a estética de theodor adorno e walter benjamin

21

Click here to load reader

Upload: leandro-lopes-dos-santos

Post on 23-Nov-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

"J no se sonha mais com a flor azul" A esttica de Theodor Adorno e Walter Benjamin

Jos Manuel Silva

Fevereiro de 1997

A citao de Walter Benjamin que d o ttulo ao presente trabalho servir de mote na discusso mantida em torno da obra de arte na contemporaneidade. O facto novo que aqui emerge viver-se numa era que pulverizou por completo os modelos e categorias antigas do Belo, devido assuno do conceito de "reprodutibilidade tcnica" que integra a obra esttica na esfera industrial da cultura. Perante uma poca que tem como nica certeza o seu fim, lcito perguntar, maneira kantiana, "O que podemos esperar?" e "O que devemos fazer a seguir?". As respostas a estas questes sero procuradas, sobretudo, na fecundidade das divergncias entre Theodor Adorno e Walter Benjamin, representantes mximos da Escola de Franckfurt. A busca aqui proposta prende-se com a ideia de que Adorno, ao assumir como princpio da sua crtica a no identidade entre razo e real, leva at ao fim uma dialctica negativa de onde no se pode escapar, enquanto Benjamin assimila e transforma toda esta negatividade em admirveis mundos novos, infinitamente geradores de possibilidades e fascnio. Se aceitarmos a noo de que Hegel foi "o inventor de um triciclo a que chamaram dialctica"(Melo, 1977: 16), podemos dizer que na teoria adorniana falta uma das rodas ao veculo a "sntese" sempre impossvel de alcanar. Para Adorno, a transformao que ocorre no universo da cultura d-se como um acidente repressivo, e a razo a s pode erigir-se como negatividade. Este percurso de crtica do pensamento moderno sobre si prprio levado por Adorno a formas paroxsticas, que esto patentes no paradoxo da razo que intenta refutar a prpria razo. O nico sentido da crtica, e que permite razo no se transformar em anti-razo, o carcter no conclusivo de uma reflexo dialctica que no cessa de recolocar em questo os seus prprios resultados. Esta , alis, a fora do pensamento adorniano. Ora esta profunda negatividade, a que subjaz, evidentemente, o colapso da razo que se esmaga sobre si prpria nas suas investigaes, desvanece-se no pensamento de Benjamin, e aquilo que para Adorno era considerado "o retorno barbrie", constitui neste ltimo mais uma fonte de esperana, mais um caminho que pode vir a ser trilhado pelo homem nas novas formas de arte que esto ao seu dispor. Como se sabe, a questo esttica, desde que Scrates respondeu a Hpias que "o Belo no era um atributo particular de mil e um objectos; sem dvida, homens, cavalos, vesturio, virgem ou lira so coisas belas; mas acima de tudo isso, existe a Beleza em si" (Huisman, 1984: 16), acompanhou para sempre o homem. Plato, discpulo de Scrates, d os primeiros passos na busca deste Belo. No Fdon, o filsofo grego diz que na origem de toda a beleza deve haver "uma primeira beleza que pela sua presena torna belas as coisas que designamos por belas, qualquer que seja o modo como se faz essa comunicao"(Huisman, 1984:17), e s pela ascese dialctica que ascenderemos amorosamente a esse cume ideal do mundo das ideias, onde o perfeito Belo resplandece. Muitos sculos passaram at que se despertasse deste sonho dogmtico de existncia de um belo-em-si, e para tal foi preciso esperar pela figura tutelar de Kant, que na "Crtica do Juzo Esttico" pretende "superar a antinomia fundamental entre a ideia de um gosto subjectivo, imbudo do que a sensibilidade comporta de contigncia, particular e arbitrrio, e a ideia de um gosto universal e necessrio. Entre estes dois plos, o gosto ficava apenas reduzido ou a um prazer ou a um juzo" (Huisman, 1984: 36). Para o filsofo alemo, o gosto j no apenas um juzo do sentimento, tambm um sentimento do juzo, tornando-se, pois, um universal necessrio e afectivo. O sistema kantiano, profundamente influenciado pelos alvores do Iluminismo, vem demonstrar que " permitido determinar, por conceitos a priori, a relao de um conhecimento que no provm nem da razo pura prtica nem da razo pura especulativa, mas da faculdade de julgar proveniente do sentimento do prazer ou do desgosto" (Huisman, 1984: 36). No interior da "Crtica do Juzo Esttico" , a sua Analtica compe-se de quatro momentos essenciais para a compreenso dos traos estticos fundamentais do pensamento kantiano. Assim, num primeiro momento, considerado o da qualidade, ao comparar as formas de satisfao esttica do gosto, do agradvel e do Bem, Kant infere que "o gosto a faculdade de julgar um objecto ou um modo de representar pela satisfao ou desprazer de forma inteiramente desinteressada. Designa-se por Belo o objecto dessa satisfao" (Huisman: 1984:38). O segundo momento do esquema kantiano, conhecido pelo da quantidade, ir deduzir que a categoria da beleza representada "sem conceito" como "objecto de uma satisfao necessria" definindo-se assim o Belo como "aquilo que agrada universalmente sem conceito". No passo seguinte, o da relao, Kant vai mostrar que o juzo do gosto repousa em princpios a priori e totalmente independentes de conceitos como a atraco, a emoo, e a perfeio, propondo em princpio o ideal de beleza "pelo acordo mais perfeito possvel de todos os tempos e de todos os povos" cerca "das produes exemplares". Kant retira daqui a concluso de que a beleza se manifesta como "a forma da finalidade de um objecto enquanto percebida sem representao de fim" . Por ltimo, o momento do juzo do gosto, segundo a modalidade, vem salientar que "a necessidade do contentamento universal concebido num juzo de gosto uma necessidade subjectiva, na suposio de um senso comum", definindo o Belo a partir deste momento como "aquilo que reconhecido sem conceito como o objecto de uma satisfao necessria" (Huisman, 1984: 39). Este uso da Razo para a compreenso do fenmeno esttico, apesar de duramente criticado por Adorno, traz na sua gnese o fermento daquilo que se vai passar nas primeiras dcadas deste sculo. Desejando-o ou no, Adorno na sua Teoria Esttica, ltima obra da sua vida, para rebater as propostas de Kant vai utilizar o mesmo instrumento que este ltimo usou: a Razo. Adorno no deixa, no entanto, de admirar o edifcio kantiano, pois segundo as suas palavras "Kant foi o primeiro a adquirir o conhecimento, ulteriormente admitido, segundo o qual o comportamento esttico est isento de desejos imediatos; arrancou a arte ao filistinismo voraz, que continua de novo a toc-la e sabore-la" (Adorno, 1970: 21). Adorno discorda, por completo, da assuno kantiana da ideia de "satisfao desinteressada". Nesta questo, o homem da Escola de Franckfurt sublinha que "a satisfao desprovida deste modo do que em Kant se chama o interesse, torna-se satisfao de algo to indefinido que j no serve para nenhuma defeinio de Belo" (Adorno, 1970: 21). A doutrina da satisfao desinteressada pobre perante o fenmeno esttico, at porque visa reduzi-lo "ao belo formal, sobremaneira problemtico no seu isolamento". Adorno, imbudo que est da sua crtica dialctica, guisa de explicao refere que Kant ao realar a diferena entre a arte e a faculdade de julgar valida consequentemente a diferena entre a arte e a realidade emprica, "mas no a idealizou sem mais: a separao da esfera esttica em relao empiria constitui a arte. No entanto, Kant fixou transcendentalmente esta constituio, em si mesma algo de histrico, e, mediante uma lgica simplista, equiparou-a essncia artstica, sem se preocupar com o facto de que as componentes da arte subjectivamente pulsionais retornam metamorfoseadas na sua forma mais pura, que as nega" (Adorno, 1970: 22). A Teoria Esttica adorniana tambm no passou inclume s crticas dos seus pares e Peter Brger, num artigo publicado na Revista de Esttica, a propsito da figura de Adorno, d conta de alguns exemplos significativos: "On lui reproche davoir rduit lart au denominateur commun de la ngativit et de lavoir amput de sa fonction de communication, on dcouvre le caractre thologique sous-jacent dune esthtique qui oppose lart la ralit comme son autre". Esta ideia de uma esttica que ope a arte realidade como seu "autre" est bem patente nas palavras dirigidas a Kant quando Adorno afirma que "ao que desprovido de interesse deve juntar-se a sombra do interesse mais feroz, se pretende ser mais do que simples indiferena; muitas coisas provam que a dignidade das obras de arte depende da grandeza do interesse a que so arrancadas. Kant nega isto por causa de um conceito de liberdade, que pune com a heteronomia o que nem sempre prprio do sujeito (...) Por conseguinte, em conjunto com aquilo de que ela brotou antiteticamente, a arte fica amputada de todo o contedo e supe-se no seu lugar um elemento to formal como a satisfao. Bastante paradoxalmente, a esttica torna-se para Kant um hedonismo castrado, prazer sem prazer, com igual injustia com a experincia artstica, na qual a satisfao actua casualmente e de nenhum modo a totalidade" (Adorno, 1970:22). Nesta abordagem sumria, onde o vigor da crtica adorniana se manifesta em tudo onde repousa os seus olhos, como uma espcie de frmito desmedido e paradoxal, pois pode falar-se de uma paixo devoradora pela Razo, encontram-se algumas pistas sobre o cerne do assunto que se prope, a partir deste momento, colocar em discusso. Tendo sempre como pano de fundo os textos de Theodor Adorno sobre a "Indstria da Cultura"; e de Walter Benjamin a propsito da "Obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica", seguir-se- no um caminho directo e de sentido nico, mas alguns outros trilhos situados nas suas margens, que em aproximaes sucessivas e graduais, serviro como pontes de passagem para o interior fulgurante destas duas personagens que marcaram, indelevelmente e cada um sua maneira, o pensamento contemporneo. Sendo os homens, em grande medida, aquilo que as suas vidas deles fazem, nada melhor do que partir descoberta destas personagens atravs das suas histrias pessoais, tantas vezes cruzadas, mas que nunca obliteraram uma independncia intelectual que constituia, para ambos, ponto de honra.

