneamente, como um

discurso científico. Apesar de todas as dissensões sobre o que significa “fazer

ciência”, é possível identificar alguns caracteres básicos do pensamento científico. A

possibilidade de verificação interpessoal das proposições é um deles. A natureza

aproximativa do conhecimento obtido, na medida em que é sempre passível de

falseamento, sendo aceito como verdadeiro enquanto sua incorreção não for

comprovada, é outro315.

O discurso científico aponta para uma reflexividade que não pode ter

um ponto final que encerre a discussão, adaptando-se com maior facilidade ao que

consideramos uma argumentação construída a partir de um enfoque zetético. O que

pode ocorrer, contudo, é que, diante de proposições que não sejam verificáveis ou

falseáveis no momento, seja suspenso o juízo, retomando-o posteriormente quando

tais condições forem cumpridas316.

A dificuldade, todavia, que aparece no discurso jurídico é a de que

este serve, conforme discutimos ao caracterizarmos a sua função social, para o

controle de comportamentos. Sua função social exige, como também vimos então,

uma concentração dos esforços no fornecimento de respostas aos conflitos sociais.

Isso determina a aparição de uma dogmática jurídica que nem sempre pode

suspender o juízo diante de dificuldades cognitivas e que, por outro lado, precisa ser

complementada por um tratamento zetético das questões, inclusive por razões de

legitimação317.

315 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 164: “Deixando de lado, por ora, os problemas que essa concepção encerra, assumimos, com Lorenzen e Kamlah, o critério da ‘verificação intersubjetiva’ e a necessidade de partes homólogas como condição do discurso científico enquanto discussão-com. Admitimos, assim, que, a partir da relação homóloga, pretendemos, na ciência, obter ações lingüísticas independentes da situação comunicativa particular, na medida em que elas aspiram a uma validade erga omnes”. Sobre a verificação interpessoal, vide LORENZEN e KAMLAH, op. cit., p. 117 e ss. 316 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 162. 317 Vide Capítulo III. Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 160: “Podemos então dizer que o discurso jurídico, ao exigir uma forma de discussão-com, desenvolve uma fundamentação cuja função não é configurar um conflito e, imediatamente, preparar uma decisão, mas sim procurar a possibilidade de ‘verificação interpessoal’ de uma questão hipotética. Aqui também a estrutura do discurso é dialógica, o que qualifica o seu objeto como um dubium. Aí, aquilo que no momento monológico da dogmaticidade é posto como certum, é questionado também em relação a outros dogmas (questionamento ‘dogmático’) ou de modo a transcender aqueles dogmas (questionamento ‘zetético’). Põe-se à prova a sustentabilidade de ações lingüísticas, mas tendo em

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo III.

Conforme assevera Ferraz Jr., é possível entender que, na discussão-

com jurídica, em função dessa situação acima relembrada, a alternativa

verdadeiro/falso – que serve como critério para aferir a correção dos enunciados

incorporáveis ao discurso e que é própria da discussão-com – ganha uma específica

configuração. Ela aparece referida à decidibilidade dos conflitos sociais e seus

enunciados são submetidos à alternativa possibilita a decisão/não possibilita a

decisão, e não mais ao critério da verdade/falsidade318.

A discussão-com jurídica, desse modo, nem questiona puramente a

verdade ou falsidade dos enunciados, nem se refere diretamente a condições de

solução de conflitos concretos imediatamente considerados. Ela pensa, de modo

hipotético, na viabilização de decisões para uma eventual e futura discussão de um

conflito específico. Nesses limites, ela pode ser vista como um instrumento, ainda

que indireto, para a resolução dos conflitos jurídicos319.

