scan texto psicopatologia história da psiciopatologia

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POR MARIA LUCIA CALDERONI as 'coisas da alma'. Esta disciplina trata as- sim do patologico referido ao animico, que . se diferencia e de certa maneira se op6e ao corporal, ao sornatico. Quanto a patologia, recordemos que logia vem de logos palavra que significa estudo, pensamento, discurso, razao e se refere a ciencia ou estudo sobre algo, no caso, ciencia dos fenomenos pate- logicos do psiquismo. E quanto ao prefixo de patologia? Pathos tern 0 sentido etimo- logico de passividade e sofrimento e e por isso que dizemos que 0 doente padece. Po- rem, pathos tambem e sinonimo de paixao e significa muito mais que doenca. Em sua origem, esse termo se referia a tudo que afeta 0 corpo e a alma em urn born ou em urn mau sentido, assim como a qualquer estado psiquico agitado por circunstancias exteriores: por sentimentos agradaveis como amor, prazer, piedade ou negativos como pesar, aflicao, tristeza, co- lera, odic ou dor. Ou seja, antigamente nao tinha 0 sentido de doenca que hoje e evi- dente no termo patologia e foi concebido como urn movimento, uma agitas:ao que Maria Lucia de Moraes Borges Calderoni e pesquisadora na area de Histaria da Psicopatologia, psicaloga, psicanalista, membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, Coordenadora de Equipe CHnica da mesma institui~ao. Docente nos cursos de especializado Psicopatologia NAIPPE/USP ministrado no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e Psicopatologia e Saude Publica ministrado na Faculdade de Saude Publica da USP. Psicopatologia como disciplina cientifica separada da Psiquiatria existe recentemente. 0 termo surgiu em 1878, como sinonimo de Psiquiatria Clinica. Somente no inicio do seculo XX foi criado urn metodo patolo- gico para compreender a Psicologia normal pelo estudo do fato patologico. Eis a pri- meira definicao de uma metodologia e de urn objeto de estudo proprios a essa area do saber. 0 marco oficial ocorreu em 1913 com a publicacao da obra Psicopatologia Ceral, do psiquiatra e fenomenologo Karl Jaspers; nasceu af a Historia da Psicopatologia. An- tes da criacao deste ramo da ciencia, 0 so- frimento psiquico ja era objeto de reflexao e tratamento. Suas origens remetem a histo- ria do perisamento e da medicina. Psico se refere ao psiquismo e se ori- gina do termo grego psiqu« que deriva de psjkhein - soprar, respirar. Significa sopro ou principio vital, ou seja, 0 mesmo que 0 termo latino anima, alma: 0 que nos anima, nos da vida. Psique e a alma individual per- sonificada e psiquico e 0 que diz respeito psi que especial 7

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POR MARIA LUCIA CALDERONI

as 'coisas da alma'. Esta disciplina trata as-sim do patologico referido ao animico, que

. se diferencia e de certa maneira se op6e aocorporal, ao sornatico. Quanto a patologia,recordemos que logia vem de logos palavraque significa estudo, pensamento, discurso,razao e se refere a ciencia ou estudo sobrealgo, no caso, ciencia dos fenomenos pate-logicos do psiquismo. E quanto ao prefixode patologia? Pathos tern 0 sentido etimo-logico de passividade e sofrimento e e porisso que dizemos que 0 doente padece. Po-rem, pathos tambem e sinonimo de paixao esignifica muito mais que doenca.

Em sua origem, esse termo se referiaa tudo que afeta 0 corpo e a alma em urnborn ou em urn mau sentido, assim comoa qualquer estado psiquico agitado porcircunstancias exteriores: por sentimentosagradaveis como amor, prazer, piedade ounegativos como pesar, aflicao, tristeza, co-lera, odic ou dor. Ou seja, antigamente naotinha 0 sentido de doenca que hoje e evi-dente no termo patologia e foi concebidocomo urn movimento, uma agitas:ao que

Maria Lucia deMoraes BorgesCalderoni epesquisadora na area deHistaria da Psicopatologia,psicaloga, psicanalista,membro do Departamentode Psicanalise doInstituto Sedes Sapientiae,Coordenadora de EquipeCHnica da mesmainstitui~ao. Docente noscursos de especializadoPsicopatologia NAIPPE/USPministrado no Instituto dePsiquiatria da Faculdadede Medicina da USP ePsicopatologia e SaudePublica ministrado naFaculdade de SaudePublica da USP.

Psicopatologia como disciplinacientifica separada da Psiquiatriaexiste recentemente. 0 termosurgiu em 1878, como sinonimo

de Psiquiatria Clinica. Somente no iniciodo seculo XX foi criado urn metodo patolo-gico para compreender a Psicologia normalpelo estudo do fato patologico. Eis a pri-meira definicao de uma metodologia e deurn objeto de estudo proprios a essa area dosaber. 0 marco oficial ocorreu em 1913 coma publicacao da obra Psicopatologia Ceral,do psiquiatra e fenomenologo Karl Jaspers;nasceu af a Historia da Psicopatologia. An-tes da criacao deste ramo da ciencia, 0 so-frimento psiquico ja era objeto de reflexao etratamento. Suas origens remetem a histo-ria do perisamento e da medicina.