A Criana e o Mestre

Se no soubessemos que Benjamin era 11 anos mais velho que Adorno e que este ltimo foi, sem margem para dvidas, "o primeiro e nico discpulo de Benjamin" (Arendt, 91: 178), obteriamos da relao entre ambos uma imagem distorcida. Pelas epstolas trocadas entre dois, sempre Adorno quem assume o papel do velho mestre, constantemente pronto a proteger, sempre presente quando Benjamin encontrava na sua vida "o senhor desajeitado", sempre pronto "a mandar-lhe cumprimentos" (Arendt, 91 : 187). O velho mestre seguia de longe os acontecimentos, sorrindo com as traquinices do "discpulo", outras vezes amargurado quando julgava que essas tropelias tinham a ultrapassado as marcas; usando muitas vezes palavras severas, para o chamar razo. "A discussion of the Adorno/Benjamin debate will not necessitate abandoning the main thesis, but only demonstrate the dialectics of their friendship" (Buck-Morss, 1977: 139). A nova orientao poltica marxista de Benjamin, ligada sua paixo antiga pela mstica judaica, explica que "unique among his friends, only Adorno really suported Benjamins efforts to incorporate both poles" (Buck-Morss, 1977: 141). Mas toda a pacincia tem limites e o caso muda de figura quando Benjamin descobre o surrealismo, tornando-se amigo de Brecht, um homem que Adorno pura e simplesmente detestava: "When Benjamin had found in surrealism an aesthetic model for his theological impulse which he now understood as profane illumination, Adorno referred to such illumination as negative, or inverse theology, equating it with aesthetic experience" (Buck-Morss, 1977: 141). Benjamin tem perfeita conscincia da sua dualidade terica e refere-se a ela como a sua "Janus-face". Esta herclea tarefa de unir aquilo que no se pode juntar considerada uma "intellectual schizophrenia [wich] repeatedly exasperated Adorno, whose own notion of profane illumination was to extrapolate out of the extremes of theology and Marxism to the point where they could be shown to converge, rather than simply to present these two poles in unmediated juxtaposition" (Buck-Morss 1977: 141). Apesar deste permanente desacordo entre Adorno e Benjamin, o primeiro sempre alimentou a esperana de salvar o nufrago que julgava deriva num mar de iluses. O prprio Benjamin, extremamente lcido, como era o seu timbre, tambm tem essa imagem de naufrgio iminente, e numa carta de 1931 dirigida a Gerhard Scholem, d conta da sua situao desesperada, escrevendo: "Como nufago que se mantm tona trepando a um mastro j vacilante. Mas da tem a oportunidade de lanar um sinal, pedindo socorro" (Arendt, 91: 199). "During all of their disagreements Adornos persistent goal was to rescue Benjamin from what he considered the Scylla of Brechtian materialism on the one hand, and the charybdis of Judaic theology on the other" (Buck-Morss, 77: 141). Adorno responde sempre chamada, mas os motivos so sempre diferentes dos de Benjamin. Para um entendimento mais preciso destas duas fortes personalidades, retratar-se- de seguida algumas divergncias de pensamento e de atitudes que os vo colocando em campos opostos, por vezes mesmo extremados.

