teoria geral das obrigaÇÕes e dos contratos

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GRADUAÇÃO 2011.1 TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS AUTOR: CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA 4ª EDIÇÃO

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Page 1: TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

GRADUAÇÃO 2011.1

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS

CONTRATOSAUTOR: CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA

4ª EDIÇÃO

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SumárioTeoria Geral das Obrigações e dos Contratos

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ....................................................................................................................................... 03

PROGRAMA DA DISCIPLINA .................................................................................................................................. 05

ROTEIRO DAS AULAS ........................................................................................................................................... 06 Aula 1: Apresentação do curso ...................................................................................................... 06

PARTE I: NEGóCIOS JURíDICOS ............................................................................................................................... 09 Aula 2: Os planos do negócio jurídico .......................................................................................... 09 Aula 3: Classificação, interpretação e causa dos negócios jurídicos ................................................ 16 Aula 4: Defeitos do negócio jurídico: erro e dolo .......................................................................... 22 Aula 5: Defeitos do negócio jurídico: coação, simulação e fraude contra credores ......................... 29 Aula 6: Lesão e estado de perigo ................................................................................................... 36 Aula 7: Condição, termo e encargo .............................................................................................. 41

PARTE II: PRESCRIÇÃO E DECADêNCIA ...................................................................................................................... 47 Aula 8: Fundamentos para aplicação da prescrição e da decadência .............................................. 47 Aula 9: Suspensão, impedimento e interrupção dos prazos prescricionais / direito intertemporal ......61

PARTE III: DIREITO DAS OBRIGAÇÕES ....................................................................................................................... 68 Aula 10: A relação obrigacional .................................................................................................... 68 Aula 11: As obrigações naturais e as obrigações propter rem .......................................................... 73 Aula 12: Classificação das obrigações: obrigações de dar, fazer e não-fazer .................................... 77 Aula 13: Classificação das obrigações: obrigações indivisíveis, solidárias e alternativas .................. 83 Aula 14: Pagamento: lugar, tempo e prova ................................................................................... 95 Aula 15: Formas especiais de pagamento .................................................................................... 102 Aula 16: Enriquecimento sem causa e pagamento indevido ........................................................ 120 Aula 17: Inadimplemento das obrigações ................................................................................... 126 Aula 18: Cláusula penal e juros .................................................................................................. 135 Aula 19: Transmissão das obrigações .......................................................................................... 140

PARTE IV: TEORIA GERAL DOS CONTRATOS .............................................................................................................. 145 Aula 20: Princípios da nova teoria contratual – autonomia da vontade e função social do contrato ...145 Aula 21: Princípios da nova teoria contratual – contornos da boa-fé objetiva ............................. 150 Aula 22: Princípios da nova teoria contratual – relatividade e sua flexibilização .......................... 155 Aula 23: Responsabilidade pré-contratual e proibição do comportamento contraditório ............ 157

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3FGV DIREITO RIO

TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs

MÉtodo de aValiaçÃo

A avaliação de desempenho do aluno na disciplina Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos será realizada através do somatório de três notas, correspondentes às seguintes atividades: (i) uma prova escrita a ser realizada no meio do semestre; (ii) uma prova escrita a ser realizada na última aula do curso; além de (iii) uma nota de participação.

Á primeira prova escrita será conferida nota de 0 (zero) a 10 (dez). A segunda prova es-crita, por sua, vez, valerá 09 (nove) pontos. O último 01 (hum) ponto que completa a nota da segunda prova corresponde à nota de participação.

A nota de participação, por sua vez, é composta de duas avaliações. A primeira metade da nota de participação (0,5 ponto) corresponde à efetiva participação do aluno duran-te o curso. A outra metade da nota de participação (0,5 ponto) se refere à(s) resposta(s) apresentada(s) pelo aluno à(s) pergunta(s) dirigida(s) ao mesmo em sala de aula sobre os textos de leitura obrigatória das respectivas aulas e/ou a sua participação na WikiDireito, seja inserindo ou alterando o conteúdo da respectiva matéria lecionada.

A média do aluno será obtida mediante a soma da nota obtida na primeira prova escrita com a nota obtida na segunda prova, adicionada a essa última a nota de participação, sendo o resultado posteriormente dividido por dois.

Média Final = Primeira Prova (10,0) + Prova Escrita (9,0) + Participação (1,0) 2

O aluno que obtiver nota inferior a 07 (sete) e superior ou igual a 04 (quatro) pontos, deverá fazer uma prova final. O aluno que obtiver nota inferior a 04 (quatro) pontos estará automaticamente reprovado na disciplina.

Para os alunos que fizerem a Prova Final, a média de aprovação a ser alcançada é 06 (seis) pontos, a qual será obtida conforme fórmula constante no Manual do Aluno / Manual do Professor.

Prova Escrita

O aluno deverá realizar duas provas escritas durante o semestre. As provas deverão ser marcadas previamente pelo professor, preferencialmente no horário de aula. A data e horá-rio da prova serão divulgados com antecedência para os alunos.

A primeira prova escrita será realizada, em princípio, no período compreendido entre as aulas nº 09 a 10. A segunda prova escrita será realizada, de preferência, imediatamente depois da última aula. Na segunda prova escrita versará sobre toda a matéria lecionada na disciplina.

Para ambas as provas o aluno poderá consultar a legislação pertinente para elaborar as suas respostas. Salvo alguma necessidade especial, a Constituição Federal e o Código Civil, com sua legislação complementar, deverão ser suficientes para que o aluno possa realizar a prova. Salvo orientação distinta por parte do professor, não será permitida a consulta à legislação comentada durante a prova. A mesma proibição vale para os códigos anotados cujas anotações transcendam a simples remissão a outros dispositivos legais, como ocorre na obra “Código Civil e Legislação em Vigor”, elaborado por Theotonio Negrão.

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TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs

As provas escritas serão compostas de pelo menos duas questões, sendo requerido ao aluno que demonstre domínio sobre os conceitos estruturais da disciplina e facilidade para aplicá-los a situações reais ou hipotéticas, quando confrontado com um caso concreto.

Nota dE ParticiPação

A nota de participação se divide em duas avaliações distintas, conforme já mencionado. A primeira avaliação que compõe a nota total de 01 (hum) ponto é a efetiva participação do aluno na disciplina.

A “efetiva participação” aqui avaliada não corresponde à quantidade de intervenções feitas pelo aluno em sala de aula, mas sim à qualidade de eventuais intervenções, o interesse demonstrado pela matéria, o questionamento dos conhecimentos apresentados pelo profes-sor, e a presença constante em sala de aula. Esses são os principais fatores que determinam essa primeira metade da nota de participação.

O aluno que atender integralmente a esses requisitos terá 0,5 ponto na nota de partici-pação.

A segunda metade da nota de participação consiste na participação do aluno na WikiDi-reito e/ou na(s) resposta(s) apresentada(s) pelo aluno quando indagado pelo professor sobre o texto de leitura obrigatória para a aula. Toda aula terá pelo menos um texto de leitura obrigatória. É certo que os sentidos são traiçoeiros, já dizia Descartes, mas o texto de leitura obrigatória é exatamente tudo isso que o nome indica: a sua leitura é obrigatória.

Dessa forma, o professor poderá perguntar para o aluno durante a aula alguma questão relacionada ao texto. O professor deverá considerar que o aluno leu o texto, uma vez que a sua leitura está indicada no material didático. Essa medida visa a solucionar o recurso por vezes utilizado de apenas ler o texto correspondente à certa aula depois da mesma ser lecionada pelo professor. Pode parecer para o aluno que assim procedendo ele terá uma compreensão melhor do texto. Todavia, no método participativo, um aluno que não leu o texto pertinente à aula é um aluno que poderá ter dificuldades em participar efetivamente, seja perguntando, seja simplesmente compreendendo o conteúdo da aula.

Adicionalmente, é importante lembrar que a aula lecionada pelo professor representa a leitura feita pelo mesmo do texto recomendado. Ainda que a leitura do professor esteja apoiada em estudos mais aprofundados, nada impede que o aluno, ao tomar contato com o texto antes da aula, perceba outros pontos, tenha outras dúvidas ou perplexidades que o próprio professor não teve quando tomou contato com o texto. O intercâmbio de experiên-cias de leitura é uma das características mais importantes dessa disciplina, pois auxilia o pro-fessor a identificar e suprimir as eventuais dificuldades de leitura encontradas pelos alunos. Sendo assim, o aluno que não lê o texto antes da realização da aula fica – voluntariamente – alijado dessa particularidade do estudo jurídico. E, em nota de teor mais prático, ainda corre o risco de perder meio ponto na avaliação.

Ao desempenho do aluno na(s) resposta(s) da(s) questão(ões) formuladas e/ou sua parti-cipação na WikiDireito, será conferido até 0,5 ponto, compondo assim até 01 (hum) ponto na nota de participação. Essa nota de participação complementa o grau obtido na segunda prova, conforme visto no item anterior. O somatório das notas obtidas na segunda prova e na participação pode alcançar o total de 10 (dez) pontos

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PrograMa da disciPlina

aula 1: aPrEsENtação do curso

Parte i: Negócios JurídicosAula 2: Os Planos do Negócio JurídicoAula 3: Classificação, Interpretação e Causa dos Negócios JurídicosAula 4: Defeitos do Negócio Jurídico: Erro e DoloAula 5: Defeitos do Negócio Jurídico: Coação, Simulação e Fraude contra CredoresAula 6: Lesão e Estado de PerigoAula 7: Condição, Termo e Encargo

Parte ii: Prescrição e decadênciaAula 8: Fundamentos para Aplicação da Prescrição e da DecadênciaAula 9: Suspensão, Impedimento e Interrupção dos Prazos Prescricionais / Direito In-

tertemporal

Parte iii: direito das obrigaçõesAula 10: A Relação ObrigacionalAula 11: As Obrigações Naturais e as Obrigações Propter Rem Aula 12: Classificação das Obrigações: Obrigações de Dar, Fazer e Não-FazerAula 13: Classificação das Obrigações: Obrigações Indivisíveis, Solidárias e AlternativasAula 14: Pagamento: Lugar, Tempo e ProvaAula 15: Formas Especiais de PagamentoAula 16: Enriquecimento sem Causa e Pagamento IndevidoAula 17: Inadimplemento das ObrigaçõesAula 18: Cláusula Penal e JurosAula 19: Transmissão das Obrigações

Parte iv: teoria Geral dos contratosAula 20: Princípios da nova Teoria Contratual – Autonomia da Vontade e Função So-

cial do ContratoAula 21: Princípios da Nova Teoria Contratual – Contornos da Boa-fé ObjetivaAula 22: Princípios da Nova Teoria Contratual – Relatividade e sua FlexibilizaçãoAula 23: Responsabilidade Pré-Contratual e Proibição do Comportamento Contradi-

tórioAula 24: Aspectos da Contratação Eletrônica (Documentos e contratos eletrônicos)

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roteiro das aUlas

aUla 1: aPresentaçÃo do cUrso

1. rotEiro dE aula

O título da presente disciplina (“Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos”) requer algumas explicações introdutórias, pois ele pode vir a encerrar dois grandes equívocos. O primeiro se refere à ênfase dada à expressão “Teoria Geral”. Essa disciplina, antes de mais nada – antes mesmo de fazer referência aos contratos e às obrigações – se apresenta como uma teoria geral. Pode parecer paradoxal que uma disciplina inserida em curso de bacharela-do que prima pela permamente atualização, como é o curso oferecido pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, opte por oferecer aos seus alunos um curso sobre teoria geral de determinado assunto, e ainda mais sobre Direito Civil, campo do conhecimento jurídico que cada vez mais se afasta das grandes “teorias gerais”.

Pode-se dizer que o Direito Civil vivencia hoje o ocaso das teorias gerais justamente pela velocidade com que os seus institutos têm se transformado para atender às mais diversas e complexas demandas sociais. O fenômeno do Direito Civil Constitucional, estudado na disciplina anterior (“Direito das Pessoas e dos Bens”) ilustra com precisão esse cenário. As constantes exigências da vida prática tomaram de assalto a construção de teorias gerais para diversos setores do Direito Civil. Mais notadamente, a dinâmica dos direitos da personali-dade repercute essa realidade, sendo hoje praticamente impossível, ou pelo menos bastante artificial, criar-se uma teoria geral dos direitos da personalidade. Essa, se por um acaso exi-ste, apenas se faz presente para fins didáticos.

Então, deve-se analisar com cautela a denominação da disciplina aqui apresentada: quando se fala em teoria geral o que se busca oferecer ao aluno é a oportunidade de conhe-cer as linhas mestras que guiaram a doutrina, a jurisprudência e o legislador na construção da matéria sob análise. Assim, o estudo do direito das obrigações deve enfrentar todo o arcabouço instrumental erigido desde o período de apogeu do Direito Romano para tute-lar as relações jurídicas entre credores e devedores; mas essa mesma disciplina não estaria completa se ela não rompesse com a ahistoricidade que prepondera nos manuais sobre os temas e introduzisse diversos dilemas que a prática hoje coloca para a solução de relações que envolvem créditos e débitos.

Esse desprendimento do curso da história para a construção de um repositório de técni-cas é ainda mais afastado quando se trata do direito dos contratos. Nesse particular, a con-vivência entre princípios clássicos e aqueles princípios que compõem a faceta mais moderna da “nova teoria contratual” representa o escopo das aulas destinadas ao estudo das relações contratuais: buscar o domínio da teoria geral, para que se possa, então, aplicá-la aos casos concretos, sabendo identificar os pontos em que a jurisprudência vem lidando com casos difíceis, em que os princípios da teoria contratual são chamados a atuar.

Mas não é apenas a expressão “Teoria Geral” que merece uma explicação mais detalhada no título da presente disciplina. A referência a obrigações e contratos no seu título também merece uma menção.

A disciplina aqui apresentada é composta por quatro módulos: (i) negócios jurídicos; (ii) prescrição e decadência; (iii) obrigações; e (iv) contratos. Sendo assim, a disciplina vai além do estudo das obrigações e dos contratos para abranger também o estudo de matérias que, geralmente, são tratadas em cursos sobre a “Parte Geral” do Direito Civil. A opção

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pela inserção de negócios jurídicos, além de prescrição e decadência, nessa disciplina deriva de uma oportunidade de se estudar, em sequência, as regras e princípios aplicáveis a tais matérias.

A disciplina dos negócios jurídicos vem gradativamente se afastando de um estudo volta-do exclusivamente para o escrutínio da vontade. A aplicação dos princípios constitucionais, e a formação de uma tutela voltada para a confiança e a boa-fé objetiva imprimiram ao estu-do da matéria uma série de complexidades que comandam ao intérprete que deixe de lado a “mística da vontade” e busque outras vias de realização da hermenêutica negocial.

O estudo da prescrição e da decadência, por seu turno, ganha novas dimensões com a afirmação do conceito de pretensão, e sua dinâmica será de fundamental relevo para que se compreenda o efeito do tempo sobre as relações jurídicas. Embora alguns autores critiquem a inserção do tema da prescrição no conjunto maior dedicado às obrigações e aos contratos (Canaris), é também certo que o seu estudo não pressupõe que apenas relações obrigacionais e contratuais estejam sujeitas à sua influência. Trata-se apenas de uma alocação de temas que colocam em discussão a dinâmica da relação jurídica na mesma disciplina.

Por fim, cumpre destacar que essa é a segunda disciplina na qual alunos tomarão contato com o Direito Civil. Todo o conteúdo lecionado na disciplina anterior, Direito das Pessoas e dos Bens, contudo, aplica-se de forma direta e imediata às mais diversas situações com as quais o estudante vai se deparar ao longo do semestre. A busca por uma definição do prin-cípio da dignidade da pessoa humana, o lugar dos chamados direitos da personalidade, a dinâmica das pessoas jurídicas e a relevância das transformações sofridas na análise dos bens, sobretudo no que se refere ao “bem de família” e as controvérsias sobre a sua amplitude, estão presentes nesta disciplina.

O caso gerador narrado abaixo, por exemplo, ilustra essa conexão necessária entre as duas primeiras disciplinas de Direito Civil lecionadas no curso de graduação. A lide em questão foi baseada em caso julgado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça. Com base nas lições apreendidas no semestre passado, e com a intuição natural do bom profis-sional jurídico para descobrir onde estão os pontos controvertidos de um caso concreto e, principalmente, para buscar a sua solução, leia a seguinte questão:

2. caso GErador

Três famílias de baixa renda viviam juntas, há mais de dez anos, em uma casa de madeira construída em terreno de sua propriedade na sua periferia de Porto Alegre. Com a expansão dos limites da cidade, uma empresa construtora procurou as três famílias com interesse de construir no local um edifício de apartamentos. Em troca pela cessão do terreno, as famílias receberiam dois apartamentos do edifício a ser construído. O contrato foi devidamente celebrado entre as partes, formalizado em cartório, tendo ainda sido oferecida em garantia do cumprimento do acordo, por parte da construtora, o imóvel onde residia a família do proprietário da empresa.

As três famílias passaram a residir, de forma precária, na casa de amigos e conhecidos. Os anos foram se passando e o edifício jamais foi construído. Após cinco anos de espera, as três famílias ingressaram em juízo pleiteando que o imóvel dado em garantia fosse levado a leilão para pagamento do valor relativo ao terreno, acrescido de eventuais atualizações e indenização por dano moral decorrente do inadimplemento da construtora.

Nos autos do referido processo, o advogado da construtora alegou que o imóvel dado em garantia não poderia ser objeto de execução, pois estaria protegido pelo regime do “bem de família” (Lei n° 8.009/90).

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Com base no caso acima responda:

(i) Quais princípios da teoria geral das obrigações e dos contratos estão envolvidos na questão? Existe algum conflito entre os mesmos?

(ii) No caso narrado, como você decidiria o processo? Justifique a sua decisão com argu-mentos jurídicos e com base na legislação pertinente.

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Parte i: negócios JUrídicos

aUla 2: os Planos do negócio JUrídico

EmENtário dE tEmas

Ato e Negócio Jurídico – Fato Jurídico – Negócio jurídico – Classificação dos Negócios Jurídicos – Existência, Validade e Eficácia do negócio jurídico – Considerações acerca dos requisitos de validade do art. 104.

lEitura obriGatória

VENCESLAU, Rose Melo. “O negócio jurídico e as suas modalidades”, in Gustavo TEPEDINO (org). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 177/200.

lEituras comPlEmENtarEs

TEPEDINO, Gustavo, BODIN DE MORAES, Maria Celina e BARBOZA, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 207/220.

SILVA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 475/495.

1. rotEiro dE aula

ato e Negócio Jurídico

No Código Civil de 1916, ato jurídico era considerado como todo ato voluntário, re-vestido das condições determinadas pela lei e que produzisse regularmente efeitos jurídicos. Fatores como a vontade humana careciam ainda de maiores estudos sobre a sua participação para a formação de um conceito, e ao contrário do que se observa atualmente, a diferencia-ção entre ato jurídico e negócio jurídico ainda não restava bem delineada.

A noção de negócio jurídico provém de trabalhos doutrinários alemães que passaram a considerar a importância das manifestações de vontade na produção de efeitos jurídicos. Dessa forma, a doutrina gradativamente se aproximou de um conceito contemporâneo de ato jurídico, o qual, mais modernamente, é compreendido em um sentido amplo, passan-do a se desdobrar em dois outros significados: (i) o ato jurídico em sentido estrito; e (ii) o negócio jurídico.

Antes de estudar os atos jurídicos em sentido amplo, algumas considerações acerca da categoria mais ampla de fatos jurídicos se fazem necessárias.

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Fato Jurídico

Fato jurídico é um acontecimento, quer seja humano, quer seja natural, apto a produzir efeitos jurídicos, provocando o nascimento, a continuação, a modificação ou a extinção de relações jurídicas e dos direitos que a ela se referem.

Os fatos jurídicos podem ser subdivididos em espécies. Eles se bipartem tendo como critério a sua natureza, podendo ser denominados fatos humanos voluntários ou eventos na-turais.

Os fatos jurídicos naturais (que decorrem de eventos naturais) são independentes da vontade do homem. Não se deve afirmar que os mesmos são completamente estranhos ao homem, visto que fulminam as relações jurídicas – que por sua vez são titularizadas por pes-soas físicas ou jurídicas (conjunção de vontades humanas para o atingimento de um fim).

Esses fatos decorrem da manifestação da natureza, podendo ser ordinários ou extraordi-nários. Os ordinários são aqueles cuja verificação é comum, tal qual o nascimento e a morte; os extraordinários, por sua vez, são dotados de maior margem de imprevisibilidade, corres-pondendo aos denominados caso fortuito ou força maior.

Além dos fatos jurídicos naturais, deve-se mencionar a existência de fatos humanos vo-luntários, que são aqueles que resultam da atuação humana, seja ela positiva ou negativa. Tais fatos influem nas relações jurídicas, variando em razão da tipologia do ato praticado. Dividem-se em fatos lícitos (atos jurídicos lícitos em sentido amplo) e fatos ilícitos.

Os atos jurídicos latu sensu, são aqueles caracterizados pela atuação da vontade da parte em sua constituição e na produção de sus efeitos. A manifestação de vontade assume aqui um papel muito mais relevante do que nas tipologias examinadas acima. Os atos jurídicos em sentido amplo subdividem-se em duas espécies:

(i) Ato jurídico stricto sensu – a declaração de vontade é dirigida para a produção de efei-tos previamente determinados em lei, imodificáveis pela ação volitiva. Não compete à parte modificar, moldar os efeitos dessa declaração de vontade, mas apenas decidir pela produção de um ato que possui os seus efeitos já previamente estipulados. A manifestação de vontade se corporifica pela intenção ou não de sofrer em sua esfera jurídica os efeitos já determinados pela letra da lei;

(ii) Negócio jurídico – Os efeitos que se produzem a partir dos negócios jurídicos são aqueles não proibidos pela lei. Não confrontando com a dicção legal, as partes pos-suem espaço para construir relações jurídicas de diversos moldes. O teor negocial aqui é flagrantemente maior, implicando na composição de interesses. Os efeitos são permitidos pela lei e são desejados pelos agentes.

Os fatos ilícitos, por sua vez, são aqueles que se processam contrariamente à ordem jurí-dica, provocando o dever de reparação. Produzem efeitos diversos ou não pretendidos pelos agentes que lhes dão causa.

Negócio jurídico

Negócio jurídico é a declaração de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos vo-luntariamente perseguidos.1 Os sujeitos de direito, mediante o exercício de sua vontade em conformidade com a lei, dão origem a relações jurídicas.

Certo é que ato e negócio jurídico são institutos onde a vontade se encontra presente. A distinção se processa quando se atenta ao conteúdo dessas figuras e aos efeitos que delas decorrem.

1 Gustavo Tepedino, Maria celi-na bodin de Moraes e Heloisa Helena barboza. Código Civil Interpretado conforme a Consti-tuição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 210.

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No ato jurídico em sentido estrito, o conteúdo e efeitos são previamente determinados pelo ordenamento, competindo à vontade apenas decidir pela produção ou não desses efeitos.

O negócio jurídico, por sua vez, difere desse tratamento ao possibilitar às partes mode-larem esse conteúdo, e conseqüentemente, os efeitos do ato. O negócio jurídico é campo onde há liberdade de construção para as partes, liberdade essa que se manifesta no livre desembaraço da vontade negocial.

Essa vontade negocial se manifesta tendo em vista o princípio da autonomia da vontade (autonomia privada), que como o próprio nome já diz, trata da liberdade de negociação que os agentes privados são dotados.

A própria autonomia privada, em certa análise, não deixa de ser uma permissão legal. Ela se manifesta nas hipóteses em que a lei não pré-estabelece todo o conteúdo e efeitos que uma determinada manifestação de vontade assume. Quando há campo para a livre mani-festação da autonomia privada, as partes podem determinar o conteúdo, forma e efeitos dos seus atos jurídicos (aqui compreendidos em sentido amplo), atuando na criação de um negócio jurídico.2

Acerca do conceito moderno de autonomia privada, pertinente é observar que:

“O conceito de autonomia privada vem, contudo, sendo reformulado pela doutrina contem-porânea. Hoje, não mais se deve entender que os valores constitucionais criam limites externos à autonomia privada, mas antes, informam seu núcleo funcional. A autonomia privada não consis-te, definitivamente, em um “espaço em branco” deixado à atuação da liberdade individual, mas ao contrário, apenas recebe tutela na medida em que se conforme aos valores constitucionais.”3

A vontade dos indivíduos pode ser construída dentro desse campo da autonomia priva-da, sendo vedado que ela o extrapole, dispondo contrariamente ao Direito.

Os efeitos dessa vontade somente serão perceptíveis no mundo jurídico através de uma manifestação. Deve o agente explicitar essa vontade, que é o elemento interno, por intermédio de uma declaração, elemento externo, para que os efeitos desejados possam ser alcançados.

Sob pena do negócio ser reputado inválido, essa manifestação de vontade deve se operar de forma livre, desembaraçada, e em consonância com valores jurídicos com diretrizes como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana.

A declaração de vontade, instrumento de exteriorização dessa vontade, pode ser expressa ou tácita. A manifestação expressa é a utilização de meios inequívocos que demonstrem o real intento do agente. A manifestação tácita resulta de um comportamento do agente do qual pode se inferir o sentido de sua vontade.

A forma do negócio jurídico constitui-se do tecnicismo que o direito impõe à manifesta-ção de vontade. Observa-se que o conceito de forma do negócio possui duas dimensões: (i) é a própria manifestação de vontade, isto é, a exteriorização da vontade (considerada aqui eminentemente no plano psíquico); e (ii) é a roupagem, isto é, os requisitos que essa mani-festação deve conter para que seja considerada válida pelo Direito.

classificação dos Negócios Jurídicos

Muitas são as classificações que os negócios jurídicos podem assumir. Um dos critérios de classificação mais relevantes é aquele relacionado ao número de declarações de vontade existentes em sua realização. Nesse sentido, o negócio pode ser unilateral, bilateral, e, mais recentemente, são admitidos os negócios plurilaterais.

Unilaterais são aqueles que se constituem com uma única declaração de vontade; bilate-rais são aqueles onde se observa, concomitantemente, duas manifestações de vontade, sendo

2 Frise-se que negócio jurídico é uma espécie de ato jurídico em sentido amplo.

3 Gustavo Tepedino, Maria celi-na bodin de Moraes e Heloisa Helena barboza. Código Civil Interpretado conforme a Consti-tuição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 211.

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ambas necessárias para o aperfeiçoamento do negócio; negócios plurilaterais, por sua vez, seriam aqueles onde se percebe a manifestação simultânea da vontade contratual de vários indivíduos.

Mais adiante, o tema das classificações do negócio jurídico será novamente examinado. Relevante nesse momento é compreender que um negócio jurídico pode ser realizado me-diante a conjunção de vontades de um, dois ou de mais indivíduos.

Existência, validade e Eficácia do negócio jurídico

Plano da Existência, plano da validade e plano da eficácia são os três planos nos quais o intérprete deve sucessivamente examinar o negócio jurídico, a fim de verificar se ele obtém plena realização.4

Preliminarmente, vale destacar a importância do estudo dos planos do negócio jurídico. A sua relevância passa pela necessidade de que as relações jurídicas sejam aptas à produção dos efeitos almejados, pelo livre desenvolvimento da vida negocial (circulação de riquezas), para alcançar uma idéia transposta a vários ramos do Direito. Isto é, seja no Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Processual, Direito Comercial, ou qualquer outro ramo dos estudos jurídicos, os atos serão revestidos de elementos, requisitos de validade e de fatores que condicionam sua eficácia. Essa dinâmica se origina no campo civilista e é nele primei-ramente estudada, mas se espraia numa série de situações nem sempre ligadas diretamente ao Direito Civil.

No estudo dos negócios jurídicos é necessário que estes sejam analisados sob o enfoque de três planos distintos, que são afetos à sua existência, validade e eficácia.

No que concerne à existência, têm-se os elementos constitutivos (ou essenciais) do negócio jurídico; em relação à validade, têm-se os requisitos de validade e por fim, a eficácia remete aos fatores de eficácia de um certo negócio.

Plano da existência. Neste plano pode-se observar os elementos essenciais do negócio ju-rídico que são: (i) Declaração de vontade; (ii) Objeto; e (iii) Forma. A noção de essencialidade deve-se ao fato de que caso esses elementos não se encontrem presentes, o negócio jurídico nem mesmo chegará a existir.

O plano subseqüente é o plano da validade, onde se encontram os requisitos de validade. São, na verdade, verdadeiros qualificadores, tais quais adjetivos, dos elementos acidentais acima expostos. Não são numerus clausus, estritamente delimitados, visto que a lei pode estatuir novos requisitos. São os requisitos gerais, insertos no art. 104 CC: agente capaz; objeto lícito, possível e determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei.5 São qualificadores que ultrapassam a simples existência do negócio, a qual é aferida com a simples presença dos elementos.

O negócio jurídico que padece de vícios no tocante aos seus requisitos de validade pode ser reputado como nulo ou anulável. Essa noção será pormenorizada em aulas subseqüentes, porém vale, em breve síntese, destacar que a nulidade é decorrência da violação de normas de ordem pública (inderrogáveis), isto é, previsões decorrentes da própria lei. A anulabilida-de, por sua vez, decorre da violação ao regime jurídico definido pelos próprios particulares (derrogáveis), e, justamente por conta disso, são vícios de importância mais restrita.

A nulidade pode ser alegada de ofício pelo juiz ou por qualquer pessoa. O negócio nulo é desde sua constituição inválido. A anulabilidade, por sua vez, enseja uma situação diferente, pois o negócio é válido até que a parte interessada pleiteie a sua anulação em virtude do vício que o inquina.

Abordar os efeitos de ambas as formas de invalidade é tarefa mais complexa. O negócio nulo nunca produziu efeito, visto que é plenamente inválido. Quando a nulidade é decretada,

4 antônio Junqueira de azeve-do. Negócio Jurídico. são Paulo: saraiva, 2003, 4ª ed.; p. 66.

5 note que os requisitos são apenas os adjetivos ressaltados em itálico.

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os efeitos dessa decretação se operam ex tunc, isto é, retroativamente. O que tiver, por exemplo, sido pago em virtude de uma obrigação nula, deverá ser repetido. Em regra, o ordenamento não admite que do ato nulo se produza efeitos.6

O negócio anulável produz efeitos regularmente até que seja anulado. A parte que po-deria pleitear a anulação pode da mesma forma convalidar o ato, quando então se tornará perfeito. Contudo, quando anulado, os efeitos dessa invalidação se processarão ex nunc, isto é, da decretação em diante.

Tanto os elementos como os requisitos do negócio jurídico são estabelecidos no art. 104 do CC, que determina:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:I – agente capaz;II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;III – forma prescrita ou não defesa em lei.

O caput do artigo alude apenas à validade. No entanto, quando da leitura dos incisos, são encontrados não só os requisitos, mas também a previsão dos elementos do negócio.

Para que haja negócio, ou seja, para que tão somente exista, mister se faz a previsão de agente, de objeto e de manifestação de vontade que se traduza numa certa forma. Presentes esses requisitos, é certo que o negócio existe.

Imagine agora o seguinte negócio jurídico: menor de 15 anos se obriga a prestar, perio-dicamente, determinada quantidade de substância entorpecente proibida por lei. O menor o faz, inclusive, por intermédio de um contrato.

Sendo o agente incapaz, é impossibilitado de transigir no mundo jurídico, mas, ao ar-repio da lei, pactua com outrem. Ainda, o objeto desse negócio é flagrantemente ilícito, na medida em que o tráfico de substâncias entorpecentes proibidas por lei é repudiado pelo ordenamento. O exemplo é caricatural, mas o negócio, sob a perspectiva civilista, é existen-te, embora inválido. A validade, como visto, é uma consideração que ocorre em momento posterior.

A eficácia, por sua vez, é o terceiro dos planos do negócio jurídico, sendo condicionada a fatores, que nem sempre são próprios do mundo jurídico. O negócio, agora já existente e válido, mostra-se em tese apto à produção de efeitos jurídicos. Pode ocorrer, no entanto, que esses efeitos nem sempre sejam operados, como nos seguintes exemplos:

(i) A subordinação de um pagamento à ocorrência de uma determinada condição, como a vitória de uma equipe esportiva numa determinada competição. O negócio existe, é válido, mas sua eficácia está condicionada à vitória de umas das equipes. Caso essa não ocorra, o negócio será permanentemente ineficaz;

(ii) A dotação testamentária de certos bens opera a transmissão causa mortis apenas após o advento da morte do testador. A morte é uma certeza, embora indeterminada a época em que irá se processar. O negócio, apesar de existente e válido, carece do implemento desse termo para que produza efeitos.

(iii) A doação de um imóvel, negócio jurídico existente e validamente constituído, mas que não se processa em virtude de um deslizamento de terra que soterrou e destruiu o imóvel (força maior).

Por fim, vale mais uma vez recorrer à lição de Antônio Junqueira de Azevedo, que des-taca:

6 Por vezes essa regra é re-lativizada, seja por força do julgamento dos litígios no caso concreto, seja em virtude de determinadas situações em que a lei prevê efeitos para o ato nulo, como no casamento putativo.

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“O exame do negócio, sob o ângulo negativo, deve ser feito através do que batizamos com o nome de técnica de eliminação progressiva. Essa técnica consiste no seguinte: primeiramen-te, há de se examinar o negócio jurídico no plano da existência, e aí, ou ele existe, ou ele não existe. Se não existe, não é negócio jurídico, é aparência de negócio (dito “ato inexistente”) e, então, essa aparência não passa, como negócio, para o plano seguinte, morre no plano da existência. No plano seguinte, o da validade, já não entram os negócios aparentes, mas sim somente os negócios existentes; nesse plano, os negócios existentes serão, ou válidos ou in-válidos; se forem inválidos, não passam para o plano da eficácia, ficam no plano da validade; somente os negócios válidos continuam e entram no plano da eficácia. Nesse último plano, por fim, esses negócios, existentes e válidos, serão ou eficazes ou ineficazes (ineficácia em sentido restrito).”7

considerações acerca dos requisitos de validade do art. 104

Capacidade do Agente – Trata-se aqui de uma condição subjetiva de validade do negó-cio jurídico. A falta de capacidade pode gerar a nulidade do negócio jurídico quando for uma incapacidade absoluta ou a sua anulabilidade quando se tratar de uma incapacidade relativa.

Essa capacidade deve ser aferida no momento do ato. Mesmo que após a prática do o agente se torne capaz, isso não será suficiente para sanar a nulidade, em se tratando de in-capacidade absoluta. Da mesma forma, a incapacidade superveniente ao ato não o macula, permanecendo o ato como válido.

Destaque-se ainda que a idéia de capacidade deve ser conjugada com o sentido de legi-timidade. Pode haver situações em que um indivíduo seja plenamente capaz, e dessa forma, absolutamente apto para a prática de todos os atos da vida civil. Mas esse agente, para a prática de determinado negócio jurídico, pode não ser dotado de legitimidade.

Essa legitimidade é uma espécie de permissão para a prática de um negócio jurídico em especial. O exemplo mais eloqüente é a compra e venda que se opera entre ascendentes e descendentes. Quando um pai vende um imóvel ao filho, há a presunção de que este tentará beneficiar o seu ascendente, ocasionando prejuízo aos demais herdeiros. Até que sobrevenha a anuência dos demais interessados, faltará legitimidade para essa alienação.

Objeto lícito, possível, determinado ou determinável – Para que o negócio jurídico seja válido há necessidade de adequação a esses requisitos legais, quais sejam: a possibilidade, a liceidade e a determinabilidade. A liceidade ou licitude é a conformidade do objeto com o ordenamento jurídico, seja na esfera civil, penal, ou administrativa; a possibilidade é correlata a idéia de liceidade, pois possíveis são os objetos lícitos, não devendo-se aqui confundir com a noção de possibilidade material; a determinabilidade é a característica que fundamenta a necessidade do objeto ser determinado ou pelo menos, determinável, isto é, há necessidade de estabelecer com certa precisão no que corresponderá o objeto do negócio jurídico.

Forma prescrita ou não defesa em lei – aqui se encontra um requisito de natureza formal que determina como a manifestação de vontade deve ser exteriorizada. A regra geral é a da liberdade de forma, mas pode ser excepcionada pela necessidade de observância forma especial.

2. caso GErador

A Delta Participações S.A, sociedade anônima legalmente constituída, tem por objeto a aquisição de participações acionárias em outras sociedades. A percepção de lucro dessa

7 antônio Junqueira de azeve-do. Negócio Jurídico. são Paulo: saraiva, 2003, 4ª ed.; p. 64.

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pessoa jurídica advém da especulação que promove utilizando os valores mobiliários de diversas companhias.

Ocorre que no último biênio, a Delta participações vem acumulando sucessivos prejuí-zos, fato que gerou sérios problemas em sua operação.

A Companhia não é insolvente, na medida em que o valor das dívidas acumuladas não excede o patrimônio da mesma. Contudo, uma situação foi observada: após diversos preju-ízos sucessivos, a sociedade encontrou-se momentaneamente sem liquidez em seus recursos. Ou seja, não possuía capital em espécie (dinheiro) para o pagamento de débitos elementa-res, como direitos trabalhistas.

Essa situação levou os administradores a tomar uma decisão: estabeleceriam um emprés-timo junto ao Banco Gama S.A no exato valor da dívida trabalhista vincenda. Em paralelo, negociariam a alienação de alguns imóveis pertencentes à Companhia para fazer caixa.

O empréstimo foi aprovado pelo conselho de administração da companhia e acordado diretamente entre o corpo diretivo da Delta Participações e a gerência do Banco Gama. Em seguida, foi remetida correspondência aos funcionários, informando-os da necessidade de se dirigirem à instituição financeira para o recebimento de seus créditos. Frisou-se, para tranqüilidade geral, que o débito seria responsabilidade da companhia e que os funcionários não teriam nenhum outro transtorno senão o de dirigirem-se à agência bancária.

Ocorre que o Banco Gama procedeu de forma diversa do acordado com a Companhia. Estabeleceu contratos nos quais os funcionários da Delta Participações figuravam direta-mente no pólo passivo da relação, ou seja, como obrigados. Seriam eles os reais devedores da dívida.

Isso foi possível porque se tratavam de funcionários humildes, de pouca experiência negocial, além do contrato ser demasiadamente complexo para que, em rápida leitura, pu-dessem os funcionários questionar todo o procedimento.

A alienação de bens da Delta fracassou e a mesma não realizou o pagamento do repu-tado empréstimo. Consequentemente, o banco reivindicou o adimplemento da dívida aos funcionários da companhia. Correspondências, notificação de cobrança, negativização do nome em instituições de proteção ao crédito foram alguns dos meios utilizados pela insti-tuição financeira para cobrar a dívida.

Com base nesta primeira aula sobre os planos do negócio jurídico, dê um parecer fun-damentado sobre a situação acima descrita. Enfoque na exigibilidade (ou não) do negócio estabelecido entre o Banco e os Funcionários da Delta.

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aUla 3: classiFicaçÃo, interPretaçÃo e caUsa dos negócios JUrídicos

EmENtário dE tEmas

Classificação dos negócios jurídicos – Interpretação dos negócios jurídicos – Causa dos negócios jurídicos.

lEitura obriGatória

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Foren-se, 2005; pp. 495/509.

lEituras comPlEmENtarEs

TEPEDINO, Gustavo, BODIN DE MORAES, Maria Celina e BARBOZA, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 220/230.

VENCESLAU, Rose Melo. “O negócio jurídico e as suas modalidades”, in Gustavo Tepedino (org). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 177/200.

1. rotEiro dE aula

classificação dos negócios jurídicos

Existem diversas formas de se classificar os negócios jurídicos e a doutrina se vale dos mais variados critérios para esse fim. O esforço para classificação dos negócios surge como meio para facilitar a interpretação e a aplicação dos dispositivos que são pertinentes à matéria.

Uma primeira classificação dos negócios jurídicos, com já visto, os divide em negócios bilaterais e unilaterais. Como destaca Caio Mário:

“É negócio jurídico unilateral o que se perfaz com uma só declaração de vontade (testa-mento, codicilo), enquanto bilateral se diz aquele para cuja constituição é necessária a exis-tência de das declarações de vontade coincidentes.”9

Negócios jurídicos unilaterais são aqueles em que uma parte, por intermédio de uma de-claração de vontade, realiza um determinado ato jurídico. Negócios Jurídicos bilaterais, por sua vez, são aqueles que implicam na existência de duas declarações de vontade coincidentes sobre o objeto. Essas manifestações de vontade devem coincidir, surgindo nesse momento o consentimento. Quando o mesmo não ocorre, ainda que haja manifestação volitiva de mais dos dois agentes, o negócio não se forma.

Sendo assim, os negócios jurídicos bilaterais se formam quando uma pessoa emite uma manifestação de vontade em determinado sentido, e outra pessoa declara sua anuência a essa manifestação de vontade. É o consentimento entre esses agentes, o ajustamento entre seus desígnios, que promove o surgimento dessa modalidade de negócio jurídico.

8 caio Mário da silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; p. 496., p. 496.

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Os negócios jurídicos podem ainda ser classificados em onerosos ou gratuitos. O que se tem em vista aqui é o efeito do negócio. O negócio oneroso é aquele que proporciona ao agente a percepção de vantagem econômica, mediante o exercício de uma prestação. A idéia presente aqui é a da correspectividade de prestações, isto é, da mútua transmissão de bens.10

Gratuito, ao contrário, é aquele negócio onde uma pessoa proporciona à outra determi-nado enriquecimento sem contraprestação por parte do beneficiado. A vantagem é exclusiva para uma das partes da relação, a qual não é obrigada a prestar, sendo apenas beneficiária direta da diminuição do patrimônio da outra. Como destaca Caio Mário:

“O negócio a título oneroso configura a produção de conseqüências jurídicas concre-tizadas na criação de vantagens e encargos para ambos, como a compra e venda, em que a prestação de cada parte se contrapõe à da outra parte. O negócio jurídico a título gratuito traz benefício ou enriquecimento patrimonial para uma parte, à custa da diminuição do patrimô-nio da outra parte, sem que exista correspectivo dado ou prometido, como na doação pura, em que o doados transfere bens de seu patrimônio para o do donatário, que se enriquece sem se sujeitar a nenhuma prestação.”11

Os negócios jurídicos podem também ser classificados como inter vivos e causa mortis. O negócio jurídico inter vivos é aquele pactuado para produzir os seus efeitos durante o período de vida das partes. Ele produz efeitos desde logo. Contudo, isso não significa que o negócio jurídico inter vivos tenha a sua natureza desnaturada quando ocorre a circunstân-cia de se estenderem os seus efeitos para depois da morte do agente. A idéia central que o classifica dessa forma é que as conseqüências desse ato se processam com mais intensidade durante a vida das partes que lhe deram causa, podendo se estender, naturalmente, para além de suas mortes.

O negócio jurídico mortis causa produz os efeitos após o advento da morte do agente. Frise-se que o ato não produz nenhum efeito até que ocorra esse evento. O exemplo clássico desse tipo de negócio jurídico é o do testamento.

Os negócios jurídicos dividem-se ainda em principais e acessórios. Principal é aquele que existe por si mesmo e independentemente de outro. Já o acessório é aquele cuja existência pressupõe a de outro que seja principal, não possuindo existência autônoma. O negócio jurídico acessório segue a sorte do principal: caso esse seja invalidado, extinto pela vontade das partes ou inquinado de algum vício que impeça a produção de seus efeitos, seguirá o negócio acessório a sua mesma sorte.

Atentando ao critério da forma, os negócios Jurídicos podem ser classificados como solenes e não solenes.

Solenes (ou formais) são aqueles que se revestem de certa forma especial. Não solenes (ou consensuais) são aqueles que possuem forma livre, tendo validade qualquer que seja a forma assumida pela manifestação de vontade. Nesse sentido, cumpre mencionar o disposto nos arts. 107 e 108 do Código Civil:

Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de di-reitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

10 Gustavo Tepedino, Maria celina bodin de Moraes e He-loisa Helena barboza. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 213.

11 caio Mário da silva Pereria. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; p. 497.

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O art 107, como visto, enuncia a regra acima exposta, ao passo que o art. 108 é um exemplo de imposição legal de forma específica para o negócio jurídico.

interpretação do negócio jurídico

Na primeira aula sobre negócio jurídico foi constatado que esse instituto tem por escopo fundamental a criação de relações jurídicas, que como tal, intentam a busca de efeitos de natureza não só econômica, mas também social. Por intermédio dessas relações, as partes se vinculam mediante o estabelecimento concomitante de direitos subjetivos e deveres ju-rídicos.

A existência de similitudes entre a lei e o negócio jurídico é patente. Dessa forma, não há que se desprezar a abordagem dessas características comuns (e também de suas diferenças) no estudo hermenêutico dessa espécie de ato jurídico.

A primeira das características comuns, e também a mais elementar, é a de que tanto a norma legal quanto o negócio jurídico são expressões da vontade humana, pois definem condutas, direitos, deveres jurídicos e toda sorte de efeitos jurídicos.

No entanto, apesar de serem expressões da vontade e prescreverem direitos e deve-res, a lei e o negócio jurídico diferem quanto ao agente produtor dessas normas. A lei é manifestação da vontade do Estado. A lei, em sentido formal, promana de ato do poder legislativo, que através de ritos procedimentais estabelecidos em sede constitucional, edita leis em caráter genérico e abstrato que balizam a conduta de todos os indivíduos. Já os negócios jurídicos são constituídos por intermédio da manifestação de vontade de agentes particulares, que criam normas cujo campo de incidência se restringirá aos participantes desse pacto. Somente aos contratantes serão impostas obrigações, mas é possível, como se verá posteriormente, que os efeitos jurídicos do instrumento contratual alcancem a órbita jurídica de terceiros.

Sendo o negócio jurídico exteriorização da vontade humana, é certo que a sua interpre-tação deve cogitar não só de elementos de ordem jurídica, mas também de ordem psíquica. Trata-se de problemática especialmente atinente à atividade interpretativa do julgador, pois é quando da instalação dos litígios, quando já se demandou a tutela do Estado, ou de uma corte arbitral, em sua solução, que o juiz ou árbitro vai inquirir sobre os desígnios que os agentes intentavam quando da construção do liame contratual.

A interpretação do negócio jurídico se coloca umbilicalmente relacionada ao conteúdo da declaração de vontade, e nesse sentido, muito mais do que atentar as regras de interpre-tação, os magistrados se atêm às particularidades do caso concreto.

No art. 112 do nosso código civil encontra-se um princípio interpretativo de vital im-portância nessa seara. Ele estabelece a necessidade de atentar mais à intenção da declaração de vontade do que ao conteúdo literal que ela assume. Nesse sentido:

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Logicamente isso não significa que o intérprete desse negócio deva desprezar por comple-to o teor literal do mesmo. Todavia, os negócios jurídicos podem assumir grande variedade de formas e de objetos, de maneira que estabelecer um ritual interpretativo seria complexo e redundaria em imprecisão. Dessa forma, optou-se por alargar a margem de discricionarie-dade do intérprete que, no caso concreto, buscará a real vontade das partes.

Essa abordagem no caso concreto é fruto da consideração de que a manifestação de vontade, que redunda na criação do negócio jurídico, se encontra intimamente ligada

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a elementos econômicos e sociais, bem como outros fatores de ordem jurídica, como os princípios jurídicos da boa-fé e da lealdade entre as partes no contrato.

Outro ponto de destaque é o que alude à reserva mental, e nesse sentido o art. 110 do Código Civil acrescenta a previsão de tal instituto no ordenamento legal brasileiro, não obstante a sua previsão nos campos jurisprudencial e doutrinário já existir de longa data.

No entendimento de Serpa Lopes, reserva mental é a manifestação de vontade disso-nante de seu real conteúdo, de modo que os efeitos decorrentes do ato praticado não sejam queridos pelo declarante.12

Se a outra parte que pactua o negócio desconhecia a dissonância entre declaração e von-tade, o ato deve ser conservado em prestígio à boa-fé dessa parte e à segurança das relações jurídicas. Caso contrário, se era do conhecimento da outra parte a divergência entre vontade e declaração, a conseqüência será a invalidação do negócio.

Verifique-se que nesse campo da interpretação dos negócios jurídicos, a boa-fé objetiva assume uma posição de verdadeira proeminência, sendo um dos nortes interpretativos dos negócios jurídicos. Esse princípio se traduz na necessidade de se observar ações pautadas na ética e lealdade entre as partes, tutelando ainda a confiança depositada na parte contrária da relação.

O art. 113 do Código, mais uma vez salienta a necessidade de interpretação em conso-nância com o princípio da boa-fé, aliando ainda o elemento costumeiro na interpretação do negócio (usos dos negócios).

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Os contratos benéficos, por seu turno, devem ser interpretados de forma restrita, nos limites pretendidos pelo agente. São aqueles mediante os quais se exerce alguma espécie de liberalidade, como na doação ou na renúncia. Se por acaso o doador transferiu mais bens do que realmente tinha em mente, a transmissão no que toca ao excesso deve ser invalidada. Nesses negócios, é com especial atenção que a vontade do agente instituidor deve guiar a atividade do intérprete.

causa do Negócio Jurídico

O negócio jurídico, conforme já examinado, é uma manifestação de vontade que, aten-tando aos requisitos da lei, produz determinados efeitos. O negócio jurídico visa a um fim determinado, e como tal, há certa motivação para a consecução desse fim.

A noção de causa aqui mencionada constitui um motivo com relevância jurídica. Nesse sentido, afirma Silvio Venosa que:

“Numa Compra e venda, por exemplo, o comprador pode ter os mais variados motivos para realizar o negócio: pode querer especular no mercado; pode pretender utilizar-s da coisa para seu próprio uso; pode querer adquiri-la para revender. Todos esses motivos, porém, não têm relevância jurídica. O motivo com relevância jurídica será receber a coisa, mediante pagamento. Para o vendedor, por outro lado, o motivo juridicamente relevante é receber o preço. Pouco importa, para o Direito, se o vendedor aplicará o dinheiro recebido no mercado decapitais ou pagará dívida.”13

Dessa forma, pode-se observar a clara distinção entre motivos, que podem ser muitos, e a causa, que efetivamente gera efeitos jurídicos.

12 Miguel Maria de serpa lo-pes. Curso de Direito Civil, v. I.. são Paulo: Freitas bastos, 1989; p. 402.

13 silvio de salvo Venosa. Direito Civil: Parte Geral. são Paulo: atlas, 2003; p. 409.

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O direito pátrio não encampa a causa como elemento do negócio jurídico, traçando considerações somente no que tange ao objeto e sua liceidade. Assevera-se que objeto e cau-sa, embora sejam elementos em essência diversos, apresentam certa aproximação conceitual, versando ambos sobre a finalidade do negócio jurídico. E foi justamente nesse sentido que o Código Civil, seguindo a linha do seu antecessor (que por sua vez se filiava à corrente de natureza germânica), trata do objeto do negócio de forma mais ampla, incluindo assim a noção de causa.

No entanto, apesar da previsão legal no sentido da não essencialidade da causa, há diver-sos doutrinadores que manifestam entendimento divergente. É interessante, para esses fins, destacar no atual Código Civil o art. 140, o qual está assim redigido:

Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante.

Aqui o código excepciona a idéia geral, destacando a importância da causa. Isso ocorre porque, em regra, a causa que leva a prática do ato resta desconhecida. Nos casos em que ela é expressamente enunciada, especificando a motivação em que o negócio está envolto, abre-se espaço para a anulação do negócio tendo em vista um “defeito” nesse motivo.