Psico se refere ao psiquismo e se ori-gina do termo grego psiqu« que deriva depsjkhein - soprar, respirar. Significa soproou principio vital, ou seja, 0 mesmo que 0

termo latino anima, alma: 0 que nos anima,nos da vida. Psique e a alma individual per-sonificada e psiquico e 0 que diz respeito

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I. Hlstorio

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vem de fora - dai a nocao de passividade.E de mover (rnovimentar) que deriva 0 ver-bo comover e tambern a ideia de emocao(sentimento, afeto) que, assim sendo, ternestreita Iigacao com pathos. Ou seja, paixiioe movimento, alteracao, mudanca, agitacao,recepcao, ernissao e, principalmente, passi-

vidade, pois 0 pathos so se 11l1Claapos re-ceber urn movimento que vem do exteriordo psiquismo. Tambern se relaciona a erno-cao e a cornocao. A emocao surge quandoa alma esta em movimento, constituindo 0

campo do sentir e cornocao e 0 sentimentooriginado por urn movimento forte, violen-to. Pathos tambern e perturbacao, Nao e atoa que se diz que 0 homem apaixonadofica perturb ado, confuso. Temos ai a origemda oposicao classica entre razdo e paixiio:a razao e harmonia, medida, equilibrio; apaixao e desmedida, desarmonia, confusao,perturbacao, desrazao, loucura e doenca,

Os seres humanos sao racionais e passio-nais. Na historia do pensamento humano,procurou-se reduzir 0 psiquismo a sua par-te racional e, em funcao disso, a parte naoracional acabou ligada ao errado ou doente.Porern, nao e preciso resumir 0 estudo dopathos a sua dirnensao negativa. As mani-festacces ditas patologicas nao se restrin-gem ao desequilibrado ou a doenca, aindaque pathos acentue uma ideia que incorno-da: estar passivo, a merce de algo.Talvez porisso, estar sujeito as emocoes ou paixoes sejaconsiderado pouco saudavel. Ea capacida-de exclusivamente humana de ser racionalque permitiria uma acao voluntaria, ou seja,uma acao que se origina em nos mesmos.Ao contrario, as acoes involuntarias, aque-las que nao determinamos, nos aproximamde outros seres vivos para os quais so exis-tern movimentos do pathos opostos a ra-ziio e ligados ao corpo: instintos, apetites,impulsos, desejos, inclinacoes, sentimentos.o que nos diferencia dos animais nao seriamnossas emocoes, mas nossa razao. Esse e urndos motivos de se considerar 0 campo psico-patologico negativamente: nao valorizamosnossa parte "animal", "instintiva", "irracional"

Se paixao e desrazao e sofrimento, se hauma articulacao intern a entre paixiio e lou-cura e entre loucura e ernocao, a Historiada Psicopatologia deve abarcar 0 estudo detudo que se refira ao nao racional no ho-

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memo Quem pretenda estudar 0 psiquismoligado ao pathos necessita, assim, se pergun-tar sobre os movimentos e alteracoes des-se psiquismo, sobre as suas relacoes com 0

mundo e com os outros, as suas manifes-tacoes afetivas, perturbacoes, confusoes edesmedidas, as suas maneiras de adoecer, osseus prazeres e sofrimentos e os seus dese-jos, impulsos, tendenciase apetites. Portan-to, a psicopatologia e a sua historia consti-tuem urn camp? vastissimo que ultrapassaem muito a dimensao da doenca mental.

o livro sobre Historia da Psicopatolo-gia, de Herve Beauchesne diz que a "Psi-copatologia supoe a existencia de urn fatopatologico psiquico que merece ser estu-dado. Conhecer 0 normal atraves do estu-do do patologico e uma diretriz que separaa Psicopatologia de outras disciplinas, poisdela decorre que hi urn 'patologico' no psi-quismo nao redutivel ao organismo (rnedi-cina) ou ao arribiente (Psicossociologia)".Apesar essas teorias, 0 termo Psicopatolo-gia ainda e utilizado por alguns como sino-nimo de Psiquiatria ou Psicologia Clinica.Por vezes, os mesmos temas da Psicopato-logia sao tratados sob 0 nome de Psiquia-tria Geral ou Psicologia Medica. Hi quemdiga que a Psicopatologia e a Psiquiatriapartilham 0 mesmo campo, mas diferemem seus meios e finalidades: a primeira te-ria 0 objetivo de estudar 0 patologico e a

• segunda seria uma terapeutica do funcio-namento mental, ou seja, a psicopatologiaseria responsavel pela teoria e a psiquiatriapor aplica-la. Outra distincao comum eencontrada -entre psico/logia e psico/pato/logia. U ma estudaria 0 psiquismo 'normal'e a outra trataria do, seu adoecimento.

Atualmente, a realidade e bem maiscomplexa. Existem abordagens psiquiatri-cas puramente biologicas que negam qual-quer deterrninacao psiquica das patologiase, por isso, consideram que nao hi por queexistir uma Psicopatologia. Bastaria a Me-dicina e a Biologia para darem conta desse

Na historia do

pensamento humano,

procurou~se reduzir 0

psiquismo a sua parte

racional e, em funcao

disso, a parte nao

racional acabou ligada

ao errado ou doente

campo do saber. Vertentesda propria Psicologia pen-sam 0 psiquismo de for-ma cientifico-positivista econsideram que este po deser reduzido a explicacoesneurofisiologicas ou psi-cossociologicas e, assim,tambern questionam 0

sentido da disciplina quetrata 0 patologico ligado adimensao psiquica.

Ao contrario, Jaspersquando propoe os funda-mentos da Psicopatologiadiz que seu objeto e 0 "ho-mem todo em sua enfermidade" e que todofen6meno psiquico que possamos apreen-der em conceitos de significacao constantee com possibilidade de cornunicacao fazparte da Psicopatologia que, ainda assim,sempre perdera aspectos essenciais do hu-mano, pois "nunca e possivel reduzir intei-ramente 0 ser humano a conceitos psico-patologicos". Situa a Psicopatologia comodisciplina cientifica, nao-rnedica, mergu-lhada na experiencia intima do sofrimentoindividual, mas preocupada em produzirproposicoes de carater geral sobre 0 pade-cer psiquico. E uma definicao que abre aperspectiva de pensar a Psicopatologia demaneira independente da medicina e daPsicologia. Nessa mesma vertente, EugeneMinkowski considera que a psicopatologiadeve estudar, descrever e compreender asestruturas fundamentais da presen<;:a hu-mana sob suas formas mal sucedidas. Esseautor nao delimita 0 fen6meno psicopa-tologico peloseu carater doentio, mas porconstituir uma outra forma de ser. J i 0 psi-quiatra Daniel Lagache defende que a psi-copatologia e uma escola inegavel de Psi-cologia concreta e viva insistindo na ideiade que 0 psicopatologico po de nos ensinara respeito de si proprio e, sobretudo, sobreo psiquismo em geral.