Mesmo com essa feição instrumental, o discurso dogmático não deixa

de ser uma discussão-com; ele não chega a ser partidário a ponto de perder a

característica da homologia320 e a possibilidade de verificação interpessoal dos

vista assinalar sugestões, apontar possibilidades, desvendar caminhos para uma eventual discussão-contra”. 318 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 161. 319 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 162: “A discussão-com jurídica tem por objeto a decidibilidade no sentido de que ela encara o conflito como hipótese de conflito e a decisão como hipótese de decisão. Nesse caso, como se vê, o objeto do discurso não é propriamente uma questão conflitiva, mas um dubium que se estrutura alternativamente em razão de um conflito eventual e de uma eventual decisão. Como, entretanto, de algum modo, a discussão-com levanta hipóteses ligadas às condições de possibilidade da decisão jurídica (ela é, nesse sentido, jurídica), isso constitui para ela o campo mesmo de verificação intersubjetiva. Por outro lado, como não há aí um compromisso direto com uma decisão, a discussão-com jurídica admite, em alguns casos, a suspensão do juízo: uma asserção não verificável intersubjetivamente não é, desde logo, denunciada como infundada, mas deixada em aberto”. 320 LORENZEN e KAMLAH, op. cit., p. 121, afirmam: “Da wir bei solcher Beurteilung der Wahrheit von Aussagen auf das Urteil anderer rekurrieren, die mit uns dieselbe Sprache sprechen, können wir dieses Verfahren interpersonale Verifizierung nennen. Wir stellen auf diesem Wege, durch diese ‘Methode’, Übereinstimmung zwischen dem Sprecher und seinen Gesprächspartnern her, eine Übereinstimmung, die in der Sokratischen Dialogik ‘Homologie’ gennant wurde. Gerade an dieser Stelle sollte uns die mögliche Anknüpfung an den geschichtlichen Ursprung de vernünftigen Redens wilkommen sein. Daher wollen wir das alte Wort ‘Homologie’ terminologisch gebrauch und auch sagen: Die Wahrheit einer Aussage wird erweisen durch Homologie” (“Uma vez que, em tal avaliação da verossimilhança de afirmações, recorremos ao julgamento de terceiros, que conosco falam a mesma linguagem, podemos chamar esse procedimento de verificação interpessoal. Por essa via, por esse ‘método’, constatamos coincidência entre o orador e seus interlocutores, coincidência designada de ‘homologia’ na dialógica de Sócrates. Justamente nesse lugar deveria ser bem-vinda a possível conexão com a origem histórica da oratória sensata. Em função disso, queremos usar a antiga palavra

enunciados. Existe homologia, nesse contexto, porque o jurista dirige-se,

basicamente, a outros juristas, utilizando-se de uma terminologia própria, com o

intuito de obter o convencimento do ouvinte, no sentido de conquistar-lhe o

assentimento para as suas afirmações321.

A estrutura discursiva que é denominada discussão-com pode,

portanto, existir no discurso científico, mas também em um sentido tecnológico, no

qual, como afirma Ferraz Jr., os resultados da pesquisa científica são desenvolvidos

tendo como critério a sua relevância prática. A distinção entre discurso científico e

tecnológico não significa que este último parta de dogmas arbitrariamente

construídos. Aquilo que é por ele dogmatizado resulta de um questionamento

zetético, reflexivo, típico da ciência. Os pontos aceitáveis que esta atividade

altamente reflexiva que é a ciência consegue fixar são, então, desenvolvidos, tendo

em vista a aplicabilidade pelo discurso tecnológico. A própria aplicabilidade pode

auxiliar na aferição da correção dos enunciados científicos, embora o seu critério não

possa ser exclusivamente este322.

A discussão-com jurídica pode ser compreendida, assim, como um

discurso tecnológico. Em razão de seu eixo central ser a decidibilidade, ela tem uma

ligação indissolúvel com a dimensão prática, com os resultados de seus enunciados,

o que marca a situação comunicativa que lhe dá estrutura de modo peculiar.323

‘homologia’ de forma terminológica, e também dizer: a verdade de uma afirmação se prova pela homologia”. Tradução nossa). 321 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 161: “Ao contrário, porém, do que ocorre na discussão-contra, toda a argumentação visa nesse caso ao convencimento da outra parte. Não que sejamos indiferentes à produção partidária de uma imagem persuasiva e sua demonstração (básica para a discussão-contra), mas o objetivo do discurso é convencer a outra parte, conquistar-lhe o assentimento. A produção do consenso, pela obtenção de proposições verdadeiras, é, por isso, um elemento importante do discurso jurídico enquanto discussão-com. Também aqui há um dubium que, como tal, não pode ser eliminado, embora possa ser solucionado. Mas enquanto a solução por decisão (discussão-contra) termina um conflito, pondo-lhe um fim, a solução verdadeira, permitindo o consenso, constitui sempre uma hipótese que se mantém afirmada enquanto não for retomada como problema”. 322 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 169-171. 323 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 170: “A discussão-com jurídica tem, a nosso ver, um caráter eminentemente tecnológico. Nesse sentido entendemos a concepção de Viehweg, segundo a qual as teorias dogmáticas são ‘teorias com função social’, teorias de natureza criptonormativa, das quais decorrem conseqüências programáticas de decisão, e que devem prever, em todo caso, que, com sua ajuda, uma problemática social determinada seja solucionável sem exceções perturbadoras”. Vide também o Capítulo III e VIEHWEG, Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 87-90 da coletânea alemã dos pequenos escritos ou Ideología y Dogmática Jurídica, p. 101-106 da coletânea espanhola.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo III.