A partir dessa situação, pode-se mesmo criar um exemplo no qual poderia se pleitear a anulação do negócio tendo em vista erro no motivo. Imagine-se que uma determinada pessoa jurídica com fins especulativos adquire grupo de imóveis pelo preço de mercado. Re-aliza tal aquisição tendo em vista a construção, amplamente divulgada, pelo Poder Público, de estação de metrô exatamente ao lado do local onde esses imóveis se encontram. Deixa essa motivação absolutamente clara ao alienante. Pouco tempo depois, já com as obras em início, a municipalidade altera os planos estabelecidos e não realiza a obra. Os imóveis ad-quiridos conservam o valor original.

Certo é que, no caso concreto, diversas considerações serão levantadas, desde o risco na-tural envolvido nesse negócio jurídico, até a questão da boa-fé do alienante e do adquirente. A idéia é que se abre espaço nessas situações onde o motivo determinante na realização do negócio jurídico se frustra para que se pleiteie a invalidação do ato.

2. QuEstõEs dE coNcurso

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)39. Assinale a única afirmação ERRADA quanto aos negócios jurídicos.

a) A validade da declaração de vontade dependerá sempre de forma especial.b) A validade do negócio jurídico requer, entre outros, objeto determinado ou determi-

nável.c) Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar

de sua celebração.d) Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.e) Silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem e não

for necessária a declaração de vontade expressa.

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Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) – prova azul:29. No direito pátrio, como regra geral, o negócio jurídico inspira-se pelo princípio da forma:

a) particular.b) livre.c) consensual.d) pública.e) especial.

21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase1 – No que se refere a contrato firmado entre duas partes é CORRETO afirmar:

a) A vontade manifesta de uma das partes não subsiste se esta faz reserva mental de não mais querer aquilo que manifestou;

b) A reserva mental é indiferente à validade do negócio jurídico, exceto quando o desti-natário da manifestação de vontade efetuada com reserva mental tiver conhecimento da mesma;

c) A reserva mental de uma das partes importa em erro concernente ao objeto da de-claração de vontade;

d) O negócio realizado com reserva mental de uma das partes é anulável por não im-portar em um querer definitivo.

2 – Assinale a alternativa INCORRETA no que se refere ao silêncio nos contratos: a) O silêncio no sentido jurídico pode ser conceituado como aquela situação quando

uma pessoa não manifestou sua vontade em relação a um negócio jurídico, nem por uma ação especial necessária a este efeito (vontade expressa) nem por uma ação da qual se possa deduzir sua vontade (vontade tácita);

b) Se alguém me apresenta um contrato e manifesta que tomará meu silêncio como aquiescência, eu não me obrigo, porque ninguém tem o direito, quando eu não consinto, de forçar-me a uma contradição positiva;

c) O silêncio só produz efeitos jurídicos quando, devido às circunstâncias ou condições de fato que o cercam, a falta de resposta à interpelação, ato ou fatos alheios, ou seja, a abstenção, a atitude omissiva e voluntária de quem silencia induz a outra parte, como a qualquer pessoa normal induziria, à crença legítima de haver o silente reve-lado, desse modo, uma vontade seguramente identificada;

d) O silêncio importará em anuência do contrato todas as vezes em que se estiver dian-te de contratos de adesão, houver prazo obrigatório assinalado para manifestação da parte, sob pena de não o fazendo considerar a contraparte que houve aquiescência e a parte tiver tido ampla oportunidade de tome conhecimento de todos os termos e cláusulas do contrato.

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aUla 4: deFeitos do negócio JUrídico: erro e dolo

EmENtário dE tEmas

Manifestação de vontade defeituosa – Disciplina jurídica do erro – Erro de Fato e Erro de Direito – Disciplina jurídica do dolo – Dolo essencial e dolo acidental – Dolus Bonus e Dolus Malus – Dolo Positivo e Dolo Negativo – Dolo de Terceiro.

lEitura obriGatória

NEVARES, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo có-digo civil”, in Gustavo TEPEDINO (org). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 251/271.

lEituras comPlEmENtarEs

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Foren-se, 2005; pp. 513/529.

TEPEDINO, Gustavo, BODIN DE MORAES, Maria Celina e BARBOZA, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 268/284.

1. rotEiro dE aula

manifestação de vontade defeituosa

O negócio jurídico, como visto, se processa mediante uma declaração de vontade con-dizente com a lei e que tenciona a produção de efeitos jurídicos. Deriva, assim, da emissão de vontade do agente. Essa manifestação de vontade é um dos elementos constitutivos do negócio, sem a qual o mesmo não chega nem mesmo a transpassar o plano da existência.

No entanto, uma vez existente essa vontade, o direito se ocupa dos requisitos de validade que ela deve demonstrar para que o negócio possa validamente se aperfeiçoar. Ainda que emanada diretamente do agente, essa declaração pode não traduzir o seu íntimo querer, a sua vontade real e dessa maneira, o intérprete termina por se deparar com um negócio defeituoso. Quando a vontade manifestada não corresponder à vontade real, ao desejo do agente, esse negócio encontrar-se-á sujeito à nulidade ou anulabilidade.

Destaque-se que à luz das teorias encampadas pelo nosso direito civil, existe a distinção entre ausência de vontade e emissão defeituosa operando em planos diversos. Sendo a vontade elemento do negócio, e estando ela ausente, esse ato será inexistente. Por outro lado, sendo a manifestação volitiva defeituosa, o negócio é existente, embora inválido.

Os defeitos que podem atingir o negócio jurídico podem ser de dois tipos. Os vícios de consentimento e os vícios de vontade.

Os vícios de consentimento afetam a manifestação de vontade em si, fazendo com que a sua elaboração ocorra de modo errôneo. A exteriorização dessa vontade ocorre de modo distorcido e produz efeitos diversos daqueles que o agente tinha em mente. Se os fatores que

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macularam a vontade não existissem, o declarante ou teria agido de forma diversa ou teria se abstido de celebrar esse negócio.

Os vícios da vontade, também denominados vícios reais, são aqueles nos quais o ato se manifesta em consonância com a vontade anímica do agente, mas, no entanto, essa vontade é repudiada pelo ordenamento. Não se observa oposição entre a vontade íntima do agente e a vontade por ele externada, porém há dissonância entre a vontade do agente e a ordem legal14. Aqui, o real querer do agente se encontra harmonizado com a forma pela qual essa vontade se manifesta, existindo, entretanto, reprovação por parte da lei.

disciplina jurídica do erro

A noção clássica de erro o define como uma falsa representação da realidade que influen-cia de maneira determinante a manifestação de vontade.

No erro, o agente procede contrariamente ao seu querer, pois atua ou por desconheci-mento completo ou por conhecimento impreciso acerca de alguma circunstância. A idéia central desse conceito reside no fato de que o agente agiria de modo diverso ou mesmo nem praticaria o ato caso tivesse uma percepção correta da realidade.

Erro e ignorância não se confundem embora venham tratados conjuntamente pelo Có-digo Civil. Ignorância é o desconhecimento do agente em relação aos efeitos que serão produzidos a partir da sua declaração de vontade. Do ponto de vista jurídico, não há dife-rença.

Nesse sentido, a ignorância não pode ser observada quando o agente emite determinado ato de vontade tendo a noção de que os efeitos que serão perpetrados a partir dele são des-conhecidos. Se o agente não tem completo conhecimento do alcance do seu ato não há mais em que se falar em vício do negócio jurídico.

Um dado relevante no erro é a noção de espontaneidade na manifestação da vontade. Não importa que o agente tenha querido resultado diverso, que não tivesse completa cons-ciência dos efeitos próprios do ato que praticou. No erro, o agente pratica o ato de forma espontânea. Ninguém o coage à prática, nem o insta a praticá-lo por intermédio de artifícios escusos, ou seja, dolosos.

Os requisitos para a caracterização do erro, são, segundo Clovis Beviláqua: (i) a escusa-bilidade; (ii) recair sobre o objeto do ato (e não sobre suas designações); (iii) referir-se aos motivos essenciais do negócio; e (iv) relevância do erro.

Escusabilidade – O erro não pode ser grosseiro, de fácil visualização por um homem de inteligência mediana (homem comum) agindo com a diligência normal que o negócio re-quer. Se o erro assume essas características não há que se pleitear anulação do ato. É a regra do art. 138.

Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emana-rem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio.

Essa idéia visa precipuamente a garantir a segurança jurídica. Se qualquer erro facilmen-te verificável pudesse ensejar a anulação dos negócios jurídicos, haveria grande instabilida-de. Além disso, é necessário resguardar o outro contratante em virtude da sua boa-fé. Aferir a escusabilidade do erro é tarefa para o juiz ou árbitro no caso concreto.

Segundo afirma Silvio Venosa, “foi correta a supressão do requisito escusabilidade por-que, na nova lei, o negócio só será anulado se o erro for passível de reconhecimento pela outra parte. A escusabilidade, nesse caso, torna-se secundária.” E complementa o autor: “O

14 caio Mário da silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; p. 514.

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que se levará em conta é a diligência normal da pessoa para reconhecer o erro, em face das circunstâncias que cercam o negócio. Sob tal prisma, há que se ver a posição de um técnico especializado e de um leigo no negócio que se trata. Avultam em importância as condições e a finalidade social do negócio que devem ser avaliadas pelo juiz.”15

Erro Substancial ou Essencial – Para que o ato seja passível de anulação é necessário que o erro seja substancial (ou essencial). Como pode se perceber pela sua própria nomenclatu-ra, o erro essencial tem papel de suma importância na declaração de vontade realizada pelo agente. Se tivesse consciência da falsa representação da realidade ensejada pelo erro, não teria concluído o negócio. Ele incide sobre a causa do negócio ou pelo menos, sobre uma das várias causas do mesmo.

A definição legal sobre o que é erro substancial vem no art. 139, I. O inciso I do mesmo artigo fala do erro quanto à pessoa, dando-lhe tratamento ainda mais especificado:

Art. 139. O erro é substancial quando:I – interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das

qualidades a ele essenciais;II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração

de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou

principal do negócio jurídico.

O erro acidental, contrariamente ao substancial, não é suficiente para anular o negócio. Ele incide sobre motivos ou qualidades não essenciais. Nesse caso, não se abre espaço para se pleitear anulação, pois o declarante realizaria o negócio, ainda que conhecendo do erro. Mais uma vez é o juiz, no caso concreto, que irá aferir a essencialidade ou não do erro. Não há que se pensar em critérios pré-definidos, visto que o erro que numa situação pode assu-mir a qualificação de secundário, pode noutro negócio revestir caráter de essencialidade.

O art. 142 trata de hipóteses onde a incidência do erro não pode ser suficiente para a invalidação do ato:

Art. 142. O erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vonta-de, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada.

Como já por nós examinado, a causa não foi encampada pelo nosso ordenamento como elemento do negócio jurídico. Limita-se a lei, no art. 140 do Código Civil, a enunciar que o falso motivo só enseja anulação quando expressamente enunciado como razão determinante do negócio. No mais, quando não expressos os motivos que levaram o agente a negociar, residindo apenas no seu campo psíquico, não há que se falar em sua influência no mundo jurídico.

Erro de Fato e Erro de direito

Já o erro de direito, por conta de alterações legislativas, implica em certa divergência. O erro pode não recair sobre circunstâncias de fato conforme examinado acima, mas ao contrário, estar diretamente ligado ao desconhecimento da norma jurídica ou das conseqü-ências jurídicas do acordo.

Esse desconhecimento não deve ser compreendido aqui como a total ignorância da exis-tência. O próprio ordenamento é expresso nesse sentido, por força do art. 3º da LICC. O

15 silvio de salvo Venosa. Direito Civil: Parte Geral. são Paulo: atlas, 2003; p. 426.

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erro, neste caso, consiste no falso conhecimento do direito aplicável, ou da interpretação do mesmo, redundando na produção de efeitos jurídicos diversos do pretendido.

Há ainda que destacar que o erro de direito somente pode dar margem à anulação quan-do se mostra como motivo determinante da declaração, ou seja, o agente somente resolveu proceder com esse ato na medida em que tinha uma noção equivocada da norma jurídica.

disciplina jurídica do dolo

Não há conceituação sobre dolo constante do Código Civil. O Código inicia o trata-mento da matéria no art. 145, elencando o dolo entre as causas de anulabilidade do negócio jurídico.

O dolo é a o estratagema, o artifício utilizado no intento de viciar a vontade daquele a quem se destina. São manobras efetuadas com o propósito de obter uma declaração de vontade que não ocorreria caso o declarante não fosse ludibriado. A definição de Clovis Bevilaqua se mostra bem elucidativa:

“Dolo é o artifício ou expediente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato jurídico, que o prejudica, aproveitando ao autor do dolo ou a terceiro.”16

A distinção entre dolo e erro se assenta no fato de que o primeiro há uma causação intencional do vício da vontade. No dolo há provocação. O erro, como já examinado, tem origem na própria vítima, da sua íntima convicção, sendo uma falsa representação da reali-dade espontaneamente provocada pela mesma.

Essa distinção se mostra relevante pois, muitas vezes, é de mais fácil verificação o com-portamento doloso por parte de algum agente do que a prova da percepção errônea da realidade, exclusiva da vítima.

O dolo deve versar sobre elemento essencial do negócio jurídico para que possa ser en-sejada a sua invalidade. O dolo que trata de elemento acidental não é suficientemente forte para que o negócio seja invalidado.

A idéia que circunda o dolo é o de levar uma determinada pessoa, o declarante da vonta-de, a agir de modo diverso do que pretenderia, caso não houvesse esse estratagema viciador da vontade. A doutrina, no entanto, diverge acerca da necessidade de haver prejuízo efetivo à parte.

Para os que entendem pela necessidade de desvantagem econômica, o negócio no qual uma das partes proceda dolosamente sem, no entanto, imputar a outra prejuízo estimável em pecúnia, não poderia ser invalidado.

O dolo deve ter origem no outro contratante. No caso de ser originário de terceiro, deve ser conhecido por quem dele se beneficiar. Essa é a disposição constante no art. 148, do Código Civil:

Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que sub-sista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.

dolo essencial e dolo acidental

O dolo essencial (ou principal) é uma das causas de anulabilidade do negócio jurídico. O dolo acidental, justamente por incidir em elementos acessórios da declaração de vontade,

16 clovis bevilaqua. Teoria Geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980; p. 436.

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não enseja a invalidade do ato, mas somente a reparação por perdas e danos. Ele nada mais é do que a prática de um ato ilícito.

Nesse sentido, prevê a redação dos artigos 146 e 186 do Código Civil:

Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Existem outras classificações para o estudo do dolo, como as que fazem referência à dicotomia entre dolus bonus e dolus malus, ou ainda, a dolo positivo e dolo negativo, abaixo enfocadas.

dolus bonus e dolus malus

O dolus bonus é o dolo com intensidade menor e tolerado pelo ordenamento jurídico. Um exemplo pode ser retirado do fato do comerciante que elogia demasiadamente o pro-duto que intenta vender, minorando além da conta as imperfeições e desvantagens. A idéia que marca do dolus bonus é que ele já é esperado, é natural e normal a certos negócios. Há uma presunção de que o homem que age de forma proba e diligente, seria apto a não se envolver nessa conduta dolosa.

dolo Positivo e dolo Negativo

Atentando ao fato de que o dolo pode se manifestar numa conduta positiva ou negativa, a doutrina apresenta essa classificação envolvendo o dolo positivo e o dolo negativo.

O dolo positivo ou comissivo engloba a prática de condutas, de atos que consubstanciam o intento do agente em enganar a outra parte. O declarante não agiria de modo errôneo se não houvesse esse comportamento malicioso por parte do agente. O dolo negativo ou omissi-vo, por sua vez, é a omissão que visa a fazer com que o declarante manifeste sua vontade de forma viciada. Ocorre quando o agente falta com o seu dever de informar, dever que decorre do princípio da boa-fé objetiva.

dolo de terceiro

Pode ocorrer que um terceiro, mesmo a quem os efeitos do negócio não aproveitem de nenhuma forma, perpetre um comportamento doloso. Nesse sentido, o art. 148 do Código Civil destaca que:

Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negó-cio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.

O ato é anulável se o beneficiário tivesse conhecimento do dolo, ou ainda que estivesse obrigada a ter esse conhecimento.

O dolo de terceiro pode se apresentar em três situações: (i) dolo de terceiro contando com a cumplicidade (participação efetiva) da parte do negócio; (ii) dolo de terceiro com mero conhecimento da parte beneficiária; e (iii) dolo exclusivo de terceiro, sem conheci-mento do favorecido.

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Quando o comportamento doloso se processa com alguma forma de conhecimento da parte que ele se aproveita (situações i e ii) têm-se a anulabilidade do negócio. Na situação em que a parte não faz a menor idéia do comportamento doloso do terceiro, o negócio deverá subsistir, mesmo porque, deve-se ter em vista a boa-fé da parte a quem o dolo apro-veitou. Certo é que o prejudicado poderá pleitear direito a indenização por perdas e danos face ao terceiro que agiu ilicitamente.

Como se verá adiante, a coação, ao contrário do que determinava o regime do Código de 1916, assume no atual Código tratamento semelhante ao dolo no que concerne à coação de terceiro sem o conhecimento de contratante beneficiado.

Por fim, no dolo de ambas as partes, a lei pune ambas as condutas, evitando a anulação do ato. Essa é a regra do art. 150 do Código Civil. Trata-se de uma derivação da regra de que a ninguém é dado alegar a própria torpeza.

2. caso GErador

No dia 23 de abril de 2004, Bruno e Elizabeth, um casal de namorados que residia no apartamento 303, do prédio de nº 45, na Rua Manoel Gonçalves, no bairro de Laranjeiras, tiveram uma discussão acalorada. Não se sabe ao certo o motivo da discussão, mas o fato é que o casal foi encontrado morto, no dia seguinte, pelo porteiro do prédio. O caso ainda hoje é um mistério para as autoridades policiais. Todos os jornais de circulação na cidade divulgaram por alguns dias a notícia da tragédia e as suas eventuais repercussões.

O fatídico apartamento 303 era alugado. O locador, Antônio Mathias, tomou o cuidado de reformar todo o apartamento depois da tragédia. “Foi uma medida mais espiritual do que estética” – chegou a declarar para os amigos. Depois de concluída a reforma, nada mais naquele apartamento lembrava a existência do casal.

Mas Antônio estava resolvido a vender o imóvel. Passado algum tempo, conseguiu com-prar uma outro imóvel e para lá se mudou, colocando o apartamento 303 para ser vendido através dos classificados de um grande jornal.

Dois dias depois, Francisco e Carolina, um casal de namorados, foi visitar o apartamen-to. Eles logo se encantaram com a vista e com as condições para a compra do imóvel. Depois de providenciada toda a documentação, foi devidamente lavrada a escritura de compra e venda do imóvel, que agora passava a ser de legítima propriedade de Francisco.

Numa manhã de domingo, ao retornar de uma caminhada na praia, Carolina encontra no elevador com uma moradora do prédio. A senhora, sem muita cerimônia, ao perceber que Carolina nada sabia sobre a tragédia do 303, trata de prontamente relatar todo o evento à nova moradora.

Atordoada com a noticia, a jovem corre para contar ao namorado sobre os eventos trans-corridos em seu apartamento há menos de dois anos atrás. Francisco, indignado com a má-fé de Antônio, imediatamente contata o seu advogado. Na segunda-feira, após reunião com seu advogado, Francisco está certo de que o negócio será anulado através de decisão judicial e pretende ingressar com a medida na mesma semana.

Se você fosse o juiz desse caso, como seria a sua decisão? A venda do apartamento 303 pode ser anulada com fundamento na tragédia ocorrida com Bruno e Elizabeth? Justifi-que.

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3. QuEstão dE coNcurso

20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase2 – Assinale a alternativa INCORRETA no que se refere ao dolo:

a) O silêncio de uma das partes sobre fato relevante à consecução do negócio constitui dolo;

b) Se ambas as partes procederem com dolo, pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização, a parte a quem o negócio realizado não aproveitou;

c) O dolo principal ou essencial torna o ato anulável. O dolo acidental só obriga à satisfação de perdas e danos;

d) O dolo civil ao contrário do dolo do direito penal é mais genérico, deixando ao juiz a faculdade de interpretar o caso, diante das circunstâncias, para dizer se houve ou não dolo para viciar a vontade.

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aUla 5: deFeitos do negócio JUrídico: coaçÃo, siMUlaçÃo e FraUde contra credores

EmENtário dE tEmas

Disciplina jurídica da coação – Coação por parte de terceiros – Disciplina jurídica da simulação – Disciplina jurídica da fraude contra credores

lEitura obriGatória

NEVES, José Roberto de Castro. “Coação e fraude contra credores no Código Civil de 2002”, in Gustavo TEPEDINO (org). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 291/309.

lEituras comPlEmENtarEs

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Foren-se, 2005; pp. 530/544.

TEPEDINO, Gustavo, BODIN DE MORAES, Maria Celina e BARBOZA, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 284/291; 297/306.

1. rotEiro dE aula

coação

A coação é qualquer ameaça, quer seja de natureza física, quer seja moral, mediante a qual se constrange alguém a praticar um determinado ato. A previsão legal se encontra no art. 151 do Código Civil, a partir do qual também se faz possível destacar os principais elementos do instituto:

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao pa-ciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

Os elementos marcantes para que se configure a coação são (i) essencialidade da coação; (ii) intenção de coagir; (iii) real gravidade do mal causado; (iv) ilicitude da cominação; (v) dano atual e iminente; (vi) justo receio de prejuízo, igual, pelo menos, ao decorrente do dano extorquido; e (vii) ameaça que deve recair sobre pessoa ou bens do paciente, ou pes-soas de sua família.

Da mesma forma que os demais vícios já estudados até aqui, coação deve ser causa de-terminante do negócio jurídico, ou seja, sem ela, o negócio ou não teria se realizado ou teria ocorrido de forma manifestadamente diversa.

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Se ainda que presente a coação, ela não seja a causa determinante, como no caso do co-agido desejar a prática do negócio de qualquer forma, não poderá ser pleiteada a invalidade do mesmo. O querer do agente, nesse caso, permanece espontâneo.

Se incidir sobre elemento acidental do negócio (coação acidental), a realização ocorreria indistintamente, mas de forma diversa da que se processou. Surge aqui o dever de ressarci-mento do prejuízo, mas não a prerrogativa de anular o ato.

O temor provocado pela coação deve ainda ser considerável (de natureza moral ou patri-monial). O temor de natureza moral é aquele que se dirige contra a vida, liberdade, honra da vítima, pessoas de seu círculo familiar ou ligadas àquela por fortes vínculos afetivos. A coação patrimonial incide sobre o patrimônio da vítima. Dessa forma, esse temor deve apresentar certa gravidade, pois se ele derivar das pressões a que os indivíduos são corriquei-ramente submetidos, frustrar-se-á o intento de anula o negócio.

Adicionalmente, o perigo de dano deve ser iminente. Se a ameaça for produzir efeitos em um futuro distante, não há como qualificar a coação, mesmo porque, abrir-se-ia a possibili-dade do coagido buscar a tutela do poder estatal, desembaraçando-se da injusta pressão.

O temor deve ser fundado, ou seja, deve ser claro em sua manifestação. Não há que se decretar invalidade se o coagido apenas supunha ser vítima de pressão de fato inexistente. Esses são as características descritas no art. 151:

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao pa-ciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

Um outro dado também importante é a ilicitude do mal com que se processa a coação. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito. Essa é a prescrição do art. 153 do Código Civil:

Art. 153. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial.

No entanto, o exercício do direito não se confunde com abuso do direito (art. 187) que seria justamente o seu desvio de finalidade. O exercício do direito se orienta especificada-mente à consecução da vantagem a que ele alude. Não é possível que dele venha o agente se valer para atingir finalidade diversa daquela para a qual foi criado.

Como elencado na relação de requisitos para a configuração da coação, essa conduta deve provocar na vítima receio de dano ao menos igual ao que seria provocado pelo o ato sobre o qual a coação versa. Deve-se verificar sempre a real dimensão dos danos. De um lado, deve-se averiguar os danos provocados caso o coagido aja de acordo com os desígnios do coator; de outro, deve-se também ter em mente as conseqüências que serão visualizadas na hipótese de se resistir à coação.

Esse procedimento, entanto, sofre hoje certas objeções em virtude da possibilidade de ocorrerem danos de natureza diversa, tais como os danos materiais e morais.

Alguns autores entendem ainda ser possibilidade de coação quando a ameaça se dirige ao próprio coator. É o exemplo do filho, que para obter vantagem do pai, ameaça se matar.

Ainda, a doutrina diferencia coação moral de coação física. A primeira vicia o consenti-mento, ao passo que a última liquida totalmente a possibilidade de escolha. Não há que se falar, nessa situação em declaração de vontade.

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A coação física (igualmente tratada por vis absoluta) é um constrangimento de natureza corporal que retira toda a capacidade do querer. Não há manifestação de vontade, ou seja, há ausência total de consentimento com o ato praticado. Não havendo consentimento, carece o negócio jurídico de um de seus elementos essenciais, quer seja, a declaração de von-tade, e portanto, deve ser tido como inexistente. A coação absoluta não é vício da vontade.

A coação relativa (vis compulsiva ou coação moral) se opera de forma diversa, sendo vício da vontade. A vítima tem maior campo para manifestar a sua vontade, podendo inclusive não ceder à coação, enfrentado o mal imposto. Com a coação relativa, o ato se torna apenas anulável.

O temor reverencial é determinado pelo art. 153. Trata-se do receio de desgostar pessoas a quem o agente julga dever obediência e respeito, como no caso dos filhos em relação aos pais. Há, contudo, que se observar se esse suposto “temor” não configura de fato coação.

coação por parte de terceiros

Quando do estudo sobre o dolo de terceiro, foi observado que o mesmo não macularia o ato se fosse desconhecido pela parte beneficiada. Essa solução é manejada, dentre outros motivos, pela proteção à boa-fé do beneficiado.

Sob os auspícios do Código de 1916, a dinâmica da coação determinava que mesmo com o desconhecimento da parte beneficiada pela coação, abrir-se-ia a possibilidade de anulação do ato. Essa era uma solução muito desfavorável, como visto, ao contratante de boa-fé.

Já o novo Código prevê solução diversa, semelhante àquela estudada em relação ao dolo. Se houver coação de terceiro e esta for desconhecida pelo contratante que dela se beneficiar, não se abre a possibilidade de anulação. O negócio subsiste, pleiteando-se indenização do terceiro coator.

Ocorre que se o beneficiado tiver conhecimento da coação ou dela diretamente parti-cipar, ambos estarão solidariamente obrigados ao dever de indenizar, afora a conseqüente possibilidade de anular esse negócio (arts. 154 e 155 do Código Civil).

disciplina jurídica da simulação

Simulação, como conceito jurídico, corresponde ao ato, ou negócio jurídico, que oculta a real intenção do agente. Ao contrário do que dispunha o Código Civil de 1916, a simu-lação agora é causa de nulidade do ato e não mais de anulabilidade. A razão dessa alteração reside no fato de que na simulação, não há vício da vontade. Há, sim, uma aparência de legalidade, mas o interior do ato esconde a intenção de burla à lei.

Na simulação, o negócio que se apresenta à vista de todos não é o realmente desejado pelas partes, mas é aquele que confere aparência legal ao que a verdadeira manifestação vo-litiva persegue. Destaque-se ainda que essa disparidade entre o querido e o apresentado não é ocasional, mas proposital.

A característica mais relevante do negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade e a declaração. Não há que se falar aqui em vício da vontade, pois essa se manifesta de forma desembaraçada. A simulação é um vício social, na medida em que as partes, agin-do em conluio, criam a imagem de um negócio diferente do pretendido.

Nesse sentido, na caracterização da simulação, destaca-se a (i) intencionalidade na diver-gência entre vontade e declaração, (ii) acordo simulatório entre os que declaram vontade, (iii) o intuito de enganar terceiros.

Há intencionalidade na divergência entre vontade e declaração. O emitente sabe que a declaração é errada, mas ainda assim procede com essa falsa representação da realidade.

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O intuito de enganar não pode ser equiparado com o de prejudicar terceiros. Não há, na simulação, vinculação necessária de prejuízo a alguém. No entanto, quando essa vontade de implicar prejuízo a outrem existe, diz-se que a simulação é maliciosa. Fácil, diante do exposto, é perceber que a declaração que não visa ao mal alheio reputa-se como inocente.

No que se refere a essa distinção entre inocente e maliciosa, erige-se uma celeuma dou-trinária. No Código anterior, o art. 103 determinava que somente a simulação maliciosa viciava o negócio. Tal regra não foi repetida pelo atual Código, o que levou grande parte dos autores, na esteira da corrente jurisprudencial já majoritária, a acreditar que a simulação inocente ensejaria a nulidade do negócio da mesma forma que a maliciosa.

A simulação pode assumir a forma de simulação relativa e simulação absoluta. Há simu-lação absoluta quando a declaração falaciosa se faz objetivando a não produção de nenhum resultado. O interesse real dos agentes é não praticar ato algum. Na realidade, não há que falar em ato ou negócio encoberto, pois nenhum ato existe.

Na simulação relativa há de fato um negócio pretendido pelas partes, mas a intenção delas é que esse negócio permaneça dissimulado (daí também ser chamada dissimulação). O negócio aparente tem por escopo encobrir outro de natureza diversa.

Se esse ato não prejudicar terceiros e não atentar contra a lei, o ato que o dissimula pode ser afastado, assumindo a vontade perante todos a sua face real. Esse é o sentido da lei, ma-nifestado pelo art. 167 do Código Civil:

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se váli-do for na substância e na forma.

Apesar de inválido o negócio simulado (nulo), subsistirá o dissimulado se suas forma e substância. forem válidas.

Em relação à simulação relativa, a construção doutrinária enfoca ainda 3 formas pelas quais ela pode se manifestar:

(i) Sobre a natureza do negócio – ex. simulação de doação, quando na realidade proce-de-se com compra e venda. O objetivo é fugir da excessiva tributação que marca a alienação de imóveis.

(ii) Sobre o conteúdo do negócio – ex. numa alienação, o valor definido no instrumento contratual é inferior o valor efetivo da transação;

(iii) Sobre a pessoa que participa do negócio – trata-se de uma verdadeira construção fic-cional, onde outra pessoa é envolvida na transação a fim de mascarar o conhecimento daqueles que realmente atuam no ato. É o caso dos chamados “laranjas” ou “testas de ferro”.

O art. 168 destaca os legitimados, que podem ser quaisquer interessados, bem como o Ministério Público, nos casos em que seja chamado a intervir.

disciplina da fraude contra credores

Conforme será observado no segmento sobre relações obrigacionais, a garantia dos cre-dores em relação à satisfação de seus créditos reside no patrimônio do devedor. Quando o devedor não paga a obrigação a que está vinculado, abre-se a prerrogativa ao credor de in-gressar no Poder Judiciário, pleiteando a retirada de bens do patrimônio jurídico do devedor com vistas a saldar esse débito.

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A fraude contra credores, grosso modo, corresponde a toda sorte de atos que objetivem frustrar a garantia que os credores encontram no patrimônio do devedor. Em regra, opera-se com a transferência de patrimônio.

O estado de insolvência do devedor ocorre no momento em que suas dívidas superam os seus créditos, ou melhor, quando o passivo é maior do que o ativo. Dessa forma, todos os atos que ele pratique e que importem em transferência do seu patrimônio passam a ser vistos com ressalvas, justamente porque esses bens constituem a garantia de que os credores terão os seus direitos satisfeitos.

Ocorre fraude contra credores “quando o devedor insolvente, ou na iminência de tornar-se tal, pratica maliciosamente negócios que desfalcam seu patrimônio em detrimento da garantia que este representa para os direitos creditórios alheios.”17

A fraude contra credores, grosso modo, corresponde à transferência de patrimônio com vistas a evitar a sua utilização no pagamento aos credores. No seu conceito pode-se observar a existência de dois elementos, um de ordem objetiva e outro de ordem subjetiva. O elemen-to objetivo, como já examinado, consiste no ato prejudicial ao credor, na medida em que por intermédio dele, o devedor ou se torna insolvente ou torna mais grave a insolvência já instalada. O dado de ordem subjetiva é a intenção do devedor (muitas vezes aliado a tercei-ros) de prejudicar o credor.

Aos credores que possuem garantias especiais em relação ao patrimônio do devedor não é dado alegar a invalidade do ato, afora os casos em que as garantias datas se mostrem insu-ficientes. Esse, por exemplo, seria o caso do credor hipotecário que observa que o valor do imóvel dado em garantia não mais garante a totalidade do seu crédito.

Por conta disso, a fraude contra credores é instituto que se presta precipuamente à tutela dos credores quirografários, isto é, aqueles que não possuem garantias de qualquer natureza em relação ao pagamento de seus créditos. Em regra, são eles que legitimariam o interesse de ajuizar a ação pauliana, por intermédio da qual se pleiteia a anulação do negócio jurídico.

Três são os requisitos apontados pela doutrina para a caracterização da fraude contra credores: (i) anterioridade do crédito; (ii) consilium fraudis; e (iii) eventus damni.

A anterioridade do crédito é determinada pelo art. 158, §2º. Quem contrata com de-vedor já insolvente, abre mão de patrimônio que garanta o cumprimento dessa obrigação. Deve o credor, antes de pactuar, certificar-se da solvência do devedor.

O eventus damni se liga à necessidade de se comprovar o prejuízo. Sem ele, não há inte-resse na propositura da ação pauliana.

O terceiro e último elemento é o consilium fraudis, dado de ordem subjetiva. Não é ne-cessária a intenção em prejudicar o credor, mas apenas a consciência de que a prática do ato redundará no afastamento da garantia.

Um outro dado relevante é a vedação à transmissão gratuita de bens, seja a doação ou a remissão de dívidas. Nesse caso, o legislador foi claro ao considerar desnecessária a compro-vação de fraude. Como as liberalidades, tal como a doação, são negócios celebrados a título gratuito, sem que importe em contraprestação, a lei as proíbe em resguardo ao interesse dos credores (art. 158 do Código Civil).

A ação pauliana, por sua vez, é titularizada pelo credor lesado, que a ajuíza tutelando di-reito seu. Objetiva a invalidação do ato jurídico que afetou a garantia que o credor encontra no patrimônio do devedor. Essa ação deve ser movida contra todos os participantes do ato fraudulento, ou seja, todos que integraram o pólo passivo da relação obrigacional. Essa regra deriva do art. 161, que na realidade assumiria redação mais apropriada aludisse à idéia de que todos os envolvidos na construção da fraude figurariam como réus.

Em relação aos efeitos da ação pauliana, cumpre destacar que as vantagens oriundas da anulação do ato, nos termos do art. 165, remetem ao acervo de bens sobre o qual ocorrerá

17 Gustavo Tepedino, Maria ce-lina bodin de Moraes e Heloisa Helena barboza. Código Civil Interpretado conforme a Consti-tuição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 297

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o concurso de credores. A anulação beneficiará a todos os credores, sejam quirografários ou os dotados de algum privilégio.

A fraude contra credores é apenas uma das espécies de fraude. A sofisticação da mente humana é suficientemente capaz de criar novas situações onde o embuste se revestirá, apa-rentemente, dos requisitos de validade. Muitas vezes competirá ao juiz ou árbitro, no caso concreto, aferir a intenção dos agentes determinando a anulação do ato.

2. caso GErador

Alfredo e Valdete são casados e dentre os bens do casal encontra-se um apartamento locado no bairro de Laranjeiras. Com a aposentadoria de Alfredo, o casal, nos próximos meses, finalmente colocará em prática o acalentado sonho de se mudarem para a cidade de Natal.

Nesse sentido, Alfredo e Valdete resolvem doar o apartamento em questão aos filhos do casal, Lucas e Letícia. A razão de ser dessa transferência foi o fato de os referidos filhos já se encontrarem formados, independentes economicamente, e, portanto, com condições de arcar com despesas próprias da manutenção de um imóvel.

Deve-se destacar ainda que, afora o apartamento em questão, Alfredo e Valdete possuem outros imóveis, um residencial e ainda uma sala comercial – a qual, no entanto, encontra-se penhorada.

A penhora se deu em virtude do não adimplemento por parte do casal de um emprésti-mo levantado junto ao Banco Alfa S/A há alguns meses.

Confiante de que o valor do imóvel penhorado saldaria suas dívidas, o casal resolveu dar seguimento aos seus intentos. Com o imóvel já doado, Alfredo e Valdete planejavam a vida na nova cidade.

Ficaram surpresos, contudo, quando receberam a citação judicial informando do ajui-zamento de ação pauliana visando a desconstituição da doação celebrada. O Banco Alfa afirmou que o valor do imóvel penhorado não cobria o valor da dívida e os custos com o trâmite judicial. Destacou a instituição financeira que o valor de mercado do bem sofrera um considerável decréscimo nos últimos meses e dessa forma, uma garantia suplementar seria necessária, daí a necessidade de igualmente penhorar o imóvel do casal.

Alfredo e Valdete contestam essas alegações destacando que o valor do imóvel seria sim suficiente para saldar o débito. Ainda que não o fosse, há a impossibilidade de anular o negócio, visto que a intenção dos doadores não foi a de burlar a lei.

Com base no exposto, responda:a) A ação pauliana foi ajuizada com fundamente em que instituto jurídico? Enumere

quais são os elementos desse instituto e quem são os integrantes do pólo passivo da relação processual.

b) As alegações do casal na contestação são procedentes? Justifique.

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3. QuEstõEs dE coNcurso

24º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase40 – Sobre simulação no novo Código Civil, é correto afirmar que:

a) Não se trata de hipótese de anulação, como no Código anterior, mas sim de nulida-de do negócio jurídico;

b) Decorre da prática de atos legais, mas com a finalidade de prejudicar terceiros, ou, ao menos, frustrar a aplicação de determinada regra jurídica;

c) Foi excluída do novo Código Civil, não sendo causa de inexistência, nem nulidade e, tampouco, de anulação do negócio jurídico;

d) É o artifício ou expediente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato jurídico, que o prejudica.

22º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase3 – Em relação à simulação é CORRETO afirmar:

a) tal como na coação, uma das partes é forçada, mediante grave ameaça, a praticar o ato ou celebrar o negócio;

b) na simulação relativa o negócio dissimulado não subsiste, mesmo que seja válido na substância e na forma;

c) nunca é acordada com a outra parte ou com as pessoas a quem ela se destina;d) é uma declaração falsa, enganosa, da vontade, visando aparentar negócio diverso do

efetivamente desejado.

20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase3 – No que se refere à coação, assinale a alternativa INCORRETA:

a) A coação física, violência, vis absoluta, exclui o consentimento. Não há negócio ju-rídico porque falta o elemento principal – a vontade do agente – que foi privado de manifestá-la, o que acarreta a inexistência do negócio;

b) A coação, como vício do consentimento, se aprecia objetivamente, sem consideração à condição das partes;

c) O caso do credor que ameaça levar o devedor a juízo, a fim de obrigá-lo ao pagamen-to da dívida, não constitui coação;

d) A ameaça de um mal remoto ou evitável não constitui coação capaz de viciar o ne-gócio.

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aUla 6: lesÃo e estado de Perigo

EmENtário dE tEmas

Estado de perigo – Conseqüências do estado de perigo – Disciplina jurídica da lesão – Conseqüências da lesão.

lEitura obriGatória

NEVARES, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo có-digo civil”, in Gustavo TEPEDINO (org). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 271/290.

lEituras comPlEmENtarEs

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Foren-se, 2005; pp. 544/552.

TEPEDINO, Gustavo, BODIN DE MORAES, Maria Celina e BARBOZA, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 291/297.

1. rotEiro dE aula

Estado de Perigo

O conceito de estado de perigo pode ser encontrado no art. 156 do Código Civil, ap dispor que o referido estado será configurado quando “alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.”

O estado de perigo é um dos defeitos do negócio jurídico, e como tal, é passível de anulação. Sua natureza é similar a dos outros vícios estudados até aqui, qual seja, a de vício do consentimento. Configura-se o estado de perigo quando o agente, premido por circuns-tâncias de fato que exercem forte influência sobre a sua vontade, realiza negócio jurídico em condições desvantajosas, assumindo obrigação excessivamente onerosa.

O estado de perigo guarda certa similitude com a coação, uma vez que nessa modalidade de defeito do negócio jurídico, a ameaça ou violência temida pelo coagido provém de al-guém interessado na prática do ato. No estado de perigo, diferentemente, também há uma ameaça, que decorre, entretanto, de uma circunstância fática.

Na configuração do estado de perigo, configuram-se como elementos: (i) necessidade de preservação da vida humana; (ii) dolo de aproveitamento; e (iii) assunção de obrigação excessi-vamente onerosa. Nesse sentido, têm-se que:

Necessidade de preservação da vida humana – Não é qualquer bem jurídico que se encon-tra em risco. Na configuração do estado de perigo, o declarante manifesta sua vontade em momento específico, um momento verdadeiramente crítico, onde se observa a necessidade de preservação da vida humana, que pode ser do próprio emitente ou de outrem. Essa emis-são dessa vontade ocorre em receio a um perigo iminente de dano.

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No que concerne ao indivíduo que se encontra submetido à situação de perigo, o art. 156 estabelece como regra duas hipóteses: (i) pode o emitente agir em defesa própria, quan-do é quem corre perigo; (ii) pode ainda agir tendo em vista a defesa de um familiar, quando assume a obrigação tencionando salvar do perigo um ascendente, um descendente ou o cônjuge.

Destaque-se que o estado de perigo pode ser configurado ainda quando a obrigação assu-mida não for referente à proteção própria ou de um membro da família, sendo essa a regra do art. art. 156, §. Compete ao juiz, casuisticamente, decidir pela aplicação dessa hipótese, atentando às circunstâncias em que se formou o negócio jurídico.

Dolo de Aproveitamento – Na coação, conforme já examinado, o agente coator cons-trange o emitente à manifestação de vontade que lhe seja favorável. O perigo que aflige ao coagido é criado por aquele se aproveita da formação do negócio. O estado de perigo, por sua vez, configura-se pelo surgimento espontâneo da situação de perigo.

A leitura do art. 156 permite afirmar que, embora o beneficiário da situação periclitante não a tenha dado causa, ele certamente tinha conhecimento da necessidade de proteção à vida que a outra parte tinha, e se aproveitou desta circunstância para obter a vantagem indevida.

Assunção de Obrigação Excessivamente Onerosa – De per se, o fato do indivíduo estar submetido a uma situação de perigo ao manifestar sua vontade não é suficiente para eivar de defeito o negócio jurídico. Em tese, poderia recusar-se a se submeter às condições abu-sivas do beneficiário e tentar ultimar o negócio jurídico com outra pessoa. Têm-se, assim, que para se admitir o estado de perigo como defeito do negócio jurídico, a manifestação da vontade negocial deverá resultar na assunção de uma obrigação excessivamente onerosa, em decorrência da urgência em se resguardar a vida humana do iminente perigo a que está sendo submetida.

Vale ressaltar que o legislador não se ocupou em delimitar o que seria uma obrigação excessivamente onerosa. O silêncio da lei é benéfico, pois assim como uma determinada situação pode ser mais gravosa para um indivíduo do que para outro, o excesso da prestação também é relativo, devendo ser analisado casuisticamente.

conseqüências do estado de perigo

Visando a igualar o estado das partes nesse tipo de situação, o Código Civil reputa como anulável o negócio jurídico celebrado em estado de perigo (art. 171, II). A anulabilidade da relação jurídica está sujeita ao prazo decadencial de quatro anos (art. 178, II).

Mesmo com a determinação legal, uma parte da doutrina sustenta que a anulabi-lidade não seria o efeito mais adequado para os casos em que o negócio jurídico for celebrado em estado de perigo. Isso porque a anulação do negócio jurídico levaria à devolução integral da quantia desembolsada pela “vítima”, porém, não se pode esquecer que, ainda que de má-fé, houve um serviço prestado pela outra parte, e que resultou em despesas.

Nesse sentido, poder-se-ia cogitar que seria mais correto utilizar-se da revisão objetiva do preço, como acontece nos casos de lesão (art. 157 § 2º, do Código Civil), evitando assim tanto o enriquecimento sem causa do agente que recebeu a prestação do serviço, quanto o prejuízo do prestador de serviço, que poderia abater da restituição os gastos que teve para cumprir sua obrigação. Este é o entendimento do CJF, conforme se extrai do enunciado 148 da III Jornada de Direito Civil: “Ao estado de perigo (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157”.

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disciplina jurídica da lesão

O conceito de lesão encontra-se no art. 157 do Código Civil, ao dispor que “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a pres-tação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.”

Pode-se afirmar que, de modo genérico, a lesão é “o prejuízo que uma pessoa sofre na conclusão de um ato negocial, resultante da desproporção existente entre as prestações das duas partes”.18 Esse instituto surgiu primitivamente na compra e venda, evoluindo através do tempo até abranger todo tipo de convenção negocial.

Atualmente, o ordenamento jurídico nacional consagra o entendimento de que existe lesão quando o agente, instado por uma necessidade, induzido pela inexperiência ou con-duzido pela leviandade, realiza um negócio jurídico que proporciona à outra parte um lucro patrimonial desarrazoado ou exorbitante da normalidade.19

Em relação à sua natureza jurídica, a doutrina também apresenta controvérsias, sendo que a corrente majoritária entende que a lesão é defeito atípico do negócio jurídico.

Como elementos qualificadores da lesão, podem ser elencados os seguintes: (i) Des-proporção evidente entre prestação e contra-prestação; (ii) Desigualdade Originária; (iii) Nexo Causal.

Desproporção evidente entre prestação e contra-prestação – Ocorre nas situações em que uma das partes angaria lucro desproporcionalmente maior do que a prestação que pagou ou prometeu pagar. Essa aferição do valor das prestações deve ocorrer ao tempo do contrato.

Desigualdade Originária – O negócio jurídico já deve nascer desequilibrado. No mo-mento em que se manifesta a vontade e é celebrado o negócio jurídico, a vontade de uma das partes já estava viciada e a desproporção entre prestação e contra-prestação já existia, ou seja, a lesão nasce junto com o contrato.

Esta característica permite diferenciar a lesão da figura da resolução contratual por one-rosidade excessiva (art. 478 C.Civil), pois a onerosidade ocorre após a formação do negócio jurídico e nada tem a ver com vício da vontade. Deriva do advento de fato imprevisível que rompe o equilíbrio existente no seio do contrato.

Nexo Causal – Para que se configure a lesão, é preciso estabelecer uma ligação entre a vul-nerabilidade do agente lesado (dada pela necessidade ou pela inexperiência) e a desigualdade entre a prestação e a contra-prestação.

Cumpre, então, traçar alguns paralelos entre o instituto da lesão e os demais defeitos dos negócios jurídicos:

Lesão e Estado de Perigo: em ambos os casos há uma desproporção entre o valor cobra-do e o valor justo do que foi oferecido. Entretanto, o estado de perigo se caracteriza pela necessidade de preservação da vida humana, enquanto a lesão se configura simplesmente por necessidade premente que não envolva risco de vida ou por inexperiência de um dos contratantes.

Além disso, a leitura do art. 157 nos mostra que não é preciso que se comprove o dolo de aproveitamento para que se configure a lesão, pois a lei não se exige o conhecimento prévio pelo beneficiário da necessidade ou da inexperiência do contratante lesado.

Lesão e Coação: na lesão não existe o processo de intimidação sobre o ânimo do agente para compeli-lo ao negócio jurídico, como acontece na Coação.

conseqüências da lesão

A exemplo do que ocorre com o Estado de Perigo, o Código Civil reputa como anu-lável negócio jurídico defeituoso por conta de uma lesão à vontade negocial (art. 171, II).

18 caio Mário da silva Pereira. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 347

19 caio Mário da silva Pereira. Ob cit.; p. 348.

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A anulabilidade da relação jurídica também deverá observar o decadencial de quatro anos (art. 178, II).

Conforme já salientado anteriormente, quando tratou-se das conseqüências do estado de perigo para o negócio jurídico, o art. 157 § 2º do Código Civil dispõe que será mantido o negócio jurídico sempre que a parte favorecida concorde com a redução de seu proveito, restabelecendo o equilíbrio entre as partes que celebraram o negócio jurídico. Este enten-dimento foi reforçado pelo enunciado 149 da III Jornada de Direito Civil do CJF: “Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo de-ver do magistrado promover o incitamento dos contratantes a seguir as regras do art. 157, parágrafo segundo, do CC de 2002”.

2. QuEstõEs dE coNcurso

22º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase2 – Assinale a alternativa INCORRETA:

a) A lesão destaca-se dos demais defeitos do negócio jurídico por acarretar uma ruptura no equilíbrio contratual na fase de execução do negócio, posterior, portanto, à cele-bração do mesmo;

b) O elemento objetivo da lesão consiste na manifesta desproporção entre as prestações recíprocas, geradoras de lucro exagerado;

c) A lesão é modalidade de defeito do negócio jurídico caracterizado pelo vício do consentimento;

d) O elemento subjetivo da lesão é caracterizado pela inexperiência ou premente neces-sidade do lesado.

21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase3 – No que se refere ao estado de perigo, assinale a alternativa INCORRETA:

a) O perigo deve ser de natureza grave. Avalia-se a gravidade do perigo em função das circunstâncias do caso concreto e das condições físicas e psíquicas da vítima;

b) O perigo pode dizer respeito tanto à vida como à saúde, integridade física ou mesmo a honra do declarante ou membro de sua família;

c) O estado de perigo futuro também é passível de levar, desde logo, à anulação do negócio jurídico pela vítima;

d) Obrigação excessivamente onerosa no que concerne à configuração do estado de perigo é aquela que decorre de condições iníquas, com grande sacrifício econômico para uma das partes.

4 – No que se refere à lesão é CORRETO afirmar:a) Lesão é a exagerada desproporção de valor entre as prestações de um contrato bila-

teral, concomitante à sua formação, resultado do aproveitamento, por parte do con-tratante beneficiado, de uma situação de inferioridade em que então se encontrava o prejudicado;

b) O negócio em que se aufere ganhos com a inexperiência ou a premente necessidade de contratar da contraparte, é necessariamente um negócio válido;

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c) O momento em que a desproporção lesionária deve ser apreciada é o da extinção do contrato;

d) A premente necessidade configuradora da lesão tem um significado psíquico, refere-se à necessidade psicológica de contratar, como na compulsão ao consumo.

128º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase21. Sob premente necessidade, Fernando adquire à vista um bem móvel de Guilherme com preço manifestamente superior ao seu real valor de mercado. Nesse caso, é correto afirmar que esse negócio:

a) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado dolo;b) não pode ser anulado apenas por este fato; c) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado lesão;d) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado erro.

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aUla 7: condiçÃo, terMo e encargo

EmENtário dE tEmas

Elementos acidentais do negócio jurídico – Classificação das Condições – Condição Resolutiva e Condição Suspensiva – Disciplina jurídica do termo – Exigibilidade do direito sujeito a termo – Disciplina jurídica do encargo.

lEitura obriGatória

CASTRO NEVES, José Roberto. Uma Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2005; pp. 113/129.

lEituras comPlEmENtarEs

TEPEDINO, Gustavo, BODIN DE MORAES, Maria Celina e BARBOZA, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 241/266.

SILVA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 553/583.

1. rotEiro dE aula

Elementos acidentais do negócio jurídico

Conforme visto nas aulas anteriores, os negócios jurídicos são dotados de certos ele-mentos essenciais sem os quais sua existência não é configurada. Esses atos são puros (ou simples), quando a declaração de vontade se formula sem a interferência (leia-se sujeição) a circunstâncias modificativas.