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• Hist6ria

Pathos. encontradana tragediagrega. seria umsofrimento a sertrasnformado emsabedoria

Um dos idealizadores da psicopatologiaFundamental, Pierre Fedida, psicanalis-ta frances, a Psicopatologia se refere hojea uma encruzilhada epistemol6gica entredisciplinas cientificas heterogeneas que ternem comum a preocupacao com 0 sofrimentopsiquico e cujo objeto e 0 fato patico. Masqual e a diferenca entre patico e patol6gico?A concepcao patica e encontrada na trage-dia grega e diz que a paixao (pathos) e umsofrimento que traz consigo a possibilidadede se transformar em sabedoria. A condicaode tal transforrnacao e que este sofrimentopossa ser compartilhado, escutado por umoutro que "sustente a palavra do sofredorate que ele atinja os extremos de auto engen-dramento de um sujeito", como escrito pormario Edurdo da Costa Pereira, em um deseus artigos. Na tragedia teatral Agamenon,de Esquilo, temos a afirrnacao de que Zeusdeu aos homens esta lei: pathei mathos, ou

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seja, "sofrer para aprender". Algo como umapermissao para que a sabedoria possa surgirdo cerne do sofrimento humano. Patico serefere, pois, ao que e possivel aprender napaixao, no sofrimento e na doenca, enquan-to que patol6gico enfatiza exclusivamentesuas dimensoes negativas. A partir de Jas-pers, da visao da psicanalise e da concepcaopatica propoe 0 resgate da implicacao sub-jetiva constituida do sofrimento psiquico eas perspectivas clinic as decorrentes.

Para 0 psicopatologo brasileiro PauloDalgalarrondo, a Psicopatologia tem raizesna tradicao medico-cientffica e na tradi-<;:aohumanista (Filosofia, literatura, artese Psicanalise) a partir da qual se pode re-conhecer no patol6gico uma possibilidadeenorme de conhecimento e contato com di-mensoes humanas que seriam inacessiveissem 0 fen6meno designado como 'doencamental'. E uma ciencia aut6noma que nao

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se confunde com a psiquiatria, a Neurolo-gia, a Psicologia ou a Psicanalise. Uma desuas principais caracteristicas e a multipli-cidade de abordagens e teorias incorpora-das nos ultimos anos.

Segundo Dalgalarrondo, "a Psicopato-logia exige uma atitude aberta, desprecon-ceituosa e multi-disciplinar". Vale recusaralternativas exclusivistas sejam elas psica-naliticas, fenornenologicas, biologicas, cog-nitivo-cornportamentais ou socioculturaise conhecer 0 que ha de util e esclarecedorem cada uma delas. 0 autor lembra queFreud descreveu muito bem 0 lugar da artecomo fonte de conhecimento psicopatolo-gico "Poetas e romancistas sao nossos pre-ciosos aliados, e seu testemunho deve seraltamente estimado, pois eles conhecemmuitas coisas entre 0 ceu e a terra com quenossa sabedoria escolar nao poderia aindasonhar. N ossos mestres conhecem a psiqueporque se abeberaram em fontes que nos,homens comuns, ainda nao tornamos aces-siveis a Ciencia".

Ja 0 psiquiatra brasileiro Carol Sonen-reich tem uma visao oposta. Segundo ele,o conhecimento psicopatologico e fruto dotrabalho de pesquisadores e cientistas e naode filosofos e humanistas.

Entre esses 'pesquisadores e cientistas', em1997, a medica americana Nancy Andreasenafirmara que 0 unico objetivo de uma psico-patologia cientifica e identificar os mecanis-mos neurais dos processos cognitivos normaise compreender como sao afetados nas doen-cas mentais. Para ela, 'a mente e expressao daatividade cerebral'. 0 metodo proposto e 0 dedividir a mente (aqui nao cabe falar de psique oualma) em partes a serem investigadas tais comomemoria, linguagem; atencao etc e relacionarestas 'partes' a lesoes cerebrais e ao desenvolvi-mento neural. Aqui, Psicopatologia e 0 mesmoque neuropsiquiatria ou psiquiatria biologica.

Outros consideram que 0 estudo nessaarea deve se basear somente na tecnologiada radiologia, da ressonancia magnetica, da

tomografia etc. Assim como na investigacaoneuroquimica do liquido cefalo-raquidiano,em testes endocrinologicos e na pesquisados neurotransmissores. Psicopatologia se-ria, pois, 0 campo de estudo e descricao dossintomas psiquicos e suas relacoes com asestruturas e funcoes do cerebro a partir douso dos recursos tecnologicos modernos.Estas sao vertentes coerentes com as noso-

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Hist6ria

granas conternporaneas como a Classifies-cao Estatistica Internacional de Doencas eProblemas Relacionados a Saude, (Classifi-cacao Estatistica Internacional de Dcencase Problemas Relacionados a Saude - versao10(CID-10) e 0 (Manual Diagn6stico eEstatistico de Transtornos Mentais- versaoIV (DSM-4) . Todas sao classificacoes da

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OMS- Organizacao Mundial de Saude ,que utilizam criterios considerados ateori-cos, isto e, baseados somente na descricao eclassificacao de sintomas e sindromes.

EUFEMISMO PARA PSIQUIATRIAEm 1990, Serge Lebovici diz que Psi-

copatologia e urn eufemismo para nao sefalar de psiquiatria. Atualissimas e domi-nantes no campo cientifico, parece queestas concepcoes se esqueceram de que aanatomia cerebral nunca deu conta de ex-plicar os fenornenos psicologicos. Excluin-do a dimensao patica, darao lugar somenteao patol6gico.