O homem da instituio versus o "flneur"

O Instituto de Pesquisa Social a casa de Adorno. Ele e Max Horkheimer fundam os alicerces de uma Teoria Crtica da Sociedade, que mesmo exilada nos Estados Unidos, se ir manter bem viva at ao incio da dcada de 60. A natureza adorniana no de modo algum expansiva, e quando muitos intelectuais aderiam entusiasticamente ao Partido Comunista, Adorno, um marxista convicto, colocou sempre reservas em envolver-se no pulsar da vida poltica do seu tempo. Esta atitude manteve-se ntegra ao longo do seu percurso pessoal, criando dissabores aos esquerdistas da dcada de 60, que j o viam como um "pai" e um lder natural do movimento contestatrio que surgia um pouco por toda a Europa. Contudo, esta sua natural reserva e distanciamento leva, rapidamente, ao desapontamento generalizado e criao de suspeitas em seu redor, tornando-se Adorno, sem o ter desejado, "the most controversial theoretician of the German New Left" . Controverso como era no interior da nova esquerda germnica, muito natural que o percurso de crtica do pensamento moderno sobre si prprio que constri, apesar de ter sido discutido ao longo do sculo, permanea, no entanto, numa zona de penumbra. O prprio Adorno no favorece de todo uma ampla expanso das suas ideias e dos seus textos, tanto dentro do quadro alemo, como no perodo de exlio na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde a sua figura sempre se manteve afastada dos circuitos visveis da fama. Bem distinta a vida e o percurso pessoal de Walter Benjamin. O mnimo que se pode dizer que se trata de um homem fascinado. Como todos os seus quadros de referncia, atitudes e comportamentos pertencem ao sculo anterior, esta personagem parece ter sido deslocada repentinamente para este sculo, sentindo-se maravilhada com o que estava a acontecer num mundo totalmente novo, digno de todas as exploraes. Neste estranhamento poder-se- filiar o seu pensamento inconstante, desconcertante por vezes. As suas paixes intelectuais revelam bem este "flirt" pelas coisas, num eterno deambular procura de algo, algo que Benjamin muitas vezes se apercebia no ser o essencial, mas sim um caminho percorrido que o levava aos mais estranhos recnditos da experincia humana. Por isso, os seus bigrafos tm dificuldade em o descrever, e a nica forma encontrada para chegar at este autor passa por uma srie "de afirmaes negativas" que escapam s nossas referncias habituais. "A sua erudio era grande, mas ele no foi um erudito; o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretao, mas no era um fillogo; sentia-se extremamente atrado, no pela religio, mas pela teologia e pelo tipo de interpretao teolgica segundo o qual o prprio texto sagrado, mas no era telogo e no manifestou especial interesse pela Bblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambio foi criar uma obra exclusivamente composta de citaes; foi o primeiro alemo a traduzir Proust e Saint-John Perse, e j antes disso traduzira os Tableaux Parisiens de Baudelaire, mas no era um tradutor; fazia recenses crticas de livros e escreveu um livro acerca do barroco alemo e deixou inacabado um enorme estudo sobre o sculo XIX francs, mas no era um historiador da literatura; (...) ele pensava poeticamente mas no era poeta nem filsofo" (Arendt, 91: 180). Esta larga passagem de Arendt traduz uma personalidade multifacetada, que se dava bem pelas margens do pensamento contemporneo, apesar de reconhecer os perigos que podiam advir dessa situao incmoda e ser um desastre em interpretar esses sinais, como a catadupa de infortnios ocorridos na sua curta vida o prova. Benjamin nunca pertenceu verdadeiramente a nenhuma escola de pensamento, e manteve-se ligado ao Instituto de Franckfurt sempre por laos muito tnues e fracos. No entanto, era um homem de amizades que correspondiam sempre s suas motivaes intelectuais. Na esteira do que foi dito, de fcil compreenso os rancores mudos que esta inusitada figura, sem se aperceber de nada, criava sua volta. Sem mexer um dedo para evitar desastres iminentes e perfeitamente previsveis, transmitia sempre a impresso, nas suas aces, de que estava a fugir deles. Walter Benjamin tinha inculcada at medula o esprito das errncias. " ao flneur, vagueando sem rumo por entre a multido das grandes cidades, em oposio deliberada sua actividade febril e utilitria, que as coisas revelam o seu sentido ntimo (...), e s o flneur, na sua errncia descuidada, consegue captar a mensagem" (Arendt, 91: 190-191). O fascnio pelas passagens de Paris, que o autor descobre ainda novo, no mais desaparece, e nada melhor que a figura do "flneur" para viajar atravs "das fachadas uniformes, limitando as ruas como paredes interiores, que fazem uma pessoa sentir-se fisicamente mais resguardada nesta cidade do que em qualquer outra" (Arendt, 91: 201), comenta um Benjamin assombrado. "As passagens que ligam entre si os grandes boulevards e oferecem um abrigo contra as intempries exerceram sobre Benjamin um to extraordinrio fascnio que ele se referia grande obra que projectava escrever sobre o sculo XIX e a sua capital chamando-lhe simplesmente As Passagens" (Arendt, 91: 201). Este andar deriva de Benjamin, que irritava de sobremaneira Adorno e que era considerada por este como uma pura perda de tempo, traz na sua gnese a prxima divergncia entre os dois autores.