A sofisticação da vida social, entretanto, implicou na construção de elementos que ao se-rem fixados junto ao negócio jurídico, implicam na modificação de efeitos sobre o mesmo.

Surgem, assim, os elementos acidentais do negócio jurídico, que podem assumir a for-ma de condição, termo ou encargo. São elementos que podem ou não ser agregados aos negócios, mas uma vez opostos, assumem importância fundamental, não podendo ser se-parados.

A definição da natureza desses elementos também encampa certas divergências: A maior parte da doutrina os caracteriza como elementos de caráter acessório, pois, em tese, o negó-cio poderia perfeitamente se realizar sem que fossem colocados. No entanto, há autores que entendem que os elementos acidentais não são declarações distintas, integrando o conteúdo propriamente dito do negócio.

Esses elementos essenciais, em regra, operam limitações impostas pelos próprios decla-rantes. A condição sujeita o negócio a evento futuro e incerto; o termo o faz por conta de evento igualmente futuro, porém certo de sua verificação. O encargo, por fim, assume a feição de uma imposição ao titular de um direito.

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condição

A definição legal de condição é encontrada no art. 121 do Código Civil, ao dispor que: “Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.”

Conforme pode ser observado, são elementos da condição a futuridade e a incerteza. A fu-turidade implica em que um fato ocorrido no passado não pode ser objeto de condição, apenas aqueles que ainda estão por ocorrer. Ainda, necessário que a condição se remeta a fato incerto, isto é, fato que pode ou não ocorrer, sendo essa mesma incerteza de ordem objetiva.

A exigibilidade do ato só se opera com o implemento da condição. Se for estipulado, como já visto, uma obrigação de pagar determinada quantia mediante a vitória de deter-minada equipe esportiva, essa obrigação só será dotada de exigibilidade após a vitória dessa mesma equipe. A obrigação, antes do advento do fato, não terá exigibilidade e, na hipótese de derrota da aludida equipe, o pacto restará sem efeito.

Deve-se mencionar ainda os chamados atos ou negócios puros, os quais não admitem a oposição de condição. São atos ligados aos direitos de família puros e direitos personalíssi-mos. Não, há, nesse sentido, que falar em condição ao reconhecimento de um filho.

classificação das condições

A primeira das classificações das condições é aquela que as divide em lícitas e ilícitas. O art. 122 CC traz entendimento sobre esse assunto, determinando que:

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

Os autores tendem a qualificar como ilícitas as condições imorais e ilegais. As imorais são as condições que atentam contra a moral e bons costumes. As ilegais, por sua vez, vinculam obrigações proibidas por lei.

As condições perplexas (ou contraditórias) são as despidas de sentido, que derivam em dú-vida para o intérprete. Elas apresentam contradições de tal ordem que outro fim não pode ser dado ao negócio que não a invalidação. Nesse sentido:

Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:III – as condições incompreensíveis ou contraditórias.

A condição potestativa é aquela que se liga à vontade de uma das partes do negócio, que pode determinar o seu implemento ou não. Nem todas as condições potestativas são ilíci-tas, mas certamente o são as potestativas puras que se vinculam ao arbítrio exclusivo de uma das partes. Contrapõe-se à condição causal, modalidade que não se vincula ao arbítrio de nenhuma das partes.

As condições impossíveis são aquelas que em virtude de algum fator, não são passíveis de realização. Essa impossibilidade pode ser jurídica ou material. O tratamento dessa matéria assumia contornos mais nítidos no Código Civil de 1916, no qual as condições fisicamente impossíveis eram reputadas como não escritas, ao passo que quando era jurídica a impos-sibilidade, preferia-se a anulação do ato. A razão de ser dessa distinção, sustentam alguns autores, seria a impossibilidade de se transigir contrariamente à lei. Daí a maior severidade com relação às condições juridicamente impossíveis.

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No atual Código Civil, o tratamento da matéria se perfaz no art. 123, da seguinte forma:

Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:I – as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;II – as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita;III – as condições incompreensíveis ou contraditórias.

Dotado de maior rigor técnico, a lei atual determina que as condições juridicamente impossíveis, quando suspensivas, invalidam os negócios que subordinam. Se a condição impossível for resolutiva, deverá ser considerada como não escrita, evitando tolher a eficácia do ato.

condição resolutiva e condição suspensiva

O art. 125 traz a noção de condição suspensiva determinando que: “Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.”

Nas condições suspensivas, o nascimento do direito a que a obrigação se refere fica em suspenso até que a condição se implemente, possuindo o titular mera expectativa de direito.

As condições resolutivas, por sua vez, são aquelas nas quais a ocorrência do evento implica na cessação dos efeitos do negócio. A noção legal se remete aos artigos 127 e 128, ambos do Código Civil:

Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.

Art. 128. Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua re-alização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé.

Enquanto existir pendência da condição suspensiva, o ato permanecerá sem eficácia. Nesse sentido, se o negócio versar sobre um direito de crédito, o mesmo será inexigível, não havendo início do prazo prescricional, e caso o devedor erroneamente realize o pagamento, o mesmo deverá ser repetido.

De toda forma, atentando a condição de expectativa de direito a lei faculta ao credor executar atos de conservação. Essa é a regra do art. 130, do Código Civil:

Art. 130. Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo.

Quando deparado com o advento da condição, dá-se o aperfeiçoamento da obrigação e o direito, de meramente eventual, passa a adquirido. A eficácia do mesmo torna-se plena. Se por outro lado, há a frustração na implementação do evento (lembre-se que ele é incerto), a obrigação não produzirá efeitos.

Esse direito sujeito a condição é plenamente passível de transmissão, seja ela inter vivos ou causa mortis, não devendo, em hipótese alguma, deixar de destacar que essa transmissão abarca o caráter de incerteza na implementação do direito.

A condição resolutiva, conforme observado, possui dinâmica oposta à condição suspen-siva. Nela, a aquisição do direito se dá logo na pactuação, na emissão de vontade, vindo

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a extinguir-se quando do implemento da condição resolutiva. Os direitos serão extintos quando da ocorrência da mesma.

A condição resolutiva pode se operar de forma expressa ou tacitamente, quando então carecerá de notificação ou interpelação (Art. 474). Referente ao implemento da condição, o art. 129 menciona que:

Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.

Quem manipula o implemento de um evento de modo a favorecer-se, por óbvio, procede contrariamente ao direito. O art. 129 consubstancia a proteção da lei à parte prejudicada em virtude da má-fé de quem manipula a implementação da condição. Note-se que o dolo, isto é, a intenção deliberada de impedir ou provocar o advento da condição deve estar presente.

retroatividade da condição

Trata-se de um assunto marcado pela controvérsia, tendo reminiscências no Direito Ro-mano. Aqueles que defendem a retroatividade dos efeitos da condição destacam que quando ocorre o seu implemento é como se o negócio jurídico fosse puro e simples desde o seu início, desde a data da manifestação da vontade. A idéia é central reside no fato de que, fic-cionalmente, o tempo de vacância até a implementação da condição nunca teria ocorrido, sendo o negócio, desde o seu início mais remoto, além de válido, produtor de efeitos.

Não há dispositivo destacando entendimento algum sobre esse efeito no atual Código, nem na legislação extravagante. Diversos autores afirmam que esse efeito retroativo só se verificará quando as partes o convencionarem, ou quando a lei expressamente o determinar. Em regra, os atos não encampam o efeito retroativo.

disciplina jurídica do termo

No termo, encontra-se um evento que subordina a eficácia do negócio jurídico a um even-to futuro e certo. O início ou final da eficácia do ato dependerá do implemento desse termo.

A dinâmica do instituto em muito se aproxima da referente à condição. A distinção mais notória aqui é o fato de que a subordinação se faz em relação a evento que, embora futuro, é certo.

A futuridade e a certeza são os elementos do termo, que pode assumir a designação de termo inicial e termo final. O termo inicial (suspensivo, dilatório, ou dies a quo) é aquele a partir do qual o exercício de um direito se torna possível. Remete ao início da eficácia do negócio.

Quando um negócio jurídico é submetido a termo inicial, desde o início se verifica a aquisição do direito. No entanto, a eficácia do mesmo, isto é, a possibilidade de produzir efeitos jurídicos se retarda até o advento desse termo.

Observe que o termo difere da condição, nesse ponto, pois opera desde a pactuação a aquisição do direito. O direito já é existente, somente o seu exercício carece da observância do evento.

A condição suspensiva, diferentemente, não suspende somente o exercício, mas também a própria aquisição do direito. Na condição há mera expectativa de direito, ao passo que no termo temos o direito propriamente dito.

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O termo final (resolutivo, peremptório ou dies ad quem), ao contrário, é aquele que implica na perda de eficácia do ato. Há a cessação dos efeitos do negócio. Este surge pleno, implicando não só na existência e validade do direito, como também na plena eficácia dele. Produz efeitos jurídicos tal qual intentado na manifestação dos declarantes.

Em relação ao momento de ocorrência, o termo pode ser certo (determinado) e incerto (ou indeterminado). Frise-se que a certeza aqui não versa sobre a convicção no implemento do termo, pois como visto, essa integra o seu próprio conceito. A nomenclatura certo/in-certo remete ao momento de implemento do evento. Dessa forma, termo certo é aquele conhecido, ao passo que termo incerto é aquele em que se ignora o momento de imple-mentação.

O termo pode ainda ser classificado em convencional, quando advir por vontade das partes ou legal, quando decorre da lei. Há quem sustente ainda o termo judicial – oriunda de esfera jurisdicional.

O termo pode ainda ser expresso, quando vem delineado no conteúdo do negócio, ou tácito, quando se infere no correr da relação jurídica.

A noção de prazo não pode ser confundida com a do termo em si, pois aquele é o lapso temporal compreendido entre o momento de declaração da vontade e a data de implemento do termo. Da mesma forma que a modalidade de termo compreendido no ato, pode o prazo ser certo (quando sujeito a termo certo) ou incerto. O art. 132 alude a regra legal sobre a contagem de prazos.

Exigibilidade do direito sujeito a termo

O termo é pactuado ante a anuência dos contratantes e dessa forma, em regra, não é dado ao credor exigir o cumprimento da obrigação antes do advento do termo.

O art. 133 corrobora essa idéia, destacando que:

Art. 133. Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefício do credor, ou de ambos os contratantes.

Quando o prazo aproveita ao devedor, este pode cumprir a obrigação antes do adven-to do termo. Há situações, entretanto, onde o prazo aproveita ao credor, e nesse caso, o pagamento antecipado é inconveniente a ele. Imagine, nesse sentido, o credor que enco-mendou determinada quantidade de mantimentos, mas que ainda não disponibiliza de local apropriado para estocá-los. O cumprimento da obrigação antes do prazo teria efeitos desastrosos.

disciplina jurídica do encargo

O encargo tem previsão no Código Civil nos artigos 136 e 137, sendo uma restrição imposta àquele que se beneficia de uma liberalidade. Sua natureza é de ônus imposto ao beneficiário.

Trata-se de cláusula inserida em negócios jurídicos gratuitos que vincula obrigação de dar, fazer ou não fazer, mas sem que se configure um caráter contraprestacional. O en-cargo não tem o condão de impedir a aquisição ou exercício do direito objeto do negócio jurídico.

O encargo tem por escopo dar executividade a certos desígnios daquele que realiza a li-beralidade. Essa cláusula vincula o beneficiário na medida em que ele aceita a liberalidade.

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Ponto que merece especial atenção é o dos efeitos decorrentes do não cumprimento do encargo. Nesse sentido:

“Observa-se que o dever jurídico criado pelo encargo gera um vínculo obrigacional para o beneficiário, de modo que seu descumprimento permite ao autor da liberalidade, titular do direito subjetivo correspondente, exigir o cumprimento. A legitimidade para exigir o cumpri-mento do encargo dependerá da identificação dos interessados em cada negócio específico, pois a liberalidade pode ser instituída em favor do próprio autor, de terceiro, ou de interesse geral, em negócios inter vivos ou causa mortis.”20

Quando ocorre a inexecução do encargo abre-se a perspectiva ao interessados de pro-mover a execução forçada da mesma sem implicar no perecimento do negócio. O doador e os terceiros beneficiados (ou seus herdeiros) poderão pleitear judicialmente a execução do encargo. Se o doador já tiver falecido, poderá o Ministério Público titularizar a referida ação. Essa possibilidade encontra previsão no art. 553 do Código Civil:

Art. 553. O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.

Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.

Pode ainda o instituidor decidir pela resolução do negócio, sendo essa uma prerrogativa que só compete a ele. A previsão está assentada no art. 555 do Código Civil:

Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo.

Essas regras tratam da doação, mas há que se estender, analogicamente, suas regras a outras modalidades de negócios.

O encargo não produz reflexos nos campos da aquisição e exercício de direitos. As prer-rogativas que derivam do negócio são adquiridas e podem ser exercidas independentemente de cumprido o encargo. Ele não é um elemento essencial ao negócio jurídico, mas uma vez que seja previsto, passa a integrar o contrato.

2. QuEstão dE coNcurso

27º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase12 – Certo comerciante se obriga a fornecer determinados materiais de construção a um empreiteiro, quando as paredes do prédio que este edifica tiverem alcançado deter-minada altura. Denominamos esta cláusula:

a) Condição resolutiva;b) Termo certo;c) Condição potestativa ilícita;d) N.R.A.

20 Gustavo Tepedino, Maria ce-lina bodin de Moraes e Heloisa Helena barboza. Código Civil Interpretado conforme a Consti-tuição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 265

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Parte ii: PrescriçÃo e decadência

aUla 8: FUndaMentos Para aPlicaçÃo da PrescriçÃo e da decadência

EmENtário dE tEmas

Conceito de prescrição – A teoria da pretensão e o art. 189 do Código Civil – Distinção entre prescrição e decadência – Fundamento da prescrição – Requisitos da prescrição – A renúncia da prescrição – Alteração dos prazos prescricionais – Imprescritibilidade e autono-mia da vontade – Quando se alega a prescrição – Reconhecimento da prescrição de ofício – Relativamente incapazes e pessoas jurídicas – Alguns aspectos peculiares da decadência – Conceito de decadência – Impedimentos, interrupções e suspensões – Renúncia à deca-dência – Questões processuais.

lEitura obriGatória

NEVES, Gustavo Kloh Muller, “Prescrição e decadência no novo Código Civil”, in Gustavo TEPEDINO (org.), A Parte Geral do Código Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, pp. 417/428.

lEituras comPlEmENtarEs

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/366;

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Foren-se, 2005; pp. 677/702.

1. rotEiro dE aula:21

O estudo dos institutos da prescrição e da decadência evidencia a relação existente entre o decurso do tempo e a modificação no status das relações jurídicas.

O Código Civil de 1916 não apresentou qualquer definição para o instituto da prescri-ção, iniciando já o seu capítulo respectivo com um artigo que tratava da renúncia à prescri-ção (art. 161). O Código atual procurou corrigir essa imperfeição com a redação do artigo 189, o qual assim dispõe:

Art. 189 – “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”

Contudo, é importante destacar que mesmo o art. 189 não soluciona de todo o proble-ma de conceituação do instituto da prescrição, uma vez que ele aponta com mais clareza os efeitos gerados pela prescrição na relação jurídica, mas também se mostra silente no que diz respeito à natureza e ao fundamento do instituto.

21 O presente roteiro de estudo é uma versão reduzida – e substancialmente adaptada para os fins desse material di-dático – do trabalho realizado conjuntamente com Tatiana Florence Magalhães e constan-te do livro Código Civil Interpre-tado conforme a Constituição da República, vol. I, organizado por Gustavo Tepedino, Maria celina bodin de Moraes e He-loisa Helena barboza (Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/423).

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Pode-se afirmar que a prescrição possui duas formas bastante distintas de atingir uma relação jurídica. A prescrição pode tanto conferir ao sujeito a possibilidade de adquirir um direito através de sua atuação prolongada por determinado período de tempo, incorporan-do-o ao seu patrimônio (“prescrição aquisitiva”), como, ao reverso, pode, após o decurso de um lapso temporal, impedir que o titular de uma pretensão venha a concretizá-la, na medida em que permaneceu inerte durante o prazo que lhe foi concedido para concretizar o seu poder de exigir (“prescrição extintiva ou liberatória”).

A seguir será tratada apenas a prescrição de natureza extintiva, uma vez que a prescrição aquisitiva encontra previsão legislativa em outros campos do estudo do Direito Civil, com destaque para o usucapião, tratado no Código Civil nos artigos 1238 e ss.

conceito de prescrição

A busca por uma conceituação do instituto da prescrição remonta a estudos antigos da doutrina nacional, embora até hoje ainda exista controvérsia a seu respeito, principalmente com relação às diferenças existentes entre os prazos prescricionais e decadenciais.

Existe concordância entre os autores sobre o fato de que a prescrição decorre da con-sumação de um prazo extintivo. A partir dessa conclusão, cumpre esclarecer qual seria o objeto da prescrição. O conceito apresentado pela doutrina sempre esteve vinculado mais a um reconhecimento dos efeitos causados pelo advento do prazo prescricional do que propriamente à natureza do instituto, o que contribui para a confusão entre as teorias que buscavam afirmar um conceito de prescrição com aquelas que delineavam as suas principais características, sobretudo em contraste com o prazo decadencial.

De todos os entendimentos partilhados pela doutrina sobre o tema, pode-se identificar três linhas de exposição bem destacadas. Para alguns autores a prescrição seria forma de extinção do direito material. A maioria da doutrina nacional, todavia, adotou postura favo-rável ao reconhecimento de que a prescrição extinguiria a ação correspondente ao direito. Por fim, nas últimas décadas, o entendimento de que a prescrição atingiria a pretensão encontrou substancial aceitação na doutrina e na jurisprudência.

O entendimento segundo o qual a prescrição atingiria o direito material foi defendido por Caio Mário da Silva Pereira, segundo o qual o prazo prescricional “conduz à perda do direito pelo seu titular negligente”. Assim, estando o direito extinto pelo decurso do lapso temporal, ao seu antigo titular apenas restaria o interesse de ver a prestação cumprida por um ato de liberalidade da parte do antigo devedor. A causa para o pagamento de dívida já prescrita – completa o autor – residiria então em dever de natureza moral.22

Todavia, obteve maior aceitação na doutrina nacional, a ponto de ser considerado como entendimento majoritário, o posicionamento no sentido de que a prescrição extinguiria a ação, e não o próprio direito. Nessa direção, afirma Clovis Bevilaqua que a prescrição “é a perda da ação atribuída a um direito, de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não uso dela, durante um determinado espaço de tempo.”23

Dessa forma, o transcurso do prazo prescricional não fulminaria o direito, mas apenas a ação, podendo o direito remanescente ser atendido, caso assim desejasse o titular do dever jurídico correspondente.

Por fim, um terceiro entendimento propugnava que o objeto da ação destruidora da prescrição seria a pretensão, restando tanto o direito de ação quanto o direito subjetivo ilesos com relação ao transcurso do prazo prescricional. Essa teoria foi consagrada no dispo-sitivo do art. 189 do Código em vigor.

22 caio Mário da silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1996, 18ª ed, pp. 435/436.

23 clovis bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 458.

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a teoria da pretensão e o art. 189 do código civil

O art. 189 incorpora ao direito pátrio a teoria de que a prescrição “extingue” a preten-são, conforme disposto no par. 194 do BGB, preservando-se assim o direito, que poderá ser satisfeito mediante prestação espontânea pela parte beneficiada com a prescrição.

Em que pese a inovação representada pela positivação da teoria, o regramento do insti-tuto no Código Civil acompanhou a mesma orientação metodológica presente em grande parte dos estudos doutrinários sobre a matéria, pois se conferiu grande importância aos efeitos, mas não se evidenciou quais são os requisitos e os fundamentos da prescrição.

Nesse sentido, esclarece Gustavo Kloh que: “o texto legal fixou os efeitos da prescrição, mas não os requisitos para a sua configuração, quando deveria ter feito o contrário: é vital a estruturação de categoria legal prescricional, em vez de mera regulação de prazos (que de-vem ser aplicados sob quais circunstâncias?), e isto não é feito; noutro giro, o engessamento dos efeitos é nocivo, pois impede a gênese da solução adequada para cada caso.”24

De qualquer sorte, o reconhecimento de que a prescrição atua sobre a pretensão consti-tui um avanço sensível na positivação da matéria. Pode-se conceituar a pretensão como sen-do “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa”.25 Em outras palavras, a pretensão é o poder de exigir uma prestação, um comportamento de outrem.

Sendo assim, a redação do art. 189 explicita que para a ocorrência da prescrição deverá existir um direito e que, em sendo ele violado, surgirá uma pretensão para o seu titular, a qual não sendo exercida dentro de um prazo determinado, desencadeará o fenômeno da prescrição.

Vale ressaltar o entendimento de José Carlos Barbosa Moreira, segundo o qual, existem pretensões que prescindem da violação do direito para o seu surgimento. Essa constatação se faz de forma mais evidente no campo dos direitos reais, pois ao proprietário é concedido o poder de exigir o respeito por parte de terceiros com relação à sua propriedade. Essa pre-tensão é anterior a qualquer ato lesivo, que pode mesmo nem vir a ocorrer. Segundo o autor, tanto as pretensões que prescindem da violação, como aquelas que nascem para o titular antes mesmo da violação, também estão incluídas na regra prescricional do art. 189.26

Partindo da classificação dos direitos elaborada por Chiovenda, Agnelo Amorim deli-mita o campo de atuação da prescrição justamente àqueles direitos que têm por finalidade um bem da vida, a ser alcançado através de uma prestação, positiva ou negativa, por parte do sujeito passivo de uma relação jurídica.27 Como regra geral, os direitos a uma prestação poderão ser violados, na medida em que o sujeito passivo não cumpre a ação ou omissão que lhe era devida, surgindo, assim, nos termos do art. 189, a pretensão do titular do direito violado em face do mesmo.

Será então essa pretensão recém-surgida o objeto do prazo prescricional que se inaugura para o seu titular. Isso posto, pode-se afirmar que, se a prescrição tem por objeto a preten-são, os prazos prescricionais apenas poderão incidir sobre obrigações que contemplem uma prestação a ser realizada. Tanto é assim que os prazos constantes do art. 206 tem por objeto prestações, as quais disponibilizam ao titular do direito a possibilidade de exercer a respec-tiva pretensão em juízo.

No caso das pretensões derivadas da violação de um direito cujo exercício envolvia uma prestação, as mesmas serão exigidas em juízo através de ações de natureza condenatória. Isso porque a decisão judicial condenará o sujeito passivo a adimplir a prestação frustrada.

Ao ter o seu direito subjetivo violado, a pretensão contra o agente da violação poderá ser exercida no prazo previsto em lei. Caso a pretensão não seja exercida, o art. 189 pontifica que a mesma restaria extinta.

24 Gustavo Kloh Muller neves, “Prescrição e decadência no novo código civil”, in Gustavo Tepedino (org.), A Parte Geral do Código Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 421.

25 F. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, t. V, Rio de Janeiro, borsoi, 1955, 2ª ed; p. 451.

26 José carlos barbosa Morei-ra, “notas sobre pretensão e prescrição no sistema do novo código civil brasileiro”, RTDC, n. 11, 2002, pp. 71/72.

27 agnelo amorim Filho, “cri-tério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar ações impres-critíveis”, Revista dos Tribunais, n. 744, 1997, p. 728.

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Contudo, deve-se utilizar a palavra “extinta” com certa parcimônia. Isso porque, ao fim e ao cabo, a prescrição não extingue a pretensão: ela apenas concede ao devedor uma defesa para obstar, caso queira, a pretensão da qual se vale o credor após superado o lapso prescricional.28

Esse entendimento está fundado na concepção de que se a pretensão uma vez prescrita restasse extinta, não haveria como se conceber que o juiz proferisse decisão favoravelmente ao autor que exercita pretensão já vitimada pelo prazo prescricional, não tendo o réu argüi-do a respectiva exceção. Não perde o autor o poder de exigir com a prescrição da pretensão. Na verdade, o que se altera com o decurso do prazo prescricional é a possibilidade do réu apresentar oposição à pretensão do autor, devendo o juiz, uma vez constatada a procedência da manifestação do réu, extinguir o processo.29

distinção entre prescrição e decadência

Estabelecido o conceito de prescrição como sendo o decurso do lapso temporal que afeta a pretensão, cumpre mencionar as diversas teorias aventadas pela doutrina para distinguir a prescrição do instituto da decadência.

O debate sobre a distinção entre os dois institutos tomou grandes proporções por con-ta de um tratamento irregular do assunto no CC1916, que apenas mencionou o termo “prescrição” em suas normas, cabendo à doutrina e à jurisprudência distinguir dentre o regramento do Código o que seria aplicável ao prazo prescricional e o que seria relativo à decadência.

Diversas teorias foram assim criadas para que se pudesse conferir ao CC1916 a mais am-pla eficácia, de modo a erigir uma dogmática do instituto da prescrição que disponibilizasse ao aplicador do Direito um tratamento adequado às relações jurídicas pertinentes.

Dessa forma, buscou a doutrina distinguir os dois institutos com base na origem do direito. Segundo esse entendimento, quando a ação e o direito partilham da mesma origem, trata-se de prazo decadencial, ao passo que se o direito é preexistente à ação, que somente se apresenta quando da violação do direito, trata-se de prazo prescricional.

Assim, a ação da minoria vencida para promover a impugnação de alterações do estatuto de uma fundação deverá ser movida dentro de um prazo de natureza decadencial pois a respectiva ação surge conjuntamente com o direito. Por outro lado, a uma ação de respon-sabilidade civil por inexecução contratual corresponderá um prazo prescricional, surgindo o direito de ação contra a parte que infringir dispositivo do contrato apenas do momento dessa violação.

Essa teoria encontrou críticas no fato de não oferecer orientação científica para se reco-nhecer quando coincidem na origem o direito de ação e o direito material.30

Uma das características mais citadas para o esclarecimento da distinção entre os dois institutos é a suscetibilidade a interrupções e suspensões. O entendimento no sentido da não aplicação das regras de interrupção e suspensão aos prazos decadenciais é bastante usual. Conforme ressalta Silvio Rodrigues:

“[f ]ácil estabelecer a diferença entre prescrição e decadência quanto aos efeitos, pois, en-quanto a prescrição é suscetível de ser interrompida e não corre contra determinadas pessoas, os prazos de decadência fluem inexoravelmente contra quem quer que seja, não se suspenden-do nem admitindo interrupção”.31

Todavia, por força do art. 207, deve-se atentar para o fato de que a nova disciplina ins-taurada pelo CC para o instituto da decadência estabelece exceções à regra, não devendo

28 F. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, t. VI, Rio de Janeiro, borsoi, 1955, 2ª ed.; pp. 104 e ss.

29 José carlos barbosa Morei-ra, “notas sobre pretensão e prescrição no sistema do novo código civil brasileiro”, RTDC, n. 11, 2002, pp. 104/105.

30 Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1996, 12ª ed.; p. 507.

31 silvio Rodrigues. Direito Civil, vol. I, são Paulo, saraiva, 2002, 32ª ed.; p. 329.

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o aplicador direito mais arrolar categoricamente essa particularidade como característica distintiva entre os dois institutos.

No que tange à suscetibilidade a interrupções e suspensões, a distinção entre prescrição e decadência deve agora ser afirmada da seguinte forma: os prazos prescricionais podem ser interrompidos ou suspensos, ao passo que, os prazos decadenciais fluem de modo contínuo, salvo disposição legal em contrário.

Entende-se, por fim, que a distinção entre os dois institutos se mostra mais evidente através da teoria exposta por Agnelo Amorim Filho, que busca distinguir prescrição e deca-dência com base no cotejo entre as ações condenatórias e as ações constitutivas.

A prescrição, assim, diz respeito à pretensão de natureza condenatória, bem como à sua respectiva execução, que surge para o titular de um direito quando da sua violação (art. 189). A pretensão, surgindo da violação do direito, deverá ser exercitada em um determi-nado prazo, sob pena de se concretizar a sua prescrição, que poderá ser oposta pelo sujeito passivo da relação jurídica.

São assim prazos prescricionais, por exemplo, os relativos a ações condenatórias de in-denização, de perdas e danos (materiais e morais), ou ainda condenatórias de obrigação de fazer ou de não fazer.

Já a decadência refere-se a um direito potestativo, isto é, um direito cujo exercício se dá pela própria conduta de seu titular, restando ao sujeito passivo apenas sujeitar-se ao mesmo. Aos direitos potestativos correspondem ações de natureza constitutiva, que não sendo ma-nejadas em tempo hábil, causam a extinção do próprio direito.32

Fundamento da prescrição

Ao se tomar a prescrição sob um prisma estritamente individualista, poder-se-ia opor algumas considerações de ordem ética para a consagração do instituto na medida em que o titular de um direito, com o esgotamento do prazo prescricional, ficará impossibilitado de fazer valer a sua pretensão por conta de exceção apresentada pelo devedor.

Analisando-se o instituto apenas pelos olhos do credor, a prescrição é geradora de in-justiças, pois a pretensão que ontem poderia ser exercida, hoje está sujeita a ser legalmente obstada por quem justamente provocou a sua violação.

Todavia, a aceitação universal do instituto da prescrição demonstra que os seus fun-damentos estão atrelados a outra perspectiva, que transcende as análises puramente indi-vidualistas, pautadas nos interesses do pólo ativo de uma relação jurídica, para encontrar justificação no interesse social.

A estabilidade das relações sociais e a segurança jurídica compõem portanto o fundamen-to da prescrição, uma vez que o instituto visa a impedir que o exercício de uma pretensão fique pendente de forma indefinida. Estabelece-se um lapso temporal para que a pretensão seja exercida. Transcorrido esse prazo sem qualquer diligência por parte do seu titular, o próprio ordenamento jurídico que tutela a pretensão concede ao devedor a possibilidade de obstruir o seu exercício em nome da estabilidade das relações sociais.

Conforme expõe Silvio Rodrigues, o fundamento do instituto reside “no anseio da so-ciedade em não permitir que demandas fiquem indefinidamente em aberto; no interesse social de estabelecer um clima de segurança e harmonia, pondo termo a situações litigiosas e evitando que, passados anos e anos, venham a ser propostas ações reclamando direitos cuja prova de constituição se perdeu no tempo.”33

Há também, de certa forma, uma punição ao titular de uma pretensão que se quedou inerte, não lhe dando efetividade. Assim, a prescrição é o instituto jurídico que melhor ilus-tra diversos brocardos que explicitam a idéia contida no princípio geral do Direito de repro-

32 agnelo amorim Filho, “cri-tério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar ações impres-critíveis”, Revista dos Tribunais, n. 744, 1997, p. 738.

33 silvio Rodrigues. Direito Civil, vol. I, são Paulo, saraiva, 2002, 32ª ed.; p. 327.

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vação à conduta negligente, como iura scripta vigilantibus (as leis foram escritas para os que não são negligentes) e dormientibus non succurrit jus (o Direito não socorre os negligentes).

Reconhecendo o confronto inevitável entre o interesse individual do titular de uma pre-tensão em estender o lapso temporal dentro do qual a mesma possa ser exercitada para todo o sempre e o interesse social em resolver as situações conflituosas, aponta Clovis Bevilaqua a única solução possível: “[o] interesse do titular do direito, que ele foi o primeiro a desprezar, não pode prevalecer contra o interesse mais forte da paz social.”34

Vinculando a prescrição à necessidade de segurança nas relações sociais, e apontando também para o atendimento de um imperativo de justiça, afirma San Tiago Dantas:

“Como se passou muito tempo sem se modificar o estado das coisas, não é justo que continuemos a expor as pessoas à insegurança que o nosso direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. Então, a prescrição vem e diz: daqui em diante o inseguro é seguro, quem podia reclamar não o pode mais. De modo que, vêem os senhores, o instituto da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da ordem jurídica: distribuir a justiça – dar a cada um o que é seu – e estabelecer a segurança nas relações sociais – fazer com que o homem possa saber com o quê conta e com o quê não conta.”35 (Programa, p. 343)

Por haver um interesse público no sentido de que as relações jurídicas em que interesses são contrapostos não perdurem indefinidamente, a regra da prescrição assume caráter de ordem pública, não podendo assim ser derrogadas pela mera vontade das partes. Esse en-tendimento está plasmado em diversas normas que regulam a matéria, sendo especialmente relevante para a discussão sobre a renúncia à prescrição e a alteração dos prazos prescricio-nais pelos particulares.

requisitos da prescrição

Para que exista a prescrição é necessária a reunião de três requisitos: (i) a existência de uma pretensão a ser exercida; (ii) a inércia continuada do seu titular pelo período fixado em lei; e (iii) a ausência de causas que impeçam o transcurso do lapso temporal.

O primeiro requisito refere-se ao objeto da prescrição, ou seja, o que será afetado quando de sua concretização. O segundo requisito demanda a existência de um lapso temporal para que a pretensão seja exercida e, adicionalmente, que o titular da pretensão não a exercite dentro do respectivo prazo.

Deve-se atentar ainda para que não existam determinadas circunstâncias que podem fazer com que o cômputo do lapso prescricional seja suspenso, interrompido, ou mesmo nem se inicie contra algumas pessoas por expressa previsão legal. Dessa forma, pode-se ar-rolar como o terceiro requisito a inexistência de tais circunstâncias para o estabelecimento da prescrição.

Segundo decorre das considerações expendidas no item 3 acima, a reunião dos três re-quisitos faz nascer a prescrição, mas não causa de imediato a extinção da pretensão, uma vez que essa apenas será aniquilada com a oposição da prescrição pelo devedor. Ou seja, a soma dos três requisitos apenas confere ao devedor a possibilidade de se opor à pretensão de seu credor, tendo a sua prescrição por argumento de defesa.

a renúncia da prescrição

A renúncia é um ato unilateral, que independe do consentimento de terceiro, através do qual se processa a extinção de um direito pelo particular. Mais especificamente, conforme

34 clovis bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 459.

35 san Tiago Dantas, Programa de Direito Civil – Teoria Geral, Rio de Janeiro, Forense, 2001, 3ª ed.; p. 343.

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o ensinamento de Câmara Leal, a renúncia da prescrição é a desistência expressa, ou tácita, do direito de invocá-la, feita por quem dela se beneficia.36

A prescrição apenas estará sujeita à renúncia após a consumação do prazo para o exer-cício da pretensão. Por ser matéria de ordem pública, é vedado às partes estipular a sua renúncia antes mesmo do seu implemento.

Caso assim não o fosse, o instituto da prescrição estaria gravemente comprometido, uma vez que os credores passariam a exigir a renúncia do prazo prescricional no momento em que o devedor contraísse qualquer obrigação. A renúncia à prescrição se tornaria uma verdadeira cláusula padrão, integrante de toda espécie de contratos.

A renúncia à prescrição já consumada se justifica porque os benefícios dela decorrentes já foram incorporados ao patrimônio do devedor, que agora pode dispor dessa condição. Assim, percebe-se que “para a ocorrência da renúncia exige-se que o intervalo prescricional tenha se consumado por inteiro.”37

A renúncia da prescrição encontra-se prevista no Código Civil, no art. 191, da seguinte forma:

Art. 191 – “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.”

A renúncia poderá ser realizada de forma expressa ou tácita. Não existe nenhuma forma requerida por lei para que a renúncia da prescrição seja exteriorizada, e sendo assim, a re-núncia expressa poderá ser feita por qualquer forma admitida em Direito.

Quanto à renúncia tácita, essa poderá ser aferida a partir do comportamento daquele que seria pela prescrição beneficiado, dando sinais de que, apesar de esgotado o prazo para o exercício do direito, continua vinculado à pretensão alheia. Diversos são os atos que de-notam a renúncia tácita à prescrição, como o pagamento efetuado após a sua consumação, o pedido de prorrogação de prazo e a oferta de garantia para que se efetue posteriormente o pagamento do que é devido.

Deve-se acentuar, todavia, que a renúncia tácita dependerá sempre de um comporta-mento ostensivo do sujeito no sentido de demonstrar, ainda que não o declare, que do benefício da prescrição o mesmo se despojou. Havendo dúvida sobre a intenção do ato praticado, não se deve admitir a renúncia tácita por não ser ela a regra, mas a exceção.38

Cabe mencionar ainda que o legislador manteve a salvaguarda de terceiros perante os efeitos da renúncia à prescrição. Assim sendo, a renúncia feita por devedor solidário ou co-devedor de obrigação indivisível não pode ser oposta aos demais (art. 204). A prescrição, ressalta Clovis Bevilaqua, já fez romper o vínculo obrigacional, dissolvendo assim a situação de solidariedade entre os devedores ou a vinculação com a prestação relativa à coisa indivi-sível. Assim, não pode um devedor assumir liberalidades incidentes sobre aquilo que não lhe pertence.39

Especial atenção deve ser concedida ao caso do devedor insolvente, pois ao renunciar à prescrição que lhe favorecia, o prejuízo a terceiros será caracterizado como fraude contra credores. Isso ocorre, pois uma vez consolidada a prescrição, o patrimônio do devedor ob-teve um acréscimo, na medida em que poderá ele opor a prescrição a qualquer reclamação feita pelo credor, restando assim exonerado dessa obrigação.

A renúncia em tais circunstâncias se mostra mais grave, na medida em que os credores do devedor insolvente têm com ela a redução da possibilidade de verem seus créditos sa-tisfeitos. Nessa hipótese, poderão os credores promover a competente ação pauliana para anular a renúncia (art. 158 e ss.).

36 antônio luís câmara leal, Da Prescrição e da Decadência – Teoria Geral do Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1959, 2ª ed.; p. 63.

37 TRF-5ª Reg., Emb.Infr. em ap.cív. 250.581, julg. 24.04.92

38 silvio Rodrigues. Direito Civil, vol. I, são Paulo, saraiva, 2002, 32ª ed.; p. 334.

39 clovis bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 462.

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Cumpre destacar que, além de poderem se opor à renúncia à prescrição já efetuada pelo devedor insolvente, os seus credores poderão ainda alegar em juízo a existência de prescrição que o beneficie (art. 193).

alteração dos prazos prescricionais

Em sendo a prescrição um instituto que reflete diretamente um dos mais significativos interesses da ordem pública, ou seja, o apaziguamento das relações sociais, o art. 192 encerra os debates doutrinários que tiveram sede durante a vigência do CC1916: não é permitido aos particulares alterarem os prazos de prescrição previstos em lei.

Quanto à possibilidade de se aumentar os prazos prescricionais sempre houve consenso na doutrina e jurisprudência no sentido de sua impossibilidade. Contudo, no que tange à sua redução, as opiniões foram divergentes.

A favor da possibilidade de redução do prazo prescricional, argumenta Clovis Bevi-laqua que o fundamento para se garantir essa alternativa às partes residiria no próprio interesse social, não ofendendo assim os imperativos de ordem pública. O Direito, dessa forma, não deseja que o prazo de prescrição se alongue de forma indefinida, portanto, en-curtar o prazo não seria uma forma de inutilizá-lo, como ocorre com a renúncia, mas sim de fortalecê-lo. Arremata então o autor do CC1916 ao afirmar que “a lei apenas diz que a prescrição não se renuncia antes de consumada (art. 161). Não diz que os seus prazos se não encurtam.”40

O entendimento pela alternativa de redução dos prazos não prevaleceu, estando a ce-leuma doutrinária encerrada, pois estabelece o CC em vigor a impossibilidade das partes alterarem os prazos prescricionais. Ainda que não esteja expresso no presente artigo, resta evidente que se as partes não podem alterar o prazo prescricional, ele não poderá ser nem aumentado, nem reduzido.

imprescritibilidade e autonomia da vontade

Os imperativos da ordem pública também se fazem sentir na proibição de que os parti-culares venham a acordar que determinada pretensão será imprescritível. Da mesma forma que a alteração para aumentar ou reduzir o prazo prescricional é vedada, a declaração de imprescritibilidade também se encontra excluída da esfera de autonomia das partes contra-tantes.

A imprescritibilidade decorre da própria lei ou da natureza de um direito. Ao largo do tratamento concedido à prescrição e à decadência, identifica Agnelo Amorim a existência de ações imprescritíveis, que seriam: (i) todas as ações meramente declaratórias; e (ii) algumas ações constitutivas, as quais são excluídas do regramento da decadência por não lhes fixar a lei qualquer prazo para o seu exercício. No que tange às ações condenatórias, relativas ao conceito de prescrição, como já visto, não existem ações imprescritíveis,41 pois quando a lei não lhes fixar um prazo específico, incidirá o prazo genérico, previsto no Código em vigor no art. 205.

Sobre a imprescritibilidade de pretensões que se relacionam com a natureza de deter-minados direitos, vale lembrar que os chamados direitos da personalidade ilustram essa hipótese, estando contemplados nos arts. 11 e ss. do CC. Considerando que o titular dos direitos da personalidade não pode dispor livremente dos mesmos, abandonando ou renun-ciando às pretensões que dos mesmos decorrem, é fácil perceber que tais pretensões não se enquadram ao instituto da prescrição. Conforme ressalta Gustavo Tepedino, a imprescriti-bilidade dos direitos da personalidade “impede que a lesão a um direito da personalidade,

40 clovis bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 485.

41 agnelo amorim Filho, “cri-tério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar ações impres-critíveis”, Revista dos Tribunais, n. 744, 1997, pp. 747.

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com o passar do tempo, pudesse convalescer, com o perecimento da pretensão ressarcitória ou reparadora”.42

Há quem entenda, todavia, que as pretensões ressarcitórias derivadas de ofensa aos direi-tos da personalidade poderiam ser objeto de prescrição. Nesse sentido, ressalta Humberto Theodoro Júnior que embora o direito à honra seja inalienável e imprescritível, a pretensão de exigir dano moral por lesão à honra está sujeita aos efeitos da prescrição.43

Quando se alega a prescrição

O artigo 193 do Código Civil afirma que “a prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita”.

A prescrição pode ser alegada perante o juiz monocrático, em 1ª instância, ou poste-riormente em segundo grau de jurisdição. Não ocorre a preclusão se a parte não alegar a prescrição logo na contestação, podendo fazê-lo durante todo o processo de conhecimento, inclusive nas razões finais, orais ou escritas.44

Na 2ª instância a parte poderá suscitar a prescrição na apelação ou nas contra-razões. Já em sede de embargos de declaração existe controvérsia, uma vez que o STJ já entendeu que somente será possível suscitar a questão se já tivesse sido ventilada anteriormente e não apreciada pela decisão embargada.45 Contudo, o mesmo tribunal, em acórdão mais recente, já decidiu que “[a] prescrição extintiva pode ser alegada em qualquer fase do processo, nas instâncias ordinárias, mesmo que não tenha sido deduzida na fase própria de defesa ou na inicial dos embargos à execução.”46

Cumpre destacar que não se admite a alegação de prescrição, pela primeira vez, em sede de recurso especial e extraordinário, uma vez que ao STF e STJ cabem apenas reexaminar questão já decida pelos tribunais, quando violar norma constitucional e lei federal. A exi-gência de prequestionamento da matéria é óbice intransponível para o cabimento de recurso com esse objetivo. Sobre a questão, vide STF, Súmulas 282 (1963) e 356 (1963).

reconhecimento da prescrição de ofício

Não é dado ao juiz conhecer da prescrição de ofício. A prescrição, ainda que reflita impe-rativos de ordem pública, visa também ao atendimento imediato de um interesse do sujeito passivo da relação jurídica. Assim sendo, não é permitido ao juiz, salvo se para favorecer o absolutamente incapaz, declarar de ofício a ocorrência da prescrição. Essa é a redação do art. 194:

Art. 194. O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz.

Sobre o absolutamente incapaz, o presente artigo estabelece uma exceção à regra geral que veda o conhecimento ex officio da matéria prescricional. A exceção está fundada na premissa de que, ainda que a prescrição deva sempre ser alegada pela parte, o absolutamente incapaz não possui discernimento para os atos da vida civil, não havendo assim possibilida-de do mesmo vir a cumprir a exigência da regra geral.

Adicionalmente, a proteção do absolutamente incapaz no presente artigo mostra-se em sintonia com a progressiva relevância que adquire a tutela da pessoa humana no Direito Ci-vil, alterando-se as normas já consolidadas pela dogmática em consonância com a percepção de que a pessoa deverá sempre ser protegida da forma mais ampla nas situações apresentadas pela dinâmica das relações jurídicas.

42 Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Re-novar, 2001, 2ª ed; p. 34.

43 Humberto Theodoro Júnior. Comentários ao Novo Código Civil, vol. III, tomo II, sálvio de Figueiredo Teixeira (org.), Forense, Rio de Janeiro, 2003; p. 167.

44 RsTJ 85/85 e sTJ, REsp. 14.449, DJ 12.08.1996, p. 27463.

45 sTJ, REsp. 74.428, DJ 18.08.97, p. 37813.

46 sTJ, REsp 157840/sP, DJ 07.08.00, p. 109.

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Não há como se conceber que o absolutamente incapaz restasse incluído na norma que demanda a motivação da parte para o reconhecimento da prescrição pelo juiz. Essa conclu-são apenas contribuiria para o desamparo do absolutamente incapaz, em tudo discrepante da proteção da pessoa humana concretizada pelo art. 1º, III, da CF.

Ressalte-se que a prescrição que favorece o absolutamente incapaz poderá ser declarada de ofício pelo juiz, ou requerida pelo Ministério Público, por força do disposto no art. 127 da CF. Adicionalmente, cumpre lembrar que o prazo prescricional nem mesmo se inicia contra o incapaz (art. 198, I, do CC), pelo que será sempre dado ao juiz reconhecer tal situação de ofício.

Ao estabelecer de forma expressa que o absolutamente incapaz é a única exceção ao impedimento de conhecer o juiz da prescrição de ofício, encerra-se o debate sobre a possi-bilidade da Fazenda Pública se beneficiar também dessa possibilidade.

O CC apenas se refere aos absolutamente incapazes e não existe motivo para equiparar a Fazenda Pública aos primeiros, seja por uma regra de bom-senso e respeito para com os profissionais que defendem o Poder Público, seja pela total improcedência jurídica do ar-gumento.

relativamente incapazes e pessoas jurídicas

Já sobre os relativamente incapazes, o Código Civil dedica proteção diferente daquela conferida aos absolutamente incapazes. Nesse sentido, a posição adotada pelo Código é a de resguardar ao relativamente incapaz o direito de ação regressiva contra seus assistentes que derem causa à prescrição ou não a alegarem oportunamente (art. 195). O mesmo tratamen-to é conferido no mencionado artigo às pessoas jurídicas em eventuais ações contra os seus representantes legais por dar causa ou deixar de alegar o decurso do prazo prescricional.

É importante ressaltar que o artigo não cuida diretamente da prescrição, mas sim do direito de ação, decorrente da não alegação da prescrição por parte de quem, ao assistir ou representar, deixa de suscitá-la, ou por dar causa à sua concretização quando desfavorável ao assistido ou representado.

O CC1916, em seu art. 164, previu a hipótese de ação regressiva contra os assistentes e representantes legais quando esses deixassem de alegar a prescrição. Apesar das aparentes semelhanças, o presente art. 195 apresenta distinções fundamentais, que impedem a asso-ciação direta com o dispositivo citado do código anterior.

Assim, enquanto o preceito em vigor se aplica aos relativamente incapazes, o dispositivo pretérito tratava dos absolutamente incapazes (“pessoas que a lei priva de administrar os próprios bens”). Adicionalmente, a referência à “ação regressiva” foi suprimida, evitando-se uma limitação do alcance pretendido pelo artigo.

A ação constante do art. 164 do CC1916 previa como seu fundamento a atuação dos representantes legais que “por dolo, ou negligência derem causa à prescrição”. Na redação do presente art. 195 a referência ao dolo e à negligência dos representantes foi retirada.

Dessa forma, poder-se-ia entender que a responsabilidade dos assistentes ou represen-tantes é alcançada pelo disposto no art. 927, parágrafo único, o qual estabelece a respon-sabilidade sem culpa para os casos expressamente previstos em lei ou quando da própria atividade desenvolvida pelo causador do dano, pode-se depreender que advém risco para os direitos de terceiros.

A aplicação do dispositivo que contempla a responsabilidade sem culpa para as figuras do art. 195 deve levar em conta as particularidades do caso concreto, não devendo se es-tender de modo absoluto a responsabilidade do art. 927, parágrafo único, uma vez que, se o representante legal de pessoa jurídica, na maior parte das vezes, possui experiência na

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atividade que desempenha, podendo assim ser responsabilizado como um profissional que se encontra exposto aos riscos da atividade que desenvolve, o mesmo não ocorre com o assistente do relativamente incapaz.

Com efeito, o assistente do relativamente incapaz poderá, em grande parte das vezes, não possuir conhecimentos jurídicos, e nem experiência na vida prática para auxiliar na gestão de interesses de terceiros. O pai ou a mãe de um menor, relativamente incapaz, p. ex., que deixar de alegar a prescrição benéfica ao assistido não poderá ser submetido à responsabili-dade sem culpa, tal qual o representante legal de uma pessoa jurídica, do qual normalmente se requer alguma expertise mínima para a vida negocial.

alguns aspectos peculiares da decadência

O CC não apresenta uma conceituação do instituto da decadência, prevendo apenas normas gerais sobre o mesmo, como a contagem do prazo decadencial, a possibilidade de renúncia, o conhecimento ex-officio por parte do juiz, o momento em que pode ser alegada e etc.

A previsão de normas expressas sobre o instituto inova com relação ao regramento cons-tante do CC1916, que apenas fazia referência ao termo “prescrição”, restando à doutrina e à jurisprudência promover uma distinção entre prescrição e decadência, bem como assinalar qual a real natureza de cada prazo previsto pelo CC1916.

Os prazos decadenciais no CC em vigor, conforme já salientado, encontram-se espalha-dos pelo texto do Código, acompanhando o direito que lhe é pertinente nos Livros da Parte Geral e Especial.

conceito de decadência

Para que se compreenda o conceito de decadência, faz-se necessário ter em mente dois outros conceitos: o de direito potestativo e o de ação constitutiva. Isso porque a definição do instituto da decadência está vinculada à extinção de um direito potestativo, que deveria ter sido concretizado, normalmente através de uma ação de natureza constitutiva, no decorrer de determinado prazo.

Primeiramente, cumpre abordar a questão do direito potestativo e esclarecer a sua re-lação com a decadência. A vinculação entre os dois conceitos é realizada pela doutrina ao afirmar que a “decadência é a perda do direito potestativo pela inércia do seu titular no período determinado em lei”.47

Valendo-se da classificação dos direitos em “direitos a uma prestação” e “direitos potes-tativos”, proposta por Chiovenda, Agnelo Amorim Filho, explicita que a primeira categoria de direitos, uma vez violados, dará surgimento a uma ação condenatória, cujo prazo para o seu exercício será prescricional. Já os direitos potestativos, poderão ser exercidos em juízo através de ação constitutiva, sendo o seu prazo de natureza decadencial.48 Cumpre destacar que o manejo de ação constitutiva não é necessária para a concretização de todo e qualquer direito potestativo, pois tais direitos podem surgir por convenção entre as partes, como ocorre, por exemplo, na avença entre particulares sobre a prorrogação de contrato mediante notificação prévia de uma parte a outra.

Os direitos potestativos, distintamente do que ocorre com os “direitos a uma prestação” (direitos subjetivos propriamente ditos), não dependem de uma ação ou omissão alheia, pois os mesmos conferem ao seu titular o poder de intervir na esfera jurídica de outrem, sem que os mesmos possam impor a sua vontade. Nos direitos potestativos o sujeito passivo encontra-se em situação de sujeição perante o exercício do direito por parte de seu titular.