Vemos que 0 campo psicopatologico eextenso e variado. Da enfase no contato in-timo com 0 sofrimento individual ao estudotecnol6gico do cerebro da pesquisa do in-consciente ao estudo dos comportamentosobservaveis ou mensuraveis; da mera des-cricao dos sintom as a reiteracao do aspectopatico do sofrimento humano (sofrimentocomo via de acesso a urn saber), temos inti-meras vertentes e possibilidades de aborda-gem. Cada uma delas e fruto de diferentespercursos e transforrnacoes que as concep-coes de saude e doenca mental sofreram nodecorrer da Hist6ria. E por isso que 0 pano-rama hist6rico a seguir apresentado e essen-cial para compreender a complexidade atualdessa area cientifica da qual veremos tam-bern uma sintese das principais correntes.

lINHA DO TEMPODurante 0 longuissimo periodo que vai

da pre-historia humana ate 0 nascimentoda Psiquiatria (seculo XVIII), 0 enlouque-cimento nao se distinguiu do conjunto doadoecer humano. A Medicina deu poucaatencao ao sofrimento psiquico e, quandoo fez, nao 0 considerou separado do con-junto de rnanifestacoes que faziam partedas enfermidades em geral.

As primeiras tentativas de cura foram'empiricas' (fazeres e usos curativos prati-

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cos, inclusive farrnacoterapicos, descobertospelo metodo da tentativa e erro como, porexemplo,o uso terapeutico de ervas e outrassubstancias) e magicas (rituaise feiticos li-gados a cura). 0 adoecimento foi entendidocomo castigo ou punicao e 0 doente consi-derado culpado por sua doenca. Muito tem-po passara ate que a dcenca seja concebidacomo infortunio do qual nao cabe qualquerresponsabilidade ao enfermo. No que se re-fere a loucura, sua concepcao como algo quenao seja indice de erro, impureza ou pecadoe mais recente ainda. Mesmo Philippe Pi-nel, ao libertar os loucos dos hospicios-pri-s6es em 1793, dira que a loucura e urn errodo pensamento. Na realidade, ate hoje naoe incomum 0 louco ser maltratado como setivesse, de fato, culpa por sua insanidade.

Duas praticas de cura se destacam dessestempos antigos: a catarse, que significa pur-gacao, purificacao, limpeza ou evacuacao eo ensalmo, f6rmula verbal magica, recitadaou cantada perante 0 doente para conseguirsua cura. A catarse e 0 ensalmo possivel-mente existem desde 0 paleolitico e em to-das as culturas ditas 'primitivas'. Freud fala-ra de cura catartica no final do seculo XIXe atribuira a palavra urn poder terapeutico,Em seu texto de 1890, Tratamento psiqui-co, tratamento da alma esta escrito que 'serapreciso empreender urn longo percurso para

poder compreender 0 modo pelo qual a ci-encia consegue devolver a palavra ao menosuma parte de seu antigo poder ensalmador'.Freud lembra que a medicina ignorou a pa-lavra (do doente e do medico) como metodode cura, 0 que, como veremos, coloca umaseria questao do estatuto da Psicopatologiano seio da Medicina.

No seculo V a.C., com Hip6crates, ascuras empfrico-magicas iniciaram sua con-versao para uma medicina cientifica. Esta,ao tentar esbocar uma teoria racional sobreas doencas, procura ater-se ao que era daordem do visivel e do mensuravel, sobre-tudo para marcar sua diferenca com a ma-gia e a supersticao. E dificil medir como equanto uma palavra e terapeutica e nao e atoa que a medicina acabou por ser chama-da de 'arte muda'. Este e urn dos motivosessenciais da existencia de uma psicopato-logia nao reduzida a especialidade medicapsiquiatrica, po is se a primeira se refere ascoisas da alma que nao SaG visiveis nemmensuraveis, 0 seu acesso exige uma escutado pathos - do que em n6s nao e razoavele objetivo, como Freud genialmente perce-beu. Para exercer seu oflcio, a Psicopatolo-gia nao pode ser 'muda' nem 'surd a'.

No entanto, ainda hoje, ha quem iden-tifique as psicoterapias, inclusive a Psi-canalise, ao nao-cientifico, Para essasconcepcoes, as praticas de cura 'poucomensuraveis', que trabalham com tecnicasmais ou menos intangiveis e com urn ob-jeto de estudo pouco 'objetivo' nao podemparticipar legitimamente do nobre campodo conhecimento cientifico.

Galeno (see II d.C), 0 medico mais fa-moso ap6s Hip6crates, dira, retomandoArist6teles, que 0 corpo e organum (instru-mento) da alma, esta subordinado a alma.Sera urn meio que a alma utilizaria paraalcancar os seus fins. Consolida-se na Me-dicina a ideia da supremacia da alma sobreo corpo, tao cara a tradicao judaico-crista,e todas as doencas passam a ser considera-

psi que especial 13

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Hist6ria

Para Michel

Foucault, a loucura

nao era uma coisa

existente e mal

entendida que

estava oculta pela

ignodncia de

fil6sofos e padres e

deveria ser "revelada"

pelos psiquiatras

14 psiq ue especial

das como sornaticas. Ainda quea doenca atrapalhe 0 funciona-mento da alma, esta, sendo in-corporea, nao pode adoecer. Asede da alma (0 corpo) pode serlesada e, dependendo do tipo delesao e do local afetado, teremosos variados tipos de loucura.Bern parecido com 0 organi-cismo da Psiquiatria Biologicaatual, que talvez nao saiba comosuas ideias sao antigas!

A partir de Galeno, a doencadeixou de ser desequilibrio en-tre 0 corpo, a alma e 0 ambien-te e tornou-se algo que sempreaparece num lugar especificodo corpo. E dai que nascem asespecialidades medicas opostasa uma medicina da totalidadee a ideia de que 0 medico devese ater ao diagnostico dos sin-tomas corporais. A homeopatia,atualmente, representa uma dastendencias que recupera a ideiahipocratica da totalidade e con-sidera que 0 doente deve sertratado como urn todo.