No plano da discussão-com jurídica, na medida em que ela tem como

problema central a decidibilidade, seus enunciados têm consequências para a decisão

(eventual e futura) de conflitos concretos, para os quais servirão de premissas

tópicas. Isso acarreta um comportamento partidário dos partícipes da discussão, que,

se não chegam a comportar-se como se estivessem no discurso judicial324, também

não deixam de procurar atingir o proponente dos enunciados325.

O discurso tecnológico jurídico tem, por essa razão, não apenas uma

função informativa, mas precipuamente diretiva. Isso não significa que se possam

simplesmente deduzir das teorias jurídicas dogmáticas decisões para conflitos

concretos. Pode-se, sim, utilizar tais formulações como argumentos e premissas de

uma decisão; o que, aliás, é próprio de um pensamento tecnológico326.

O caráter tecnológico da discussão-com jurídica permite explicar,

assim, por que a reflexividade tem de ser cortada em determinado momento para que

não inviabilize a decidibilidade. Esse aspecto foi anteriormente abordado sob a

denominação de princípio da inegabilidade dos pontos de partida e caracteriza o

pensamento dogmático327. Retomando-o aqui, pode-se compreender que o dubium

que estrutura a discussão-com dialógica jurídica é peculiarmente marcado pela sua

abertura no sentido da realizabilidade prática da teoria jurídica, mas não deixa de ser

reflexivo, embora não leve a reflexividade a seus últimos limites.

Nesse aspecto, seria possível pensar que o questionamento, no âmbito

de uma discussão-com jurídica, dos pressupostos e condições que organizam a

324 Ferraz Jr. analisa, por intermédio do modelo que estamos sucintamente expondo, o conjunto do discurso jurídico, o qual é formado pelo discurso da norma, pelo discurso judicial e pelo discurso da ciência do direito. O primeiro possui uma estrutura dialógica de discussão-contra; o segundo, uma estrutura monológica; e o terceiro, conforme estamos verificando, uma estrutura dialógica de discussão-com. Vide FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 73-174. 325 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 168-169. Desenha-se uma situação, pois, em que a cooperação que caracterizaria a discussão-com traz consigo, camufladamente, um comportamento partidário, que acaba por prejudicar a possibilidade de utilizar a alternativa verdadeiro/falso como qualificadora dos resultados da pesquisa. 326 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 170: “O discurso tecnológico é um tipo de discussão-com que tematiza a decidibilidade. Como tal, ele mantém o caráter informativo e descritivo. Mas a regra que determina a reflexividade do seu objeto não é a ‘refutabilidade’ pura e simplesmente, mas, poderíamos dizer, a ‘refutabilidade’ prática. Embora não seja possível deduzir das formulações tecnológicas regras de decisão, é sempre possível encarar aquelas formulações como argumentos tópicos de uma discussão-contra”. 327 Vide o item I do Capítulo III.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:30Comment: Nota ao editor: referência ao item I do Capítulo III.

decidibilidade dos conflitos, inclusive com um enfoque zetético, é importante para a

previsão de hipotéticas consequências de eventuais decisões328.

Essa caracterização que Ferraz Jr. oferece do discurso jurídico e, em

especial, da discussão-com tecnológica que dele faz parte é reiteradamente

relacionada com o fenômeno da positivação329. O autor entende que a ambiguidade

estrutural do discurso tecnológico, que mescla partícipes homólogos com intenções

partidárias, é dada pela exigência de legitimação que a sociedade moderna faz ao

discurso jurídico e que este não tem mais condições de atender com base em outros

referenciais que não sejam os próprios pressupostos científicos. Legitimação não é,

contudo, uma função da ciência se a entendemos como um questionamento ilimitado

e ilimitável330.

Esse aspecto é também mencionado por Viehweg, que salienta em

diversos contextos a dificuldade que se põe à relação entre argumentação dogmática

e zetética, em especial na formulação de uma teoria de base, quando esta última

precisa dar respostas que não podem ser encontradas cognitivamente e são, então,

substituídas por atos de crença331.