A dialctica negativa versus o mundo das aparncias

A crtica adorniana, profundamente racionalista, tem nos seus limites um exerccio de dialctica negativa que leva refutao da razo, refutao essa levada a cabo pela prpria razo. Como horizonte de reflexo, cada vez mais abstractizada, est o fenmeno cultural contemporneo. Esta cultura, na viso de Adorno, enformada pelo fenmeno de emergncia das massas, que ganha expresso em todos os campos da actividade humana, seja ela poltica, econmica ou social. Aliado a esta massificao est um poderoso processo de alta tecnologizao, que se expande dos processos materiais para atingir os processos de reproduo simblica, e assim o nvel individual tambm duramente violentado. A ideia de separao das esferas material e simblica estilhaa-se devido ao consumismo cultural. Tudo se torna uniforme e Adorno onde Benjamin se maravilhava com a intensa diversidade que a tecnologizao da cultura traz no seu seio apenas encontra uma trgica semelhana que se apega a todas as coisas tentando devor-las. Da o seu espanto, e a crtica a Benjamin pela sua "descrio meticulosa dos pormenores factuais". "Quanto mais pequeno o objecto, mais susceptvel lhe parecia de conter, sob a forma mais concentrada, tudo o resto" (Arendt, 91: 190), como se o mundo fosse um imenso fractal desdobrando-se infinitamente sobre si prprio. O fascnio benjaminiano, ao contrrio do que sucedia com Adorno, nunca foram as ideias, mas sempre o fenmeno. Nas palavras de Benjamin, isto assim sucede porque "o que me parece paradoxal em tudo quanto justificadamente dizemos belo o facto de se manifestar no mundo das aparncias" (Arendt, 91: 190). A bigrafa chama a este paradoxo "o prodgio da apario", que esteve sempre na base de todas as suas deambulaes. Mesmo a paixo de Benjamin pela dialtica sofre destes estmulos encantatrios das coisas. Curiosa a crtica de Adorno a esta excentricidade, que apelidada de "no dialtica", pois que se move num quadro de "categorias materialistas que de modo algum coincidem com as marxistas". Benjamin, que chegou a pensar em aderir ao Partido Comunista seria talvez o marxista mais singular de toda a histria. Pouco preocupado com o edifcio conceptual de Marx, era atrado, no entanto, pela doutrina da superstrutura, uma pequena franja do pensamento marxista e a que o prprio Marx dedicou poucos pargrafos, sendo certo que s muitas dcadas depois tal conceito viria a transformar-se na coqueluche e deleite da inteligentzia dos anos 60. Mas "Benjamin apenas se serviu desta doutrina enquanto estmulo heurstico-metodolgico, pouco ou nada se interessando pelo seu pano de fundo histrico ou filosfico. O que o fascinou foi o facto do esprito e a sua manifestao material estarem to intimamente ligados que parecia possvel descobrir em toda a parte as correspondances baudelairianas, cujo poder de se clarificarem e iluminarem umas s outras quando devidamente correlacionadas, acabaria por dispensar, em ltima anlise, todo e qualquer comentrio interpretativo ou explicativo" (Arendt, 91: 189). Como evidente, esta atitude escapa a qualquer quadro de referncia dialtico e Adorno critica este "elemento esttico" do pensamento benjaminiano. Adorno vai mais longe e salienta que "para se compreender correctamente Benjamin h que descortinar por trs de cada frase a converso da mais extrema agitao em algo esttico, que afinal a noo esttica do prprio movimento". Benjamin no se interessava minimamente por teorias ou "ideias" que de imediato no assumissem a forma exterior, da que o seu pensamento "no visava nem podia traduzir enunciados irrefutveis e universalmente vlidos; estes eram substitudos, como Adorno observa em tom de crtica, em enunciados metafricos" (Arendt, 91: 191) . Por isso, voltando de novo teoria da superstrutura, bem de ver que Benjamin no tinha qualquer dificuldade em entend-la "como a doutrina definitiva do pensamento metafrico precisamente porque estabelecia com toda a naturalidade, e evitando qualquer espcie de mediaes, uma relao directa entre a superstrutura e a chamada infra-estrutura material, que para ele equivalia totalidade dos dados da experincia sensvel" (Arendt, 91: 193). Deste fascnio pela forma exterior das coisas, nasce uma nova divergncia com o pensamento adorniano, a partir da aproximao de Benjamin ao surrealismo, sobretudo quando encontra na sua vida uma figura como a de Bertolt Brecht. Os seus dois amigos de sempre Adorno e Scholem sobre este encontro apenas referem a "influncia desastrosa" de Brecht em Benjamin.