A medicina se torna tecnica de curar 0

corpo e os males da alma passam para 0 cam-po da etica ou moral (portanto, da Filosofia)e, mais adiante, da religiao, Isso ocorre porquea alma e pensada como separada do corpo etambern porque se acredita que as doencaspsiquicas acontecem quando a alma caiu sobo imperio das paix6es: a alma sa e domina-da pela razdo, a alma adoecida e aquela queperdeu 0 controle racional. Alguns filosofosdido que paixao e loucura e, por isso, 0 sa-bio nao pode ter paix6es. E uma concepcaocompletamente moralista: so fica doente (daalma) quem quer, e uma questao de escolha.Ate hoje encontramos essas ideias relacio-nadas, por exemplo, a histeria e a depressao.Quem nao ouviu falar que se pode sair dadepressao com 'forca de vontade'?

Se 0 doente da alma 'perdeu a razao' ese 0 que caracteriza 0 humano e sua ra-cionalidade, os males sornaticos se tornammenos importantes que os psiquicos, poisestes produziriam a desumanizacao dodoente. A cura do corpo estaria nas maosdo acaso, dos remedies que podem ou naofuncionar. Ja a cura da alma dependeria ex-c1usivamente do doente, que seria aqueleque nao suporta 0 sofrimento, nao e resig-nado e, sobretudo, e incapaz de parar dedesejar. Tornou-se insensivel a razao, In-sania significa etimologicamente 'ausenciade saude na alma'. 0 desejo e insano, poisimpediria a virtude e a sabedoria. A loucu-ra seria propria dos ignorantes. Dai surgea ideia de stultitia - estupidez ou desequi-librio mental e dementia - perda do poderda mente. 0 demente e aquele que perdeuo dominio sobre si mesmo.

N a Idade Media, a loucura sera menosassunto de filosofos e mais de padres, ja quea alma tornou-se 'alma espiritual'. Estes,partindo tarnbern de Aristoteles, dido quea 'cur a da alma'vem atraves da palavra seve-ra e violenta do mestre (0 educador moral)que deve ensinar bons habitos para tornar 0

homem virtuoso e mentalmente saudavel.E essa a 'psicopatologia' que chega a Re-

nascen<;a. A moral crista ere que 0 homemrecebeu a capacidade racional de Deus e,por isso, 0 louco e aquele que negou a suaparcela divina. E quem esta amens - fora desi, desvairado;furiosus - delirante, violento,inacessivel a relacoes humanas, reduzido aurn estado animal; ou com insania - sub-metido as suas paix6es e aos seus apetitesinferiores. Perdeu 0 que 0 distinguia dosanimais e 0 aproximava de Deus. Estao da-das as condicoes para a articulacao entreloucura e possessao demoniaca: 0 diabo naoe aquele que pretende afastar 0 homem deDeus? Essas ideias irao se expandir e che-gam ao seu apogeu no seculo XVI.

Segundo Isaias Pessotti, a classificacaoda loucura se torna uma lista dos diferentes

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modos de atuacao do diabo sobre 0 conhe-cimento e a vida afetiva. 0 louco e tratadocomo seguidor de Sata. Urn texto famososobre 0 assunto e urn verdadeiro manual dedoencas mentais da epoca e 0 Malleus male-ficorum (0 martelo dos malignos), de JacobSprenger e Heinrich Kramer, publicado em1484 e reeditado na Europa ate 1669. Noseculo XII, conturbado pela fome, pela pes-te e pela guerra, corneca a segregacao dosloucos. Em torno de 1453, a caca as bruxasse inicia e 0 louco passa a ser visto como pe-rigoso, ma1dito e contagioso - igua1 ao le-proso. 0 medo se estende ao contagio pelasifi1is e se dirige a sexua1idade feminina e amu1her, considerada urn 'ternplo construi-do sobre uma cloaca'. Assim fa1a '0 mar-telo dos ma1ignos': "toda feiticaria provemdos desejos carnais que estao instalados nasmu1heres, as mais ardentes, para lograr a sa-tisfacao de seus desejos imundos". Nessa fase,os loucos sao separados dos saos, expu1sos deseus 1ugares de origem, presos ou queima-dos como bruxos (em gera1, como bruxas). ANau dos insensatos, pintura de Bosch, e umadas representacoes do cuidado reservado aos'doentes da alma'.

A Psi quia tria sera gestada nesse ca1doque mistura 0 humanismo renascentista, aexplosao da atividade pesquisadora, cien-tifica, artistica e filosofica, mas tambern aInquisicao, a caca as bruxas e as ideias de-monologicas sobre a loucura. Qjiando osmedicos sac convocados a dar urn parecersobre os acusados de feiticaria, iniciam urnquestionamento sobre a ligacao da loucuracom 0 demonic. Estamos nos primordios daconstrucao do conceito moderno de doencamental, mas a clinica psiquiatrica so nasce-ra no final do seculo XVIII. Ao tomar parasi a incumbencia de entender e dominar aloucura, a psiquiatria buscara 0 seu substra-to organico e, com 0 avanco das pesquisas,demonstrara a relacao do psiquico com 0

sistema nervoso e 0 cerebro. Aparecem asprimeiras tentativas de classificar as doen-

<;asmentais, mas os loucos continuam reco-1hidos a partes ocu1tas de suas casas ou sol-tos, errantes, sem destino ou, ainda, presosem asilos e hospitais. Nao serao objeto decuidado, ainda que constituam grande pre-ocupacao para 0 homem pos-renascentista:a loucura deve ser entendida raciona1mente.A ideia de trata-la e posterior.