A diferença entre os dois autores é que, para Ferraz Jr., o pensamento

dogmático contemporâneo é responsável, por assim dizer, pela característica

tecnológica da discussão-com jurídica. Para ele, a ciência do direito é entendida

328 Assim entendemos a afirmação de Ferraz Jr., no sentido de que ambos os enfoques (dogmático e zetético) fazem parte dos questionamentos da discussão-com jurídica enquanto discurso tecnológico. Isso acarreta, contudo, um desvirtuamento da discussão-com científica, significando que esta é levada a cumprir uma função de legitimação que está fora de seus pressupostos. Vide, a propósito, FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p.168. 329 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 157: “Daí podermos entender por positivação do Direito o fenômeno segundo o qual ‘todas as valorações, normas e expectativas de comportamento na sociedade têm de ser filtradas através de processos decisórios antes de poder adquirir a validez jurídica”. Vide também LUHMANN, Legitimação pelo Procedimento, op. cit., p. 17-25. 330 Cfe. FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, op. cit., p. 168: “Notamos, inicialmente, que o fenômeno da positivação impõe certas diferenças no comportamento das partes, o que se reflete na própria estimativa do objeto do seu discurso. Na realidade, a positivação, como vimos, ao forçar a tematização do ser humano responsável pela positividade como objeto da ciência, e isso em termos de decidibilidade, faz à ciência um apelo que esta não tem, em princípio, condições de atender. Exige-se a presença mediadora de uma discussão-com jurídica, capaz de suprir os fundamentos da legitimação requerida pelo Direito e castrados pela positivação”. 331 Vide VIEHWEG, Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 35-44 da coletânea alemã dos pequenos escritos ou Sobre la Relación entre Filosofia Del Derecho, Teoria del Derecho y Dogmática Jurídica, p. 15-28 da edição espanhola.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:31Comment: No texto da nota de rodapé, inicia-se uma marcação de aspas simples no trecho “o qual ‘todas as valorações”. Favor identificar onde essa marcação se encerra.

como o conjunto das argumentações dogmáticas e zetéticas332, e é qualificada como

uma dogmática jurídica, tendo em vista seu caráter tecnológico. Mas essa

caracterização supõe o processo de positivação ocorrido nos últimos séculos333.

Viehweg não explicita se suas considerações sobre o caráter prudencial e tópico do

saber jurídico são modificadas pela realidade contemporânea de uma civilização que

se baseia na ciência.

Seria incorreto dizer que Viehweg desconhece ou não leva em

consideração esse aspecto, mesmo porque, conforme mostramos no Capítulo IV, o

autor discute as consequências da perda de referenciais transcendentes e da própria

caracterização da teoria do direito contemporânea, que se recusa a fornecer premissas

para a teoria de base requerida pela dogmática jurídica, embora o faça justamente

quando salienta a ausência de referenciais transcendentais334.

Não fica claro, contudo, como o autor entende que se deva relacionar

sua constatação da natureza tópica da Jurisprudência com as características modernas

que o saber jurídico adquire. Parece claro que a ligação entre pensamento

problemático, tópica e Jurisprudência seja derivada de sua função social. A

investigação que encontramos em Topik und Jurisprudenz faz um acompanhamento

histórico que procura demonstrar a constância dessa relação precisamente por causa

da função social que o direito possui. O que Viehweg está dizendo, nesse sentido, é

que a função social continua a mesma; apenas a fundamentação zetética é que foi

alterada, legitimando-se antigamente de um modo, contemporaneamente de outro.

Se observarmos o modo como Ballweg trata esses mesmos temas,

encontramos uma situação em tudo similar à que apontamos na comparação com o

pensamento de Ferraz Jr., apesar das diferenças de propósito e de concepção. A

resposta de Ballweg de que a Jurisprudência não é um pensamento científico, mas

prudencial, e, enquanto tal, constitui o objeto da ciência do direito, vem esclarecida 332 Vide FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, p. 100 nota 80. 333 Vide FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, p. 147-174 e, também, A Ciência do Direito, op. cit., passim e Função Social da Dogmática Jurídica. op. cit., passim. 334 Vide VIEHWEG, Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik, p. 35-44 da coletânea alemã dos pequenos escritos ou Sobre la Relación entre Filosofía del Derecho, Teoría del Derecho y Dogmática Jurídica, p. 15-28 da edição espanhola. Também Was heisst Rechtspositivismus? e Positivismus und Jurisprudenz, respectivamente p. 166-175 e 159-165 da coletânea alemã, ou ¿Qué significa positivismo jurídico?, p. 52-65 da coletânea espanhola.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:31Comment: Nota o edtor: referência ao Capítulo IV.

por correspondência à contextualização da sociedade moderna e da sua vinculação

com a ciência. São considerados à luz do que o autor chama de civilização científica

(die wissenschaftliche Zivilisation)335.