Anti-vanguardismo versus Surrealismo

Theodor Adorno, na sua Teoria Esttica, d uma imagem terrvel do que a arte nos dias de hoje. A uniformizao da indstria cultural permitiu "a supresso da diferena entre o artista como sujeito esttico e o artista como pessoa emprica" (Adorno, 70: 283) e implicou que "a distncia da obra de arte empiria foi suprimida sem que, no entanto, a arte tenha sido restituda vida livre que no existe. A sua proximidade intensifica o lucro, a imediaticidade organizada para enganar" (Adorno, 70: 283). Para Adorno, at os movimentos vanguardistas fazem este "engano das massas" quando pretendem "assinalar arte, terica e at mesmo praticamente, o seu lugar na sociedade". que depois da arte ter sido reconhecida como um facto social igual a tantos outros, "o complemento do lugar sociolgico sente-se-lhe, por assim dizer, superior e dispe dela". Por isso que "as perturbaes vanguardistas das reunies da vanguarda esttica so to ilusrias como a crena de que elas so revolucionrias e que a revoluo uma forma de belo: a amusia no se situa por cima, mas abaixo da cultura, e o engagement muitas vezes no seno falta de talento ou concentrao, um abrandamento da fora" (Adorno, 70, 283). Peter Brger, num artigo intitulado "Lanti-avant-gardisme dans lesthtique dAdorno" refere que "lattaque dirige par les mouvements davant-garde contre le statut dautonomie de art (...) ne peut tre interprte par Adorno que comme un pseudo-dpassement de lapparence esthtique, et non pas comme le lieu historique dun renversement qui permettrait de penser les contradictions de lart au sein de la socit bourgeoise". neste ponto que reside o anti-vanguardismo de Adorno que, tal como um guardador de margens, quer salvar a esfera da arte: "Contre les tendances conduisant une dissolution de lart en actions (dadasme), expression (expressionisme), rvolution de la vie quotidienne (surralisme), Adorno veille ce que la frontire ne soit pas viole, frontire qui dlimite la sphre de lart. Parce quil ne considre pas que la tentative dune rinsertion de lart dans la vie quottidienne soit une tape ncessaire linterieur de la socit bourgeoise, et quil y avoit au contraire um retour la barbarie, sa critique des catgories de lesthtique idaliste aboutit finalement leur sauvegarde" (Burger: 85, 90). Podemos afirmar que a esttica adorniana acaba por ser uma esttica saudosstica, que vive obcecada com a ideia de reconciliao do homem com a natureza, com a ideia platnica que o homem busca qualquer coisa de essencial que perdeu. Para Plato a arte era algo de dispensvel e nocivo, porque simulacro, imitao inferior da realidade. Para Adorno as vanguardas, e em geral toda a arte praticada no seu tempo, era dispensvel e nociva, porque simulacro no j inferior mas hiper-real e simulacro ao servio de um projecto de dominao e embrutecimento do homem. Como tal, a nostalgia platnica das formas puras no encontra qualquer justificao para estas novas formas de arte: "Lutopie renouvele et actualise dans le contexte des mouvements davant-garde, selon laquelle tous devraient pouvoir spanouir en produisant librement, nest pas dvoloppe par Adorno parce que son esthtique est centre sur le concept de la grande oeuvre dart qui garantit la prennit de lartiste" (Burger, 1985: 93). Pelos mesmo motivos que Adorno se afasta dos movimentos vanguardistas, que Benjamin se aproxima firmemente do surrealismo como modelo esttico a seguir. "Com Brecht [Benjamin] podia praticar aquilo a que o prprio Brecht chamava pensamento bruto" A ideia era para Brecht "aprender a pensar em bruto. O pensamento em bruto o pensamento dos grandes" e Benjamin conclui que "para muita gente, um dialctico um amador de subtilezas... Mas a verdade que os pensamentos em bruto devem fazer parte integrante do pensamento dialctico, pois no so mais do que a referncia da teoria prtica... S o pensamento em bruto pode afirmar os seus direitos no campo de aco" (Arendt, 91: 194) . E no surrealismo que Benjamin vai encontrar este campo de aco posto a descoberto pela nova tcnica artstica escrita automtica, ready-made, cadveres esquisitos imprimida pelo pensamento em bruto. Mais ainda, "It was the artistic technique of surrealism that fascinated Benjamin. Surrealist art portrayed everyday objects in their existing, material form (in this literal sense surrealist fantasy was exact), yet these objects were at the same time transformed by the very fact of their presentation as art, where they appeared in a collage of remote and antithetical extremes. Prototypical of Benjamins dialectical images, surrealist atwork illuminated unintended truth by the juxtaposition of two distant realities from wich sprang a particular light..., the light of the image" (Buck-Morss, 77: 125). Em Benjamin a funo cultural da arte tradicional termina e em seu lugar surge uma arte enrazada na praxis. O valor regulativo que nos diz o que a arte o seu valor expositivo e j no o seu valor cultural. O valor no est na obra em si mas na obra que se mostra, que se d a ver. Por isso, para Benjamin fabuloso que a flor azul deixe de ser sonhada, pois atravs da tcnica agora colocada disposio de todos, e todos podem v-la, toc-la, e se possvel cheir-la. a flor azul, alis, que conduz este trabalho para os textos sobre a questo esttica de Adorno e Benjamin. fcil imaginar o fascnio de Benjamin, e a negatividade de Adorno, volta da flor azul. Para o primeiro ela seria to mais perfeita quanto maiores fossem as possibilidades de reprodutibilidade tcnica que oferecesse. Poder ser grande injustia diz-lo, talvez Benjamin tivesse olhos mais virgens, mas a imagem que isto irremediavelmente evoca a do ramo kitsch, de plstico, repetido ad nauseam num qualquer hipermercado (hipermercado que, como na imagem do fractal, tambm se repete infinitamente, em progresso geomtrica e imparvel). Para Adorno, pelo contrrio, a flor algo que se sonha e que se busca, e nesse sentido um objecto raro e de uma delicadeza difana, como se possuisse asas translcidas e por isso constantemente se escapasse. preciosa e rara como um perfume talvez at exista to s apenas o perfume que embriaga despertando o desejo mais intenso, mas ao mesmo tempo volatiliza-se, permanecendo inacessvel captura e posse. Adorno to vago nos seus textos de esttica, que poderiamos dizer que para ele talvez nem sequer exista flor azul, s a ideia, a nostalgia de um perfume.