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Hist6ria

Indigentes e

libertinos estariam

na lista daqueles

que seriaminternados indis-

criminadamente

16 psique especial

o seculo XVII concluira a separacao en-tre razao e desrazao iniciada na Grecia clas-sica. "Se alguern pens a, nao pode ser louco, see louco, nao pode pensar", disse Rene Des-cartes. Loucura e pensamento sao incornpa-tiveis. 0 homem pode ficar louco, mas naohi pensamento lou co, e uma contradicao determos. Ao contrario, loucura e a impossibi-lidade de pensar. Ou seja, quando a loucuraemerge como objeto de saber, a animalidadedo louco se reafirma: 0 homem nao e 0 unicoanimal pensante? Se os antigos nos legarama ideia de que loucura e paixiio, se 0 cristia-nismo articulou a paixiio com 0 pecado e li-gou a loucura ao demoniaco, a modernidadedira que a loucura e desrazao, transforman-do-a em doenca mental.

Para Michel Foucault, a loucura nao erauma coisa existente e mal entendida que es-tava oculta pela ignorancia de fi16sofos e pa-dres e deveria ser 'revelada' pelos psiquiatras.

Para esse autor, a loucura como doenca foiproduzida pela razao nesse periodo. Antes,nao havia 0 doente mental como 'entidade',mas apenas a consciencia de uma diferencanao perfeitamente delimitada, sem urn es-tatuto definido. Diferenca vista por vezescomo forma de sabedoria ligada ao sagrado,ao demoniaco ou ao "misterio da diferencapura", como diz a psicanalitica carioca Gar-cia Roza. A loucura foi produzida na grandeoficina que foi 0 hospital no seculo XVIII eseu artesao foi 0 psiquiatra. Ela inquieta 0

horn em moderno e, nessa fase, muitos hos-pitais serao construidos, nos quais os dife-rentes (vagabundos, indigentes, desempre-gados, loucos, libertinos, pobres em geral)serao indiscriminadamente internados.

As explicacoes medico-cientificas e asclassificacoes da loucura tornam -se cadavez mais complexas e, desde entao, as pes-quisas, hipoteses teoricas e propostas tera-

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peuticas segulfao aumentando exponen-cia1mente ate hoje.

No inicio da 'era psiquiatrica', muitosmedicos iniciarao a construcao dos con-ceitos que ainda hoje utilizamos. Assim,Cullen criara 0 termo neurose (doenca dosistema nervoso) e Arnold far a a separacaoentre alucinacao e delirio. Pensador dessaepoca, Franz Mesmer e importante pelo co-nhecimento que tinha do papel da sugestao.Considerado precursor da hipnose, ele dizia:'suprima-se a imaginacao e a confianca enada se obtera. Que 0 objeto de vossa cren-ca seja verdadeiro ou imaginario, obtereis 0mesmo resultado' .Efeito da imaginacao ousugestao, suas curas acabaram por se tornaro principio da tecnica hipnotica utilizadaposteriormente. Esses sao exemplos da ri-queza da Psiquiatria nos seus prirnordiosque, entre tanto, nao trouxe modificacoesno tratamento dos doentes. Via de regra, aIoucura seguiu sendo punida e contro1ada,mas nao foi cuidada. Ainda hoje, em verda-de, nao ha duvidas de que 0 tratamento doschamados transtornos mentais esta longede ter alcancado urn 1ugar ideal.

MATRIZES NEUROCIENTiFICASNo seculo XIX, se intensificam os estudos

neurologicos e psiquiatricos e se iniciam, aospoucos, as aplicacoes praticas das pesquisascientificas. Philippe Pinel foi 0 principal ex-poente da Psiquiatria na fase recern-nasci-da. Segundo Pinel, a observacao e a base daclinic a e que os 10uc~s devem ser tratadoscom humanidade, ja que sao 'doentes' e nao'criminosos'. Ao contrario de toda a tradi-cao medica anterior, nao privi1egiou os sin-tomas estritamente organicos, considerandoa etiologia da doenca mental determinadapor causas fisicas, pela hereditariedade, pelaeducacao 'errada', por 'paix6es' diversas etc.Propos que 0 medico tivesse paciencia, as-siduidade e autoridade natural, oferecendoao doente urn ambiente e ocupacoes agrada-veis. E1e tambem orientou sobre 0 que nao

deveria ser feito ao doente: naose deveria agredi -10, nem imer-gi-10 bruscamente em agua friae nem restringir sua comunica-s:ao com parentes e amigos. En-tretanto, nao houve mudancassobre 0 contro1e e vigilancia dosasilos, Jean-Etienne Esquiro1,seu discipulo, deu continuidadea sua obra.

Ate hoje permanecem ele-mentos de sua nosografia - porexernplo, suas subdivis6es damania em 'piromania', 'clep-tomania' etc. Pinel e Esquiro1dominaram a psiquiatria pormuitas geras:6es. Em 1822,Antoine Bayle descreveu a pa-ra1isia geral. E1e foi 0 primeiroprofissiona1 a descobrir a cau-sa anatornica de urn estado dealienacao. A pesquisa anatomo-clinica chegou entao a Psiquiatria e muitosestudos procurariam identificar as causasorganicas de todas as doencas mentais.

Por meio do haxixe, Moreau de Toursinaugurou a auto-experimentacao da loucura.E1e ambiciona urn saber que nao passe pela

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observacao externa ou pelo interrogatorio dolouco, pois considera que 0 psiquiatra precisater urn acesso direto a doenca. Tern inicio acriacao de urn espac;:ocomum ao normal e aopatologico, uma das condicoes para 0 nasci-mento da Psicopatologia. 0 seu pensamentovai ainda mais longe, Turs did. que: "nao epreciso ingerir drogas, basta sonhar, pois 0

sonho reproduz as mesmas caracteristicasda loucura. 0 louco, portanto, e aquele quesonha acordado e, por isso, 0 sonho permitecornpreende-lo", relatou Tours.

Na Alemanha, a psiquiatria e marcadapelo romantismo que, oposto ao racionalis-mo Frances, defende uma visao de homemna qual a sensibilidade e a irnaginacao ternlugar proeminente.