47 Francisco amaral. Direito Civil – Introdução, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, 4ª ed; p. 561.

48 agnelo amorim Filho, “cri-tério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar ações impres-critíveis”, Revista dos Tribunais, n. 744, 1997, pp. 728.

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Dessa forma, compreende-se que os direitos potestativos são insuscetíveis de violação, não correspondendo aos mesmos uma prestação, o que vincula o seu exercício, quando ne-cessário o pronunciamento judicial, às ações de natureza constitutiva, uma vez que esse tipo de ação: (i) não pressupõe a existência de violação a um direito, como ocorre com as ações de natureza condenatória, próprias da prescrição; (ii) por meio delas não se exige uma pres-tação do réu; e, conseqüentemente (iii) não visam à satisfação de uma pretensão na medida em que a mesma é definida como “o poder de exigir de outrem uma prestação”.49

Prescindindo os direitos potestativos da noção de pretensão, por não estarem sujeitos à prestação a ser violada pelo sujeito passivo da relação jurídica, percebe-se que os tais direitos deverão ser exercidos em juízo através de ações constitutivas, e não condenatórias.

E as ações de natureza constitutiva, por seu turno, remetem aos prazos decadenciais para o seu exercício, já que a decadência não visa atuar sobre a pretensão, mas sobre o próprio direito, que resta fulminado com o transcurso do tempo sem que se mova a competente ação constitutiva. Conclui-se assim que o objeto da decadência será o próprio direito, caso o mesmo não venha a ser exercido dentro do prazo determinado. Adicionalmente, quando o seu exercício demandar que se recorra ao Poder Judiciário, a ação correspondente será de natureza constitutiva.

A concepção de que a decadência atua sobre o direito não é recente, podendo-se encon-trar na doutrina clássica de Câmara Leal o entendimento no sentido de que a decadência é “o perecimento do direito pelo decurso do prazo fixado para o seu exercício, sem que seu titular o tivesse exercido”.50

O direito, por mandamento legal ou por acordo entre as partes contratantes, já aparece no universo jurídico subordinado a um lapso temporal para o seu exercício, que em não se realizando, termina por extingui-lo. Apenas são concedidas duas alternativas ao titular de um direito ao qual esteja atrelado um prazo decadencial: ou exerce o direito dentro do lapso temporal concedido ou o perde para todo o sempre.

impedimentos, interrupções e suspensões

Os prazos decadenciais não estão sujeitos a impedimentos, interrupção ou suspensão. O entendimento no sentido da não aplicação das regras de impedimento, interrupção ou suspensão aos prazos decadenciais é bastante usual.

A característica de fluir contra todos e de modo contínuo, sem a possibilidade de impe-dimentos, interrupções ou suspensões foi uma das principais características utilizadas pela doutrina para distinguir os prazos prescricionais dos decadenciais na vigência do CC1916.

Todavia, deve-se atentar para o fato de que a nova disciplina instaurada pelo CC para o instituto da decadência estabelece exceções à regra, não devendo o aplicador do direito mais arrolar essa característica de forma absoluta como qualidade distintiva entre prescrição e decadência. Diversamente do que ocorre com a prescrição, os prazos decadenciais não estão sujeitos a impedimentos, interrupção ou suspensão, mas essa regra não é absoluta pois os prazos decadenciais poderão ser impedidos, interrompidos ou suspensos por força de dispo-sição legal específica nesse sentido, como ocorre com o art. 208, que impede o cômputo do prazo decadencial contra os absolutamente incapazes.

Vale ainda ressaltar duas outras características própria dos prazos decadenciais: (i) quan-do forem os mesmos estabelecidos por lei, não poderão as partes contratantes promover o seu aumento ou redução, pois se tanto fosse permitido, frustrados seriam os interesses de ordem pública que fundamentam o instituto; e (ii) aplicam-se aos mesmos o disposto nos arts. 195 e 198, I, do Código Civil, ou seja, são também aplicáveis aos prazos prescricionais as regras sobre a ação da qual dispõem os relativamente incapazes e as pessoas jurídicas con-

49 agnelo amorim Filho, “cri-tério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar ações impres-critíveis”, Revista dos Tribunais, n. 744, 1997, pp. 733.

50 antônio luís câmara leal, Da Prescrição e da Decadência – Teoria Geral do Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1959, 2ª ed.; p. 113.

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tra os seus assistentes e representantes legais pela ocorrência da prescrição (art. 195), sendo ainda afirmado que não correrá prazo decadencial contra os absolutamente incapazes (art. 198, I).

renúncia à decadência

O artigo 209 do Código Civil determina que “[é] nula a renúncia à decadência fixada em lei”. Essa redação deixa claro que existem dois tipos de decadência: a prevista em lei e a convencionada pelos particulares. No que se refere à decadência legal, os imperativos da or-dem pública fundamentam a regra do art. 209, impondo que os prazos legalmente previstos não sejam passíveis de renúncia pelos particulares.

A renúncia ao prazo decadencial legal será reputada ato nulo, por absoluta incompe-tência das partes para a prática de tal ato. Assim sendo, a renúncia ao prazo decadencial previsto em lei jamais produz qualquer efeito no mundo jurídico, independentemente da consumação ou não da decadência.

A contrario sensu, os prazos decadenciais convencionais poderão ser objeto de renúncia pelos particulares, não se cogitando, portanto, de sua nulidade pelo simples existência desse ato. Outras causas poderão levar à nulidade da renúncia ao prazo decadencial convenciona-do, mas não a elaboração do ato em si.

Os prazos decadenciais estabelecidos por convenção operam na seara dos direitos dis-poníveis, admitindo-se que, se a autonomia da vontade pôde criar determinado prazo, será igualmente possível promover a renúncia ao mesmo.

Cumpre adicionar que a renúncia à decadência convencional também deverá ocorrer após a sua consumação51. Essa medida busca evitar que a decadência convencional seja esvaziada a ponto de se tornar usual a imposição de cláusula renunciando aos seus efeitos já quando da estipulação do prazo decadencial.

Questões processuais

Novamente separando os efeitos da decadência legalmente prevista daquela convencio-nada pelas partes, o Código Civil, no seu artigo 210, estabelece que deverá o juiz conhecer de ofício a decadência legal quando a mesma incidir sobre processo de sua competência. Trata-se de um dever imposto por lei, e não uma mera faculdade, que poderia ser exercida ao talante do julgador.

Todavia, não poderá a decadência ser alegada pela primeira vez em sede de recurso ex-traordinário e recurso especial, dado que a CF exige, por força dos arts. 102, III, e 105, III, respectivamente, que para a admissão dos dois recursos mencionados, a matéria objeto de impugnação tenha sido decidida na instância inferior.

Sobre a decadência convencional, explicita o artigo 211 que “[s]e a decadência for con-vencional, a parte a quem aproveita pode alegá-la em qualquer grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação.”

Aqui, ao inverso do que ocorre com a decadência legal, o prazo decadencial contratu-almente estipulado não será objeto de conhecimento de ofício pelo julgador, na medida em que sobre tais prazos não incidem diretamente os imperativos de ordem pública que fundamentam os prazos legais.

A oposição da decadência contratual poderá ser realizada em qualquer grau ordinário de jurisdição, sendo válido para a mesma o entendimento exposto acima sobre a impossibili-dade de sua alegação em sede de recurso extraordinário e especial.

51 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. I, são Paulo, saraiva, 2002, 18ª ed; p. 305.

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3. QuEstõEs dE coNcurso

Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) – prova azul34. Sobre a prescrição, é correto afirmar-se que:

a) o juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a abso-lutamente incapaz;

b) aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, independente de título ou boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade;

c) a interrupção da prescrição só pode ocorrer duas vezes;d) a exceção prescreve no dobro do prazo que a pretensão;e) a renúncia da prescrição jamais pode ser tácita.

126º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase22. São imprescritíveis as pretensões que versam sobre

a) os bens públicos, o estado da pessoa e a cobrança de prestações alimentares venci-das;

b) a ação para anular inscrição do nome empresarial feita com violação de lei ou do contrato;

c) o estado da pessoa, os direitos da personalidade e a cobrança de prestações vencidas de rendas vitalícias;

d) o direito a alimentos e a ação de reparação civil em razão de contrafação.

128º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase22. Sobre a prescrição e a decadência, é INCORRETO afirmar:

a) quando houver prazo para o exercício de direito potestativo, o prazo será decaden-cial;

b) quando consumada, a prescrição extingue a pretensão;c) a pretensão nasce a partir do momento em que o direito é violado;d) a prescrição nunca pode ser suscitada de ofício pelo juiz.

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aUla 9: sUsPensÃo, iMPediMento e interrUPçÃo dos PraZos Prescricionais / direito interteMPoral

EmENtário dE tEmas

Impedimento e suspensão da prescrição – Interrupção da prescrição – Prazo geral de prescrição – Prazos prescricionais e prazos decadenciais – Direito Intertemporal

lEitura obriGatória

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 367/392.

lEituras comPlEmENtarEs

NEVES, Gustavo Kloh Muller, “Prescrição e decadência no novo Código Civil”, in Gustavo Tepedino (org.), A Parte Geral do Código Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, pp. 417/428;

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Foren-se, 2005; pp. 677/702.

1. rotEiro dE aula52

Os prazos prescricionais podem ser impedidos, suspensos ou interrompidos. O regra-mento dessas hipóteses encontra-se nos arts. 197 a 204 do Código Civil.

impedimento e suspensão da prescrição

Usualmente, quando se menciona que os prazos prescricionais “não correm” por algum motivo, está-se fazendo referência às causas de impedimento ou suspensão desses prazos. A diferença entre suspensão e impedimento reside no fato de que, no impedimento, a causa estabelecida em lei é pré-existente ao início da contagem do prazo prescricional, motivo pelo qual impede-se o próprio nascimento da prescrição.

Já na suspensão, o prazo prescricional já iniciado deixa de correr em decorrência de alguma situação, voltando a correr quando de sua superação, contando-se todo o tempo transcorrido até a sua suspensão.

O artigo 197 do Código Civil traz algumas hipóteses de impedimento e suspensão ao dispor da seguinte forma:

Art. 197. Não corre prescrição:I – entre cônjuges, na constância da sociedade conjugal;II – entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;III – entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou a

curatela.

52 O presente roteiro de estu-do é uma versão reduzida – e substancialmente adaptada para os fins desse material di-dático – do trabalho realizado conjuntamente com Tatiana Florence Magalhães e constan-te do livro Código Civil Interpre-tado conforme a Constituição da República, vol. I, organizado por Gustavo Tepedino, Maria celina bodin de Moraes e He-loisa Helena barboza (Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/423).

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TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs

As causas de suspensão ou impedimento de que tratam o artigo 197 estão baseadas em razões de ordem moral, como a confiança ou a relação familiar existente entre os sujeitos das relações jurídicas.

Especialmente com respeito ao relacionamento dos cônjuges, previsto no artigo 197, I, na constância da sociedade conjugal, deve-se lembrar que esse tratamento também deve ser estendido à união estável, uma vez que a Constituição Federal a reconhece como entidade familiar no art. 226, §3º.

Adicionalmente, prevê o art. 198 que “também não corre a prescrição”:

I – contra os incapazes de que trata o art. 3°;II – contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Muni-

cípios;III – contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra.

Aqui, diferentemente do que ocorre no artigo 197, as causas de impedimento ou suspen-são da prescrição não de natureza moral, mas sim por conta de uma situação que impede o sujeito da relação jurídica de agir, atuando sobre o decurso do prazo prescricional.

Como já visto, não corre prazo prescricional contra os absolutamente incapazes. Essa regra independe de estar o absolutamente incapaz representado ou não.

Também não corre a prescrição nas situações estabelecidas no art. 199, quais sejam: (i) pendendo condição suspensiva; (ii) não estando vencido o prazo; e (iii) pendendo ação de evicção. A doutrina critica severamente a inclusão desse artigo no Código Civil uma vez que, nessas hipóteses, não existe ainda ação para exigir o cumprimento de uma obrigação. Ou seja, ainda não há causa para a contagem do prazo prescricional.

Relacionado ao direito das obrigações, dispõe o artigo 201 sobre a suspensão do prazo prescricional em obrigações solidárias da seguinte forma:

Art. 201. Suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, só aproveitam os outros se a obrigação for indivisível.

Somente podem invocar a suspensão ou o impedimento da prescrição os sujeitos a quem o legislador se referiu nas hipóteses previstas em lei, não alcançando terceiros, nem mesmo os seus credores solidários. Excepciona o artigo, contudo, a hipótese da obrigação ser in-divisível, pois nessas circunstâncias não há como fracionar as relações que incidem sobre o objeto da obrigação.

interrupção da prescrição

O Código Civil arrola uma série de hipóteses nas quais o prazo prescricional será inter-rompido, ou seja, após superado o motivo que impediu o seu decurso, o prazo será contado novamente de forma integral. O fundamento das causas de interrupção reside no fato de que o credor não se encontrava inerte quanto ao manejo de sua pretensão e, sendo assim, essas causas passam a depender de uma manifestação da parte. Elas envolvem uma atitude delibe-rada do credor, que demonstra estar alerta e interessado na preservação de seu direito.

Uma das mais destacadas características da interrupção dos prazos prescricionais na dou-trina e na jurisprudência consiste no debate sobre a sua impossibilidade de ser utilizada por mais de uma vez.

Para alguns autores, o fundamento do instituto, consistente no interesse da sociedade em que os direitos não permaneçam muito tempo sem exercício, seria incompatível com a

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interrupção ilimitada da prescrição por parte do credor, que ao assim proceder acarretaria, em última análise, a imprescritibilidade da sua pretensão.

O legislador pareceu resolver a questão, optando por estabelecer que a interrupção da prescrição só pode se dar por uma vez, dentre as hipóteses constantes dos incisos de I a VI do artigo 202, assim redigido:

Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:I – por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a

promover no prazo e na forma da lei processual;II – por protesto, nas condições do inciso antecedente;III – por protesto cambial;IV – pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de

credores;V – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;VI – por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento

do direito pelo devedor.Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a inter-

rompeu, ou do último ato do processo para a interromper.

Ocorre, porém, que, na prática, esse entendimento pela impossibilidade de se interrom-per a prescrição por mais de uma vez pode gerar situações de extrema iniqüidade. Veja-se o exemplo constante nos comentários ao Código Civil organizado por Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin e Heloisa Helena Barboza:

“Tome-se como exemplo o credor de uma letra de câmbio vencida que procede ao protes-to, interrompendo, assim, o prazo prescricional, a teor do art. 202, II. Sem sucesso, posterior-mente ingressa o credor com a ação de execução do título, a qual prescreve em 3 anos (contra o aceitante), a partir do dia do vencimento (art. 70 do D. 57.663/66). Esse prazo, entretanto, interrompido pelo protesto, voltou a correr integralmente a partir de então, conforme dispõe o parágrafo único do art. 202. Aplicando-se o que estabelece a lei, ter-se-ia que admitir que o prazo em questão não poderia ser interrompido, pela segunda vez, pelo despacho que deter-minou a citação na ação de execução proposta pelo credor (art. 202, I).”

“Levando-se em consideração que a inércia é requisito essencial do instituto em foco, nada pode ser mais demonstrativo do interesse em receber o crédito – e, portando, da ausên-cia do elemento acima referido – do que a propositura da respectiva ação judicial, na qual o titular do direito, sem ter a quem mais recorrer, se socorre do Poder Judiciário para impor ao devedor o adimplemento de sua obrigação.”53

Dessa forma, reconhecer que essa atuação do credor não poderá interromper a contagem do prazo prescricional geraria uma situação de grande injustiça. Competirá, portanto, aos magistrados, flexibilizar a norma do artigo 202, pois, conforme ressalta J.M. Carvalho San-tos, “a presunção é que a aplicação da lei não conduza ao absurdo, como é de trivial regra de hermenêutica.”54

Prazo geral de prescrição

Os prazos prescricionais sofreram sensível redução no Código Civil de 2002 em relação ao CC1916. Trata-se de medida salutar uma vez que as tecnologias modernas, empregadas nos meios de transporte e comunicação, aproximam as pessoas e facilitam o contato entre

53 Gustavo Tepedino, Maria ce-lina bodin de Moraes e Heloisa Helena barboza (orgs). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 379.

54 J. M. de carvalho santos, Código Civil Brasileiro Interpre-tado, vol. VI, Rio de Janeiro, Freitas bastos, 1950, 4ª ed; p. 444.

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elas, não mais se justificando o estabelecimento de prazos tão longos como os fixados no Código anterior.

Tenha-se em mente que quando o CC1916 foi aprovado fazia apenas dez anos que San-tos Dumont havia realizado o primeiro vôo mecânico do mundo, com o avião 14Bis, e três que Henry Ford havia inaugurado a primeira linha de montagem de automóveis.

O artigo 205 do Código Civil dispõe que a prescrição “ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”. Dessa forma, 10 (dez) anos é o prazo prescricional que valerá para todas as relações jurídicas, quando a lei não dispuser de forma distinta. Como regra geral, o estabelecimento de um prazo de 10 (dez) anos parece bastante razoável, redu-zindo a metade o prazo anteriormente previsto no CC1916, no seu art. 177.

Prazos prescricionais e prazos decadenciais

O Código Civil apresenta um regramento distinto daquele presente no CC1916 no que se refere aos prazos prescricionais e decadenciais. No CC1916, o art. 178 enunciava uma série de prazos, sem qualquer indicação sobre a sua natureza, cabendo ao intérprete distin-guir as hipóteses de prescrição daquelas relativas à decadência.

Os prazos constantes do presente art. 205 e 206, por seu turno, são todos de natureza prescricional, facilitando em muito a tarefa do intérprete na aplicação das regras correspon-dentes à natureza desses prazos. Por outro lado, os prazos decadenciais estão previstos de forma esparsa nos livros da Parte Geral e Especial do CC, acompanhando a positivação do direito sobre o qual recai a decadência.

Nesse sentido, vale transcrever trecho da Exposição de Motivos do CC, da lavra de Mi-guel Reale, na qual se afirma que:

“Para por cobro a uma situação deveras desconcertante, optou a Comissão por uma fór-mula que espanca quaisquer dúvidas. Prazos de prescrição, no sistema do Projeto, passam a ser, apenas e exclusivamente, os taxativamente discriminados na Parte Geral, Título IV, Capí-tulo I, sendo de decadência todos os demais, estabelecidos, em cada caso, isto é, como com-plemento de cada artigo que rege a matéria, tanto na Parte geral como na Parte Especial.”55

Dessa forma, uma dos mais dramáticos e inglórios debates travados pela doutrina du-rante a vigência do Código anterior é encerrado com a definição clara de quais prazos são prescricionais e quais são de natureza decadencial no Código de 2002.

direito intertemporal

Se as disputas sobre a natureza dos prazos previstos no Código Civil foi encerrada com o advento do novo Código, um novo debate surgiu em 2002 com a entrada em vigor no re-ferido código. Trata-se de uma questão de direito intertemporal trazida a lume pela redação do artigo 2028, assim disposto:

Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.

A doutrina debateu as diversas possibilidades de interpretação desse artigo, chegando-se mesmo a serem editados livros específicos sobre questões de direito intertemporal no Có-digo Civil de 2002.

55 senado Federal. Novo Código Civil. Impressa nacional, brasí-lia, 2002, p. 40.

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O debate gira em torno sobre a forma de contagem dos prazos prescricionais iniciados antes da entrada em vigor do novo Código Civil. Os exemplos a seguir demonstram como deverá ser considerada a contagem dos prazos prescricionais de acordo com a redação do artigo 2028:56

a) A prescrição já consumada não será afetada (Ex. 1);b) Se transcorreu mais da metade do prazo, aplica-se o CC/1916 (Ex. 2);c) Se transcorreu menos da metade (ou a exata metade) do prazo, aplica-se o CC/2002,

contado o prazo a partir de sua entrada em vigor (Ex. 3);d) Se, porém, a soma do período já transcorrido mais o período correspondente ao pra-

zo novo (em princípio aplicável) resultar em prazo maior do que o do CC/1916, será este último o prazo aplicável (Ex. 4).

ExEmplo 1código civil de 2002 código civil de 1916art. 206. Prescreve:§ 3.º em três anos:V – a pretensão de reparação civil

art. 177. as ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos (...) contados da data em que poderiam ter sido propostas.

Se o dano ocorreu em fevereiro de 1982, a prescrição se consumou em fevereiro de 2002.

Não será afetada a prescrição pelo Código Civil de 2002.

ExEmplo 2código civil de 2002 código civil de 1916art. 206. Prescreve:§ 3.º em três anos:V – a pretensão de reparação civil

art. 177. as ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos (...) contados da data em que poderiam ter sido propostas

Se o dano ocorreu em fevereiro de 1985, a prescrição só estará consumada em fevereiro de 2005.

Aplica-se o prazo antigo, pois já havia transcorrido mais da metade quando da entrada em vigor do novo Código.

ExEmplo 3código civil de 2002 código civil de 1916art. 206. Prescreve:§ 3.º em três anos:V – a pretensão de reparação civil

art. 177. as ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos (...) contados da data em que poderiam ter sido propostas

Se o dano ocorreu em fevereiro de 2001, a prescrição estará consumada em janeiro de 2006.

Aplica-se o prazo novo, iniciada a contagem a partir da entrada em vigor do novo Có-digo.

ExEmplo 4código civil de 2002 código civil de 1916

art. 206. Prescreve:§ 3.º em três anos:i – a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos

art. 178. Prescreve:§ 10. em cinco anos:iV – os alugueres de prédio rústico ou urbano

56 Os exemplos utilizados nesta seção, bem como o caso gera-dor a seguir, foram extraídos da apostila “Prescrição e De-cadência”, elaborada por Teresa negreiros para os cursos de educação continuada da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro.

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Se a dívida venceu em setembro de 2000, a prescrição estará consumada em setembro de 2005.

Aplica-se o prazo antigo, pois o início da contagem do prazo novo, após a entrada em vigor do Código, resultaria na prescrição da pretensão em janeiro de 2006, perfazendo um prazo maior do que o estabelecido no Código revogado.

2. caso GErador

A Siderúrgica Mineira S/A (“Siderúrgica Mineira”) é uma companhia aberta, com con-siderável patrimônio imobiliário e atuação destacada nos setores de siderurgia e mineração. Durante a década de 80, esteve engajada em grande projeto de expansão de seu parque in-dustrial, tendo recorrido a instituições financeiras dispostas a financiar o empreendimento.

Buscando a captação dos recursos necessários, a companhia celebrou Contrato de Mú-tuo no valor de R$ 100 milhões com o Banco Carioca S/A (“Banco Carioca”), a ser pago em 40 (quarenta) prestações anuais, constituindo gravame hipotecário sobre sua principal usina, por instrumento público levado a registro em março de 1985. Verifica-se, então, que a hipoteca oferecida teria eficácia até março de 2015, por força do prazo de 30 (trinta) anos ditado pelo art. 817 do Código Civil de 1916.

Posteriormente, já na fase de conclusão do projeto, a siderúrgica obteve novo financia-mento, desta vez no valor de R$ 200 milhões, junto ao Banco Paulista S/A (“Banco Pau-lista”), a ser pago em 50 (cinqüenta) prestações anuais e garantido por nova hipoteca sobre a usina. O ônus real, registrado em março de 1991, seria eficaz até março de 2021, pelas mesmas razões acima aludidas.

Dentro desse planejamento, a Siderúrgica Mineira vinha logrando êxito em manter o pagamento pontual de ambas as dívidas contraídas. Até que, em março de 2005, enquanto ainda pendente o pagamento de razoável fração de ambos os financiamentos, a companhia se tornou inadimplente, causando o vencimento antecipado de todas as prestações vincen-das, nos termos dos contratos celebrados.

Sendo assim, em abril de 2005, o Banco Carioca ingressa em juízo, requerendo a ex-cussão da hipoteca constituída em seu favor pela companhia siderúrgica. Esta, por sua vez, alega que a garantia concedida é ineficaz, já que a entrada em vigor do Código Civil fez com que o prazo peremptório da hipoteca, reduzido em 10 (dez) anos pelo artigo 1.485 e não prorrogado, se tivesse esgotado em março de 2005.

Se você fosse o juiz desse caso, como seria a sua decisão? Justifique.

3. QuEstõEs dE coNcurso

24º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase42 – À luz das normas legais que regem o instituto da prescrição, dispostas pelo Código Civil vigente, assinale a afirmativa correta:

a) O protesto cambial não interrompe a prescrição;b) A prescrição consiste na extinção do direito subjetivo;c) Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes;d) A prescrição corre entre os cônjuges na constância da sociedade conjugal.

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Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)54. Prevê o artigo 189 do novo Código Civil que “violado o direito, nasce para o titu-lar a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. O Código prevê, de modo expresso, os prazos de prescrição, que fluem da violação do direito, e disciplina as regras para sua suspensão e sua interrupção. A esse respeito, assinale a única afirmação que está de acordo com o Código Civil em vigor:

a) A prescrição só pode ser interrompida duas vezes;b) A prescrição só pode ser interrompida por quem esteja interessado na interrupção;c) A interrupção produzida contra o principal devedor não prejudica o fiador;d) Prescreve em 4 anos a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação das

contas;e) Prescreve em 5 anos a pretensão de restituição de dividendos recebidos de má-fé, a

contar da data em que foi deliberada a distribuição.

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Parte iii: direito das obrigações

aUla 10: a relaçÃo obrigacional

EmENtário dE tEmas

Noção geral de obrigação – Distinções entre direito das obrigações e direitos reais – Es-trutura da relação obrigacional – Fontes das obrigações

lEitura obriGatória

CALIXTO, Marcelo Junqueira. “Reflexões em torno do conceito de obrigação, seus elementos e suas fontes”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na pers-pectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 1/15; 25/28.

lEituras comPlEmENtarEs

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 16/37.

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 492/495.

1. rotEiro dE aula

Noção Geral de obrigação

Numa lição clássica contida nas Institutas de Justiniano, pode-se encontrar a noção de que obrigação é um vínculo jurídico que nos obriga a pagar alguma coisa. Apesar de aparen-temente simplória, essa antiga lição remete com bastante propriedade à idéia essencial que circunda o direito das obrigações – a idéia de relação jurídica entre duas ou mais pessoas, sejam elas naturais ou jurídicas.

Tendo em vista a natureza intuitiva do conceito, o legislador preferiu não defini-lo no atual Código Civil. Na doutrina, Caio Mário define obrigação como o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável.57

Já Washington de Barros Monteiro, de forma menos sucinta, enuncia que obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor, cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, ga-rantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”. Nessa segunda definição é interes-sante observar a presença do elemento responsabilidade, uma vez que a sua presença será fundamental quando dos efeitos decorrentes do descumprimento da obrigação.

Outro elemento que merece destaque é o caráter de transitoriedade, inerente às obriga-ções. A obrigação é, em verdade, uma relação jurídica que nasce tendo por fim a sua própria extinção, ou ainda melhor, a sua realização. É justamente a satisfação do credor, que ocorre

57 caio Mario da silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2003; p. 7.

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com o regular adimplemento da obrigação, que enseja o fim desta e, por conseguinte, o fim do vínculo jurídico que une credor e devedor.

Na dinâmica obrigacional, os atores encontram-se subsumidos nas figuras do credor e do devedor. A idéia de vinculação, que traduz o ponto principal do instituto, une duas ou mais pessoas que se encontrem envoltas numa relação de crédito e débito. O credor e o devedor correspondem aos dois lados da obrigação, aos pólos ativo e passivo respectivamente.

O vínculo aqui descrito é marcado pela pessoalidade. Essa característica remete ao fato de que numa relação obrigacional há um número determinado (ou ao menos determinável) de pessoas envolvidas. Os credores e devedores são conhecidos, ou ao menos conhecíveis. Ao credor não é dado cobrar sua dívida de um estranho à relação obrigacional, e o devedor, por sua vez, não se verá desembaraçado de sua obrigação se pagar a outro que não àquele a quem deve (ou que pelo menos tenha poder de receber representando o credor).

Outro ponto crucial para entender as obrigações é a delimitação do seu objeto. Este nada mais é do que uma atividade do devedor, em prol do credor e essa atividade recebe a desig-nação de prestação. As formas que essa prestação pode assumir são bem diversas58 e ensejarão diferentes classificações das obrigações.

A própria experiência cotidiana mostra que as obrigações estão sujeitas ao inadimple-mento, sendo que este, em certos ramos da atividade econômica, é demasiadamente grande. Nesses casos, o direito resguarda o credor de ver a sua expectativa de satisfação inteiramente frustrada definindo que deverá o patrimônio do devedor responder, em última análise, pelo adimplemento.

É justamente a possibilidade de procurar no patrimônio do devedor a satisfação do crédito que faz com que essas vinculações jurídicas não sejam desacreditas. Contudo, nem sempre foi assim.

Na Antiguidade Clássica, por exemplo, o devedor respondia com o próprio corpo em face das obrigações assumidas, podendo ser submetido inclusive à situação de escravidão. Contudo, o direito tal qual hoje é concebido, embasado dentre outros princípios pelo da dignidade da pessoa humana, repele o uso da força física no intuito de compelir alguém a satisfazer uma obrigação assumida.

Embasando a idéia acima descrita, veja-se o exemplo acadêmico do pintor que assume a obrigação de pintar um quadro, mas depois se arrepende. Qual seria a solução para satisfazer quem o contratou? Não há como forçar o artista a pintar, pois é forte o embasamento cons-titucional no sentido de vedar o uso da força para consecução de tais intentos. No estudo da responsabilidade civil será observado que, nesse caso, a legislação reserva à parte prejudicada a possibilidade de recorrer ao judiciário demandando reparação por perdas e danos.

Outro elemento que deve ser destacado é o cunho pecuniário das obrigações, visto que o seu objeto sempre será um valor de natureza econômica. É certo que o direito pode até mesmo reservar, em certos momentos, uma especial consideração às obrigações de natureza exclusivamente moral, mas não sendo as mesmas dotadas de juridicidade, não podem ser inseridas no estudo das obrigações.

Igualmente não há que se pensar que as obrigações do direito de família – muitas vezes não propriamente pecuniárias – constituem forma de excepcionar a idéia de caráter eco-nômico acima expressa. Cumpre apenas destacar que natureza jurídica dessa espécie de obrigações não convém ao tema ora abordado, devendo ser pormenorizadas no estudo do direito de família.

Contextualizando o direito das obrigações com a realidade das relações econômicas vivenciadas hoje, percebe-se que a sua pertinência se ressalta quando são analisadas as relações de consumo. Pode-se destacar como os principais fatores para essa situação os seguintes fatos: (i) a dinâmica do consumo é cada vez mais marcada pela publicidade,

58 como será visto posterior-mente, essas prestações po-dem ser uma simples entrega de um bem, uma conduta que represente um agir (fazer), ou ainda uma simples abstenção (não fazer).

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inclusive reconhecendo para esse artifício inegável teor contratual; e (ii) o fenômeno da massificação dos contratos, tendência hoje já consolidada e que ocorre quando os consu-midores simplesmente aderem a contratos já previamente redigidos (como no caso dos contratos bancários).

Certo é que em todas as atividades econômicas, da produção à distribuição de bens e serviços, imiscui-se o direito obrigacional.

distinção entre direito das obrigações e direitos reais

Os direitos reais (ius in re) incidem diretamente sobre uma coisa ao passo que o direito obrigacional (jus ad rem), tem por objeto uma determinada prestação. Ambos têm, como se pode antever, um caráter patrimonial inerente.

No quadro esquemático a seguir pode-se visualizar algumas das principais distinções:

direitos reais direitos obrigacionais

Quanto ao objeto

os direitos reais recaem sobre uma coisa, geralmente um objeto corpóreo, apesar de serem admissíveis direitos reais em relação a bens imateriais.

o direito obrigacional recai essencialmente sobre relações humanas.

Quanto à oponibilidade

o direito real é um direito absoluto sendo oponível perante todos (erga omnes).

o direito obrigacional é relativo na medida em que a prestação só pode ser exigida do devedor da relação.

no que consiste o direito direito ao uso, gozo e fruição de bens. direito a uma ou mais prestações

efetuadas por uma pessoa.

extensão no tempo Caráter de permanência. Caráter essencialmente transitório, fadado à extinção.

existência ou não de direito de seqüela

o direito real é absoluto, oponível contra todos e por conta disso, seu titular possui o direito de seqüela, isto é, de perseguir o exercício do direito perante qualquer um que esteja de posse da coisa.

o direito de seqüela não existe no direito obrigacional. o credor não pode individualizar bens no patrimônio do devedor para garantir o regular adimplemento da obrigação. a garantia representada pelo patrimônio do devedor se manifesta de forma abstrata.

enumerabilidade dos direitos

são numerus clausus, isto é, são somente aqueles assim enunciados pela lei.

apresentam-se como um número indeterminado. isso se deve ao fato de que as relações obrigacionais são infinitas e dotadas de grande variabilidade.

Estrutura da relação obrigacional

A noção geral de obrigação foi examinada no tópico anterior. Trata-se do expediente jurídico mediante o qual surge o vínculo entre dois sujeitos – um ativo e ou outro passivo. Ao sujeito passivo compete cumprir a prestação a que está adstrito e agindo nesse sentido propiciará: (i) a sua liberação face ao credor; (ii) a extinção da própria obrigação onde está imerso.

As relações obrigacionais não estão necessariamente fadadas ao sucesso, que se traduz com o cumprimento obrigação. O desejo do credor é que o devedor (sujeito passivo), satis-faça, de modo voluntário ou coativo, a prestação. Quando isso não se verifica, surge a possi-bilidade de se valer da sujeição do patrimônio do devedor. Contudo, devemos destacar que

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esta opção só vai aparecer em momento posterior, na execução coativa, com a intervenção do poder do Estado. Aqui observamos de forma clara os dois elementos essenciais da obri-gação: o débito (debitum, Schuld, em alemão) e a responsabilidade (obligatio, Haftung).

Na estrutura da obrigação, crucial é a existência de dois sujeitos. Um é o sujeito ativo, ou credor. É ativo no sentido de que titulariza o crédito. No pólo oposto está o sujeito passivo, ou devedor, obrigado ao exercício de uma determinada prestação – pela qual pode vir a responder pelo seu patrimônio no caso de inadimplemento (haftung).

A noção de determinabilidade também é outro traço das obrigações. Os sujeitos devem ser determináveis, embora possam não ser, desde o início, determinados. Não é necessário que desde a origem da obrigação haja individuação precisa do credor e do devedor, mas não obstante, no momento da realização da obrigação os sujeitos devem ser conhecidos.

Um exemplo de indeterminação de sujeito na formação do vínculo obrigacional ocorre na promessa de recompensa. Na promessa, o devedor é certo (quem fez a oferta), mas o credor é indeterminado, vindo a constitui-se aquele que adimplir com os requisitos especi-ficados.

Outro exemplo, dessa vez de indeterminação no pólo passivo, é o caso do adquirente de imóvel hipotecado que responde pelo pagamento da dívida – embora não tenha sido o devedor originário.

O objeto da relação obrigacional é a prestação – que constitui uma atividade, uma con-duta do devedor. É fundamentalmente um dar, um fazer ou um não fazer algo. A prestação é, portanto, a atividade do devedor em prol do credor, que se constitui no objeto imediato da obrigação. Há também um objeto mediato, que nada mais é do que um objeto material ou imaterial sobre o qual incide a prestação. Dessa forma, quando se refere ao objeto da prestação, está sendo enfocado o objeto imediato; quando se menciona o objeto da obriga-ção, a referência será o objeto mediato.

Por exemplo, na obrigação de pintar um quadro (obrigação de fazer), a prestação, ou objeto imediato, é o ato de pintar. O objeto mediato nada mais será do que a própria tela que consubstancia a ação realizada.

A prestação deve ser possível, lícita e determinável, sendo essas qualificações incidentes seja em relação à prestação em si, objeto imediato, seja em relação ao objeto que corporifica a relação obrigacional, objeto mediato. A dinâmica segue a mesma observada por ocasião do estudo dos negócios jurídicos (art. 166, II, Código Civil).

Tradicionalmente, sempre foi muito debatida a necessidade de que as obrigações mani-festassem conteúdo patrimonial, apesar da legislação civilista expressamente não determinar essa característica. Mais coerente parece manter o foco, não na patrimonialidade, mas sim no real interesse do credor no cumprimento da obrigação, o qual pode não necessariamente estar direcionado à obtenção de alguma vantagem econômica.

Certas obrigações apresentam dificuldade de mensuração do caráter econômico das prestações. Nesse sentido pode ser destacada a seguinte hipótese de alguém que doa imóvel para a Municipalidade, mas estabelece que ali deverá ser instalado um parque público, com o encargo de que o mesmo tome o nome do doador. Quem exerce tal liberalidade não aufere vantagem pecuniária, mas não se pode dizer que o caráter de obrigação está desnaturado.

Fontes das obrigações

Fontes das obrigações são todos os atos jurídicos através dos quais nascem as obriga-ções. Essa matéria é essencialmente marcada pela construção da doutrina e dessa forma, há grande variação de entendimentos acerca de que elementos constituem fontes das obrigações.

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TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs

No Direito Romano, as fontes das obrigações eram identificadas como sendo compostas pelos seguintes elementos: os contratos, os quase contratos, os delitos e os quase-delitos. O código francês, por sua vez, reproduziu essa enumeração acrescentando o elemento lei. Essa classificação não foi reproduzida na atual sistemática do direito das obrigações no ordena-mento jurídico pátrio.

No atual Código Civil, são fontes das obrigações o contrato, os atos unilaterais e o ato ilícito. O enriquecimento sem causa e o abuso de direito também são abordados, sendo equiparados aos atos ilícitos.

Os contratos e as manifestações unilaterais de vontade são fontes das obrigações nas quais pode-se observar claramente a vontade humana como fonte direta.

O ato ilícito provém de situações onde estão presentes ações ou omissões marcadas pela culpa, seja culpa em sentido estrito, seja uma conduta dolosa. Deve-se observar a previsão no art. 186 do Código Civil ao dispor que: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamen-te moral, comete ato ilícito.

Por fim, destaque-se o grande dissenso acerca da consideração da lei como fonte das obrigações. Em breve análise, pode-se dizer que todas as obrigações se balizam pela lei, não podendo confrontá-la, mas não necessariamente as obrigações surgiriam diretamente dela.

A necessidade da prática de certos atos que surge por força da lei não é suficiente para classificá-la como fonte, mesmo porque, em regra, esses atos são deveres jurídicos e não propriamente obrigações.

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TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs

aUla 11: as obrigações natUrais e as obrigações ProPter reM

EmENtário dE tEmas

Obrigações civis – Obrigações naturais – Obrigações propter rem – ônus reais e obriga-ções propter rem.

lEitura obriGatória

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 105/111.

lEituras comPlEmENtarEs

ARAÚJO, Bárbara Almeida de. “As obrigações propter rem”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 99/120.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro: Fo-rense, 2004; p. 285/304.

1. rotEiro dE aula

obrigações civis

Como visto nas seções anteriores, a obrigação desdobra-se numa perspectiva dupla: por um lado o débito, caracterizado pela necessidade de realizar uma determinada prestação. Por outro, existe a garantia, que corresponde à prerrogativa do credor de se valer dos meios legais no intuito de compelir o devedor a pagar. As obrigações dotadas desses elementos constitutivos, são chamadas de perfeitas ou obrigações civis. Contrapõem-se às obrigações naturais – que, grosso modo, podem-se denominar de incompletas. Diferem ainda das obri-gações propter rem, que congregam elementos ora de direitos reais ora de obrigações civis.

obrigações Naturais

O estudo das obrigações naturais é dotado de certos particularismos. Segundo a visão de alguns autores, elas se colocam num caminho intermediário entre o domínio moral e o campo jurídico. Não são de modo algum exclusivamente morais, pois fato inconteste é que o direito as confere não só efeitos, como também certa proteção jurídica – ainda que incompleta.

De premente importância é verificar que a juridicidade da obrigação natural somente se manifesta no momento de seu cumprimento. Antes que esse ocorra, a obrigação natu-ral, não sendo dotada de coercibilidade, encontra-se em estado de latência. A exemplo dos deveres morais, não pode ninguém demandar o seu cumprimento. Paradoxalmente, é no adimplemento da obrigação – que corresponde concomitantemente ao momento de extin-ção – que surge a sua face jurídica.

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Como já mencionado, as obrigações naturais são obrigações incompletas na medida em que apresentam como particularidade, o fato dos devedores não poderem ser judicialmente compelidos a pagar. Não obstante, se forem cumpridas espontaneamente, será tido por váli-do o pagamento, que não poderá ser repetido (há retenção do pagamento, soluti retentio).

Não há que se equiparar obrigação natural com obrigação moral, que sendo mero dever de consciência, não obtém tutela jurídica.

A distinção da obrigação natural em relação à obrigação civil está na não existência de coercibilidade por parte da primeira. Contudo, se o devedor, de forma livre e consciente, cumpre uma obrigação natural, o pagamento considera-se legal. O pagamento era devido, mas de cumprimento não coercível. Não há aqui que se falar em mover o Poder Judiciário para reaver o que houver sido pago porque esse pagamento era de fato devido.

A legislação não aborda em profundidade o tema das obrigações naturais, competindo à doutrina o estudo das suas características.

No estudo do tema, surge de partida uma indagação: é repetível, isto é, pode o devedor pedir de volta a quantia que tiver entregue, quando tal pagamento houver se operado com erro no que tange a coercibilidade dessa obrigação?

Em outras palavras: o devedor, se soubesse da não coercibilidade característica das obri-gações naturais não teria pago; o fez por pensar que tratava-se de obrigação civil, que além de ser juridicamente exigível, encontra no patrimônio do devedor a garantia do seu cumpri-mento. Tendo cometido esse equívoco, pode repetir?

A espontaneidade ou não do pagamento nesse caso é irrelevante. A obrigação natural é exigível, embora não dotada de coatividade. Dessa forma, se o devedor a adimplir, esse pagamento é válido, não havendo o que se falar em repetição.

A lei não minudencia os casos em que nos deparamos com obrigações naturais, estando os mesmos esparsos na legislação. Grosso modo, podemos citar três casos onde se pode en-contrar obrigações naturais: dívida prescrita, dívida de jogo e juros não estipulados.

Dívida Prescrita. Talvez seja a mais eloqüente das hipóteses de obrigação natural, sendo circunstância que se desenvolve desde os trabalhos do Direito Romano. Evitando dúvidas, o legislador manifesta expressamente o seu entendimento no art. 882 do CC, no qual opera equiparação entre dívida prescrita e obrigação natural:

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

Dívida de Jogo. Segundo dispõe o art. 883 do Código Civil, não terá direito a repetir aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito ou não permitido pela legislação.

Percebe-se aqui a expressa aplicação do princípio de que a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza. Nesse sentido, a hipótese mais elucidativa é sem dúvida a de dívida de jogo. Não pode o devedor, nesse caso, ser obrigado ao pagamento, mas, uma vez o tendo efetuado, não pode o solvens recobrar o que voluntariamente foi pago, excepcionando-se no caso de dolo, ou se o prejudicado for menor ou interdito. Nesse sentido, o art. 814 do Código Civil:

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode re-cobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.

§ 1o Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconheci-mento, novação ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé.

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§ 2o O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibi-do, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.

§ 3o Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se sub-metam às prescrições legais e regulamentares.

De acordo com a redação do caput do art. 814, pouco importa que o jogo seja lícito ou ilícito, pois em qualquer uma das hipóteses se estará diante de uma obrigação natural. Contudo, há que se ressalvar que a existência de jogos que são regulamentados ou autori-zados pelo próprio Estado. É o caso das loterias oficiais, o jogo semanal da loto e da loteria esportiva, as apostas de turfe, entre outros. Assim, pode-se verificar a existência tanto de jogos proibidos, tolerados e autorizados.

Os jogos autorizados são aqueles caracterizados pela regulamentação oficial, e não são abarcados pelo disposto no art. 814 caput. Se o próprio Estado regula a atividade, cria uma obrigação civil com toda a sua exigibilidade.

Juros não estipulados. Sob a égide do antigo código, a obrigação de pagar juros não con-vencionados era inexigível, e quando realizada, poderia ser retida. O atual código de 2002, em seu artigo 591, alterou a regra:

Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.

Sendo assim, somente nos empréstimos sem fins econômicos o pagamento voluntário de juros não convencionados constituirá obrigação natural.

obrigações propter rem

A distinção entre direitos reais e obrigacionais é um expediente que serve muito mais para fins teóricos do que para aplicação pratica dos profissionais jurídicos. Todavia, cumpre observar que essas diferentes modalidades de direitos constantemente se relacionam. Não são universos de todo apartados e, nesse sentido, pode-se perceber situações onde o proprie-tário torna-se sujeito de obrigações somente por ser proprietário.

Um exemplo de obrigação propter rem é a necessidade de arcar com as despesas condo-miniais de imóveis, conforme dispositivo constante do artigo art. 1315 do Código Civil.59 A obrigação se vincula àquele que detém a propriedade e não permanece com o mesmo no caso, por exemplo, de alienação do bem. O novo proprietário é quem arcará com as cotas vincendas, inclusive com aquelas que mesmo vencidas ainda não foram pagas.

Qualquer outro indivíduo que o suceda nessa posição de proprietário ou possuidor igualmente assumirá tal obrigação. Não obstante, o proprietário poderá liberar-se da obri-gação no momento em que abdicar da condição de proprietário.

Analisando a etimologia da expressão propter rem percebe-se o conteúdo dessa obrigação: propter, como preposição significa “em razão de”, “em vista de”. Trata-se, pois, de uma obri-gação relacionada com a coisa (rem), uma obrigação que surge em vista dessa.

A obrigação propter rem contraria a espécie regular de obrigações. Nas obrigações civis, os sucessores a título particular não substituem em regra o sucedido em seu passivo. Já nas obrigações propter rem, o sucessor a título singular assume automaticamente as obrigações do sucedido, ainda que não saiba de sua existência. É o caso do adquirente de imóvel que deve arcar com todas as taxas condominiais em mora.

59 art. 1315 do código civil: O condômino é obrigado, na pro-porção de sua parte, a concorrer para as despesas de conser-vação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver sujeita. Parágrafo único. Presu-mem-se iguais as partes ideais dos condôminos.

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Ônus reais e obrigações propter rem

De forma sucinta, pode-se afirmar que o ônus real é um gravame que recai sobre deter-minada coisa, restringindo o direito de um titular de um direito real. Diferentemente do dever, no ônus não há a figura da coatividade, podendo a parte interessada praticar o ato ou não, e nesse caso, sujeita-se a parte às suas conseqüências.

Outras diferenças podem ser apontadas, dentre podem ser destacadas as seguintes:

Ônus reais obrigações propter rem

a responsabilidade pelo ônus real é limitada ao bem onerado, ao valor deste.

na obrigação propter rem, o obrigado responde com seu patrimônio, sem limite.

o ônus desaparece caso seja superado o seu objeto.

os efeitos da obrigação real podem permanecer, ainda que desaparecida a coisa.

o ônus gera sempre uma prestação positiva. Já a obrigação propter rem pode surgir com uma prestação negativa.

2. QuEstão dE coNcurso

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)40. João Carlos, proprietário de um apartamento, não efetua o pagamento das presta-ções condominiais há pelo menos 3 (três) anos, o que já foi inclusive objeto de discus-são em algumas Assembléias. No entanto, antes que o condomínio praticasse qualquer ato relativo à cobrança das prestações em atraso, João alienou o imóvel a Maria Santos, sendo a escritura devidamente registrada no Registro Geral de Imóveis, para os devidos efeitos legais. Sabendo-se que, após um mês no apartamento, Maria foi citada em ação de cobrança proposta pelo condomínio, pode-se afirmar que:

a) a cobrança em face de Maria não é legítima, apesar de se configurar obrigação prop-ter rem, pois todos os condôminos tinham ciência dos débitos antes da negociação do imóvel;

b) a inércia do condomínio enquanto João estava no imóvel operou a remissão da dívi-da;

c) a prestação condominial é uma obrigação propter rem, sendo legítima a cobrançad) João pode efetuar o pagamento extrajudicial, e entrar com ação de regresso contra

Maria;e) Maria não terá que pagar, pois o Código Civil de 2002 alterou a natureza da obriga-

ção condominial, tornando-a obrigação intuitu personae.

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TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs

aUla 12: classiFicaçÃo das obrigações: obrigações de dar, FaZer e nÃo-FaZer

EmENtário dE tEmas

Classificação das obrigações quanto ao objeto – Obrigação de dar e restituir coisa certa – Responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa na obrigação de dar coisa certa – Obrigações de fazer e não fazer

lEitura obriGatória

BIRENBAUM, Gustavo. “Classificação: Obrigações de dar, fazer e não fazer”, in Gus-tavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 121/146.

lEituras comPlEmENtarEs

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 112/133.

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 491/523.

1. rotEiro dE aula

classificação das obrigações quanto ao objeto

Talvez a mais usual classificação das obrigações seja aquela que a divide em obrigações de dar, fazer e não fazer. Trata-se de uma classificação que tem em foco o objeto da relação obrigacional (prestação) para determinar o enquadramento de cada obrigação analisada.

Na terminologia romana clássica, a prestação podia consistir num dare, num facere ou ainda num praestare. O facere, que hoje equivaleria à obrigação de fazer, englobava em seu conceito o que atualmente se define como obrigação de não fazer.

A obrigação de dar indica o dever de transferir ao credor alguma coisa ou alguma quantia. A obrigação de fazer é aquela na qual o devedor se incumbe de praticar determinado ato, sendo essa ação a prestação. O objeto da obrigação é a própria prestação, ou seja, a realização de uma ativi-dade. Por fim, na obrigação de não fazer, deve o devedor se abster da prática de um determinado ato. Essa é uma conduta omissiva, ou seja, uma abstenção de praticar determinado ato.

As obrigações de dar e fazer são obrigações positivas, ao passo que as obrigações de não fazer, marcadas pela necessidade de abstenção, são as obrigações negativas.

obrigação de dar e restituir coisa certa

A noção contida na obrigação de dar pode parecer bastante simples, pois consiste, em linhas gerais, na entrega de uma coisa. Contudo, há certos caracteres que devem ser

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ressaltados, em especial, a distinção existente entre o nosso sistema jurídico e outras opções legislativas estrangeiras.

De acordo com a opção legislativa vigente, a obrigação de dar não importa na transfe-rência efetiva da coisa, mas apenas num comprometimento de sua entrega. Isso reflete uma reminiscência do Direito Romano onde a obrigação de dar refletia apenas um crédito e não um direito real.

É importante compreender que a obrigação de dar gera apenas um direito à coisa e não exatamente um direito real. No nosso sistema jurídico, para que se aperfeiçoe a proprieda-de quando derivada de uma obrigação, mister se faz a transcrição do título no Registro de Imóveis (quando se tratar de bem imóvel), ou a tradição60 da coisa (quando o bem objeto da prestação for móvel).

No entanto, como lembra Silvio Venosa, as constantes reformas pelas quais passou o sistema de direito processual pátrio constituíram um verdadeiro elenco de medidas constri-tivas para o adimplemento coercitivo de obrigações, como medidas cautelares, antecipações de tutela, multas diárias ou periódicas, aproximando muito os efeitos de direito obrigacio-nal aos efeitos de direito real.61

Em sistemas estrangeiros, como o italiano e o francês, a obrigação de dar cria por si só um direito real, isto é, importa na transferência da propriedade.