As ambiguidades que constatamos no item II deste capítulo, seja do

ponto de vista terminológico, seja do ponto de vista teórico, podem ser

compreendidas, pois, como o resultado da ausência de um esclarecimento sobre a

relação entre a Jurisprudência como saber jurídico constante e a sua feição moderna.

Isso dificulta a análise de como Viehweg compreendia a relação entre os dois eixos

centrais de sua teorização – pensamento problemático e sistemático, e enfoque

dogmático e zetético – e nos coloca na impossibilidade de afirmar claramente como o

saber jurídico pode ser entendido contemporaneamente apenas a partir dos

pressupostos por ele colocados.

Se esta é a crítica que podemos fazer a Viehweg, também parece

razoável constatar que o cruzamento entre os eixos problema/sistema e

dogmática/zetética pode ser resolvido se optamos por entender, conforme fizemos,

que o autor estava utilizando a última distinção, tendo como pano de fundo a

prevalência do pensamento problemático, assim como sua vinculação à retórica e à

tópica. A intuição do autor torna-se, se assim entendida, extremamente relevante,

principalmente se observarmos as consequências que ganha na elaboração posterior

de outros autores, como é o caso de Ferraz Jr e seu modelo de discurso

fundamentante.

A discussão colocada nesse contexto permite fugir de visões

simplistas sobre o saber jurídico e acentua sua complexidade ao mostrá-lo em relação

com a decidibilidade e, ao mesmo tempo, com o saber científico. Ela permite, ainda,

evitar os impasses colocados pela concepção moderna de ciência que examinamos no

Capítulo II, ao ressaltar a vinculação situacional de todo pensamento, até mesmo do

científico336.

O modelo de discussão-com e sua possível identificação com o

discurso científico apenas fornece um caminho para verificar a especificidade que

335 Vide, a propósito, BALLWEG, Science, Prudence et Philosophie du Droit, op. cit., p. 543-546 e Rechtswissenschaft und Jurisprudenz, op. cit., p. 24 e ss. 336 Para essa discussão, vide PERA, op. cit., especialmente p. 31-128, e GROSS, op. cit., passim.

Alexandre Bomfim� 3. 29, 13 18:31Comment: Nota ao editor: referência ao Capítulo II.

esse tipo de discurso possui, inclusive em razão de sua função social na sociedade

contemporânea, sem colocar uma série de exigências ou requisitos metodológicos

externos ao comportamento dos partícipes. Ele vai ao encontro do pretendido por

Viehweg, se compreendermos, conforme nossa proposta, que o autor buscava, na

distinção entre dogmática e zetética enquanto enfoques, um modo diferente de tratar

a caracterização e as tarefas do saber jurídico.

Utilizar-se de um enfoque ou outro significa, no contexto que

traçamos, optar por recursos e técnicas que viabilizam a comunicação e o

entendimento entre os interlocutores, e ocorre como opção legítima dentro de uma

situação comunicativa.

A opção interpretativa que fizemos possibilita também uma maneira

menos dicotômica de encarar a racionalidade e a cientificidade a ela referidas. Nesse

sentido, ela reforça e repõe em um patamar mais adequado o propósito de Viehweg

de não considerar aquilo que é retórico algo irracional e o racional, a seu turno, algo

que pode ser demonstrado pelos meios da lógica formal, quando integra o discurso

científico na situação comunicativa e o vê como fruto da elaboração de partícipes

situados337.

A justificação das asserções feitas por esses partícipes situados no

decorrer do discurso é tomada, nessa linha de raciocínio, como elemento central da

nova ideia de racionalidade que se busca construir338.

337 Nesse sentido, vide, PERA, op. cit., especialmente p. 103-128. A proposta deste autor é precisamente desenvolver um modelo que permita compreender a especificidade do uso da retórica em discursos científicos, os quais se desenvolvem a partir do uso de meios indutivos, dedutivos e probabilísticos. Todas essas formas são, no entanto, utilizáveis para o convencimento dos partícipes da discussão e por isso são escolhidas tendo em vista os efeitos que podem produzir. A dialética é entendida pelo autor como essa lógica do uso retórico dos argumentos no debate científico, e ele sustenta (e demonstra-a com exemplos retirados de textos cientificamente reconhecidos como exemplares) a ideia de que somente podemos qualificar um argumento como válido logicamente ou como falacioso se o examinamos no debate. 338 Rui Grácio, examinando a proposta da nova retórica de Perelman para determinar o que pode ser entendido como “racionalidade argumentativa”, salienta uma ideia que auxilia a compreender a ligação entre a situação comunicativa, o dever de prova e a racionalidade: “Vai-se, assim, estabelecendo uma afinidade entre razão e justificação e, com isso, configurando uma nova idéia de razão menos apostada em empreendimentos marcados por pretensões excessivas e exorbitantes do que pautados pela moderação de um relativismo atento aos contornos mutáveis e situados a partir dos quais se exerce e é requerida a tarefa de justificar”. Cfe. GRÁCIO, Rui. Racionalidade Argumentativa. Porto: Asa, 1993, p. 44.

Mesmo procurando validade erga omnes, os enunciados só a obtêm

porque passaram pelo crivo do mútuo entendimento. Se isso aumenta a insegurança,

na medida em que parece colocar toda a responsabilidade naqueles que discutem,

também evita que caiamos no ceticismo que o racionalismo exacerbado acabou por

provocar em decorrência de suas dificuldades339.

Situar o conhecimento na sociedade significa compreendê-lo como

produto dessa sociedade, ao mesmo tempo que vemos nele uma influência poderosa

sobre a organização, os propósitos e as relações sociais. Nesse sentido, a distinção

entre pensamento dogmático e pensamento zetético retira a distância entre aquilo que

se faz com a intenção de modular comportamentos sociais de modo mais imediato e

as investigações de caráter mais reflexivo e menos comprometido, sem, contudo,

tratar esses dois modos de conhecimento como se não tivessem uma relação

intrínseca entre si. Afinal, como discutimos pormenorizadamente, o dogmatizado é

sempre fruto, direto ou indireto, de um questionamento zetético340.

A outra vantagem decorrente da abordagem que analisamos,

específica para nossa área de estudo, é a de que o saber jurídico não precisa ser

compreendido como um saber menor ou justificar-se pela sua não cientificidade. A 339 Essa parece ser também a opinião de alguns filósofos e teóricos contemporâneos da ciência. Pera, por exemplo, afirma claramente que o modelo dialético que procura elaborar tem precisamente a vantagem de tornar a ciência mais humana, livrando-a do papel de responder a tudo, mas resguardando-lhe a especificidade da busca por respostas aos questionamentos do homem sobre a vida e a natureza. Nesse sentido, diz o autor: “The other advantage of the dialectical project is cultural. Taken as an ideology (scientism), the image of science as demonstration has given rise to the romantic complaint that knowledge sets us apart from reality and life. The image of science as a ‘conceptual grid’, a ‘form of culture’, or ‘will to power’ now risks producing another ideology (something like the ‘indifferentism’ concerning metaphysics denounced by Kant) and another complaint – that science does not even know what it claims to know. The dialectical model may do better: it may help us put science in a more human light, come to understand its place between culture and nature, and appreciate it for what it can give, without blaming it for what it cannot offer”. PERA, op. cit., p. 11-12. 340 Nesse sentido, são interessantes os pressupostos que Ferraz Jr. elenca para sua investigação da função social da dogmática jurídica e que podem ser sinteticamente resumidos nos seguintes termos: o conhecimento é visto como atividade capaz de servir de mediação entre os dados da realidade e a resposta comportamental do indivíduo. “Neste sentido, o conhecimento gera expectativas cognitivas, que são estruturas adaptativas destinadas a diminuir ou controlar a angústia humana perante a complexidade social. As sínteses significativas da ciência, de um modo geral, garantem a segurança e a certeza de expectativas sociais”. O conhecimento, imerso no social, processo e produto ao mesmo tempo, não é apenas logicamente determinado, dispondo de uma margem de indeterminação e variabilidade, em relação à qual a distinção entre conhecimento verdadeiro e falso torna-se, até certo ponto, irrelevante, porque qualquer conhecimento é uma estruturação da realidade. “A ciência, nestes termos, é vista como uma das agências de socialização, pois permite a integração tanto do homem em um universo coerente, quanto de toda a sociedade”. Cfe. FERRAZ JR., Função Social da Dogmática Jurídica, op. cit., p. 09-10.

estrutura de discurso que lhe é peculiar e que mostra ao mesmo tempo toda a sua

complexidade, não é nem melhor e nem pior do que qualquer outra. Avaliá-la em sua

integralidade, enquanto dogmática e enquanto zetética, pode nos auxiliar,

sustentamos, a compreender melhor o fenômeno que estudamos.