A subjetividade individual e destacada eo imperio exclusivo da razao e questionado

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como unica forma de conhecer a intimida-de do homem. Os psychiker (psicologistas)levarao em conta dimensoes hoje associadasa Psicanalise: a importancia da sexualidade,do inconsciente e do simbolismo dos sonhos.Dirac que a genese das doencas mentaisdepende de urn conjunto de causas, sendomuitas vezes necessario remontar a primeirainfancia para se chegar a elas. Nas primeirasdecadas do seculo XIX, 0 psiquiatra roman-tico Johann Christian Heinroth did. que apatologia mental se caracteriza pela perda deliberdade, no sentido de perda do autogover-no ou do controle sobre a vontade. It 0 pri-meiro a falar de conflito psiquico, apesar dete-lo feito partindo da ideia luterana de pe-cado. Pode ser lido como precursor de mui-tas das ideias freudianas. 0 termo 'psicosso-matica' e de sua autoria e, como outros, did.

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que 0 corpo e a psique sao aspectos de urnmesmo ser. A Psicologia intuitiva e incons-ciente se baseara em Schopenhauer e Niet-zsche, que insistiam na ideia da existenciade forcas humanas irracionais e instintivascomo 0 sexo e a autoconservacao. Duas dasmais importantes correntes psicopatol6gicas,a psicanilise e a psiquiatria fenomenol6gicaserao frutos dessas ideias,

Em seguida, a Alemanha sed. dorni-nada pelos(somantiker), organicistas radi-cais que partido da neuropatologia paraexplicar a doenca mental. Dentre os seusrepresentantes despontam Carl Wernicke,Wilhelm Griesinger e Theodore Meynert(professor de Freud). Com honrosas exce-coes tais como a pesquisa de A. Alzheimer,responsavel pela descricao da dernenciapre-senil valida ate hoje, essa abordagemnao produziu os frutos desejados, pois naolocalizou as les6es neuro16gicas correspon-dentes as patologias pslquicas. Ainda que 0

psicopato16gico continue visto a partir desuas bases organicas, a ideia de que a neuro-patologia pode substituir a psicopatologia e,pouco depois, abandonada.

DEGENERESCENCIAS E A POLEMICAEVOLUCIONISTA

No final do XIX, surge a polernica te-oria da degenerescencia. Partindo das te-orias lamarckianas e darwinianas sobre aevolucao das especies em funcao da adap-tacao ao meio, ere na existencia de alte-racoes pato16gicas tambern causadas porfatores ambientais que podem levar a umadegeneracao do 'especime' alterado e seusdescendentes, ate culminar, no limite, coma sua extincao. Os degenerados teriam ta-ras que deveriam ser distinguidas das do-encas com outras etiologias. Essas ideiastiveram grande sucesso. Com base nessateoria, George Beard (EVA), por exem-plo, descreve a neurastenia que teria comocausa 0 ambiente estressante e como sin-tomas urn esgotamento fisico e mental eCesare Lombroso tenta explicar a crimi-nalidade descrevendo 'estigmas bio16gicos'dos degenerados que, em tese, identifica-riam os criminosos, dando margem a todaespecie de preconceito, ate mesmo racial.Essas ideias que hoje sao evidentementeinaceitaveis geraram criticas violentas e

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pertinentes. No entanto, ao introduzir 0

ambiente como fator causal, a teoria dadegenerescencia foi precursora da corren-te psicossociologica, que tanto contribui-d. para a reflexao sobre as influencias domeio nas patologias mentais. Alern disso,essa teoria se contrapos ao extremismo dacorrente organicista, que reduzia as doen-cas mentais a alteracoes no cerebro ou nosistema nervoso.

o hipnotismo corneca a ser praticado,evidenciando a importancia dos fatorespsicologicos no adoecimento e na cura, es-pecialmente 0 papel dominante da suges-tao, da emocao e dos conteudos mentaisinconscientes. Jean-Martin Charcot teveuma participacao. essencial na descobertade fatores psiquicos nas neuroses, aindaque ele proprio jamais tenha negado suaconcepcao neurologica. Responsavel peladescricao do quadro clinico da histeria,ele percebeu que os sin tom as histericosreproduziam problemas neurologicos semrespeitar as leis da Fisiologia. Embora naotenha atribuido esse achado clinico a fato-res psicologicos. Por ter renome intern a-cional, ao se interessar pela hipnose, acabapor conferir a esta urn estatuto cientifico.Suas ideias influenciarao pensadores doporte de Freud e Janet.

A sua propria revelia, este medico aca-bad. por se tornar urn dos simbolos da fa-libilidade das concepcoes anatomoclinicas,fisiopatologicas e etiopatologicas que cons-tituiam a totalidade das explicacoes sobre 0adoecimento na sua epoca, Ele apresentou ahisteria de forma dramatica, mostrando queexistem patologias que escapam a qualquertentativa de se obter 'urn conhecimento desuas causas certas e suas leis precisas', ouseja, apresentou como e discutivel a ideiade uma medicina identificada com a cienciapositiva. Assim sendo, Charcot e seus his-tericos participaram da abertura do campoda Psicopatologia. A partir dele, cornecoua ser levada a serio a existencia de urn fato

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patologico que nao se reduz jamais a les6esanatomoc1inicas, a disturbios das funcoesfisiologicas, a influencias do meio ambien-te, a agentes quimicos ou fisicos externos,enfim, a quaisquer explicacoes bioquimicas,mecanicas, sociologicas ou morais. A Psico-patologia deve muito as histericas que, comseus sintomas espetaculares e seu intensosofrimento, questionaram todas as teoriasmedicas entao existentes.