Como já pode ser constatado, o verbo “dar” deve ser entendido como o ato de entregar. Dar coisa certa é, portanto, entregar uma coisa determinada, perfeitamente caracterizada e individuada, diferente de todas as demais da mesma espécie. Esse entendimento foi expres-samente enunciado no art. 313 do atual Código Civil:

Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa.

Tendo em vista esse enunciado, verificamos que o credor não é obrigado a receber pres-tação outra que não a que lhe é devida. O fato dessa prestação, do bem oferecido ou do ato que se intenta realizar, ser ainda mais valioso, nada influi nessa faculdade do credor. Ainda que não estivesse expressamente previsto, esse princípio, segundo regras gerais do direito, seria plenamente aplicável.

A obrigação de restituir se processa de forma semelhante, diferenciando-se pelo fato de que o credor receberá aquilo que já lhe pertence.

O princípio da acessoriedade é plenamente aplicável às obrigações de dar coisa certa (art. 233 CC) e deve ser entendido em conformidade com o artigo 237:

Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não menciona-dos, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso.

Art. 237. Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acres-cidos, pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação.

Parágrafo único. Os frutos percebidos são do devedor, cabendo ao credor os pendentes.

Nesse particular, a preocupação da lei abrange também os acessórios de natureza incor-pórea. Trata-se do exemplo no qual o alienante de uma determinada coisa responde pela evicção da mesma.

60 O vocábulo tradição aqui é usado em sentido técnico-ju-rídico representando o ato de entregar a coisa, ato esse que segundo nosso sistema jurídi-co, transfere a propriedade de um bem móvel.

61 silvio Venosa. Direito Civil, v. 2. são Paulo: atlas, 2004; p. 83.

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responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa na obrigação de dar coisa certa

No estudo da responsabilidade pelas hipóteses de perda ou deterioração da coisa, de grande relevância é precisar-se o momento da tradição da mesma.

Perda é o desaparecimento completo da coisa para fins jurídicos. É o caso da destruição por incêndio ou a ocorrência de furto. Em suma, qualquer hipótese na qual se verifica a indisponibilidade completa do objeto na sua acepção patrimonial.

O elemento mais importante no estudo da responsabilidade é a aferição da existência ou não de culpa por parte do devedor. Em todas as hipóteses em que o mesmo agir de alguma forma que implique em culpa de sua parte surgirá a necessidade de indenização por perdas e danos.

A perda da coisa antes da tradição está regulada no art. 234 do Código Civil, o qual assim dispõe:

Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, an-tes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.

Se o bem se perde antes do momento aprazado para a entrega, como no exemplo do ca-valo que morre no pasto quando vitimado por um raio, há o fim da obrigação sem qualquer forma de ônus para as partes. Logicamente, se o bem destruído já tiver sido pago, ou tiver havido qualquer forma de adiantamento de valor, o mesmo deverá ser devolvido com a atu-alização monetária. Isso é corolário lógico do princípio que veda o enriquecimento ilícito.

A parte final do art. 234 menciona que resultando a perda por culpa do devedor, respon-derá o mesmo pelo equivalente, mais perdas e danos. Nesse caso, deve-se ressaltar o disposto no art. 402 do CC.62

Voltando ao exemplo acima suscitado, se ao invés de vitimado por um raio o cavalo viesse a perecer por culpa do devedor, surgiria a necessidade do culpado pagar o valor do animal acrescido de eventuais perdas e danos. Essas perdas e danos abarcariam o montante de prejuízo decorrente do não recebimento de bem por parte do credor. Esse prejuízo não pode enveredar pelo campo da abstração, mas, pelo contrário, deve ater-se ao prejuízo que pode efetivamente ser comprovado. Nesse sentido, poderia o credor alegar prejuízo pela im-possibilidade de utilizar o animal na função de reprodutor, na apresentação em exposições, ou na revenda do mesmo.

obrigação de dar coisa incerta

A obrigação de dar coisa incerta implica na entrega de quantidade de certo gênero, e não na de uma coisa individualizada. O art. 243 do Código Civil, sobre o tema, esclarece que:

Art. 243. A coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade.

Incerteza aqui não implica em indeterminação, mas sim, como alude o art. 243, numa determinação feita de modo genérico. Como exemplo de entrega de coisa incerta, pode-se citar: a entrega de duzentos quilos de ouro, ou ainda de trezentos livros de direito civil, de mesmo título, do mesmo autor e da mesma edição.

A obrigação de dar coisa incerta se caracteriza pela existência de um momento que ante-cede à entrega da coisa, momento esse denominado concentração. Ele corresponde à escolha

62 O art. 402, que trata das per-das e danos, possui a seguinte redação: art. 402. salvo as exceções expressamente pre-vistas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

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da coisa que vai de ser entregue, e a partir dele a obrigação será regida pelas regras da obri-gação de dar coisa certa. Dessa forma podemos observar a transformação da obrigação de dar coisa incerta, de caráter marcadamente genérico, em obrigação de dar coisa certa, que é uma obrigação específica.

A obrigação de dar coisa incerta é, em tese, mais favorável ao devedor, uma vez que a obrigação corresponde a da entrega de uma coisa ou um conjunto delas tendo em vista o seu gênero. O objeto das obrigações de dar coisa incerta é constituído por coisas fungíveis.

Por outro lado, nas obrigações de dar coisa incerta, a responsabilidade quanto ao pere-cimento da coisa também será maior para o devedor: Enquanto na obrigação de dar coisa certa, a perda da coisa sem culpa do devedor deriva na resolução da obrigação, na obrigação de dar coisa incerta a prestação ainda será devida. A razão disso é a aplicação da regra genus nunquam perit (o gênero nunca perece antes da escolha). Essa regra é destacada no art. 246 do Código Civil:

Art. 246. Antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito.

Em relação à escolha, ou seja, o momento de concentração da obrigação, o art. 245 dispõe que:

Art. 245. Cientificado da escolha o credor, vigorará o disposto na Seção antecedente.

Em síntese: a obrigação de dar coisa incerta perdura até o momento de escolha. Até esse momento, a obrigação tinha em vista o gênero e a quantidade da coisa objeto da prestação. Depois da escolha, esse objeto é individuado, especificado. A obrigação transmuda-se para uma obrigação de dar coisa certa e, como tal, deve ser pautada pelas regras da seção ante-cedente.

Ressalte-se que essa escolha da obrigação obedece a determinados critérios constantes dos artigos 244 e 245 do Código Civil. A faculdade de realizar a escolha deverá ser decidida pela convenção entre as partes, mas no silêncio destas, competirá ao devedor.

As obrigações de dar coisa incerta têm por objeto coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade. Pode ocorrer, no entanto, que sendo essas coisas de existência restrita, toda a espécie dentro da qual a obrigação esteja inserida venha a se extinguir. Nesse caso, não obs-tante a falta de previsão legal, a doutrina converge no sentido de dissolução da obrigação sem que o devedor seja responsabilizado por perdas e danos.

obrigações de fazer e não fazer

A obrigação de fazer importa numa atividade do devedor. O conteúdo dessa obrigação é uma atividade, seja ela eminentemente física ou intelectual. Da mesma forma que a obri-gação de dar, trata-se de uma obrigação positiva.

Essa obrigação de fazer pode ser contraída tendo em vista a figura do devedor, não se admitindo que outro a realize. Isso se daria, por exemplo, quando o devedor fosse um artista famoso e estivesse obrigado a pintar um quadro. Não prestaria o quadro de qualquer pessoa, mas sim o daquele artista que congrega características a ele inerentes.

Essa regra redunda da dicção do art. 247 do Código Civil, que determina:

Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a pres-tação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível.

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Essas são as obrigações de fazer de natureza infungível, também conhecidas como intuitu personae. De acordo com elas, a obrigação é assumida tendo em vista a figura do devedor e este não pode ser substituído. Essa impossibilidade deriva tanto da natureza da obrigação, como no exemplo do pintor do quadro, como da livre convenção das partes, quando mes-mo havendo outras pessoas que poderiam executar a mesma tarefa, acertam os contratantes no sentido da impossibilidade de substituição do devedor.

Na ausência de convenção, compete analisar o caso concreto para se verificar a existência ou não desse caráter intuitu personae.

Em havendo impossibilidade da execução por terceiro de obrigação fungível, o art. 249 enuncia a seguinte regra:

Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível.

Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

A distinção entre as obrigações de dar e de fazer pode se mostrar, certas vezes, de difícil apreciação. O critério mais usual é verificar se esse dar é ou não conseqüência direta da obrigação de fazer.

Se o devedor deve previamente confeccionar o bem para então entregá-lo, está-se diante de uma obrigação de fazer. Se por outro lado, o ato de construção, anterior a entrega do bem, não fica a cargo do devedor, trata-se de uma obrigação de dar.

A questão da coatividade no caso de inadimplemento não deixa de ser outro fator di-ferenciador. As obrigações de dar autorizam, em regra, a execução coativa, ao passo que o mesmo não ocorre nas obrigações de fazer. Por conta de uma série de valores encampados pelo ordenamento, os indivíduos não podem ser compelidos a executar atividades contra-riamente a sua vontade. Não pode o Estado intervir diretamente compelindo o devedor a prestar, podendo valer-se somente de meios indiretos, como cominação de multa ou a condenação do devedor a arcar com perdas e danos.

As obrigações de fazer podem então ser descumpridas atentando-se a três situações dis-tintas:

i) Quando a prestação se torna impossível, por culpa do devedor;ii) Quando a prestação se torna impossível, sem culpa do devedor; eiii) Quando o devedor se recusa ao cumprimento da obrigação.

A dinâmica de cumprimento da obrigação assume novos contornos com as recentes alterações no código de processo civil, em especial as modificações que surgiram nos arts 273 e 461 do CPC, e que colocam à disposição do juiz uma série de instrumentos voltados à execução específica da obrigação assumida, como a cominação de multa diária em virtude do descumprimento.

As obrigações de não fazer são obrigações negativas. Segundo essas obrigações, o devedor se compromete a manter uma abstenção.

O devedor se compromete a não praticar determinada atividade que, sob condições normais, não encontraria qualquer restrição. Vale destacar que a necessidade de licitude, inerente a todos os negócios jurídicos, assume aqui uma dimensão particular: a obrigação de não fazer não pode atentar contra a liberdade individual. Dessa maneira, ilícita é a obriga-ção de não contrair matrimônio, de não gerar descendentes, de não professar determinada religião.

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Como exemplos de obrigações de não fazer podemos destacar a obrigação do vizinho em não usar aparelhos sonoros em volume alto, de não bloquear servidão a imóvel, de não sublocar, de não revelar segredo industrial, entre outros. Um exemplo bem interessante é a cláusula de raio que consiste na estipulação entre vendedor e comprador, mediante a qual o alienante se compromete a não abrir negócio do mesmo ramo nas proximidades. Essa maté-ria será analisada na aula sobre o princípio da autonomia da vontade nos contratos.

Vale ressaltar que é justamente a abstenção da prática de uma atividade, a qual de outra forma seria plenamente admissível, que representa o cumprimento dessa modalidade de obrigação. O devedor cumpre a obrigação a todo momento, sempre que pode executar a ação especificada, mas não faz.

O art. 250 determina uma hipótese de extinção desse tipo de obrigação, definindo que:

Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.

Na hipótese aqui destacada o devedor dá ensejo à prática do ato pela impossibilidade de abster-se da conduta. Não há culpa na prática desse ato. Por outro lado, se a situação é diversa, e o devedor culposamente enseja a execução da ação a qual devia abster-se, deverá arcar com perdas e danos face ao credor.

2. QuEstão dE coNcurso

Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) – prova azul30. Quando se impossibilita a abstenção do fato, sem culpa do devedor, a obrigação extingue-se. Tal hipótese ocorre nos casos de obrigação:

a) de não fazer;b) de fazer;c) de dar coisa incerta;d) extintiva;e) alternativa.

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aUla 13: classiFicaçÃo das obrigações: obrigações indiVisíVeis, solidÁrias e alternatiVas

EmENtário dE tEmas

Obrigações Divisíveis e Indivisíveis – Pluralidade de Credores e Devedores – Indivisibi-lidade e Solidariedade – Solidariedade Ativa – Solidariedade Passiva – Obrigações Cumula-tivas e Alternativas – Concentração e cumprimento da obrigação alternativa – Obrigações Facultativas – Obrigações Principais e Acessórias

lEitura obriGatória

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 134/166.

lEituras comPlEmENtarEs

SAMPAIO DA CRUZ, Gisela. “Obrigações alternativas e com faculdade alternativa. Obrigações de meio e de resultado”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estu-dos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 147/168.

ZANGEROLAME, Flavia Maria. “Obrigações divisíveis e indivisíveis e obrigações solidárias”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 181/210.

1. rotEiro dE aula

obrigações divisíveis e indivisíveis

Nem sempre as obrigações se apresentam de forma singularizada. Nas chamadas obriga-ções complexas, por exemplo, pode-se identificar a pluralidade de credores ou de devedores, ou ainda a pluralidade de objetos da prestação.

Ao qualificar as relações obrigacionais quanto à divisibilidade (divisíveis ou indivisíveis) deve-se ter em mente os seguintes critérios: (i) divisíveis são as obrigações passíveis de cum-primento fracionado; (ii) indivisíveis são as obrigações que só podem ser cumpridas em sua integralidade.

A noção de indivisibilidade se encontra na própria lei, expressa através do art. 258 do Código Civil:

Art. 258. A obrigação é indivisível quando a prestação tem por objeto uma coisa ou um fato não suscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo de ordem econômica, ou dada a razão determinante do negócio jurídico.

Logicamente, considerado sob o aspecto material, tudo pode ser fracionado. Contu-do, na acepção jurídica, a obrigação é considerada divisível quando as partes fracionadas conservam as mesmas propriedades outrora encontradas no todo, notadamente o seu valor

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econômico. Em certa obrigação que foi dividida, o valor da soma de cada uma das frações deve ser semelhante ao valor do todo.

Imagine-se o seguinte exemplo: um cavalo é um bem indivisível e, portanto, a obrigação de entregar um determinado cavalo (obrigação de dar) também não pode ser fracionada; por outro lado, a obrigação de entregar duzentas sacas de arroz pode ser perfeitamente divi-dida. Nesse segundo exemplo, a entrega de cem sacas de cada vez não implicaria diminuição do valor econômico atribuível ao todo.

O exemplo do cavalo, suscitado acima, é um caso de indivisibilidade material. Decorre da própria natureza do objeto envolvido na prestação. Em outros casos, a indivisibilidade pode resultar de força da lei, sendo jurídica ou mesmo da convenção entre os contratantes, quando será convencional.

A indivisibilidade jurídica pode se manifestar da seguinte forma: do ponto de vista fáti-co, todo imóvel é passível de fracionamento, mas a lei pode criar restrições de zoneamento proibindo que um imóvel seja dividido de forma a se alcançar metragem inferior a um determinado parâmetro.

Em outros casos, é a vontade das partes que pode tornar o objeto de uma prestação, que de início é perfeitamente divisível – como a obrigação de entregar uma tonelada de soja – em indivisível. Nesse caso, a vontade das partes se manifestou no sentido de que a obri-gação só poderá ser cumprida por inteiro. Essa possibilidade é enunciada, inclusive, através da redação do art. 314 do Código Civil, sendo decorrência lógica da noção de que o credor não é obrigado a receber de forma diversa do estipulado.

Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

A par das considerações aqui já traçadas, inclusive a da enunciação expressa da lei acerca da noção de indivisibilidade, deve-se buscar auxílio nos artigos 87 e 88 do Código Civil para a definição precisa da idéia de indivisibilidade.

Art. 87. Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam.

Art. 88. Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação da lei ou por vontade das partes.

O cerne do conceito de indivisibilidade reside na possibilidade ou impossibilidade de fracionamento do objeto da prestação. Adicionalmente, não basta só essa consideração quanto à viabilidade da divisão, mas se requer, igualmente, a visualização de uma pluralida-de de sujeitos, pois do contrário não haverá sentido em se realizar essa distinção.

Pluralidade de credores e devedores

A pluralidade de devedores ou de credores é matéria tratada, inicialmente, no art. 257 do Código Civil, da seguinte forma:

Art. 257. Havendo mais de um devedor ou mais de um credor em obrigação divisível, esta presume-se dividida em tantas obrigações, iguais e distintas, quantos os credores ou devedores.

Nesse dispositivo a lei opera a presunção de que a obrigação se divide quando se dá a pluralidade de agentes em um ou em ambos os pólos da relação. Quando, ao contrário,

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verifica-se a existência de um só credor e um só devedor, tem-se a necessidade de que a obrigação se realize de uma só vez, excetuando-se os casos em que as partes acordaram o pagamento fracionado.

Na pluralidade de devedores, quando a prestação for indivisível, isto é, quando não pu-der ser fracionada sob pena de se desnaturar o seu valor econômico, será manejada a solução prevista pelo art. 259, caput, do Código Civil:

Art. 259. Se, havendo dois ou mais devedores, a prestação não for divisível, cada um será obrigado pela dívida toda.

Parágrafo único. O devedor, que paga a dívida, sub-roga-se no direito do credor em rela-ção aos outros coobrigados.

O parágrafo único dispõe sobre situação que será pormenorizada mais adiante, no es-tudo dos efeitos da sub-rogação. Por ora, vale destacar que sub-rogação, nesse caso, é um expediente jurídico mediante o qual o devedor que pagou assumirá a posição de credor em relação aos demais devedores. Conforme será examinado mais adiante, a sub-rogação cons-titui uma das modalidades especiais de pagamento.

Nesse caso de pluralidade no pólo passivo em obrigação cuja prestação é indivisível, embora cada um dos devedores deva apenas fração da obrigação, a sua liberação está condi-cionada à entrega do todo.

Na situação em que dois devedores comprometem-se a entregar um determinado veí-culo não é possível o fracionamento. Um deles entregará o veículo em sua totalidade, sub-rogando-se no direito de demandar do outro devedor o valor referente à parte desse devedor que não entregou diretamente o bem.

Os devedores podem tanto ser responsáveis pela prestação em partes iguais ou em qualquer outra proporção fixada quando da pactuação do negócio jurídico. O negócio jurídico deve ser sempre examinado de modo a se identificar que parte compete a cada indivíduo na partição da dívida. Igual raciocínio deve ser empregado na abordagem do art. 261 do Código Civil.

Adicionalmente, se ao contrário, a prestação indivisível for devida a uma pluralidade de credores, abrir-se-á a possibilidade de cada um deles demandar a integralidade da dívida. Nesse sentido, dispõem os arts. 260 e 261 do Código Civil:

Art. 260. Se a pluralidade for dos credores, poderá cada um destes exigir a dívida inteira; mas o devedor ou devedores se desobrigarão, pagando:

I – a todos conjuntamente;II – a um, dando este caução de ratificação dos outros credores.Art. 261. Se um só dos credores receber a prestação por inteiro, a cada um dos outros

assistirá o direito de exigir dele em dinheiro a parte que lhe caiba no total.

A obrigação é una e indivisível. O devedor paga por inteiro, dado que o fracionamento implicaria no perecimento da coisa. Pagará a um credor que igualmente se obriga a repassar aos outros o quinhão respectivo. Essa é a teleologia do art. 261. Aqui também deve se exa-minar o negócio jurídico para saber qual a parte que incumbe a cada credor, presumindo-se a partição eqüitativa no caso de omissão.

Outra hipótese peculiar é o caso de remissão da dívida por parte de um dos credores. Ela vem regulada pelo art. 262 CC:

Art. 262. Se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não ficará extinta para com os outros; mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente.

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Parágrafo único. O mesmo critério se observará no caso de transação, novação, compen-sação ou confusão.

A remissão da dívida por parte de um credor significa que o mesmo abriu mão do seu cumprimento. No entanto, quando a prestação é indivisível os demais credores não podem ser prejudicados. Nesse caso, a dívida deve ser paga aos credores não remitentes, mas estes, ao exigi-la, devem descontar a quota remitida.

A conversão de uma obrigação em perdas e danos implica na perda do seu caráter de indivisível:

Art. 263. Perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em perdas e danos.§ 1o Se, para efeito do disposto neste artigo, houver culpa de todos os devedores, respon-

derão todos por partes iguais.§ 2o Se for de um só a culpa, ficarão exonerados os outros, respondendo só esse pelas

perdas e danos.

Se a indenização tiver sido motivada por culpa imputável a todos os devedores, respon-derão eles por partes iguais (§1º). Por outro lado, se a culpa for de um só, apenas este res-ponderá por perdas e danos (§2º). Destaque-se, evidentemente, que pelo valor da prestação responderão todos.

Outro ponto que merece destaque é a questão da prescrição. Ela aproveita a todos os de-vedores, mesmo que seja reconhecida a apenas um deles; da mesma forma, sua suspensão ou interrupção aproveita ou prejudica a todos. Na mesma linha, certo é afirmar que qualquer ato defeituoso em relação a uma das partes danifica o ato com relação aos demais integrantes da relação obrigacional.

indivisibilidade e solidariedade

Há necessidade de se esclarecer as principais distinções entre os institutos da indivisibi-lidade e da solidariedade, uma vez que existe, na prática, certa confusão sobre a sua identi-ficação e efeitos:

obrigações indiVisíVeis obrigações solidÁrias

Quanto à causaa causa geralmente resulta da natureza da prestação. Pode, entretanto, resultar da convenção das partes.

a causa reside no próprio título, no vínculo jurídico.

Quanto à parte devida

o demandado não é devedor do total, mas a natureza da prestação não admite o cumprimento fracionado.

o demandado é devedor do total.

derivações da natureza

a indivisibilidade geralmente é objetiva na medida em que decorre na natureza da prestação.

a regra é que a solidariedade seja subjetiva. É artifício jurídico para reforçar o vínculo e facilitar o adimplemento da obrigação.

É de origem material. É de origem técnica. decorre da lei ou do título constitutivo (art. 265).

Conversão em perdas e danos

Quando se converte em perdas e danos, desaparece a característica de indivisibilidade (art. 263).

Quando se converte em perdas e danos o atributo da solidariedade permanece.

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obrigações solidárias

A solidariedade é um expediente de ordem técnica que tem por escopo reforçar o víncu-lo, facilitando o adimplemento da obrigação. Em linhas gerais implica na possibilidade de reclamar a totalidade da prestação. Ela pode estar em qualquer um dos pólos da obrigação e dessa forma, temos a solidariedade ativa – solidariedade de credores -, e a solidariedade passiva – solidariedade de devedores.

A solidariedade não deriva da natureza das prestações, mas sim da vontade das partes ou da lei. Sendo assim, solidariedade não se presume. A sua caracterização deriva do disposto no art. 264 do Código Civil:

Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.

Não se deve confundir solidariedade com certas situações em que dois ou mais agentes devem arcar integralmente com a prestação. São exemplos disso: a responsabilidade con-comitante do condutor do veículo e de seu proprietário que respondem pela totalidade da indenização; os coobrigados nos títulos de crédito; a possibilidade de demandar tanto do autor do incêndio como da seguradora.

Esses são exemplos das chamadas obrigações in solidum, que possuem como característi-cas gerais: (i) a independência dos liames que unem os devedores ao credor – o que implica independência no que toca à prescrição; (ii) o fato de interpelar um dos devedores não implica na constituição em mora dos outros; (iii) a remissão de dívida feita não aproveita aos outros devedores; (iv) nas obrigações in solidum, os valores devidos por cada devedor podem ser diferentes (caso da seguradora que está obrigada a suportar apenas até o limite do valor segurado).

Inegavelmente, a idéia mais relevante é independência entre os motivos constitutivos do vínculo (liames). Como corolário dessa constatação, pode-se identificar as outras caracte-rísticas.

Conforme o observado, nas obrigações solidárias destacam-se duas características pre-ponderantes: (i) unidade de prestação; (ii) pluralidade e independência do vínculo.

A prestação é uma só, é a mesma para todos os devedores. No caso da solidariedade passiva (de devedores), todos, por força de convenção ou da lei, podem ser demandados pelo todo. Como devem apenas uma cota-parte, ao arcarem com a totalidade do débito, sub-rogam-se na posição do credor.

A mesma lógica segue a solidariedade ativa (de credores). Ela é também instituída le-galmente ou mediante acordo, podendo qualquer dos credores receber o todo, devendo, posteriormente, distribuir aos demais credores o quinhão respectivo.

Essas são as linhas gerais da solidariedade. A prestação é única, é a mesma para todos, embora o quantum realmente devido represente apenas uma fração dessa prestação. A soli-dariedade, que deriva da lei ou da anuência entre as partes, só é possível na medida em que haja pluralidade de vínculos e independência entre os mesmos.

A pluralidade de vínculos pode ter, como conseqüências, a oposição de elementos aci-dentais (condição, termo ou encargo) para apenas um ou alguns dos devedores (art. 266 do Código Civil).

Ainda, outro efeito que se pode destacar é que se um dos vínculos for marcado pela in-validade, por conta da incapacidade de um dos credores, não há que se falar que os demais vínculos estejam maculados.

O art. 265 do Código Civil afirma que:

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Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

Esse enunciado proclama o caráter de exceção das obrigações solidárias ficando elas res-tritas às previsões da lei ou do pacto entre as partes. Não existindo essa previsão, manifesta de forma expressa, há de prevalecer presunção de não existência da solidariedade.

Havendo dúvidas, a interpretação deve se dar a favor dos devedores, implicando logica-mente na inexistência de solidariedade, visto que se trata de expediente benéfico ao credor, na medida em que maximiza as possibilidades de recebimento da prestação.

A solidariedade não pode ser resultante da sentença. Não obstante a célebre frase, oriun-da de brocardo latino, de que a sentença faz lei entre as partes, a mesma se limita a declarar o direito das partes não podendo instituir solidariedade – que não esteja prevista em lei ou contrato. Nada obsta, entretanto, que surja uma obrigação in solidum.

No que toca ao ônus probatório, compete a quem alega a solidariedade provar a sua existência – excetuando-se os casos de solidariedade legal.

solidariedade ativa

É aquela em que se verifica a existência de mais de um credor, sendo facultado a cada um deles cobrar a dívida por inteiro. Do pondo de vista prático, a sua importância é reduzida, limitando-se a servir de mandato para o recebimento de crédito comum. Os exemplos são (i) a abertura de conta corrente bancária em nome de duas ou mais pessoas, com a facul-dade de operarem separadamente, ou (ii) o aluguel de cofres de segurança, contanto que o mesmo possa ser aberto por qualquer um dos titulares.

Apesar de menos comum, essa modalidade de obrigação representa algumas vantagens, pois os credores solidários podem exigir, individualmente, a totalidade da dívida (art. 267); e cada um dos devedores – havendo pluralidade nesse pólo da relação jurídica – desincum-be-se ao pagar a qualquer dos credores.

Há uma clara facilitação no pagamento nesse expediente (art. 269). Esse mesmo dado, sob outra perspectiva, pode representar um inconveniente, na medida em o credor que recebe a prestação libera o devedor, dando-lhe quitação. Os outros credores terão agora que se entender com esse devedor que recebeu o pagamento. Essa matéria encontra-se regulada nos arts 267 a 274 do Código Civil.

Quando se está diante de uma situação de solidariedade ativa, a constituição em mora feita por um dos co-credores aproveita a todos os demais.

Por outro lado, quando é o credor solidário constituído em mora, todos os demais cre-dores serão atingidos pelos efeitos dela resultantes. O devedor se apresenta portando o pa-gamento, nas condições estabelecidas, e o oferece ao credor que se recusa a recebê-lo. Esse credor, ao ser constituído em mora, estenderá aos demais a necessidade de arcar com juros, riscos de deterioração da coisa, bem como quaisquer outros efeitos próprios da mora.

De maneira semelhante ao que ocorre com a constituição em mora do devedor, a inter-rupção da prescrição feita por apenas um dos credores também beneficia os outros. Essa é a regra do art. 204, § 1º do Código Civil:

Art. 204. A interrupção da prescrição por um credor não aproveita aos outros; seme-lhantemente, a interrupção operada contra o co-devedor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais coobrigados.

§ 1o A interrupção por um dos credores solidários aproveita aos outros; assim como a interrupção efetuada contra o devedor solidário envolve os demais e seus herdeiros.

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A suspensão da prescrição, por sua vez, beneficiará os demais credores solidários apenas no caso da obrigação ser indivisível. Essa regra encontra-se definida no art. 201 CC. Ainda, se um dos devedores renunciar à prescrição da obrigação em face de um dos credores, essa renúncia aproveitará a todos os demais.

No pagamento da obrigação solidária, pertinente é a regra do art. 268 CC, que define que o devedor (ou devedores) no caso de solidariedade ativa, deve pagar àquele que primeiro lhe demandar. A faculdade de escolher a quem realizar o pagamento perdura até que algum dos credores cobre a dívida.

Art. 268. Enquanto alguns dos credores solidários não demandarem o devedor comum, a qualquer daqueles poderá este pagar.

O art. 271 do Código Civil trata da conversão da obrigação em perdas e danos. Deter-mina que a solidariedade subsista ainda que a obrigação seja convertida em perdas e danos, que é uma prestação essencialmente divisível.

Art. 271. Convertendo-se a prestação em perdas e danos, subsiste, para todos os efeitos, a solidariedade.

Logicamente, o credor que recebe o pagamento de modo integral torna-se obrigado a prestar contas aos demais, repassando-os o valor que compete a cada um deles (art. 272 do Código Civil).

solidariedade Passiva

Como visto, solidariedade passiva é aquela que obriga todos os devedores ao pagamento total da dívida. Apresenta uma importância bem mais considerável do que a solidariedade ativa, em especial devido ao seu caráter de reforço ao vínculo jurídico.

O risco de insatisfação do credor é reduzido de forma significativa, visto que o inadim-plemento ocorreria apenas na hipótese de todos os devedores tornarem-se insolventes.

O art. 277 do Código Civil trata do pagamento parcial e da remissão de dívida:

Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não aproveitam aos outros devedores, senão até à concorrência da quantia paga ou relevada.

Se o credor já obteve satisfação parcial da dívida, não há razão para exigir dos demais o cumprimento integral da mesma. Esse pagamento parcial foi condicionado à concordância do credor, que aceitou, definitiva ou momentaneamente, receber apenas parte do que teria direito. Nesse caso, os demais devedores são apenas obrigados a pagar o saldo e não mais a obrigação em sua integralidade.

A remissão de dívida se processa da mesma forma, pois o perdão concedido a um dos devedores não desonera aos demais, que continuam vinculados pela obrigação. A diferença é que o montante agora devido será referente à exclusão ao valor inicial menos o quantum remitido.

Se um devedor solidário estabelece, sem a concordância dos demais, alguma nova obriga-ção desvantajosa, poderá apenas ele ficar por ela obrigado. O art. 278 dispõe expressamente acerca dessa vedação à oneração dos demais devedores sem o consentimento dos mesmos.

No que concerne à extinção da obrigação solidária, pode-se observar as seguintes situa-ções: (i) na extinção da obrigação sem culpa dos devedores, a dívida será extinta para todos;

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(ii) quando algum dos devedores incorre em culpa, a regra do art. 279 determina a perma-nência para os demais do encargo de pagar o equivalente, sendo que as perdas e danos serão atribuição do culpado:

Art. 279. Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidários, sub-siste para todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado.

Da mesma forma, se a impossibilidade de realizar essa prestação foi verificada quando o devedor já era moroso, ele responderá pelo risco, sendo essa dicção encontrada também no art. 399 do Código Civil. Nesse sentido, pertinente ainda é examinar a regra do art. 280 do CC:

Art. 280. Todos os devedores respondem pelos juros da mora, ainda que a ação tenha sido proposta somente contra um; mas o culpado responde aos outros pela obrigação acrescida.

Destaque-se ainda a questão das exceções. O art. 281 dispõe sobre a solução adotada:

Art. 281. O devedor demandado pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as comuns a todos; não lhe aproveitando as exceções pessoais a outro co-devedor.

Tudo o que for referente à obrigação demandada poderá ser alegado por qualquer um dos devedores. Será possível que qualquer dos devedores levante, por exemplo, a questão da inexistência ou invalidade da obrigação, alguma vedação da lei a que ela se opere, ou mesmo a prescrição da mesma. Essas são defesas referentes a obrigação em si, e não relacionadas com algum devedor especificadamente considerado. Dessa maneira, as exceções gerais po-dem ser alegadas por qualquer dos devedores.

As exceções que forem particulares, denominadas de pessoais, próprias a um só dos deve-dores, não poderão ser alegadas pelos demais.

obrigações cumulativas e alternativas

Nas obrigações conjuntivas ou cumulativas, como é fácil aferir pelo seu nome, mais de uma prestação é devida de forma cumulada. O credor tem o poder de exigir o cumprimento de todas elas, na medida em que todas são devidas.

Deve-se destacar a inexistência de um regime legal particularizado às obrigações de ob-jeto conjunto. As mesmas devem ser regidas pelos princípios gerais que norteiam o direito das obrigações.

Para melhor compreender a dinâmica da obrigação em questão, cumpre ter em mente que o objeto composto que ela prevê vem destacado pela partícula aditiva e. Dessa forma, um exemplo de obrigação conjunta é a de entregar um carro e uma casa. A prestação é con-junta, congregando aqui a obrigação de dar duas coisas.

Por outro lado, nas obrigações alternativas (ou disjuntivas) ao devedor compete a entrega de uma das coisas objeto da obrigação. O objeto não é único, mas o devedor se desobriga entregando um deles.

Diferentemente das obrigações cumulativas, essa modalidade de obrigação é dotada de um regime especial que corresponde aos arts. 252 a 256 do Código Civil. O objeto da obrigação aqui é ligado pela partícula ou: devemos um carro ou uma casa. Apenas uma das obrigações é devida.

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concentração e cumprimento da obrigação alternativa

No cumprimento das obrigações alternativas, é importante notar que o objeto, que é ini-cialmente é múltiplo, se torna individualizado num momento posterior. Após esse momen-to da individualização, a obrigação, outrora alternativa, se processa de forma semelhante a uma obrigação simples.

Adicionalmente, existe a outra dúvida: a quem compete a escolha da obrigação devida? Ordinariamente, a escolha compete ao devedor, estando esse entendimento consubstancia-do no art. 252, caput, mas nada obsta que o acordo de vontades entre as partes pode reservar essa faculdade para o credor. Aliás, o art. 252 do Código Civil baliza as regras referentes ao pagamento de obrigações alternativas.

Art. 252. Nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou.

Caso se verifique dúvida na definição de a quem compete a escolha da obrigação, a mes-ma deve ser solucionada no sentido de favorecer o devedor. Essa é a regra geral, e ainda nos casos de dúvida, deve-se beneficiar o devedor.

obrigações Facultativas

O ordenamento pátrio, seguindo o exemplo da maioria das legislações estrangeiras, não se ocupa das obrigações facultativas. A obrigação facultativa tem por objeto apenas uma prestação principal, no entanto possibilita a liberação do devedor uma vez que ele efetue o pagamento de outra prestação prevista em caráter subsidiário.

Como exemplo pode-se ilustrar a seguinte situação: um comerciante acordou na entrega de vinte caixas de laticínios, mas o contrato lhe possibilita liberar-se da obrigação mediante a entrega de cinquenta quilos de café. A obrigação principal é aquela inicialmente acordada, a primeira, qual seja, a entrega das caixas de laticínios. A prestação subsidiária tem, contudo, o condão de desincumbir o devedor.

obrigações Principais e acessórias

O artigo 92 do Código Civil enuncia a relação de acessoriedade entre os bens:

Art. 92. Principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessório, aquele cuja existência supõe a do principal.

Para o direito obrigacional, transporta-se essa noção relativa aos bens, havendo assim, obrigações que nascem e existem de per se, mostrando absoluta independência em relação a outras. Não obstante, há obrigações que se apresentam agregadas, em estado de vinculação a essas obrigações principais, sendo taxadas por isso de obrigações acessórias. Sua existência está ligada à própria existência das obrigações principais, ou seja, extinguindo-se uma obri-gação principal, perecem consequentemente aquelas que lhe gravitam.

Em síntese, principal é aquela obrigação dotada de existência autônoma, independendo de qualquer outra. Já as obrigações acessórias são aquelas que não tem existência em si, de-pendendo de outra a que adere ou cuja sorte depende.

A relação entre obrigações acessórias e principais pode tanto decorrer da vontade das partes como da lei. Não há necessidade de nascimento concomitante, podendo as

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obrigações acessórias serem constituídas supervenientemente e ainda em instrumentos jurídicos distintos. As obrigações acessórias podem ser referentes ao objeto ou decorren-tes de situações subjetivas, e ainda derivar da previsão legal ou da convenção entre as partes.

Como exemplos de obrigações acessórias pode-se mencionar os direitos de garantia como a fiança, (garantia pessoal) e o penhor e a hipoteca (garantias reais). As obrigações principais subsistem com perfeição ainda que essas figuras sejam dissolvidas. Mas não existe razão numa fiança ou numa garantia de qualquer outra natureza, se não houver uma obri-gação principal que lhe dê sentido, portanto, as obrigações acessórias perecem quando da ausência de uma obrigação principal.

A relação de dependência estabelecida entre acessória e principal produz grande gama de efeitos jurídicos, sendo eles decorrência da regra geral acessorium sequitur principale.

Por fim, temos que obrigações acessórias não se confundem com cláusula acessória. Nes-se sentido, cumpre transcrever a lição de Caio Mário:

“Há, contudo, distinguir “cláusula acessória” de “obrigação acessória”, em que a primeira pressupõe um acréscimo, sem a criação de obrigação diversa. Assim, se num contrato prelimi-nar de compra e venda as partes estipulam a sua irretratabilidade, inserem uma cláusula que é acessória, por não fazer parte da natureza da promessa aquela qualidade, mas não constitui uma obrigação acessória, porque não implica uma obligatio a mais, aderente ao contrato, à qual o devedor esteja sujeito. Ocorre uma qualificação da mesma obrigação do promitente-vendedor e do promitente comprador. A distinção aqui feita não é meramente acadêmica, pois que a toma, em outro sentido, Alfredo Colmo, para mostrar que as cláusulas acessórias quando ilícitas carreiam a nulidade do direito principal, o que não é verdade quanto às obri-gações acessórias, cuja ineficácia deixa incólume a principal.”63

2. caso GErador

Bernardo, Eduardo e Ricardo são três criadores de cavalos no interior de São Paulo. Em-bora trabalhem separadamente, o intercâmbio de cavalos entre as suas respectivas fazendas é intenso, sendo comum que dois, ou até mesmo os três, façam negócios em conjunto.

No início do ano, Luís, experiente investidor em leilões de bovinos e cavalos, procu-rou os três em busca de renovação do seu plantel de cavalos. Empolgado com a qualidade apresentada pelos cavalos dos três criadores, e buscando se assegurar de que receberia um bom cavalo ao final do negócio, Luis resolve propor aos três criadores o seguinte contrato de compra e venda: pelo preço de R$ 60.000,00, Bernardo, Eduardo e Ricardo deveriam entregar a Luis, até o final do ano, uma das crias do cavalo Itajara, campeão de diversos tor-neios, o qual era criado na fazenda de Bernardo, mas de propriedade dos três criadores.

Com base no caso acima, responda:i) Tendo algumas das crias de Itajara nascido com doença que não inviabiliza a vida

cotidiana, mas veda as suas participações em corridas e competições que exijam demais do animal, podem os criadores entregar uma dessas crias como cumprimento do pactuado? Justifique com base na legislação pertinente.

ii) E se todas as crias de Itajara tivessem nascido com a referida doença? Poderia Luis simplesmente resolver a obrigação, desonerando assim os criadores?

iii) E se apenas uma cria sobreviveu ao parto da égua reprodutora e justamente essa cria vem também a falecer por culpa de um empregado de Bernardo, que alimentou o animal com ração fortificadora cuja validade havia expirado? Pode Luis ingressar judicialmente 63 Idem. Pg. 122

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contra Ricardo para cobrar o equivalente ao valor do cavalo, pago no momento da contra-tação? E as eventuais perdas e danos?

3. QuEstõEs dE coNcurso

25º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase5. Sabe-se que na solidariedade passiva, a relação interna rege-se pelo princípio de que o devedor que paga a integralidade do débito tem direito de regresso contra os demais para haver, de cada qual, a parte que pagou além do que pessoalmente devia. Diante desta assertiva, explique o disposto no artigo 285 do Código Civil. Fundamente a res-posta e apresente um exemplo concreto.

126º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase23. Antonio obrigou-se a entregar a Benedito, Carlos, Dario e Ernesto um touro re-produtor, avaliado em R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). Embora bem guardado e bem tratado em lugar apropriado, foi esse animal atingido por um raio, vindo a morrer. Nesse caso, a obrigação é:

a) indivisível e tornou-se divisível, com o perecimento do objeto por culpa do devedor;b) tão somente indivisível, com ausência de culpa do devedor, ante o perecimento do

objeto;c) solidária, devendo o valor de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) ser entregue a qual-

quer dos credores, em lugar do objeto perecido;d) indivisível e tornou-se divisível com o perecimento do objeto, sem culpa do deve-

dor.

24. É correto afirmar quea) as dívidas de jogo ou de aposta obrigam a pagamento, quando cobradas pelo credor;b) o fiador, ainda que solidário, ficará desobrigado se o credor conceder moratória ao

devedor, sem o consentimento do mesmo fiador;c) não é admissível, na transação, a pena convencional (ou multa);d) aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a reem-

bolsar/restituir tão somente o que auferiu indevidamente.

123º Exame da Ordem – OAB/Sp – 1ª fase22. “A” e “B” obrigaram-se a entregar a “C” e “D” um boi de raça, que fugiu por ter sido deixada aberta a porteira, por descuido de “X”, funcionário de “A” e “B”. Pode-se dizer que a obrigação é:

a) indivisível, que se tornou divisível pela perda do objeto da prestação, com responsa-bilidade dos devedores “A” e “B”, pela culpa de “X”, seu funcionário;

b) solidária, com responsabilidade dos devedores “A” e “B”, por culpa de seu funcioná-rio, ante a perda do objeto da obrigação;

c) indivisível, tornando-se divisível com o perecimento do objeto, sem culpa dos deve-dores “A” e “B” e sem responsabilidade destes;

d) simplesmente, divisível com o perecimento do objeto da prestação, respondendo objetivamente “A” e “B” pela culpa de seu empregado “X”.

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121º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase28. “A”, “B” e “C” são devedores solidários de “D” pela quantia de R$ 60.000,00. “D” renuncia à solidariedade em favor de “A”. Com isso:

a) “D” perde o direito de exigir de “A” prestação acima de sua parte no débito, isto é R$ 20.000,00. “B” e “C” responderão solidariamente por R$ 40.000,00, abatendo da dívida inicial de R$ 60.000,00 a quota de “A”. Assim os R$ 20.000,00 restantes só poderão ser reclamados daquele que se beneficiou com a renúncia da solidariedade;

b) “D” pode cobrar de “A” uma prestação acima de R$ 20.000,00; “B” e “C” respon-derão solidariamente pelos R$ 60.000,00;

c) “D” perde o direito de exigir de “A” prestação acima de sua parte no débito e “B” e “C” continuarão respondendo solidariamente pelos R$ 60.000,00;

d) “A”, “B” e “C” passarão a responder, ante a renúncia da solidariedade, apenas por sua parte no débito, ou seja, cada um deverá pagar a “D” R$ 20.000,00.

120º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase29. É um dos efeitos jurídicos da solidariedade ativa, na relação entre co-credores e deve-dor:

a) a interrupção da prescrição, requerida por um co-credor, estender-se-á a todos, pror-rogando-se, assim, a existência da ação correspondente ao direito creditório;

b) o credor que remitir a dívida responderá aos outros pela parte que lhes caiba;c) o pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não

aproveitarão aos demais, senão até a concorrência da quantia paga ou relevada;d) o devedor culpado pelos juros de mora responderá aos outros pela obrigação acres-

cida.

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aUla 14: PagaMento: lUgar, teMPo e ProVa

EmENtário dE tEmas

Pagamento. Extinção Normal das Obrigações – Natureza Jurídica do Pagamento – O solvens – O Accipiens – Credor putativo – Pagamento feito ao inibido de receber – Objeto do pagamento e sua prova.

lEitura obriGatória

ALEIXO, Celso Quintella. “Pagamento”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obriga-ções: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 275/302.

lEituras comPlEmENtarEs

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 187/222.

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 589/626.

1. rotEiro dE aula

Pagamento. Extinção Normal das obrigações

As obrigações, como visto, têm caráter de efemeridade, pois são fadadas ao seu exauri-mento, ou melhor, à sua realização. Nesse sentido, o pagamento é o meio normal de sua extinção. O desfecho natural da obrigação é o seu cumprimento.

A noção de pagamento pode se traduzir em mais de um conceito: em sentido estrito e mais comum, a prestação de dinheiro; em senso preciso, a entrega da res debita, qualquer que seja esta; e numa acepção mais geral, qualquer forma de liberação do devedor, com ou sem prestação.64

Observa-se que o termo pagamento, em sentido geral, representa toda a forma de cum-primento da obrigação. Isso remete à velha noção de solutio que era prevista no Direito Romano. No Código Civil, essa é a noção enunciada nos arts. 304 e seguintes.

Essa noção de pagamento deve ser transposta às obrigações de dar, fazer e não fazer. Paga-se na compra e venda, quando se entrega a coisa vendida. Paga-se na obrigação de fazer, quando se termina a obra ou atividade encomendada. Paga-se na obrigação de não fazer, quando o devedor se abstém de praticar o fato, por um tempo mais ou menos longo.

O pagamento pode assumir a forma de um negócio bilateral, e nesse sentido, verifica-se a existência de obrigações recíprocas, havendo o dever de pagar para ambas as partes. É o examinado na compra e venda, onde simultaneamente cabe ao devedor pagar pelo bem a quantia estipulada e ao vendedor entregar a coisa.

64 caio Mário da silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro: Forense: 2004; p. 167.

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Conforme se observará mais adiante, há formas especiais de cumprimento das obriga-ções, muitas delas enveredando pela tutela jurisdicional.

Casos há, em que dada a impossibilidade de cumprir a obrigação, não existe por conse-guinte a possibilidade de cumprir o pagamento. Isso pode ou não resultar de culpa do de-vedor. Se ocorrer sem culpa do mesmo, a obrigação segue o caminho da extinção; por outro lado, se o devedor concorre com culpa para a impossibilidade de pagar, deverá responder por perdas e danos. Aqui vale destacar que essa indenização pela inexecução da prestação não tem natureza de pagamento, embora o substitua.

Natureza Jurídica do Pagamento

Percebe-se que o pagamento pode assumir diversas feições sendo justamente por conta desse fato que surge a dificuldade na caracterização de sua natureza jurídica.

É complexo tentar instituir uma natureza única para o pagamento. Divergem os autores, havendo quem o qualifique como fato jurídico, como outros que asseveram o seu teor negocial (negócio jurídico). Para essa última corrente, o fundamento principal reside no fato de que o pagamento não é um simples acontecimento, mas é também marcado por um forte elemento psíquico – o animus solvendi -, sem o qual, seria confundido com uma simples liberalidade.65

Caio Mário da Silva Pereira se filia a corrente de que o pagamento seria negócio jurídico quando o direito de crédito versasse sobre uma prestação que tenha caráter negocial. Quan-do esse elemento fosse inexistente, estar-se-ia diante de mero fato jurídico.

A importância da definição da natureza jurídica do pagamento não é em verdade mera elucubração teórica. Considerar o pagamento como sendo negócio jurídico, sob a perspec-tiva prática, significa considerá-lo sob o enfoque de seus elementos constitutivos e requisitos de validade e eficácia, isto é, o exame será mais rigoroso, podendo o mesmo ser qualificado como inexistente, nulo ou anulável. Corporifica-se no negócio jurídico um rigor muito maior do que o observado caso o pagamento seja reputado como simples fato jurídico.

o solvens

Em regra, quem é obrigado a pagar é o devedor, mas isso não exclui a possibilidade de que terceiros o façam.

No estudo do pagamento, este não deve ser visualizado somente sob a ótica de uma atua-ção por parte do devedor. Deve-se ter em mente que efetuar o pagamento em conformidade com as condições acordadas pelas partes é também um direito do devedor, na medida em que se não o faz, torna sua obrigação em regra ainda mais onerosa. E nesse sentido a lei inclusive dota o devedor de instrumentos legais que garantam o seu direito de adimplir a obrigação.

A previsão para que terceiros saldem a obrigação encontra-se no art. 304 do Código Civil. Excetuam-se, por força da lógica, as obrigações personalíssimas, isto é, aquelas obri-gações onde a figurado devedor é primordial para o próprio cumprimento da obrigação:

Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.

Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste.

Um exemplo de interessado é o fiador. Interessado poderia ser concebido aqui como um termo genérico que abarca aqueles que seriam de alguma forma atingidos pelos efeitos

65 caio Mário da silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro: Forense: 2004; p. 168.

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jurídicos que se desdobram dessa relação jurídica em curso. Se o devedor não paga, compe-tirá ao fiador, por força de contrato, fazê-lo. Do inadimplemento perpetrado pelo devedor podem sobrevir novos encargos, como juros, multas contratuais diversas, entre outros que tornariam mais gravosa a obrigação. No intuito de preservar o seu patrimônio, o fiador se antecipa e efetua o pagamento, minorando efeitos que se estenderiam sobre a sua própria órbita.

Nessa hipótese de terceiro interessado, não pode o credor recusar o recebimento da pres-tação. O parágrafo único do art. 304 acrescenta que o terceiro não interessado tem o mesmo direito de pagar, “se o fizer em nome e por cota do devedor”.

O caso clássico levantado em obras doutrinárias é o do pai que paga dívida do filho. O interesse aqui extrapola o campo jurídico e enveredada pelo campo moral, altruístico. Não há necessidade de anuência nem do credor, nem do devedor.66

Diferentemente dessa primeira hipótese, pode o terceiro não interessado pagar a obriga-ção fazendo-o não em nome do devedor, mas em seu próprio nome. Nesse caso, terá o direi-to de reembolsar-se do valor pago, mas não haverá sub-rogação nos direitos do credor.67

A vedação dessa sub-rogação decorre da proteção a que a lei confere ao devedor, quem inclusive pode ver a sua situação agravada pelo pagamento em tais condições. Esse adimplemento feito por terceiro não interessado pode ter fins especulativos, tornando mais onerosa a prestação do devedor, ou pode colocá-lo em situação de constrangimento moral.

Por outro lado, sendo o credor interessado quem paga o débito, haverá sub-rogação em todos os direitos de crédito, conforme o disposto no art. 346 do Código Civil:

Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:I – do credor que paga a dívida do devedor comum;II – do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do

terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;III – do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no

todo ou em parte.

Surge ainda outra hipótese: o devedor possui justo motivo para não pagar a dívida, mas não obstante, o terceiro interessado não só a paga, como ainda o faz em adiantamento, isto é, antes do vencimento da mesma.

Para exemplificar a existência desse justo motivo, pode-se destacar as seguintes situações: uma dívida prescrita; uma obrigação oriunda de negócio jurídico anulável; a possibilidade de alegar exceção do contrato não cumprido. O atual Código Civil prevê a solução dessa questão no art. 306:

Art. 306. O pagamento feito por terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor, não obriga a reembolsar aquele que pagou, se o devedor tinha meios para ilidir a ação.

Nesse sentido, deve-se ressaltar que o motivo da oposição levantada pelo devedor deve ser justa. O terceiro que paga a obrigação (terceiro solvens), deve ter conhecimento dessa oposição, e caso decida prosseguir com o pagamento, o fará assumindo o risco expresso nesse dispositivo, qual seja, o de nada receber na hipótese do devedor possuir meios para elidir a ação contra o credor.