Sob o signo tentacular da dominao

Na sua anlise sobre as Indstrias da Cultura, Adorno coloca o acento problemtico na figura do indivduo ameaado pelo poder da tcnica sobre a sociedade. E se "a racionalidade da tcnica hoje a racionalidade da prpria dominao" (Adorno, 85: 114), ento conclui-se que " o poder dos economicamente mais fortes que se faz sentir sobre a sociedade". Os gostos so padronizados , a produo em srie faz com que "a flor azul" no tenha uma ptala fora do estribilho que a uniformizao. At porque "se tudo vem da conscincia", ento "na arte para as massas vem da conscincia das equipas de produo" (Adorno, 85:117). Os prprios meios audio-visuais, que tentam oferecer uma diversidade de escolhas, no esto mais do que "a aumentar o empobrecimento dos materiais estticos, a tal ponto que a identidade mal disfarada dos produtos da indstria cultural pode vir a triunfar abertamente j amanh -- numa realizao escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total" (Adorno, 85: 116). A tese adorniana que aquilo que se d a ver como diversidade no passa de uma mera aparncia, e o que realmente sucede de facto, com a chegada das indstrias culturais, a introduo de uma marca identificativa que constitui a uniformizao. Isto significa que o sujeito j recebe o objecto com as marcas, os signos de como h-de ser percebido, e portanto, face a ele, totalmente passivo nada retira do objecto, porque tambm nada lhe d, e j perdeu h muito a capacidade de sonhar. Estes sinais so para Adorno to visveis nos regimes ditatoriais como nos ditos democrticos: em ambos o autoritarismo que marca a sua presena, distinguindo toda a cultura de massas como idntica. Descobre Adorno esta uniformidade na falsa identidade entre o universal e o individual que os poderes de dominao institudos gostam de apregoar aos quatro ventos. Nessa aparente diversidade esconde-se a marca organizadora: o dinheiro. Este, para alm de ser um instrumento econmico, vai conformar um corpo social, impondo to s uma nica regra: dar a aparncia de que esse corpo se organiza de acordo com a liberdade de cada um. Nada no campo cultural escapa a esta totalidade, alis, a que surge uma dominao mais refinada, sustentculo de todo o edifcio de dominao, e por isso o mundo inteiro v-se na contingncia de ser "forado a passar pelo filtro da indstria cultural". Esta desenvolveu-se a partir de um "predomnio que o efeito, a performance tangvel e o detalhe tcnico alcanaram sobre a obra, que era outrora veculo da Ideia e com essa foi liquidada (...) A tudo isto deu fim a indstria cultural mediante a totalidade. Embora nada mais conhea alm dos efeitos, ela vence a sua insubordinao e os submete frmula que substitui a obra"(Adorno, 85: 118). A obra de arte enquanto construo desaparece, restando apenas um produto sincrtico, j preenchido tecnicamente, numa totalidade que vai distribuindo os elementos mediante as possibilidades reais de cada tcnica, prefigurando as prprias partes que a compem. O artista, na era da indstria cultural, no passa de um simulacro, uma figura anacrnica, onde j no se pede, na sua interveno, um confronto com os materiais. Tudo j est previamente programado e nada escapa a este olho ciclpico da cultura. A necessidade de criao esvai-se numa injunco de tcnicas prvias que tornam este trabalho uma mera imitao de modelos, numa espcie de sucedneo da identidade. "A indstria cultural acaba por colocar a imitao como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai o seu segredo, a obedincia hierarquia social. A barbrie esttica consuma hoje a ameaa que sempre pairou sobre as criaes do esprito desde que foram reunidas e neutralizadas a ttulo de cultura" (Adorno, 85: 123). Tal como Plato, portanto, precisamente o facto de a arte ser ou, para Adorno, se ter tornado, simulacro, que criticado. Nesta completa desvirtuao da obra, o lugar interrogao desaparece, restando apenas as piruetas tcnicas de uma arte que se ri de si prpria. Para que este absoluto imitativo possa funcionar tem de excluir-se deste universo o novo, e nisso a indstria cultural imbatvel, sabe muito bem como o repelir: "Nada deve ficar como era, tudo deve estar em constante movimento. Pois s a vitria universal do ritmo da produo e da reproduo mecnica a garantia de que nada mudar, de que nada surgir que no se adapte. O menor acrscimo ao inventrio cultural comprovado um risco excessivo" (Adorno, 85: 126). Este novo , no entanto, reclamado pelas formas de arte emergentes desta era da tecnologizao, mas tal facto sinal de que "a arte renega a sua autonomia, incluindo-se orgulhosamente entre os bens de consumo, que lhe confere o encanto da novidade" (Adorno, 85: 147). O ciclo fecha-se e na indstria da cultura o valor de alguma coisa est na possibilidade da sua troca, nada no seu interior existe em si mesmo se no se obtiver da algum lucro. O prprio valor de uso da obra de arte, que o seu ser mais ntimo, considerado a partir de agora "como um fetiche, e o fetiche, a avaliao social que erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte - torna-se o seu nico valor de uso, a nica qualidade que elas disfrutam" (Adorno, 85: 148). O filsofo da Escola de Franckfurt remata a sua ideia concluindo que "a arte como um gnero de mercadoria, que vivia de ser vendida e, no entanto, de ser invendvel, torna-se algo hipocritamente invendvel, logo que o negcio deixa de ser meramente a sua inteno e passa a ser o seu nico princpio"