o capitalismo cresce durante 0 se-culo XIX e se consolida a seguir, geran-do condicoes socio-econornico-culturaisque terao intimas relacoes com as formascontemporaneas do sofrimento psiqui-co e com as maneiras de trata-lo. Surge 0

pensador Vierkandt, que caracterizou aessencia desse sistema: 1. desconhecimen-to do valor proprio das coisas: estas seraosomente 0 que valem economicamente(rnercadoria); 2. vazio de sentido da vida,que se torna algo utilizado na pura com-

peticao; 3. substi tuicao daqualidade pe1a quantidade;4. 0 exito econornico tomalugar da 'honra', da 'nobreza'ou da 'distincao': 0 homemvale 0 quanto tern ou ganha;5. grande capacidade de se-ducao: 0 camp ones e absor-vido pela cidade, todos desejam integrar 0

mercado consumidor; 6. despersonalizacaocrescente, burocratizacao invasora, servi-dao do homem as coisas (0 fabricante dealcool nao pensa no que 0 alcool e para 0

horn em, mas sim no que 0 horn em e para 0

alcool: consurnidor). Prolongamentos bas-tante atuais des sa "psicopatologia econo-mica": 0 poderio ligado a industria farm a-ceutica e, consequentemente, as pesquisasem Psicofarmacologia e 0 imenso adoeci-mento psiquico ligado as exigencias desu-manas do trabalho competitivo, estressantee alienante.

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AS CONTRIBUI~6ES DE RIBOT,BINET, JANET, JASPERS E FREUD

Com 0 seculo XX, no momento historicoem que 0 psicologico ultrapassou as fronteirasmetafisicas e religiosas, nasceram a Psicopato-logia, a Psicologia e a Psicanalise.

A Psicopatologia tern mais de urn fundador,ainda que aJaspers tenha cabido 0 titulo oficial.Pela importancia da escola patologica fran-cesa, hi quem considere que seu nascimentoocorreu com Claude Bernard - que mostrou naFisiologia a continuidade entre os fenornenosnormais e patologicos - e com 'Iheodule Ribot,criador do metodo patologico, para quem adoenca e 'urna experimentacao instituida pelanatureza com procedimentos de que a arte hu-mana nao disp6e'. Por isso, ela atingiria 0 ina-cessivel. Para Ribot, a fisiologia e a patologianio se op6em como dois contraries, mas comoduas partes de urn mesmo- todo.

A continuidade ou ate uma identida-de entre 0 normal e 0 patologico sao ideiasfundamentais para a Psicopatologia e para aPsicanalise. Nesse prisma, por exemplo, 0 es-quecimento pode se tornar patologico, mas euma funcao normal da memoria. "Sem 0 es-quecimento total de urn numero prodigiosode estados de consciencia, nao poderiamosnos lembrar. Viver e adquirir e perder; a-vidae constituida pelo trabalho que desassimila,tanto quanto pelo que fixa. 0 esquecimento ea desassimilacao", disse Ribot.

Ele influenciou enormemente pesquisado-res franceses das geracoes seguintes. Entre eles,Alfred Binet, estudioso experimental da inteli-gencia e formulador do famoso teste de QJ (Bi-net-Simon), que tentou 'vender a ilusao' de queo psiquico poderia ser medido; e 0 grande clini-co Pierre Janet, urn dos fundadores da Psicopa-tologia Dinamica francesa, que acreditou, comoFreud, na existencia de processos inconscientes,considerando as patologias psiquicas como for-mas de regressao a ~m estado evolutivo anterior.Urn de seus meritos foi perceber a importanciada dimensao social das condutas humanas.

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Os franceses aproximaram 0 estudo psi-copatologico da Psiquiatria, separando-ocada vez mais da Filosofia. N a Alemanha,ao contrario, a cornpreensao do sofrimentopsiquico exigira uma aproximacao com a fi-losofia, na medida em que a Psiquiatria ale-ma foi dominada, como vim os, pelos neuro-logistas. Jaspers iniciara essa aproximacao apartir da Fenomenologia e Freud retornaraos fenornenos inconscientes pressentidos nafilosofia romantica, dando-lhes urn estatutocientifico. Se a cultura germanica so tivesseparticipado da Historia da Psicopatologiacom esses dois nomes, a sua contribuicao jaseria incornensuravel.

A Psicopatologia e jovem. Tem em tornode urn seculo de vida. Tem crescido de formavertiginosa na tentativa de compreender -osfenomenos patologicos psiquicos mediante a'integracao de rmiltiplas referencias: psicologi-.cas, filosoficas, sociologicas, biologic as e psi-canaliticas. Tomou-se tao complexa que te-mos de dividi-la para falar de suas tendenciasatuais. Uma possivel divisao, apenas didatica,situa essa disciplina em quatro grandes cor-rentes: organicista, psicanalitica, fenornenolo-gica e psicossociologica. Cada corrente abrigalinhas por vezes muito diferentes.

No en tanto, paradoxalmente, tambernse pode pensar que a Psicopatologia comodisciplina autonorna esteja em crise. Beau-

chesne tem razao ao dizer que"do is grandes tipos de referen-cia parecem opor-se e resumir apsicopatologia conternporanea:uma psicopatologia dinarnicabaseada na teoria psicanaliti-ca e uma psicopatologia quese propoe a fazer desaparecera subjetividade em proveito decomportamentos objetivaveis,baseada nas teorias comporta-mentalistas e da comunicacao",Se acrescentarmos a esse quadro, 0 fatopolernico de que 0 pato16gico perde suasingularidade "na recusa de uma delimita-cao entre 0 normal e 0 patologico, talveztenhamos de admitir que a Psicopatologiacomo area especifica de conhecimento cor-re 0 . isco de se tornar obsoleta. Sao ques-toes, sem duvida, presentes. Mas sera queelas resumem as tendencias atuais do nossocampo de estudo?

De forma talvez otimista, penso que aPsicopatologia desenvolve-se justamentena fertil interseccao da Psiquiatria biolo-gica (genetic a, bioquimica, farmacologia),das Neurociencias, da Psicossociologia, daPsiquiatria Fenomenologica e das psico-terapias e teorias psicodinarnicas, entre asquais, sem duvida, a Psicanalise ocupa umaposicao central. •

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