Outra situação é quando o terceiro paga sem que o devedor tome conhecimento, sendo que este tinha motivo justo para não fazê-lo. Se o terceiro pagou mal, só poderá buscar o reembolso do devedor até o montante em que este pagamento o aproveitou.

66 conforme será examinado mais adiante na figura da consignação em Pagamento, modalidade especial de paga-mento, onde o devedor, diante da recusa do credor em receber o pagamento, deposita o mes-mo em juízo, é possível ao ter-ceiro não interessado se valer dessa forma de pagamento.

67 O termo sub-rogação já foi examinado por ocasião das obrigações solidárias e será novamente abordado de for-ma mais completa adiante. sub-rogar-se significa assumir a posição na relação jurídica, e dessa forma, no caso em tela, a lei veda que o terceiro não interessado que salda a obriga-ção do devedor assuma junta-mente com a posição do credor todas as prerrogativas que são conferidas. Por exemplo, se o credor original possuir algu-ma garantia real (p. ex. uma hipoteca), não será a mesma conferida ao terceiro que arca com a dívida.

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Seria o caso, por exemplo, do terceiro que salda dívida onde o devedor poderia alegar, sob parte da obrigação, exceção do contrato não cumprido. Nesse caso, o terceiro deve ser ressarcido com relação à parte que aproveitou ao devedor, ou seja, em razão da parte da obrigação que seria realmente devida. Já quanto ao montante que pagou mal, deverá repetir do credor que, em tese, recebeu mais do que lhe era realmente devido.

O norte interpretativo nesses casos segue a idéia de que o pagamento feito por terceiro não pode agravar a situação do devedor sob nenhuma circunstância.

A lei não se ocupa da hipótese em que tanto credor como devedor se opõem ao pagamen-to feito por terceiro não interessado. Certo é que se deve entender pela impossibilidade do mesmo, visto que a ingerência desse terceiro na relação jurídica é plenamente indesejada.

o accipiens

A regra geral em matéria da pessoa que recebe é a aquela constante do art. 308 do Códi-go Civil. Ordinariamente, quem recebe o pagamento é o credor, mas situações podem ocor-rer onde este esteja inibido de receber, quando o devedor poderá desincumbir-se pagando a quem não seja credor.

Muitas são as modalidades de pagamento e as formas pelas quais ele pode ser exercido. Muitos também são os conceitos jurídicos a ele conexos, de sorte que é impossível uma definição abstrata de quem pode receber (accipiens). Pode-se demonstrar essa dificuldade a partir dos seguintes exemplos:

(i) Numa compra e venda, que é negócio jurídico bilateral onde há co-respectividade no dever de prestar, ao comprador deve ser entregue o bem, e ao vendedor deve ser entregue o montante referente a essa transação;

(ii) Numa obrigação qualquer, o credor originário pode, no momento do pagamento, já ter sido substituído, como no caso da cessão de crédito ou da sucessão a título universal, quando o herdeiro assume a posição de accipiens;

(iii) nas obrigações solidárias, assim como nas indivisíveis, qualquer um dos credores pode receber a prestação; e

(iv) sendo a obrigação divisível e não solidária, o pagamento deve ser efetuado a cada um dos credores no montante que compete a cada um.

O art. 308 do Código Civil remete às hipóteses de representação, onde o representante atua em nome do representando, tendo entre outros poderes, a faculdade de receber, em nome deste, créditos a que faça jus.

Art. 308. O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratificado, ou tanto quanto reverter em seu proveito.

Tratando-se de direito dispositivo, dois contraentes podem estabelecer ainda que o ac-cipiens de uma obrigação seja um terceiro que não tenha tomado parte na negociação, ou melhor, que nem mesmo saiba da existência da mesma.

Segundo regra do art. 308, o pagamento feito à pessoa não designada para recebê-lo pode ser posteriormente convalidado mediante ratificação do credor ou de seu representante.

Outro dado relevante reside no fato de que para receber não é necessário que o indiví-duo se apresente munido de instrumentos formalmente instituídos, como o mandato. É a situação de quem se apresenta munido do um instrumento de quitação emitido pelo credor (art. 311 do Código Civil).

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credor putativo

Pode ocorrer do devedor realizar pagamento à pessoa que tenha a aparência de credor ou mesmo de pessoa autorizada. Esse é o caso do credor putativo, cujo exemplo mais proemi-nente reside na figura do credor aparente. Em suma, trata-se da situação em que se efetua um pagamento a pessoa não legitimada a recebê-lo, mas que de acordo com o contexto parecia possuir tais poderes.

O Código Civil dispõe no art. 309 que:

Art. 309. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor.

Para que o pagamento seja reputado válido, não só se faz necessário que o accipiens tenha a aparência de credor, como também que o solvens esteja de boa-fé. O verdadeiro credor deverá retomar o pagamento do falso accipiens.

São três as situações em que o devedor pode se exonerar pagando a terceiro não intitu-lado:

(i) Ratificação pelo credor do pagamento recebido por outrem. Isto é, pago equivoca-damente, mas ainda assim o credor, anuindo com o pagamento realizado, libera o devedor (art. 308);

(ii) Quando o pagamento, mesmo realizado a pessoa diversa, reverte em benefício do credor. Aqui incumbe o ônus da prova ao solvens. Ex.: Pagamento efetuado ao irmão do credor (R$1000,00) que somente lhe repassou 30% do valor (R$300,00). Deve o solvens provar o repasse dos R$300,00 reais ao credor, de modo a poder arcar apenas com os outros R$ 700,00 não recebidos por aquele. Logicamente, valendo-se dos meios judiciais apropriados, repetirá o indevidamente pago ao irmão do credor (art. 308);

(iii) A questão acima examinada referente ao credor putativo (art. 309).

Pagamento feito ao inibido de receber

O pagamento efetuado a incapaz somente é válido se o mesmo não tinha conhecimento desse estado de incapacidade. A incapacidade inibe a prática de atos jurídicos pelo agente, conforme reforçado pelo art. 310 do Código Civil:

Art. 310. Não vale o pagamento cientemente feito ao credor incapaz de quitar, se o deve-dor não provar que em benefício dele efetivamente reverteu.

O art. 312 reflete outra situação onde o credor é inibido a receber:

Art. 312. Se o devedor pagar ao credor, apesar de intimado da penhora feita sobre o cré-dito, ou da impugnação a ele oposta por terceiros, o pagamento não valerá contra estes, que poderão constranger o devedor a pagar de novo, ficando-lhe ressalvado o regresso contra o credor.

Nesse caso, deve o solvens ter conhecimento da penhora ou da oposição de terceiro. Se ainda assim resolver pagar ao credor, estará assumindo o risco de que esse pagamento não seja reportado eficaz.

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objeto do pagamento e sua prova

O objeto do pagamento é a prestação acordada pelas partes. Uma vez paga, extinguir-se-á a obrigação. Conforme já examinado, não pode o credor ser obrigado a receber coisa diversa da estabelecida no acordo de vontades, ainda que flagrantemente mais valiosa.

As perdas e danos, no caso de inadimplemento, são substituição de pagamento e não pagamento. Da mesma fora, não são pagamento outras formas de extingui-la, tais como a transação, a dação, a sub-rogação, entre outras.

O pagamento em dinheiro somente pode ser efetuado em moeda corrente no país, proi-bindo-se o uso de moeda estrangeira.

Nas obrigações de fazer o pagamento se dá pela execução da atividade definida como objeto da prestação. O mesmo ocorre na obrigação de não fazer.

Prova é a demonstração material, palpável de um fato, ato ou negócio jurídico. Ela cor-porifica a existência desses elementos. É a manifestação concreta de um acontecimento.

A quitação é a prova desse pagamento e é direito daquele que paga dela se munir. O recibo é o instrumento da quitação. De acordo com o art. 319, o devedor pode reter o pagamento enquanto não lhe for dada a quitação. Os requisitos do recibo, por sua vez, encontram-se no art. 320.

Art. 319. O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada.

Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante.

Recibo é o documento idôneo para comprovar o pagamento das obrigações de dar e fazer. Nas obrigações de não fazer, o ônus da prova é do credor, que deve evidenciar se foi praticado o ato ou os atos.

2. QuEstõEs dE coNcurso

128º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase24. Sobre o adimplemento das obrigações, é correto afirmar:

a) o pagamento feito de boa-fé a quem aparentava ser credor, mas não o era, é conside-rado válido;

b) pagamento reiteradamente aceito pelo credor em local diverso do combinado não presume renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato;

c) a pessoa obrigada com o mesmo credor, por dois ou mais débitos líquidos e venci-dos, deve pagar primeiramente o mais antigo;

d) ocorre a compensação quando se confundem na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor de uma obrigação.

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126º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase25. Para que o pagamento possa ser um meio direto e eficaz de extinção da obrigação são necessários os seguintes requisitos, além da existência de vínculo obrigacional:

a) animus solvendi e pagamento somente ao credor em pessoa, sendo inválido o paga-mento feito a representante legitimado;

b) animus solvendi e entrega exata do objeto devido ou de coisa mais valiosa;c) satisfação exata da prestação devida e presença obrigatória da pessoa que efetua o

pagamento, que deverá obrigatoriamente ser o devedor;d) animus solvendi e satisfação exata da prestação que constitui o objeto da obrigação.

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aUla 15: ForMas esPeciais de PagaMento

EmENtário dE tEmas

Pagamento por consignação – Pagamento com sub-rogação – Imputação de pagamento – Dação em Pagamento (datio in solutum) – Novação – Compensação – Transação – Compro-misso – Confusão – Remissão

lEitura obriGatória

SOARES, Alice dos Santos. “Pagamento indireto ou especial”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 399/428.

lEituras comPlEmENtarEs

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 223/259.

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 627/688.

1. rotEiro dE aula

Pagamento por consignação

A primeira modalidade especial de pagamento que merece tratamento em apartado é a consignação. Essa modalidade especial de extinção da obrigação centra-se no fato de que, não apenas o credor, mas também o devedor possui interesse em extinguir a obrigação. Caso não efetue o pagamento da forma devida, ou seja, no tempo, lugar e condições inicialmente estabelecidas, observará o devedor uma maior oneração por conta da constituição em mora. Esse fator é decisivo no interesse do devedor em encerrar a relação obrigacional através do seu regular pagamento.

Se a obrigação for de dar uma coisa, por exemplo, enquanto não se perfaz a tradição, com a regular entrega da coisa ao credor, o devedor é responsável pela guarda e conservação da mesma.

A consignação extingue a obrigação com o depósito judicial da coisa devida, nos casos e formas legais. É a previsão do art. 334 do Código Civil:

Art. 334. Considera-se pagamento, e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais.

A consignação em pagamento é um meio coativo de extinção da obrigação que pode ser utilizado pelo devedor nos casos em que o credor obsta de alguma forma o recebimento da prestação. Pode o devedor se valer dela, por exemplo, nas hipóteses de negativa do credor

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em receber, ou quando este estipula condições diversas das previstas no instrumento con-tratual.

A consignação em pagamento é uma faculdade à disposição do devedor. Não é impera-tivo que o devedor a realize, encontrando-se tão somente obrigado a realizar a prestação da forma acordada com o credor.

O devedor está obrigado ao pagamento nas condições inicialmente previstas, pois foi com foco nelas que anuiu com a obrigação. Pode ocorrer, contudo, que razões de ordem prática e de absoluta conveniência instiguem o devedor se valer dessa espécie de ação.

Um exemplo pode ser observado na consignação do valor de aluguel, quando o credor se nega a receber. Não recebendo o aluguel, em tese, o credor abre espaço para a propositura de ação de despejo. Consignando-se valor, o devedor afastaria essa possibilidade.

A consignação não é um expediente jurídico que se presta somente ao depósito de di-nheiro. Qualquer coisa que seja objeto da obrigação pode ser consignada. Nesse sentido, vale recorrer ao art. 341 do Código Civil:

Art. 341. Se a coisa devida for imóvel ou corpo certo que deva ser entregue no mesmo lugar onde está, poderá o devedor citar o credor para vir ou mandar recebê-la, sob pena de ser depositada.

Para as hipóteses de obrigações alternativas, é necessário, como visto, que a escolha seja procedida pelo credor. Se o credor retardar o cumprimento da obrigação, essa faculdade de escolha pode ser perdida, sendo a mesma feita pelo devedor e em seguida consignada, implicando na conseqüente extinção do vínculo. Trata-se do previsto no art. 342 do Código Civil:

Art. 342. Se a escolha da coisa indeterminada competir ao credor, será ele citado para esse fim, sob cominação de perder o direito e de ser depositada a coisa que o devedor escolher; feita a escolha pelo devedor, proceder-se-á como no artigo antecedente.

A consignação é modalidade de pagamento, e dessa forma, o seu objeto deve ser certo. Obrigações ilíquidas, isto é, aquelas cujo valor ainda não foi apurado, não podem ser objeto de consignação. Somente após tornarem-se líquidas poderá ser realizada a consignação.

As obrigações que são puramente de fazer e de não fazer não admitem consignação. A obrigação de não fazer, em qualquer situação, será sempre incompatível com a medida. A obrigação de fazer, por sua vez, sempre que implicar na entrega da coisa, poderá haver a consignação.

Da mesma forma, o imóvel pode ser consignado na medida em que o depósito das cha-ves simboliza a consignação do todo.

As cinco hipóteses de consignação estão enunciadas pelo art. 335 do Código Civil:

Art. 335. A consignação tem lugar:I – se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou dar qui-

tação na devida forma;II – se o credor não for, nem mandar receber a coisa no lugar, tempo e condição devidos;III – se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou residir em

lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil;IV – se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do pagamento;V – se pender litígio sobre o objeto do pagamento.

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Ao analisar cada inciso em particular, pode-se constatar o seguinte:No caso do art. 335, I, tem-se o caso da dívida portable, quando o devedor é o portador

do pagamento, devendo levá-lo até o credor. Aqui é necessário que se observe a existência ou não de justa causa no não recebimento por parte do credor. Não haverá justa causa em situações como aquela em que o credor tenta receber mais do que o que lhe é devido.

No entanto, não constitui essa falta de justa causa em não receber, ou em não dar qui-tação, uma condição necessária para que se proceda com a consignação, na medida em que esse instrumento poderá ser utilizado também nos casos em que o credor está impossibili-tado de receber.

No caso do art. 335, II, trata-se da chamada dívida quérable, isto é, quando compete ao credor ir receber a prestação. Nesse caso, o credor permanece inerte, não indo até o devedor e o mesmo, para por termo à obrigação, consigna o valor devido.

Na hipótese do art. 335, III, vale destacar que inicialmente o credor nunca é desconhe-cido, mas, em certas situações, no correr da relação obrigacional, a indeterminação pode surgir, como no caso do credor que falece, abrindo-se a sucessão e desconhecendo-se os herdeiros.

No caso do art. 335, IV, o pagamento feito de forma incorreta, àquele ilegitimado para recebê-lo, implicará na não desoneração do devedor. Um dos exemplos que poderiam ser aventados corresponde justamente ao credor que falece e cujo patrimônio é aberto a suces-são. Não se sabe quem assumirá a posição de credor e o pagamento, feito erroneamente, não propiciará a desoneração.

Por fim, no art. 335, V, haverá espaço para consignação se existir um litígio entre o credor e um terceiro, onde o terceiro reivindica o pagamento. O devedor não sabe a quem pagar e desonerar-se-á depositando a coisa em juízo. O art. 344 do Código Civil especifica essa situação:

Art. 344. O devedor de obrigação litigiosa exonerar-se-á mediante consignação, mas, se pagar a qualquer dos pretendidos credores, tendo conhecimento do litígio, assumirá o risco do pagamento.

A consignação congrega elementos tanto de direito material como também processual (arts. 890 a 900 do Código de Processo Civil), sendo um verdadeiro procedimento judicial.

O artigo 890 do CPC admite a consignação nas hipóteses de previsão legal, qual seja, aqueles previstos no Código Civil e em toda a legislação extravagante.

A possibilidade de consignação nasce com o vencimento da dívida, na medida em que o credor não pode ser obrigado a receber antes do prazo. O valor consignado deve encampar as correções devidas, pois do contrário, ocorreria injusto enriquecimento do consignante.

Informações referentes ao foro da consignação podem ser encontradas no art. 891 CPC e 337 do Código Civil:

Art. 891. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, cessando para o devedor, tanto que se efetue o depósito, os juros e os riscos, salvo se for julgada improcedente.

Parágrafo único. Quando a coisa devida for corpo que deva ser entregue no lugar em que está, poderá o devedor requerer a consignação no foro em que ela se encontra.

Art. 337. O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento, cessando, tanto que se efetue, para o depositante, os juros da dívida e os riscos, salvo se for julgado improcedente.

Uma vez que seja feito o depósito, a sentença que o tenha deferido apresentará efeitos retroativos (efeitos ex tunc). A responsabilidade do devedor termina nesse momento, mas

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a sua mora, no entanto, retroage à data de sua citação. Por outro lado, caso a decisão do julgamento tenha sido no sentido de improcedência do pedido ou extinção sem julgamento do mérito, o depósito efetuado será ineficaz, como se nunca houvesse se processado.

Com o depósito, cessam as obrigações de juros e riscos com a coisa. A correção mone-tária e juros, a partir daí, serão responsabilidade da instituição financeira depositária dos valores. As despesas com a guarda e a conservação da coisa, uma vez que o pedido de con-signação seja deferido, estarão a cargo do credor.

Nas hipóteses envolvendo prestações periódicas, vale conferir o disposto no art. 892 do Código de Processo Civil:

Art. 892. Tratando-se de prestações periódicas, uma vez consignada a primeira, pode o devedor continuar a consignar, no mesmo processo e sem mais formalidades, as que se forem vencendo, desde que os depósitos sejam efetuados até 5 (cinco) dias, contados da data do vencimento.

O art. 896 do CPC, atentando aos elementos já enunciados pelo direito material, trata de alegações que podem ser apresentadas pelo réu na contestação à consignação.

Art. 896. Na contestação, o réu poderá alegar que: I – não houve recusa ou mora em receber a quantia ou coisa devida;II – foi justa a recusa;III – o depósito não se efetuou no prazo ou no lugar do pagamento;IV – o depósito não é integral.Parágrafo único. No caso do inciso IV, a alegação será admissível se o réu indicar o mon-

tante que entende devido.

Pagamento com sub-rogação

A sub-rogação, que pode ser entendida através do vocábulo substituição, não é verdadei-ramente uma forma de extinção da obrigação, mas sim de alteração da posição do credor da relação obrigacional. O instituto é tratado no Código Civil pelos arts. 346 e seguintes.

Nessa modalidade especial de pagamento, um terceiro efetua o pagamento no lugar do devedor original e, dessa forma, substitui o credor. O terceiro que paga torna-se credor em relação ao devedor, passando a dispor de todos os direitos, ações e garantias que tinha o credor substituído.

Ao devedor não importará prejuízo visto que deverá pagar exatamente aquilo que seria devi-do ao credor original. A dívida toda é conservada, não existindo extinção em nenhuma parte.

Uma das mais pertinentes considerações acerca da natureza da sub-rogação é a de que a mesma não é, em verdade, um meio de extinção da obrigação. A obrigação subsiste, sendo apenas alterado o titular do crédito.

Adicionalmente, a sub-rogação e a cessão de crédito são institutos que possuem certas similitudes, não podendo ser confundidas.

A sub-rogação centra-se no pagamento de uma dívida efetuada por terceiro ficando ne-cessariamente vinculada aos termos dessa dívida. O valor devido àquele que se sub-roga será necessariamente coincidente com o valor inicialmente devido ao credor original.

A cessão de crédito, por sua vez, pode ter efeito especulativo, e pode ocorrer mediante a transferência de numerário diversa do valor da dívida em si.

Na cessão de crédito é necessário que o devedor seja notificado de tal negócio jurídico (art. 290 CC). Na sub-rogação, por seu turno, essa comunicação não se faz obrigatória.

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A cessão de crédito possui a natureza de alienação de um direito, caráter esse inexistente na sub-rogação.

A sub-rogação pode se processar ainda que sem a anuência do credor. O mesmo não ocorre na cessão, onde mister se faz a manifestação de vontade do titular do crédito no sentido de negociá-lo.

O art. 346 do Código Civil determina as hipóteses de sub-rogação legal:

Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:I – do credor que paga a dívida do devedor comum;II – do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do

terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;III – do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no

todo ou em parte.

O art. 346, III, trata da situação mais comum e mais útil para utilização da sub-rogação. Como exemplos pode-se mencionar:

i) O fiador que paga dívida do afiançado e sub-roga-se nos direitos do credor;ii) O devedor solidário que paga toda a dívida e sub-roga-se e assume a posição de cre-

dor dos demais;

No primeiro exemplo, o fiador, ao arcar com os valores referentes à dívida antes de ser acionado nesse sentido, preserva-se da necessidade de efetuar pagamento mais oneroso.

As duas formas de sub-rogação convencional são delimitadas pelo art. 347 do Código Civil:

Art. 347. A sub-rogação é convencional:I – quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos

os seus direitos;II – quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob

a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito.

Trata-se de mero acordo de vontade entre o credor e o terceiro que arca com a dívida, sem que, contudo, recorra-se a maiores formalidades.

Na primeira hipótese, não há necessidade nem mesmo do conhecimento por parte do devedor, quiçá de sua anuência em relação à sub-rogação.

No segundo caso, o devedor passa a dever ao mutuante com todos os deveres originários daquela obrigação.

Como examinado, no pagamento com sub-rogação, o credor original é satisfeito sem que isso importe em extinção da obrigação.

Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.

A finalidade especulativa, conforme tratada na distinção em relação à cessão de crédito, não pode existir. O sub-rogado não pode receber nada além do que receberia o credor ori-ginário.

Na sub-rogação convencional, as partes podem manifestar sua vontade no sentido de alteração dos valores, conforme se depreende do art. 350 do Código Civil:

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Art. 350. Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor, senão até à soma que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.

No pagamento parcial, por sua vez, o credor originário tem preferência em face daquele que o sub-roga (art. 351 do Código Civil).

imputação de pagamento

A imputação de pagamento pode ser observada quando da existência de vários débitos de um mesmo devedor em relação a um mesmo credor. Há pluralidade de dívidas, de forma que um pagamento efetuado pode vir a extinguir uma ou mais de uma delas. Dessa forma, a imputação de pagamento é um expediente jurídico que confere certa lógica na definição de que relações obrigacionais devem ser reputadas como extintas.

Nesse sentido, é preciso que essas dívidas sejam da mesma natureza, líquidas e já venci-das. É o que dispõe o art. 352 do Código Civil.

Art. 352. A pessoa obrigada por dois ou mais débitos da mesma natureza, a um só credor, tem o direito de indicar a qual deles oferece pagamento, se todos forem líquidos e vencidos.

A preferência na escolha da dívida a ser adimplida é do devedor. O art. 352 define que compete ao obrigado fazer essa imputação. Na hipótese de silêncio por parte do devedor, não se manifestando este dentro do tempo certo, a escolha passa ao credor (art. 353). Quan-do nenhuma das partes se manifesta em tempo oportuno, a lei assume o papel de orientar a solução dos débitos, indicando qual deles deve ser tido como adimplido. Essa é a imputação legal, prevista no art. 355 do Código Civil.

Art. 353. Não tendo o devedor declarado em qual das dívidas líquidas e vencidas quer imputar o pagamento, se aceitar a quitação de uma delas, não terá direito a reclamar contra a imputação feita pelo credor, salvo provando haver ele cometido violência ou dolo.

Art. 355. Se o devedor não fizer a indicação do art. 352, e a quitação for omissa quanto à imputação, esta se fará nas dívidas líquidas e vencidas em primeiro lugar. Se as dívidas forem todas líquidas e vencidas ao mesmo tempo, a imputação far-se-á na mais onerosa.

Os requisitos da imputação de pagamento estão também no art. 352 do Código Civil. São eles: (i) pluralidade de débitos, sendo que os mesmos devem ser independentes entre si e não podendo o credor receber parcialmente68; (ii) a existência de um só credor e um só devedor; (iii) os débitos devem ser da mesma natureza, isto é, deve haver compatibilidade entre o objeto do pagamento; (iv) as dívidas devem ser líquidas69; (v) o pagamento ofertado pelo devedor deve ser suficiente para quitar ao menos uma das dívidas; e (vi) a dívida deve ser vencida.

Se o valor do pagamento exceder ao montante fixado para a de menor valor, e não for suficiente para extinguir a obrigação mais onerosa, deve-se reputar como paga a dívida de menor valor, não sendo obrigado o credor a reter a diferença. Do contrário, seria ferido o princípio de que o credor não é obrigado a receber de forma diferente da estabelecida.

Não havendo acordo em contrário, a escolha na imputação é do devedor, devendo o mes-mo ser tratado de forma mais benigna. Esse direito à realização da imputação não é absoluto, pois de acordo com o art. 354 do Código Civil, é necessário empregar o capital primeira-mente nos juros vencidos. Imputar o dinheiro diretamente no capital não é uma opção válida para o devedor, a menos que tenha havido acordo entre as partes nesse sentido.

68 até mesmo por conta do artigo que veda ser o credor obrigado a receber de forma diversa da estipulada.

69 Obrigação líquida, de acordo com ao art. 1533 do código de 1916, é a obrigação certa quanto à sua existência, e determinada, quanto ao seu objeto.

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Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros venci-dos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a quitação por conta do capital.

Se o devedor pagar uma ou mais dívidas não destacando ao credor qual a imputação, o credor terá liberdade para dar quitação na que quiser. A importância dessa determinação re-side no fato de que o credor, por força da lógica, dará quitação na dívida que lhe seja menos favorável. Estando, por exemplo, o devedor vinculado por duas dívidas – uma quirografária e outra com garantia real – é certo que o credor dará quitação na primeira, em virtude da ausência de garantia.

Se as duas partes forem omissas, a imputação será legal, observando-se os princípios que residem no código.

A imputação legal, como visto, obedece aos ditames do art. 355 do Código Civil. Na aferição da dívida mais onerosa, cabe a atuação do juiz no caso concreto, não obstante a doutrina apresente alguns indicativos. Por exemplo: a orientação geral da lei é a de privile-giar o devedor, e dessa forma, a preferência se manifesta na extinção de dívidas com garantia real ou fiança, preterindo para outro momento as simplesmente quirografárias.

dação em Pagamento (datio in solutum)

Dação em pagamento é uma modalidade de extinção da obrigação em que a mesma poderá ser resolvida mediante a substituição de seu objeto. O devedor entrega prestação di-versa da inicialmente estabelecida, ou seja, dá-se algo distinto em pagamento. Logicamente, atentando à noção de que o credor não pode ser obrigado a receber prestação diversa da estabelecida, ainda que mais valiosa, a dação em pagamento só se opera com o consenti-mento do credor.

Trata-se de um acordo de natureza liberatória que representa, em síntese, a substituição do objeto inicial da obrigação. A dação em pagamento pode consistir na (i) substituição de dinheiro por coisa; (ii) de uma coisa por outra; (iii) de uma coisa por uma obrigação de fazer.

A dação em pagamento é negócio jurídico bilateral, oneroso e real. Real no sentido de que corrobora na entrega de uma coisa, excepcionando-se os casos em que a prestação seja de fazer ou não fazer, pura e simples.

Não há a necessidade de que o valor da prestação substituta seja igual ao da substituída. Deve haver tão somente a anuência do credor com o recebimento da coisa e com a conse-qüente extinção da dívida.

A dação pode também ser parcial, como por exemplo, quando o devedor não possui capital suficiente para saldar a dívida e paga parte em dinheiro e parte em espécie.

O pagamento parcial também é possível. Nesse caso, o credor salda parte da dívida me-diante dação em pagamento, e o restante da obrigação subsiste. Trata-se de campo amplo para o acordo de vontades entre as partes contratuais, imperando sempre a noção de que o credor não pode ser compelido a receber de forma que lhe seja desfavorável.

Para a aceitação da dação em pagamento, isto é, o recebimento de prestação diversa da devida, é necessário que o credor seja plenamente capaz. No caso deste ser incapaz, é neces-sária autorização judicial.

A dação em pagamento é usualmente confundida com a compra e venda. Nesse sentido, o artigo 357 do Código Civil define o seguinte:

Art. 357. Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda.

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De acordo com a redação do artigo, para que se observe a equiparação à compra e ven-da, importante é que tenha ocorrido a fixação do preço da coisa que substitui a prestação original. Caso isso não seja verificável, não haverá, em consonância com a dicção legal, que se falar em equiparação à compra e venda.

Equiparação aqui não traduz a idéia de identidade, de igualdade absoluta de regras apli-cáveis. Como observado, o artigo 337 tem incidência tanto quando o objeto da dação for coisa móvel quando for imóvel. Se houver perda coisa por conta da evicção, deve-se observar a repristinação da obrigação originária. É o que costa do art. 359 do Código Civil:

Art. 359. Se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento, restabelecer-se-á a obri-gação primitiva, ficando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros.

A evicção é aplicável à dação em pagamento da mesma forma que se apresenta para a compra e venda. A situação seria equivalente à inexistência de quitação, mantendo-se a obrigação da mesma forma que foi contraída originalmente.

Novação

A novação é uma modalidade de extinção das obrigações por meio da qual cria-se uma obrigação nova com o intento de extinguir uma obrigação antiga. O credor e o devedor, ou apenas o credor, extinguem a obrigação original e criam uma nova, que vinculará o deve-dor no lugar daquela. O surgimento da nova obrigação importa na necessária resolução da antiga.

A novação pode ser objetiva, quando se refere ao objeto da prestação. Trata-se da hipóte-se do art. 360, I, do Código Civil. A novação subjetiva, por sua vez, é tratada nos incisos II e III, havendo, em tais casos, a substituição do devedor ou do credor.

Art. 360. Dá-se a novação:I – quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior;II – quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor;III – quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando

o devedor quite com este.

O instituto hoje não tem mais a mesma importância de que manifestava no direito romano, onde residem as suas raízes. Em grande parte se deve essa constatação ao advento de novas figuras como a cessão de crédito, a assunção de dívida e a sub-rogação, que ope-racionalizam de forma mais racional grande parte das situações em que a novação poderia ser aplicada.

A novação não implica na satisfação do crédito, pois ele persiste, mas sob uma nova forma. A natureza extintiva é justificada, pois a obrigação primitiva desaparece, mas ainda assim não há que se falar em satisfação.

Outra consideração preliminar que se faz necessária é a anuência de ambas as partes, não se operando jamais a novação por força de lei.

No direito romano, a novação era um expediente técnico utilizado para solucionar o problema da intransmissibilidade das obrigações, fazendo com que a mesma obrigação, de certa forma, persistisse. No direito moderno, a novação tem o condão de criar uma obriga-ção inteiramente nova, inclusive admitindo-se a novação causal.

Novação causal é aquela que se opera pela mudança na causa debendi. Causa debendi, por sua vez, é a razão pela qual existe um determinado débito, como por exemplo, a existência

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de um empréstimo, ou a realização de uma compra e venda. Dessa forma, as novações mo-dernas permitem o surgimento de uma obrigação plenamente nova.

Um exemplo do acima referido seria a novação de uma dívida de R$ 3.000 (três mil reais) por conta de uma compra e venda, a qual seria extinta mediante o surgimento de um empréstimo de igual valor.

Como exemplo de uma novação meramente objetiva pode-se exemplificar com aquela que se realiza na substituição da obrigação de dar 100 (cem) quilos de açúcar por uma obri-gação de entregar 300 (trezentos) quilos de feijão. Entregar o açúcar era a obrigação inicial, mas por conta do acordo entre as partes, o objeto da prestação foi alterado. O objeto, no caso, não só é a espécie de bem, como também a quantidade a ele referente.

Destaque-se que a alteração no prazo ou condição não implica em novação da obrigação. Ainda, não implicam em novação o recebimento de parcela em atraso, a mudança do local de pagamento, a modificação simples do valor da dívida, o aumento ou diminuição de ga-rantias, ou mesmo a substituição de um título representativo da dívida.

Apesar da lei não estabelecer maiores formalidades, a vontade de novar das partes deve se manifestar de forma expressa, clara e indubitável.

Como é perceptível, a novação se aproxima da dação em pagamento, estudada no tópi-co anterior. De todo modo, a distinção é clara: a dação em pagamento extingue a dívida, implicando na satisfação do credor, que por seu interesse, anuiu de forma desembaraçada em receber prestação diversa. A novação não implica nessa satisfação, pois o credor nada recebe.

A novação subjetiva pode ocorrer com a alteração tanto da figura do credor como do devedor. A novação subjetiva passiva pode ocorrer por delegação ou expromissão.

i) Delegação – Aqui se verifica o consentimento do devedor originário. É a hipótese definida pelo art. 360, II, do Código Civil, cabendo ao devedor da obrigação inicial indicar o seu substituto. Dessa maneira, observa-se a novação por delegação quando um terceiro, que é o delegado, anui em tornar-se devedor perante o credor, que aqui é o delegatório, implicando assim na extinção da dívida primitiva. Destaque-se que na delegação (pura e simples) o credor aceita o novo devedor, mas sem renunciar às suas prerrogativas face ao antigo devedor. Trata-se da delegação imperfeita.

ii) Expromissão – Da mesma forma que a delegação, também é novação subjetiva pas-siva. Trata-se, em verdade, de uma forma de expulsão do devedor originário, visto que um terceiro assume a dívida dele, com a concordância do credor, mas sem que seja necessária a anuência do devedor. É o que dispõe o art. 362 do Código Civil:

Art. 362. A novação por substituição do devedor pode ser efetuada independentemente de consentimento deste.

O art. 360, III trata da novação no pólo ativo. Trata-se da substituição da figura do credor.

Os requisitos essenciais, conforme observado, são: (i) uma dívida anterior que se ex-tingue; (ii) a criação de uma obrigação nova. Outros requisitos, no entanto, podem ser inferidos da própria dinâmica da novação, como: (iii) a validade da obrigação que se quer extinguir; (iv) o aliquid novi, ou seja, a alteração em elementos substancias da obrigação; (v) o animus de novar; e (vi) legitimidade e capacidade para o ato de novar.

A obrigação natural pode ser novada. O pagamento feito tendo em vista uma obrigação natural não pode ser repetido, visto que ele é de fato devido e, por conta desse fato, chega-se a conclusão da possibilidade de sua novação. A nova obrigação, no entanto, será civil, e plena, contando com todos os elementos assecuratórios da sua exigibilidade.

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De forma oposta, as obrigações nulas ou extintas não podem ser novadas. É inclusive entendimento expresso no art. 367 do Código Civil.

Art. 367. Salvo as obrigações simplesmente anuláveis, não podem ser objeto de novação obrigações nulas ou extintas.

O ânimo de novar também é um elemento imprescindível. E a sua ausência importa em mera confirmação da primeira obrigação. Nesse sentido, menciona o art 361 do Código Civil:

Art. 361. Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas inequívoco, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira.

Capacidade e legitimidade, como visto, também são requisitos daquele que procede com a novação. No que toca a legitimação, um exemplo é a novação feita de ascendente a descendente que necessita de do consentimento dos demais descendentes.

Caso essa nova obrigação seja inválida, continua em vigor a obrigação originária. É a mesma regra aplicada na dação em pagamento (art. 359 do Código Civil).

Afora a extinção da dívida primitiva, outros efeitos podem ser observados. Um deles é que com a criação de uma nova obrigação os acessórios e garantias insertos na dívida antiga são extintos.

Art. 364. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário. Não aproveitará, contudo, ao credor ressalvar o penhor, a hipote-ca ou a anticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação.

Na novação por delegação, isto é, onde há alteração no pólo passivo da obrigação, o credor assume novo devedor por sua conta e risco, exonerando o primitivo devedor. Se o novo obrigado for insolvente, não há que tentar buscar a satisfação do crédito face ao antigo, excetuando-se os casos em que se observa a atuação com má-fé.

compensação

Compensação, no direito obrigacional, significa um acerto de débito e crédito entre duas pessoas que detêm simultaneamente a condição recíproca de credor e devedor. A extinção dos débitos se opera até o montante em que se contrabalançam.

O conceito de compensação é fornecido pelo art. 368 do Código Civil:

Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.

O principal benefício é evitar-se uma dupla ação, facilitando-se o adimplemento. A compensação, vale ressaltar, possui natureza de meio extintivo das obrigações.

No que toca à compensação, nosso sistema jurídico filia-se à tradição francesa, determi-nando que a compensação se opera por força de lei, de forma independente da iniciativa dos interessados. O art. 368, já transcrito, é claro nesse sentido.

A compensação voluntária ocorre por intermédio do acordo entre as partes, e nesse sen-tido é inclusive possível compensar dívidas ilíquidas e não vencidas.

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A compensação judicial, como o próprio nome já alude, é aquela que se processa em juízo, decorrendo dos princípios da compensação legal. Não é compensação legal, pois a dívida pode vir a angariar liquidez somente no correr do processo judicial.

A compensação de créditos possui requisitos de ordem tanto objetiva como subjetiva. Como requisitos de ordem objetiva pode-se mencionar: (i) a reciprocidade de créditos; (ii) a homogeneidade das prestações; (iii) a regular constituição e exigibilidade dos créditos.

A compensação somente extingue obrigações existentes entre as partes, excluindo-se as referentes a terceiros. Esse entendimento pode ser percebido na dicção do art. 376 do Código Civil:

Art. 376. Obrigando-se por terceiro uma pessoa, não pode compensar essa dívida com a que o credor dele lhe dever.

A reciprocidade é afirmada no art. 371 e traduz a idéia de que o devedor só pode compen-sar com o credor o que este lhe dever. Adicionalmente, esse dispositivo prevê uma exceção, qual seja, a possibilidade do fiador se valer da compensação contra o credor do afiançado.

Art. 371. O devedor somente pode compensar com o credor o que este lhe dever; mas o fiador pode compensar sua dívida com a de seu credor ao afiançado.

O art. 377 menciona a cessão de crédito. Nesse sentido, o devedor deve ser notificado da cessão de crédito. Caso não haja oposição à cessão feita por parte do devedor, não poderá futuramente opor a compensação com o crédito que tinha em face do credor originário. Quando não tiver ocorrido qualquer comunicação sobre a cessão o devedor conserva esse direito de compensar o crédito, mas dessa vez face ao terceiro (cessionário). Logicamente, esse cessionário deverá reaver o que houver sido pago junto ao credor originário.

A obrigação natural, como visto, é inexigível, e, dessa forma, não pode ser compensada. Contudo, no tocante às obrigações prescritas, é importante atentar para um detalhe: se a pres-crição se operou após a coexistência das dívidas, as mesmas devem ser reputadas compensadas, visto que a compensação se opera por força de lei. Trata-se de compensação pleno iure.

O art. 370 do Código Civil trata do requisito de que as prestações sejam homogêneas. O objeto delas deve ser fungível. Dessa forma, reputam-se como compensáveis coisas da mesma natureza, e de qualidade semelhante. Por exemplo, não se pode compensar diferen-tes qualidades de café.

Art. 370. Embora sejam do mesmo gênero as coisas fungíveis, objeto das duas prestações, não se compensarão, verificando-se que diferem na qualidade, quando especificada no con-trato.

Os negócios jurídicos, como já examinado em aulas anteriores, se abre à análise nos pla-nos da existência, validade e eficácia. Se um dos créditos compensados for inexistente, nulo ou anulado, a dívida compensada deve ser revitalizada.

O art. 373 do Código Civil define as hipóteses onde não pode ser observada a compen-sação legal:

Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, exceto:I – se provier de esbulho, furto ou roubo;II – se uma se originar de comodato, depósito ou alimentos;III – se uma for de coisa não suscetível de penhora.

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O inciso I trata de casos de delito e, logicamente, a lei não pode transigir que eles se prestem à compensação; no inciso II, o comodato e o depósito são contratos que afastam a idéia de fungibilidade entre as prestações e os alimentos, por se destinarem à subsistência dos indivíduos (se fossem compensados poderiam colocar em risco a vida humana); no inciso III, a impenhorabilidade redunda na incompensabilidade, tendo como exemplo o salário, que não pode ser compensado.

A compensação, como visto, produz os mesmo efeitos do pagamento. As obrigações são resolvidas e os credores (e devedores) recíprocos restam satisfeitos. A compensação legal dinamiza essa satisfação entre as partes.

transação

A transação é uma forma de extinção da obrigação que tem por escopo impedir que as partes ingressem em juízo, ou uma vez já tendo recorrido ao judiciário, que coloquem fim à lide.

O sentido da transação como forma de extinção das obrigações é determinado pelo art. 840 do Código Civil. O artigo, cumpre destacar, está presente na seção do código dedicada aos contratos:

Art. 840. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante conces-sões mútuas.

Dessa forma, nesse instituto de natureza marcadamente contratual, cada uma das par-tes abre mão de parcela de seus interesses no intuito de impedir ou por fim uma demanda judicial. A ocorrência de transação não significa que alguma das partes abriu mão de seus direitos na totalidade, mas sempre será necessário que parte de suas pretensões sejam afasta-das. A idéia de concessões mútuas deve prevalecer.

Dessa forma, os requisitos essenciais da transação são: (i) acordo de vontades; (ii) con-cessões mútuas; e (iii) extinção de obrigações litigiosas ou duvidosas.

A transação, como observado, é um negócio jurídico bilateral e de caráter contratual. Um dos indicativos desse enquadramento, além de ser tratado o instituto no campo próprio dos contratos, é a possibilidade de estabelecimento da pena convencional para a transação. Essa possibilidade decorre do art. 847 do Código Civil:

Art. 847. É admissível, na transação, a pena convencional.

A transação é indivisível, pois quando uma de suas cláusulas é nula, assim será todo o negócio (art. 848 CC). Em relação à interpretação da transação, a mesma deve ser restritiva (art. 843 CC).

Existe certa celeuma sobre ter a transação um caráter declaratório ou constitutivo. De acordo com o art. 843 do Código Civil, observa-se um caráter eminentemente declaratório encampado pela lei. Na maior parte das vezes certamente será esse o perfil dominante. Con-tudo, por vezes, o caráter constitutivo se faz marcante, em especial quando a transação passa a congregar novos direitos além daqueles que são litigiosos.

Poder-se-ia afirmar então que, sendo a transação simples, seu efeito será declaratório. A transação pode ser ainda judicial ou extrajudicial, dependendo se ocorre dentro ou

fora do processo. O art. 842 destaca que:

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Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz.

A transação extrajudicial não necessita de maiores formalidades, importando preponde-rantemente o seu conteúdo. Sendo extrajudicial, a homologação não é necessária, servindo essa apenas para suprimir certos trâmites processuais.

Por conta de sua natureza contratual, a desistência unilateral da transação não é admitida.A transação não pode ter por objeto todos os direitos, somente aqueles patrimoniais de

caráter privado. Essa é a regra do art. 841 do Código Civil. Direitos indisponíveis como os relativos ao estado e capacidade das pessoas, os direitos puros de família e os direitos perso-nalíssimos não podem ser objeto desse contrato.

Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação.

A transação pressupõe plena capacidade. Para que os incapazes possam transigir, da mes-ma forma que a alienação, é necessário que haja complementação da vontade, providenciada pelo representante, bem como da autorização judicial para a prática do ato. A legitimação, como já examinado, também é elemento necessário para que a vontade de realizar transação seja exercitada.

Em relação ao mandato, o mandatário deve ter poderes específicos para transigir. A pro-curação do advogado deve prever isso.

Conforme já destacado no art. 847 do Código Civil, a cláusula penal pode ser inserida num contrato de transação. É uma cláusula de reforço ao cumprimento desse pacto entre as partes. O princípio da exceção do contrato não cumprido (art. 476 CC) tem plena aplica-ção, bem como as outras noções da teoria geral dos contratos.

As convenções referentes à transação operam efeito somente entre as partes. Essa regra da relatividade está no art. 844, caput, do Código Civil:

Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.

Da mesma forma que a novação, anteriormente estudada, considerações especiais acerca da evicção devem ser traçadas. A lei demonstra essa preocupação no art. 845 do Código Civil:

Art. 845. Dada a evicção da coisa renunciada por um dos transigentes, ou por ele transfe-rida à outra parte, não revive a obrigação extinta pela transação; mas ao evicto cabe o direito de reclamar perdas e danos.

Parágrafo único. Se um dos transigentes adquirir, depois da transação, novo direito sobre a coisa renunciada ou transferida, a transação feita não o inibirá de exercê-lo.

A perda do objeto não tem o condão de repristinar a dívida, isto é, fazer com que ela ressurja.

Deve-se, por fim, destacar a idéia de que a transação deve ser sempre interpretada de modo restritivo. Esse entendimento é decorrência lógica da natureza do instituto que im-porta sempre na renúncia de algum direito. As renúncias não podem ser interpretadas am-pliativamente.

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compromisso

O compromisso é um instrumento jurídico mediante o qual atribui-se a decisão de certos conflitos a árbitros. Pessoas plenamente capazes escolhem árbitros para solucionar suas avenças. Antes mesmo do surgimento de qualquer conflito, as partes prevêem quem o solucionará. Essa possibilidade encontra assento legal na lei nº 9.307/96, a qual, em seu artigo 1º, destaca que:

Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

O Código Civil de 2002 trata da matéria em apenas três artigos, relegando à lei especial e ao código processual um tratamento mais pormenorizado do tema.

O art. 851 do Código Civil se refere à cláusula compromissória nos contratos, permitin-do a solução dos litígios em juízo arbitral. Ele dispõe:

Art. 851. É admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios entre pessoas que podem contratar.

O art. 852 do Código Civil dispõe sobre os casos em que não é possível a utilização de compromisso:

Art. 852. É vedado compromisso para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial.

De acordo com a lei nº 9307/96, a sentença arbitral é considerada título executivo judicial.70 O árbitro é juiz de fato e de direito do conflito que lhe é levado. Ainda, os atos executórios dessa decisão arbitral devem ser procedidos pelo poder público. Dessa forma, pode-se observar que mesmo no caso de compromisso, certos atos ainda carecerão da inter-venção do poder judiciário.

A arbitragem é um instrumento negocial e tende a assumir papel cada vez mais re-levante nesse contexto especializado. Como motivos que incentivam o seu uso, pode-se mencionar o sigilo e a celeridade. A celeridade é razão notória, visto que foge da demanda sempre crescente do poder judiciário; o sigilo por sua vez, se dá na medida em que a regra geral dos processos tramitando no Poder Judiciário é a publicidade de seus respectivos atos.

Um detalhe a destacar é o fato de que as partes podem pactuar a utilização de um juízo tecnicamente mais especializado preparado para a solução desse litígio.

A atual lei supera os principais entraves que a arbitragem enfrentava anteriormente: (i) não havia dispositivo legal possibilitando o uso da cláusula compromissória; e (ii) havia necessidade de homologação do laudo arbitral pelo poder judiciário.

O compromisso tem um caráter contratual evidente. Através dele, não só conflitos são extintos, mas outras obrigações são criadas. Pode árbitro criar, modificar ou extinguir direi-tos das partes.

Mas como entender essa natureza contratual? Através do pacto compromissório, as par-tes comprometem-se, num eventual litígio, a submeterem-se ao árbitro e não ao Poder Judi-ciário. É uma contratação feita de modo preliminar. Alguns autores denominam essa relação sujeita à arbitragem de contrato base. O art. 4º da lei de arbitragem, nesse sentido, define:

70 O art. 584, III do cPc defi-ne que: art. 584. são títulos executivos judiciais: (...) III – a sentença homologatória de conciliação ou de transa-ção, ainda que verse matéria não posta em juízo; (Redação dada pela lei nº 10.358, de 27.12.2001).

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Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.

É interessante destacar que sob a égide do Código de 1916, a negativa de uma das partes em submeter-se à arbitragem implicava nos efeitos do inadimplemento contratual. A parte prejudicada poderia pleitear perdas e danos. A previsão de execução específica da avença não era ainda existente à época.

confusão

Existe confusão quando se observa, numa determinada relação obrigacional, a junção numa mesma pessoa das figuras de credor e devedor. Há impossibilidade lógica de que a obrigação persista. O artigo 381 do Código Civil prevê que:

Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualida-des de credor e devedor.

A confusão, segundo o art. 382, pode ser total ou parcial:

Art. 382. A confusão pode verificar-se a respeito de toda a dívida, ou só de parte dela.

Quando o estado de confusão acaba, a obrigação é restabelecida, congregando novamen-te todos os seus caracteres:

Art. 384. Cessando a confusão, para logo se restabelece, com todos os seus acessórios, a obrigação anterior.

A confusão pode se operar de diversas formas. Pode ocorrer por ato inter vivos ou causa mortis, nesse caso, quando o herdeiro assume o patrimônio do credor e vê extinto o seu débito. Destaque-se que enquanto não houver partilha dos bens envolvidos na sucessão, não há que se falar em confusão. Na confusão por ato inter vivos, o mesmo pode ainda ser gratuito ou oneroso; a título singular ou universal.

O art. 383 do Código Civil trata da hipótese de confusão em obrigações solidárias. De acordo com o dispositivo, os efeitos da confusão não se comunicam às demais figuras abar-cadas pela solidariedade.

Art. 383. A confusão operada na pessoa do credor ou devedor solidário só extingue a obrigação até a concorrência da respectiva parte no crédito, ou na dívida, subsistindo quanto ao mais a solidariedade.

Em breve apanhado, são seus requisitos: (i) numa só pessoa devem ser congregadas as qualidades de credor e de devedor; (ii) essa reunião de qualidades deve ser atinente a uma mesma relação obrigacional; e (iii) não deve haver patrimônios apartados.

remissão

A remissão ocorre quando o credor libera do devedor do cumprimento da obrigação, no todo ou em parte, sem que tenha recebido o pagamento que lhe é devido.

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Trata-se de uma modalidade de renúncia, e como já observado, renunciáveis são os di-reitos disponíveis, reais, pessoais e intelectuais.

Sob uma perspectiva mais técnica, remissão e renúncia apresentam uma distinção: a remissão depende da anuência do devedor, que mesmo tendo sua dívida perdoada pelo credor, pode querer pagar, tendo em vista questões morais. A remissão é ato unilateral, mas somente se implementa com a concordância do obrigado. Na renúncia, essa necessidade de anuência por parte do devedor não está presente.

As partes podem livremente determinar parâmetros para essa remissão, dando-lhe uma feição contratual e, portanto, bilateral.

Remissão e doação são institutos diversos. A remissão depende da anuência do devedor, apresentando um caráter sinalagmático. A doação, por sua vez, é uma liberalidade, quali-dade nem sempre atribuível à remissão; Para o direito pouco importa o intuito com que a remissão é feita, não ocorrendo o mesmo para a doação.

É importante observar que a remissão pode ser expressa ou tácita. A sua forma tácita é especificada nos arts. 386 e 387 do Código Civil, ao disporem que:

Art. 386. A devolução voluntária do título da obrigação, quando por escrito particular, prova desoneração do devedor e seus co-obrigados, se o credor for capaz de alienar, e o deve-dor capaz de adquirir.

Art. 387. A restituição voluntária do objeto empenhado prova a renúncia do credor à garantia real, não a extinção da dívida.

Esses artigos contemplam uma presunção de que foi feita a remissão. Essa presunção não é absoluta, pois qualquer um dos atos acima referidos pode ser inquinado de algum vício de vontade.

Ao remir a dívida principal, o credor promove a conseqüente extinção das obrigações acessórias. A recíproca, conforme já examinado, não é verdadeira, por é perfeitamente pos-sível a extinção da obrigação acessória sem que principal seja atingida.