O fascnio da infinita reprodutibilidade

Estas linhas de fora postas no ensaio "Indstria Cultural" prenunciam j o modo crtico como Adorno ir receber o texto de Walter Benjamin sobre "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica". O prprio Benjamin tambm no estaria a contar com uma boa recepo. Apesar de estar "clearly excited about the piece, believing it would be an important theoretical contribution to the debate on Marxist aesthetics going on among artists and literary figures both inside and outside the Communist Party in Europe during the thirties" (Buck-Morss, 77: 146), adiou por largos meses o envio da cpia do manuscrito a Adorno e, finalmente, quando se decidiu "the response, when it came, was critical". At porque no podia ser de outra maneira. Os temas tratados aproximavam-se demasiado do prprio trabalho de Adorno "for the points of difference no to be abrasive" (Buck-Morss, 77: 147). Benjamin inicia o texto tomando, desde logo, o conceito da superstrutura de Karl Marx, para com ele empreender o caminho em torno das recentes transformaes da cultura. "A transformao da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infra-estrutura, necessitou de mais de meio sculo para tornar vlida a alterao das condies de produo, em todos os domnios da cultura" (Benjamin, 92:73). Os propsitos do trabalho so anunciados no prlogo: "Os conceitos seguidamente introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados para fins fascistas. Pelo contrrio, so aproveitveis para a formulao de exigncias revolucionrias em poltica de arte" (Benjamin, 92:74). Ao querer trazer o mtodo marxista de crtica ao modo de produo capitalista para o campo artstico, entendido este como um processo separado e que precisa de uma anlise prpria, Benjamin est a deitar achas para a fogueira do debate que o ope a Adorno. Este ltimo concordar que a arte tem um desenvolvimento prprio, mas onde observa "arts transformation brought about by the dialectical praxis between the artist and the historical developed techniques of his trade", Benjamin situa "the dialectic solely within the objectives forces of the superstructure, that is, within the mechanical technologies of arts reproduction" (Buck-Morss, 77: 147) . Este arrebatamento benjaminiano pelo marxismo acaba por subverter a doutrina por completo, pois j no h lugar para pensar numa infraestrutura prvia prpria cultura: no seu interior que se encontram os seus dois nveis de existncia, e as novidades instauradas ao nvel da arte passam pelos dispositivos tcnicos na reproduo dos objectos artsticos. O seu mtodo analgico, para explicar como estas transformaes se realizam no mundo artstico, est mais uma vez demonstrado no exemplo que toma para desenvolver os seus raciocnios posteriores. A fotografia servir de base a esta tarefa de explicar o todo pela nfima parte reflexo ainda da "teoria" dos cristais ou do fractal e, desta forma, um novo campo de investigaes abre-se sua frente. "Pela primeira vez, com a fotografia, a mo liberta-se das mais importantes obrigaes artsticas no processo de reproduo de imagens, as quais, a partir de ento, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objectiva. Uma vez que o olho apreende mais depressa do que a mo desenha, o processo de reproduo de imagens foi to extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala" (Benjamin, 92: 76). Com a reproduo artstica entramos num novo mundo, havendo um outro que se fecha para sempre. A autenticidade que constituia o original da obra de arte, a sua existncia nica num espao e num tempo prprio, onde faz a sua apario, perde-se por completo com a introduo das tcnicas que permitem a reproduo em srie dessa obra. O conceito de aura o aqui e o agora do original torna-se uma quimera do passado. Esta transformao dialctica da arte, que a leva sua auto-destruio, , curiosamente, entendida por Benjamin como uma espcie de bno, pois, assim, esta adquire um novo valor de uso. A obra deixa de depender parasitariamente do ritual para se basear numa outra prtica: a poltica. "Specifically, the possibility of the artworks unlimited duplication robbed it of its aura, that very uniquess wich Benjamins original philosophy had been the source of its cognitive value. Now he claimed that liquidation of arts aura had a positive effect, and art acquired a new use value" (Buck-Morss, 77: 147). A grande fora da reprodutibilidade da obra de arte, que tem para Benjamin o seu agente mais poderoso no filme, reside no processo de "ao multiplicar o reproduzido, colocar no lugar da ocorrncia nica a ocorrncia em massa. Na medida em que permite reproduo ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido em cada uma das suas situaes. Ambos os processos provocam um profundo abalo do reproduzido, um abalo da tradio que o reverso da crise actual e a renovao da humanidade. Esto na mais estreita relao com os movimentos de massas dos nossos dias" (Benjamin, 92: 79). Dias radiosos estes, julga Benjamin, que esperam a humanidade com "a liquidao do valor da tradio na herana cultural" . A obra de arte, ao deslocar-se a caminho dos indivduos, aumenta o seu poder, tornando-se irrecusvel, intrometendo-se quer na esfera da experincia individual, quer na prpria vida colectiva, onde a arte passa a ser vista como um medium social. Os novos caminhos esto prontos a ser percorridos, e a reside a esperana de Benjamin depositada na arte que escapou s amarras da aura. Atrs dessas transformaes esto os dispositivos tcnicos e uma nova sociabilidade vida por estes produtos colocados sua disposio. Este mais um pomo de discrdia entre Adorno e Benjamin. Enquanto o primeiro compreendia a massa como algo inexistente j que apenas o produto de uma cultura; Benjamin, bem pelo contrrio, verifica que o modo como as pessoas se juntam que leva a existir uma cultura especfica para aquele tipo muito prprio de sociabilidade. A funo poltica da arte surge de uma arte enrazada na praxis, que remete para a vida, para o quotidiano na sua imediaticidade. Se em Benjamin era explicada a possibilidade que arte tinha de se tornar mais progressiva na sua autonomia, Adorno via, por seu lado, nesta afirmao, uma traio s suas anteriores posies: "In your earlier writings, the great continuity of wich, it seems to me, your present essay dissolves (...) I find it questionable, then and here I see a very sublimated remnant of certain Brechtian motifs that you now effortlessly transfer the concept of magical aura to the autonomous work of art and flatly assign the latter a counter-revolutionary function" (Buck-Morss, 77: 148). A noo de negatividade na arte central em Adorno. Essa negatividade encarada como uma forma de resistncia. O que estimula Adorno nos seus trabalhos essa afirmao subjectiva do sujeito, mas tal questo pouco incomoda Benjamin, da poder olhar para a obra de arte na cultura de massas como uma apropriao emancipatria da colectividade. Aqui a compreenso da arte e da cultura fazem-se a partir de uma teoria da experincia. Chegamos neste ponto a um dos aspectos fulcrais do texto benjaminiano, e que diz respeito ao modo como a percepo sensorial do homem se organiza. Se para Adorno o lugar de recepo da obra de arte no processo industrial da cultura j uma questo pr-determinada, operando por isso num registo intelectual muito pobre, em Benjamin atinge uma zona privilegiada das suas investigaes. A entrega sensorial dos indivduos feita numa experincia que pura fruio em dois planos distintos: uma relao crtica com as obras e a diverso. "Aproximar as coisas espacial e humanamente actualmente um desejo das massas to apaixonado como a sua tendncia para a superao do carcter nico de qualquer realidade atravs do registo da sua reproduo. Cada dia se torna mais imperiosa a necessidade de dominar o objecto fazendo-o mais prximo da imagem, ou melhor, na cpia, na reproduo" (Benjamin, 92: 81). Os suspiros pelos sonhos com as flores azuis acabam quando se pode "retirar o invlucro a um objecto, destroar a sua aura", e estas so formas do domnio "de uma percepo, cujo sentido para o semelhante no mundo se desenvolve de forma tal que, atravs da reproduo, tambm o capta no fenmeno nico" (Benjamin, 92: 81).

Salvar a estrela danante

Adorno e Benjamim, duas vises do mundo que se cruzam e entrelaam, sem nunca perderem de vista que o seu rumo no o mesmo. Da querela mantida entre estes dois autores na dcada de 30, podemos perguntar, a 60 anos de distncia, afinal qual dos dois esteve mais prximo do que a realidade viria a confirmar? indiscutvel que na imediaticidade dos tempos sombrios que se avizinhavam da Europa, Adorno o mais lcido. Benjamin, ainda esperanoso com o nascente regime comunista na Unio Sovitica, continuava espera de "uma politizao da arte". Os campos de concentrao da Alemanha nazi, o uso, pela primeira vez na histria da humanidade, de armas atmicas, as purgas estalinistas no perodo ps-guerra, vieram ampliar a noo de negatividade introduzida pelo pensamento adorniano, ultrapassando-a mesmo quando os gases se abriram sobre os corpos de milhes de judeus. O irracional irrompe nos campos de concentrao e a Razo nada mais pode fazer seno remeter-se ao silncio. Adorno conclui, anos mais tarde, que "no h poesia depois de Auschwitz!" (Tar, 1977: 141), como se fosse o epitfio trgico frase, cheia de esperanas, proferida por Benjamin, e que dava conta de que o homem tinha deixado de sonhar com flores azuis. No deixa de causar perplexidade esta atitude esperanosa por parte de um homem habitado por uma incomum vocao para a desgraa, e cuja vida to copiosamente cumpriu este fado. Deve notar-se, todavia, que por mais sedutora e terna que tal crena na capacidade ilimitada de reciclagem do humano possa parecer, a atitude no original. A atraco de Benjamin pelo novo, pelas potencialidades abertas pela tecnologizao crescente no mais do que uma erupo tardia da atitude que, no incio do sculo, animara Marinetti e todos os futuristas, fascinados pelo esplendor da mquina, o brilho dos motores reluzentes, a potncia infinita de uma mquina a vapor... "Um automvel que ruge, que parece correr debaixo de fogo, mais belo do que a Vitria de Samotrcia" (Marinetti, 79: 49) fora, nos seus dias, um programa de trabalho fecundo e original, mas a histria, essa grande desmancha-prazeres, veio muito simplesmente confirmar como tal fascnio podia acabar mal. Limitando-se o objecto deste trabalho apenas questo esttica nos dois textos fundadores produzidos por Adorno e Benjamin, as ressonncias polticas que da advm so muitas e podem trazer alguma luz ao pensamento actual. Adorno, nos anos subsequentes guerra, vai afirmar que "o capitalismo encontrou recursos em si mesmo que lhe permitiram adiar indefinidamente o colapso do sistema" (Tar, 1977: 163). Com a integrao da classe trabalhadora na sociedade burguesa, as relaes de produo tornam-se mais elsticas. A par deste factor, o progresso tecnolgico vem minimizar a parte do trabalhador na produo da mais-valia e, como tal, continua a haver "uma dominao sobre as massas atravs do processo econmico, mas a antiga opresso social tomou novas formas annimas e tornou-se universal" (Tar, 1977: 163). O fracasso em encontrar um sujeito revolucionrio a partir da levou Adorno a erigir "uma torre de marfim" em torno da sua dialctica negativa, que nunca mais abandonou. Nem mesmo os chamamentos de uma aliana temporria de Marcuse com a "pseudo- revoluo e os seus filhos" nos movimentos estudantis dos anos 60, o fizeram demover do seu "exlio" auto-imposto, j que era firme a sua ideia de que "no processo de integrao do proletariado no sistema, a indstria da cultura foi instrumental na manipulao tanto do consciente como do subconsciente" (Tar, 1977: 164). Por isso, Adorno no entende a arte do seu tempo como algo de novo, como espao de recusa e de revolta perante o institudo. Mas quer Adorno queira, quer no, h algo que chegou ao fim e nada como o dadasmo para mostrar o esboroamento desse edifcio: "DADA no uma doutrina para ser posta em prtica: Dada, para mentir: um negcio que corre bem. Dada contrai dvidas e no vive agarrado ao colcho. Deus-nosso-senhor criou uma lngua universal, e por isso que ningum o leva a srio. Uma lngua uma utopia. Deus pode dar-se ao luxo de no ser bem sucedido: Dada tambm. Dada um luxo ou Dada est com o cio. Deus um luxo ou Deus est com cio. Quem tem razo: Deus, Dada ou o crtico?" (Tzara, 1987: 46). Benjamin est profundamente encantado com a questo da tcnica, fascinado com os caminhos que os novos objectos artsticos apontam e permitem percorrer, mas, uma coisa certa, as categorias fundamentais, e ele apercebeu-se disso, que governavam o Belo, j no so as mesmas ou, pura e simplesmente, desapareceram no redomoinho da histria. Da, talvez, a posio mais consentnea com este caminhar seja a de Walter Benjamin. Mesmo que a dominao alastre e faa uso da sua fora em todos os nveis da actividade humana, ser sempre possvel criar bolsas de resistncia nas suas fronteiras, nem que esse trabalho seja apenas abrir trincheiras. A grandeza de Adorno est na sua Grande Recusa de aceitar que talvez j no haja volta atrs. A nossa poder estar em admitir que os valores fortes talvez tenham morrido para sempre, e neste novo universo fludo e catico tentar, semelhana de Benjamin, manter viva a esperana. " preciso um caos dentro de si para gerar uma estrela danante", diria profeticamente Nietzsche.

Bibliografia

Adorno, Theodor , 1970, Teoria Esttica, Edies 70, Lisboa

Adorno, Theodor et al., 1985, Dialctica do Esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro

Arendt, Hannah, 1991, Homens em tempos sombrios, col Antropos, Relgio dgua, Lisboa

Benjamin, Walter, 1992, Sobre Arte, Tcnica, Linguagem e Poltica, col. Antropos, Relgio dgua, Lisboa

Burger, Peter, 1985, "Lanti vanguardisme dans lesthtique dAdorno", in Revue dEsthtique, nouvelle serie, n 8, ditions Privat, Toulouse

Buck-Morss, Susan, 1977, The Origin of Negative Dialectics, The Free Press, New York

Huisman, Denis, 1984, A Esttica, col. Biblioteca Bsica de Filosofia, Edies 70, Lisboa

Marinetti, 1979, Antologia do futurismo italiano, col. Provisrios e Definitivos, Editorial Vega, Lisboa

Melo, Adlio, 1977, Para Alm de Sade, Edies rvore, Porto.

Tar, Zoltn, 1977, A Escola de Francoforte, Edies 70, Lisboa

Tzara, Tristan, 1987, Sete Manifestos Dada, col. Co Vagabundo, Hiena Editora, Lisboa.