Quando houver pluralidade de devedores, deve-se ter em mente que:

Art. 388. A remissão concedida a um dos co-devedores extingue a dívida na parte a ele correspondente; de modo que, ainda reservando o credor a solidariedade contra os outros, já lhes não pode cobrar o débito sem dedução da parte remitida.

No tocante à indivisibilidade, vale ainda destacar o art. 262 do Código Civil, o qual dispõe que “se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não ficará extinta para com os outros; mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente.” O mesmo critério se observará no caso de transação, novação, compensação ou confusão, conforme determinado pelo parágrafo único do mesmo artigo.

2. QuEstõEs dE coNcurso

24º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase46 – Alberto, na qualidade de credor, visando por fim a uma obrigação pactuada com Ricardo, aceita receber do devedor (Ricardo) um objeto diverso daquele estabelecido no instrumento obrigacional e, assim procedendo, realizou uma:

a) Compra e venda;b) Doação;

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c) Novação subjetiva passiva;d) Dação em pagamento.

Concurso para o cargo Advogado do BNDES (2004)45. As normas em vigor que disciplinam o instituto da novação, de acordo com a concepção moderna e rejeitando a concepção romana, têm merecido encômios da dou-trina, que não dispensa elogios à sua excelência no ponto de vista técnico. Sobre esse instituto da relação obrigacional, é certo afirmar-se que:

a) a novação subjetiva se dá se as partes acordam na modificação da espécie obrigacio-nal;

b) a novação por substituição do devedor pode ser efetuada independente do consenti-mento deste;

c) a novação, como o pagamento e a compensação, produz a imediata satisfação do crédito;

d) se, nas obrigações indivisíveis, um dos credores novar a dívida, a obrigação se extin-gue para os outros;

e) se o novo devedor for insolvente, terá sempre o credor, que o aceitou, ação regressiva contra o primeiro.

Concurso para o cargo de Advogado Júnior da BR Distribuidora (2004)39. As obrigações podem ser extintas por diversos meios. O mais usual é o pagamento, com o cumprimento voluntário. Há, todavia, outras formas de extinção, sem pagamento. Entre elas, a que deste se aproxima, ocorrendo, da mesma maneira, a liberação direta é a:

a) novação;b) compensação;c) remissão;d) confusão;e) transação.

120º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase 27. “A” deve a “B”, R$ 8.000,00. “C”, amigo de “A”, sabendo do débito, pede ao credor que libere “A”, ficando “C” como devedor. No caso está configurada a

a) novação subjetiva ativa;b) novação subjetiva passiva por delegação;c) novação objetiva;d) novação subjetiva passiva por expromissão.

28. A operação de mútua quitação entre credores recíprocos é:a) confusão;b) compensação;c) imputação;d) transação.

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125º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase 26. A novação ocorre quando:

a) o credor consente em receber prestação diversa da que lhe é devida, com o intuito de extinguir a obrigação;

b) um novo devedor sucede ao antigo, ficando este último quite com o credor;c) se confundem em uma mesma pessoa as qualidades de credor e devedor;d) duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, de dívidas

líquidas, vencidas e de coisas fungíveis, extinguindo-se as obrigações, até onde pu-derem ser abatidas.

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aUla 16: enriQUeciMento seM caUsa e PagaMento indeVido

EmENtário dE tEmas

Enriquecimento sem causa – Ação de in rem verso – Pagamento indevido – Delinea-mentos gerais da repetição

lEitura obriGatória

KONDER, Carlos Nelson. “Enriquecimento sem causa e pagamento indevido”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 369/388.

lEituras comPlEmENtarEs

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2004; pp. 285/304.

BEVILAQUA, Clovis. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940; pp. 111/120.

1. rotEiro dE aula

Enriquecimento sem causa

O Código Civil trata do pagamento indevido nos artigos 876 a 883 e o enriquecimento sem causa nos artigos 884 a 886. A partir do enquadramento conferido pelo Código aos dois institutos, pode-se classificá-los como fontes unilaterais de obrigações. Ao contrário do que dispõe o Código, a doutrina tende a qualificar essas duas figuras como fonte autônoma de obrigações.

No direito obrigacional usualmente ocorre o enriquecimento de uma parte em detri-mento de outra, enriquecimento esse que deve ser fundado numa justa causa. É o que ocorre, por exemplo, na doação.

A idéia que norteia o enriquecimento ilícito é justamente a de que esse incremento patrimonial se opera não fundado em justa causa, ou pelo menos, sem causa jurídica. É o exemplo daquele que paga dívida inexistente.

Dessa forma, o enriquecimento sem causa é o aumento patrimonial sem base jurídica que o legitime. É fonte autônoma de obrigação da mesma forma que os atos unilaterais.

Interpretando a legislação vigente, pode-se concluir que o enriquecimento sem causa e o pagamento indevido constituem verdadeiras fontes de obrigações. O ato de realizar um pagamento importa na extinção da dívida, contudo, o pagamento indevido opera de forma inversa, pois o mesmo não extingue a dívida e ainda cria para aquele que o recebe a obri-gação de devolvê-lo. O solvens, isto é, aquele que efetuou o pagamento, torna-se titular de uma ação de repetição.

O princípio que veda o enriquecimento sem causa não pode ser confundido com a conde-nação em perdas e danos, na medida em que não se trata aqui do manejo da responsabilidade

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civil para resolver a patologia de eventuais relações. No tratamento do enriquecimento sem causa a noção de culpa é irrelevante.

Nesse sentido, pode-se notar a pluralidade de correntes sobre a natureza jurídica do pa-gamento indevido. As legislações estrangeiras igualmente perfilham distintos entendimen-tos. Em apanhado sucinto, pode-se dizer que a doutrina nacional segue a tradição francesa, que entende o enriquecimento sem causa como fonte autônoma de obrigação, isto é, um ato unilateral.

A noção geral de enriquecimento sem causa é enunciada pelo art. 884 do Código Civil, da seguinte forma:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.

Cumpre observar a relação de imediatidade perceptível quanto ao enriquecimento de uma parte e o empobrecimento de outra. Há, inclusive, segmentos doutrinários que prefe-rem a denominação empobrecimento ilícito.

A positivação do enriquecimento ilícito (ou “sem causa”) foi uma das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 para o campo do direito das obrigações. Não que a doutrina do enriquecimento ilícito não estivesse amadurecida anteriormente, mas ela certamente ganha reforço com a atual previsão legal. Adicionalmente, esse tratamento expresso contribui para que situações marcadas pelo enriquecimento ilícito sejam levadas aos tribunais e debatidas não somente como aplicação de um princípio geral de Direito, enquadramento detido pelo enriquecimento sem causa anteriormente à sua atual positivação.

A restituição decorrente do enriquecimento sem causa obedece concomitantemente aos dois parâmetros acima referidos: por um lado, essa devolução não pode exceder o enrique-cimento do agente recebedor; da mesma forma, ela não pode ultrapassar o empobrecimento sofrido pelo outro agente.

O valor da restituição será calculado na data em que a mesma ocorrer. Ainda que mais valiosa a coisa, o valor da restituição deve versar apenas sobre o quantum relativo ao enri-quecimento do agente.

Essa obrigação de restituir alcança da mesma forma os benefícios alcançados, como os frutos. Se equivocadamente um apartamento foi dado em dação de forma a saldar uma dívida, os aluguéis são igualmente devidos com a restituição do imóvel.

ação de in rem verso

A ação de in rem verso, ou seja, a ação de que se vale quem sofreu o empobrecimento sem causa jurídica, deve observar os seguintes requisitos: (i) a existência de um enriquecimento; (ii) um empobrecimento correlativo; (iii) ausência de causa jurídica para sua ocorrência; e (iv) ausência de interesse pessoal do empobrecido.

O enriquecimento é o elemento central. No momento de exercício da ação, ele deve es-tar ainda presente. Se já não mais subsiste, essa ação carecerá de interesse processual. Outro dado importante é a aferição das circunstâncias no caso concreto, que deve ser procedida pelo julgador, avaliando em que medida o enriquecimento efetivamente se processou.

O enriquecimento é a transferência de porção do patrimônio de alguém para a esfera jurídica de outrem sem que tenha havido o desejo dessa transmissão, ou que esse mesmo

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desejo tenha se manifestado de forma equivocada. Pode se operar por intermédio de diver-sos institutos jurídicos, como a remissão indesejada de uma dívida ou uma liberalidade feita à pessoa equivocada.

Nos casos de pagamento indevido, que é espécie de enriquecimento sem causa, além de alguém que enriqueça de forma indevida, é necessária a existência de alguém que concomi-tantemente empobreça. Observa-se um nexo de causalidade entre essas duas ações, isto é, um fato jurígeno que redunda em vantagem para um e desvantagem para outro. Ainda, a vantagem aqui referida deve ser mensurável economicamente.

Conexo á idéia de enriquecimento é igualmente importante a falta de causa. Causa é o ato jurídico que justifica a inclusão de um direito no patrimônio jurídico de alguém. O art. 885 do Código Civil define:

Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

Como visto, o enriquecimento sem causa redunda no surgimento de obrigações sem que para isso concorra a vontade dos agentes. Uma vez efetuado, por exemplo, um pagamento indevido, surge aquele que o recebe a necessidade de devolvê-lo. Para o surgimento dessa obrigação não é necessária emanação do empobrecido.

A subsidiariedade da ação de in rem verso é determinada no art. 886 do Código Civil. Essa ação deve ser usada quando o cabimento de outras medidas não for possível, como ações fundadas em cláusulas contratuais ou ações que busquem a anulação ou reconheci-mento da nulidade de negócios jurídicos. Na ação que busca dirimir o enriquecimento sem causa, apenas o que foi indevidamente recebido pode ser pleiteado, não se podendo aduzir pedidos como perdas e danos e pagamento de cláusula contratual.

Pagamento indevido

Pagamento indevido é modalidade peculiar de enriquecimento sem causa e, dessa forma, segue os mesmos princípios gerais aplicados àquele71. Da mesma forma, a idéia que norteia o instituto é a de reequilíbrio patrimonial.

Já se observou em aulas anteriores a relevância do pagamento como forma natural de extinção das obrigações. Através do cumprimento da obrigação, seja ela de dar, fazer ou não fazer, ocorre a solução do vínculo que liga devedor e credor.

Nesse sentido, o instituto do pagamento é inicialmente tratado pelo art. 876 do Código Civil, o qual determina que:

Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obri-gação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.

De forma simples, têm-se que, por erro, alguém realiza pagamento referente à dívida inexistente (indébito objetivo) ou o faz, tendo em vista dívida de fato existente, mas em benefício de pessoa equivocada (indébito subjetivo).

Diante do equívoco surge a possibilidade de repetir, isto é, de reaver o que foi pago. A idéia inerente ao pagamento indevido é o erro, a noção equivocada de vinculação a uma obrigação que na realidade não existe. Trata-se de um requisito, pois se o solvens, mesmo sabendo da inexistência de débito, realiza o pagamento, não há que se pleitear repetição.

Do pagamento indevido surge uma obrigação que vincula o accipiens à devolução do in-devidamente recebido. Essa obrigação tem causa na lei, notadamente no art. 876 do Código

71 Destaque-se que embora próximo ao enriquecimento sem causa, o pagamento inde-vido, enquanto instituto, con-serva especificidades próprias, como a ação de repetição, ex-pediente processual diverso da actio in rem verso, modalidade genérica cabível nos casos de enriquecimento ilícito.

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Civil, e não deixa de ser um fato curioso na medida em que um pagamento, meio natural de extinção de obrigações, é causa geradora de uma nova relação crédito/débito.

No que concerne aos requisitos do pagamento indevido, pode-se elencar os seguintes: (i) pagamento (aqui concebido no sentido amplo); (ii) ausência de causa jurídica; e (iii) erro, sendo aqui irrelevante a espontaneidade do pagamento para tornar obrigatória a restituição do mesmo.

Em relação ao erro do solvens, é necessário atentar, preliminarmente, ao art. 877 do Código Civil, ao dispor que:

Art. 877. Àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.

Conforme enuncia o dispositivo transcrito, no caso de pagamento indevido, há a neces-sidade de provar o erro. No entanto, tal artigo deve ser interpretado de modo restrito, como se referindo apenas ao pagamento sem causa jurídica. Não há que estender a imposição desse ônus probatório na configuração do enriquecimento ilícito.72

Caio Mário destaca ainda, no tocante ao erro, que:

“A repetição do indébito comporta ainda o erro quantitativo quando o devedor paga mais do que deve; ou quando paga por inteiro a um dos co-credores, no caso de a obrigação não ser solidária e ser divisível, ou ainda quando por erro sobre a situação real, paga a dívida já extinta”.73

Da mesma forma, observa-se a existência de pagamento indevido quando se salda dívida condicional antes do implemento da condição suspensiva. Conforme observado, antes do implemento do evento futuro e incerto, não há direito propriamente dito, mas tão somente expectativa de direito. Não há obrigação a ser solvida e, portanto, o pagamento erronea-mente vinculado é repetível.

No entanto, o mesmo não ocorre com as obrigações sujeitas a termo inicial (suspensivo). No termo, o evento que implica a eficácia da obrigação é futuro e certo. A obrigação já exis-te, apenas sua eficácia é que se condiciona ao implemento do termo. O direito do credor de receber já existe e quando o prazo aproveitar ao devedor, este pode dele abrir mão, pagando antecipadamente a obrigação. Não haverá, nesse caso, que se falar em repetição.74

delineamentos gerais da repetição

Os efeitos do pagamento indevido, no que concerne à repetição, podem variar de acordo com a intenção do accipiens, na medida em que a conduta deste pode ser dar em consonân-cia com a boa ou má-fé.

De modo sucinto, em havendo boa-fé, algumas peculiaridades da repetição deverão ser observadas: (i) o accipiens deve restituir o recebido e os frutos estantes; (ii) a devolução deve ser dar, prioritariamente em espécie, mas na impossibilidade disso ocorrer, deve o accipiens restituir o valor estimado em dinheiro; (iii) o accipiens tem direito aos frutos percebidos e não é obrigado a devolver a estimação pecuniária daqueles que já consumiu; (iv) tem ele direito à restituição dos valores referentes às benfeitorias úteis e necessárias (e o conseqüente direito de retenção), bem como o de levantar as benfeitorias voluptuárias; e (v) o accipiens somente responde pela deterioração ou perecimento do objeto quando transigir com culpa.

Por outro lado, a lei é bem mais severa com o accipiens de má-fé, determinando: (i) a res-tituição da coisa, bem como os frutos e acessões próprios a ela; (ii) o accipiens de má-fé pode

72 O enriquecimento sem causa, como visto, é gênero que com-preende como espécie o paga-mento ilícito. a prova do erro é exigência apenas quando se intenta mostrar a ocorrência da espécie em questão.

73 caio Mário da silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro: Forense, 2004; p. 297.

74 Destaque-se que, se por ou-tro lado, o termo aprouver ao credor, esse poderá enjeitar o recebimento da prestação até o momento fixado para o cum-primento da obrigação.

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somente pleitear o valor das benfeitorias necessárias, sem nem mesmo o direito de retenção; (iii) quando do perecimento ou dano à coisa deve responder pela estimação pecuniária da mesma, ainda que não tenha concorrido com culpa, excepcionando-se os casos em que o dano ocorreria independentemente do pagamento indevido.

Ainda na seara dos efeitos, aquele que recebe imóvel por conta de pagamento indevido está incumbido a auxiliar o solvens na retificação do registro.

Se o accipiens, procedendo de boa-fé, alienar o imóvel antes da reivindicação, fica obriga-do a restituir ao solvens o valor auferido na transação. Estando, entretanto, de má-fé, certa é a possibilidade do solvens exigir quantum indenizatório referente a perdas e danos.

Indistintamente, no caso de doação, aquele que pagou equivocadamente pode deman-dar o imóvel do beneficiado.

A primeira das hipóteses de impossibilidade de repetição está inserta no art. 881:

Art. 881. Se o pagamento indevido tiver consistido no desempenho de obrigação de fazer ou para eximir-se da obrigação de não fazer, aquele que recebeu a prestação fica na obrigação de indenizar o que a cumpriu, na medida do lucro obtido.

A prestação se esgota no ato de sua execução, no fazer, ou ainda numa omissão, nesse caso, não fazer. A regra aqui é que o accipiens fica obrigado a indenizar na medida do bene-fício auferido.

Atentando aos artigos 882 e 883 do Código Civil, pode-se perceber três casos de ex-clusão do direito de repetição: (i) no pagamento de dívida já prescrita; (ii) no pagamento de obrigação natural; e (iii) quando o pagamento objetiva fim ilícito, imoral ou proibido por lei.

A razão de ser dessa tripartição de causas é adotar a metodologia exposta pelo Código, no entanto, como já foi destacado, as obrigações naturais comportam as obrigações prescritas.

O art. 882 do Código Civil enuncia que a impossibilidade de repetição atinge tanto as dívidas prescritas como as obrigações juridicamente inexigíveis (leia-se, naturais):

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

A prescrição atinge a pretensão, mas não o direito em si, e tendo isso em vista, o paga-mento de dívida prescrita, bem como de qualquer outra obrigação natural (inexigível), não importa para o accipiens a necessidade de repetição. São obrigações incompletas, uma vez que são caracterizadas apenas pela existência de débito, sem responsabilidade:

Art. 883. Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei.

Parágrafo único. No caso deste artigo, o que se deu reverterá em favor de estabelecimento local de beneficência, a critério do juiz.

A associação dos contratantes almejando fim reprovado pela lei tem por efeito macular o direito de repetição. É uma aplicação do adágio de que a ninguém é dado se beneficiar da própria torpeza. Se o solvens procede de modo torpe, dando algo e pretendo finalidade ilícita ou imoral, não tem ação de repetição.

Por fim, outra hipótese de não repetição também é contemplada no art. 880 do Código Civil:

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Art. 880. Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o como parte de dívida verdadeira, inutilizou o título, deixou prescrever a pretensão ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito; mas aquele que pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fiador.

Aqui a lei traça especial consideração com aquele que recebe de boa-fé pagamento, cren-do ser este decorrente de dívida verdadeira, e por conta disso, deixa de manter o título e garantias referentes ao crédito que crê recebido. O art. 880 do Código determina uma pro-teção ao accipiens que procede nessas condições, sendo corolário da idéia de segurança das relações sociais e homenagem à boa-fé.

2. caso GErador

Numa manhã de sábado, João, dirigindo de forma desatenta, acidentalmente colidiu com um caminhão da transportadora Cacique Transportes Ltda que retornava à garagem da empresa, onde sofreria reparos no correr da semana.

Nenhum dos dois veículos envolvidos na colisão possuía seguro, ficando a cargo dos proprietários acordar a reparação dos prejuízos.

João, assumindo prontamente a culpa, transferiu o montante de R$ 1.200 (hum mil e duzentos reais) para conta bancária de titularidade da transportadora, a fim de dar início, o quanto antes, à reparação dos prejuízos.

Na tarde do mesmo sábado, o caminhão foi levado à assistência técnica, onde o valor do serviço foi fixado em 800 reais. Agindo de fora diligente, os funcionários da oficina repara-ram o veículo ainda no mesmo dia.

Alguns dias depois, estranhando a não existência de nenhum contato por parte da di-reção da transportadora no que concerne à devolução do valor excedente, João decide ir até a sede da sociedade no intuito de reaver os R$ 400 (quatrocentos reais) não gastos nos reparos.

Para sua surpresa, o diretor da empresa afirma que não devolveria esse valor, por conta de lucros cessantes, transtornos, danos morais e toda sorte de inconvenientes que sofreu por conta da não utilização de seu veículo.

Revoltado com a postura do diretor da empresa, João busca aconselhamento jurídico sobre como agir para reaver o valor não gasto pela empresa com os reparos. Como você aconselharia João no caso narrado acima?

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aUla 17: inadiMPleMento das obrigações

EmENtário dE tEmas

Mora do devedor – Mora do credor – Purgação de mora – Perdas e Danos – Culpa do devedor – Caso fortuito e força maior – Considerações sobre a cláusula de não indenizar

lEitura obriGatória

SAVI, Sergio. “Inadimplemento das obrigações, Mora e Perdas e Danos”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Ja-neiro: Renovar, 2005; pp. 457/488.

lEituras comPlEmENtarEs

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 267/302.

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 689/724.

1. rotEiro dE aula

Quando uma dívida deixa de ser paga, ocorre atraso, ou o pagamento é feito de forma equivocada, a lei confere ao credor mecanismos para fazer com que essa obrigação seja cumprida, ou no caso de impossibilidade, que esse credor insatisfeito encontre formas de minorar a sua insatisfação.

A crise no cumprimento da obrigação se manifesta juridicamente a partir do mo-mento em que o pagamento se torna exigível e atentando a isso, existem situações em que a própria lei antecipa o cumprimento da obrigação, como figura, por exemplo, no art. 333 CC.75

O inadimplemento da obrigação pode ser absoluto ou relativo. O critério que possibilita essa diferenciação, reside no parágrafo único do art. 395 do Código Civil, qual seja, a utili-dade da prestação realizada fora das condições especificadas.

Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atuali-zação dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.

No inadimplemento absoluto, a obrigação não foi cumprida em conformidade com as condições definidas e não mais poderá sê-lo. Essa impossibilidade de cumprimento é tarefa para o julgador e varia de acordo com o caso concreto. Se o juiz considerar que ainda há utilidade para a o credor no cumprimento da obrigação, estará o devedor em mora.

75 art. 333. ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste código:I – no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;II – se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penho-rados em execução por outro credor;III – se cessarem, ou se se tor-narem insuficientes, as garan-tias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.Parágrafo único. nos casos des-te artigo, se houver, no débito, solidariedade passiva, não se reputará vencido quanto aos outros devedores solventes.

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Não é a mera aferição da possibilidade do cumprimento da obrigação que distingue o inadimplemento relativo (mora) do inadimplemento absoluto. O enfoque correto é o as-pecto da utilidade para o credor, o qual somente pode ser determinado no caso concreto.

O inadimplemento relativo, ou mora, pode ser imputada tanto ao devedor como ao credor. Quando se trata de mora do devedor (solvendi), têm-se o retardamento culposo no cumprimento da obrigação, sendo, por outro lado, a mora do credor (accipiendi) a ocor-rência de um fato jurídico que se aperfeiçoa independentemente do fato de ter o credor procedido culposamente.

A lei é expressa no sentido de que deve haver culpa no caso e mora solvendi, destacando-se os arts. 396 e 399 do Código Civil:

Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.

Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atra-so; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Não se trata somente de alusão ao critério temporal. A mora não se liga apenas ao re-tardamento, mas de forma geral, a irregularidades no adimplemento de uma obrigação. Vale lembrar que lugar do pagamento e formalidades definidas também são fatores a serem considerados para a constituição em mora (art. 394 do Código Civil).

mora do devedor

Salvo exceções, é necessário para que haja mora do devedor que a dívida já esteja ven-cida. Nas obrigações líquidas e certas, com prazo previsto para o cumprimento, o simples advento dessa data importa na mora do devedor. Trata-se, nessa hipótese, de mora ex re, que decorre da própria coisa. É a regra dies interpellat pro homine, a qual destaca, como visto, que apenas o fato do devedor se deparar com dia do pagamento já o constitui em mora. No Código Civil, essa regra se encontra no art. 397, caput.

Se, pelo contrário, a obrigação possuir prazo indeterminado, haverá a necessidade de interpelação (ou notificação ou protesto) do devedor para que o mesmo seja constituído em mora. Trata-se, então, da mora ex persona, e o seu assentamento legal está no parágrafo único do art. 397:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

No caso de uma obrigação negativa, a mora se verifica a partir do dia de prática do ato, conforme expõe o art. 390 do Código Civil:

Art. 390. Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster.

Como já destacado, a mora do devedor possui dois elementos: um objetivo, que é a exi-gibilidade da obrigação, e outro subjetivo, que é a culpa do devedor. Se este não concorreu

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com culpa para o não cumprimento da obrigação, não podem lhe ser imputados os efeitos da mora. Tendo isso em vista, o devedor, provando caso fortuito ou força maior, afasta a mora.

Afora esses elementos, necessária ainda é a constituição em mora. A mora ex re se opera com o simples advento do termo; a mora ex persona, por outro lado, requer que o credor constitua o credor em mora, o interpelando.

Em relação aos efeitos da mora, pode-se destacar os artigos 399 e 402 do CC:

Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atra-so; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Aqui o devedor moroso arca com o ônus probatório de demonstrar que a solução desfa-vorável da obrigação independentemente da sua mora.

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao cre-dor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

As perdas e danos, conforme demonstra o artigo, abrangem tanto montante efetivamen-te perdido como aquilo que se deixou de perceber.

mora do credor

A mora do credor, como já destacado, independe de culpa. Estará, invariavelmente em mora o credor que não quiser ou não puder receber. A noção vem definida pelo art. 394 do Código Civil:

Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.

O devedor deverá se valer dos instrumentos legais no intuito de caracterizar mora do credor e de desobrigar-se, sendo o mais relevante desses institutos a consignação judicial. A importância de desobrigar-se reside sobretudo no fato de que enquanto não efetua o paga-mento, o devedor, em regra, assume os riscos pela guarda da coisa.

A aplicabilidade da consignação estáexpressa no art. 335, III, do Código Civil:

Art. 335. A consignação tem lugar:III – se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou residir em

lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil;

A recusa do credor no recebimento da prestação deve ser justificada para que ele não seja constituído em mora. Por exemplo, se a oferta for incompleta, se é ofertada antes do prazo para o recebimento, ou sob condições diversas das estabelecidas, haverá justa recusa do credor.

Destaque-se que a mora do credor e a mora do devedor não podem ser concomitantes. Apenas um dos dois será constituído em mora pelo juiz.

No que toca aos efeitos da mora do credor, temos a delineação dos contornos gerais no art. 400 do Código Civil:

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Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.

Do acima exposto, pode-se depreender três efeitos:

(i) A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa – Como destacado, há a necessidade de que o devedor não proceda com dolo, de modo a gerar prejuízo para o credor. Deve conservar sua atuação em consonân-cia com os ditames da boa-fé, e nesse caso, se incorrer em gastos, devem estes ser prontamente ressarcidos pelo credor. Dessa forma, temos que é certa a necessidade de atuar com zelo na conservação da coisa sob pena de ser tachado como doloso seu comportamento.

(ii) Obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la; Decorre do fato de que o devedor não tem mais responsabilidade sobre a coisa, não sendo razoável que assuma gastos, por exemplo, por conta de um comportamento desidioso do credor.

(iii) Sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor. Essa hipótese ocorre nos casos de oscilação do valor da coisa, quando o devedor se aproveitará do valor que lhe for mais conveniente.

Purgação de mora

Purgação de mora é o ato mediante o qual quem incorreu em mora, seja o credor ou o devedor, dirime seus efeitos.

A purgação de mora é possível nos inadimplementos relativos. Quando, de outra ma-neira, o inadimplemento for absoluto, ou seja, o pagamento não mais apresentar utilidade, a pendência se resolverá através de perdas e danos.

A purgação apresenta efeitos ex nunc. A partir da data em que se efetivou, não fica mais o agente sujeito aos ônus da mora, mas ainda assim, a oneração referente ao período em que fora constituído em mora se conserva perfeita.

A cessação da mora, por sua vez, extingue todos os seus efeitos, inclusive os pretéritos.A purgação da mora ocorre nos termos do art. 401 do Código Civil, ou seja, quando o

devedor oferece a prestação acrescida dos prejuízos até o momento decorrentes. Essa oferta deve ainda obedecer às condições anteriormente acordadas pelas partes, como local do pa-gamento, bem como outros detalhes.

Art. 401. Purga-se a mora:I – por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos

decorrentes do dia da oferta;II – por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos

efeitos da mora até a mesma data.

Pertinente é saber até quando pode a mora ser purgada. Nesse sentido, percebe-se plu-ralidade de linhas doutrinárias, como por exemplo, a possibilidade de purgação até o mo-mento de propositura da ação ou até a contestação. Há outras hipóteses, onde a lei cuida expressamente de determinar o momento limite para a purgação da mora, mas a doutrina ainda carece de um entendimento pacificado acerca desse tema.

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Perdas e danos

Conforme o examinado, quando o cumprimento da obrigação não é mais possível, ocor-re o seu inadimplemento absoluto.

A orientação que guia a reparação por perdas e danos começa a se delinear no art. 393 do Código Civil, o qual destaca que é crucial a existência de culpa:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Curioso notar que o novo diploma, no caput desse artigo 393, assume postura diferente da existente no código anterior, onde não era prevista a possibilidade de responsabilização, ainda no caso das excludentes de caso fortuito e força maior.

Arcar com perdas e danos implica, de forma sucinta, em indenizar prejuízos tanto de natureza material como moral, perpetrados mediante um comportamento ilícito.

A questão das perdas e danos será pormenorizada no estudo da responsabilidade civil. Por ora, cabe destacar os dispositivos no código civil referentes à responsabilidade contratual e extracontratual (ou aquiliana). A primeira, possui previsão geral no art. 389, ao passo que a segunda encontra-se no art. 186.

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

A aferição do montante referente a perdas e danos é campo para atuação do magistrado, no caso concreto. Sob o aspecto material, elas se estendem desde o prejuízo efetivamente causado, até o que deixou de ser ganho – lucros cessantes. Essa é a dicção dos arts. 402 e 403 CC:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao cre-dor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Na busca da apuração das perdas e danos deve-se ter em mente o efetivo prejuízo acar-retado pelo inadimplemento. Devem-se afastar especulações meramente hipotéticas sobre as possibilidades de ganho.

Nem todos os danos redundam em prejuízo econômico claro e facilmente perceptível, afetando por vezes a integridade psíquica ou outros elementos abstratos, como a moral e a honra.

culpa do devedor

A responsabilidade contratual funda-se na culpa. Culpa em sentido ampla, congregando tanto o deliberado propósito de não arcar com a obrigação, como a sua não realização em

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virtude de imprudência, imperícia ou negligência. Esses três últimos elementos são os mes-mos destacados no campo do direito penal, por ocasião do art. 18 do Código Penal. O art. 392 do Código Civil, por seu turno, destaca:

Art. 392. Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.

Da letra desse dispositivo pode-se observar a diferenciação operada pela lei. Dolo e culpa são elementos reconhecidos, mas a regra é que na teoria contratual, a culpa é examinada numa perspectiva ampla, não pormenorizando-se o propósito do agente quando da prática do ato ilícito.

Para os contratos benéficos – unilaterais, como a doação – a lei destaca a diferenciação entre dolo e culpa. Nesse mesmo exemplo, o doador somente pode responder por dolo, isto é, pelo consciente atuar no sentido de prejudicar ao donatário, ao passo que esse poderá res-ponder por culpa em sentido amplo (dolo ou culpa). Já em relação aos contratos bilaterais, segue-se a necessidade de examinar a culpa no seu sentido amplo.

Mais uma vez, tem-se que afirmar que a verificação da culpa e dos efeitos do inadim-plemento é atribuição do julgador e são somente visualizáveis no julgamento da lide. Esse papel do juiz possui balizamentos encontrados na própria lei, mas essencialmente atende à avaliação pelo mesmo realizada às luz das circunstâncias do caso.

Destaque-se, nesse sentido, a prerrogativa que o Código Civil confere ao magistrado de diminuir eqüitativamente o valor da indenização no caso de desproporção entre culpa e extensão do dano:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano,

poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Trata-se aqui de uma situação excepcional, na qual o juiz não é obrigado a se ater ao montante do prejuízo quando da fixação do valor indenizatório. No entanto, a situação oposta, qual seja, a majoração do valor da indenização por conta de culpa proeminente, não é admitida, devendo-se tão somente se ater ao valor do prejuízo.

No que se refere ao inadimplemento do credor, a lei não traça considerações acerca da necessidade de culpa. No entanto, a recusa por sua parte em receber também implica em prejuízos que devem ser indenizados. Aqui são aplicados os artigos 400 e 401 do Código Civil, já examinados.

Em relação ao ônus probatório, o Código Civil define a seguinte partição: (i) ao credor compete provar tão somente o descumprimento do contrato, tratando-se, portanto, de pro-va objetiva; e (ii) ao devedor, por sua vez, para dirimir sua responsabilidade, incumbe provar que não agiu com culpa.

O credor deve apresentar prova da existência do contrato, que o mesmo foi descumprido e que esse descumprimento lhe implicou prejuízo.

A questão do ônus probatório assume perspectivas distintas em relação às obrigações de meio e de resultado. As obrigações de meio, como visto, são aquelas em que o obrigado se compromete não a um resultado, mas a executar uma tarefa, empregando nela sua habilida-de, destreza e reputação. Dessa forma, a culpa desse executor eclodirá da aplicação de forma indevida dos meios necessários à realização da obrigação. O advogado afamado contratado para patrocinar o cliente em determinada avença não está obrigado à vitória, mas se perde

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prazo processual e desse fato resulta prejuízo à parte que representa, não poderá alegar a imprevisibilidade do resultado como forma de excluir sua culpa. Essa é a linha de distinção com as obrigações de resultado, quando a obrigação é descumprida na não consecução do resultado previsto.

caso Fortuito e Força maior

A exclusão da responsabilidade nas hipóteses de caso fortuito e força maior tem previsão no art. 393 do Código Civil:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Na diferenciação desses dois institutos, não há entendimento pacificado entre os autores, mas, em termos gerais, pode-se afirmar o seguinte: força maior é um fato decorrente de situações que independem do agir humano, tendo como principais exemplos fenômenos da natureza como ciclones, terremotos, a queda de um raio, etc; caso fortuito, por sua vez, em-bora igualmente decorra de situação alheia à vontade da parte, decorre de fatos humanos, como uma greve ou um ato criminoso.

O Código Civil dispõe acerca desses institutos como situações invencíveis, intransponí-veis, que impedem o cumprimento da obrigação, excluindo a responsabilização do devedor.

O ônus de prová-los é do devedor faltoso e se opera concomitantemente sob duas pers-pectivas: (i) objetiva, que é a inevitabilidade do evento; (ii) subjetiva, que se manifesta na imprevisibilidade do evento. Essa perspectiva subjetiva redunda na idéia de culpa, pois se o devedor tinha condições de prever esse evento invencível ou mesmo de evitar que ele se aperfeiçoasse, deverá arcar com os prejuízos da outra parte.

considerações sobre a cláusula de não indenizar

A princípio, nada impede que os contratantes prevejam cláusula de não indenizar, con-tudo, essa cláusula não pode ser oposta indistintamente.

A cláusula de não indenizar, como a própria nomenclatura já define, é um artifício jurí-dico que pode aderir ao contrato prevendo que o dever de indenizar não exista. É a renúncia prévia ao direito de pedir reparação. A possibilidade dessa cláusula deriva do fato de estar-se diante de direito dispositivo das partes.

Não obstante, o ordenamento prevê hipóteses onde a oposição dessas cláusulas é invá-lida, isto é, quando elas confrontam normas de ordem pública. Esse tema é amplamente discutido no Direito do Consumidor, em especial no que toca aos contratos de adesão, que diferentemente dos contratos paritários, não possuem seus termos discutidos entre as partes. Nos contratos de adesão, a vontade contratual se manifesta simplesmente na adesão a um contrato pré-constituído, como é o exemplo dos contratos bancários. Como visto, a possi-bilidade da cláusula de não indenizar vem determinada pelo art. 393 do Código Civil.

Vale destacar que a existência dessa cláusula não autoriza o seu beneficiário a agir de acordo com a conduta prevista, justamente para causar o dano e depois aproveitar a dispo-sição expressa no contrato. Se o contratante, tendo em mente a sua isenção de indenizar, deliberadamente ocasiona o dano, fere os princípios de boa-fé contratual e dá ensejo a perdas e danos.

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A matéria encontra um tratamento especial no Código de Defesa do Consumidor. A Lei nº 8.078/90 define como abusiva qualquer cláusula que implique em desvantagem exagera-da ou seja atentatória à boa-fé ou à equidade. Nesse sentido, o art. 51, IV, do CDC dispõe que “são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao forneci-mento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.”

2. QuEstõEs dE coNcurso

26º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase44. Assinale a alternativa correta:

a) A nossa sistemática jurídica admite, em se tratando de arras confirmatórias, o direito expresso de arrependimento;

b) Realizada a pactuação de arras confirmatórias e, em não se concretizando o contrato definitivo, a nossa legislação faculta à parte prejudicada pleitear eventuais perdas e danos excedentes ao valor das arras;

c) Em se tratando de arras penitenciais, o exercício do direito de arrependimento pela parte que recebeu as arras, ocasionará apenas a devolução exata do valor recebido à título de arras;

d) A nossa sistemática jurídica, seguindo Direito Romano e embasada no princípio da “pacta sunt servanda”, admite apenas as arras penitenciais.

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)52. Analisando-se os princípios inerentes à teoria geral das obrigações, na hipótese de inadimplemento parcial de uma obrigação com data certa, a constituição em mora do devedor:

a) depende de notificação publicada na Imprensa Oficial;b) independe de qualquer espécie de notificação;c) deve ser ultimada por notificação cartorária;d) será possível somente pela via judicial, através de citação ou intimação válida;e) não será possível, pois a inércia das partes gera a prorrogação do prazo por tempo

indeterminado.

Concurso para o cargo de Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (2004)O prefeito de determinado município foi condenado pelo TCU ao pagamento da quan-tia de R$ 128.000,00, atualizada monetariamente e acrescida de juros de 1% ao mês a contar de 15/1/2003, em decorrência da inexecução do objeto de um convênio celebrado com uma autarquia federal, que previa o repasse de dinheiro (R$ 128.000,00) para a construção de uma escola, com prazo de execução até 15/4/2003 e de prestação de contas até 15/5/2003. O referido prefeito interpôs recurso ao TCU, sob as seguintes alegações:1.ª A empresa Alfa, contratada para executar a obra, e a prefeitura municipal deveriam ter sido condenadas solidariamente: a primeira, porque recebeu a integralidade dos recursos e não executou totalmente a obra; e a segunda, porque foi quem firmou o convênio.

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2.ª Não poderia ter sido condenado a ressarcir o valor total do dinheiro recebido, visto que parte da verba foi aplicada na reforma, pela empresa Alfa, de escola diversa daque-la prevista no convênio. A mudança do objeto conveniado teria ocorrido em razão da precária situação do imóvel em que essa escola estava instalada, o que caracterizaria estado de necessidade.3.ª No dia 15/8/2003, houve um incêndio no arquivo da prefeitura, que teria destruído toda a documentação relativa ao convênio, fato que caracterizaria caso fortuito ou de força maior a impedi-lo de apresentar tais documentos ao TCU. Para comprovar que a escola foi realmente reformada, apresenta declarações escritas, subscritas por pessoas da comunidade.4.ª Está disposto a resolver o problema, mediante a construção, com recursos munici-pais, da escola de que trata o convênio.5.ª Acrescenta que poderá assinar um documento dando a casa onde reside em hipo-teca para garantir a construção da escola, podendo, até mesmo, fazer constar do docu-mento a proibição de venda do imóvel.6.ª Os problemas na execução do convênio e na prestação de contas ocorreram em ra-zão de se tratar de prefeitura de município pequeno, cujos servidores não dominam os detalhes da legislação federal aplicável aos convênios da espécie.7.ª A correção monetária e os juros moratórios não deveriam incidir a contar de 15/1/2003 (data da transferência dos recursos), mas sim a partir da data em que teria sido citado pelo TCU; além disso, não estando previstos no termo de convênio, os juros deveriam ser os estabelecidos no Código Civil, ou seja, 0,5 % ao mês.8.ª A condenação pelo TCU estaria lhe causando grave dano moral, visto que o banco comercial em que mantinha conta particular enviou-lhe correspondência comunican-do que não procederia à renovação do seu cheque especial, motivo pelo qual, na reali-dade, deveria é ser indenizado pela União.O Relator do recurso em questão encaminhou os autos ao Ministério Público junto ao TCU (MP/TCU) para o seu pronunciamento. Ante a situação hipotética descrita ao lado, julgue os itens a seguir, considerando os argumentos que poderiam ser usados pelo representante do MP/TCU, ao prolatar o seu parecer acerca da matéria.

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aUla 18: clÁUsUla Penal e JUros

EmENtário dE tEmas

Disciplina jurídica da Cláusula Penal – Cláusula Penal Compensatória e Cláusula penal moratória – Exigibilidade da Cláusula Penal – Cláusula Penal e Institutos Afins.

lEitura obriGatória

FLORENCE, Tatiana Magalhães. “Aspectos pontuais da cláusula penal”, in Gustavo TEPEDINO (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Ja-neiro: Renovar, 2005; pp. 513/538.

lEituras comPlEmENtarEs

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 303/314.

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 734/755.

1. rotEiro dE aula

disciplina jurídica da cláusula Penal

A cláusula penal é uma obrigação de natureza marcadamente acessória, e é por meio dela que se vincula a parte inadimplente ao pagamento de uma multa. Existem portanto duas finalidades principais do instituto: (i) a finalidade de indenização prévia de perdas e danos, e (ii) a de penalizar do devedor moroso.

A legislação civilista não oferece conceituação do instituto. No Código de 2002, a previ-são inserta nos arts. 408 a 416 do Código Civil traça a dinâmica relativa ao tema:

Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.

Como pode se observar pela letra do art. 408, as finalidades da cláusula penal, conforme enunciado, são reprimir o descumprimento total da obrigação ou o atraso no mesmo me-diante a vinculação de uma multa.

Ao conceituar a natureza jurídica da cláusula penal afirmou-se que a mesma tratava-se de uma obrigação acessória. De acordo com a regra geral, o acessório segue o principal, e nesses casos, a nulidade da obrigação principal, por exemplo, implicaria na necessária e con-seqüente nulidade da obrigação acessória. A cláusula penal constitui exceção a essa regra.

O antigo Código de 1916, em seu art. 922, possuía uma regra que por conta da sua incorreção foi suprimida do atual diploma. O regramento anterior dizia que “a nulidade da obrigação importa a da cláusula penal.”

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Há situações em que mesmo diante da nulidade do contrato, poderá ser verificada a continuação da cláusula penal. A cláusula penal pode ter sido pactuada justamente para os casos de ser tida como nula a obrigação principal. Aqui, na realidade, a cláusula penal deixa de ser acessória, para torna-se obrigação autônoma.

cláusula Penal compensatória e cláusula penal moratória

A cláusula penal pode abarcar: (i) a inexecução completa da obrigação (inadimplemento absoluto), (ii) o descumprimento de uma ou mais cláusulas do contrato ou (iii) ou a simples mora (inadimplemento parcial). O momento de estipulação pode coincidir com o da obri-gação, ou ser feito em momento posterior, conforme redação do art. 409 CC:

Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato pos-terior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora.

Deve-se ter em mente que a cláusula penal compensatória constitui prefixação de perdas e danos. Dessa forma, basta que o credor prove o inadimplemento imputável ao devedor para que seja devida multa pactuada. Verificando-se os pressupostos de exigibilidade, deve a multa ser adimplida.

Por outro lado, na hipótese de não previsão de cláusula penal, compete ao credor a ne-cessidade de provar a ocorrência de perdas e danos, bem como o valor a elas referente.

De acordo com o art. 410 do Código Civil, “quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.”

O credor pode pedir o valor da multa ou o cumprimento da obrigação. Jamais as duas prestações conjuntamente. O devedor, pagando a multa, se desincumbe por completo, visto que a cláusula penal constitui fixação antecipada de indenização pelo descumprimento da obrigação.

Hipótese diferente é a da multa moratória, que devido à sua natureza, sempre se mostra útil para o credor. A multa (cláusula penal moratória) funciona intimidando o devedor ao cumprimento da obrigação devida dentro do prazo inicialmente fixado. A pena aqui é a necessidade de pagar de forma mais onerosa.

A natureza compensatória, por outro lado, não está completamente dirimida, visto que o credor, por força do efeito de intimidação operacionalizado pela multa moratória, recebe sua prestação tardiamente. Ainda assim, não é essa a natureza basilar dessa espécie de cláu-sula penal.

Resta claro que na multa compensatória a opção será do credor. Suas opções, por via de conseqüência são:

i) Entendendo que os prejuízos resultantes do inadimplemento são maiores que o va-lor da multa, demandará perdas e danos;

ii) Considerando, contudo, que a multa estipulada lhe cobre os prejuízos, ou ainda, não querendo enveredar pelas questões probatórias das perdas e danos, optará pela cobrança da multa.

A questão da suplementação da indenização prevista na cláusula penal foi tratada pelo artigo 416 do Código Civil:

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Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o

credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

Caso o credor conclua que o prejuízo é maior do que o valor previsto na multa, a possi-bilidade de cobrar o valor excedente deve vir prevista no contrato. Há que se observar, con-tudo, a existência ou não de limitação ao valor dessa suplementação. Essa análise, todavia, envereda pelo campo da autonomia contratual das partes. Em todo o caso, há de afirmar que a demanda por valor indenizatório maior segue a regra geral das perdas e danos, com-petindo ao credor a prova da sua existência.

A cláusula penal moratória é instituída para o inadimplemento parcial da obrigação. Esse inadimplemento pode ser ou a simples mora (atraso no cumprimento), ou a violação de uma cláusula contratual. Deve-se destacar que não há óbice na cumulação da multa com-pensatória com a multa moratória. É o enunciado por força do art. 411 do CC:

Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.

Ainda, no que toca ao Código de Defesa do Consumidor, é necessário atentar que o refe-rido diploma fixou o limite das multas de mora em 2% do valor da prestação nos contratos que envolvam outorga de crédito ou concessão de financiamento.76

De todo o exposto, inferem-se basicamente duas funções para a cláusula penal: (i) cons-titui um reforço para o cumprimento da obrigação, ou seja, uma forma de tentar garantir o seu adimplemento; (ii) fixa antecipadamente as perdas e danos, evitando o complexo processo de apuração de prejuízos. Há, atentando-se à ambas as funções, maximização das possibilidades de cumprimento da obrigação.

Exigibilidade da cláusula Penal

A exigibilidade não está condicionada à demonstração do prejuízo. Tanto como função punitiva, como de perdas e danos prefixados, a exigibilidade está diretamente vinculada a fato imputável ao devedor (culpa ou dolo).

Seguindo a dinâmica estudada quando das obrigações indivisíveis, cumpre analisar o art. 415 do Código Civil. O cerne do dispositivo consiste no fato de impedir que a multa, dotada de intrínseco caráter punitivo, alcance aqueles que não lhe deram causa.

Art. 415. Quando a obrigação for divisível, só incorre na pena o devedor ou o herdeiro do devedor que a infringir, e proporcionalmente à sua parte na obrigação.

Relevante também é saber o momento a partir do qual é devida a multa moratória. Quando não houver prazo, a multa será exigível apenas após a constituição em mora do devedor. Nesse sentido, o art. 397 dispõe que:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

76 art. 52. no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequada-mente sobre: (...)§ 1° as multas de mora de-correntes do inadimplemento de obrigação no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação.§ 2º É assegurada ao consumi-dor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos.§ 3º (Vetado).

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A lei define um limite à fixação do valor da cláusula penal que corresponde ao valor da obrigação principal. O excesso desse valor não é exigível, fora os casos de suplementação já examinados, e cuja possibilidade deve ser previamente acordada pelas partes. O art. 412 do Código Civil assevera que:

Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obri-gação principal.

Se houver cumprimento parcial da obrigação, atentando para as particularidades do caso concreto, pode o juiz reduzir o valor devido a título de cláusula penal. O entendimento corrente, contudo, segue a linha de que essa redução seria um direito do devedor, no sentido de que o mesmo já adimpliu parcialmente com o devido e não seria coerente onerá-lo em porção demasiadamente maior.

O art. 413 dispõe sobre a possibilidade de redução eqüitativa da multa:

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação prin-cipal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

Nessa redução deve o juiz considerar as condições peculiares do negócio jurídico sobre o qual a lide versa. O campo aqui é o da equidade e deve o magistrado atentar a elementos como a função social do contrato e à boa-fé objetiva.

cláusula Penal e institutos afins

Devido a certas similitudes, há certos institutos jurídicos que poderiam ser confundidos com a cláusula penal. Nesse sentido:

1. Arras (ou sinal). Trata-se de princípio de pagamento num negócio jurídico. Nas arras há a entrega efetiva de alguma coisa, mas essa é decorrência do próprio cumpri-mento da prestação. É facultado o arrependimento daquele que deu arras. Para que a cláusula penal tome efeito, não há a necessidade de nenhuma prestação, mas tão somente da violação contratual, que pode ser total ou parcial;

2. Cláusula de Arrependimento ou multa penitencial. Também é cláusula acessória, e por conta dela, o devedor tem a faculdade de não cumprir a obrigação, pagando a quan-tia estipulada. Há aqui a autorização do arrependimento do obrigado, divergindo assim da cláusula penal, que reforça o vínculo na medida em que pune o devedor que não solve com a sua prestação.

3. Obrigação alternativa. O pagamento de perdas e danos não constitui alternativa para o devedor, que está obrigado a cumprir a obrigação pactuada junto ao credor. Não há aqui o direito de escolha tal qual visualizamos nas obrigações alternativas;

4. Condição. Se, numa obrigação condicional, a prestação se tornar impossível por caso fortuito ou força maior, desaparece a exigibilidade de multa. Ela não é objeto da obrigação e, portanto, não pode ser exigida.

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2. caso GErador

Após muita insistência, Eduardo, 14 anos, ganhou recentemente, de presente dos pais, um microcomputador. Da mesma forma, sondou junto a eles a possibilidade de contratar um serviço de internet rápida. Destacou o jovem a importância desse tipo de instrumento no mundo atual, os reflexos na sua educação, bem como o desfrute de toda a família das benesses da hiperconectividade gerava.

Surpreendeu-se Eduardo quando ouviu a negativa dos pais. Frustrado, mas ainda assim desejando usufruir de um serviço de internet rápida, dirigiu-se ao estande de uma famosa operadora, a qual funcionava num shopping próximo à sua residência.

Ignorando as vedações legais para que pudesse ele próprio, e sem representação, figurar como parte em um contrato, acordou a instalação e assinatura do referido serviço. Marcou a visita dos técnicos da operadora para dia em que os pais não estariam presentes, de modo que não viessem a descobrir.

No contrato, entretanto, vinha prevista cláusula penal determinando, no caso de des-cumprimento da obrigação por parte do assinante do serviço, o pagamento do valor de R$300,00.

Pouco após um mês de vigência do contrato, chega à residência de Eduardo fatura co-brando o valor da cláusula penal ajustada.

Qual a linha de defesa que pode ser deduzida pelos pais de Eduardo? Num eventual litígio em âmbito jurisdicional, qual seria a linha de argumentação da operadora?

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aUla 19: transMissÃo das obrigações

EmENtário dE tEmas

Cessão de Crédito – Assunção de dívida – Cessão de posição contratual

lEitura obriGatória

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 167/186.

lEituras comPlEmENtarEs

BITTAR, Carlos Alberto. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004; pp. 87/93.

TEPEDINO, Gustavo, MORAES, Maria Celina Bodin de, e BARBOZA, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 566/589.

1. rotEiro dE aula

O atual Código Civil positivou a disciplina da cessão de crédito nos arts. 286 a 298 e a assunção de dívida nos artigos 299 a 303. A cessão de posição contratual, de forma seme-lhante ao que ocorrera com o Código Civil de 1916, não foi disciplinada pelo Código em vigor.

cessão de crédito

A cessão é um negócio jurídico de feição contratual, através do qual ocorre a alienação de bens imateriais, mais notadamente o crédito, que a par do seu valor nominal também possui valor de mercado.

Não se considera o consentimento do devedor para a realização desse negócio jurídico, uma vez que ele é, em regra, estranho ao eventual instrumento de cessão. Caberá ao devedor responder apenas ao adquirente dos direitos de crédito.

A cessão, vale lembrar, não é forma de extinção das obrigações, visto que a mesma se conserva, alterando-se apenas o pólo ativo. Nesse negócio jurídico, existem as seguintes figuras: o cedente (quem aliena o direito); o cessionário (adquirente); e o cedido (o devedor, ou o obrigado).

Através da cessão ocorre uma transferência do crédito, verificando-se, tão somente, uma alteração no pólo ativo da obrigação. O devedor da obrigação permanece o mesmo, encon-trando-se obrigado face ao cessionário.

Veda-se a cessão de créditos que, por sua própria natureza, não podem ser alienados, ou quando a lei, ou mesmo a vontade das partes, se manifestou no sentido da intransmissibili-dade. Nesse sentido, o art. 286 do Código Civil:

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TEORIa GERal Das ObRIGaçõEs E DOs cOnTRaTOs

Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obri-gação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

Na cessão de crédito pode-se observar também a idéia de que o acessório segue o prin-cipal, isto é, os créditos de natureza acessória são transferidos juntamente com o crédito em torno do qual gravitam. Como exemplos têm-se os direitos de garantia, juros, correção monetária, a cláusula penal, entre outros. Contudo, por ser campo de direito dispositivo, a livre convenção das partes pode afastar essa regra. O art. 287, nesse sentido, define:

Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.

O Código nada alude nesse sentido, mas não há oposição à cessão parcial do crédito, encontrando essa possibilidade, inclusive, assentamento na legislação estrangeira. Apenas parte do crédito pode ser transferido, e nesse caso, o cedido torna-se obrigado em relação a duas pessoas distintas, mas pelo mesmo valor. Nessa bipartição de crédito não há nenhuma preferência de recebimento por um ou por outro credor.

Destaque-se também a possibilidade da cessão ter fim especulativo, podendo ser trans-ferida por valor diverso daquele enunciado na relação creditícia, embora o obrigado fique logicamente vinculado apenas ao valor nominal da obrigação.

O devedor deve ser notificado da cessão, caso contrário, ao pagar ao credor primitivo (cedente) estará se desobrigando. O art. 290 determina:

Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.

Não existe forma específica para notificação, mas é conveniente que seja por escrito, sobre-tudo, pois o art. 288 exige essa formalidade para que se estabeleça validade perante terceiros.

Regra importante de proteção ao devedor reside no art. 291 CC. Ao devedor não pode ser imposto o ônus de descobrir quem é o último cessionário, e, portanto, a quem deve pagar. Deve simplesmente pagar àquele que se apresenta com o título.

Ainda, a consideração da lei em relação ao devedor se manifesta de forma bem expressiva no art. 294:

Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente.

O crédito é transferido com todas as suas características e dessa maneira, as defesas também são abarcadas nessa transferência. Se o negócio jurídico foi inquinado em suas constituição por erro ou dolo, será anulável, e portanto, essa mesma anulabilidade poderá ser oposta em face do cessionário. Logicamente, o cessionário, desde que de boa-fé, não é obrigado a conformar-se com o prejuízo, valendo-se dos instrumentos legais próprios na busca de ressarcimento perante o cessionário.

Essas defesas do cedido face ao cessionário devem ser alegadas tão logo aquele tome conhecimento da cessão.

Os créditos, em geral, podem ser cedidos. Contudo, em certas ocasiões existem óbi-ces à cessão, que podem ser por conta da natureza do crédito, pela convenção das partes

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ou pela própria lei, que veda a sua alienação. Essas exceções, como já destacado, estão no art. 286.

O cedente não é responsável pelo cumprimento da obrigação por parte do cedido, nem pela solvência do mesmo. Sua responsabilidade, contudo, não pode ser ilidida no que con-cerne à existência de crédito quando da realização da cessão – quando a mesma tiver se operado onerosamente (art. 295 do Código Civil).

A solvência do devedor será responsabilidade do cedente apenas nos casos em que este expressamente se manifestar nesse sentido. A lei destaca somente a responsabilidade em relação à existência do crédito ao tempo da cessão.

A transmissibilidade de créditos é campo bem aberto à livre disposição entre as partes, e certamente o cedente poderá, caso realmente deseje, conferir garantias extras ao cessionário, como a da solvência do devedor.

Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.

Ainda, mesmo quando da concessão dessa modalidade de garantia, a lei determina limi-tações, não podendo elas, nos termos do art. 297, ultrapassar o valor recebido pelo cedente mais juros e despesas referentes ao negócio.

Art. 297. O cedente, responsável ao cessionário pela solvência do devedor, não responde por mais do que daquele recebeu, com os respectivos juros; mas tem de ressarcir-lhe as despe-sas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança.

Na cessão feita a título gratuito, em regra, nem a responsabilidade quanto à existência do crédito é devida. A exceção existe, contudo, quando o cedente tiver procedido mediante dolo.

A cessão pode se operar a título gratuito ou oneroso e pode ocorrer em qualquer instân-cia judicial. Destacam-se ainda as modalidades de cessão pro soluto e pro solvendo. Na cessão pro soluto o cedente se responsabiliza somente pela existência do crédito, mas não assume junto ao cessionário a responsabilidade pelo pagamento da obrigação. Diferentemente, na obrigação pro solvendo, essa garantia suplementar é ofertada, responsabilizando-se do ceden-te pelo adimplemento da obrigação.

assunção de dívida

Da mesma forma que existe substituição da parte ativa, pode ocorrer substituição da parte passiva da obrigação. Nesse caso, verifica-se a figura do assuntor, isto é, um terceiro que se obriga pela dívida.

A cessão de débito não pode ocorrer sem a anuência do devedor. Trata-se de corolário lógico da idéia já examinada de que o patrimônio do devedor é garantia do cumprimento da obrigação. No caso de inadimplemento, o credor pode movimentar o aparato jurisdicional no sentido de satisfação dos seus débitos, mas irá fazê-lo, logicamente, quando souber que lá encontrará montante suficiente para satisfazer o seu crédito.

O credor não está obrigado a aceitar outro devedor, ainda que ele possua melhores con-dições de pagara dívida ou seja detentor de patrimônio maior. É o preceito contido no art. 299 do atual código:

Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento expresso do credor, ficando exonerado o devedor primitivo, salvo se aquele, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava.

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Parágrafo único. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa.

A obrigação se mantém alterada, mas as garantias especiais, tais como a hipoteca e a fiança, oferecidas pelo devedor original ao credor, em regra, não se estendem ao assuntor (art. 300 do Código Civil).

Essas garantias não subsistirão com ao advento da assunção, salvo na existência de men-ção expressa nesse sentido.

Semelhante à cessão, a assunção também tem natureza contratual, sendo também ne-gócio bilateral. A forma, não havendo previsão legal que a defina, é livre. Adicionalmente, tanto as dívidas presentes como as futuras admitem cessão, bem como aquelas sujeitas à condição.

A assunção de dívida pode se processar de duas formas diversas: (i) por acordo entre o terceiro e o credor (expromissão); e (ii) por acordo entre terceiro e o devedor (delegação).

Na expromissão, o terceiro, de forma espontânea, assume em face do credor a obrigação pela liquidação do débito. Nessa modalidade de assunção o devedor original pode ser libera-do, mas pode também permanecer concomitante vinculado com o terceiro que assume a dí-vida. Verifica-se assim, dois obrigados pela mesma dívida (assunção de débito imperfeita).

Na delegação, o primitivo devedor transfere a terceiro a sua posição, havendo a necessi-dade de concordância por parte do credor. Da mesma forma que ocorre com a modalidade anterior (expromissão), pode o devedor inicial continuar obrigado de forma concomitante com o terceiro que adere à relação obrigacional. Essa situação irá operar um reforço à obrigação.

Os meios de defesa que seriam oponíveis ao credor pelo primitivo devedor são transmi-tidos ao assuntor. No entanto, por força do art. 302, excluem-se as exceções pessoais, como a compensação, por exemplo. Ainda, sendo a transmissão anulada, a dívida se restabelece tal qual existia anteriormente, excetuando-se, em regra, as garantias propiciadas por terceiros.

cessão de posição contratual

O contrato constitui um bem jurídico possuindo valor intrínseco. A elaboração de um contrato geralmente é uma atividade complexa, trabalhosa e envolvente de número consi-derável de indivíduos.

Na cessão de posição contratual, uma das partes, denominada cedente, contando com a anuência do outro contratante, o cedido, transmite sua posição no contrato a um terceiro, denominado cessionário.

Na cessão de posição contratual, os direitos e deveres provenientes da posição de contra-tante são os objetos da cessão. Trata-se não da transferência de créditos ou débitos, mas de todo um complexo jurídico englobado pelo contrato, fora outros interesses que lhe sejam subjacentes. Um direito de crédito, por exemplo, sempre engloba mais do que o crédito em si, como outras eventuais vantagens, sejam elas patrimoniais ou morais.

Conforme examinado, na cessão de posição contratual, há a transferência de um com-plexo de relações jurídicas: débitos, créditos, deveres de abstenção, entre outros. Nessa mo-dalidade de negócio jurídico verifica-se a possibilidade de se operarem cessões de crédito e assunções de dívida. Esses são efeitos incidentais da cessão daquele complexo jurídico, mas não constituem a essência do mesmo.

Na dinâmica da cessão de posição contratual, a concordância do cedido, isto é, a parte que remanesce no contrato, é imprescindível para a formação desse negócio jurídico.

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2. caso GErador

Giovanni e Michel trabalham juntos num conceituado escritório de advocacia no Rio de janeiro. Giovanni, apesar de possuir uma boa renda mensal, cultiva hábitos de vida muito caros, o que invariavelmente o que deixa à volta com dívidas.

Em setembro passado, Giovanni conseguiu vitória em expressivo caso judicial no qual atuava como advogado, rendendo-lhe a título de honorários, o montante de 60.000 reais. Ocorre que a exeqüibilidade desse crédito não é imediata, estando o mesmo sujeito a um termo de 120 dias, prazo esse firmado a pedido do patrocinado, o Sr. Alcebíades.

Vendo sua situação financeira agravar-se, Giovanni procura Michel e lhe propõe uma cessão parcial de crédito. Afirma, de forma verbal, nessa ocasião, que o cliente é solvente.

O negócio jurídico possui os seguintes contornos: Michel tornar-se-ia titular de um crédito no montante de 30.000 reais. Para isso, desembolsaria a quantia de 25.000 reais. Nenhuma garantia acerca da solvabilidade do devedor é dada por Giovanni (cessão pro soluto).

Pouco tempo antes da data de pagamento do crédito, Giovanni recebe notificação in-formando que o Sr. Alcebíades ingressou em juízo, pleiteando a anulação do contrato de prestação de serviços advocatícios.

Alcebíades alega que foi ludibriado por Giovanni, que não tinha idéia de que o litígio iria lhe custar tanto, e que caso o patrono da causa houvesse agido com boa-fé, informando-lhe dos custos envolvidos na demanda, jamais teria sequer litigado.

O processo de invalidação do aludido negócio corre de forma célere e, surpreendente-mente, vem a dar ganho de causa a Alcebíades.

De quais recursos pode se valer Michel para não ver completamente frustrada a sua ex-pectativa de crédito? Qual o valor poderia o mesmo pleitear?

3. QuEstão dE coNcurso

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)58. Assinale a única afirmativa correta sobre a cessão de créditos, segundo o Código Civil.

a) Na cessão de um crédito, abrangem-se todos os seus acessórios, não sendo possível dispor-se em contrário;

b) Desde que haja a anuência do cedente, será possível ao cessionário de crédito hipo-tecário fazer averbar a cessão à margem da inscrição principal;

c) Somente com o conhecimento da cessão pelo devedor pode o cessionário exercer os atos conservatórios do direito cedido;

d) Com relação a terceiros, é eficaz a transmissão de um crédito, ainda que feita verbal-mente;

e) O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o ceden-te.

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Parte iV: teoria geral dos contratos

aUla 20: PrincíPios da noVa teoria contratUal – aUtonoMia da Vontade e FUnçÃo social do contrato

EmENtário dE tEmas

Autonomia da Vontade e Função Social do Contrato

lEitura obriGatória

MARTINS-COSTA, Judith. “Reflexões sobre o princípio da função social dos contra-tos”, in Revista Direito GV nº 01 (maio/2005); pp. 41/66.

lEituras comPlEmENtarEs

SALOMÃO FILHO, Calixto. “Função social do contrato: primeiras anotações”, in Revista de Direito Mercantil nº 132; pp. 07/24.

BUENO DE GODOY, Cláudio Luiz. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 110/130.

1. rotEiro dE aula

Ao se iniciar o estudo da teoria e prática dos contratos, é fundamental ter-se em mente a transição pela qual atravessa esse específico e importante campo do Direito Civil. Tradicio-nalmente vinculada à soberania da vontade individual (autonomia da vontade), insculpida nos preceitos que tutelam a liberdade contratual, a disciplina dos contratos atualmente vê-se permeada por uma série de interesses que ultrapassam a vontade do particular, gerando um debate sobre os limites da intervenção de dispositivos de ordem pública na regulação das relações contratuais.

Pode-se, em linhas gerais, dizer que os princípios tradicionais, que fundamentaram a construção clássica da teoria dos contratos são os seguintes: (i) autonomia da vontade; (ii) força obrigatória; e (iii) relatividade. Esses princípios encontram hoje diversas áreas de fle-xibilização geradas pela ascensão de novos princípios contratuais, como (iv) a função social do contrato; (v) a boa-fé objetiva; e (vi) o equilibrio econômico-financeiro da relação con-tratual.

Todos os seis princípios acima mencionados serão trabalhados nas aulas a seguir. Na presente aula será conferida atenção especial aos princípios da autonomia da vontade e da chamada função social do contrato.

A autonomia privada pode ser entendida, segundo lição de Díez-Picaso e Gullón como “o poder de se auto-ditar a lei ou preceito, o poder de governar-se a si próprio.” Conforme complementam os mesmos autores:

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“Poder-se-ia também defini-la como um poder de governo da própria esfera jurídica, e como essa é formada por relações jurídicas, que são a causa da realização de interesses, a au-tonomia privada pode igualmente conceituar-se como o poder da pessoa de desregulamentar e ordenar as relações jurídicas nas quais é, ou há de ser, parte.”77

O estudo da autonomia privada assume, na seara contratual, a forma da tutela da li-berdade contratual. Nesse particular é importante não confundir “liberdade de contratar” com “liberdade contratual”. A primeira relaciona-se com o momento formativo da relação contratual, isto é, com o grau de liberdade envolvida na decisão sobre concluir ou não um contrato. Já a segunda diz respeito ao conteúdo do contrato.

Segundo Francesco Messineo, existem quatro significados para liberdade contratual: (i) o fato de que nenhuma parte pode impor unilateralmente à outra o conteúdo do contrato, e que esse deve ser o resultado de livre debate entre as partes; (ii) liberdade de negociação, no sentido de que o objeto do contrato é livre, salvo bens indisponíveis e exceções previstas no ordenamento; (iii) o poder de derrogar as normas dispositivas ou supletivas; e (iv) o fato de que, em algumas matérias, é admitida a auto-disciplina, ou seja, a regulação estabelecida pelas partes interessadas.78

Os alicerces sobre os quais se funda a liberdade de contratar podem ser encontrados nos princípios elaborados pela Escola do Direito Natural, responsável por conferir importância crescente à contratualidade, a partir do século XVI, sob a influência do conceito de autono-mia da vontade desenvolvido pelo Humanismo. O primado da vontade individual é conso-lidado no século XVII, quando a própria existência da sociedade passa a ser fundamentada no contrato. Essa tendência é explicita por John Gilissen:

“A Idade Média não reconhecia o primado da vontade individual; esta não era respeitável senão nos limites da fé, da moral e do bem comum. Os interesses da comunidade familiar, re-ligiosa ou econômica, ultrapassam os dos indivíduos que a compõem. (...) É à Escola Jusnatu-ralista que a autonomia da vontade deve a sua autoridade, o seu primado. Mas foi sobretudo o jurista holandês Hugo Grócio que desenvolveu a nova teoria: a vontade é soberana; o respeito da palavra dada é uma regra de direito natural; pacta sunt servanda é um princípio que deve ser aplicado não apenas entre os indivíduos, mas mesmo entre as nações”.79

Após a consagração dos ideais da Revolução Francesa e a abolição dos privilégios es-tamentais e corporativos, a promulgação do Código Napoleão em 1804 veio a positivar explicitamente o primado da autonomia da vontade, na máxima de que “o contrato faz lei entre as partes” (art. 1.134), a qual será traduzida na célebre frase de Fouillée: “quem diz contratual diz justo”.

A conseqüência imediata desse cenário é a crescente importância conferida pela doutrina contratualista do século XIX para a análise da manifestação da vontade e seus vícios. Com a primazia da autonomia da vontade, interpretar o contrato tornou-se um exercício de des-cobrimento das reais intenções das partes e das formas pelas quais elas foram verbalizadas. Trata-se de uma verdadeira “mística da vontade”.

As restrições à liberdade contratual começam a surgir com a mudança do cenário históri-co, assegurando-se, inicialmente, maior igualdade de oportunidades no mercado, em termos da proibição de discriminação em razão de gênero, raça, etnia. Posteriormente, razões sociais passaram a determinar certas discriminações positivas, como o tratamento mais protetivo às partes contratualmente mais vulneráveis (tais como o consumidor, o idoso, o trabalhador).

Portanto, razões de justiça e equidade vieram a determinar a intervenção do Estado sobre as relações contratuais, em um movimento que ficou conhecido como dirigismo

77 luis Diéz-Picaso e antonio Gullón. Sistema de derecho civil. Madrid: Editorial Tecnos, s.a., 1994, v. 1, p. 371.

78 Francesco Messineo. Il con-tratto in genere. Pádua: cEDaM, 1973, pp. 43 e 44.

79 John Gilissen. Introdução his-tórica ao direito. 2a ed. lisboa: Fundação calouste Gulbenkian, 1995, pp. 738 e 739.

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contratual. Trata-se da inserção, no ordenamento jurídico, de uma série de normas cogen-tes, a delimitar os assuntos sobre os quais se pode contratar, em que limites se pode dispor de determinados direitos, e que cláusulas serão consideradas intrinsecamente abusivas e, por conseguinte, nulas.

Segundo identifica Eros Roberto Grau:

“A mudança de perspectiva sobre a compreensão da autonomia da vontade é, portanto, profunda: deixa-se de considerar o indivíduo como senhor absoluto da sua vontade, para compreendê-lo como sujeito autorizado pelo ordenamento a praticar determinados atos, nos exatos limites da autorização concedida.”80

O mesmo diagnóstico dessa fase de transição é realizado por Gustavo Tepedino ao afirmar:

“Com o Estado intervencionista delineado pela Constituição de 1988 teremos, então, a presença do Poder Público interferindo nas relações contratuais, definindo limites, diminuin-do os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem”.81

Todavia, a flexibilização da autonomia da vontade a preceitos contidos na legislação não representa uma completa anulação desse princípio nas relações contratuais. Muito ao reverso, a autonomia da vontade, e, mais especificamente, a liberdade contratual, permane-cem como princípio, e sua derivação respectivamente, a reger os vínculos contratuais, agora atrelada à função social do contrato, consoante o disposto no art. 421:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Uma constatação de que a autonomia da vontade ainda desempenha papel de destaque na formação dos contratos pode ser encontrado no art. 425 do Código Civil, o qual deter-mina que as partes poderão elaborar contratos atípicos, ou seja, contratos que não seguem os modelos de contrato tipificados na legislação:

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

A dinâmica existente entre autonomia da vontade e função social pode ser percebida em alguns exemplos retirados da prática dos contratos de locação. Nesse sentido, vale investigar os limites do direito de retomada do imóvel por parte do locador para uso próprio. A lei de locações (Lei nº 8245/91) prevê, no seu art. 52, §1º, que o locador, salvo se remunerar o locatário pelo fundo de comércio, não poderá exercer o mesmo ramo de atividade desempe-nhado então pelo locatário. É a redação do artigo:

“Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: (...)II – o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de comér-

cio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente.

§1º – Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo ramo do lo-catário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com as instalações e pertences”.

80 Eros Roberto Grau. “Um novo paradigma dos contratos”. In Revista Trimestral de Direito civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 5, jan/mar 2001, p. 78.

81 Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil. 2a edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 204.

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Ao interpretar o referido artigo, Fábio Ulhoa Coelho afirma que, em tela, está-se diante de um conflito entre o direito de inerência ao ponto do locatário e o direito de propriedade do locador. Conforme expressa o autor:

“Quando o direito de propriedade do locador entra em conflito com o direito de ine-rência a ponto do locatário, está em oposição uma simples oposição de interesses privados, individuais.”82

Complementa então o autor afirmando que a restrição ao direito de retomada, constante do art. 52 seria inconstitucional, pois imporia restrições ao direito de propriedade.

Essa é justamente a espécie de situação em que a ampla autonomia da vontade cede espaço para mandamentos constantes da lei, impondo a preservação de determinados in-teresses. Ao afirmar que o dispositivo que veda o restabelecimento do locador no negócio desenvolvido pelo locatário, o legislador não confronta o direito de propriedade, mas o funcionaliza. Nessa direção, o artigo tutela não apenas a função social da propriedade, mas também a função social do contrato de locação, que se transforma em incentivo para que locatários desenvolvam cada vez melhores negócios, seguros de que não sofrerão a retomada do imóvel sob o argumento de uso próprio para que o locador venha a se aproveitar o tra-balho realizado no ponto.

Cláusulas de não restabelecimento, ou cláusulas de não concorrência, atualmente de-sempenham importante papel na configuração dos limites da autonomia da vontade nos contratos. A cláusula de não-concorrência pode ser decorrência natural da venda de um negócio, principalmente nos casos em que seja necessário assegurar ao comprador as con-dições necessárias para que este usufrua integralmente dos benefícios diretos e indiretos da aquisição. A referida cláusula, todavia, deve ser razoavelmente delimitada, no tempo, no espaço e no setor relevante.

O próprio código civil estabelece que, salvo estipulação em contrário, na aquisição de estabelecimentos empresariais o alienante não poderá concorrer com o comprador pelo prazo de cinco anos. Essa é a redação do art. 1147 do Código Civil:

“Art. 1147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqüentes á transferência.”

Ainda na dinâmica dos estabelecimentos empresariais, e mais especificamente nos shop-ping centers, as cláusulas de não concorrência assumem a feição de cláusulas de raio, sendo comum que no contrato de locação com a empresa que administra o shopping center conste uma cláusula que veda a abertura de estabelecimento idêntico ao que o lojista explora no shopping por uma certa distância especificada no contrato.

2. caso GErador

A administradora do Shopping Iguatemi, localizado na cidade de Porto Alegre, tem figurado na imprensa por conta de um litígio instaurado com a cadeia de farmácias Panvel. Segundo consta das notícias veiculadas, ela teria ingressado com ação de despejo contra a empresa que explora a farmácia Panvel localiza no shopping por conta da abertura de uma outra farmácia Panvel no shopping Bourbon Country, construído posteriormente e pratica-mente vizinho do terreno onde se localiza o shopping Iguatemi.

82 Fábio Ulhoa coelho. Curso de Direito Comercial, v. I. são Pau-lo, saraiva, 4ªed., 2000; p. 103.

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Alega a administradora do Shopping Iguatemi que a abertura de uma farmácia Panvel no shopping vizinho representaria violação da cláusula de raio estabelecida no contrato de locação. Vale ressaltar que no shopping Bourbon Country também foram abertas lojas das redes O Boticário e McDonalds.

Se você fosse o juiz dessa ação judicial, como seria a sua decisão? Fundamente.

SHOPPING BOURBON COUNTRY

IGUATEMI SHOPPING

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aUla 21: PrincíPios da noVa teoria contratUal – contornos da boa-FÉ obJetiVa

EmENtário dE tEmas

As três funções da boa-fé objetiva – Os deveres anexos de conduta

lEitura obriGatória

TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. “A Boa-Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil”, in Gustavo TEPEDINO (org.) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 29/44.

lEituras comPlEmENtarEs

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 115/153.

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158.

1. rotEiro dE aula

A boa-fé tradicionalmente figura como elemento dos estudos jurídicos quando se deve investigar se o indivíduo possui ou não ciência sobre uma determinada condição, como, por exemplo, se o individuo conhece, ou não, um vício que macula a sua posse sobre determina-do terreno. Essa perspectiva da boa-fé convencionou-se denominar boa-fé subjetiva.

Existe, todavia, uma outra forma de atuação da boa-fé no direito brasileiro, denominada boa-fé objetiva, a qual foge de qualquer ilação sobre um estado de espírito do agente para se fixar em uma análise voltada para critérios estritamente objetivos.

as três funções da boa-fé objetiva

É comum delimitar-se três funções típicas desempenhadas pela boa-fé objetiva no direito brasileiro. Sendo assim, pode-se definir a função tríplice da boa-fé objetiva da seguinte forma:

A boa-fé objetiva desempenha inicialmente um papel de critério para a interpretação da declaração da vontade nos negócios jurídicos. Essa função é prevista no art. 113 do novo Código Civil:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Esse dispositivo ganha relevo ao indicar que a primeira função da boa-fé objetiva é dirigir a interpretação do juiz ou árbitro relativamente ao negócio celebrado, impedindo

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que o contrato seja interpretado de forma a atingir finalidade oposta àquela que se deveria licitamente esperar.

A boa-fé objetiva atua ainda como forma de valorar o abuso no exercício dos direitos subjetivos, conforme consta do art. 187 do Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

E, por fim, a boa-fé objetiva é, ainda, norma de conduta imposta aos contratantes, se-gundo o disposto no art. 422 do Código Civil:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

A função desempenhada pela boa-fé objetiva a partir do dispositivo no art. 422 é, sem dúvida, a sua atuação mais comentada pela doutrina e da qual mais se vale a jurisprudência dos tribunais nacionais.

os deveres anexos de conduta

O motivo pelo qual a terceira função da boa-fé objetiva recebeu tamanho destaque deriva justamente do seu próprio conteúdo: impor às partes contratantes deveres objetivos de conduta, que não necessariamente precisam constar do instrumento contratual para que possam ser cobrados e cumpridos. Tratam-se dos chamados deveres secundários, ou anexos, aos quais todas as partes de um negócio devem manter estrita observância.

Essa caracterização da boa-fé objetiva como a disposição de deveres de conduta que as partes devem guardar difere frontalmente daquela concepção clássica de boa-fé subjetiva, ligada a um estado psicológico do agente.

Os deveres secundários impostos pelo art. 422 foram gradativamente sendo construídos pela doutrina e pela jurisprudência, podendo-se mesmo falar em quatro deveres básicos: (i) dever de informação e esclarecimento; (ii) dever de cooperação e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo.

Todavia, diversas derivações podem surgir desses quatro deveres básicos, como bem ex-plicita Judith Martins-Costa, os deveres secundários podem abranger um vasto leque de condutas que deverão ser observadas pelas partes, como, por exemplo:

“a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu desideratum, o do consultor financeiro de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em

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sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o cor-reto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f ) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares.”83

A imposição desses deveres se reveste de papel fundamental para a ordenação dos contra-tos na prática, uma vez que se busca, com a sua afirmação, proteger um bem que se encontra na própria essência da contratação: a confiança. Por esse motivo, o enquadramento legal da boa-fé objetiva sempre se mostrará atrelada à tutela da confiança, sobretudo no que diz respeito à aplicação desse princípio aos casos de responsabilidade pré-contratual.

Mas a redação do art. 422 não está afastada de qualquer espécie de crítica. Muito ao re-verso, Antonio Junqueira de Azevedo afirma que a redação do art. 422 se mostra insuficien-te, deficiente e desatualizada perante às exigências da prática contratual moderna. Segundo o autor, o artigo seria insuficiente em sua redação pois não deixa claro se os seus dispositivos constituem norma cogente ou meramente dispositiva, além de não mencionar as fases pré e pós-contratuais para fins de responsabilização. O artigo seria ainda deficiente por não pre-ver de forma explícita quais são os chamados deveres anexos. E, por fim, o dispositivo seria desatualizado pois confere poderes desmesurados ao juiz para interferir nas relações con-tratuais, abrindo possibilidade para se incrementar a sobrecarga de processos que impede o regular funcionamento do Poder Judiciário, além de não serem os juizes tradicionalmente preparados para decidir casos nos quais figurem contratos de extrema especialidade técnica. Nesse sentido, menciona o autor, a época atual estaria passando do paradigma do juiz para o paradigma do árbitro.84

2. caso GErador85

A Newcell Telecom S/A (“Newcell”) é uma companhia aberta, com ações negociadas em bolsa de valores, que atua no setor de telecomunicações, especificamente na prestação de serviços de telefonia móvel (SMP), Regiões I e II. Até muito recentemente, 50% de suas ações ordinárias pertenciam à acionista Macroservice Ltd. (“Macroservice”), 40% à Celular do Brasil Ltda. (“Celular do Brasil”) e os 10% restantes ao público investidor. A recente mudança no seu quadro acionário deu-se em razão da alienação das ações ordinárias de propriedade da Celular do Brasil (“Ações”), operação esta que permitiu a entrada da Trama Telecom S/A (“Trama”) – orginariamente prestadora da mesma modalidade de serviço ape-nas na Região III. A operação é hoje alvo de uma disputa judicial, iniciada pela Celular do Brasil, conforme os fatos a seguir relatados.

Desde julho de 1999, por força de um acordo de acionistas celebrado entre a Ce-lular do Brasil e a Macroservice (“Acordo de Acionistas”), a transferência das ações ordinárias de emissão da Newcell estava sujeita a procedimento prévio, que incluía a realização de um leilão informal e a outorga de direito de preferência entre os acionis-tas acima designados. Assim, dispunha o Acordo de Acionistas que o acionista rema-nescente teria o direito de preferência, podendo adquirir a participação do acionista alienante desde que o fizesse nos mesmos termos e condições constantes da oferta de um terceiro.

83 Judith Martins-costa. A Boa-Fé no Direito Privado. são Paulo: RT, 1999, p. 439.

84 antonio Junqueira de.azevedo. “Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de código civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. são Paulo: saraiva, 2004; pp. 148/158

85 caso gerador extraído da apostila “Princípios contra-tuais”, elaborada por Teresa negreiros para os cursos de educação continuada da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.

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Em janeiro de 2004, desejando alienar a participação de 40% que detinha no capital votante da Newcell, a Celular do Brasil deu início à tentativa de obter a melhor oferta pos-sível pelas suas ações.

Entre os analistas que acompanhavam as diligências que antecederam ao leilão promo-vido pela Celular do Brasil, não havia dúvida: todas as apostas convergiam para a Trama, cujos planos de expansão eram notórios. Mediante a aquisição de 40% das ações ordinárias de emissão da Newcell, poderia a Trama aproveitar-se das consideráveis sinergias em jogo para se tornar a maior potência no mercado de telefonia celular do Brasil, operando simul-taneamente nas Regiões I, II e III. Ou seja, a Trama era a maior interessada na aquisição das Ações, e por isso estimava-se que sairia vencedora do leilão.

Não se sabia, porém, que, naquele mesmo mês de janeiro de 2004, enquanto a Celular do Brasil organizava o leilão – disponibilizando aos potenciais interessados informações sobre a Newcell –, Trama e Macroservice assinavam, secretamente, uma carta de intenções (“Carta de Intenções”), que dispunha sobre o comportamento de ambas com relação ao iminente leilão.

O objetivo da Trama e da Macroservice, ao assinarem a Carta de Intenções, era permitir que, ao final, e fosse quem fosse o vencedor do leilão, ambas – Trama e Macroservice – for-massem o bloco de controle da companhia, possuindo, cada uma, 45% do capital votante da Newcell. Assim, caso fosse a Trama a vencedora do leilão, a Macroservice obrigava-se a não exercer o direito de preferência e a lhe vender 5% da sua participação. Caso, pelo con-trário, a Trama não fosse a vencedora, poderia esta, a seu exclusivo critério, e mediante a entrega dos recursos necessários, obrigar a Macroservice a exercer o direito de preferência e, ato contínuo, lhe transferir as Ações, mais os 5% relativos à sua própria participação origi-nal. Nestes termos, a Macroservice adquiriria as ações com base no seu direito de preferência mas com recursos provenientes da Trama, sendo esta a destinatária final das Ações.

E foi o que de fato aconteceu.Realizado o leilão, contrariamente às estimativas do mercado, a oferta apresentada pela

Trama não foi nada agressiva, vindo a mesma a perder o certame para outra licitante, a Trim Telecom S/A (“Trim”), companhia de origem alemã recém constituída no Brasil.

Foi assim celebrado entre a Trim e a Celular do Brasil, em fevereiro de 2004, contrato de compra e venda de ações, no valor de US$ 400 milhões – contrato este sujeito à condição suspensiva do não-exercício do direito de preferência pela Macroservice. A mencionada compra e venda extinguiu-se com o exercício do direito de preferência pela Macroservice, que, tal como previsto na Carta de Intenções, transferiu ato contínuo as Ações assim adqui-ridas à Trama, mais 5% de sua participação original, de modo a que ambas se tornassem co-controladoras em absoluta igualdade de condições. Tudo conforme havia sido estabelecido na Carta de Intenções, então tornada pública.

A operação motivou uma expressiva alta das ações de emissão das sociedades envolvi-das. Em particular, o representante dos acionistas preferenciais da Newcell fez questão de divulgar ao mercado a sua satisfação diante das novas perspectivas que se abriam para a companhia.

A Celular do Brasil, contudo, sentindo-se prejudicada, acaba de ingressar em juízo com uma ação civil de reparação de danos em face da Macroservice, pleiteando o ressarcimento de lucros cessantes, no montante de US$ 50 milhões, alegando, em resumo, que a execução da Carta de Intenções entre a Trama e a Macroservice, com o imediato repasse das Ações, violou o acordo de acionistas que até então vigorara entre ela e a Macroservice.

Como se resolve o caso acima? Quantos e quais princípios da nova teoria contratual você consegue identificar para o deslinde da questão?

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3. QuEstõEs dE coNcurso

20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase3. Estabeleça a distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva, dando exemplos de situações caracterizadoras de cada uma dessas modalidades de boa-fé.

21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase3. Um náufrago, perdido em alto-mar, em uma balsa, em situação desesperadora, a quase míngua de víveres e água, contrata o seu resgate com um comandante de navio de transporte de combustível que passava providencialmente no local nessa ocasião, sob a promessa de transferir-lhe a propriedade de vultuoso apartamento, metade de seu patrimônio. O comandante assim o faz, mesmo sabendo da proibição peremptó-ria de estranhos a bordo por parte da companhia proprietária do navio, que terá que pagar pesada multa contratual pessoal pelo descumprimento de tal regra e do fato que o resgate, efetuado em condições arriscadas, atrasará a viagem em pelo menos um dia, acarretando diversos prejuízos a seu encargo.Chegando são e salvo ao porto, o náufrago posteriormente recusa-se a cumprir o pac-tuado no resgate, sob o argumento de que o contrato efetuado em tais condições não é válido e que conseqüentemente também não é devida ao comandante do navio qual-quer indenização pelos gastos incorridos com o resgate. Estabeleça se o comandante do navio terá êxito judicial em uma eventual ação contra o náufrago objetivando o cumprimento do contrato e o ressarcimento dos gastos efetuados.

128º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase23. Sobre a boa-fé objetiva, é INCORRETO afirmar:

a) implica o dever de conduta probo e íntegro entre as partes contratantes.b) significa a ignorância de vício que macula o negócio jurídico.c) implica a observância de deveres anexos ao contrato, tais como informação e segu-

rança.d) aplica-se aos contratos do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.

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aUla 22: PrincíPios da noVa teoria contratUal – relatiVidade e sUa FleXibiliZaçÃo

EmENtário dE tEmas

Flexibilização do princípio da relatividade

lEitura obriGatória

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 229/259.

lEituras comPlEmENtarEs

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Os princípios do atual direito contratual e a des-regulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 137/147.

CORREIA, A. Ferrer. “Da responsabilidade do terceiro que coopera com o devedor na violação de um pacto de preferência”, in Estudo de Direito Civil, Comercial e Crimi-nal. Coimbra: Almedina, 1985; pp. 33/52.

1. atividadE Em sala

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O contrato é um fenômeno social, econômico e jurídico. Sendo assim, imaginar que a celebração de um contrato apenas interessa às partes contratantes, seria desconsiderar os verdadeiros impactos que um contrato pode ter na própria sociedade. Terceiros não apenas afetam o cumprimento de um contrato, como também podem ser afetados pelos termos que regem uma relação contratual.

Dessa forma, surgem duas situações bem distintas: (i) o credor que vê a prestação do contrato ser inadimplida por conta da atuação de um terceiro, estranho ao pactuado na re-lação contratual; e (ii) um terceiro que passa a sofrer algum prejuizo em sua situação jurídica por conta de um inadimplemento em contrato do qual o mesmo não faz parte.

A extensão desse transbordamento dos efeitos de uma relação contratual para atingir pessoas não previamente constantes da avença é o objeto de discussão da presente aula. A partir da leitura da reportagem abaixo, buscar-se-á compreender nessa aula a conturbada relação entre os contratos e os terceiros.

Tendo em vista que a agência África não fazia parte do contrato entre o cantor Zeca Pagodinho e a cervejaria Schincariol, poderia a referida agência ser acionada judicialmente? Qual seria o fundamento dessa ação? E como enquadrar juridicamente o comportamento do cantor?

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aUla 23: resPonsabilidade PrÉ-contratUal e ProibiçÃo do coMPortaMento contraditório

EmENtário dE tEmas

Responsabilidade pré-contratual – A proibição de comportamento contraditório

lEitura obriGatória

SCHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: Tutela da con-fiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 90/122.

lEituras comPlEmENtarEs

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Responsabilidade Pré-Contratual no Código de Defesa do Consumidor: Estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 173/183.

1. rotEiro dE aula

Os negócios jurídicos, em geral, são precedidos por uma fase de entendimentos, de ne-gociações, comumente denominada de “tratativas”. Nessa fase do contrato que ainda há de nascer as eventuais partes de uma futura relação contratual discutem como melhor compor os seus interesses para a formação do contrato. A negociação de um contrato é objeto de estudos que ultrapassam o universo estritamente jurídico e alcançam a seara das técnicas e estratégias de negociação, amplamente difundidas através de diversas publicações e cursos especializados.86

Pode ocorrer, todavia, que as negociações não cheguem ao estágio de formação do con-trato. É natural que alguma eventualidade ocorra e que uma das partes tenha que abandonar as tratativas. Contudo, existem hipóteses em que a própria fase pré-contratual gera para as então futuras partes de um contrato uma vinculação capaz de gerar danos caso seja rompida de forma injustificada.

O rompimento injustificado de negociações é apenas uma das hipóteses da chamada res-ponsabilidade pré-contratual. Note-se que nesse momento ainda não existe contrato e que o vínculo existente entre as partes não se baseia na reciprocidade de obrigações devidamente contratadas, mas sim na tutela de um bem cada vez mais relevante para a prática contratual no direito brasileiro: a confiança.

responsabilidade pré-contratual

A responsabilidade pré-contratual, ou culpa in contrahendo, se distancia das duas es-pécies tradicionais de responsabilização uma vez que não pode ser enquadrada como res-ponsabilidade contratual, pois que contrato ainda não existe, e nem mesmo figurar como responsabilidade extra-contratual pois existe um vínculo prévio entre as partes que a dife-

86 nesse sentido, vide, por to-dos, Robert Mnookin. Beyond Winning: Negotiating to Create Value in Deals and Disputes. cambridge: Harvard University Press; 2000.

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rencia da situação peculiarmente encontrada na chamada responsabilidade aquiliana (extra-contratual).

Nesse terceiro gênero de responsabilização, portanto, pode-se encontrar uma interação voltada para a formação de um futuro contrato. Esse vínculo específico caracteriza a res-ponsabilidade pré-contratual. Esse vínculo impõe aos indivíduos o dever de não frustrar as expectativas legitimamente criadas pelos seus próprios atos. A partir desse entendimento surgirá a tutela da confiança aplicada à proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium). Claramente esse vínculo existente entre as partes surge de um im-perativo da boa-fé objetiva, princípio da moderna teoria contratual, já estudado em aulas anteriores. É, portanto, a tutela da confiança o fundamento da responsabilidade pré-con-tratual.

Especificamente no que diz respeito ao rompimento das tratativas, Regis Fichtner Pereira identifica quatro hipóteses características dessa forma de responsabilização: (i) quando ocor-re a ruptura injustificada das tratativas; (ii) quando, no desenvolvimento das negociações, um dos interessados cause dano à pessoa ou ao patrimônio do outro; (iii) quando tenha ocorrido o estabelecimento de contrato nulo ou anulável e um dos interessados conhecia, ou deveria conhecer, o vício no negócio jurídico; (iv) quando, mesmo instaurada a relação jurídica contratual, das negociações preliminares tenham surgido eventuais danos a serem indenizados.87

Vale destacar que, mesmo sendo uma terceira forma de responsabilidade, apartada das tradicionais responsabilidades contratual e extra-contratual, a responsabilidade pré-contra-tual não prescinde da análise dos elementos comumente necessários para qualquer pleito de responsabilidade civil, ou seja, a conduta culposa de uma das partes da negociação, o dano causado e o nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente.

Sendo a responsabilidade pré-contratual uma derivação do princípio da boa-fé objetiva (tutela da confiança) no direito brasileiro, torna-se imediata a conclusão de que as violações que geram esse tipo de responsabilidade são violações aos chamados deveres secundários (ou anexos), típicos da composição do princípio da boa-fé objetiva.

Esses deveres acessórios são basicamente os quatro a seguir destacados: (i) dever de in-formação e esclarecimento; (ii) dever de cooperação e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo.

O primeiro dever secundário (dever de informação e esclarecimento) tem por objetivo tornar as comunicações típicas da negociação claras e transparantes, tudo de forma a evitar que a parte contrária venha a incidir em erro na manifestação de sua vontade.

O dever de cooperação e lealdade, por seu turno, impõe que as partes apenas permaneçam nas tratativas enquanto possuam um interesse sério e legítimo na formação de um futuro con-trato, contando, ainda, com situação jurídica e econômica apta para o seu cumprimento.

O dever de proteção e cuidado comanda às partes a observância de todas as precauções possíveis e razoáveis para que a parte contrária não venha a ser lesionada nas tratativas e no futuro contrato.

O quarto e último dever secundário, ou seja, o dever de sigilo tem por escopo assegurar que as informações obtidas pelas partes durante as negociações sejam mantidas, salvo dispo-sição em contrário, e de forma razoável, em regime de estrita confidencialidade, não sendo as mesmas utilizadas para fins outros que venham a ser estranhos à conclusão do contrato.

a proibição de comportamento contraditório

A proibição do comportamento contraditório representa uma das principais contribui-ções dos estudos sobre boa-fé objetiva para a prática contratual. O instituto possui especial

87 Regis Fichtner Pereira. A Responsabilidade Civil Pré-Contratual – Teoria Geral e Responsabilidade pela Ruptura das Negociações Contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 102.

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aplicação na fase de negociações que antecede a formação do contrato, coibindo as partes de frustrar expectativas legitimamente criadas no pólo contrário das negociações.

A expressão nemo potest venire contra factum proprium consolida a idéia de que a nin-guém é permitido agir contra a sua própria conduta prévia. Trata-se da reprovação social à adoção de comportamentos contraditórios com efeitos perniciosos a terceiros.

O fundamento do venire contra factum proprium, como visto, reside no princípio da boa-fé objetiva, especialmente na sua vertente voltada para a tutela da confiança. A ausência de regula-mentação no direito positivo não impede a aplicação do instituto, o qual vem sendo amplamente utilizado para casos de responsabilidade pré-contratual. A doutrina, contudo, tem adotado en-tendimento no sentido de que a proibição de comportamento contraditório derivaria do precei-to contido no art. 3o, I, da Constituição Federal, o qual consagra a solidariedade social.88

Os pressupostos para aplicação do venire contra factum proprium, de acordo com An-derson Schreiber, são os seguintes: (i) um factum proprium,; (ii) a geração na outra parte de confiança legítima no sentido de manutenção da conduta inicialmente adotada; (iii) um comportamento contraditório violador desta confiança; e (iv) dano ou ameaça concreta de dano derivado da contradição.89

A proibição de comportamento contraditório surge, portanto, em casos em que a con-duta adotada por uma das partes gera legítimas expectativas na outra parte, as quais termi-nam por serem quebradas. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu favoravelmente a agricultores uma ação com base na quebra das expectativas geradas por uma empresa especializada na fabricação de extratos de tomates, uma vez que a empresa tinha por hábito entregar-lhes sempre as sementes para plantio, e comprar o resul-tado da posterior colheita. No ano em que a empresa entregou as sementes e não comprou a colheita, os agricultores alegaram ter sofrido prejuízos pela quebra de expectativas geradas pela empresa. Segundo consta do acórdão em questão:

“Tanto basta para demonstrar que a ré, após incentivar os produtores a plantar safra de tomate – instando-os a realizar despesas e envidar esforços para plantio, ao mesmo tempo em que perdiam a oportunidade de fazer o cultivo de outro produto – simplesmente desistiu da industrialização do tomate, atendendo aos seus exclusivos interesses, no que agiu dentro do seu poder decisório. Deve, no entanto, indenizar aqueles que lealmente confiaram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo.”90

A aplicação da vedação ao comportamento contraditório surge na complementação do voto vencedor, ao afirmar que, no caso, “confiaram eles lealmente na palavra dada, na repe-tição do que acontecera em anos anteriores.”

2. caso GErador91

Severino José dos Santos Neves, agricultor do Município de Várzea Grande, Mato Grosso, possuía plantações de batata, milho e tomate em sua modesta propriedade. Plantava os ali-mentos com a ajuda de sua família e, na época da colheita, contratava alguns empregados.

No início do ano de 1998, a empresa CEIA – Catchups e Extratos Indústria Alimentícia Ltda. procurou Severino e forneceu-lhe sementes de tomate, manifestando sua intenção de, posteriormente, firmar, com ele, contrato de compra e venda.

Alguns meses depois, a sociedade empresária celebrou o contrato com Severino e adqui-riu a safra de tomates de 1998/1999. Assim se deu também com relação às safras de 99/00 e 00/01.

88 anderson schreiber. A proibi-ção de comportamento contra-ditório – Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; p. 101.

89 anderson schreiber. Ob. cit.; p. 124.

90 TJRs, ap. 591028295; j. em 06/06/91.

91 O presente caso gerador foi extraído da apostila “Respon-sabilidade Pré-contratual e Proibição do comportamento contraditório”, elaborada por sergio negri para os cursos de educação continuada da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro.

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Em 2001, novamente a CEIA entrou em contato com o agricultor e distribuiu-lhe as sementes. Severino, animado com o novo negócio, deixou de lado as plantações de batatas e milho e passou a se dedicar exclusivamente ao cultivo de tomates. Implantou a mais nova tecnologia de cultura em sua plantação e contratou empregados para o plantio e a colheita da safra de 01/02.

Contudo, para sua surpresa, a CEIA, naquele ano, resolveu não industrializar os tomates e, por conseguinte, não comprar a safra.

Severino, ao receber a notícia, ficou muito chateado com a situação e foi até a sede da empresa em São Paulo para obter alguns esclarecimentos com o encarregado da compra dos produtos. Foi então informado de que a última distribuição de sementes fora, na verdade, uma doação. O funcionário esclareceu, ainda, que infelizmente não poderia fazer nada, mesmo porque não havia assumido nenhum compromisso de, naquele ano, comprar a produção de Severino.

Com base no caso descrito, analise as seguintes questões:a) Poderia a sociedade empresária, após a distribuição de sementes, deixar de celebrar o

contrato com Severino?b) A distribuição de sementes pela empresa e a aceitação do agricultor configurariam

algum tipo de contrato?c) Haveria, entre Severino e a CEIA, algo que os vinculasse? Em caso positivo, qual seria

a natureza desse vínculo e o fundamento que legitima essa vinculação?d) O fato de Severino ter efetuado algumas despesas por acreditar que a CEIA iria ad-

quirir a safra de tomates teria alguma relevância?e) Imagine agora que, assim como no caso descrito, desde 1998, a empresa vinha dis-

tribuindo sementes de tomate e, em seguida, celebrado o contrato de compra e venda do produto. Todavia, no ano de 2001, a CEIA não efetuou tal distribuição. Mesmo assim, Severino, pensando que, também nesse ano, venderia tomates à empresa, fez, por conta própria, a compra das sementes e o plantio do produto. Essa circunstância altera sua linha de raciocínio referente ao caso?

3. QuEstõEs dE coNcurso

20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase4. Uma grande empresa privada abre um processo seletivo para preenchimento do car-go de Diretor de Relações Externas. Um candidato é selecionado. As partes acordam o salário, demais condições de contratação e é fixada a data para a admissão. Intempes-tivamente, sem motivar, a empresa desiste da contratação. O candidato ajuíza em face dela ação de danos materiais e morais. Discorra sobre a fundamentação jurídica dessa pretensão e sua possibilidade de êxito judicial.

21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase5 – Disserte sobre o instituto da responsabilidade civil pós-contratual, após cumpridas todas as prestações principais da avença, e estabeleça a validade ou não desta no orde-namento brasileiro a partir da aprovação do Novo Código Civil.6 – João e Pedro celebram a compra e venda de um fundo de comércio por R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) descrevendo condicionalmente no instrumento contratual que a aquisição teve por motivo determinante a perspectiva de boa e numerosa freguesia, garantida e apontada pelo vendedor Pedro no próprio contrato.

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Decorridos seis meses, não se caracteriza tal perspectiva. João intenta agora anular o negócio. Estabeleça qual o fundamento de tal pretensão e discorra sobre se terá êxito judicial ou não a pretensão de João.

22º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase5 – Disserte sobre o instituto da responsabilidade civil pré-contratual, no rompimen-to abrupto das negociações durante as tratativas para a celebração de um contrato, e estabeleça a validade ou não desta no ordenamento brasileiro a partir da aprovação do Novo Código Civil.

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DANILO DONEDABacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1995), Mestre em Di-

reito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998) e Doutor em Direito

pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004). Atualmente é professor

do mestrado da Faculdade de Direito de Campos, do bacharelado em Direito da

UniBrasil, e de diversos cursos de especialização. Foi pesquisador visitante na

Università degli Studi di Camerino e na Autorità Garante per la Protezione dei

Dati Personali, ambas na Itália. É consultor do Ministério da Ciência e Tecnologia/

UNESCO e membro da Comissão de Comércio Eletrônico do Ministério da Justiça.

Tem experiência na área de Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes

temas: direito civil, privacidade, bancos de dados, dados pessoais, direito da in-

formática e direitos da personalidade.

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

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TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO

Evandro Menezes de CarvalhoVICE-DIRETOR DA GRADUAÇÃO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Rogério Barcelos AlvesCOORDENADOR DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Andre Pacheco MendesCOORDENADOR DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Marcelo Rangel LennertzCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – CLÍNICAS

Cláudia Pereira NunesCOORDENADORA DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – OFICINAS

Márcia BarrosoNÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – PLACEMENT

Diogo PinheiroCOORDENADOR DE FINANÇAS

Rodrigo ViannaCOORDENADOR DE COMUNICAÇÃO E PUBLICAÇÕES

Milena BrantCOORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO